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REVISTA

ANÁLISE
ESTRATÉGICA

GUERRA NA UCRÂNIA
Reconfiguração do tabuleiro e realinhamentos estratégicos
Coronel R1 Enio Moreira Azzi e Coronel R1 Sylvio Pessoa da Silva
O uso da força como instrumento de política internacional
Coronel Oscar Medeiros Filho e Coronel R1 Enio Moreira Azzi
Interdependência complexa e o futuro da guerra
Coronel R1 Paulo Roberto da Silva Gomes Filho
A guerra na Ucrânia e a arquitetura de segurança global: um movimento
tectônico? Coronel R1 Guilherme Otávio Godinho de Carvalho

Guerra informacional no campo de batalha


Coronel R1 Sylvio Pessoa da Silva e Coronel R1 Paulo Roberto da Silva Gomes Filho

Organização do Tratado do Atlântico-Norte: uma perspectiva da sua evolução


e da sua conjuntura político-estratégica
Tenente-coronel Gustavo Monteiro Muniz Costa
A evolução do pensamento estratégico militar russo
Coronel Moacyr Azevedo Couto Junior

Vol 24 n. 2 Mar/Maio 2022


REVISTA

ANÁLISE
ESTRATÉGICA

Vol 24 n. 2 Mar/Maio 2022


Análise Estratégica. Ano 7. N º 2. Mar/Maio 2022. Brasília. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército.
Centro de Estudos Estratégicos do Exército. 89 p. ISSN: 2525-457X (Referente à publicação digital)

CENTRO DE ESTUDOS ESTRATÉGICOS DO EXÉRCITO ANÁLISE ESTRATÉGICA


O Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx) é Análise Estratégica é uma publicação trimestral do

subordinado ao Estado-Maior do Exército e foi criado Centro de Estudos Estratégicos do Exército dedicada

pela Portaria n º 051-EME, de 14 Jul 03, para estudar e aos temas que impactam a preparação da Força

propor políticas e estratégias organizacionais. Terrestre e a Defesa Nacional.

EQUIPE CONSELHO EDITORIAL


CHEFE Cel INF Carlos Gabriel Brusch Nascimento

Cel INF Carlos Gabriel Brusch Nascimento Cel QCO Oscar Medeiros Filho

Cel R1 Ênio Moreira Azzi

ANALISTAS Cel R1 Sylvio Pessoa da Silva

Cel QCO Oscar Medeiros Filho Cel R1 Guilherme Otávio Godinho de Carvalho

Cel R1 Ênio Moreira Azzi Cel R1 Paulo Roberto da Silva Gomes Filho

Cel R1 Sylvio Pessoa da Silva Ten Cel QCO Selma Lucia de Moura Gonzales

Cel R1 Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Cap QCO Célia Regina Rodrigues Gusmão

Cel R1 Paulo Roberto da Silva Gomes Filho


REVISÃO
Ten Cel QCO Selma Lucia de Moura Gonzales
Cap QCO Célia Regina Rodrigues Gusmão

COORDENAÇÃO DE PESQUISA PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Cel QCO Oscar Medeiros Filho Cel QCO Oscar Medeiros Filho

Ten Cel QCO Selma Lucia de Moura Gonzales Cap QCO Célia Regina Rodrigues Gusmão

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
ADJUNTA DE EDITORAÇÃO E PUBLICIDADE
Quartel General do Exército – Bloco A – 1 º andar
Cap QCO Célia Regina Rodrigues Gusmão
70630-091 – Setor Militar Urbano – Brasília/DF

Telefone: (61) 3415-4597


ADJUNTO DE INFORMÁTICA
ceeex@eme.eb.mil.br
Cb (CET) Jonathan de Sousa Cavalcante
Disponível em PDF na plataforma:

ebrevistas.eb.mil.br/CEEExAE
ADMINISTRATIVO
S Ten ART Cláiton Sousa da Silva

FOTO DA CAPA: Earth Observation Group, Payne Institute for


Public Policy/ NOAA JPSS VIIRS. Disponível em:
Análise Estratégica. Ano 7. N º 2. Mar/Maio 2022.
https://edition.cnn.com/interactive/2022/03/world/ukraine-

Brasília. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército.


satellite-images/ Acesso em: 5 abr. 2022.

Centro de Estudos Estratégicos do Exército. 89 p.

ISSN: 2525-457X (Referente à publicação digital)


FIGURAS ELABORADAS: Cap Célia via Canva.com
SUMÁRIO
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O uso da força como instrumento

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A guerra na Ucrânia e a arquitetura

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29 tectônico?

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Guerra informacional no campo de



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57 perspectiva da sua evolução


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79 estratégico militar russo

Coronel ART Moacyr Azevedo Couto


Junior
Fotografado por
Felix Martins
EDITORIAL
Prezados leitores,
Os acontecimentos iniciados em 24 de fevereiro deste ano

parecem ser paradigmáticos para o campo das relações

internacionais e para os temas de Defesa. Não obstante a

definição de Clausewitz sobre a guerra como “a continuação da

política por outros meios”, em uma perspectiva realista, a

utilização da força como instrumento de política internacional pela

Rússia surpreendeu especialistas, pois acreditavam que o processo

de tomada de decisão por parte do presidente russo demandaria

mais cálculo e tempo.

Nesse contexto, o Centro de Estudos Estratégicos do Exército

oferece a mais nova edição de sua revista Análise Estratégica.

Nela, analistas do Centro e oficiais convidados, especialistas em

OTAN e Rússia, discutem questões estratégicas sobre o futuro da

guerra e das relações internacionais. Em que medida a ordem

internacional estabelecida pela Carta da ONU, em meados do

século XX, estaria chegando ao fim e abrindo espaço para o

retorno explícito da realpolitik? Como ficará o mapa-múndi após a

reconfiguração do tabuleiro, sugerida pelos realinhamentos

estratégicos dinâmicos nesse evento? Qual o real peso da

chamada interdependência complexa no futuro das relações

internacionais? Estaria a globalização retroagindo, como sugerem

alguns especialistas? Quais as implicações da chamada guerra

informacional nos conflitos armados e o que esse aspecto tem a

nos ensinar? A ONU ainda tem seu espaço ou a Instituição criada a

partir do final da Segunda Guerra Mundial passará por

reformulações?

São essas, entre outras, as questões suscitadas por nossos

analistas e convidados em formato de pequenos ensaios, a fim de

colaborar com o debate sobre o futuro da guerra, mesmo que, em

fato dos acontecimentos vigentes quando da publicação desta

revista, sob a "névoa da guerra" clausewitziana.

Esperamos que estes textos contribuam para o debate sobre as

transformações relativas ao tema da Defesa, as quais impactarão

o futuro das forças armadas.

Para colaborar, comentar ou submeter textos para


publicação, favor entrar em contato pelo e-mail do CEEEx
(ceeex2015@gmail.com).

Boa leitura!
Conselho Editorial
Os textos publicados pelo Centro de Estudos Estratégicos do Exército
são de caráter acadêmico e abordam questões relevantes da conjuntura

nacional e internacional de interesse do Exército.

Os trabalhos são produzidos por analistas e estudiosos de diversas áreas,

civis e militares da ativa e da reserva.

Asopiniões emitidas são de exclusiva responsabilidade de seus autores e

não representam a posição oficial do Exército.


O objetivo é contribuir para o debate de grandes temas nacionais e

internacionais, com ênfase àqueles que impactam a Defesa.

É permitida a reprodução dos textos e dos dados nele contidos, desde que

citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.


O CEEEx produz estudos de temas de interesse e faz a análise de cenários que servem

como suporte ao planejamento da Força.

Assim, procura responder, com eficácia e efetividade, aos desafios ditados pela

evolução da conjuntura e pela mutação dos ambientes. Também, objetiva orientar as

decisões presentes, com vistas à construção de trajetórias para o Exército na direção do

futuro desejado.

A presença de pesquisadores civis no CEEEx possibilita uma visão mais abrangente das

questões de Defesa, proporcionando outros pontos de vista e enfoques da sociedade.

Foto: Jackson Mendes (Instagram: @imagens.jacksonmendes)

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8

1. Reconfiguração do tabuleiro O século XX é o ponto de partida para


internacional se descrever o processo de construção das
relações internacionais contemporâneas, com
No dia 24 de fevereiro de 2022, após
reflexos na crise da Ucrânia. Ao final da
concentrar estrategicamente tropas na
Segunda Grande Guerra (II GM), os Estados
fronteira, a Rússia invadiu, de forma massiva,
Unidos da América (EUA) e a União das
a Ucrânia, colocando em xeque todo o
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) se
ordenamento internacional e configurando um
tornaram hegemônicos, conformando, a partir
conflito armado convencional entre Estados
da redistribuição do poder geopolítico, uma
soberanos que, de forma alarmante, trouxe a
bipolaridade mundial. A ordem internacional
guerra de volta para o “coração” da Europa.
que se estabeleceu em torno dessas duas
Foi o desdobramento de um processo em
superpotências tornou-se produto do exercício
agravamento desde 2008, quando a Rússia
da hegemonia dos países vencedores da II
passou a considerar o uso da força para
GM, que, exercendo a governança mundial,
alcançar seus objetivos político-estratégicos.
impuseram e fizeram prevalecer seus pontos
Portanto, a Guerra na Ucrânia é um
de vista, ideologias e interesses. No entanto,
catalisador de um provável reordenamento do
embora as estruturas de segurança coletiva
sistema global, que já vinha sendo
criadas à época tivessem o cunho idealista e o
questionado por potências revisionistas
sentido cooperativo, a dinâmica geopolítica
(re)emergentes.
formada entre EUA e URSS foi de disputa e,
Sob a perspectiva realista pós-
muitas vezes, tornou-se conflitiva, conforme
bipolaridade, as “ordens mundiais”1 são
previa George Kennan em seu Long
fronteiras, compartimentalizações políticas
Telegram2, em 1946.
das épocas da interação entre os Estados e
Após mais de quatro décadas de Guerra
outros atores internacionais. As “ordens
Fria (1945-1991), a queda do Muro de
mundiais” condicionam o comportamento e o
Berlim, em 1989, a dissolução da União
processo decisório dos Estados no status quo
Soviética em 15 repúblicas independentes, em
definido, geralmente por meio de guerras, de
19913, e o consequente fim do período bipolar
truculências e arbitrariedades, e acordado
provocaram uma grande transformação na
pelos demais componentes estatais integrantes
(CASTRO, 2016). 2
KENNAN, George F. The long telegram. Answer to Dept’s
284, Feb. 3, Moscow, Feb, 22. 1946. Disponível em:
<https://digitalarchive.wilsoncenter.org/document/116178.pd
f>. Acesso em 8 mar. 2022.
1 3
A ordem mundial é um concerto geopolítico flexível. Varia A dissolução da União Soviética ocorreu em 26 de
com o tempo e com a geografia. Surge e atinge de forma dezembro de 1991, como resultado da Declaração nº. 142-Н
diferente Estados e regiões. Gera apoio e contestações. Lança do Soviete Supremo da União Soviética. A Declaração
luz sobre nova(s) potência(s) e pode reemergir outra(s) reconheceu a independência das antigas repúblicas soviéticas
Portanto, não é um estado político monolítico, rígido. e criou a Comunidade de Estados Independentes (CEI).

Enio Moreira Azzi


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Sylvio Pessoa da Silva
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política internacional, dando início à Rússia, enquanto outros se voltaram para o


recomposição do ordenamento global. Os Ocidente.
debates interpretativos sobre aquela transição, Durante esse período de transição de
identificada com o triunfo da democracia poder, o presidente Gorbachev concordou, em
liberal e do crescente processo de 1990, que a Alemanha reunificada fizesse
globalização, bem como indicadora da parte da Organização do Tratado do Atlântico
unipolaridade do cenário mundial, foram Norte (OTAN), sob a promessa do Secretário
dominados pelas teorias do “fim de história” de Estado norte-americano James Baker de
4
de Fukuyama e do “choque de civilizações” que a Aliança não se expandiria “uma
de Huntington5. Assim, apesar da mudança, polegada para o Leste”6. O não cumprimento
resquícios da ordem bipolar permaneceram desse acordo tácito e a aproximação das
enraizados nas relações internacionais. tropas da OTAN das fronteiras russas geraram
Em pouco tempo, essa euforia deu lugar protestos e ressentimentos em Moscou e
ao pessimismo neorrealista, devido à tornaram-se uma das principais justificativas
emergência de novas fraturas no tabuleiro da invasão russa na Ucrânia.
mundial, provocadas, principalmente, pelo Entre 1991 e 2020, países que
ressurgimento do nacionalismo entre grupos compunham a ex-URSS, ou que estavam sob
étnicos, até então incorporados em Estados sua influência, foram admitidos na União
multiétnicos, gerando diversos conflitos Europeia (UE) e/ou ingressaram na OTAN,
domésticos e regionais. Em algumas ex- cuja gênese era formar uma aliança defensiva
repúblicas soviéticas, esses conflitos geraram contra a ameaça soviética. Ademais, a Aliança
disputas territoriais e aspirações de Atlântica, em especial os EUA, instalou
autodeterminação. Ainda, por questões tropas e armamentos estratégicos na Polônia e
históricas e étnicas, a Rússia passou a nos países bálticos, ou seja, junto à fronteira
expressar o desejo de recuperar sua esfera de russa. Além desses países, acrescentam-se a
influência e seu espaço de proteção. Assim Geórgia, a Ucrânia e a Moldávia, que
sendo, alguns desses países permaneceram gostariam de se associar a ambas as
alinhados política e economicamente à organizações, mas não foram aceitas por não
atenderem aos parâmetros da adesão ou por se
situarem na área de influência da Rússia.
4
FUKUYAMA, Francis. O fim da História e o último
homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
5
HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a
recomposição da Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Bibliex,
6
1998. Desde 1996, Huntington já previa um futuro SHIFRINSON, Joshua. Op-Ed: Russia’s got a point: the
conflituoso entre Rússia e Ucrânia, por questões culturais, U.S. broke a NATO promise. Los Angeles Times, 2016.
históricas e geográficas. Segundo sua teoria, o território Disponível em: <https://www.latimes.com/opinion/op-ed/la-
ucraniano encontra-se em uma fault line (linha de falha) que oe-shifrinson-russia-us-nato-deal--20160530-snap-
separa a civilização ocidental da ortodoxa. story.html>. Acesso em: 07 mar. 2022.

Reconfiguração do tabuleiro e realinhamentos estratégicos Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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A partir de 2008, a Rússia, reagindo à seu ambiente estratégico movimentaram a


política de portas abertas da OTAN, passou a balança de poder asiática (TEIXEIRA
recorrer ao uso da força para resguardar a sua JUNIOR, 2017).
hegemonia no espaço pós-soviético, fazendo A reemergência da Rússia como player
uma intervenção na Geórgia e anexando a global e a ascensão tecnológica, econômica e
Crimeia, em 2014. militar da China confrontaram a atual ordem
Enquanto isso, em função do 11 de mundial, centrada no Atlântico Norte. Nesse
Setembro, os EUA e a Europa voltaram-se contexto, destacam-se as ideias apresentadas
inteiramente para a guerra contra o por John Mearsheimer, cuja visão de realismo
terrorismo, com operações militares – de se fundamenta, estruturalmente, por meio de
legitimidade questionável – no Iraque (2003- incentivos da política hegemônica que leva,
2010), no Afeganistão (2001-2021), entre inexoravelmente, à “tragédia”7, pois boa parte
outras. dos grandes players não está contente com a
Por outro lado, nas primeiras décadas atual distribuição de poder mundial. Dessa
do século XXI, a China emergiu como forma, as potências emergentes tendem a
potência, com capacidade de afetar o tabuleiro reinterpretar e condicionar seu apoio
internacional. Dessa forma, em 2016, a China estratégico às mudanças gerais e estruturais
tornou-se a 2a maior potência econômica do no panorama dos organismos internacionais,
mundo, apesar de não fazer parte do G-7. Sua nas quotas de participação e votação, assim
projeção global, calcada nas relações como nas redes institucionalizadas. O autor
econômicas, comerciais e financeiras, é a classifica esses países como “revisionistas”,
contraparte de uma projeção militar centrada ou seja, países que desejam alterar a lógica de
na sua esfera de influência imediata de poder. poder do status quo da política internacional.
No concerto asiático, a China tem pretensões Nesse sentido, identificam-se, no cenário
geopolíticas que ferem os interesses de seus atual, movimentos de contestação por parte de
vizinhos e da potência hegemon, tais como a atores emergentes, os quais buscam
reunificação com Taiwan, a reivindicação de reinterpretar questões como a definição de
quase todo o mar da China e os litígios direitos humanos e de democracia, desafiando
fronteiriços com a Índia. Apesar disso, a as estruturas internacionais fundadas no pós-
China defende a importância ao respeito guerra. O grande problema apontado por
mútuo pela soberania e adota uma política de Mearsheimer está no risco do encontro das
não interferência em assuntos domésticos e de macrotendências do tabuleiro de xadrez
não confrontação. Assim, a inserção
internacional da China e o remodelamento de 7
Metáfora utilizada por John Mearsheimer para fazer
referência à guerra.

Enio Moreira Azzi


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Sylvio Pessoa da Silva
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mundial levar a guerras pela disputa por mais debates jurídicos diversos. No entanto,
quociente de poder (CASTRO, 2016). embora sem efeitos práticos, decorrente das
Retomando a Guerra na Ucrânia, além limitações do Conselho de Segurança das
de tentar conter o avanço da OTAN para Nações Unidas (CSNU), há que se destacar a
Leste, o Presidente Putin alegou que sua sessão especial da Assembleia Geral das
“operação militar especial” destinava-se a Nações Unidas, na qual 141 Estados-
defender as minorias russas separatistas, membros aprovaram uma Resolução10,
habitantes das províncias ucranianas de repudiando a ofensiva militar russa na
Donetsk e Lugansk, em guerra contra o Ucrânia. Apenas cinco países foram contra a
governo de Kiev desde 20148. Antecedendo a Resolução, o que demonstra o
invasão, a Rússia reconheceu a independência posicionamento de uma expressiva maioria
das duas regiões, o que reabriu a discussão, em defesa do não uso da força contra a
no âmbito do direito internacional, sobre a integridade territorial e contra a soberania
questão da autodeterminação dos povos estatal. Trinta e cinco países se abstiveram de
versus a integridade territorial dos Estados, votar, com destaque para China, Índia e
princípios fundamentais das relações África do Sul, que buscaram preservar suas
internacionais contemporâneas. Sobre esse relações tanto com o Ocidente quanto com a
tema, os professores Aziz Saliba e Lucas Rússia.
Lima, da UFMG, afirmam que o direito à Ao que parece, a lógica que move o
autodeterminação não se traduz em um direito Presidente da Rússia, Vladimir Putin, ainda é
à secessão9. a realista, vigente na Guerra Fria, de disputa
No mesmo sentido, o Presidente Putin, do poder e da preservação da segurança
considerando a expansão da OTAN uma territorial, historicamente ameaçada. Isso
ameaça à Rússia, recorreu ao direito de justificaria o uso da força em países que, à
legítima defesa, previsto no Art. 51 da Carta época, à semelhança da atual Ucrânia,
da Organização das Nações Unidas (ONU), tentaram se libertar do domínio soviético e
para justificar a iniciativa unilateral de ultrapassaram os limites (red line) toleráveis
intervenção na Ucrânia, dando margem a por Moscou, a saber: Hungria, em 1956;
Tchecoslováquia, em 1968; e Polônia, nas
8
“Full text of Vladimir Putin’s speech announcing ‘special décadas de 1970 e 1980.
military operation’ in Ukraine”. Disponível em
https://theprint.in/world/full-text-of-vladimir-putins-speech- Embora ainda não seja possível prever o
announcing-special-military-operation-in-ukraine/845714/.
Acesso em: 9 mar. 2022. desfecho do conflito, tampouco estimar com
9
SALIBA, Aziz T.; LIMA, Lucas C. O que o direito
internacional tem a dizer sobre a invasão da Ucrânia pela
10
Rússia. Disponível em: ONU. Resolução da Assembleia Geral de 1/3/2022.
<https://oglobo.globo.com/mundo/artigo-que-direito- Disponível em:
internacional-tem-dizer-sobre-invasao-da-ucrania-pela- <https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/A_ES
russia-25414188>. Acesso em 9 mar. 2022. -11_L.1_E.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2022.

Reconfiguração do tabuleiro e realinhamentos estratégicos Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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precisão as suas consequências, pode-se negro13 da pandemia, a guerra poderá gerar


considerar que a Guerra na Ucrânia representa um anacronismo, o renascimento da “cidade
um novo corte da história, com efeitos murada” na época em que a prosperidade
imediatos e futuros no tabuleiro mundial. A depende do comércio global e da
guerra desestabilizou o sistema internacional movimentação de pessoas (FERGUSON,
e provocou grande incerteza. Após um 2021).
suposto período de estabilidade e de
cooperação, marcado pela crescente 2. Realinhamentos estratégicos
interdependência, conectividade e Esse forte retorno da Realpolitik, da
globalização, a guerra trouxe o mundo de geopolítica e do uso da força como
volta ao ambiente mais anárquico, instrumento de poder, gera desconfianças,
hobbesiano, no qual prevalecem as visões preocupações e novas expectativas nos atores
realistas nas relações interestatais. globais. Isso leva a uma remodelagem das
O rompimento do princípio contido na posturas e dos próprios fundamentos da ação
11
Carta das Nações Unidas “de que deve ser política, o que implica em realinhamentos
evitado o uso da força contra a integridade estratégicos e na reconfiguração dos arranjos
territorial” traz de volta o dilema da da ordem mundial.
segurança12, fazendo com que os Estados A máxima de que “as guerras
reforcem a sua própria segurança por meio de mobilizam” se faz presente em uma das
uma maior capacidade de defesa. A consequências mais importantes da
implicação imediata disso é um grande geopolítica do conflito na Ucrânia, a
movimento armamentista, manifestado por resiliência da OTAN. Em 2019, em entrevista
alguns países logo após o início do conflito, o à revista The Economist, o presidente da
que deve provocar o rebalanceamento global França, Emmanuel Macron, declarou: “O que
de armas. Em um mundo que se estabeleceu estamos vivendo atualmente é a morte
em redes para se comunicar, comercializar e cerebral da OTAN”.14 A guerra reverteu esse
agir coletivamente, assim como o cisne processo e revelou surpreendente coesão e
convergência, tanto da OTAN como da UE,
que reagiram rapidamente à invasão,
11 13
Carta das Nações Unidas, 1945. Disponível em: “Cisne negro”: qualquer evento que nos pareça, com base
<https://unric.org/pt/wp- em nossa experiência limitada, impossível; um evento
content/uploads/sites/9/2009/10/Carta-das- extremamente surpreendente (TALEB, Nassim. The Black
Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas.pdf >. Acesso em 09 mar. Swan: the impact of the highly improbable. Londres:
2022. Penguin/Allen Lane, 2007).
12 14
Dilema de segurança, termo cunhado por John H. Herz: The Economist. Emmanuel Macron warns Europe: NATO
situação de contradição causal entre o exercício da soberania is becoming brain-dead. 2019. Disponível em:
estatal que pode ser fonte de segurança para os cidadãos e, ao <https://www.economist.com/europe/2019/11/07/emmanuel-
mesmo tempo, pode oferecer pontuais riscos e ameaças macron-warns-europe-nato-is-becoming-brain-dead>. Acesso
internas e externas a outros Estados. em 10 mar. 2022.

Enio Moreira Azzi


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Sylvio Pessoa da Silva
13

aplicando sanções econômicas inéditas à e AUKUS17). Porém, a guerra na Ucrânia


Rússia, acolhendo enorme massa de impôs aos EUA retornarem seus olhares para
refugiados e reforçando as estruturas militares a Europa e aumentarem os esforços para frear
da Aliança na parte leste de seu território. Por as pretensões do Presidente Putin.
outro lado, a situação atual aumentou a Outro aspecto fundamental deste
disposição de países europeus ingressarem na conflito é que a reação imediata dos EUA e da
OTAN e/ou na EU, como forma de se OTAN foi condicionada ao retorno da ameaça
resguardar da ameaça russa. No entanto, é nuclear. Nesse sentido, a dissuasão nuclear
possível que a admissão de novos membros tem atuado como moderadora e limitadora das
nas duas organizações passe a ser mais lenta, respostas à invasão. O uso da força pela
limitada e difícil. OTAN foi até agora evitado para não escalar
Do outro lado do Atlântico, o presidente o conflito, o que poderia levar à catástrofe
dos EUA vem tentando recompor a aliança nuclear global. Assim, a opção do Ocidente
norte-atlântica e responder a essa crise, com em degradar a economia russa, restringindo
vistas a manter o status quo e a fortalecer-se, suas atividades financeiras, científico-
internamente, em face de um país dividido e tecnológicas e culturais, reflete a persistência
devido aos graves problemas e a relevância da capacidade nuclear nas
socioeconômicos atuais. O Presidente Biden relações de poder global.
adotou a mudança de rumo da política externa O isolamento do Presidente Putin,
dos EUA, formalizada por seu antecessor na provocado pelo Ocidente devido à guerra,
National Security Strategy/2018, priorizando conduz a Rússia um direcionamento à China,
a competição com a China e a Rússia. Assim, que pode se beneficiar da situação, colocando
a Casa Branca estava empenhada na Moscou mais próximo de Beijing. A posição
contenção da expansão e (re)emergência sino- da China tem sido de difícil decodificação.
russa, de acordo com a U.S. Indo-Pacific Antes da invasão e durante a abertura dos
15
Strategy , lançada em fevereiro de 2022, Jogos Olímpicos de Inverno, os Presidentes
além de incrementar a política de offshore Putin e Xi Jinping divulgaram uma declaração
balancing16, reforçando suas alianças
estratégicas naquela região (ASEAN, QUAD

17
Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN):
15
U. S. Indo-Pacific Strategy. Disponível em: bloco integrado por Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas,
<https://www.whitehouse.gov/wp- Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Tailândia e Vietnã.
content/uploads/2022/02/U.S.-Indo-Pacific-Strategy.pdf>. Diálogo de Segurança Quadrilateral (QUAD): fórum
Acesso em 09 mar. 2022. estratégico entre EUA, Japão, Austrália e Índia.
16
Conceito de offshore balance. Disponível em AUKUS (acrônimo do inglês: Australia, United Kingdom,
https://www.britannica.com/topic/offshore-balancing. Acesso United States): aliança militar formada pela Austrália, Reino
em 15 mar. 2022. Unido e EUA.

Reconfiguração do tabuleiro e realinhamentos estratégicos Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


14

conjunta, anunciando uma parceria estratégica desempenhar seu papel de preservação da paz,
“sem limites”18. no conflito da Ucrânia, demonstra a
Como destacado, nas deliberações do fragilidade da construção institucional que
CSNU e da Assembleia Geral da ONU, a regula a relação entre os Estados. O CSNU,
China se absteve de votar contra a Rússia e moldado pelos vencedores da II GM, com
condenou as sanções econômicas impostas a reservas para si de assentos permanentes e
Moscou; porém, reafirmou sua defesa à poder de veto às suas deliberações, traz a
soberania dos Estados. Nas declarações anacrônica estrutura político-estratégica de
seguintes a respeito do conflito, moderou o 1945 (CASTRO, 2016), demonstrando
discurso o que levou analistas a entenderem esterilização e paralisia na solução de
que Pequim pode estar considerando as ações controvérsias que ameaçam a paz e a
do Presidente Putin como “além do razoável”, segurança do complexo sistema de relações
por desestabilizar o sistema internacional, o internacionais atuais.
que não seria do interesse chinês.
Dentro desse cenário, é possível que a 3. Conclusão
guerra acelere a competição entre as grandes Uma Ucrânia pró-Ocidente, com
potências, podendo, inclusive, levar o mundo ambições de ingressar nas duas grandes
para a nova “guerra fria”, com o retorno das alianças europeias, que pusesse em dúvida o
políticas de contenção e de balanceamento de acesso da Rússia a seu porto no mar Negro ou
forças. A transição do mundo bipolar para pudesse hospedar uma base naval da OTAN,
uma ordem unipolar proporcionou um período seria insustentável e inaceitável para o
de certa estabilidade e acomodação. Porém, Kremlin. A anexação da Crimeia (2014) e a
quando houve a ascensão de novos atores invasão da Ucrânia (2022) mostraram a
globais e se percebeu um desequilíbrio de disposição da Rússia para a ação militar com
poder, potências como a China, o Irã e a o objetivo de defender seus interesses, no que
Rússia passaram a contestar o status quo e o chama de “exterior próximo” (MARSHALL,
ordenamento internacional. Isso nos sugere 2018).
que os Presidentes Putin e Xi Jinping estão Todo o mundo, de alguma maneira, já
tentando redefinir os termos desse sistema, o está sendo afetado pela guerra, ainda em
qual não lhes beneficia. curso. A ordem mundial teve suas bases
Por fim, segundo Salvador Raza19, a abaladas, o que poderá reconfigurar o
incapacidade das Nações Unidas em tabuleiro internacional e provocar a mudança

18 19
“Putin and Xi Frame a New China-Russia Partnership” As lições da guerra na Ucrânia: ainda é possível evitar o
Disponível em https://thediplomat.com/2022/02/putin-and-xi- pior?. CNN, 6/3/2022. Disponível em:
frame-a-new-china-russia-partnership/. Acesso em 15 de mar. <https://www.youtube.com/watch?v=NiGFngdZKtM>.
2022 Acesso em 07 mar. 2022.

Enio Moreira Azzi


Vol 24 (2) Mar/Maio 2022
Sylvio Pessoa da Silva
15

de atitude dos atores globais, pautando as internacionais, na qual a contrainsurgência


relações de poder a partir de uma perspectiva cedeu espaço à volta de conflitos de alta
mais realista. Alguns analistas consideram intensidade. Além disso, essa última invasão,
que o cenário internacional atual em transição de um país soberano por uma potência, faz
tende para a “Segunda Guerra Fria”, com que os Estados resgatem o interesse pela
considerando o crescente potencial dos segurança e pela autodefesa, o que deve
Estados emergentes revisionistas, o viés provocar a formação de novas alianças
expansionista e os efeitos dissuasórios estratégicas e o reforço das capacidades de
nucleares. Apenas uma acomodação entre as autodefesa, tendo, como consequência, a
grandes potências, como a ocorrida no reconfiguração do tabuleiro internacional e
Concerto de Viena, em 1815, poderá evitar a novos realinhamentos estratégicos.
armadilha de Tucídides20 e a substituição da
diplomacia pela guerra entre as nações. Referências
A geopolítica (política de poder e de
CASTRO, Thales. Teoria das relações internacionais.
expansão territorial, controle dos mares, Brasília: FUNAG, 2016.
projeção de poder) não deixou de existir no FERGUSON, Niall. Catástrofe. São Paulo: Planeta,
2021.
século XXI. O uso da força continua sendo
GRAEME P. Herd (ed.). Russia’s Global Reach: a
uma realidade nas relações entre Estados, com security and statecraft assessment. Garmisch-
Partenkirchen (Alemanha): Marshall European Center
o retorno da ameaça nuclear. Os organismos for Security Studies, 2021.
internacionais, produtos das articulações MARSHALL, Tim. Prisioneiros da Geografia: 10
mapas que explicam tudo o que você precisa saber
estratégicas da ordem mundial de 1945, como sobre política global. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
em outras ocasiões, foram incapazes de evitar NYE. Joseph S. O futuro do Poder. São Paulo:
que uma nação soberana invadisse outra Benvirá, 2012.
TEIXEIRA JÚNIOR, Augusto W. M. Geopolítica: do
nação soberana para defender seus interesses pensamento clássico aos conflitos contemporâneos.
político-estratégicos. A interdependência Curitiba: Intersaberes, 2017.

econômica e financeira, no mundo cada vez


mais interconectado e globalizado, não se
configurou como fator impeditivo para a
guerra.
A gravidade da Guerra na Ucrânia
marca uma importante mudança nas relações

20
Historiador da Guerra do Peloponeso entre Atenas e
Esparta, Tucídides identificou a dinâmica do confronto entre
Esparta e Atenas, uma potência emergente e uma potência
consolidada. Esse exemplo é utilizado para explicar o atual
cenário que envolve a China e os EUA.

Reconfiguração do tabuleiro e realinhamentos estratégicos Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


16
17

Oscar Medeiros Filho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


Enio Moreira Azzi
18

1. O uso da força como instrumento Na política internacional, a ameaça de uso da


de poder força, por si só, pode ser o suficiente como
instrumento de poder, tanto na forma de
A ideia de Clausewitz segundo a qual
persuasão quanto de dissuasão. O próprio
“a guerra é meramente a continuação da
conceito de dissuasão, por exemplo, só terá
política por outros meios” (CLAUSEWITZ,
obtido êxito caso não se torne necessário
1984, p. 91) é bastante conhecida. Ora, se
recorrer à aplicação da força física.
entendemos que política, nas relações
Como nos lembra Stephen Walt, o fato
internacionais, é política de poder e poder é
é que o conflito na Ucrânia demoliu a crença
nada mais que a capacidade de impor aos
de que a guerra seria impensável na Europa
outros a nossa vontade, pode-se concluir,
(WALT, 2022).
facilmente, que a política internacional está
diretamente relacionada ao uso da força como 2. Ambiente internacional anárquico
instrumento dos Estados Nacionais soberanos. e “sociedade de Estados”
Considerando que o sistema O padrão de relação entre os Estados,
internacional é anárquico (não dispõe de uma no sistema internacional, pode variar de
hierarquia de poder definida), na medida em ambientes cooperativos a situações
que é composto por atores soberanos (logo eminentemente conflituosas. Utilizando-se de
não admitem poderes superiores), podemos clássicos da Filosofia Política, Hedley Bull
entender o ambiente internacional como um (2002) sugere três modelos, que coexistiriam:
tabuleiro de constante disputa de poder entre
(...) a hobbesiana, ou realista, que
os Estados Nacionais. Se entendermos considera a política internacional como
um estado de guerra; a kantiana, ou
“poder” como a possibilidade de alguém universalista, que preconiza a atuação, na
política internacional, de uma
impor sua vontade sobre outrem, mesmo comunidade potencial; e a grociana, ou
internacionalista, para a qual a política
contra a vontade deste (WEBER, 1999), internacional ocorre dentro de uma
entenderemos a importância que os aparatos sociedade de estados. (BULL, 2002: 32)

de defesa representam para os Estados como Nesse sentido, mesmo aceitando a

instrumento de poder. Nesse sentido, o ex- condição anárquica do sistema internacional,

Ministro da Defesa Nelson Jobim costumava é possível concordar com a existência de uma

afirmar que Defesa é a capacidade de, quando sociedade de Estados, na qual unidades

necessário, “dizer: não!” (OGLIARI, 2009). soberanas estariam minimamente submetidas

O fato de disporem de forças armadas a regras comuns (BULL, 2002). Conforme

não quer dizer que os Estados farão uso da Hedley Bull, essa sociedade estaria

violência advinda de suas capacidades constituída a partir do momento em que um

militares sempre que precisarem “dizer não”. grupo de Estados, conscientes de certos

O uso da força como instrumento de política internacional Vol 24 (2) Mar/Maio 2022
19

valores e interesses comuns, formariam uma Entretanto, permaneceu entre as


sociedade, no sentido de se considerarem potências um acordo tácito de que o uso da
ligados, no seu relacionamento, por um força poderia ser tolerado desde que
conjunto comum de regras, participando de “legitimado”1. Essa legitimação encontraria
instituições comuns (Bull, 2002, p. 19). amparo no artigo 51 da Carta da ONU,
Sem desconsiderar o conceito de segundo o qual:
soberania e o direito do uso legítimo da Força Nada na presente Carta prejudicará o
direito inerente de legítima defesa
contra outros Estados, haveria, entre os individual ou coletiva no caso de ocorrer
um ataque armado contra um Membro
Estados Nacionais, um padrão de convivência das Nações Unidas, até que o Conselho
de Segurança tenha tomado as medidas
tacitamente acordado e que geraria, entre os necessárias para a manutenção da paz e
componentes, expectativas sobre três da segurança internacionais. As medidas
tomadas pelos Membros no exercício
aspectos: que nenhuma forma de violência desse direito de legítima defesa serão
comunicadas imediatamente ao Conselho
seria utilizada, que as normas internacionais de Segurança e não deverão, de modo
algum, atingir a autoridade e a
seriam cumpridas e que se respeitaria o responsabilidade que a presente Carta
atribui ao Conselho para levar a efeito,
princípio da integridade territorial dos países. em qualquer tempo, a ação que julgar
Em outras palavras, haveria, nessa “sociedade necessária à manutenção ou ao
restabelecimento da paz e da segurança
de Estados”, expectativas quanto à garantia da internacionais. (ONU, 1945)

autonomia dos governos, a soberania das Com base no mesmo artigo 51 da


nações e a integridade territorial de seus Carta da ONU, o presidente russo teria
Estados. fundamentado sua decisão de realizar a
O trauma provocado pelas duas “operação militar especial”, conforme
Grandes Guerras, no século XX, contribuiu pronunciamento à nação russa, realizado logo
para dar impulso à ideia de “sociedade de após o início da guerra2.
Estados”. Mesmo sabendo-se de seu teor Dessa forma, o questionamento que
idealista, o fato é que a ideia de uso da fazemos é a respeito do impacto das normas
violência como instrumento de conquista nas internacionais na decisão de Estados
relações internacionais passa a ser soberanos em se utilizar da força como
explicitamente condenado. Nesse sentido, instrumento de poder. Em que medida essas
vale a pena recuperar um trecho do preâmbulo 1
O “legitimado” está aqui entre aspas por entendermos que
da Carta da ONU, segundo o qual, a fim de não se trata de seu sentido denotativo, mas, em um ambiente
de hipocrisia nas relações internacionais, como fruto de
preservar as gerações vindouras do flagelo da narrativas que buscavam, de alguma forma, legitimar a
intervenção. Não parece ter sido diferente nos casos recentes
guerra, fica estabelecido que “a força armada do Iraque e do Afeganistão, por exemplo.
2
Conforme discurso do Presidente da Federação da Rússia
não será usada a não ser no interesse comum” acerca da operação militar especial na Ucrânia, realizado em
24 fev. 22. Disponível em:
(ONU, 1945). http://en.kremlin.ru/events/president/news/67843 (acesso em
28 fev 22).

Oscar Medeiros Filho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


Enio Moreira Azzi
20

normas representariam restrições – ainda que mais hobbesiano, marcado pela desconfiança
limitadas – ao comportamento dos países? entre as nações e pela natureza conflituosa das
A decisão de adentrar ao território relações.
ucraniano com colunas de blindados e Esse ambiente de desconfiança e
lançamento de mísseis foi interpretada por conflito acaba por gerar novo impulso à ideia
muitos como não racional e condenável. de “Dilema de Segurança” de John Herz
Entretanto, como lembra Stephen Walt (1950), segundo a qual os esforços de
(2022), a invasão à Ucrânia reafirma o ampliação de segurança de um Estado
pensamento realista, segundo o qual apenas a conduzem à maior insegurança de seu
condenação moral por si só não é capaz de vizinho. Em outras palavras, o esforço de um
impedir o uso da força pelos Estados. Estado se tornar mais seguro, pela aquisição
O comportamento da Rússia, no caso de armas ou pela entrada em uma aliança, por
da Ucrânia, parece revelar uma tendência exemplo, acaba por tornar outros Estados
geopolítica crescente nas relações inseguros e, consequentemente, faz com que
internacionais de retorno do jogo de poder busquem meios de se defender da ameaça
entre grandes potências, observada mais percebida, tendendo a gerar uma escalada de
claramente a partir da crise financeira temor. Como consequência direta, tenderemos
internacional de 2008. Diferentemente de a ver maiores investimentos em projetos
contextos anteriores, a partir daquele militares e indústria de defesa, o que pode vir
momento, observam-se chefes de Estado a contribuir para uma corrida armamentista
tratando abertamente – sem filtros – a entre as nações.
preparação militar como jogo de poder entre Essa situação tem grande potencial de
3
as nações . provocar fortes implicações para a defesa e
O uso da força como instrumento de para a segurança nacional. Como sugere Evan
poder, de forma unilateral e explícita, por uma Ellis, especialista em segurança latino-
potência revisionista (não hegemônica), como americana, em longo prazo, o conflito na
se tem observado no caso atual, tem Ucrânia impactará dinâmicas de segurança
contribuído para a percepção mutuamente internacional (ELLIS, 2022). Com isso, ainda
compartilhada de que o mundo tem se tornado segundo o autor,
cambiará fundamentalmente el cálculo
3
Em 1º de janeiro de 2018, o presidente da Coreia do Norte, de muchos de los Estados del mundo,
Kim Jong-un, afirmou que "Todos os EUA estão dentro do disminuyendo la fe en la inviolabilidad
alcance de nossas armas nucleares e um botão nuclear está inherente de su soberanía contra los
sempre na minha mesa. Esta é a realidade, não uma ameaça".
actores amenazantes, incentivando a
Dois dias depois, o presidente norte-americano, Donald
Trump, respondeu: “Kim Jong-un disse que tem 'o botão algunos a buscar unirse o fortalecer
nuclear sempre em seu escritório'. Alguém deve informá-lo alianzas formales para su defensa”
que eu também tenho um botão nuclear, maior e mais (ELLIS, 2022).
poderoso que o dele, e que o meu botão funciona”.

O uso da força como instrumento de política internacional Vol 24 (2) Mar/Maio 2022
21

3. Implicações potências nuclearizadas, aparentemente

Para muitos analistas, a postura de dispostas a fazer uso de seus arsenais. Caso se

Putin foi irracional, tomada sem a devida confirme, essa tendência poderá trazer

análise de risco. Independentemente do prejuízos ao Tratado de Não Proliferação de

cálculo do presidente russo, o fato é que os Armas Nucleares.

eventos observados na Ucrânia parecem (3) Ressurgimento do “Dilema de

paradigmáticos, permitindo aos estudiosos Segurança”. O caso ucraniano pode despertar

das relações internacionais testarem conceitos controvérsias territoriais aparamente

em um ambiente operacional novo, moldado adormecidas. No caso sul-americano, apesar

em forte medida por elementos da relativa ausência de conflitos entre países

informacionais. no último século4, residem ainda pendências

Se descaracterizado o sentido territoriais não resolvidas. Sob um ambiente

“defensivo”, sugerido por Putin por ocasião de desconfiança mútua e da ideia de que um

do ataque à Ucrânia, o evento se revela como vizinho pode vir a se converter, a qualquer

uso da força em operações de conquista. Por momento, em inimigo, pode despertar o

outro lado, o sucesso dessa empreitada deverá dilema de segurança regional com possíveis

se converter em efeito pedagógico aos demais consequências em termos de rearmamento.

Estados. Assim, imaginamos algumas (4) Indefinição dos arranjos

implicações do caso ucraniano para a regionais de defesa. O evento na Ucrânia

segurança internacional e defesa nacional: sugere uma reconfiguração do tabuleiro

(1) Fortalecimento do princípio da internacional e redefinição de alinhamentos

autoajuda. De forma geral, os Estados estratégicos e alianças militares. Essa situação

Nacionais, por mais remotas que possam deve gerar indefinições sobre arranjos

parecer as ameaças de guerra, têm buscado regionais de defesa, como o europeu e o sul-

manter suas forças armadas estruturadas. O americano. Isso se deve a dois motivos de

caso ucraniano deverá reforçar essa ideia. natureza oposta: o primeiro diz respeito à

Com isso, os gastos com Defesa tenderão a ampliação do estoque de desconfiança entre

aumentar em todo o mundo. Estados Nacionais diante de um quadro

(2) Proliferação de Armas explícito de uso da força como instrumento de

Nucleares?. A ameaça explícita de política internacional. Como mencionado,

autoridades russas sobre a possibilidade de


4
Exceto por alguns incidentes (a disputa entre Argentina e
uso de armas nucleares poderá trazer para as Chile pelo canal de Beagle, em 1978; as relações tensas entre
Chile, por um lado, e Bolívia e Peru, por outro, no final dos
sociedades o debate sobre o custo de se anos setenta; e a questão entre Equador e Peru, em meados da
década de 1990), os últimos conflitos entre Estados sul-
abdicar do uso de armas nucleares em meio a americanos ocorreram na década de 1930.

Oscar Medeiros Filho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


Enio Moreira Azzi
22

essa atitude reforça o princípio da autodefesa. Referências


O segundo, inversamente, sugere a
BULL. Heddley. A Sociedade Anárquica. Tradução de
possibilidade de formação de alianças Sérgio Bath. 1a ed. Brasília, Universidade de Brasília,
2002. 361 p.
regionais a partir de uma ideia de ganho de
CLAUSEWITZ, Carl Von. On War. 3 v. Tradução do
escala. Dependendo do padrão de original para o inglês por Michael Howard e Peter
Paret. Tradução do inglês para o português por Luiz
relacionamento entre os países membros,
Carlos Nascimento e Silva do Valle. 1984. Versão em
pode-se imaginar o conceito de dissuasão português disponível em:
https://www.egn.mar.mil.br/arquivos/cepe/DAGUERR
extrarregional, garantindo autonomia A.pdf). Acesso em: 03 jul. 2013.

estratégica a determinadas regiões, como ELLIS, Evan. El impacto de la invasión rusa a


Ucrania en el ambiente estratégico global y en
Europa e América do Sul, por exemplo. América Latina. Artigo publicado no site do Centro de
Estudos Estratégicos do Exército do Peru. Disponível
em https://ceeep.mil.pe/2022/02/28/el-impacto-de-la-
Considerações finais invasion-rusa-a-ucrania-en-el-ambiente-estrategico-
global-y-en-america-latina/ Acesso em: 28 fev. 2022.
Os eventos que envolvem a Guerra na
HERZ, John: Idealist Internationalism and the Security
Ucrânia trazem novos significados ao debate Dilemma. In: World Politics, Vol. 2, Nr. 2, Janeiro
1950, pp.157-180.
das relações internacionais e ao uso da força
OGLIARI, Elder. 2009. “Jobim diz que definição sobre
como instrumento de poder. Nele, a caças sairá só depois do Natal”. Jornal O Estado de S.
Paulo, 24 de novembro de 2009. Disponível em:
perspectiva hobbesiana, que considera a https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,jobim-diz-
política internacional como um estado de que-definicao-sobre-cacas-saira-so-depois-do-
natal,471501 (acesso em 20 de abril de 2022).
guerra, ganha novo fôlego.
ONU. Carta das Nações Unidas. 1945. Disponível em:
Faz-se necessário aguardar a http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-
1949/d19841.htm Acesso em: 8 mar. 2022.
decantação desse acontecimento histórico
WALT, Stephen.“An International Relations Theory
para concluir sobre o quanto o uso da força Guide to the War in Ukraine.” Foreign Policy, 8 de
como instrumento de política internacional março de 2022. Disponível em:
https://foreignpolicy.com/2022/03/08/an-international-
moldará o padrão das relações entre Estados relations-theory-guide-to-ukraines-war/ Acesso em: 8
mar. 2022.
soberanos.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da
sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e
Karen Elsabe Barbosa. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1999.

O uso da força como instrumento de política internacional Vol 24 (2) Mar/Maio 2022
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Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


24

O mundo diminuiu, mas as nações não se aproximaram.


(Henry Kissinger)

1. Introdução viviam realmente uma fase de profundas


Robert Keohane e Joseph Nye mudanças na Ordem Mundial. Em 1975,
publicaram um livro que, muito rapidamente, Kissinger declarava: “O mundo se tornou
tornar-se-ia um clássico: “Poder e interdependente na economia, nas
1
Interdependência, a política mundial em comunicações e nas aspirações humanas” .
transição” (1989). Os dois autores lançavam Tal interdependência nas Relações
suas ideias acerca da teoria da Internacionais significava que os Estados
interdependência complexa, praticamente, ao estavam reciprocamente afetados pelos efeitos
mesmo tempo em que os Estados Unidos das transações internacionais que efetivavam,
encerravam sua guerra no Vietnã, sob todos os e pelos fluxos de pessoas, bens e ideias que
impactos que a campanha do sudeste asiático passaram a transitar cada vez mais livres pelos
trouxe para o pensamento espaços mundiais.
político/estratégico/militar norte-americano, Keohane e Nye apontaram três
em particular, e Ocidental, em geral. características principais na interdependência
Na obra, Keohane e Nye apresentam complexa. A primeira é a existência de
um contraponto à teoria realista das Relações múltiplos canais a conectar as sociedades.
Internacionais, dominante à época, Nesse sentido, relacionamentos formais entre
especialmente no que concerne a três de seus chancelarias conviveriam com laços informais
principais pressupostos: que unem as elites governamentais de
de que os Estados Nacionais são os atores diferentes Estados, mas, não somente. As
dominantes na política mundial e que
agem como unidades coerentes; que o uso conexões também seriam providas, no âmbito
(ou a ameaça do uso) da força é a forma
mais efetiva de exercício do poder, e que de empresas transnacionais e no âmbito das
existe uma hierarquia de temas na política
mundial, na qual há um predomínio das
elites das organizações.
questões de segurança militar sobre A segunda característica aponta para a
assuntos econômicos e sociais. (1989,
p.23) (tradução nossa) inexistência de uma hierarquia de temas nas
relações interestatais. Com essa caracterização
A política de aproximação entre os
da interdependência, os autores objetivavam
EUA e a China, iniciada em 1971 pelo
reforçar que, diferentemente do
presidente Nixon e por seu assessor de
segurança nacional e, mais tarde, Secretário de
Estado, Henry Kissinger, colaborava para o
1
Citado por Keohane e Nye, de Poder e Interdependência
convencimento dos autores de que eles (1989, p. 3).

Interdependência complexa e o futuro da guerra Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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que afirma a escola realista, os assuntos de No entanto, os autores não afirmam


segurança não dominariam a agenda que a interdependência será indistintamente
internacional dos Estados. Muitas outras benéfica para todos os atores envolvidos.
questões surgiriam do que antes parecia ser Diferentemente do conceito ecológico do
domínio da política doméstica, mas, que na mutualismo, relação cujas diferentes espécies
interdependência, passariam a afetar as interagem de forma mutuamente benéfica, na
relações entre as nações. As fronteiras entre o interdependência complexa, os atores arcarão
doméstico e o internacional estariam cada vez com custos relacionados à limitação da
menos claras. Essas questões poderiam gerar autonomia. Assim, não haveria como afirmar
diferentes níveis de conflito, passando a que essa limitação de autonomia seria
substituir as questões de segurança nas compensada pelos eventuais ganhos das
prioridades internacionais dos países. relações de interdependência.
Finalmente, a última característica da Exemplos desses custos foram expostos
interdependência complexa é a de inibir o uso de forma claríssima, recentemente, na
da força militar pelos governos contra Estados pandemia da Covid-19. Subitamente, as
cujas relações de interdependência nações foram apresentadas à realidade de que
prevaleçam. Os autores reconhecem, não detinham a capacidade de produzir na
entretanto, que a força militar pode ser útil nas quantidade exigida os equipamentos médicos,
relações com países de outras regiões, ou vacinas e equipamentos de proteção individual
integrantes de alianças, ou blocos rivais. Cabe necessários a: hospitais, profissionais de saúde
lembrar que os autores produziram essa teoria e seus cidadãos. Nesse sentido, foi
na década de 70, auge da guerra fria, quando emblemática a chamada “guerra das máscaras”
as relações entre os países dos blocos rivais à qual o mundo assistiu: uma disputa entre
(capitalista e comunista) eram praticamente diferentes países pela compra de equipamentos
inexistentes, não havendo relações de para o enfrentamento da Covid-19. Alguns
interdependência dentre eles. países chegaram a confiscar máscaras
Portanto, a obra citada foi escrita muito destinadas a outros países2. Os 22 aviões
antes da explosão da interconectividade que cargueiros norte-americanos3 que foram
vivemos hoje, quando ainda não era possível buscar, na China, máscaras e equipamentos
prever-se que as chamadas cadeias globais de hospitalares, em 1º de
valor, nas quais predominam os fluxos de 2
Veja a reportagem em
comércio decorrentes da terceirização de https://www.bbc.com/portuguese/internacional-
52465757 Acesso em: 15 mar. 2022.
estágios produtivos, intensificar-se-iam a 3
Veja a reportagem em
https://www.nytimes.com/2020/04/01/business/corona
níveis, àquela época, inimagináveis. virus-china-masks.html Acesso em: 15 mar. 2022.

Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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abril de 2020, confirmaram de forma veemente global”.


o preço da dependência. Assim, a exacerbação do fenômeno da
interdependência também levou à amplificação
2. Uma interdependência de seus efeitos colaterais, especialmente dos
verdadeiramente global
custos relacionados à percepção de perda da
A pandemia da Covid-19 explicitou o soberania e às repercussões sociais
nível de dependência que a maior parte dos relacionadas à globalização.
países tem em relação à China na questão da
produção de itens de saúde e de proteção
3. A interdependência transformada
individual. Porém, esse aspecto é apenas a em instrumento de coerção
“ponta visível do iceberg”.
Rosa Brooks, autora do livro How
A queda do muro de Berlim, o fim da
everything became war and military became
guerra fria, a entrada da República Popular da everything: Tales from Pentagon, afirma: “a
China na Organização Mundial do Comércio e globalização criou um mundo em que tudo se
o avanço da tecnologia da informação e das transforma em guerra”4. Os fluxos financeiros
comunicações com a popularização da e de informações, bem como o fluxo de
internet, tudo isso, enquadrado no amplo produtos e serviços que percorrem todo o
conceito denominado “fenômeno da mundo criam, de um lado, riscos para os
globalização”, levou o nível da Estados, mas também, por outro lado,
interdependência complexa ao paroxismo, uma ferramentas para explorar ou mitigar esses
vez que as limitações geopolíticas que mesmos riscos.
impediam o aprofundamento da O conflito na Ucrânia, cuja fase militar
interdependência entre países de diferentes iniciou-se no dia 24 de fevereiro de 2022,
blocos ideológicos, existentes quando da reúne vários exemplos de que a
formulação da teoria, na década de 1970, interdependência econômica pode ser usada
deixaram de existir. como instrumento de coerção. O principal
Assim, as duas primeiras décadas do deles é a adoção de sanções econômicas.
século 21 assistiram à crescente interligação e Mesmo antes da invasão propriamente
consequente interdependência entre dita, o governo dos EUA e seus aliados
indivíduos, organizações e Estados. O ameaçaram a Rússia com sanções econômicas
fenômeno transbordou para todas as esferas, nunca vistas. E, iniciada a invasão russa, as
da econômica à política, passando pela cultura sanções foram efetivadas. Dessa forma, uma
e pelas relações sociais. O mundo, variada gama de ações foi adotada, todas com
definitivamente, havia se tornado uma “aldeia 4
Rosa Brooks (apud FARREL; NEWMAN, 2019, p. 43)

Interdependência complexa e o futuro da guerra Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


27

o objetivo de retaliar a Rússia: bancos do país não chegaria ao nível do conflito armado,
foram banidos do sistema SWIFT, empresas muito menos na intensidade a que se assistiu,
aéreas impedidas de voar sobre extensas áreas com a eclosão de uma guerra de alta
da Europa, restrições às importações e intensidade, na qual cidades foram
exportações de determinados tipos de bens e completamente arrasadas por bombardeios
5
serviços, dentre muitas outras . incessantes.
Contudo, as sanções não se Tal crença justificava-se, em maior ou
restringiram às ações dirigidas a afetar o menor grau, pela terceira característica da
Estado russo. Cidadãos também foram alvos interdependência complexa, apresentada na
de sanções, como pessoas físicas. Essas primeira seção deste ensaio, de ser inibidora
medidas têm o objetivo claro de mitigar o do uso da força quando os Estados mantêm
apoio que determinadas pessoas emprestam ao entre si os laços da interdependência. E, no
governo do país, na tentativa de se criar uma caso da guerra na Ucrânia, tais laços entre
oposição doméstica ao próprio governo. russos, ucranianos e europeus estão claramente
Portanto, essa é uma ferramenta que presentes.
pode ser utilizada nas duas direções. No caso, Então, por que a interdependência
a enorme dependência europeia das fontes ampliada pela globalização foi incapaz de
energéticas russas impõe a muitos países a evitar o conflito? A resposta a essa questão
constrangedora posição de continuar permanecerá em aberto até que a “névoa da
comprando gás natural e petróleo russo, guerra” clausewitziana6 se dissipe, e possamos
mesmo durante a guerra, financiando, ainda avaliar com clareza todos os acontecimentos.
que indiretamente, o esforço de guerra No momento, tateando em meio ao espesso
adversário. Por sua vez, a Rússia, apesar de nevoeiro, podemos apenas inferir algumas
continuar o fornecimento, também mantém a causas.
ameaça de seu corte, deixando os europeus sob Talvez o sistema internacional esteja
pressão. retornando à multipolaridade e, justamente por
isso, os russos tenham encontrado muitos
4. E o futuro da guerra? países, com especial destaque à China e à
Índia, mas não só esses, com disposição e
Enquanto as tensões em torno da
capacidade política, comercial e financeira de
Ucrânia escalavam, a partir de novembro de
6
2021, muitos analistas acreditavam que a crise “A névoa da guerra” é uma expressão muito usada para
descrever a complexidade dos conflitos militares. Sua autoria
é frequentemente atribuída a Clausewitz, mas, na verdade, é
5
Veja uma lista completa aqui: uma paráfrase do que ele disse: “A guerra é o reino da
https://graphics.reuters.com/UKRAINE- incerteza; três quartos dos fatores em que se baseia a ação na
CRISIS/SANCTIONS/byvrjenzmve/ Acesso em: 15 mar. guerra estão envoltos em uma névoa de maior ou menor
2022. incerteza.”

Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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não aderir às sanções lideradas pelos EUA. ocorrência condicionada por uma variada
Pelo contrário, quiçá esses países tenham gama de fatores, alguns lógicos e
justamente encontrado nessa conjuntura a perfeitamente racionais, como o que propõe a
oportunidade de aprofundar seus laços interdependência complexa como inibidora do
econômicos com os russos, mitigando os uso da força, mas também por outros advindos
efeitos da coerção econômica imposta pelas dos mais recônditos espaços da psique
sanções. humana, onde a frustração, a raiva e a
Talvez, mesmo ciente dos altos custos irracionalidade dos tomadores de decisão – e
materiais e humanos da guerra e sabedor de mesmo de populações inteiras – pode acender
que a globalização e a interdependência o estopim da guerra.
amplificam ainda mais seus efeitos, o governo “Somente os mortos viram o fim da
russo tenha sido impelido à ação por fatores guerra” (RAMO, 2010), afirmou George
históricos, culturais, políticos e estratégicos Santayana ao fim da Primeira Guerra Mundial.
julgados tão relevantes que justificariam os O filósofo inglês antevia que a Grande guerra
custos, por mais altos que fossem. não fora capaz de resolver as questões que
Talvez tenha havido uma monumental causariam a Segunda Guerra Mundial.
falha de percepção da realidade dos fatos, que Infelizmente, a guerra na Ucrânia
tenha ofuscado a compreensão dos decisores reafirma Santayana. A humanidade ainda está
russos, impedindo-os de avaliar corretamente o muito longe do dia sonhado pelo General
nível de resistência que seria imposta pelos Osório, em que os países queimariam seus
ucranianos em face da invasão do solo de sua arsenais8.
pátria. Referências
O mais provável é que no todo, ou em
FARREL, Henry; NEWMAN, Abraham L.;
parte, as três hipóteses anteriores estejam
Weaponized Interdependence. How global economic
presentes na explicação vindoura desse networks shape State coertion. International security,
vol. 44, nº 1, p. 42-79, jul. 2019.
conflito. De qualquer maneira, elas alertam
GALVÃO, Marcos B. A. O Realismo de cada um:
para o que esperar do futuro. Sun Tzu, cinco interdependência e relações políticas entre Estados no
mundo pós Guerra Fria. Estudos históricos. Rio de
séculos antes de Cristo, afirmou que a guerra é Janeiro, vol. 6, nº 12, p. 149-161, 1993.
de vital importância para o Estado7. O conflito
KEOHANE, Robert O.; NYE JR., Joseph S. Power and
em análise mostra como a guerra mantém essa interdependence. Harper Collins Publishers, 1989.

característica até os dias atuais. E possuindo RAMO, Joshua Cooper. A era do inconcebível. 1. ed.
Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010.
tal importância, certamente, terá sua
7 8
“A guerra é um assunto de importância vital para o estado; o “A data mais feliz de minha vida seria aquela em que os
reino da vida ou da morte; o caminho para a sobrevivência ou povos civilizados festejam sua confraternização, queimando
a ruína.” (SUN TZU, A Arte da Guerra, cap. 1) os arsenais.” (Marechal Manuel Luis Osório)

Interdependência complexa e o futuro da guerra Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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1. Introdução A História é ilustrada de eventos

A invasão militar da Rússia à Ucrânia é marcantes sobre a alternada ocupação do

um evento de relevante magnitude, reunindo território que hoje abriga o Estado ucraniano.

condições de alterar a ordem global tal qual a O resgate discursivo do passado – e a

conhecemos desde o final da II Guerra conveniência de suas interpretações – tem

Mundial (II GM), considerando, obviamente, contribuído para a construção de argumentos

os significativos ajustes ocorridos com o fim explicativos para a invasão atual, levando a

da Guerra Fria. O ataque militar em grande algumas inferências, mesmo que

escala, perpetrado pela maior potência nuclear especulativas, sobre uma eventual ambição de

do mundo – e membro permanente do Moscou em reconstruir o antigo Império

Conselho de Segurança da Organização das Russo. Nessa perspectiva, o discurso do

Nações Unidas (CS/ONU) – em desfavor de presidente Vladimir Putin 1 , proferido horas

um país soberano vizinho, é a ação bélica antes do início da ofensiva em território

mais grave em solo europeu desde o término ucraniano, em 24 de fevereiro de 2022,

da II GM. De forma embutida, e para além apresenta importantes elementos imateriais

das fronteiras ucranianas, o confronto abarca que devem ser observados com acuidade. As

o conjunto de países que integram a aliança chamadas “forças profundas da História”2 se

militar do Ocidente. fazem presentes em diversas partes do

A Organização do Tratado do Atlântico pronunciamento, muito criticado pela maioria

Norte (OTAN) materializa, nas bordas do dos analistas internacionais.

conflito, o conjunto de países que apoiam a No que tange ao evento atual, entende-

Ucrânia, país europeu com cerca de 43 se não ter havido uma agressão militar direta

milhões de habitantes, detentor de um grande contra o Estado russo, tendo esse agido de

(e estratégico) território naquele continente. forma unilateral ao dar início às ações que

Em que pese seu caráter local, a desencadearam o conflito militar ora

interconectividade crescente e as conhecidas apreciado. Um esforço de síntese que traduza

características geopolíticas da Eurásia a principal (entenda-se mais comunicada)

emprestam ao conflito dimensão global, causa para o emprego do poder militar russo

envolvendo, mesmo indiretamente, toda a na Ucrânia pode ser explicitado pela ideia da

comunidade internacional. Ademais, a 1


Sobre o assunto, consultar:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/02/veja-integra-
violação da ordem global baseada em regras do-discurso-de-putin-que-anunciou-a-invasao.shtml . Todos
os discursos de Vladimir Putin e de Dmitri Medvedev estão
infere o desdobramento de consequências disponíveis, em língua inglesa, no sítio oficial da presidência
da Federação Russa. Sobre o assunto, consultar
(securitárias, políticas, econômicas e http://en.kremlin.ru/events/president/news .
2
Conceito construído pela Escola Francesa que traduz o
humanitárias) abrangentes e de longo alcance. conjunto de causalidades sobre as quais atuavam os homens
de Estado, em seus desígnios e cálculos estratégicos.

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


31

reação à contínua expansão da OTAN3 rumo “perdida” nos últimos tempos.


ao Leste, em direção ao que Moscou Perspectivas diferentes e visões
considera sua área de influência natural. distintas de mundo parecem reviver práticas
Nesse contexto, é lícito inferir que, sob comuns aos tempos da Guerra Fria. Questões
o ponto de vista russo, o alargamento da geopolíticas e geoestratégicas retornaram ao
aliança militar do Ocidente é interpretado topo da agenda da política internacional. Em
como uma ameaça à segurança e à própria meio à fluidez que caracteriza o momento
existência do Estado, materializada pelo atual do conflito armado na Ucrânia, este
comprometimento da profundidade ensaio se propõe a analisar o evento sob a
estratégica na sua frente oeste, perspectiva de um sistema internacional em
especificamente na porção que abarca a transformação. O trabalho se divide em três
Planície Central da Europa. Conceitualmente, seções, além desta introdução e da conclusão.
a situação descrita pode ser enquadrada como Na primeira seção, à luz de uma breve análise
de interesse vital para a Federação Russa, da política externa da Era Putin, são
reiteradamente explicitada por Moscou em apresentadas as principais condições que
discursos e documentos oficiais. caracterizam a Rússia como um Estado
Ao reagir à invasão do território de um desafiador da ordem internacional, fator
Estado soberano, sem que esse tenha importante para a compreensão do cálculo
patrocinado um ato de agressão anterior estratégico que fundamentou a ação militar e
contra o seu agressor, parcela significativa da a invasão do território da Ucrânia. A segunda
comunidade internacional manifestou repúdio seção aborda o contexto da hodierna relação
à ação militar. Ao condenar o governo russo, a russo-ucraniana, destacando os
unidade do discurso afinou-se ao regramento desdobramentos para o concerto de segurança
estabelecido pelo Direito Internacional, europeu e para a aliança transatlântica,
especificamente no que tange à soberania, à destacadamente após a invasão militar de
integridade territorial e ao direito à autodefesa. fevereiro de 2022. A terceira seção analisa,
A dicotomia democracia versus autocracia sumariamente, algumas das principais
tem sido constantemente explorada em repercussões da guerra para a arquitetura de
pronunciamentos, entrevistas e meios de segurança europeia, inferindo eventuais
comunicação ao redor do mundo. Nesse transformações para o cenário europeu. A
contexto, o papel das organizações conclusão busca responder a pergunta-título,
internacionais parece readquirir a relevância apontando para a possibilidade do incremento
3
Sobre o assunto, consultar:
de um processo de reorganização da
https://www.poder360.com.br/analise/expansao-da-otan-e-
criticada-nos-eua-desde-anos-1990/
arquitetura global de segurança.

A Guerra na Ucrânia e arquitetura de segurança global Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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como sendo baseada em regras não implica


2. A Rússia como Estado desafiador
da ordem internacional compromisso com uma utopia de regras
desprovidas das realidades do poder: Estados
A Rússia (2º) e China (1º) são os dois
fortes, claramente, influenciam mais as regras.
Estados desafiadores que reúnem maiores
E certos corpos de regras, dentro dessa ordem,
possibilidades e meios para contestar a ordem
podem ser (e foram) violados com mais
internacional vigente e, por conseguinte, o
frequência do que outros, como, por exemplo,
sistema de alianças e parcerias estabelecido
aqueles relacionados ao uso da força
pela nação hegemônica (EUA) no pós-II GM,
(SIMPSON, 2018). Exemplos históricos
ratificado ao término da Guerra Fria. Ainda
recentes, como as guerras no Iraque e na Líbia,
que os parâmetros para definir, com maior
com a participação dos EUA, ilustram bem a
precisão, o que seja essa “ordem global”,
ideia.
“ordem liberal internacional” ou “ordem
O colapso da União Soviética (URSS),
liberal liderada pelos EUA” sejam
evento marcante do final da Guerra Fria, fez
virtualmente imprecisos ou contestados, uma
emergir os EUA como a única superpotência
síntese que traduza essa ideia pode ser assim
do mundo. A OTAN, aliança militar euro-
apresentada: desde a década de 1940, os EUA
atlântica, ao realizar seu movimento de
lideraram uma ordem que abrangeu uma
expansão e alargamento, acabaria abrangendo
proporção crescente do globo, amplamente
antigos territórios da então URSS4 (figura 1),
baseada em princípios liberais, incluindo o
cuja “herdeira” natural é a Rússia. Do
livre mercado, a democracia liberal e o estado
conjunto de países que formavam a
de direito, e as organizações e instituições
denominada “Cortina de Ferro”, a Ucrânia
internacionais que regulam as relações entre
encarna características muito caras para o seu
os Estados.
vizinho de Leste: importância econômica,
Para além da integração dos mercados
com destaque para a produção de energia,
globais, condição que apenas ilustra um
minérios e alimentos; relevância estratégica,
segmento econômico regulado por um sistema
haja vista seu território propiciar
jurídico de abrangência internacional, a
profundidade estratégica à Rússia na porção
chamada ordem internacional também é
geográfica que abrange a Planície Central
influenciada por suas convenções políticas e
sociais, ainda que seu conteúdo tenha um
4
Desde o fim da União Soviética, em 1991, a OTAN
caráter mais subjetivo. Regras legais incorporou Polônia e República Checa, em 1999; Romênia,
Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Lituânia e Letônia,
expressam estruturas de poder mais profundas, em 2004; Albânia e Croácia, em 2009; Montenegro, em 2017;
e Macedônia do Norte, em 2020. A maioria desses países
sejam elas militares, econômicas ou culturais. esteve, historicamente, sob domínio ou influência tanto do
Império Russo quanto da URSS, tendo se aproveitado do
Portanto, referir-se à ordem internacional período de fragilidade geopolítica da Rússia para materializar
alianças de segurança com os EUA e as potências europeias.

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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Europeia, eixo mais vulnerável para a defesa ocidentalista se caracteriza pela aproximação
da Federação Russa; laços históricos que vão ideacional com o “Ocidente”6 (ordem liberal
ao encontro do conceito de “pan-eslavismo”5, do pós-II GM, democracia e direitos
ideário presente na cultura russa; entre outras. humanos), opondo-se a interferências
geopolíticas incisivas do Estado russo no seu
Figura 1: Expansão da OTAN
entorno imediato. A civilizacionista
argumenta a existência de uma “missão”
devotada à preservação de tradições políticas
e culturais e à proteção dos compatriotas
russos no mundo, além da recuperação da
influência russa sobre seu exterior-próximo.
Visa a (re)construir a “Grande Rússia” pelo
uso da força. A escola estatista traduz a
crença no Estado forte, baseado na concepção
da excepcionalidade russa, garantidora e
estabilizadora da política regional e
internacional. Contrapõe-se à expansão da
OTAN para as bordas de Leste da fronteira
russa e à influência dos EUA sobre os países
Fonte: https://www.bbc.com/news/world-europe-
61066503 Acesso em: 15 mar. 2022. pós-soviéticos (LEGVOLD, 2007).
Para compreender o papel de Estado Considerando que a tentativa de
desafiador, faz-se necessário apresentar, expressar o “pensamento político” russo –
sumariamente, o “pensamento russo em como de qualquer outro país – passa por
política exterior”, traduzido na expressão das estabelecer e interpretar conexões entre
ideias de três tradições (ou escolas) de dimensões políticas, sociais, culturais e
pensamento: ocidentalista, civilizacionista e históricas, a complexidade do processo de
estatista, todas referentes ao período pós- construção do Estado nacional e da nação
soviético e direcionadas aos países que russa, per si, antecipam a dificuldade desse
integravam a antiga URSS. A tradição exercício. A não linearidade na tradição de
política exterior russa reflete a riqueza
5
A Ucrânia é considerada, por significativa parcela da
cultural e política da sua nação, marcada por
população russa mais próxima a Moscou, como berço do
eslavismo e do cristianismo eslávico. Ao longo da História,
períodos históricos distintos. Para efeito deste
após períodos de ocupação por outros povos, o território
6
ucraniano foi incorporado, primeiro, ao Império Russo, A literatura russa considera o Ocidente como uma “entidade
depois à URSS. Em alguns pronunciamentos, o presidente política” que internaliza a ordem liberal do pós-II GM,
Putin defendeu que a Ucrânia seria o “berço da cultura russa”. liderada pelos EUA.

A Guerra na Ucrânia e arquitetura de segurança global Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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ensaio, o foco dar-se-á no que passaremos a bem definido como um dos objetivos
chamar de “Era Putin”7. nacionais mais importantes, o que demandou
A história política da Rússia é marcada uma postura mais assertiva no trato dos
pelo autocratismo, característica que empresta assuntos externos. Era a resposta russa ao
aos indivíduos – e não às instituições – o período de contração da influência do país nas
protagonismo nos processos de tomada de decisões e nos rumos dos principais assuntos
decisão. Assim, é lícito afirmar que a internacionais, especialmente no período
democracia é um “objeto estranho” na imediato à dissolução da URSS. A Federação
8
trajetória do Estado russo . Nessa perspectiva, não se conformou com o papel a ela destinado
mesmo considerando o papel de outros atores no “fim da História”.
na condução da política externa da Federação A ideia de um Estado forte (escola
Russa, atribui-se ao presidente Putin o papel estatista) fez-se logo presente, assim como a
mais importante no espectro político russo, recuperação do poder militar russo,
considerando o período de 2000 até os dias necessariamente forte e garantidor do projeto
atuais. de grande potência. Para isso, foram
Mudanças significativas na política assegurados: um orçamento militar adequado,
externa russa tiveram, nos anos 2000, um incentivos à indústria bélica nacional e uma
marco importante 9 . Debates acerca do papel nova doutrina militar. O novo texto permitia a
do país perante o sistema internacional – em utilização do arsenal nuclear na situação de
especial a sua identidade pós-soviética – uma agressão armada ao país, e não somente
ganharam vigor, dando lugar à emergência da em casos de ameaças à sobrevivência do
valorização de fatores ideacionais atrelados à Estado. Configurava-se, assim, o
autodeclarada grandiosidade russa. O entendimento de que o poder nuclear da
restabelecimento do status de potência da Rússia era a melhor ferramenta para o país
Rússia, desde o início da Era Putin, esteve reivindicar seu status de grande potência. Em
7
Para fins deste ensaio, o período em que Vladimir Putin
que pese à adoção da postura descrita, não se
ocupou o cargo de primeiro-ministro (2008/2012) está
inserido no contexto da Era Putin.
observou, nesse período, uma clara estratégia
8
A constituição russa, promulgada em 1993 (ainda em vigor), de balanceamento da influência ocidental no
compromete-se em estabelecer os pilares da democracia no
país. O instrumento legal prevê responsabilidades, para o sistema internacional.
presidente eleito, em determinados assuntos de política
externa, como representar o país em assuntos internacionais, Quanto à priorização dos atores com os
determinar as diretrizes e os objetivos externos do Estado,
aprovar a doutrina militar, e tratar de assuntos de paz e de quais a Rússia deveria direcionar seus
guerra.
9
Sobre o assunto, consultar o documento que materializou e esforços de política externa, o início da Era
contextualizou as principais ideias atreladas à política externa
do primeiro mandato de Putin: “The Foreign Policy Concept Putin destacou os países do seu exterior
of the Russian Federation”, de 28 de junho de 2000.
Disponível em: próximo, especificamente os do chamado
https://nuke.fas.org/guide/russia/doctrine/econcept.htm
Acesso em: 15 mar. 2022.

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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“espaço pós-soviético”10. Ademais, referências postura do país, mais assertiva e


oficiais à necessidade de proteger os comprometida com os interesses russos no
compatriotas russos no exterior indicavam o mundo.
caráter civilizacionista dos contornos da O segundo mandato (2004/2008) de
política externa russa. A “proteção à Rússia” Putin é marcado pela eclosão das chamadas
deveria ocorrer não só na esfera geopolítica, “revoluções coloridas” 11 , que impactaram,
mas também deveria abarcar questões étnicas significativamente, as relações com os EUA.
e linguísticas. O incremento da percepção de ameaça por
Diante do atentado de 11 de setembro parte de Moscou baseou-se na visão de que o
de 2001, a postura do governo russo foi envolvimento norte-americano no seu entorno
pragmática e de apoio aos EUA, país com o imediato era provocativo e desfavorável aos
qual Moscou esboçou uma aproximação por seus interesses. Nesse diapasão, o apoio
meio da oferta de suporte ao combate ao político à Revolução Rosa, na Geórgia, foi
terrorismo internacional. Por outro lado, a considerado hostil, desencadeando uma
Rússia não endossou a invasão ao Iraque incisiva reação que levou à “Guerra dos 5
(2003), desaprovando a “exportação da Dias”12, quando a Rússia ocupou os territórios
democracia” para aquele país por meio do uso da Ossétia do Sul e da Abkhazia.
da força militar. Em 10 de fevereiro de 2007, durante a
Dessa forma, o período que marca o 43ª Conferência de Segurança de Munique, o
primeiro mandato de Putin (2000/2004) presidente Putin proferiu o discurso 13 que
caracteriza-se pelo esforço na recuperação da marcaria, indelevelmente, sua visão de mundo
influência em seu exterior próximo, e como a Rússia deveria nele se inserir. Era a
utilizando-se, para isso, de instrumentos de declaração oficial do que seria a marca da
cooperação econômica, militar e diplomática.
11
Movimentos de protestos desencadeados em países que
Discursos e pronunciamentos lembravam a conformavam a antiga URSS. Buscavam a mudança de
governo e mais democracia, opondo lideranças pró-soviéticas
necessidade de reparação dos “erros” do seu e manifestantes pró-Ocidente. Revolução Rosa (Geórgia),
Revolução Laranja (Ucrânia) e Revolução das Tulipas
antecessor (Yeltsin), paripassu, declaravam à (Quirguistão).
12
A invasão da Geórgia foi um evento marcante para a
comunidade internacional que os interesses da política externa russa. Desde 1979, a Rússia não realizava
uma ação militar que demandasse atravessar fronteiras rumo
Rússia deveriam ser considerados naquela a outro Estado soberano. A ameaça de adesão da Geórgia à
OTAN, fato não consolidado pela Cúpula de Bucareste,
região. As mudanças na política externa no alimentou temores russos, levando à ação militar. Convencida
de que uma aproximação da OTAN de suas fronteiras
início da Era Putin anunciavam uma nova constituiria uma ameaça à sobrevivência do Estado, a
contramedida russa foi atuar em prol das regiões separatistas,
cujo principal desfecho foi a ocupação da Ossétia do Sul e da
10
A priorização das relações externas direcionou-se para os Abkhazia.
13
países da Comunidade de Estados Independentes (CEI), Sobre o assunto, consultar https://www.dw.com/pt-
criada em 1991 e que reunia 12 das 15 ex-repúblicas br/putin-confrontado-com-desconfian%C3%A7a-do-
soviéticas (com a exceção dos países bálticos). ocidente/a-2342852

A Guerra na Ucrânia e arquitetura de segurança global Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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política externa da Era Putin e de como seu Power Competition14 , a expansão/consolidação


país posicionar-se-ia diante das de áreas de influência e a recomposição de
transformações sistêmicas. Recebidas com parcerias e alianças estratégicas parecem
surpresa, as palavras do líder russo visaram a reimprimir padrões observados no período da
criticar, principalmente: a ordem internacional Guerra Fria, suscitando um incômodo déjà vu
unipolar, em vigor; o constante uso da força de práticas políticas desestabilizadoras. As
pelos EUA nas relações internacionais (r.i.), ações militares que levaram à anexação da
aumentando a insegurança internacional; e a Crimeia e à guerra na região do Donbass
expansão da OTAN rumo ao Leste, (2014), antecedidas pela Guerra dos Cinco
ameaçando a segurança do Estado russo. A Dias, indicaram que a disposição de Moscou
assertividade da postura da Rússia – gerando de não ceder posição no seu entorno imediato
dúvidas sobre como Moscou agiria dali em ao Ocidente seria operacionalizada pelo
diante –, conjugada com a consistente emprego de todos os seus recursos de poder.
ascensão chinesa no cenário mundial, Assim, ao longo da Era Putin, o “Urso”
aumentaram as incertezas sobre o futuro da vem modulando sua estratégia para a Europa
ordem internacional estabelecida no pós- – especificamente para o seu exterior próximo
Guerra Fria. –, apostando em maior assertividade política,
A ameaça à mudança do status quo no frente à leitura de uma aliança transatlântica
15
espaço pós-soviético agravou-se com a em eventual declínio ; na sua força
Revolução Laranja, na Ucrânia (2013). A econômica, derivada das exportações de gás e
reação russa foi o desencadeamento de ações petróleo para boa parcela do continente; nos
militares na Crimeia, levando à sua anexação dividendos de uma aproximação efetiva com
(2014). Moscou insistia que não desejava a China; e no emprego do seu robusto poder
redesenhar o mapa europeu referente ao seu militar16 para alterar o equilíbrio regional em
passado (imperial e/ou soviético), mas sim
14
Competição estratégica de longo prazo entre as grandes
proteger a herança cultural de seus potências internacionais.
15
“compatriotas”. Ao investir, novamente, sobre Parceiros de longa data, EUA e Europa observaram
instabilidades significativas em tempos recentes. A resiliência
o território de um país soberano, vizinho de grupos “eurocéticos”, contextualizada (no seu sentido
mais agudo) pelo Brexit, associada à postura do governo
europeu, a Rússia (re)apresentava suas norte-americano durante o período do presidente Trump,
estremeceu as históricas relações entre os entes políticos.
credenciais de aspirante ao “retorno” ao 1º Nesse contexto, a própria OTAN se viu pressionada e sofreu
críticas quanto à sua efetividade.
16
escalão das potências mundiais, reforçando o O processo de modernização militar do New Look, iniciado
no final de 2008, tornou a Rússia uma potência militar muito
recado da Conferência de Munique, em 2007. mais capaz, hoje, do que em qualquer outro momento desde a
dissolução da URSS. O contestado desempenho na guerra de
Na perspectiva geoestratégica da Great outubro de 2008 (Geórgia), a vontade política renovada e a
recuperação das finanças fundamentaram o processo. O
progresso tem sido desigual entre as Forças, com as forças
estratégicas e as forças aeroespaciais se saindo melhor e, ao
lado da marinha, geralmente possuindo equipamentos mais

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


37

favor dos seus interesses. Nesse contexto, função como viabilizadora de corredores de
Moscou se contrapõe à política de segurança transporte e linhas de comunicação,
europeia, posicionando-se, irredutivelmente, otimizando a ligação da Ásia com a Europa
frente ao que considera grave ameaça: o Ocidental. Ademais, é através do território
movimento de alargamento da OTAN rumo a ucraniano que a Rússia escoa a maior parte da
leste. Ao demonstrar interesse em se energia exportada para o continente europeu
aproximar da União Europeia (UE) e da (figura 2). Como importante produtora de
aliança militar do Ocidente 17 , a Ucrânia se grãos (especialmente trigo e milho), a Ucrânia
torna uma questão fundamental para a contribui, de forma efetiva, para a segurança
Federação Russa. alimentar em diversas partes do mundo.
3. As relações russo-ucranianas no Dois terços da população ucraniana
contexto do concerto de segurança vivem em áreas urbanas, sendo que três
europeu cidades têm mais de um milhão de habitantes
A posição geográfica da Ucrânia, (Kiev, Kharkiv e Odessa). Há concentração de
situada entre dois polos do poder mundial, população de origem russa na Crimeia (onde é
empresta àquele país importância estratégica maioria) e no Leste do país, regiões onde o
fulcral para o “domínio” da Eurásia. Como idioma russo é falado por significativa parcela
pivô geoestratégico, a Ucrânia desperta a dos habitantes. Etnicamente, todavia, todos
atenção (e a apreensão) mundial por ocasião são eslavos. A argumentação étnica e
da invasão do seu território pelas forças linguística, no caso da Ucrânia, é relativa.
armadas russas. O país, em razão de fatores Atende conveniências de lado a lado e auxilia
de ordem geográfica, desempenha importante a construir e a adaptar discursos em proveito
próprio, por parte das duas unidades políticas.
modernos do que as forças terrestres. Comando e controle
também tem sido foco de atenção. Um Centro Nacional de
Dessa feita, a citação contida no discurso de
Gestão de Defesa foi criado, em 2014. Sobre o assunto, 24 de fevereiro, referindo-se a um “povo trino
consultar https://www.iiss.org/blogs/military-
balance/2022/02/if-new-looks-could-kill-russias-military-
capability-in-2022 .
russo” 18 – Rússia, Ucrânia e Belarus – é
17
A mais recente Estratégia de Segurança Nacional da contestada por historiadores, que a
Ucrânia (2020), a quarta da história da nação independente
(2007, 2012 e 2015), “foi desenvolvida levando em conta a
natureza de longo prazo da agressão russa, bem como outras
consideram imprecisa19.
mudanças fundamentais no ambiente externo e interno”. A
Rússia é repetidamente identificada como agressora e a
adesão à OTAN é frequentemente mencionada como o 18
principal objetivo de segurança nacional. A nova versão A afirmação de que os povos da Ucrânia e de Belarus
oferece uma visão muito mais clara da direção geopolítica da formariam uma tríade com a Rússia, configurando-se em
Ucrânia, declarando que “a aquisição da plena adesão à "subnações" de uma única comunidade russa, remonta aos
União Europeia e à OTAN é o curso estratégico do Estado”. tempos imperiais. A então denominada "Rússia de Kiev" era
Sobre o assunto, consultar uma confederação de povos eslavos, citada em discursos e
https://pism.pl/publications/Ukraines_New_National_Securit pronunciamentos do presidente Putin como a “ancestral
y_Strategy. Para isso, o Estado ucraniano investe na cultural” dos três países.
19
transformação de suas forças armadas. Sobre o assunto, Sobre o assunto, consultar:
consultar https://defense-reforms.in.ua . https://www.chathamhouse.org/2021/05/myths-and-

A Guerra na Ucrânia e arquitetura de segurança global Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


38

Figura 2: Rede de gasodutos saindo da Rússia

Fonte: https://www.spglobal.com/commodityinsights/en/market-insights/blogs/natural-gas/010720-so-
close-nord-stream-2-gas-link-completion-trips-at-last-hurdle Acesso em: 15 mar. 2022.

Desde 1997, a Ucrânia integra o Desde 24 de fevereiro de 2022, a


Programa Parceria para a Paz da OTAN. A Ucrânia enfrenta as forças militares da Rússia,
parceria com o bloco militar europeu se país detentor do maior arsenal nuclear do
intensificou após a anexação da Crimeia Planeta. O esforço ucraniano pela manutenção
(2014), com o envio de conselheiros militares da sua integridade territorial e da sua
para reforçar suas capacidades de defesa. O soberania é materializado pelas ações das suas
país é prioridade no contexto da Política de estruturas de autodefesa, além do apoio
Vizinhança da UE, instrumento de relações indireto da aliança militar do Ocidente. Essa
exteriores criado em 2004 com o objetivo de situação, amparada pela condenação
evitar alterações na geografia das fronteiras internacional a um ato de agressão que vai de
no espaço europeu. Do ponto de vista encontro aos preceitos fundamentais do
geográfico, é a Ucrânia que empresta à Rússia Direito Internacional, posta em lados opostos
as características de um país euroasiático, a Rússia e o “Ocidente”, este último
situação que eleva sua importância capitaneado pela liderança dos EUA.
geopolítica. Desde as ações na Geórgia e na Crimeia,
as relações dos países europeus com a
misconceptions-debate-russia/myth-11-peoples-ukraine-
belarus-and-russia-are-one

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


39

Federação Russa vêm apresentando pontos de autovisão de uma “fortaleza sitiada” parece
inflexão. A manutenção de tradicionais e nortear a política externa do Kremlin desde a
importantes relações comerciais de troca dissolução da URSS. Os objetivos
(marcadamente tecnologia por energia), que estratégicos de Moscou parecem ter mudado
tem caracterizado a interdependência entre os pouco ao longo dos anos: a busca do
dois espaços nas últimas décadas, não mais reconhecimento da Rússia como uma grande
parece garantida. O recente (e substantivo) potência e o efetivo controle de seu exterior
agravamento e alargamento das sanções próximo no formato de esferas de influência.
20
impostas à Rússia , dispositivo utilizado O que efetivamente parece ter se alterado foi
desde a anexação da Crimeia, infere um a capacidade do Kremlin de transformar suas
afastamento político e econômico agudizado e intenções em realidade. Moscou, abertamente,
temporalmente estendido entre o país posiciona-se como um desafiador da ordem
euroasiático e o “Ocidente”. Ademais, a internacional estabelecida.
geração de efeitos globais transbordantes
atrelados às sanções, visivelmente o 4. A guerra na Ucrânia e as
repercussões para a arquitetura de
vertiginoso aumento dos custos de alimentos
segurança europeia
e energia, agregam complexidade ao quadro.
Em complemento, estabeleceu-se uma Allison (2020) argumenta que os EUA
“batalha diplomática por lealdade”, que deveriam aceitar o retorno das esferas de
remete a um déjà vu de práticas e impasses influência e o domínio de Rússia e China de
tipicamente observados durante a Guerra Fria, parte de seus entornos geopolíticos. O
entre Washington e Moscou. professor afirma que tal pensamento estaria
A invasão à Ucrânia parece ter alinhado com as melhores tradições
despertado, nos países europeus, um diplomáticas norte-americanas, considerando
sentimento maior de insegurança, avalizado que Washington tolerou tal modelo durante a
pela percepção de imprevisibilidade da Guerra Fria, período de influência soviética
postura futura da Federação Russa. O na Europa Oriental. Justifica seu
chamado “cerco estratégico”, sob o qual a posicionamento pelo fato de entender que os
Rússia alega estar sendo submetida em razão EUA não concentram mais poder militar e
da expansão da OTAN, foi o gatilho (nas econômico suficientes para conter a China e a
palavras do presidente Putin) para a tomada Rússia, sendo desejável, portanto, conviver
da iniciativa militar sobre a Ucrânia. A com esferas de influência mutuamente aceitas,
20
Sobre o assunto, consultar https://forbes.com.br/forbes-
as quais podem promover estabilidade e paz
money/2022/03/quais-sao-as-sancoes-contra-a-russia-e-seus-
impactos-economicos/
em um mundo caracterizado pelo aumento da

A Guerra na Ucrânia e arquitetura de segurança global Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


40

rivalidade. um Estado desafiador pode não produzir


Brands (2020), argumenta que o estabilidade, mas apenas conceder-lhe
momento pós-Guerra Fria terminou e a melhores condições para realizar suas
perspectiva de um mundo multipolar e ambições.
dividido está de volta. Nesse contexto, a Historicamente, alianças e parcerias não
Rússia está projetando poder no Oriente desempenham um papel importante na
Médio e reivindicando o domínio em seu política externa russa. A aproximação com a
exterior próximo, e a China está buscando China, cujo relacionamento tem sido cada vez
primazia no Pacífico ocidental e no sudeste da mais próximo, é a exceção. Sua visão de
Ásia, usando sua influência diplomática e mundo e a autopercepção de grande potência
econômica para atrair países ao redor do contribuem para a mencionada postura
mundo. Refutando Allison, o autor defende estratégica. Dessa forma, a leitura russa das
que: (1) esferas de influência não são uma r.i. é de que essas são dominadas por
receita para a estabilidade, por serem incertas confrontos e compromissos de interesses de
as premissas de que os poderes revisionistas grandes potências, e que qualquer ordem
são movidos, principalmente, pela deriva de equilíbrios temporários, sujeitos a
insegurança; (2) suas queixas são limitadas e serem minados por alterações na balança de
podem ser facilmente satisfeitas; (3) os poder relativo. Assim, ao longo da História, a
interesses verdadeiramente vitais das Rússia compôs alianças temporárias e para
potências concorrentes não conflitam; e (4) a fins defensivos21.
administração criativa pode, portanto, A política de estabelecimento de esferas
estabelecer um equilíbrio duradouro e de influência, particularmente direcionada
mutuamente aceitável. para o espaço pós-soviético, ilustra com
Brands (2020) acredita que a ideologia e singular clareza como as prioridades da
a busca pela grandeza – e não apenas a Rússia limitam as possibilidades de fazer
insegurança – geralmente impulsionam alianças, especificamente com Estados cuja
grandes potências. Estados em ascensão são democracia está mais estabelecida. Belarus,
continuamente tentados a renegociar dirigida por um governo forte e controlador,
pechinchas anteriores, uma vez que têm poder materializa bem a assertiva. Onde a
de fazê-lo. Assim, oferecer concessões a um 21
Enquanto a URSS mantinha tratados de amizade e
Estado revisionista pode, simplesmente, cooperação com diversos Estados não ocidentais e apoiava
movimentos de libertação nacional em países em
convencê-lo de que a ordem existente é frágil desenvolvimento, suas relações mais próximas eram com os
Estados da Europa Oriental. Esses países não eram aliados,
e pode ser testada ainda mais. Por mas satélites rigidamente controlados em uma forma
ideologizada de hegemonia de grande potência. Atualmente,
conseguinte, “conceder” esfera de influência a a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC)
abarca alguns países do espaço pós-soviético, porém é
avaliada como pouco efetiva.

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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Federação Russa se faz econômica e convicção de que a política externa dos EUA
militarmente dominante, e seus laços para com a Europa manter-se-ia inalterada,
históricos e culturais são fortes, regimes alicerçada na partilha de valores entre os
similares ao modelo de Moscou são apoiados. aliados, foi abalada pela postura norte-
Democracias, não. americana. A definição clara de que a China é
Sob o governo Biden, os EUA estão o adversário sistêmico (que apresenta desafios
conscientemente engajados em um exercício estruturais) da superpotência norte-americana
para reconfigurar, adaptar e aumentar a inferiu uma natural realocação de prioridades
arquitetura de segurança construída após a II por parte dos EUA. A recente invasão à
GM, estrutura essa que os ajudou a saírem Ucrânia pode levar a uma reorganização das
vitoriosos da Guerra Fria e que reúne as ideias, pelo menos parcialmente.
condições basilares para prepará-los a uma A leitura de Moscou acerca dessas
nova competição com outra superpotência questões, sumariamente apresentadas no
emergente: a China. No contexto euro- parágrafo anterior, muito provavelmente
atlântico, a OTAN emergiu como uma aliança integrou o cálculo estratégico que levou a
multilateral de segurança (ou uma nação euroasiática a patrocinar uma invasão à
comunidade de segurança) que abarca alguns Ucrânia. A percepção de uma parceria
dos países mais ricos e desenvolvidos do transatlântica enfraquecida pode ter sido
mundo. Atualmente, o bloco militar conta relevante o suficiente para a tomada dessa
com 30 membros e possui parcerias com decisão. Todavia, a reação rápida e
outros Estados, inclusive a Ucrânia. (suficientemente) coordenada da OTAN
A aliança militar do Ocidente, que pode parece ter surpreendido o Kremlin. Para além
ser considerada a relação multilateral mais do fortalecimento do nacionalismo ucraniano,
complexa e multidimensional da política a guerra imprimiu uma convergência de
internacional, há muito estava sob pressão22. soluções por parte dos aliados euro-atlânticos,
A pandemia da COVID-19 parece ter externalizando um adequado padrão para as
exacerbado algumas condições pré-existentes, respostas até aqui materializadas.
apresentando questões sobre a efetividade do A retomada do foco em defesa, por
eixo central da chamada Ordem Liberal. A parte dos europeus, indica uma tendência de
22
Mesmo durante o período da Guerra Fria, em que a
incremento da coesão no seio da UE, o que
existência de uma ameaça comum (URSS) tendia a reforçar tende a fortalecê-la como ator geopolítico de
os laços entre os EUA e a Europa Ocidental, registraram-se
momentos de tensão entre os aliados. Desde o final da Guerra
Fria, pode-se afirmar que a crise teria sido uma espécie de
relevância sistêmica. A notória lentidão nos
“normal” no relacionamento entre os EUA e a Europa. A processos decisórios consensuados parece ter
indefinição relativa quanto ao futuro da OTAN, divergências
quanto à intervenção nos Balcãs e a intervenção norte-
americana no Iraque (2003) contextualizam a assertiva.
sido atenuada, neste momento, por acentuada

A Guerra na Ucrânia e arquitetura de segurança global Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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crise. Valores e interesses parecem ter sido petróleo) é uma questão sensível a ser
acomodados em prol de tomada de decisões resolvida. Observam-se movimentos no
razoavelmente efetivas, que vão desde o sentido de mitigar essa vulnerabilidade
estabelecimento de sanções até o envio de estratégica, abrangendo desde a revisão de
armas para a Ucrânia. O retorno do debate políticas equivocadas que levaram à
acerca da necessidade de se construir um inviabilidade de uma prudente autonomia
sistema de autodefesa europeu, menos nesse setor, até a busca de alternativas com
dependente dos EUA, é algo importante e que outros parceiros menos tradicionais. Em
deve ser ressaltado. ambos os cenários elencados, a Alemanha (e
Não menos importante, a possível em menor escala, França e Reino Unido)
adesão da Suécia e da Finlândia à OTAN é deverá desempenhar um papel basilar para a
um evento disruptivo que merece ser viabilização das intenções europeias. A
acompanhado com muita atenção (e decisão quanto ao congelamento da liberação
preocupação). A eventual concretização da do uso do gasoduto Nord Stream 2 e o
filiação dos dois países nórdicos ao bloco anúncio do substantivo incremento dos
militar tende a incrementar as tensões com investimentos em defesa indicam o caminho
Moscou, haja vista a importância escolhido por Berlim.
geoestratégica dos Estados aspirantes. A A divergência abrangente entre a Rússia
fronteira noroeste da Rússia adquirirá uma e a ordem de segurança europeia, baseada no
nova configuração em relevância, caso seus Direito Internacional e nos princípios
vizinhos abdiquem da postura de neutralidade. fundamentais da Organização para Segurança
Nesse contexto, cabe destacar que uma e Cooperação na Europa (OSCE), os quais
eventual reconfiguração de alianças no teatro Moscou viola e quer substituir, é uma crise
europeu não poderá incidir na renúncia à estrutural que durará muito tempo. O status
dissuasão nuclear estendida proporcionada quo, claramente, não é aceitável para o
pela superpotência norte-americana. Por Kremlin, o qual intenta mudar o sistema de
óbvio, a mera referência à possibilidade de segurança europeu e transatlântico. Parece
utilização de armas nucleares 23 se configura haver mais do que a Ucrânia em jogo.
em elemento de mais alta tensão na crise ora
apreciada. 5. Conclusão
Da mesma forma, a atual dependência
Expor conclusões definitivas sobre um
da importação de energia da Rússia (gás e
conflito armado em curso, por certo, seria
23
A possibilidade do uso de armamento nuclear tático, por
parte da Rússia, dentro do contexto da manobra estratégica de
muito mais do que apenas tola pretensão,
“escalar para desescalar” o conflito, é acompanhada com seria imprudente tolice. As ideias
muita atenção pelas estruturas de Inteligência ocidentais.

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


43

apresentadas nesse ensaio buscaram jogar reiteradamente decantado para justificar a


luzes sobre o processo evolutivo do invasão militar russa.
fenômeno mais complexo do relacionamento Em um futuro próximo, são remotas as
humano: a guerra. Por suas características perspectivas de a Rússia se tornar um
particulares, essa análise demanda acurado parceiro construtivo e cooperativo para os
acompanhamento, cujo produto mais governos ocidentais. A reversão desse cenário
cobiçado talvez seja a apresentação de exigirá esforços de eficácia pouco crível,
ferramentas úteis para a tomada de decisão pressuposto esse sustentado pela lícita leitura
(estatal) em alto nível, materializada por meio de que os objetivos estratégicos, os valores e
de políticas e estratégias efetivas e eficazes. a compreensão das relações interestatais do
O enquadramento da Federação Russa país euroasiático diferem, irrevogavelmente,
como um Estado desafiador à ordem dos do Ocidente. A ferida aberta pela guerra
internacional liberal liderada pelos EUA, na Ucrânia deverá levar muito tempo para
abordado à luz da política externa da Era cicatrizar, levando a crer em uma longa
Putin, leva-nos a concluir que a permanência do afastamento entre os entes
autopercepção de grande potência, sustentada políticos.
não só pelos recursos de poder duro, mas No seio do Velho Continente, o
principalmente por valores imateriais reavivamento forçado das preocupações
associados a uma história carregada de diretas com questões de defesa é notório.
complexidade, continuará a nortear as ações Enquanto os mais antigos revivem as agruras
externas da Rússia, pelo menos enquanto de uma guerra em solo europeu, as gerações
estiver sob o comando de Vladimir Putin. mais novas estão aprendendo a compreender
O ideal de resgatar a imagem do país que as r.i. nem sempre se desenrolam
como uma grande nação manter-se-á norteadas por agendas estranhas à realpolitik.
associado à política de estabelecimento de Disputas de poder e questões geopolíticas (e
áreas de influência no espaço pós-soviético – geoestratégicas) voltaram ao topo da agenda
seu exterior próximo. É nesse contexto que se política europeia, com prováveis
posiciona a Ucrânia, cuja importância transbordamentos para o restante do Planeta.
econômica e estratégica (para a defesa do A arquitetura de segurança europeia
território russo) é indelevelmente associada a está em transformação. O incerto desfecho da
fatores históricos que, à luz de interpretação invasão militar russa na Ucrânia, todavia, não
própria, classificam-na como integrante do impede que implicações mais marcantes para
chamado “povo trino russo”, definidor de um o futuro do sistema internacional possam ser
eventual “futuro indissociável”, argumento evidenciadas. Nessa perspectiva, como mero

A Guerra na Ucrânia e arquitetura de segurança global Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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exercício intelectual, a inferência a seguir se classificada como um movimento tectônico,


baseia em tendências julgadas pertinentes: na hodierna política internacional, com
incrementos nos investimentos em defesa; potencial para agir sobre a remodelação da
mudanças de paradigma quanto a políticas de arquitetura global de segurança.
neutralidade; revisão de cláusulas de acordos
internacionais que regulam a utilização de
armamentos; revisão de estratégias nacionais Referências
de segurança; incremento da autodefesa
ALLISON, G. The New Spheres of Influence. Sharing
europeia; robustecimento das capacidades da the Globe With Other Great Powers. Foreign Affairs
Magazine, New York, volume 99, n. 2 , Mar-Abr 2020.
OTAN; reordenamento de políticas e modelos Disponível em:
https://www.foreignaffairs.com/articles/united-
de aliança; aceleração da busca por states/2020-02-10/new-spheres-influence. Acesso em:
29 mar. 2022.
autonomia energética; dissociação de cadeias
produtivas; estabelecimento de dilema de BRANDS, H. Don’t Let Great Powers Carve Up the
World. Spheres of Influence Are Unnecessary and
segurança; e permanência de incertezas Dangerous. Foreign Affairs Magazine, New York, 20
de abril de 2020. Disponível em
quanto à relevância das organizações https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2020-04-
20/dont-let-great-powers-carve-world. Acesso em: 29
multilaterais. Dessa feita, como sempre mar. 2022.
ocorreu ao longo da História, as questões CHANGING ALLIANCE STRUCTURES. Research
levantadas constituir-se-ão em ameaças e/ou paper, 22 Dez 2021. International Institute for Strategic
Studies (IISS). Disponível em https://www.iiss.org/-
oportunidades para os Estados, corporações e /media/files/research-papers/2021/alliances-
report.pdf?la=en&hash=75DD36ECCE2C8396E0A0B
indivíduos. Portanto, o estabelecimento de 163. Acesso em: 24 mar. 2022.
estratégias adequadas far-se-á, cada vez mais, LEGVOLD, R. Russian Foreign Policy in the 21st
Century and the Shadow of the Past. New York:
necessário. Columbia University Press, 2007.
A recente aproximação estratégica entre
WALT, S. The West Is Sleepwalking Into War in
Rússia e China, ainda não muito clara, Ukraine. It’s not easy to make sense of how the United
States and Europe are responding to Russia’s
acrescenta muita complexidade ao tabuleiro aggression. Foreign Policy Magazine, Washington, 23
de fevereiro de 2022. Disponível em
euroasiático, com prováveis repercussões https://foreignpolicy.com/2022/02/23/united-states-
europe-war-russia-ukraine-sleepwalking/. Acesso em:
sobre o ordenamento internacional vigente. A
26 mar. 2022.
associação entre os dois grandes Estados
desafiadores tende a indicar transformações
sistêmicas relevantes, que demandará reações
por parte do establishment. Nesse contexto, é
possível inferir que um dos eventos militares
mais significativos desde a II GM, a invasão
russa ao território da Ucrânia pode ser

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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Sylvio Pessoa da Silva


Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022
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Na guerra, a verdade é a primeira vítima. (Ésquilo)

1. Introdução
A evolução nas comunicações histórico de eventos informacionais. Na

começou a refletir na sociedade desde o sequência, será abordada a dimensão

surgimento da imprensa e do telégrafo, mas informacional nos conflitos, acompanhada de

foi a invenção de Marconi que alcançou uma evolução tecnológica. Em seguida, serão

amplitude de massa. O rádio não demandava abordados os aspectos da ferramenta

alfabetização, nem manutenção, era de preço informacional para a compreensão da

acessível, tinha grande durabilidade e passou aplicabilidade e dos resultados da guerra

a desafiar as distâncias geográficas. informacional. Por fim, será analisada a

Com o tempo, outros meios foram dimensão da guerra informacional aplicada no

incorporados ao cotidiano informacional, conflito entre Rússia e Ucrânia.

institucional e pessoal, no ambiente público e


no privado. Da mesma forma, o campo de 2. Guerra informacional:
batalha passou a ser, cada vez mais, um
antecedentes
ambiente onde a aplicação da informação Para contextualizar a dimensão
estava atrelada às operações, seja para informacional na guerra atual, faremos um
divulgação, seja para influenciar ou para breve histórico de seu uso durante conflitos
modelar determinado objetivo. armados, iniciando pelo caso brasileiro.
Nesse escopo, a importância adquirida No século XX, as notícias passaram a
pelo marketing, principalmente, após os anos ser difundidas mais rapidamente e para um
1960 e 1970, ajudou na construção de ideias, maior número de pessoas. No Brasil 1 , o
rotinas e ferramentas informacionais. Naquele Repórter Esso iniciou suas atividades em
momento, a produção industrial passava a 1941 e passou a informar, pelo rádio e pela
superar a demanda, o que despertou a
1
Segundo Gomes (2008), o primeiro jornal brasileiro foi o
necessidade de se criar e/ou de se estimular Correio Braziliense, de Hipólito José da Costa, editado em
Londres entre 1808 e 1822. Contudo, foi durante a Guerra do
novos consumidores e novos mercados, assim Paraguai (1864-1870) que a imprensa inovou com imagens,
em função da tecnologia que chegava ao País. Na
como de se moldar os desejos de compra. oportunidade, jornalistas brasileiros iniciaram o que
conhecemos como cobertura de guerra. Entre eles, destacou-
Antes de iniciar a discussão do papel se Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay, o Visconde
de Taunay, cuja obra Retirada da Laguna deixou um relato
da dimensão informacional na guerra da importante de parte do conflito. O Brasil teve, ainda, outro
fato de relevância informacional no final do século XIX. A
Ucrânia, será apresentado um breve insurreição de Canudos foi relatada por Cunha (1968), tendo
o escritor deixado como legado mais do que informações
sobre o conflito, mas uma verdadeira obra literária que
analisa aspectos da Terra, do Homem e da Luta.

Guerra Informacional no campo de batalha Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


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televisão, o que ocorria na II Guerra Mundial para ajudar as futuras gerações a entenderem
(1939 – 1945), até o fim do conflito2, assim aquele momento4.
como muitos outros fatos da segunda metade No decorrer da Guerra do Vietnã, mais
do século XX, em suas edições alguns fatos se destacaram. O conflito
extraordinárias, até 1968. avançou na direção da descentralização da
“A Testemunha Ocular da História”, produção e da difusão das informações,
modelo jornalístico trazido dos EUA, levando a guerra para “dentro” das
produzido e supervisionado por empresas residências dos norte-americanos. A “primeira
norte-americanas, estreou em 28 de agosto de guerra televisionada” impactou os lares
1941, passando a noticiar fatos como o estadunidenses e ajudou a minar o apoio ao
bombardeio japonês à Base de Pearl Harbour conflito, bem como auxiliou os vietcongues
e o início da Guerra da Coreia. O Repórter no seu esforço de guerra5.
Esso foi o principal meio de difusão dos Em um outro contexto, “Depois do
acontecimentos da II Grande Guerra e dos transistor e dos cassetes, cronologicamente, o
conflitos seguintes. Modelo difundido em mundo do Islã alcançou seu terceiro avanço
outros 15 países do continente, com notícias no domínio das mídias, pondo fim ao quase
oriundas dos Estados Unidos, por meio da monopólio que os norte-americanos exerciam
United Press Association3. via CNN, sobre o terreno da informação”
Além da cobertura televisiva e (FERRO, 2008, p. 48). A estação de televisão
radiofônica, durante a II Guerra Mundial, AL-JAZEERA, a partir de então, passava a
correspondentes de guerra acompanharam a transmitir do Catar uma visão particular do
Força Expedicionária Brasileira (FEB). Tal mundo árabe, rivalizando com as opiniões
fato ajudou na montagem da historiografia da ocidentais.
FEB com vídeos, fotografias, relatos, Dessa forma, percebe-se que a
experiências, transmissões etc. Nesse infraestrutura voltada para a informação
importante papel, a British Broadcasting passou a ser utilizada também para veicular
Corporation (BBC) foi um dos principais informações de diferentes origens. Portanto, o
vetores dessa difusão, deixando um legado conflito informacional passou a ocupar espaço
no cotidiano das pessoas, influenciando as
2
Disponível em: diferentes visões de mundo.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-
nacional/acervo/geral/audio/2018-12/historia-hoje-ultima-
4
transmissao-do-reporter-esso-no-radio-completa-50-anos/. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
Acesso em: 7 de mar. 2022. 43385807. Acesso em: 7 de mar. 2022.
3 5
Conforme artigo “40 Anos Sem o Repórter Esso”, de autoria Disponível em:
de Luciano Klöckner (s.d.). Disponível em https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/terceira-
http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros- revolucao-
nacionais/6o-encontro-2008- industrial.htm#:~:text=A%20principal%20caracter%C3%AD
1/40%20ANOS%20SEM%20O%20REPORTER%20ESSO.p stica%20dessa%20fase,e%20outras%20tecnologias%20jamai
df. Acesso em: 7 mar. 2022. s%20vistas. Acesso em: 7 mar. 2022.

Sylvio Pessoa da Silva


Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022
48

Assim, a segunda metade do século A partir de então, observou-se, de


XX assistiu, ainda, ao aparecimento da forma mais perceptível, o incremento da
televisão, do marketing de massa e da rede quantidade e dos questionamentos quanto à
mundial de computadores. A “Terceira qualidade das informações, cujo monopólio
Onda” 6 (TOFFLER, 1980) se materializou foi sendo quebrado por meio das tecnologias
por meio da Terceira Revolução Industrial 7 , cada vez mais acessíveis a qualquer
com novos meios de comunicação e elevada instituição ou pessoa.
capacidade produtiva. Essa nova dinâmica Esse fenômeno foi bem identificado
alterou a forma de se comunicar, a quantidade pelo sociólogo Manuel Castells, ao apresentar
das informações difundidas e as relações de o surgimento da sociedade baseada em redes,
“espaço” e de “tempo” nas comunicações, convivendo com maior conteúdo
influenciando a globalização nos diversos informacional e tendo a internet como a
segmentos sociais. principal ferramenta para a inserção nesse
Por fim, como evento mais próximo, novo mundo. A influência das tecnologias de
destaca-se o uso da dimensão informacional informação, segundo o autor, gerou a
no contexto da “Guerra ao Terror” 8 . O “sociedade informacional”, permitindo
relatório da Central de Inteligência Americana interações à distância e em tempo real10.
(CIA), apontando existência de armas de
9
destruição de massa no Iraque e ações 2.1. A dimensão informacional
realizadas sem a aprovação da Organização como ferramenta da guerra
das Nações Unidas (ONU) e sem a Como exposto anteriormente, a
legitimidade do direito internacional, utilização da dimensão informacional como
demonstraram como as informações podem “arma de guerra” não é uma novidade. Ao
ser conduzidas com inconformidades, por longo do século XX, especialistas em
meios dos Estados, para a consecução de estratégia, como Liddell Hart (1895-1970),
objetivos, nem sempre, construtivos. por exemplo, preconizavam a “ação indireta”
6
Título do livro escrito por Alvin Toffler, em 1980,
como a melhor forma de concepção
abordando características da nova sociedade que se
descortinava.
estratégica, seja no âmbito da estratégia
7
Disponível em:
https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/terceira-
nacional seja no da estratégia militar
revolucao-
industrial.htm#:~:text=A%20principal%20caracter%C3%Ad
(BRASIL, 2020).
stica%20dessa%20fase,e%20outras%20tecnologias%20jamai
s%20vistas. Acesso em: 7 mar. 2022.
8
Conceito apresentado após os ataques de 11 de Setembro de
2001, pelo presidente George W. Bush, como estratégia 10
militar mundial para o combate ao terrorismo, caracterizado Disponível em:
pela invasão de países como Afeganistão e Iraque. https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2021/02/4-
9
Disponível em: pontos-para-entender-o-pensamento-do-sociologo-manuel-
https://www.aljazeera.com/news/2011/9/11/colin-powell- castells.html. Acesso em: 10 abr. 2022.
regrets-iraq-war-intelligence. Acesso em: 7 mar. 2022.

Guerra Informacional no campo de batalha Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


49

Os avanços tecnológicos passaram a - possui formidável arsenal para os


permitir um novo estágio na descentralização, Estados;
na produção e na distribuição das - define-se como ameaça sofisticada e
informações. Desse contexto, pode-se afirmar subestimada à Segurança Nacional;
que todo cidadão comum passou a competir - acelera e melhora o processo decisório;
com organizações estatais e não estatais que - utiliza as naturezas ampla e comercial da
controlavam o fluxo midiático. A partir de internet;
então, para cada evento, há um “plantonista” - realiza propaganda e modela a opinião
com um smartfone, reportando quase tudo o pública, a fim de mudar percepções;
que acontece, assim como há um grupo que - normalmente, é livre do controle
recebe a mensagem e a repassa em progressão governamental;
aritmética ou geométrica. - permite a criação de perfis falsos;
Segundo Vann (2020), embora a - atinge grande extensão (amplitude)
propaganda sempre tenha existido, hoje ela se devido às mídias sociais;
apresenta de maneira muito mais sofisticada - pode ser disseminada de forma diferente
como ameaça à segurança nacional. Segundo e em diferentes plataformas;
o autor: - as plataformas são substituíveis com

Detailing this threat across civil society relativa facilidade;


is difficult because it is extremely hard to
define and harder still to provide a
- explora vulnerabilidades dos conectados;
strategic perspective that resonates with - utiliza companhias “big data” para
the public. To simplistically frame the
nature of modern propaganda, a brief coletas e avaliações;
scene-setter is required to convey why
modern propaganda needs to be - não segue padrões éticos;
appreciated as a critical national
security concern. What we may fail to - não é uma arma cinética;
appreciate, however, is the elevated role
and importance that modern propaganda
- faz parte dos conflitos de 5ª geração; e
techniques will play in defining great - objetiva o reconhecimento e a modelagem
power competition and setting the
conditions for future conflict. (Vann, final do Estado.
2020, p. 7)
Segundo o autor (VANN, 2020), essa
Importante ferramenta dos conflitos
ferramenta permite: explorar a inocência;
modernos, a guerra híbrida aplicada por meio
criar falsas narrativas; semear discórdias;
da propaganda, apresenta, segundo o autor,
inflamar emoções; criar desarmonia;
características importantes, dentre as quais
influenciar opinião; distrair a atenção;
merecem destaque:
permitir o anonimato; e modelar fases e

- apresenta capacidade, praticamente, preparar o campo de batalha, conforme

incomensurável; figura 1.

Sylvio Pessoa da Silva


Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022
50

Figura 1: Características da Guerra Informacional

Fonte: os autores.

O contexto mais recente parece estar Tal contexto parece confirmar as


repleto de exemplos relacionados à dimensão ideias de Edward Bernays, em The
informacional da guerra. Koribko (2015) Engineering of Consent12, de 1947, segundo o
insere o domínio informacional nas qual “um pequeno número de pessoas, em
“revoluções coloridas”, “com forte ênfase em grande parte invisíveis, influencia e orienta a
operações psicológicas” a fim de disseminar forma de pensar das massas, e que essa é a
“a mensagem”, ou seja, determinada única maneira de manter as aparências de
“informação” no seio da sociedade. Assim, ordem em uma sociedade do contrário
teria sido com a “Primavera Árabe” e com a caótica” (KORIBKO, 2015, p. 34).
11
“desestabilização da Síria e do Iraque” .

componentes que darão origem à teoria da Guerra Híbrida


11
O autor insere as “revoluções coloridas” no contexto da […]”.
12
“guerra híbrida, o “caos administrado”. “Se consideradas em Disponível em:
conjunto, em uma dupla abordagem, as Revoluções Coloridas http://www.fraw.org.uk/data/politics/bernays_1947.pdf
e a Guerra Não Convencional representam os dois Acesso em: 14 mar. 2022.

Guerra Informacional no campo de batalha Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


51

2.2. A dimensão informacional no sete vezes; e a palavra russófilo (Russophile)


conflito russo-ucraniano ocorre uma vez. A Ucrânia (Ukraine) é

Pode-se analisar que o atual conflito destacada em dez oportunidades e o que é

entre a Rússia e a Ucrânia tem sido escalado inerente à Ucrânia (Ukraine´s), apenas, duas

há vários anos, com a participação dos vezes.

Estados Unidos e da Europa. A Política de


Figura 2: per Concordiam
Portas Abertas13, da Organização do Tratado
do Atlântico-Norte (OTAN), baseada no
art.10 do Tratado do Atlântico Norte, de
1949, pode ser considerada um dos principais
fatores que contribuíram para a guerra.
A guerra informacional, em particular,
tem sido aplicada em intensidade por agentes
do Estado e não estatais, com acusações
múltiplas, envolvendo os beligerantes e a
OTAN, bem como a ONU. A intensidade do
conflito informacional tem sido acompanhada
pela quantidade de “informações”, oriundas
das mais diversas origens, praticamente,
impedindo saber o que é informação, má
informação ou desinformação.
A capa da revista per Concordiam 14
Fonte: https://www.marshallcenter.org/de/node/1524
(2020) apresentou o seguinte título: “Strategic
Communications: Winning the Information
Como parte do conteúdo do periódico
War”, conforme figura 2. Na revista, o
citado, Roloff e Dunay (2020) destacam que a
substantivo Rússia (Russia) aparece 129
vezes, em 68 páginas, somado a 153 usos do “Rússia tem obtido vantagem de sua
habilidade para projetar uma mensagem
adjetivo “russo” (Russian); a qualificação unificada, do compromisso de liberdade
de manifestação e da mídia, e se
inerente à Rússia ocorre 59 vezes (Russia’s); beneficiado da assimetria da abertura dos
mercados de mídia ocidentais versus o
a referência à nacionalidade (Russians) ocorre apertado controle sobre a mídia russa”
15

(tradução nossa).
13
Disponível em:
https://www.nato.int/cps/en/natolive/topics_49212.htm.
Acesso em: 15 mar. 2022. 15
Texto original em inglês “Russia [...] has taken advantage
14
Revista trimestral do Marshall Center sobre questões de of its ability to project a unified message, of the West’s
segurança e defesa europeia e euro-asiática. Disponível em: commitment to freedom of speech and of the media, and
https://www.marshallcenter.org/de/node/1524. Acesso em: benefited from the asymmetry of open Western media
15 mar. 2022. markets versus the tightly controlled Russian one.”

Sylvio Pessoa da Silva


Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022
52

Segundo os autores, o Conselho praticamente, consolidou-se um pensamento,


Europeu estabeleceu a Força Tarefa uma “fotografia” do conflito e dos
Estratégica de Comunicações do Serviço de personagens. Cada parte está tentando
Atuação Externo à Europa16 (tradução nossa), gerenciar o caos informacional.
tendo como um dos três objetivos a Na Europa e em algumas
“transmissão e o direcionamento da plataformas/canais de acesso mundial, houve
desinformação russa com ênfase em crises na considerável bloqueio ou restrições às mídias
e no entorno da Ucrânia”.14Ainda, consideram russas e acessos a partir daqueles países. Na
a influência russa presente em Estados da Rússia, as “big techs” podem ser retaliadas
Ucrânia ao Tajiquistão. por terem tomado partido e terem permitido
Por outro lado, Koribko (2015) ou estimulado extremismos17, algo que pode
considera que os EUA buscam gerar impactar a credibilidade das empresas
“consenso favorável” à sua política externa responsáveis por esses canais. Ainda, algumas
em “questões controversas”, moldando o mídias independentes estariam sendo
ambiente social. Esse pode ser um dos bloqueadas no país, segundo a Gazeta
objetivos na Ucrânia: substituição da Brasil18.
influência da Rússia, atuando de forma No Brasil, as mídias Russia Today 19
indireta. O que seria mais amplo do que a (RT) e Sputnik 20 não foram bloqueadas na
mudança de regime (regime change). internet, permitindo acesso a um ponto de
Assim, muito antes do atual conflito vista diferente. Na primeira, infográficos e
cinético, já se conformavam, entre os demais notícias atualizam os acontecimentos
beligerantes, ações de guerra no campo do conflito segundo outra visão.
informacional, na busca de modelar o A dimensão informacional da guerra
ambiente e de conquistar corações e mentes. se revela maior do que o conflito no terreno,
A partir de 24 de fevereiro de 2022, o pelo menos em amplitude. Segundo a CNN
conflito informacional atingiu novo patamar. Brasil, “China enfrentará consequências se
Às análises anteriores à guerra, somaram-se ajudar Rússia a evitar sanções sobre Ucrânia,
as imagens e os vídeos dos smartphones, as
coberturas jornalísticas, as notícias por 17
Disponível em:
telefonemas, as imagens de satélites, os https://www.aljazeera.com/news/2022/3/11/facebook-allows-
posts-urging-violence-against-russian-invaders. Acesso em:
mapas, as sanções etc. 15 mar. 2022.
18
Disponível em:
Cada um desses elementos tem sido https://gazetabrasil.com.br/mundo/2022/03/03/putin-ordena-
bloqueio-de-midias-russas-independentes/. Acesso em: 14
explorado em demasia, mas, na mídia, mar. 2022.
19
Disponível em: https://www.rt.com/. Acesso em: 14 mar.
2022.
16 20
Texto original em inglês “StratCom Task Force of the Disponível em: https://br.sputniknews.com/. Acesso em:
European External Action Service.” 14 mar. 2022.

Guerra Informacional no campo de batalha Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


53

dizem EUA” 21 . Outrossim, de acordo com “Soldado russo faz selfie enquanto mísseis
parte da imprensa norte-americana, a “Rússia são disparados na Ucrânia”25 e “Obsessão de
pediu ajuda militar da China para a guerra na soldado por selfies pode provar operações da
Ucrânia”22. Por outro lado, a “China responde Rússia na Ucrânia” caracterizam esse novo
à ameaça de sanções dos Estados Unidos”23 e comportamento social levado para a guerra.
diz “que EUA criam “medo e pânico” em Não basta, somente, a disciplina de luzes e
sanções à Rússia” 24 . Essa última declaração ruídos, pois a atual realidade impõe
antecede, em um dia, o início da invasão à “disciplina de luzes, ruídos e mídia social”26.
Ucrânia. A BBC faz uma abordagem “as
Dessa forma, suplantando a via imagens enganosas que viralizaram [nas
diplomática de comunicação entre Estados, os mídias sociais] após operação russa24”. 27

líderes políticos das grandes potências Todavia, imagens de outros conflitos tem sido
utilizam a mídia para tentar inibir ações utilizadas pela mídia tradicional. “Certos
contrárias a seus interesses e mostrar aos veículos da mídia e até mesmo órgãos oficiais
públicos interno e externo sua capacidade de de Estado têm usado gameplay de alguns
resposta e ingerência global. Infere-se, jogos na cobertura da guerra na Ucrânia,
também, que essa guerra informacional pode como se as imagens estivessem representando
estar sendo usada para justificar problemas uma cena real”.28
internos causados pelo inimigo externo. Ainda, a participação do empresário
Saindo das esferas dos Estados, das Elon Musk, ao apoiar o Governo ucraniano,
empresas e dos estudiosos, não se pode merece destaque e gera discussões. O apoio
desconsiderar o valor do indivíduo na para restabelecer a internet por meio de links
“cobertura” do conflito. O fácil acesso a satelitais mostra a capacidade adquirida por
determinadas tecnologias, como já foi empresas, que permite influenciar em um
explicado, gera uma profusão de imagens e conflito. Além de apoiar a manutenção do
mensagens incontroláveis. As matérias acesso à internet desde regiões remotas, o
Starlink estaria sendo utilizado para
21
Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/china-enfrentara-
25
consequencias-se-ajudar-russia-a-evitar-sancoes-sobre- Disponível em:
ucrania-dizem-eua/ Acesso em: 15 mar. 2022. https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2022/02/4988
22
Disponível em: 556-soldado-russo-faz-selfie-enquanto-misseis-sao-
https://jovempan.com.br/noticias/mundo/russia-pediu-ajuda- disparados-na-ucrania-veja.html. Acesso em: 15 mar. 2022.
26
militar-da-china-para-guerra-na-ucrania-acusa-imprensa-dos- Novo procedimento para o campo de batalha. Termo
eua.html. Acesso em: 15 mar. 2022. sugerido por estes autores.
23 27
Disponível em: https://www.frontliner.com.br/china- Disponível em:
responde-a-ameaca-de-sancoes-dos-estados-unidos/. Acesso https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60517791.
em: 15 mar. 2022. Acesso em: 15 mar. 2022.
24 28
Disponível em: Disponível em:
https://www.poder360.com.br/internacional/china-diz-que- https://www.tecmundo.com.br/voxel/234560-noticias-falsas-
eua-criam-medo-e-panico-em-sancoes-a-russia/. Acesso em: guerra-ucrania-usando-videos-jogos.htm. Acesso em: 15 mar.
15 mar. 2022. 2022.

Sylvio Pessoa da Silva


Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022
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propósitos militares ao identificar alvos Nesse contexto, a guerra entre russos e


inimigos, passando a ser considerado uma ucranianos representa, em parte, até o
29
interferência nas operações russas . presente, a caracterização da sociedade
contemporânea diante de um conflito. É
3. Conclusão
importante destacar que, no decorrer das
A compilação de ideias, nesse
pesquisas, sob a “névoa da guerra”, parecem
trabalho, teve início com a apresentação de
existir dois conflitos distintos, dependendo da
alguns dos antecedentes do atual estágio. No
fonte consultada. Como consequência, a
passado, a dimensão informacional dos
Rússia poderá ganhar a guerra na dimensão
conflitos era, eminentemente, centralizada e
física e perdê-la na dimensão informacional,
sistematizada. Essas características foram
sobretudo, no “Ocidente”, em função da
contextualizadas por meio de alguns fatos
opinião pública desfavorável àquele país.
destacados da história nacional e mundial.
Em termos doutrinários, sugere-se
Na sequência, fez-se importante
aqui a proposta de inclusão da “disciplina de
mostrar, sucintamente, como a dimensão
imagens” como comportamento em operações
informacional adquiriu importância social e
de segurança e de defesa.
político-diplomática, notadamente, pela
Por fim, o entendimento adquirido
tecnologia e, consequentemente, pela
nesse estudo permite concluir que a dimensão
capilaridade que começavam a ganhar
informacional, no atual campo de batalha,
relevância. A mídia internacional, como a
indica a existência de três segmentos
BBC e a United Press Association, passava a
participativos, conforme a figura 3 e
ter um papel destacado na dimensão
explicações a seguir.
informacional.
 o Estatal, com a participação do
Assim, a ferramenta informacional foi
governo, dos militares e da diplomacia;
ganhando robustez e descentralização social.
 o empresarial, definido pelas “big
A produção e os objetivos da informação
techs” e pela mídia tradicional; e
atingiram novos patamares em todos os
o societário, abrangendo as
campos do poder – político, econômico,
comunidades epistêmicas e indivíduos que
social e tecnológico, descortinando uma nova
empregam redes sociais.
sociedade, com foco na opinião pública e
impulsionada pelo surgimento das redes
sociais.

29
Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-papel-dos-
sat%C3%A9lites-de-elon-musk-na-defesa-da-
ucr%C3%A2nia/a-61272297 Acesso em: 10 abr. 2022.

Guerra Informacional no campo de batalha Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


55

Figura 3: Segmentos participativos da Dimensão Informacional

Fonte: os autores.

Referências

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MF-03.106). 5 ed. Brasília: Estado-Maior do Exército,
2020.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 27 ed. Rio de Janeiro:


Editora Paulo de Azevedo LTDA. 1968.

FERRO, Marc. O Choque do Islã – séculos XVIII- XXI.


Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2008.

KORYBKO, Andrew. Guerra Híbrida das Revoluções


Coloridas aos Golpes. Moscou: Expressão Popular, 2015.

VANN, Joseph. PER CONCORDIAM, Journal of


European Security end Defense Issues. VOLUME 10,
ISSUE 2, 2020.

ROLOFF, Ralf; DUNAY, Pál. PER CONCORDIAM,


Journal of European Security end Defense Issues.
VOLUME 10, ISSUE 2, 2020.

TOFFLER, Alvin. Terceira Onda. 4. ed. Rio de Janeiro:


Record, 1980.

Sylvio Pessoa da Silva


Paulo Roberto da Silva Gomes Filho Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022
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Guerra Informacional no campo de batalha Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


57
58

1. Introdução 2010. Não obstante, em junho de 2021, na

A Organização do Tratado do Atlântico reunião de Chefes de Estado e de Governo

Norte (OTAN) foi fundada em 1949 e, com a dos países da OTAN, não houve a aprovação

adesão da Macedônia do Norte, em março de de um novo CE, sendo decidida a adoção da

2020, reúne 30 países. A Aliança concentra agenda “NATO 2030” (NATO, 2021), que

pouco mais de 55% dos gastos militares do consiste em nove propostas de atuação, entre

mundo e conta com um efetivo de cerca de elas a elaboração de um novo CE, a ser

3,25 milhões de militares da ativa (SIPRI, aprovado na próxima reunião de líderes em

2021), tendo definido, em 2010, três tarefas Madri, em junho de 2022.

essenciais: defesa coletiva, gerenciamento de Atualmente, conforme a própria

crise e cooperação em segurança (NATO, declaração de líderes na última reunião de

2010). cúpula, em 24 de março de 2022, a invasão

Ao longo de mais de sete décadas, a russa à Ucrânia representa o maior desafio à

Aliança passou por diferentes desafios e Aliança desde o fim da Guerra Fria (NATO,

situações capazes de afetarem diretamente sua 2022). Assim, o presente artigo busca

coesão e propósito: a crise em Suez em 1956; apresentar uma perspectiva da evolução da

a saída da França da sua estrutura de comando Aliança a partir do fim da Guerra Fria e da

militar em 1966; e o próprio fim da Guerra sua conjuntura político-estratégica até o

Fria. Mais recentemente, a França buscava presente momento, como forma de auxiliar a

liderar a criação de uma força militar melhor compreender a presente crise na

europeia, o que, por outro lado, encontrava Europa.

resistência da própria Alemanha, como visto Para tanto, o estudo foi dividido em

na declaração da Ministra da Defesa alemã na três seções. A primeira, composta de síntese

Führungsakademie, em 2021, que ratificava a da evolução da OTAN, por meio de um

importância da Aliança e dos Estados Unidos estudo das adesões dos novos membros, de

da América na defesa da Europa seus Conceitos Estratégicos e de suas

(ALEMANHA, 2021). operações até 2010. A segunda e principal

Em novembro de 2020, foi entregue o seção contém análise sobre a OTAN a partir

estudo “OTAN 2030: Unidos por uma nova 2010, quando se publicou o CE ainda em

Era” (NATO, 2020), encomendado pela vigor, apresentando-se uma síntese da

própria Aliança a um grupo de especialistas estrutura estratégica e operacional, das suas

independentes, como forma de auxiliar na operações nesse período, das suas ligações

elaboração de um novo Conceito Estratégico com outras organizações e dos principais

(CE), uma vez que o ainda em vigor é de fatos que impactaram os últimos 12 anos. Por

Gustavo Monteiro Muniz Costa Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


59

fim, apresentam-se: o estudo “OTAN 2030: anos depois, outros sete países aderiram à
Unidos por uma nova Era”, de 2022; e a Aliança, sendo eles: Bulgária; Romênia;
agenda “NATO 2030”, aprovada em 2021, Eslováquia; os três países bálticos: Estônia,
concebidos antes da invasão russa à Ucrânia e Letônia e Lituânia; e Eslovênia. Em 2009,
que visavam a orientar o seu novo Conceito aderiram Albânia e Croácia,
Estratégico, previsto para entrar em vigor complementando-se a atual conformação com
neste ano. a adesão de Montenegro, em 2017, e da
Macedônia do Norte, em 2020 (NATO,
2. Desenvolvimento 2021). Além da própria Ucrânia, a OTAN já
2.1. Síntese da evolução da havia designado a Geórgia como seu futuro
Aliança membro (NATO, 2008)1.
Em 1949, a OTAN foi criada pelo É possível, portanto, observar que a
Tratado do Atlântico Norte, conhecido como expansão recente da OTAN aconteceu por
Tratado de Washington, tendo a adesão fases. Na primeira, com a adesão dos países
imediata de 12 países: Bélgica, Canadá, fronteiriços à Alemanha e à Áustria (que não
Dinamarca, Estados Unidos da América integra à OTAN), estendendo a linha de
(EUA), França, Holanda, Islândia Itália, defesa da Aliança às fronteiras com a Belarus
Luxemburgo, Noruega, Portugal e Reino e a Ucrânia, seguindo com o isolamento do
Unido (NATO, 1949). Na década seguinte, enclave russo no Mar Báltico, Kaliningrado, e
tornaram-se membros: Grécia, Turquia e finalizando em torno da Sérvia e da Bósnia-
Alemanha. Somente em 1982, ocorreu a Herzegovina, o que enterrou qualquer futura
adesão do último país da Europa Ocidental, a aspiração de reconstrução da antiga
Espanha. Iugoslávia, minimizando os riscos de novas
Alguns países europeus ocidentais que guerras nos Bálcãs.
integram a União Europeia (UE), como Os 11 membros mais novos da Aliança,
Suécia, Finlândia, Áustria e Irlanda, que aderiram a partir do ano 2000, investiram,
permanecem fora da Aliança. Os 14 membros em 2019, cerca de US$ 13 bilhões em Defesa
seguintes da OTAN eram integrantes do e dispõem de aproximadamente 170 mil
antigo Pacto de Varsóvia, repúblicas da militares da ativa, representando,
extinta União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas (URSS) ou regiões da ex- 1
A Geórgia e a Ucrânia foram designadas como futuros
membros da OTAN, na Súmula da Reunião de Cúpula de
Iugoslávia. A República Tcheca, a Hungria e Bucareste, de abril de 2008 (NATO, 2008), intenção
reforçada no CE 2010. Vale lembrar que, além da invasão
a Polônia foram os primeiros países do Leste russa à Crimeia, à Ucrânia, em fevereiro de 2014 e
atualmente (fevereiro de 2022), a Rússia invadiu a Ossétia do
Europeu a aderirem à OTAN, em 1999. Cinco Sul, na Geórgia, em agosto de 2008, poucos meses após a
Súmula de Bucareste.

Organização do Tratado do Atlântico Norte Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


60

respectivamente, 1,2% dos gastos de todos os Quanto ao Conceito Estratégico (CE),


membros da OTAN e 5,2% do seu efetivo este é o documento oficial da OTAN,
(NATO, 2019). Dessa forma, infere-se que as aprovado pelos Chefes de Estado e de
adesões, a partir de 2000, não tiveram como Governo dos países membros, o qual descreve
objetivo o fortalecimento militar da Aliança, o ambiente de segurança em evolução e
mas sim atender a outros objetivos político- define os objetivos estratégicos da Aliança
estratégicos, tanto dos antigos membros da para os próximos anos. A OTAN adotou, ao
OTAN quanto dos que nela ingressaram. longo de sua história, um total de sete CE,
Nesse quesito, é importante destacar estando o atual em vigor desde 2010. Até
que, dos 14 países que aderiram à OTAN a 1990, durante o período da “Guerra Fria”,
partir de 1990, 11 tornaram-se membros da foram adotados quatro CE, todos com
UE, sendo as exceções Montenegro, Albânia classificação de sigilo.
e Macedônia do Norte, que, muito embora O CE 1991 foi elaborado a partir da
aspirem a ingressar no Bloco, ainda não necessidade de reorganização da Aliança. O
tiveram suas adesões aceitas devido a vetos ambiente estratégico definido nesse Conceito
pontuais de países como a França e Bulgária concentrou-se na retirada das tropas soviéticas
(REUTERS, 2022). Portanto, a expansão da dos países signatários do Pacto de Varsóvia e
OTAN para o Leste Europeu é também na independência de países da URSS. O
consequência de um movimento de documento definiu, ainda, a proliferação de
aproximação desses novos membros em mísseis balísticos e de armas de destruição em
direção à Europa Ocidental. Assim, para se massa como risco potencial, tecendo
candidatarem ao ingresso na Aliança, vários considerações sobre disputas étnicas e
requisitos devem ser atingidos, inclusive, territoriais, na Europa Central e Ocidental, até
reformas políticas e econômicas. Conforme mesmo, com risco à segurança da Aliança.
determina o Plano de Ação para Adesão à Ressalta-se que, antes da implementação
OTAN (MAP) (NATO, 1999), além da desse CE, em novembro de 1991, a Eslovênia
necessidade desses candidatos serem aceitos e a Croácia haviam declarado independência
por unanimidade dos membros, eles não da ex-Iugoslávia, resultando nos primeiros
podem possuir disputas territoriais que não conflitos que se sucederiam nos Bálcãs.
estejam sendo feitas por meios pacíficos, Não obstante, o artigo 41 do CE 1991
requisito não atendido pela Ucrânia desde definia a possibilidade de emprego de tropas
2014, em virtude dos conflitos na região de da OTAN dentro do escopo de missões da
Donbass. Organização das Nações Unidas, o que veio a
ocorrer nos anos seguintes, por meio de

Gustavo Monteiro Muniz Costa Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


61

ataques aéreos da OTAN, em 1994 e 1995, Iugoslávia, que foi rejeitada por grande
em apoio à United Nations Protection Force maioria do CS, incluindo o Brasil (UN, 1999).
(UNPROFOR) (ONU, 1996)2. O resultado da Tal fato, junto com declarações do então
intervenção da OTAN teve influência direta Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, que
para a assinatura do Acordo de Dayton defendeu a operação militar (UNITED
(OSCE, 1995), em dezembro de 1995, NATIONS, 1999), deu respaldo à operação.
encerrando o conflito entre bósnios, croatas e Em junho de 1999, a Iugoslávia aceitou retirar
sérvios, e permitindo a instalação imediata da suas tropas da região e estabelecer uma
missão IFOR da OTAN, sob mandato da missão de paz da OTAN, sob o mandato da
ONU. ONU, em Kosovo4.
Porém, em março de 1999, um mês O CE 1999, aprovado em meio à
antes da aprovação de um novo Conceito operação Allied Force, reforçava as
Estratégico, a OTAN lançou a operação aérea preocupações do CE 1991, com a proliferação
Allied Force, novamente contra a ex- de armas de destruição em massa e a atuação
Iugoslávia, em face dos conflitos em de atores não estatais contra a Aliança.
Kosovo3. Antes das ações da OTAN, a Rússia Porém, passava a definir claramente a
e a China ameaçavam vetar qualquer medida principal mudança de posicionamento
que resultasse no estabelecimento de uma estratégico da OTAN: a possibilidade de
missão da ONU em Kosovo, ensejando uma atuação além da defesa coletiva e do espaço
operação da Aliança, sem mandato do euro-atlântico, com emprego de suas tropas
CS/ONU e sem correspondência ao direito de em missões “não-Artigo 5º”5, dentro de um
legítima defesa, definido no Artigo 51 da contexto global e, inclusive, com o fito de
Carta das Nações Unidas (BRING, 1999). preservar o fluxo de recursos vitais (NATO,
Muito embora essa decisão da OTAN tenha 1999).
gerado discussões à luz das leis Destacam-se, no CE 1999, quatro
internacionais, em 26 de março, dois dias aspectos que, na realidade, são a confirmação
após o início das operações da OTAN, a de decisões tomadas pela OTAN, nos anos
Rússia apresentou uma moção no CS/ONU anteriores: a implantação da Força Tarefa
para o fim imediato das ações contra ex-
4
Um mandato do CS/ONU criou então a United Nation’s
Interim Administration Mission in Kosovo (UNMIK), uma
2
O CS/ONU, em sua resolução 836, de 4 de junho de 1993, missão civil (ONU, 2020), amparando também a missão da
aprovou, em junho de 1993, ataques aéreos, realizados por OTAN Kosovo Force (KFOR), que desdobrou suas primeiras
países individualmente ou por alianças militares, em apoio ao tropas na região dois dias após a decisão do CS/ONU e
mandato da UNPROFOR. A OTAN lançou ataques contra empregou, naquele mesmo ano, cerca de 50.000 militares,
alvos sérvios e bósnios-sérvios em 1994 e 1995 (ONU, incluindo de países não membros da OTAN.
5
1996). O artigo 5º do Tratado de Washington define que um ataque
3
Ao longo de 78 dias, a OTAN realizou cerca de 10.500 armado contra um ou mais membros da Aliança será
ataques aéreos contra posições iugoslavas, incluindo a capital considerado como um ataque contra todos os seus membros
Belgrado (NATO, 2016). (NATO, 1949).

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Conjunta Combinada (CJTF), capaz de ser Observa-se, ainda, a preocupação com


desdobrada e empregada rapidamente fora do o terrorismo como uma ameaça à população
continente europeu; a intenção de fortalecer a dos países membros e à estabilidade mundial,
coordenação de ações de interesse comum essencialmente pelo risco de emprego de
com outras organizações, em especial a UE e armas de destruição em massa. Porém,
a Organização para Cooperação e Segurança interpreta-se que o terrorismo é tido pelo CE
da Europa (OCSE); a busca por diálogos e 2010 como uma ameaça extraterritorial e não
estabelecimento de parcerias pontuais com a prioritária.
Aliança e outros países; e, por fim, a Outro direcionamento estratégico novo,
sinalização da intenção em receber novos no CE 2010, é a respeito da questão ambiental
membros. e climática, a qual é vista não como ameaça,
O CE 2010, por sua vez, ainda em mas sim como fator de preocupação, com
vigor no mínimo até este ano, reforça os potencial para afetar os planejamentos e as
principais aspectos do CE 1999. Destaque-se, operações da OTAN, em face de escassez de
em possibilidade de emprego de tropas onde água e de aumento das necessidades
houver interesse para a segurança dos países energéticas.
membros e de suas populações, reforçando, Portanto, observa-se que, enquanto o
ainda, a menção à NATO Response Force CE 1991 apontava para novos desafios e
(NRF), criada em 2002. necessidade de reorganização da Aliança,
Verifica-se, nesse Conceito, a diante do cenário pós-Guerra Fria, os CE
preocupação com tecnologias emergentes6 e 1999 e 2010 são, essencialmente,
com ataques cibernéticos, inclusive, por parte consolidação de decisões adotadas. Isso
de militares e serviços de Inteligência mostra a adaptação da OTAN a evoluções
estrangeiros. Essa crescente preocupação foi político-estratégicas fora dos Conceitos
ratificada em decorrência dos ataques na Estratégicos, sobretudo, pelos constantes
Estônia, em 2007, que ensejaram a aprovação encontros entre ministros das Relações
da Política de Defesa Cibernética da OTAN e Exteriores e da Defesa e do Conselho do
das ações russas contra a Geórgia em 20087. Atlântico Norte (NAC).

6
Atualmente, a OTAN nomeia essas tecnologias como
Tecnologias Emergentes e Disruptivas (EDTs).
2.2. A OTAN a partir do CE
7
Os ataques cibernéticos contra a Estônia, em 2007, 2010
paralisaram as estruturas econômicas e governamentais do
país por 22 dias e ocorreram, provavelmente, dentro do Entre as missões e operações da
contexto de uma Operação de Informação da Rússia (OTTIS,
2018). Em 2008, na invasão russa à Ossétia do Sul, pela OTAN, as principais, em andamento ou que
primeira vez, observou-se um grande ataque cibernético, sem
que seus autores fossem vinculados a um país, não obstante foram encerradas na última década (NATO,
era possível observar que atuavam em coordenação com a
operação militar terrestre russa (SHAKARIAN, 2011). 2021), são as seguintes:

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 NATO Mission in Iraq (NMI): missão terrorismo. Foi criada em 2016, sucedendo a
“não combatente”, visando ao assessoramento Operation Active Endeavour (OAE), que,
e ao treinamento de forças iraquianas. A NMI por sua vez, foi implantada após os ataques
foi criada em 2018, porém, desde 2004, a do 11 de Setembro, sob o Artigo 5º do
OTAN atua no Iraque com missões afins, que, Tratado de Washington. A OSG atua apenas
inclusive, preveem a ligação com outros com meios e pessoal da OTAN, incluindo
atores no combate ao Estado Islâmico (EI). aviões de Guerra Eletrônica (GE),
Austrália, Finlândia e Suécia possuem submarinos e aviões de patrulhamento
militares para essa missão. marítimo.
 Kosovo Force (KFOR): funciona em  Enhanced Forward Presence (eFP): é
Kosovo, desde 1999, sob o mandato da ONU. uma operação da OTAN desdobrada nos três
Áustria, Finlândia, Suíça, Ucrânia e Moldávia países bálticos e na Polônia, operando
são alguns dos países não membros que plenamente desde 2017, com um efetivo
contribuem atualmente com a missão, com total de cerca de 4.500 militares. Em cada
um total de cerca de 3.500 militares. país, há uma Força Tarefa (FT) comandada
 Resolute Support Mission (RSM): pelos EUA, Reino Unido, Alemanha e
missão “não combatente” no Afeganistão que Canadá. As quatro FT são de valor batalhão
sucedeu, em 2014, a International Security reforçado, porém com efetivos e composição
Assistance Force (ISAF) e foi encerrada em variada, inclusive dos meios de apoio ao
2021. Visava ao treinamento e à capacitação combate. Recentemente, na cúpula de
das forças afegãs e operava sob mandato da líderes, em 24 de março deste ano, em
ONU. Quanto à ISAF, foi desdobrada em Bruxelas, a Aliança afirmou que irá
2001, a fim de combater as forças talibãs e o desdobrar outras quatro Forças Tarefas em
terrorismo, chegando a possuir 130.000 países do Leste Europeu: Bulgária,
militares, de 51 países. Antes de iniciar a Romênia, Hungria e Eslováquia (NATO,
retirada definitiva das tropas em 2021, a 2022).
RSM atuava com cerca de 9.600 militares,  Operation Ocean Shield: missão que
de 36 países, destacando-se, entre os não funcionou entre 2009 e 2016, com uma Área
membros da OTAN, Armênia, Austrália, de Operações que se estendia da costa leste
Azerbaijão, Geórgia e Mongólia, que da África, ao Golfo de Áden e até próximo
forneciam cerca de 1.400 soldados à RSM. ao estreito de Ormuz, visando ao combate à
 Operation Sea Guardian (OSG): pirataria. Essa missão sucedeu as operações
missão com mandato da OTAN, no Mar Allied Provider e Allied Protector.
Mediterrâneo e com o fito de combater o

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 Operation Unified Protector: missão ONU. Um exemplo é a Special Monitoring


da OTAN, sob mandato da ONU, que Mission to Ukraine (SMM), desdobrada ainda
funcionou entre março e outubro de 2011, na em março de 2014, embora não conte com
Líbia. A missão envolveu cerca de 8.000 contingente armado e atue somente com civis
militares, 260 meios aéreos e 20 navais, (OSCE, 2021).
realizando quase 10.000 ataques aéreos contra A UE conduz, atualmente, sete missões
posições militares líbias. militares no mundo, além de outras civis,
Existem, ainda, outras missões e empregando cerca de 2.500 soldados (EU,
operações específicas da OTAN, como de 2021). Outros dez países contribuem com
defesa antiaérea, na Turquia (NATO, 2022), essas operações, representando cerca de 12%
e, especialmente, a de defesa antimísseis na das tropas empregadas. Parte dessas
Romênia, desde 2016, e outra prevista para operações são complementares, ou mesmo
estar em funcionamento na Polônia, ainda ocorrem na sequência às encerradas pela
este ano (NATO, 2019). A OTAN afirma OTAN, como as operações SOPHIA8,
que esse sistema não tem capacidade ATALANTA9, ALTHEA10 e as missões de
ofensiva, porque seus mísseis somente treinamento militar da UE (EUTM)11.
podem ser empregados contra alvos aéreos, Ressalta-se que essas operações militares da
na defesa contra mísseis balísticos (NATO, UE não utilizam as estruturas físicas e de
2022). Por outro lado, a Rússia vê como Comando e Controle da OTAN, muito
ameaça o desdobramento de mísseis no embora a maioria dos meios empregados, o
Leste Europeu, uma vez que esse sistema, pessoal, as capacidades e a interoperabilidade
conhecido como Aegis Ashore, é equipado sejam da Aliança.
com um sistema de lançamento MK 41s, o
8
Em 2015, a União Europeia lançou a Operação SOPHIA,
qual pode ser empregado para o uso de sucedida, em março de 2020, pela Operação IRINI. Enquanto a
principal missão da primeira era combater a imigração ilegal
mísseis ofensivos, como Tomahawk para a Europa, a Operação IRINI atua, principalmente, na
fiscalização do embargo de armas para a Líbia, sob mandato do
(NYTIMES, 2022). CS/ONU. Cabe ressaltar que a empresa francesa Total (TOTAL,
2021) e a italiana ENI (ENI, 2021) exploram recursos
Com a criação da UE e da OSCE, por energéticos na Líbia, enquanto a Turquia assinou, no final de
2019, dois acordos com o Governo de Acordo Nacional da Líbia
meio do CE 1999, que incentivava a (GNA), causando preocupações à UE (EU PARLAMENT,
2019).
aproximação com essas organizações, meios e 9
A Operação ATALANTA atua próxima ao estreito de Ormuz
contra pirataria e sua principal missão, oficialmente, é proteger
pessoal da OTAN passaram também a serem navios do Programa Alimentar Mundial (WFP) das Nações
Unidas e outras embarcações vulneráveis. Estima-se que cerca de
empregados em missões da UE. Ao mesmo 12% do comércio mundial passe pela região de Ormuz,
especialmente, aquele com destino à Europa.
10
tempo, a OSCE passou a desempenhar um A Operação ALTHEA, na Bósnia e Herzegovina, substituiu a
Stabilization Force (SFOR) da OTAN, em 2004, e conta com a
participação, atualmente, de 19 países, inclusive, o Chile, único
papel com certa semelhança com as missões país não europeu na missão.
11
Atualmente, há quatro EUTM, desdobradas no Mali, na
de Peacekeeping e de Peace Building da República Centro Africana, na Somália e, desde novembro de
2021, em Moçambique.

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Essas operações apontam claramente Pode-se concluir, ainda, que as


as demandas e a utilização da OTAN de operações e missões da OTAN não buscam
acordo com interesses/necessidades de cada complementar o papel que cabe à
país. Enquanto a OTAN é a maior garantia de Organização das Nações Unidas na
integridade territorial, por exemplo, da pacificação de conflitos ou na ajuda a outras
Polônia, dos países Bálticos e, inclusive, dos nações, mas sim atuar onde é de seu interesse
Bálcãs, ela é essencial ao atendimento de e onde a ONU não atende às suas
demandas internas de alguns países, como o necessidades.
combate à imigração ilegal para Espanha, Os gastos militares dos países membros
Itália e Grécia. Porém, é na utilização da da Aliança superaram, em 2019, US$ 1 trilhão
Aliança como instrumento para objetivos (55% dos gastos mundiais em defesa). Sem os
geopolíticos, inclusive, capazes de alterar EUA e o Canadá, esse percentual se reduz
cenários regionais, como em Kosovo e na para cerca de 15% dos gastos mundiais, com
Líbia, e fora do espaço euro-atlântico, como pouco mais de US$ 280 bilhões investidos
no Chifre da África, no Iraque e no pelos 28 membros europeus. Estima-se que
Afeganistão, que se podem constatar somente a China destinou US$ 260 bilhões às
propósitos além da defesa coletiva e tipificada suas forças armadas em 2019, enquanto os
nas suas outras duas tarefas essenciais: gastos da Ásia (incluindo Rússia, China e
gerenciamento de crise e cooperação em Oriente Médio) e da Oceania totalizaram
segurança. cerca de 40% dos investimentos mundiais em
defesa (SIPRI, 2021).

[...]é na utilização da Aliança como instrumento para


objetivos geopolíticos, inclusive, capazes de alterar
cenários regionais, como em Kosovo e na Líbia, e
fora do espaço euro-atlântico, como no Chifre da
África, no Iraque e no Afeganistão, que se podem
constatar propósitos além da defesa coletiva e
tipificada nas suas outras duas tarefas essenciais:
gerenciamento de crise e cooperação em segurança.

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Não obstante a disparidade de (JALLC), em Portugal. Ele ainda coordena ou


investimentos e de capacidades entre os mantém estreita ligação com a Escola e o
membros, a OTAN oferece uma equidade aos Colégio de Defesa da OTAN e dezenas de
países por meio do seu processo de decisão, centros de excelência de países membros. A
concedendo a todos os membros o poder de combinação dessa estrutura com o fato de o
veto. Obviamente, predominam as decisões Comando possuir representantes junto à sede
dos EUA e dos três principais membros da OTAN, ao ACO e ao Pentágono, nos
europeus, Reino Unido, França e Alemanha. EUA, denota uma eficiência do ciclo de
Ao mesmo tempo, os vetos na OTAN são evolução doutrinária e, consequentemente, da
raros. Normalmente, os países que têm adaptabilidade e do desenvolvimento de
alguma objeção a uma decisão, na OTAN, novas capacidades da Aliança.
optam pela abstenção, chamada de “opt-out” O ACO, por sua vez, tem seu quartel-
(HONKANEN, 2002). Um exemplo foi o general, o Supreme Headquarters Allied
veto da Turquia, em 2001, quando a OTAN Powers Europa (SHAPE), em Mons, na
planejava proporcionar à UE o acesso às suas Bélgica, e seu comandante é,
capacidades para a condução de operações tradicionalmente, um oficial general dos
militares (NYTIMES, 2001). EUA. Ele é o Comandante Aliado Supremo
Quanto à atual estrutura estratégica da Europa (SACEUR) e, ao mesmo tempo, o
militar, a OTAN a divide em duas: Comando Comandante do Comando dos EUA na
Aliado de Operações (ACO) e Comando Europa (EUCOM).
Aliado de Transformação (ACT). O ACO possui dois comandos
O ACT é sediado em Norfolk, nos operacionais na Europa, Joint Force
EUA, e seu comandante é designado por Commands (JFC), em Brunssum (Países
sistema de rodízio entre os países membros. Baixos) e em Nápoles (Itália), ambos capazes
Esse Comando é organizado para realizar de lançarem e comandarem uma CJTF. Em
quatro funções: pensamentos estratégicos; 2021, passaram a funcionar plenamente outras
desenvolvimento de capacidades; educação, duas estruturas de nível operacional, o
treinamentos e exercícios; e cooperações e Comando de Força Conjunta (JFC), sediado
engajamentos. Para tanto, o ACT possui três em Norfolk, nos EUA, junto com a 2ª Frota
estruturas principais a ele subordinadas: o da Marinha norte-americana, responsável por
Centro Conjunto de Guerra (JWC), na proteger as linhas marítimas no Atlântico
Noruega; o Centro de Treinamento de Forca Norte, e o Joint Support and Enabling
Conjunta (JFTC), na Polônia; e o Centro de Command (JSEC), em Ulm, na Alemanha,
Análises Conjuntas e Lições Aprendidas responsável pela Área de Retaguarda da

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OTAN e pelo fluxo de tropas e meios entre as ataques cibernéticos (REUTERS, 2018).
sedes nos estados-membros e as Áreas de A principal força de emprego conjunto
Operações da OTAN. da OTAN é a NATO Response Force (NRF),
Observa-se que a decisão de com um efetivo de até 40.000 militares,
reestruturar o ACO, bem como da criação da atuando sob comando operacional dos JFC de
NRF, ocorreu na Reunião de Cúpula de 2002, Brunssum e de Nápoles, mediante rodízio. A
em Praga (NATO, 2002). Por outro lado, a OTAN busca, desde 2018, implementar o
criação do JSEC e do JFC de Norfolk foi conceito “Quatro Trintas”, que consiste em
decidida na reunião entre os Ministros da desdobrar 30 batalhões blindados ou
Defesa dos países aliados, em junho de 2018, mecanizados, 30 esquadrões aéreos e 30
quando também se criou o Composite Special navios de combate, em até 30 dias (NATO,
Operations Component Command (C-SOCC), 2018).
entre Bélgica, Dinamarca e Países Baixos, Ainda dentro da NRF, existe, a partir
(NATO, 2018) confirmando a adaptação da da decisão da Reunião de Cúpula de 2014,
OTAN, para além dos CE. uma força de pronta-resposta denominada
Em 2016, a Aliança definiu que deveria Very High Readiness Joint Task Force
ser capaz de se defender no espaço (VJTF). Ela consiste em um componente
cibernético, assim como faz no espaço aéreo, terrestre nível brigada, com cerca de 5.000
marítimo e terrestre. Dessa forma, sucederam- militares, contendo 5 batalhões, apoiados
se medidas, desde o nível político até o tático por meios aéreos, terrestres e de forças
(NATO, 2021): aumento da interação com a especiais. A VJTF deve ser capaz de ser
UE13; estabelecimento de parcerias com o desdobrada em até sete dias, com seus
setor privado, por meio da NATO Industry primeiros elementos deslocando-se em 48
Cyber Partnership (NICP); criação do Centro horas.
de Operações de Espaço Cibernético (COC), A composição da VJTF é multinacional
subordinado ao SHAPE e previsto para estar e também por rodízio entre os países e entre
em pleno funcionamento até 2023. Com esse os JFC de Brunssum e de Nápoles. Em 2022,
Centro, vislumbra-se que a OTAN venha a responsabilidade pelo Comando da VJTF é
também a deter a capacidade de realizar da França, que conta ainda com tropas e
meios, principalmente da Alemanha, de
13
Além de exercícios e formação de pessoal, especialmente Portugal, da Espanha e da Polônia. Sua
na NATO Communications and Informative Systems School
(NCISS), na Escola da OTAN e em Centros de Excelência composição dura 18 meses, incluindo o
junto a ela acreditados, como o Centro Cooperativo de
Defesa Cibernética (CCDCOE), a Aliança mantém adestramento, que inicia seis meses antes da
cooperação com o Centro Europeu de Excelência para
Contenção de Ameaças Híbridas (Hybrid CoE), uma sua assunção. Parte da VJTF foi desdobrada
estrutura civil e subordinada ao Governo da Finlândia.

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dentro de países membros após a atual Os países fora da Aliança são divididos
invasão russa à Ucrânia. em quatro grupos: países do programa PfP,
A OTAN possui, com a Naval que também integram o Conselho de Parceria
Striking and Support Forces NATO Euro-Atlântico (EAPC) com a OTAN;
(STRIKFORNATO), uma força Diálogo do Mediterrâneo (MD); Iniciativa
expedicionária com meios navais e anfíbios. para Cooperação de Istambul (ICI); e
Essa força, no entanto, comandada e Parceiros ao redor do mundo, que não é
composta pela 6ª Frota Naval dos EUA, formalmente um grupo, porém uma referência
subordina-se diretamente ao SACEUR e não àqueles que não integram os demais. Em
ao JFC, como ocorre com a NRF e a VJTF. 2014, houve uma evolução nas oportunidades
Como forma de aumentar a de parcerias, por meio dos programas:
disponibilidade de tropas para missões Iniciativa para Parceria de Interoperabilidade
conduzidas pela OTAN e, até mesmo, da (PII) e Parceiros de Oportunidades
NRF, a Aliança busca capacitar os países Aprimoradas (EOP). Seis países são EOP:
parceiros a atuarem dentro da sua estrutura. Finlândia, Suécia, Geórgia, Jordânia e
Nesse ponto, a fim de atrair novos parceiros, Austrália, desde a implementação, e Ucrânia,
ela oferece cerca de 1.200 atividades a esses desde 2020 (NATO, 2021).
países, variando de acordo com a parceria Importante ressaltar que os nove
firmada, incluindo cursos, exercícios países nomeados como parceiros ao redor do
combinados e troca de dados de Inteligência. mundo estabeleceram as parcerias
Após a criação do programa Parceria individualmente e as mantêm dentro das
pela Paz (PfP), em 1994, a OTAN intenções e limitações que desejam15.
estabeleceu, em 1999, o Conceito de
Capacidade Operacional (OCC), que ainda
hoje visa a avaliar e a capacitar tropas de United Nation’s Protection Force (UNPROFOR). Em Dez
1996, a IFOR passou a se chamar SFOR, que iniciou seu
países não-membros a operarem junto ou sob mandato com cerca de 30.000 soldados e funcionou até Dez
2005. Dezessete países não integrantes da OTAN (desses, 8
o comando da OTAN. Essa decisão veio da viriam a se tornar membros nos anos seguintes) enviaram
contingentes militares para a SFOR (NATO, 2021).
experiência da Implementation Force (IFOR) 15
A Mongólia, a Nova Zelândia e a Austrália exerceram uma
participação mais ativa no Afeganistão, por meio do envio de
e da SFOR, missões da OTAN na Bósnia- tropas. A Colômbia enviou uma fragata para o chifre da
África em 2015, antes de aderir à parceria em 2017. A Coreia
Herzegovina, quando então participaram do Sul também enviou uma embarcação para a operação da
OTAN na costa da África e implementou uma missão civil-
ropas e militares de países do programa PfP e militar, entre 2010 e 2013, para a reconstrução de uma
província afegã. O Paquistão permitiu o fluxo logístico da
outros, como a Argentina e o Chile14. OTAN por seu território e espaço aéreo. O Japão nunca
enviou tropas para missões da OTAN, porém mantém
relações estreitas com a OTAN, tendo doado somas para
14 reconstrução do Afeganistão e dos países nos Bálcãs,
A IFOR foi uma missão da OTAN, que desdobrou cerca de
60.000 militares, sob mandato da ONU, de Dez 1995 a Dez inclusive por meio da ONU.
1996, na Bósnia-Herzegovina, substituindo a missão da ONU

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Em 2020, os ministros das relações A segunda mudança significativa foi a


exteriores de Finlândia, Suécia, Austrália, invasão russa à Crimeia e ao leste da Ucrânia,
Japão, Coreia do Sul e Nova Zelândia em 2014, por meio de combinação sinérgica
participaram da reunião de ministros das de tropas convencionais e irregulares,
relações exteriores da OTAN, para discutir operações de informação e guerra eletrônica e
sobre a mudança do balanço de poder cibernética (BARBOZA, 2018). Esse
mundial e a China (NATO, 2020). No acontecimento não apenas confirmou a Rússia
Diálogo de Raisina, em abril de 2021, como uma real ameaça militar à OTAN, mas
evento organizado pelo governo indiano, o expôs a inatividade e/ou ineficácia da OTAN,
Secretário-Geral da OTAN participou como da UE, da ONU e da política externa norte-
convidado e reforçou o interesse da Aliança americana, incapazes de demover a Rússia de
de estabelecer uma parceria com a Índia suas ações na Crimeia e na região de
(NATO, 2021). Donbass. Esse foi o ponto de inflexão da
Importante observar, ainda, que a atuação geopolítica da Rússia, como se
década de 2010 apresentou três situações constatou, posteriormente, nas questões
significativas à Aliança, as quais ensejaram envolvendo a Síria, a Venezuela, a Belarus, o
grandes necessidades de mudança em suas conflito entre a Armênia e o Azerbaijão,
estruturas e em novas missões e operações culminando na atual invasão à Ucrânia. A
militares. partir da metade da última década, a Rússia,
A Primavera Árabe aumentou a antes mesmo da recente invasão, seguiu,
instabilidade regional e trouxe guerras civis designada pela OTAN, como uma ameaça,
em uma área de interesse estratégico para especialmente, a partir do desenvolvimento e
alguns países membros da OTAN, como a aprimoramento de diferentes capacidades,
Líbia e a Síria. Consequentemente, houve um destacando-se mísseis nucleares de médio
aumento no número de refugiados para a alcance16, mísseis hipersônicos (FOREIGN
Europa, causando efeitos diversos, desde a POLICY, 2021), Operações de Informação17 e
insatisfação de parte da população local,
passando pelo fortalecimento de ideais 16
A OTAN acusa a Rússia de violar o Tratado de Forças
nucleares de Médio Alcance (INF Treaty) por desenvolver o
nacionalistas até a infiltração de terroristas míssil SSC-8 / 9M729, o que levou ao fim do Tratado em
agosto de 2019 (NATO, 2019).
entre os imigrantes. O resultado foram 17
Conforme definição do Manual EB20-MC-10.213: “As
Operações de Informação (Op Info) consistem na atuação
operações militares no Mediterrâneo, no metodologicamente integrada de capacidades relacionadas à
informação, em conjunto com outros vetores, para informar
Sahel africano e na própria Europa, em apoio e influenciar grupos e indivíduos, bem como afetar o ciclo
decisório de oponentes, ao mesmo tempo protegendo o
às forças policiais, como na França, na Itália e nosso...” (BRASIL, 2014). Atividades afins são nomeadas
como Desinformação e Propaganda pelos EUA e por outros
na Bélgica. países (EUA, 2020) e seriam sucessoras das Medidas Ativas
(Aktivnye meropriyatiya), realizadas pelo antigo Comitê de

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ações em torno de uma rota marítima no outros fatos significativos ocorreram na


Ártico. última década e tiveram forte influência tanto
Por fim, um terceiro grande desafio na OTAN quanto, individualmente, para
enfrentado pela OTAN foi justamente o alguns de seus países membros. A política
desenvolvimento das EDTs, que, por sua vez, externa turca vem gerando conflitos internos,
potencializaram as duas mudanças em especial com a França e com a Grécia,
significativas supracitadas. A Aliança define enquanto as preocupações com as mudanças
essas novas tecnologias em sete categorias: climáticas crescem à medida que o tema se
Inteligência Artificial (AI); Dados e torna mais importante para a opinião pública
Computação; Autonomia; Tecnologia europeia18, ao mesmo tempo em que é
Quântica; Biotecnologia; Tecnologia utilizado para a defesa de interesses
Hipersônica; e Espaço. Nos últimos dez anos, econômicos de alguns de seus membros.
novos desafios surgiram nos domínios
cibernético e espacial, fazendo com que as 2.3. O estudo “OTAN 2030” e a
agenda “NATO 2030”
forças convencionais da OTAN,
predominantes nos outros domínios do Em novembro de 2020, o estudo

combate (aéreo, terrestre e marítimo), não “OTAN 2030: Unidos por uma nova Era”

fossem mais capazes de garantir sozinhas (NATO, 2020), realizado por um grupo

tanto a defesa da Aliança, quanto a segurança independente com 10 especialistas, liderado

de sua população. pelo ex-Ministro da Defesa da Alemanha

Quanto ao domínio espacial, embora os Thomas de Caixeire e pelo diplomata norte-

EUA exerçam nítida liderança nessa área, o americano Anton Weiss Mitchell, foi

desenvolvimento de armas antissatélites pela concluído. O Estudo foi encomendado pelos

Índia (CARNEGIE, 2019) e pela Rússia líderes da Organização, ao seu Secretário-

(BBC, 2021) e o programa espacial chinês Geral, em 2019, como forma de auxiliar na

apontam que a supremacia norte-americana elaboração de um novo Conceito Estratégico.

no Comando e Controle e na Inteligência, por Observa-se que o CE 2010 também foi

meio de satélites, pode vir a ser diretamente antecedido por um estudo de especialistas,

afetada, em caso de conflito. encomendado em 2009, então denominado

Obviamente, além dessas três situações


18
Em 2011, meio ambiente e mudanças climáticas eram
que geraram a necessidade de mudanças citadas como uma das duas maiores preocupações por
somente 3% dos europeus, ocupando a 11ª posição no
estruturais e funcionais dentro da Aliança, ranking da pesquisa de opinião da Comissão Europeia (EU,
2011). Em 2021, mudanças climáticas e meio ambiente
tornaram-se a 2ª maior preocupação dos europeus, citada por
25% dos entrevistados como uma das duas maiores, atrás
Segurança do Estado (KGB), da ex-URSS (GALEOTTI, apenas da situação econômica e empatada com imigração
2021). (EU, 2021).

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“NATO 2020: Assured Security; Dynamic Como resultado, a reunião de Chefes


Engagement”, tendo sido liderado pela antiga de Estado e de Governo dos países da OTAN,
Secretária de Estado do Governo Bill Clinton, em junho de 2021, não teve como resultado a
Madeleine Albright (NATO, 2010). aprovação de um novo CE. Esse foi mais um
Entre os desacordos à época da reunião indicativo dos desacordos internos da
de Cúpula de 2021, pode-se destacar o tema Aliança, tendo-se adotado a agenda “NATO
China. Enquanto os EUA travam uma guerra 2030”, que consiste em nove propostas de
comercial com o país asiático, iniciada sob a atuação, entre elas a elaboração de um novo
administração Trump, mas não encerrada pelo CE, a ser aprovado na próxima reunião de
governo democrata, que inclusive manteve o líderes, em junho de 2022, em Madri.
posicionamento em defesa de Taiwan, a O estudo “OTAN 2030: Unidos por
China é o maior parceiro comercial da UE e, uma nova Era” dividiu a conjuntura e os
especialmente, da Alemanha, maior economia desafios da Aliança em 20 temas, tecendo
do Bloco. Além da questão do orçamento uma série de recomendações para cada um,
impositivo, de investir no mínimo 2% do destacando-se: Rússia; China; Tecnologias
Produto Interno Bruto (PIB) em Defesa, o que Emergentes e Disruptivas; Clima e Defesa
não era cumprido pela maioria dos aliados, Verde; Segurança Energética; e Consultas
havia, ainda, dois fatores de desacordos Políticas com Parceiros. Nesse último tema, o
internos relevantes. O primeiro provém das estudo sugere à Aliança o fortalecimento do
ações da Turquia na Síria e, especialmente, no diálogo e das parcerias com países e
Chipre e na Líbia, o que levou, inclusive, a instituições em outras partes do mundo,
um incidente entre turcos e franceses. O outro citando países europeus, do Mediterrâneo, do
advém das relações da própria Alemanha com Oriente Médio, da Ásia e da Oceania. Não há
a Rússia, devido à insistência na construção nenhuma menção sobre a América Latina ou
do gasoduto Nord Stream 2 (suspenso seus países em todo o trabalho.
recentemente), alvo de pressão da Polônia e O estudo define, ainda, as mudanças
dos EUA, que aumentaria a dependência climáticas como uma ameaça não militar,
energética alemã do gás russo19. capaz de impactar a segurança e os interesses
econômicos de todos os 30 aliados.
Recomenda que a OTAN deve tomar medidas
19
Conforme dados do órgão governamental alemão na proteção do meio ambiente, aumentando a
responsável pelo setor energético e de água, Bundesverband
der Energie und Wasserwirtschaft (BDEW), a Alemanha sua consciência situacional, a capacidade de
importou da Rússia, em 2021, 15,3% do seu gás natural, 34%
do petróleo cru e 53 % de carvão mineral. Metade dos lares alerta prévio e o compartilhamento de
alemães são, ainda, aquecidos com gás natural, o que
dificulta a sua substituição por outra fonte de energia
(REUTERS, 2022).

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informações, além de sugerir a criação de um Defesa do Atlântico Norte (Defense


Centro de Excelência para Clima e Segurança. Innovation Accelerator for the North Atlantic
O documento oficial da Aliança, a – DIANA), oficialmente lançado em final de
agenda “NATO 2030”, aprovado na Reunião outubro de 2021.
de Cúpula, em junho de 2021, é dividido em As discussões sobre o Indo-Pacífico
nove propostas. No que se refere à proposta também fazem parte da rotina da OTAN,
“Combate e Adaptação à Mudança sendo a região citada diversas vezes no estudo
Climática”, a agenda define as mudanças “OTAN 2030”. A atuação dos EUA próximo
climáticas como o desafio definitivo da nossa à costa da China, o projeto chinês One Belt
época e endossa o Plano de Ação da Aliança One Road, conhecido como Nova Rota da
afeto ao tema, que ambiciona tornar a OTAN Seda, o envio de uma fragata alemã para a
a organização internacional líder, no que diz região (ALEMANHA, 2021) e o recente
respeito à compreensão e à adaptação ao acordo militar sobre submarinos nucleares
impacto das alterações climáticas na entre Washington, Londres e Sidney, que
segurança. Portanto, foi previsto que a OTAN causou desagrado aos franceses (NY
sediará, a partir de 2022, diálogos sobre esse TIMES, 2021), são também relevantes no
tema. contexto desta década. Muito embora o tema
Cabe ressaltar a declaração do Indo-Pacífico não seja citado na agenda da
Secretário de Defesa dos EUA, em janeiro de Aliança “NATO 2030”, muito
2021, sobre as mudanças climáticas como um provavelmente, constará no próximo CE,
tema de Segurança Nacional, a incluir na justamente em face dos (diferentes)
próxima Estratégia Nacional de Defesa norte- interesses geopolíticos dos líderes aliados na
americana (EUA, 2021). região.
A agenda “NATO 2030” propõe, ainda, As demais propostas aprovadas pelos
a aproximação com outros países e Chefes de Estado e Governo dos países
organizações, desta vez, incluindo a América aliados, na agenda “NATO 2030”, determinam
Latina, que não foi citada no estudo a elaboração de um novo CE e tratam, de
homônimo feito por especialistas forma resumida, de parte dos desafios e da
independentes. O documento define a conjuntura supracitados, com destaque ao
importância de manter a liderança tecnológica termo “Resiliência”, justamente em face dos
da Aliança, citando como exemplo a intenção desacordos internos.
chinesa de se tornar líder em IA nesta década.
Para tanto, os líderes aprovaram a criação do
programa de Acelerador de Inovação de

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3. Conclusão aspiram a ser membros do Bloco europeu.

O presente estudo buscou analisar a Isso demonstra que a expansão da Aliança, na

evolução da OTAN, a partir do fim da Guerra direção das fronteiras russas, é também fruto

Fria, e a sua conjuntura político-estratégica, de um movimento na direção da Europa

como forma de melhor compreender desde o ocidental por parte dessas nações, a maioria

papel geopolítico até as capacidades antigos membros do Pacto de Varsóvia ou

operacionais da Aliança, bem como os pertencentes à própria URSS.

reflexos da atual crise desencadeada com a Quanto às pretensões da Ucrânia de se

invasão russa à Ucrânia. tornar membro da OTAN, mesmo a Aliança

Da análise da Organização, nesse tendo citado oficialmente essa intenção em

período, constatou-se que ela evoluiu de uma 2008 e em outros momentos, infere-se que, a

aliança militar dissuasória, destinada à defesa partir de 2014, tornou-se muito baixa a

coletiva territorial, para uma ferramenta probabilidade dessa adesão ocorrer. Isso tanto

político-militar empregada também na em face dos oito anos de conflitos no país, na

salvaguarda de interesses dos países membros região de Donbass, não cumprindo assim os

além de suas fronteiras. Essa evolução foi requisitos previstos pelo MAP da OTAN,

oficialmente ratificada, em seu Conceito quanto pela própria necessidade do país ser

Estratégico de 1999, quanto a considerar o aceito por unanimidade entre os aliados, o

contexto global para o emprego de tropas fora que, na conjuntura anterior à atual invasão

do Artigo 5º do Tratado de Washington, bem russa, seria muito improvável de ocorrer, a

como no CE 2010, quando definiu as três começar pela própria Alemanha, que

tarefas essenciais da Aliança: defesa coletiva, dificilmente comprometeria seus interesses

gerenciamento de crise e cooperação em nas relações com a Rússia, como se constatou

segurança. com as controvérsias envolvendo a construção

Quanto à sua expansão, as adesões, a do gasoduto Nord Stream 2, somente agora

partir de 2009, consolidaram o envolvimento interrompida.

da Sérvia e da Bósnia-Herzegovina, O estudo “OTAN 2030: Unidos por

confirmando a prioridade de evitar novas uma nova Era”, de 2020, definiu as mudanças

guerras nos Bálcãs e de manter a estabilidade climáticas como uma ameaça não militar,

na Europa. Além disso, desde o fim da Guerra capaz de impactar a segurança e os interesses

Fria, todos os 14 novos membros se econômicos dos aliados. Entre as nove

encontram na porção central e oriental da propostas da agenda “NATO 2030”, de 2021,

Europa, sendo que, desses países, 11 aderiram a Aliança estabelece esse como o maior

à União Europeia e os outros 3 também desafio dos nossos tempos e pretende se

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tornar a principal organização internacional Aliança, após a Guerra Fria, foi maior que a
referente à compreensão e à adaptação às presente invasão russa à Ucrânia.
mudanças climáticas na área de segurança, Diante do atual cenário, é possível
sediando ainda, a partir de 2022, diálogos inferir a grande probabilidade de o próximo
sobre o tema. CE da OTAN voltar a tratar como prioridade
Por meio desses estudos orientadores a defesa territorial coletiva, justamente pela
para o próximo CE, pode-se observar um constatação de a Rússia ainda se colocar
grande foco da Aliança sobre temas além do como uma ameaça real à estabilidade da
espaço euro-atlântico, tais como: mudanças Europa e à própria integridade territorial de
climáticas, Indo-Pacífico, fluxo de recursos países aliados, tornando-se o presente conflito
vitais e tecnologias de IA da China, não um amálgama que tende a fortalecer os laços
obstante os efeitos desses assuntos para a entre os seus integrantes, minimizando os
defesa e segurança dos países membros da desentendimentos internos por assuntos
OTAN. Portanto, da análise dos documentos e estranhos à defesa coletiva e desenvolvendo
das operações da OTAN nos últimos anos, novas capacidades militares, tanto dos países-
constata-se que, embora a Aliança mantivesse membros quanto combinadas.
nos documentos oficiais a defesa coletiva Por fim, da apreciação da evolução da
como missão principal, na prática, priorizava OTAN, das suas ações e intenções, da
as duas outras tarefas essenciais: conjuntura internacional e da tendência a se
gerenciamento de crise e cooperações em fortalecer, conclui-se que, uma vez superada a
segurança. atual crise, a Aliança, certamente, reunirá
Ao longo dos últimos 30 anos, a ainda maior capacidade de atuação e
OTAN enfrentou diferentes desafios, quase influência fora do espaço euro-atlântico e
sempre logo posteriores à aprovação de seus voltará a tratar de temas de interesse de seus
Conceitos Estratégicos, destacando-se: a principais membros, inclusive sobre assuntos
guerra nos Bálcãs, nos meados da década de menos afetos à defesa, como meio ambiente e
1990; o ataque terrorista de 11 de setembro; e, mudanças climáticas, em consequência do
mais recentemente, a Primavera Árabe; a aumento da importância político-estratégica
invasão da Rússia na Crimeia em 2014; e as da OTAN no mundo.
Tecnologias Emergentes e Disruptivas
(EDTs), que vêm estendendo as ameaças para
os domínios espacial e, sobretudo,
cibernético. No entanto, nenhum desafio à

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Organização do Tratado do Atlântico Norte Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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Gustavo Monteiro Muniz Costa Vol. 24 (2) Mar/Maio 2022


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A evolução do pensamento estratégico militar russo Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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1. Breve histórico do pensamento Clausewitz e Antoine-Henri Jomini, acabaram


estratégico militar russo desempenhando papéis importantes na
Entende-se “pensamento estratégico”, instrução do pensamento estratégico militar
em níveis mais amplos, como o conjunto de russo:
conceitos de natureza estratégica que Jomini [...] desempenhou um papel
decisivo na criação da Academia Militar
condiciona padrões de comportamento Russa. Foi assessor militar do Imperador
da Rússia desde 1813 até a sua morte em
(GARCIA, 1997). Nesse sentido, em termos 1869. Em seus últimos anos, dividiu seu
tempo entre a França e a Rússia e se acha
gerais, o “pensamento estratégico militar” é a documentado o fato de ter sido
frequentemente consultado pelo
capacidade institucional de fazer uma síntese Imperador da Rússia durante a Guerra da
de fatores-chave que afetam a dimensão Crimeia (MOLLER, 1954, p. 2).

militar, tais como: o papel das Forças A derrota da Rússia contra a coalizão
Armadas na paz ou na guerra; as formas de formada por Grã-Bretanha, França e Turquia
aplicação e estrutura de poder militar; as na Guerra da Crimeia1, em 1856, propiciou a
orientações gerais para que o nível conclusão óbvia sobre a necessidade de
estratégico-operacional elabore suas ações, fortalecimento das forças armadas. O Coronel
entre outras considerações. Esse pensamento A. A. Neznamov, professor de tática da
é construído a partir das visões de Academia do Estado-Maior, acreditava que se
estrategistas, da doutrina militar vigente, da deveria olhar para o futuro e se preparar para
cultura estratégica-organizacional das Forças a “guerra contemporânea”, deixando de usar
Armadas, entre outras bases. as tradicionais silenciosas cargas de baioneta
Para entender o pensamento e reduzindo o excesso de confiança na
estratégico militar russo contemporâneo, é valorização do soldado russo (PINTNER,
necessário relembrar a história, destacando 2015).
eventos belicosos que impactaram a trajetória Após o fim da I Guerra Mundial, a
militar do país euroasiático ao longo dos dois Rússia foi forçada a abrir mão de suas posses
últimos séculos. Esse olhar para o passado territoriais na Polônia, Ucrânia, Lituânia,
permite verificar sua contínua evolução até os Finlândia e em outras províncias do Báltico
dias atuais. (CASTRO, 2012). Durante o período da
No início do século XIX, o Império Revolução Russa, que durou até 1922, cujo
Russo teve experiências militares fim do processo deu origem à União das
significativas, como a vitória contra as forças Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), foi
napoleônicas (PINTNER, 2015). Por outro
1
Nesse momento, fazendo uma breve pausa na história,
lado, apesar dessas experiências, pensadores identifica-se que o interesse russo pela região remonta a
séculos passados. Sua importância geoestratégica, banhada
estratégicos não russos, como Carl Von pelo Mar Negro, permite o acesso marítimo ao Oceano
Atlântico.

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criado o Exército Vermelho, inicialmente, militares, com o emprego de métodos de


formado com a intenção de caráter camuflagem, negação, propaganda e
temporário. operações psicológicas (MAIER, 2016). Ao
Líderes bolcheviques, como Leon longo do tempo, desde o Exército Vermelho,
Trotsky e Mikhail Frunze, discutiram tais técnicas teriam sido refinadas e adaptadas
aspectos da estratégia militar, como as para emprego nos conflitos atuais
características da próxima guerra, a (CRAMERS, 2018).
permanência e a estrutura futura do Exército A experiência traumática das diversas
Vermelho e a natureza do “novo método invasões ao território russo, desde a invasão
militar”, sob o regime socialista. As lições da napoleônica, levou a um “quase-princípio” de
Guerra Civil levaram a uma estratégia de que nenhuma guerra futura deveria ocorrer
guerra ofensiva e de manobra, além do em território nacional russo. Daí a
necessário fortalecimento da retaguarda, do importância da profundidade estratégica
transporte e das comunicações. Da mesma conferida à União Soviética pela “glacis
forma, observa-se que, na origem do Exército protectores”4 no Leste Europeu ao longo da
Vermelho, a responsabilidade do país de estar Guerra Fria (CRAMERS, 2018, p. 65).
constantemente preparado para a guerra e a Naquele período, a União Soviética
estreita relação entre política e exército modernizou seus meios de guerra
persistem como legado histórico (RICE, convencional e suas capacidades de projeção
2015, p. 65). de poder, principalmente, com o
Na II Guerra Mundial, a Rússia foi desenvolvimento da capacidade nuclear,
surpreendida pela ofensiva alemã2, em parte, ampliando cada vez mais sua vasta estrutura
confrontada por meio de guerra de resistência militar. No entanto, a partir da dissolução da
irregular, protagonizada pelos “partisans”3. URSS, em 1991, ocorreram anos de escassez
Essa forma de resistência, até então e de debilidade econômica, impactando
subdimensionada pelos construtores da diretamente no moral das Forças Armadas,
estratégia soviética, obteve importantes devido à obsolescência do material militar e
conquistas contra o exército convencional da manutenção de uma estrutura militar
alemão. Além disso, a aplicação da doutrina ultrapassada.
“maskirovka”, como é conhecida a arte russa
do engano, era utilizada em todos os níveis

2
Conhecida historicamente como Operação Barbarossa.
3
Partisans: membros de movimentos de resistência que
4
participaram da guerrilha contra as Forças do Eixo na União Glacis Protectores é uma analogia à tecnologia militar
Soviética, em regiões que mais tarde se tornariam territórios formada por um talude que precedia o fosso de uma fortaleza
de ocupação soviética na Polônia e na Finlândia. da época medieval.

A evolução do pensamento estratégico militar russo Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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2. O pensamento estratégico militar vetores responsáveis pelo avanço militar russo


russo do século XXI (CONVINGTON, 2016, p. 66).
A Doutrina Militar Russa5, publicada
A partir de 2000, depois que o
em dezembro de 2014, logo após a ocupação
presidente Vladimir Putin assumiu a liderança
da Crimeia, expôs, sobretudo, os perigos e
do país, a Rússia passou a buscar
ameaças, as disposições fundamentais da
reconhecimento, mais uma vez, como grande
política de defesa e militar e os aspectos
potência e, assim, alcançar um novo
necessários para garantir a segurança
equilíbrio no contexto internacional. Esse
econômica do Estado. Entre os riscos externos
objetivo passou a nortear a Estratégia
ao país, expostos no documento, está o
Nacional Russa. Sua capacidade de ser
aumento do potencial poder da Organização
potência nuclear, membro permanente do
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ao
Conselho de Segurança da Organização das
ampliar a infraestrutura militar dos países-
Nações Unidas (ONU) e importante ator nos
membros em torno de sua fronteira, como
principais fóruns políticos e econômicos
Polônia, República Tcheca, Eslováquia,
mundiais (G8, G20, BRICS, CIS, OMC, entre
Romênia, Bulgária, Hungria, Estônia, Letônia
outros) demonstra sua atuação significativa no
e Lituânia, com os quais considera essa
cenário internacional.
expansão uma violação às normas do direito
Após anos de desenvolvimento na
internacional.
mesma direção, as Forças Armadas mudaram
consideravelmente, tornando-se modernas, Figura 1: Ingresso na OTAN por país
com o domínio de equipamentos e armamento
de alta tecnologia, elevado nível de
profissionalismo e capacidade de projetar-se
regionalmente. Suas contínuas evoluções
estão diretamente relacionadas, no nível
estratégico militar, com os objetivos fixados
pela política nacional.
O sistema político russo permite que
uma única forma dominante de pensamento
Fonte: o autor.
militar se funda com a liderança política para
moldar a tomada de decisões em todo o
5
governo. O esforço político nacional e a Doutrina Militar Russa é um documento de nível político,
contendo os preceitos oficialmente aceitos pelo Estado russo
coordenação do Ministério da Defesa são os com vistas aos preparativos para a proteção armada da
Federação. Diferentemente da maioria dos países, o
documento não estabelece os princípios norteadores que
regem a atuação operacional das Forças Armadas.

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A atual crise com a Ucrânia está Uma peculiaridade da cultura


diretamente relacionada ao receio da Rússia a estratégica russa é a clara interconexão da
respeito da sua perda de influência e de “grandeza” do Estado e seu poder militar.
domínio geopolítico sobre o espaço da ex- Essa ideia foi corroborada pela experiência do
URSS, frente à possibilidade do ingresso da Império Russo, quando o poder militar se
Ucrânia na OTAN. Essa proximidade das suas tornou a “principal base institucional do
fronteiras tornou-se ponto de consenso a guiar Estado”. Essa singularidade explica a
os principais objetivos das reformas militares renovada atenção dada à atual modernização
(PICOLLI, 2018). de suas Forças Armadas (RENZ; SINOVETZ,
Por sua vez, a recente Estratégia de 2015).
Segurança Nacional, aprovada em dezembro A partir de 2008, as Forças Armadas
de 2021, analisa o atual contexto estratégico desencadearam um processo de
global e descreve os principais aspectos com transformação7, com mudanças em suas
os quais o governo russo moldou sua estruturas, tropas, doutrina, meios militares,
Estratégia Nacional. Trata-se de: entre outras medidas. Nesse contexto, foi

[...] um documento básico de


criado o programa de aquisição de armas e
planejamento estratégico que define os equipamentos, o chamado Gosudarstvennaia
interesses nacionais e as prioridades
nacionais estratégicas da Federação Programma Vooruzheniia (GPV). Os avanços
Russa, os objetivos e metas da política de
Estado no campo da garantia da bélicos permitiram visualizar a materialização
segurança nacional e do
desenvolvimento sustentável da do pensamento estratégico russo no
Federação Russa a longo prazo.
(RUSSIAN FEDERATION, 2021).
desenvolvimento de capacidades, em especial
de armas dissuasórias. Picolli (2018), citando
Além das questões militares, as Jones e Caffrey (2018), explica que o GPV
principais mudanças, na nova versão, 2027, assinado em 2018, enfatiza o
concentram especial atenção nas chamadas desenvolvimento de novos sistemas nucleares,
6
“ideological issues” , que consideram bem como de armamentos aeroespaciais e
atividades de informação e atividades terrestres de precisão.
psicológicas no espaço dirigido como ameaça Em relação ao próximo GPV, de 2024
à Rússia (IISS, 2022). Sua política externa até 2033, poderá ser impactado em virtude da
aponta para uma maior aproximação do país indefinição econômica de longo prazo (IISS,
com a China e com a Índia, e continua 2022). Estima-se que as armas hipersônicas,
reconhecendo a OTAN como principal já experimentadas no atual conflito,
inimiga (GOMES FILHO, 2021). complexos sistemas robóticos e armas

6 7
Questões ideológicas. Também denominada NovyOblik (reforma militar russa).

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O pensamento estratégico militar russo permanece


inalterado, em termos de seu potencial nuclear, o que
lhe permite reafirmar sua importância como potência
estratégica global.

baseadas em novos princípios físicos poderão doutrinárias e tecnológicas que devem estar
constar no rol de tecnologias militares contempladas no alcance do novo GPV.
possíveis de emprego. O pensamento estratégico militar
Ademais, a teoria da “Sixth russo permanece inalterado, em termos de seu
Generation Warfare”, elaborada pelo General potencial nuclear, o que lhe permite reafirmar
Vladimir Slipchenko, um dos teóricos atuais sua importância como potência estratégica
militares russos mais ativos, considera o global. O desenvolvimento e a modernização
emprego de armas de longo alcance e de alta da capacidade estratégica de dissuasão
precisão, que podem ser lançadas de várias nuclear da Rússia continuam a ser um
plataformas, para: derrotar o oponente em seu objetivo central, com uma estimativa de que
próprio território; destruir a atividade 90% das armas das Forças Nucleares
econômica; e alterar o sistema político de um Terrestres devem ser novas (ENGVAL;
oponente (MATTSSON; EKLUND, 2013). MALMLÖF, 2019).
Parcela de pensadores ocidentais Assim sendo, cabe destacar o
classificou a intervenção à Ucrânia, ocorrida importante papel do general Valery
em 2014, como uma abordagem híbrida, Gerasimov, no cargo de Chefe do Estado-
combinação de guerra convencional com Maior Geral da Rússia desde 2012, e sua
táticas irregulares. Leal (2016) explica que a contribuição para a evolução do pensamento
Rússia tem se debruçado sobre o tema, estratégico militar. Suas perspectivas e visões
usando a denominação “New Generation trazem reflexões sobre o estudo da arte da
Warfare”. guerra e podem ser resumidas nos seguintes
Além disso, a participação russa no tópicos, conforme figura 2, a seguir:
conflito da Síria vai ao encontro das suas
pretensões, no que tange ao projeto
estratégico militar. As lições aprendidas pela
indústria de defesa e pelas Forças Armadas
provocaram planos para adaptações

Moacyr Azevedo Couto Junior Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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Figura 2: Bases do pensamento estratégico militar russo

Fonte: o autor.

(1) Inovação estratégica: tem-se observado desenvolvimento das Forças Armadas a longo
apelos provocativos8 ao establishment militar prazo;
russo, para a necessidade de inovação de seu
pensamento estratégico militar, como parte do (2) O uso de ações assimétricas9: tais ações
processo de modernização das Forças permitem anular as vantagens do inimigo no
Armadas. Respostas as questões como: “O conflito armado. Entre essas ações estão o uso
que é a guerra moderna?”; “Para que o de operações especiais e forças internas de
exército deve se preparar?”; e “Como deve ser oposição para criar uma frente que funcione
armado?” deveriam anteceder o rumo do

8 9
O artigo “O valor da ciência está na capacidade de prever o Guerra Assimétrica é basicamente a adoção, em um conflito
que acontecerá ou poderá acontecer no futuro”, publicado na militar, do que pode ser visto como ações indiretas e não
revista Voyenno Promyshlennyy (Kuryer Renz e Smith, convencionais dos fracos contra os fortes (THORNTON,
2016), conteria um exemplo dessas provocações. 2016).

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permanentemente em todo o território do (5) Armas remotamente controladas e


Estado (GERASIMOV, 2016); robotização: outro aspecto comumente
explorado é a tendência crescente para o uso
(3) Supremacia informacional: obter a
de sistemas de armas controlados
supremacia no campo da informação e
remotamente, armas de precisão e até mesmo
comunicação estratégica, sugerindo que a
a robotização do campo de batalha.
guerra ocorrerá, simultaneamente, em todos
os ambientes físicos e no espaço da As principais características dos
conflitos futuros serão o amplo emprego
informação (MORALES, 2017); de armas de precisão e outros tipos de
novas armas, incluindo a tecnologia
(4) Alvos políticos e econômicos: em robótica [...]. Além das esferas
tradicionais do conflito armado, a esfera
discurso na Academia de Ciências Militares, da informação e do espaço estarão
envolvidas dinamicamente.
Gerasimov voltou à sua concepção das (GERASIMOV, 2019, p. 5)

prováveis formas de guerras futuras,


3. Implicações para o pensamento
incluindo a utilização de objetivos estratégico militar
econômicos e sistemas de controle estatal
Naturalmente, a comparação com a
como alvos prioritários de destruição;
anexação relâmpago da Crimeia, em 2014, e o

(5) Armas remotamente controladas e atual conflito Rússia-Ucrânia, ou, como os

robotização: outro aspecto comumente russos chamam, “operações militares

explorado é a tendência crescente para o uso especiais”, é um questionamento crítico que

de sistemas de armas controlados os analistas de defesa devem estar se fazendo:

Figura 3: Implicações para o pensamento estratégico militar russo

Fonte: o autor.

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“Por que o conflito não se deu na mesma enfrentar novos desafios nos cenários
velocidade como ocorrera antes?” Em uma contemporâneos.
análise preliminar, a resposta é óbvia, rápida e (2) Consolidação da guerra informacional
simples: porque nenhuma guerra é a repetição Sobretudo, como se tem observado no
de outra, principalmente, porque os objetivos atual conflito, é consenso que a obtenção da
políticos a serem alcançados são diferentes, superioridade na guerra informacional será
assim como a preparação para a guerra foi condição “sine qua non” para alcançar a
distinta em ambos os lados. vitória, conforme o pensamento dos
Nesse caso, quais são os objetivos estrategistas militares, sejam russos ou não
políticos pretendidos pela Rússia? No russos. O domínio da narrativa, a obtenção da
desenrolar das ações, deduz-se que a redução opinião pública, a desacreditação de fake
da influência da OTAN no entorno seja seu news e a capacidade de influenciar, por meio
“OSCAR UNO”, como é conhecido, no das redes sociais, são os faróis desse ambiente
jargão militar, o objetivo principal. Conforme inovador. Como descreve Gerasimov: “O
figura 3, do fim do conflito decorrem espaço da informação abre possibilidades
implicações que podem influenciar a evolução assimétricas para reduzir o potencial de
contínua do pensamento estratégico militar: combate do inimigo [...]. É preciso
(1) Contínua preparação para a guerra aperfeiçoar as atividades no espaço da
moderna
informação, inclusive a defesa de nossos
O antigo ditado militar “Si vis pacem,
próprios objetivos” (GERASIMOV, 2016, p.
para bellum!” (“Se queres a paz, prepara-te
51).
para a guerra.”) continuará a conduzir o
(3) Guerra por todos os meios
desenvolvimento das capacidades militares
A guerra, independente dos meios
russas, sendo as armas nucleares sua
tecnológico-militares, continuará sendo
prioridade. No entanto, as sanções
travada em múltiplos ambientes, com
econômicas e os custos do conflito poderão
combinações de campanhas militares,
impactar, em recursos financeiros, a contínua
políticas, econômicas, informacionais,
evolução da tecnologia-militar russa. As
cibernéticas, espaciais, tecnológicas,
consequências de um conflito nuclear trariam
ecológicas, entre outras, amplamente
riscos à existência da humanidade. Essa
utilizadas na forma de ações indiretas e de
projeção sombria é o trunfo para que a guerra
medidas não militares.
não se amplie em uma escala mundial. Os
(4) Novos acordos e alianças
ensinamentos do conflito atual, certamente,
O possível aumento das pressões
orientarão sua evolução contínua com vistas a
internacionais ampliará, cada vez mais, o

A evolução do pensamento estratégico militar russo Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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isolamento da Rússia em relação ao Ocidente. como uma amostra para o processo de


A aliança China-Rússia-Índia poderá ser modernização e transformação militar
ampliada, conforme citado na própria brasileiro.
Estratégia Nacional de 2021. Ermus e Salum
(2019) complementam que o pensamento Referências
estratégico militar russo sempre esteve mais CASTRO, Thales. Teoria das relações internacionais.
2012, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão. 2012.
próximo do pensamento de Sun Tzu do que
COVINGTON, Stephen R. The Culture of Strategic
da compreensão ocidental do combate. Hoje, Thought Behind Russia’s Modern Approaches to
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a principal diferença é o aumento da https://www.belfercenter.org/sites/default/files/legacy/f
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capacidade russa de executar com sucesso Acesso em: 21 set. 2020.
seus princípios doutrinários, conforme
CRAMERS, Paul A. La vision russe de la guerre
observado a partir da Crimeia em 2014. moderne. Institut d’Étude des Relations
Internationales. 2018. Disponível em:
https://www.researchgate.net/profile/Paul_Alexander_
4. Evolução do processo de Cramers/publication/328568614_La_vision_russe_de_l
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transformação das forças armadas La-vision-russe-de-la-guerre-moderne.pdf.
Acesso em: 2 mar. 2022.
Para concluir, cabe uma reflexão sobre
ENGVAL, Johan; MALMÖF, Thomas. Russian
o processo de modernização ou transformação armament deliveries, Russian Military Capability in a
Ten Perspective-2019 (p. 17-22). FOI Swedish
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organizacional ao analisar a Postura Year_Perspective_-_2019 Acesso em: 2 mar. 2022.

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século XXI e ao colher ensinamentos para o of Hybrid Warfare. 2019. Disponível em:
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A experiência russa passou pela OF-WAR-KOOLON-RUSSIA%E2%80%99S-NEW-
“brigadização”, redução de efetivos, MILITARY-DOCTRINE-AND-THE-CONCEPT-OF-
criação de comandos operacionais HYBRID-WARFARE.pdf Acesso em: 5 fev.2022.
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racionalização da gestão da defesa. Não GARCIA, Eugênio V. O pensamento dos militares em
se produz transformação militar apenas política internacional. Revista Brasil Política
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[...]. Pelo estudo realizado percebe-se https://repositorio.unb.br/handle/10482/25417
que, além do “boom das commodities” Acesso em: 20 fev. 2022.
da década passada, que elevou a
disponibilidade de recursos para a GERASIMOV, Valery. El valor de la ciencia está en la
defesa, as reformas organizacionais capacidad de prever lo que sucederá o podría suceder
funcionaram como a base para a en el futuro. Los nuevos desafíos exigen repensar las
modernização militar. (TEIXEIRA formas y métodos de llevar a cabo las operaciones de
JÚNIOR, 2018, p. 16) combate (Robert Coalson, trad). 2016. Disponível em:
https://www.armyupress.army.mil/Portals/7/military-
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Portanto, diante do que foi exposto, o
modelo estratégico militar russo pode servir

Moacyr Azevedo Couto Junior Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


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internacional: a política de defesa da Rússia no século
XXI – aspectos normativos e operacionais. Tese
(Doutorado em Estudos Estratégicos Internacionais) –
Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Rio Grande do Sul.
2018. Disponível em:

A evolução do pensamento estratégico militar russo Vol 24 (2) Mar/Maio 2022


Quartel-General do Exército,
Bloco A, 70630-970, Brasília-DF.
(61) 3415-4597/ ceeex@eme.eb.mil.br Facebook: ISSN: 2525-457X
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