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Vale a pena viver?

William James

Tradução e apresentação: Gabriel Perissé


Sumário

APRESENTAÇÃO
VALE A PENA VIVER?
APRESENTAÇÃO

O pensador norte-americano William James (1842–1910) dizia que a filosofia não sabe assar
pães. Expressava, com esta imagem, a simplória expectativa de muitos. De fato, conhecemos
pessoas que, embora tendo estudado filosofia em algum momento da vida, consideram esta
disciplina descartável, pois lhes parece que ela não alimenta ninguém, não ergue prédios, não
descobre a cura do câncer, não age diretamente sobre a vida prática, em suma, não tem
utilidade…
Para corrigir essa opinião equivocada, William James aproximava-se do grande público da
sua época, em fins do século XIX, expondo-lhe uma “filosofia popular”, acessível, inteligível. O
intuito era abordar temas relevantes para todos, de um modo mais profundo do que o habitual,
sem cair no perigo do hermetismo. E assim compreendemos por que James, a partir de 1892,
com 50 anos de idade, dedicou-se a ministrar palestras de divulgação de suas ideias, em escolas,
universidades, associações e igrejas, tendo como audiência milhares de professores, estudantes,
profissionais da área da saúde e religiosos.
Cerca de 15 anos antes de iniciar essas jornadas, James havia descoberto que suas leituras
acerca de literatura, história, geologia, química, eletrodinâmica, fisiologia, e seus estudos do
francês, do alemão e do italiano, do latim e do sânscrito possuíam outra função para além de
satisfazer a fome individual de conhecimento. Em 1875, após ministrar suas primeiras aulas,
vendo o entusiasmo dos alunos, deu-se conta de que tinha algo a dizer, e de que o dizia com
facilidade e bons resultados.
Tornou-se, assim, um dos intelectuais mais conhecidos em língua inglesa em seu tempo, e,
por isso mesmo, não faltou quem o criticasse justamente pelo fato de ter popularizado demais a
filosofia entre os não especialistas. Vivesse hoje, talvez tivesse um canal no YouTube, lotaria
auditórios, faria comentários ecléticos nos telejornais, seria solicitado a motivar funcionários em
diferentes empresas, publicaria mais de um best-seller.
Se uma das definições de filosofia é a arte de pensar com clareza, e de ensinar a pensar com
igual clareza em tudo aquilo que diz respeito à existência humana, a questão do suicídio e a do
sentido da vida deveriam então ter lugar de destaque em nossas reflexões. É neste sentido que o
texto de William James, Vale a pena viver?, merece ser conhecido por novos leitores brasileiros.
Ajuda-nos a descobrir a aplicabilidade, em nosso cotidiano mais imediato, daquilo que a filosofia
pode nos oferecer em tempos de maior ou menor perplexidade.
Neste trabalho, que inicialmente foi ouvido por uma plateia de universitários, em 1895,
William James antecipou-se a pelo menos dois estudos filosóficos que se tornaram clássicos na
primeira metade do século seguinte.
Em 1942, no livro O mito de Sísifo, Albert Camus apontava o suicídio como o único
problema filosófico realmente sério, dado que caberia aos filósofos responderem se a vida vale
ou não a pena ser vivida. Para Camus, a alternativa ao suicídio é aprendermos a conviver
livremente com o absurdo desta pedra que rola montanha abaixo a cada vez. Sísifo deve aprender
a ser feliz dentro desta realidade.
Um pouco depois, ainda em plena Segunda Guerra Mundial, surgiu o dramático ensaio de
Paul Ludwig Landsberg sobre o problema moral do suicídio. Foi publicado em 1946, dois anos
após este filósofo católico, mas de origem judaica, ter morrido nas mãos da Gestapo. Ao ser
preso, Landsberg teria podido matar-se, pois carregava consigo uma dose de veneno. Optou por
não ingeri-la em nome daquilo mesmo que escrevera: em lugar do suicídio, o cristão encontra no
martírio seu caminho de redenção.
Quanto a William James, pretendia analisar, não o suicídio em si, mas a relação que as
pessoas têm com a vida. Uma interpretação pessimista da existência, que pode culminar no
desespero, é uma doença religiosa, uma espécie de blasfêmia contra o mundo, ao passo que o
otimismo está associado a algum tipo de crença estimulante, capaz de impulsionar o ser humano
para a luta. Nosso autor não hesitava em elogiar alguns benefícios práticos advindos da fé numa
dimensão invisível da realidade.
Não era ele homem propriamente religioso. Estava ciente, porém, do poder que a religião
exerce sobre a mente humana, tanto mais que recebera, na família, o influxo das ideias
calvinistas. Mantinha-se atento a todos os fenômenos ligados a experiências como conversão e
devoção, aceitação de dogmas, profissão de um credo, anseio de perfeição espiritual, busca
voluntária do sacrifício, reverência ao sagrado, rechaçando, como cientista, toda e qualquer
propensão fanática e, ao mesmo tempo, evitando a desconfiança positivista.
Sua postura intelectual encaminhava-se para o equilíbrio. Cabe à ciência criticar o absurdo,
o ilógico, o extravagante, mas não convém, em nome da própria ciência, negar a possibilidade do
até aqui inexplicável. Ao contrário, devemos encarar este inexplicável com a energia do
raciocínio e com o desejo de verificar até onde isso ou aquilo faz sentido. A propósito, poderia
ele, muito bem, repetir com o escritor inglês Gilbert Chesterton que é mais saudável mergulhar
de cabeça em direção ao mundo do que querer colocar o mundo inteiro dentro da cabeça. Em
qual dos dois movimentos a cabeça explodirá? Aliás, muito mais condizente com a coerência da
racionalidade científica é aceitar que o mundo é enigmático, ultrapassando em complexidade o
que nos ensinam tantos compêndios, enciclopédias e tratados.
A honestidade intelectual de que William James poderia se orgulhar moveu-o a celebrar
uma espécie de casamento entre filosofia, biologia, psicologia e ciência da religião. O que
importa, afinal, àqueles que desejam conhecer a realidade? Importa analisar a experiência do ser
humano real, seja ele crente ou descrente, cristão ou não cristão, aparentemente insano ou talvez
sensato. Importa reconhecer o sentido vital da religião, descrever com exatidão as reações de
quem acredita num mundo sobrenatural, entrever as motivações íntimas de quem deposita sua
confiança em Deus. Importa perceber e ponderar como determinadas concepções da divindade
afetam o comportamento humano, para o bem ou para o mal.
Esta era uma tônica do pragmatismo jamesiano: inteirar-se da realidade, aplicar sobre a
realidade os cinco sentidos, sem concessões, de modo particular sobre a realidade humana, a fim
de examiná-la a fundo e, a partir desse esquadrinhamento, definir a verdade segundo o critério do
valor prático.
Conta-se, aliás, uma história que ilustra bem o modus cognoscendi de William James. Já
com 64 anos de idade, em 1906, estava ele morando provisoriamente em São Francisco,
Califórnia. Certo dia pela manhã, ocorreu ali um terremoto de magnitude 7.9 que derrubou
prédios e provocou alguns incêndios, assustando bastante a população local. Sua reação, no
entanto, foi inusitada e quase tão chocante quanto o próprio terremoto! Todos à procura de
ajuda ou abrigo, e James percorrendo as ruas da cidade para observar os habitantes e registrar
de que modo uma coletividade em pânico se comporta. O desastre foi visto por ele como uma
ocasião imperdível, um autêntico laboratório ao ar livre para suas pesquisas…
Mas voltemos ao tema da palestra aqui publicada. O suicídio, ao longo dos tempos, foi uma
questão grave que às religiões cabia julgar. Condenado enfaticamente pela lei judaica e pelo
Alcorão, considerado pelo budismo como uma ação não condizente com a via da iluminação, e
proibido pelo cristianismo, o suicídio, mesmo aquele que as almas nobres cometiam em nome da
honra, perdeu terreno sobretudo no ocidente, devido à crescente presença cristã em todas as
instâncias sociais a partir do século IV.
Curiosamente, a realidade existia, mas não a palavra “suicídio”, que surgiu apenas no
século XVII, no ambiente médico inglês. O fato linguístico coincide com (ou conduz a) novas
investigações do suicídio como problema de saúde (mental) e, já no século XIX, como
problema social mais do que moral e religioso.
Na década de 1960, a suicidologia (termo concebido pelo sociólogo holandês Willem
Bonger algumas décadas antes) tornou-se campo específico do saber, e hoje contamos com uma
infinidade de estudos sobre o suicídio do ponto de vista da demografia, da história, da psicologia,
do direito, da antropologia, da bioética, da neuro-ciência etc.
William James, contemporâneo de Émile Durkheim, cuja obra O suicídio (1897) é
obrigatório recordar não se esquivou de uma abordagem filosófica do problema e, o que é uma
suposição plausível, estaria, na verdade, tirando a limpo uma parte de sua própria biografia: na
adolescência, enfrentou crises depressivas que quase o levaram a se matar.
Quanto ao contexto social, vale a pena dizer algo, pois faz pensar em nosso próprio tempo.
Desde o início do século XIX já pairava no ar a clara percepção de que vinha aumentando,
sem precedentes, o número de suicídios em várias partes do mundo. Apesar de precárias e
necessariamente localizadas, encontramos nas estatísticas indicações de que nos primeiros dez
anos daquele mesmo século havia um suicida em cada 7 mil habitantes norte-americanos, um em
cada 14 mil prussianos, um em cada 16 mil ingleses, um em cada 20 mil franceses, um em cada
25 mil austríacos, um em cada 108 mil espanhóis e um em cada 140 mil portugueses.
Proporcionalmente, o suicídio nos EUA já se mostrava, portanto, mais frequente do que em
todos os países europeus. Essa tendência confirmou-se nas décadas seguintes. No final do século
XIX, verificava-se entre os norte-americanos o que se denominou de “suicide craze”, uma
epidemia de suicídios, uma mania, quase uma moda. Com uma porcentagem assustadora de
jovens envolvidos. A morte parecia mais atraente do que a vida? Matar-se seria a melhor saída
diante dos medos, problemas e frustrações das quais ninguém está livre?
James sugeria aos seus ouvintes e leitores que reagissem à ideia do suicídio, redescobrindo
em si mesmos forças naturais positivas, capacidades ocultas, vontade de superação. Uma
profunda convicção sua era a de que devemos ir em frente, sempre. Ao menos (dizia com certa
graça) para receber uma carta inesperada ou saber quais serão as notícias do dia seguinte.
Talvez pensasse que aquela curiosidade devoradora, aquele desejo de aprender que sentia
em si como característica pessoal inegociável, pudesse ser despertado igualmente nos demais,
tornando-se para qualquer ser humano um constante estímulo a favor da vida.
A curiosidade, sozinha, dispersa. Aliada ao rigor intelectual, torna-se fonte privilegiada de
pesquisa. William James estava sempre aberto a aprender, e, obedecendo ao impulso filosófico
que o habitava, queria conhecer terapias alternativas ou heterodoxas, desbravar novos territórios.
Para mencionar um único exemplo, mesmo contrariando a tendência dominante entre os médicos
e farmacêuticos de então, estudou a homeopatia e não deixou de defendê-la publicamente.
A viagem que William James fez ao Brasil em 1865-66, com 23 anos de idade, testemunha
com eloquência a sua curiosidade pelo que existe na vida de incomum e surpreendente. O projeto
foi, pagando do seu próprio bolso, incluir-se como coletor voluntário de peixes brasileiros,
especialidade do líder da expedição, Louis Agassiz, seu professor de zoologia, em Harvard (onde
James cursava o segundo ano de Medicina).
Correr alguns riscos fazia parte do jogo, e o jovem expedicionário o sentiu na pele, ao
contrair varíola no Rio de Janeiro, permanecendo cego durante algumas semanas por causa do
vírus. Ao mesmo tempo, pôde contemplar o céu ardente das terras tropicais (queixava-se de uma
ilimitada transpiração), o verde vivo da mata, e extasiar-se com belíssimas paisagens, encontrar
uma fauna que jamais imaginara existir (ficou impressionadíssimo com as reações emocionais de
um pequeno macaco-aranha), ouvir a cantoria intensa dos pássaros, e dormir numa rede (e lutar
contra os pernilongos), saborear o delicioso pirarucu seco com farinha de mandioca e a carne de
tartaruga com banana, e aprender a se comunicar em língua portuguesa, e interagir com os índios
da Amazônia, enfim, experimentou intensamente todas as consequências de sua escolha
aventureira.
Não faltaram motivos para desistir daquela peripécia, mais de uma vez. Contudo, era
preciso ir em frente. Era preciso esforçar-se e concluir o que fora iniciado. Cumprir o que havia
se proposto a realizar, não dar espaço para a melancolia. Pois não estava apenas numa viagem
turística a lugares exóticos. O professor Agassiz lhe dissera, em tom profético, que naquela
excursão científica o estudante William James aprenderia a conhecer-se melhor e, sem dúvida,
regressaria mais seguro e preparado para a vida.
Após esta sua longa viagem por terras, rios e mares, concluiu o curso de Medicina em 1869,
decidindo-se, porém, a não exercer essa profissão. Sabia agora que não nascera para ser médico.
Uma coisa, no entanto, conquistara durante aqueles anos de estudo: a certeza de ter se tornado
um autêntico cientista.
Ainda passaria por algumas tempestades emocionais no início da década de 1870.
Persistente, no entanto, William James foi vencendo as hesitações da adolescência/juventude,
sem abandonar a sua viagem pessoal em busca do conhecimento. Muito aprendeu e ensinou. É
notória a sua influência sobre o pensamento de outros importantes pesquisadores da realidade
humana, ainda que lhe seja negado, até hoje, o pleno reconhecimento que mereceria. Há quem o
denomine, maldosamente, um filósofo “literário”, como se a literatura diminuísse sua capacidade
de raciocínio.
O já mencionado Émile Durkheim, e também Edmund Husserl, Bertrand Russell, Ludwig
Wittgenstein e Hilary Putnam beneficiaram-se intelectualmente do contato com a obra de
William James, escapando, assim, das garras dos reducionismos cientificistas. O psicólogo
austríaco Alfred Adler chamava-o de “grande filósofo”. Lendo as próximas páginas, eu ousaria
dizer, com a ajuda de Jorge Luis Borges, que, de fato, William James foi um pensador e um
escritor. Um pensador original exatamente por escrever muito bem.

Gabriel Perissé
Escritor e tradutor
Mestre em Teologia (PUC–RS)
Doutor em Filosofia da Educação (USP)
VALE A PENA VIVER?

Palestra realizada na Associação Cristã de Moços da Universidade de Harvard, em 1895. Publicada pela primeira vez no
International Journal of Ethics (n. 6, de outubro de 1895), foi incluída como um dos ensaios do livro The will to believe and
other essays in popular philosophy (New York: Longmans, Green & Co., 1897).
*
Todas as notas pertencem
ao trabalho de tradução
realizado para esta edição.
Quando veio a público há mais ou menos quinze anos o livro Is life worth living?, do escritor
inglês William H. Mallock (com o mesmo título desta nossa palestra, “Vale a pena viver?”),
muitos críticos, em tom de brincadeira, deram nos jornais a seguinte resposta: “vai depender de
como anda a saúde do sujeito”.1
A minha resposta a esta pergunta nada tem de irônica. Ao contrário. Começo a apresentação
do meu tema com as palavras que Shakespeare escreveu num dos seus prólogos:

Não venho desta vez provocar vosso riso.


As graves cenas de hoje possuem o peso
das coisas elevadas, cheias de tristeza.2

No mais fundo do coração de cada um de nós há um pequeno espaço oculto em que se guarda o
maior de todos os mistérios da vida. E, seja lá o que a Associação Cristã de Moços tenha
pretendido ao me convidar como palestrante, ou o que vocês mesmos esperem hoje de mim,
certamente será algo que os conduza para além das coisas superficiais e passageiras.
Minha intenção é que, pelo menos durante essa próxima hora, vocês esqueçam um pouco da
agitação barulhenta lá fora e do frenesi causado pelas pequenas preocupações e correrias que
compõem o tecido de nossa consciência cotidiana. Sem mais explicações ou desculpas, peço-lhes
agora que se unam a mim para, juntos, prestarmos atenção (em geral, não estamos muito
atentos…) às notas mais graves e intensas da música da vida. Que ao longo desta palestra
saibamos explorar estas solitárias profundezas, e vejamos que respostas é possível encontrar para
esta nossa questão, investigando o âmago das coisas.

TEMPERAMENTOS OTIMISTAS OU PESSIMISTAS


Para as pessoas que possuem um temperamento otimista, a questão sobre o valor da existência já
está resolvida. Quem é naturalmente otimista não acredita que possa existir na vida algo
demasiado ruim. A obra poética do nosso admirado Walt Whitman3 continua sendo uma espécie
de manual para esse tipo de otimismo. A pura e simples alegria de viver, circulando de modo tão
intenso nas veias deste autor, anula a presença de qualquer outro sentimento, como percebemos
nestes versos:

Respirar o ar, que delicioso!


Falar, andar, pegar alguma coisa com as mãos! […]
Ser este incrível Deus que sou! […]
Ó maravilhosa realidade de todas as coisas,
até em sua menor partícula!
Ó espiritualidade das coisas! […]
Eu louvo o Sol quando ele chega à plenitude,
ou como agora, quando ele se põe,
E meu cérebro vibra com a beleza da terra e
com tudo o que cresce na terra. […]
Eu canto até o fim a igualdade entre o moderno e o antigo,
Eu canto os finales sem fim de todas as coisas,
Eu digo que a Natureza continua, a glória continua,
Eu louvo a tudo com a minha voz elétrica,
Pois não vejo nenhuma imperfeição no universo.
Não vejo, enfim, nenhuma causa ou efeito
a lamentar no universo.4
Também Rousseau, escrevendo sobre os nove anos em que viveu na cidade de Annecy, só tem a
expressar felicidade:
[…] como dizer o que jamais se disse, o que nunca foi feito nem pensado, mas foi, sim, degustado, mas foi sentido, sem
que se possa atribuir minha felicidade a alguma coisa concreta, a não ser ao próprio sentimento de felicidade? Eu me
levantava tão logo o sol nascia, e eu era feliz; eu passeava, e era feliz; eu via maman, e era feliz; eu me despedia dela, e
era feliz; eu vagueava à toa no meio das árvores, descia e subia encostas, os vales, fazia minhas leituras, ficava horas por
conta do acaso; trabalhava um pouco no jardim, colhia os frutos, ajudava em alguma tarefa em casa, e a felicidade me
seguia por todos os lugares: ela não estava em nenhuma coisa específica, mas totalmente dentro de mim, e não me
abandonava um instante sequer. 5

Se esse estado de ânimo pudesse ser algo permanente e constituísse o temperamento de todas as
pessoas do mundo, não haveria necessidade alguma de fazer palestras como esta que acabo de
iniciar. Nenhum filósofo tentaria provar, de modo racional, que vale a pena viver, pois tal ideia já
estaria absolutamente comprovada por si mesma. O problema que nos ocupa desapareceria antes
mesmo que alguém pensasse em perguntar sobre ele, uma vez que a resposta já estaria pronta.
Mas nós não podemos, num passe de mágica, fazer com que o temperamento otimista seja algo
universal. Ao lado dos arroubos de felicidade diante da vida, provenientes do temperamento
otimista, sempre iremos encontrar as manifestações do temperamento pessimista, que se opõem
àqueles arroubos como uma refutação.
Na chamado “loucura circular”,6 fases de melancolia e de euforia se sucedem, sem que
possamos descobrir uma causa externa para essa alternância. Nesses casos, a mesma pessoa hoje
radiante de alegria será amanhã a própria encarnação da tristeza. Tudo dependerá das flutuações
dessa “mistura dos humores”, expressão que se lia nos antigos livros de medicina, ou, para
retomarmos a piada jornalística: tudo vai depender de como anda o fígado do sujeito. O
temperamento instável de Rousseau produziu nele profundas mudanças em seus últimos anos de
vida, tornando-o presa da melancolia, de delírios sombrios e temores infundados.
Alguns homens parecem ter vindo ao mundo com uma incapacidade absoluta para a
felicidade – tal como, em sentido contrário, Walt Whitman parece totalmente a salvo da tristeza
–, e também eles nos deixaram em versos inesquecíveis suas mensagens de dor, a exemplo do
refinado poeta Leopardi,7 ou, entre nossos contemporâneos, James Thomson,8 autor deste livro
tenebroso, A cidade da terrível noite, que, por sua grande beleza literária, mereceria ser muito
mais conhecido. Não o é, provavelmente, porque suas palavras são de fato apavorantes,
desoladoras e, ao mesmo tempo, carregadas de sinceridade. Em determinado ponto desta obra, o
poeta descreve uma congregação reunida na penumbra de uma catedral para ouvir um pregador.
Citarei apenas o trecho final do longo sermão:

“Como são breves, ó irmãos de amarga vida,


Os poucos anos entre nós e o final alívio!
Resta-nos suportar este cansativo alento!
Mas se desta pobre existência quereis fugir,

Vede! Para dar-lhe fim sois totalmente livres,


E não tenhais medo de acordar após a morte!”

As vibrações organísticas de sua voz


Ressoavam e desfaleciam pelas abóbadas.
A musicalidade que ali se propagava
Era tenebrosa e grave como um canto fúnebre.
E nossa congregação sombria meditava
Nisto: “Para dar-lhe fim sois totalmente livres”.

[…]

Ouvindo atentamente a mensagem transmitida,


Nossa congregação sombria ainda meditava
Nisto: “Para dar-lhe fim sois totalmente livres”.
Porventura aguardava-se ouvir outras palavras,
Quando um grito estridente, um gemido sofredor,
Diante de nós caiu como relâmpago do céu!

E o que o orador dizia, ai de nós, era verdade:


“Não teremos nenhuma outra vida após o túmulo!
Deus não existe! Nem ira nem perdão haverá!
E onde poderei antes disso encontrar consolo?

Em toda a eternidade, uma chance tive apenas,


Alguns poucos anos de agradável vida humana,
Algumas luzes quando o pensamento avança,
A doçura de um lar, os filhos pequenos, a esposa,

As satisfações de uma vida social amena,


O fascinante universo das belas-artes,

A grandiosidade da Natureza, cuja luz


É a luz de um vasto coração resplandecente,

O enlevo de estar vivo e cheio de saúde,


A despreocupada infância, a ardente juventude,
A vigorosa maturidade e suas vitórias,
A idade veneranda, a veraz sabedoria,

Todas as sublimes prerrogativas do Homem,


Todas as memórias do passado conservadas,
O paciente estudo sobre os segredos do mundo
Através de inúmeras sequências e mudanças…

Tal chance em outro momento jamais recebi.


O passado infinito é para mim vazio e mudo.
Esta chance de agora jamais, jamais voltará.
Meu infinito porvir é vazio, vazio…

Inútil foi, desde que nasci, esta chance única,


Uma farsa, uma ilusão, e manter-me ainda vivo
Com alguma decência sobre esta terra
É tão cruel que chego a desejar a morte súbita.

O vinho da vida é veneno mesclado a bílis,


Minha plenitude é autêntico pesadelo.
E pior do que perder o tempo recebido
É nada me consolar pela suprema perda.

Não faleis em consolo, pois consolo não há!


Não faleis mais! Palavras nada podem mudar!
A vida é uma fraude, a morte é um abismo.
Calai! E mudos contemplai o desespero!”
Da ala norte veio esta veemente voz,
Veloz e aguda até sua abrupta conclusão,
E nada mais ninguém falou por alguns minutos,
Pois palavras faltam diante do infortúnio mudo.
Enfim, do púlpito, o orador simplesmente disse,
Com os olhos úmidos, inclinando a fronte pensativa:

“Meu irmão, meus pobres irmãos, isso é tudo!


Nada resta de bom nesta vida para nós.
Vida que cedo se vai e não volta jamais,
Sobre a qual nada sabíamos antes de nascer
E menos saberemos quando a terra nos tragar!
Saber que não saberei consola a minha mente!”

“Vida que cedo se vai e não volta jamais”, “Vede! Para dar-lhe fim (fim à vida) sois totalmente
livres” – estes versos nascem com total sinceridade do estilo melancólico de Thomson, e são, de
fato, um consolo para todos aqueles que, vendo o mundo como o poeta vê, consideram esta vida
mais como uma caverna de horrores sem fim do que uma fonte de contínuas alegrias. Esta vida
não vale a pena ser vivida, é o que declara um exército de suicidas, um exército convocado pela
famosa evening gun do exército britânico, a salva de tiros que avisa às tropas que é preciso
recuar, e os soldados começam a bater em retirada ao redor do mundo, e não param mais.
Também nós aqui, confortavelmente sentados, devemos inclinar a “fronte pensativa” para
refletir, pois somos feitos da mesma substância dos suicidas, compartilhamos com eles a mesma
vida humana. Uma honestidade intelectual mínima nos obriga – sem falar de uma integridade e
honradez básica – a analisar a questão que eles nos apresentam.
Ouçamos estas palavras de John Ruskin:9
Se, em alguma residência londrina, em plena degustação de um prazeroso jantar e de amenidades sentimentais,
subitamente as paredes daquele cômodo caíssem e por essa passagem entrassem, para nos fazer companhia à mesa –
compartilhando nosso alimento e conversação –, seres humanos famintos que estivessem andando por ali perto, seres
humanos que vivem na miséria; se entrassem naquele cômodo homens e mulheres pálidos de morte, terrivelmente
desamparados, alquebrados pelo desespero, e pisassem nos macios tapetes daquela casa, e se cada um se sentasse ombro a
ombro com todos os convidados que antes lá estivessem, receberiam talvez algumas migalhas dos nossos sofisticados
pratos? Lançar-lhes-íamos, ao menos, um rápido olhar, dar-lhes-íamos a possibilidade de um breve diálogo? Contudo,
encarando os fatos à nossa volta, o real relacionamento entre cada Dives 10 e cada Lázaro não é muito diferente disso,
haja ou não paredes entre a mesa farta e o leito do enfermo – afinal, apenas alguns metros (alguns poucos metros!)
separam o contentamento da tristeza.

COMO RECONCILIAR O SUICIDA EM POTENCIAL COM A VIDA?


Indo agora diretamente ao ponto central do nosso tema, proponho que imaginemos alguém, um
dos muitos dos nossos semelhantes desta vida mortal, cujo único consolo reside em ser
totalmente livre para dar fim à vida, conforme disse o pregador daquele poema que líamos antes.
Com que argumentos poderíamos convencer este nosso irmão (ou irmã) a repensar sua atitude e
assumir de novo a pesada tarefa de viver?
A maioria dos cristãos, tentando dissuadir o suicida em potencial, tem muito pouco a
oferecer além da usual negativa: “Você não deve se matar”. Dirão esses cristãos que somente
Deus é o senhor da vida e da morte, e que é um verdadeiro sacrilégio antecipar uma decisão que
só a Deus todo-poderoso cabe tomar. Mas será que nós não poderíamos encontrar nada mais
profundo ou mais positivo do que isso? Será impossível apresentar ao suicida uma reflexão que o
faça ver de modo claro e sentir com sombria seriedade que, apesar dos aspectos adversos, mesmo
para ele a vida ainda vale a pena ser vivida?
Há suicidas e suicidas (nos Estados Unidos, cerca de três mil pessoas se suicidam por
ano),11 e devo admitir com toda a franqueza que minhas sugestões são incapazes de influenciar a
maioria deles. Quando o suicídio é resultado da loucura ou de um desvario repentino, de um
impulso, nenhuma reflexão consegue frear sua consecução. Casos como estes pertencem ao
supremo mistério do mal, a respeito do qual, no término desta palestra, poderei oferecer apenas
algumas considerações na linha da paciência religiosa. Meu objetivo, aqui, na verdade, é bem
limitado, e minhas palavras estão dirigidas unicamente ao problema do taedium vitae metafísico,
algo peculiar aos homens pensantes.
Neste recinto, muitos de vocês se dedicam, com diferentes motivações, à vida reflexiva.
Muitos aqui são estudantes de filosofia, e já experimentaram em si mesmos o ceticismo e o senso
de absurdo quando começaram a mergulhar nas raízes abstratas das coisas. Este é, afinal, um dos
frutos mais comuns das carreiras extremamente intelectualizadas. O excesso de questionamentos
no nível das ideias e um certo descompromisso com as realidades práticas nos conduzem – quase
com a mesma frequência no caso de quem, ao contrário, pratica o sensualismo 12 – à beira de
uma rampa em cujo ponto mais baixo encontram-se o pessimismo e uma visão da vida em que
tudo é pesadelo e desespero. Mas a esses males provocados pela reflexão excessiva podemos
opor uma nova reflexão que nos oferecerá um remédio eficaz. É sobre a melancolia, ou mais
precisamente sobre o conceito de Weltschmerz13 que pretendo agora falar.
Permitam-me dizer, logo de saída, que meus argumentos caminham claramente em direção
à fé religiosa. O que haverá de eventualmente destrutivo em minhas considerações tem por
objetivo apenas afastar pontos de vista que costumam bloquear nosso acesso às fontes da fé
religiosa. Esse aspecto destrutivo, na realidade, é uma forma de construir. Pretendo trazer à luz
algumas considerações o mais precisas possível sobre o contato normal e natural que devemos
ter com essas fontes. O pessimismo é, em sua essência, uma doença religiosa, e o modo pelo qual
este pessimismo pode vir a atingi-los consiste num questionamento que nem sempre recebe
adequada resposta religiosa.
Ora, para que alguém se recupere desta doença precisará percorrer duas etapas, passando de
uma visão noturna para uma visão diurna das coisas. Analisarei as duas em separado. Antecipo
que a segunda etapa é a mais completa e animosa, e corresponde a um exercício mais livre da
confiança e da imaginação religiosas.
Existem, como sabemos, pessoas que naturalmente lidam de modo mais desembaraçado
com a temática religiosa, e outras que têm muitas dificuldades a esse respeito. Há pessoas, por
exemplo, que aceitam sem reservas a expectativa de imortalidade que carregam em seus
corações, e há outras que experimentam grande dificuldade para aceitar que tal noção de
imortalidade possua um mínimo de consistência e realidade. Estas últimas encontram-se atadas
aos seus sentidos, limitadas à sua experiência natural e, além disso, cultivam uma espécie de
lealdade intelectual para com o que chamam de “fatos concretos”, sentindo-se surpresas ao
verem a facilidade com que outras pessoas incursionam no domínio do invisível ao simples
chamado do sentimento.
Ambas as mentalidades, porém, são intensamente religiosas. Ambas, igualmente, aspiram à
redenção e à reconciliação, e anseiam entrar em harmonia e comunhão com a essência de todas
as coisas. Quando estamos presos aos fatos concretos, especialmente pelo modo como a ciência
nos revela esses fatos, aquele anseio tende a fomentar o pessimismo tão facilmente quanto o
otimismo, se, neste último caso, estivermos inspirados pela confiança e pela imaginação
religiosas, podendo alçar voo em direção a um mundo diferente e melhor.
Eis a razão pela qual eu disse que o pessimismo é essencialmente uma doença religiosa. Não
faltam influências de origem orgânica numa interpretação da vida como pesadelo, mas a causa
mais profunda tem sido sempre a contradição entre os fenômenos naturais e o anseio do coração
por acreditar que, subjacente à natureza, existiria uma realidade espiritual cuja expressão seria a
própria natureza. Uma forma de apaziguar esse anseio é o que os filósofos costumam chamar de
“teologia natural”. Outra opção é a poesia de natureza, que em nossa literatura encontramos com
abundância.
Retomando a classificação de mentalidades que fizemos antes, consideremos o segundo
tipo, cuja tendência dominante, portanto, está em concentrar sua atenção nos “fatos concretos”. E
vamos admitir que, além dessa tendência, haja também um intenso desejo pela comunhão
harmoniosa com todas as coisas. Tal mentalidade, porém, constata que é desesperadamente
difícil interpretar a natureza de modo científico, empregando categorias teológicas ou poéticas.
Que outro resultado teremos aqui a não ser uma íntima discordância, um profundo desgosto?
Ora, essa discordância íntima (enquanto discordância apenas) pode ser aplacada de duas
formas: ou o anseio por interpretar os fatos em termos religiosos desaparece, deixando os fatos
serem pura e simplesmente o que são, ou a pessoa descobre ou passa a acreditar em fatos
adicionais, o que permite sustentar uma interpretação religiosa. Essas duas formas de distensão
constituem os dois estágios de recuperação, os dois níveis de libertação do pessimismo que
mencionei há pouco, e que, assim espero, compreenderemos com mais clareza a seguir.

A MELANCOLIA RELIGIOSA E SUA CURA


Comecemos então pela natureza. Se estivermos imbuídos do anseio religioso, será uma tendência
natural nossa repetir com Marco Aurélio: “Ó Universo! Teus desejos são meus desejos”.14
Nossos livros sagrados e nossas tradições falam de um Deus que criou o céu e a terra e, ao
contemplá-los, viu que eram realidades boas. No entanto, observando com maior cuidado,
percebemos que os aspectos visíveis do céu e da terra se recusam a ser integrados por nós numa
unidade inteligível.
Todo fenômeno cuja existência louvamos está, por assim dizer, colado a algum fenômeno
contrário que cancela todo o seu efeito religioso sobre nossa mente. Beleza e monstruosidade,
amor e crueldade, vida e morte convivem numa indissolúvel relação. E é nesse momento que, em
lugar daquela aconchegante noção de uma Divindade que ama o ser humano, apodera-se de nós a
ideia de uma força superior terrível que nem odeia nem ama, mas envolve e conduz todas as
coisas para um destino comum e sem sentido.
Trata-se de uma visão de mundo assustadora e sinistra, um autêntico pesadelo, e sua
peculiar Unheimlichkeit,15 ou toxicidade, consiste expressamente em que sustentamos ao mesmo
tempo duas coisas que jamais poderão concordar uma com a outra.
Por um lado, nós nos agarramos à exigência de que exista um espírito vivo por trás da
totalidade do universo e, por outro, à crença de que o curso da natureza deva ser a manifestação e
expressão adequada desse mesmo espírito. Nesta contradição entre um espírito que tudo
abarcaria, e com o qual deveríamos estabelecer algum tipo de união, e os atributos de tal espírito,
revelados pelos acontecimentos do mundo visível, reside este particular paradoxo da morte em
vida, este enigma que produz tanta melancolia.
Carlyle expressa os efeitos desse estado de ânimo no capítulo O Não Eterno, do seu imortal
Sartor resartus.16 Escreve assim o infeliz Teufelsdröckh, protagonista desse romance:
Vivi numa apreensão contínua, deprimente, indefinida; sempre hesitante, intimidado, temendo não sabia exatamente o
quê: parecia-me que todas as coisas que há no mais alto dos céus e nas profundezas da terra poderiam a qualquer
momento avançar sobre mim; os céus e a terra seriam na verdade mandíbulas infinitas de um terrível monstro, preso entre
as quais, eu, trêmulo da cabeça aos pés, esperava para ser devorado.

Esta é a primeira fase da melancolia especulativa. Nenhum animal jamais sentirá esse tipo de
melancolia. Tampouco o homem irreligioso cairá sob suas garras. Trata-se do calafrio doentio
decorrente do desejo religioso frustrado, e não de um mero resultado da experiência animal.
O próprio Teufelsdröckh teria conseguido encarar melhor o caos geral e a tormentosa
experiência do mundo se, desde o princípio, não tivesse sido vítima de uma ilimitada confiança e
afeição por essa realidade. Caso tivesse abordado essa questão passo a passo, sem a pretensão de
encontrar ali a expressão de uma totalidade, evitando os aspectos mais sombrios e aderindo aos
mais agradáveis, aceitando o vaivém das circunstâncias, pois, afinal de contas, nossos dias são
feitos de altos e baixos, alcançaria ele um destino melhor, mesmo que ziguezagueando. Não
precisaria depois desfazer-se em tantos lamentos.
Um pouco de leveza, uma certa despreocupação perante os males do mundo poderia atuar,
na prática, como excelente anestésico. Mas nem sempre é assim! Algo no fundo da alma de
Teufelsdröckh, e em nossas profundidades também, nos diz que existe em todas as coisas um
Espírito ao qual devemos fidelidade, e em nome do qual devemos manter uma atitude de
seriedade. E é por isso que persistem em nós a inquietação interior e a sensação de que as coisas
não se encaixam totalmente, pois o que vemos na natureza não revela a presença de tal Espírito.
Em nosso atual estágio de conhecimento, nada nos faz supor que seja possível ir além dos
fenômenos estritamente naturais.

O DECLÍNIO DA TEOLOGIA NATURAL


Não hesito em lhes confessar com toda a franqueza que esta real e genuína discordância interior
parece-me acarretar de modo inevitável a falência da religião natural em sua acepção simples e
ingênua. Foi-se o tempo em que pensadores como Leibniz,17 com suas cabeças cobertas por
monstruosas perucas, podiam compor teodiceias, e em que os representantes oficiais de uma
igreja estabelecida, satisfeitos consigo mesmos, pensavam provar a existência de um “Supremo
Arquiteto do Universo” por meio das válvulas do coração e dos ligamentos redondos do quadril.
Isso tudo agora é coisa do passado. Nós, do século XIX, com nossas teorias evolucionistas e a
filosofia mecânica, conhecemos a natureza tão bem e com tanta imparcialidade, que já não
podemos adorar sem reservas um Deus cujos atributos seriam a expressão dos fenômenos
naturais.
Na verdade, tudo o que sabemos a respeito do bem e do dever procede da natureza. Mas o
mesmo se dá com o nosso conhecimento a respeito do mal. A natureza visível é toda ela
maleabilidade e indiferença: um multiverso moral, poderíamos dizer, mais do que um universo
moral. E a essa meretriz18 não devemos nenhuma fidelidade. Com ela, como um todo, não
podemos estabelecer nenhuma comunhão moral. E em nossas relações com suas diversas partes
somos livres para obedecer ou destruir, seguindo tão somente a lei da prudência, em vista dos
meios que nos ajudem a alcançar nossos fins particulares.
Se existe um Espírito divino do universo, não caberia à natureza, tal como a conhecemos,
dar a última palavra ao ser humano. Das duas uma: ou a natureza não revela Espírito algum, ou
se trata de uma revelação inadequada. E (como afirmam todas as religiões superiores) o que
chamamos natureza visível, ou este mundo, consiste em um véu, em uma aparência superficial
cujo sentido pleno reside em um outro mundo, em um mundo invisível, adicional.
Ao considerarmos o todo, é evidente um ganho (embora pareça uma triste perda para
determinadas visões poéticas) o fato de que a superstição naturalista e a adoração do Deus da
natureza, tomadas em si mesmas, tenham começado a perder seu influxo sobre as mentes
educadas.
Se posso expressar minha opinião pessoal sem reservas, eu diria (a despeito de esta ideia
soar inicialmente como uma blasfêmia para alguns ouvidos) que o primeiro passo em direção a
uma relação saudável com o universo consiste em rebelar-se contra a ideia de que essa espécie de
Deus exista. Tal rebelião está descrita, essencialmente, no mesmo capítulo do livro de Carlyle
que citamos há pouco:
“Por que razão”, dirigia-me a mim mesmo, “seu covarde, você não para de uma vez por todas de choramingar e
resmungar, de tremer e encolher-se de medo? Bípede desprezível! Onde está o seu brio, o seu amor-próprio? Não
consegue suportar nada? Como Filho da Liberdade, embora vivendo no exílio, não sabe calcar sob seus pés o próprio
Inferno em que você é consumido? Pois que venha o que tiver que vir ao meu encontro! Aceito o desafio!” Neste exato
momento, algo semelhante a uma torrente de fogo atravessou a minha alma, e livrei-me para sempre do vergonhoso medo
[…].

Foi assim que o Não Eterno ecoou vigorosamente em cada recanto do meu ser, do meu Eu, e o meu Eu como um todo
ergueu-se, em sua original grandeza de criatura divina, lançando o seu protesto. Tal protesto, que representou a
transformação mais importante da minha vida, poderia ser também perfeitamente chamado, de um ponto de vista
psicológico, indignação e audácia. O Não Eterno disse: “Veja, você não passa de um órfão, de um proscrito, e é a mim
que o Universo pertence”, ao que todo o meu Eu respondeu agora: “Eu não lhe pertenço, sou livre, e eu O odeio para
sempre!”

A partir daquela hora, Teufelsdröckh-Carlyle acrescentaria: “Tornei-me um ser humano!”


E aquele nosso pobre amigo, o poeta James Thomson, escreveu de forma semelhante:

Neste lugar de dor, quem será mais infeliz?


Serei eu talvez, e se este miserável eu for,
Prefiro ser assim, a ser Aquele que fez
Tais criaturas para a sua própria desonra.

A coisa mais vil não será tão vil como Tu,


Que a esta coisa deste a vida, Senhor meu!
Criador do infortúnio e do pecado, Deus
Maligno e implacável! Eu te asseguro

Que nem por todo o teu Poder, real ou não,


Nem por todos os templos à tua Glória construídos,
Jamais este erro infame eu cometeria
De criar tais seres em tal degradação.

Já estamos habituados a ver, em nosso convívio, pessoas que experimentam uma grande alegria
quando se desvencilham da crença naquele Deus de seus ancestrais calvinistas, aquele que criou
o jardim e a serpente, e que acendeu por antecipação o eterno fogo do inferno. Algumas dessas
pessoas encontraram deuses mais compreensivos para adorar. Outras simplesmente desligaram-
se de toda e qualquer teologia. Em ambos os casos, porém, elas nos asseguram ter encontrado
uma imensa felicidade para as suas almas no momento em que se livraram do pensamento
sofístico que as obrigava a obedecer e reverenciar um ídolo inaceitável.
Contudo, transformar o espírito da natureza num ídolo e dispor-se a adorá-lo é sucumbir a
um novo sofisma. Em almas religiosas que ao mesmo tempo pensam cientificamente tal sofisma
provoca a melancolia filosófica, para escapar da qual a primeira coisa a fazer é negar este ídolo.
E esta queda, produza ou não algum tipo de contentamento, joga por terra o estado de espírito
lamuriento e acovardado.
Encarar o mal simplesmente pelo que ele é facilita muito as coisas, pois a relação com ele
passa a ser algo de ordem meramente prática. O mal deixa de surgir como assombração e perde
seu significado fantasmagórico e desconcertante, tão logo a mente humana consegue tomar a
ofensiva, abordando-o em suas diferentes manifestações, sem preocupar-se com sua procedência
de “um só e único Poder”.

ANTÍDOTOS INSTINTIVOS PARA O PESSIMISMO


Tendo chegado ao estágio de libertação da superstição monista, o potencial suicida pode agora
entrever algumas respostas encorajadoras para a sua questão sobre o valor da vida. Na maior
parte das pessoas existem fontes instintivas de saudável vitalidade que voltam a jorrar quando
retiramos delas o peso de uma responsabilidade metafísica e infinita. A certeza de que uma
pessoa pode retirar-se voluntariamente da vida sem que isso implique em algo pecaminoso ou
monstruoso produz por si mesma um imenso alívio. O pensamento suicida deixa de ser uma
tentação ou uma obsessão carregada de culpa.

Esta curta vida é um sofrer assegurado


Com a garantia da santa paz do túmulo.

Estes são outros versos de Thomson, aos quais podemos acrescentar aquele que já lemos aqui:
“Saber que não saberei consola a minha mente!”. No entanto, apesar de tudo, sempre podemos
esperar as próximas vinte e quatro horas, pelo menos para ler as notícias do jornal do dia
seguinte, ou para receber alguma surpresa que o carteiro trará amanhã.
Além da simples curiosidade pelo que a vida ainda nos reserva, o campeão em pessimismo
pode recorrer a forças mais profundas. Se o impulso do amor e o fascínio pela existência se
perderam, o impulso do ódio e a ânsia de lutar podem ser despertados a qualquer momento. A
maldade que tão profundamente nos afeta é agora algo que podemos destruir, pois suas origens
são finitas, não há mais por trás dela nenhuma “Substância” ou “Espírito”. Estamos aptos a
enfrentar a maldade separadamente.
Aliás, é interessante notar que, via de regra, os sofrimentos e privações não reduzem o amor
à vida. Ao contrário, normalmente conferem a esse amor um novo entusiasmo. A fonte principal
da melancolia é a plena satisfação. A necessidade e a luta são estímulo e inspiração. O triunfo
traz de volta o vazio. As passagens mais pessimistas da nossa Bíblia não correspondem ao tempo
de cativeiro dos judeus, mas aos dias de glória do rei Salomão. Quando a Alemanha se
encontrava pisoteada sob os cascos da cavalaria de Bonaparte produziu talvez a literatura mais
otimista e idealista que o mundo jamais conheceu. O retorno do pessimismo, na forma como o
vemos hoje, coincidiu com os bilhões que a França pagou à Alemanha depois de 1871.19 A nossa
própria história20 é um longo comentário à alegria decorrente da luta contra os males.
Outro exemplo do sofrimento que homens de grande firmeza podem suportar encontra-se na
história dos valdenses,21 sobre os quais estive lendo ultimamente. Em 1483,22 uma bula do papa
Inocêncio VIII ordenou o seu extermínio. O documento absolvia de todas as penas e
condenações eclesiásticas quem se unisse àquela cruzada. Todo aquele que desse morte aos
hereges também ficaria livre de qualquer juramento, receberia a legitimação de propriedade de
tudo aquilo que tivesse adquirido ilegalmente e seria perdoado dos seus pecados.
“Não há um só povoado no Piemonte”, diz um escritor valdense,23 “em que não tenham sido
condenados à morte alguns dos nossos irmãos. Giordano Terbano foi queimado vivo em Susa;
Hipólito Rossiero, em Turim; Miguel Goneto, um octogenário, em Saracena; Villermino
Ambrósio foi enforcado em Meano; Hugo Chiamps, natural de Fenestrelle, teve suas entranhas
arrancadas ainda vivo, em Turim; Pedro Geymarali, de Bobbio, também foi esfolado vivo, em
Luserna, e um felino feroz foi lançado contra ele para torturá-lo até o fim; Maria Romano foi
enterrada viva em Rocca-piata; Madalena Fauno foi submetida ao mesmo destino, em San
Giovanni; Susana Michelini teve mãos e pés atados, e foi abandonada para morrer de frio e fome
em meio à neve, em Saracena; Bartolomeu Fache, depois de talhado a golpes de sabre, recebeu
cal viva em suas feridas, agonizando e morrendo em Fenile; Daniel Michelini teve sua língua
arrancada, em Bobbio, por ter louvado a Deus; Tiago Baridari pereceu coberto de pedaços de
lenha que, mergulhados antes em enxofre, foram introduzidos debaixo de suas unhas, entre os
dedos, nas narinas, na boca e por todo o corpo, e então ateados com fogo; encheram a boca de
Daniel Revelli com pólvora e a acenderam, fazendo sua cabeça explodir em pedaços […]; Sara
Rostagnol teve seu corpo cortado do baixo-ventre ao peito e foi assim abandonada para morrer
no caminho entre Eyral e Luserna; Ana Charbonnier foi empalada e assim conduzida, no alto de
uma lança, como um estandarte, de San Giovanni a La Torre”.24
Und dergleichen mehr! 25 Em 1630, a peste dizimou metade da população valdense,
incluindo quinze dos seus dezessete pastores. Vieram substituí-los missionários de Genebra e do
Delfinado, e todos os valdenses que haviam sobrevivido ali tiveram que aprender francês para
receber os serviços dos recém-chegados. Uma e outra vez, em razão das constantes perseguições,
o número de valdenses foi reduzido do nível de 25 mil para 4 mil pessoas.
Em 1686, o duque de Saboia ordenou aos 3 mil valdenses restantes que, ou renegassem sua
fé, ou abandonassem o país. Eles se recusaram a obedecer e lutaram contra os exércitos francês e
piemontês até que sobrevivessem ou não estivessem presos apenas oitenta dos seus combatentes.
Só então renderam-se e foram enviados em bloco para a Suíça. No entanto, em 1689,
encorajados por Guilherme de Orange e conduzidos por um dos seus pastores-capitães, entre
oitocentos e novecentos valdenses retornaram, com o intuito de reconquistar a antiga morada.
Abriram caminho esforçadamente até Bobbio, reduzindo-se seu número para quatrocentos
homens na primeira metade do ano. Conseguiram repelir todas as forças enviadas contra eles, até
que, por fim, o duque de Saboia rompeu sua aliança com aquela abominação da desolação que
foi Luís XIV, restituindo-lhes uma relativa liberdade. Desde esse momento até hoje, eles têm
crescido e se multiplicado em seus pobres vales alpinos.
Pois bem, o que são os nossos problemas e sofrimentos perto disso? Não poderá a narrativa
desta luta tão obstinada e sem igual produzir em nós uma semelhante decisão para combatermos
os insignificantes poderes das trevas que nos perseguem (mecanismos políticos, gente
oportunista, e por aí vai)? A vida vale a pena ser vivida, aconteça o que acontecer, se pelo menos
mantivermos o ímpeto de lutar até a vitória, esmagando a cabeça do tirano. Ao suicida, portanto,
para quem o mundo, com tantos altos e baixos, tão imoral, podemos fazer um apelo, e um apelo
em nome dos próprios males que enchem seu coração de desgosto – que ele espere e veja qual é
o seu papel nesta batalha.
Essa anuência que estamos lhe pedindo, em continuar vivendo em suas atuais
circunstâncias, nada tem a ver, por outro lado, com a “resignação” sofística vivida pelos devotos
das religiões que pregam a covardia. Não se trata de resignação, no sentido de lamber,
submissamente, a mão de alguma Deidade opressora. Trata-se, ao contrário, de uma resignação
baseada na virilidade e no orgulho. Enquanto o nosso possível suicida tiver que solucionar um
problema real, que o desafia de modo concreto, nenhuma preocupação terá ele com o mal
abstrato e difuso. A resignação que pedimos a nós mesmos diante da realidade generalizada do
mal no mundo, a suposta aceitação de tudo o que existe de errado, é tão somente a convicção de
que o mal em larga escala não é problema nosso, até que tenhamos resolvido os problemas que
nos afetam pessoalmente e estão ao alcance de nossas mãos.
Um desafio deste tipo, devidamente delimitado, é algo que será aceito por qualquer pessoa
que não tenha perdido seus instintos básicos. Se for este o caso do nosso hipotético e pensativo
suicida, será fácil despertar nele um renovado interesse pela vida. A honradez é um sentimento
bastante forte em nós.
Quando você e eu tomamos consciência, por exemplo, do quanto sofrem inúmeros animais
em vagões-gaiolas e em matadouros, entregando suas vidas para que possamos crescer, nos
alimentar e vestir, e, como aqui, neste recinto, para que possamos ocupar comodamente nossos
assentos e acompanhar esta palestra, passamos a ver nosso relacionamento com o universo sob
uma luz mais solene. “Porventura – como escreveu o jovem filósofo de Amherst, Xenos Clark,
recentemente falecido –,26 assumir uma vida feliz em circunstâncias difíceis não envolve uma
questão de honra?” E porventura não devemos, de fato, assumir alguma dose de sofrimento para
prestar um serviço abnegado com nossa própria vida, em contrapartida por todas aquelas outras
sobre as quais a nossa foi construída? Quem tenha um coração humano bem constituído saberá
responder positivamente a essa pergunta.
Vemos, assim, que a simples curiosidade instintiva, a inata capacidade de lutar e o profundo
sentimento de honra podem fazer com que a vida, do ponto de vista puramente natural, adquira
sentido, dia após dia, para pessoas que, desembaraçando-se da depressão, afastaram-se de toda e
qualquer metafísica, sem, no entanto, ficarem a dever nada à religião e aos seus dons mais
positivos. Trata-se de uma solução intermediária, que pode parecer um tanto limitada (alguns de
vocês diriam), mas que, reconheçamos, é pelo menos uma solução honesta. Nenhum ser humano
deveria atrever-se a menosprezar esta nossa base instintiva, que é o melhor “equipamento” da
nossa natureza, e ao qual a própria religião deve também, em última análise, dirigir o seu
peculiar chamado.

A RELIGIÃO SUPÕE A CRENÇA NUM


ALARGAMENTO INVISÍVEL DO MUNDO
Retornando ao ponto central desta palestra, vejamos agora o que a religião tem a dizer a respeito
de todo este assunto.
A palavra “religião” já adquiriu muitos significados ao longo da história humana. Quero, no
entanto, utilizá-la daqui para a frente no seu sentido sobrenatural, declarando que a assim
chamada “ordem natural”, a qual podemos inferir a partir da experiência do mundo, é apenas
uma porção do universo total. Trata-se de supor que, para além deste mundo visível, há um
mundo invisível acerca do qual não conhecemos nada de concreto, mas que confere verdadeiro
sentido à nossa vida presente. A fé religiosa de um homem (sejam quais forem os elementos
específicos da doutrina a que ele aderiu) significa para mim que ele crê na existência de algum
tipo de ordem invisível em que reside a explicação última para os enigmas da ordem natural.
Nas religiões mais desenvolvidas, o mundo natural é visto sempre como uma espécie de
andaime ou de sala de espera que dará acesso a um mundo mais verdadeiro e eterno, mundo este
compreendido como uma esfera de aprendizado, julgamento ou redenção. Nessas religiões, a
pessoa deve de algum modo morrer para a vida natural antes de ingressar na vida eterna. A noção
de que este mundo físico, feito de vento e água, onde o sol nasce e a lua se põe, é algo divina e
absolutamente estabelecido e amado, tal noção só está presente em religiões muito antigas, a
exemplo da que praticavam os judeus dos primeiríssimos tempos.
É esta religião natural – primitiva ainda, apesar de alguns poetas e cientistas, cuja boa
vontade é maior do que sua perspicácia, se esforçarem em reapresentá-la de um modo mais
aceitável aos nossos ouvidos contemporâneos –, é esta religião que perdeu toda a credibilidade
para um número cada vez mais amplo de pessoas, entre as quais eu mesmo devo incluir-me. Para
estas pessoas, a ordem física da natureza, tal como a ciência a conhece, não tem a menor
condição de revelar qualquer tipo de intenção espiritual minimamente coerente. A natureza não
passa de uma questão meteorológica, como disse Chauncey Wright.27 É apenas uma sucessão de
mudanças sem fim.
Ora, no pouco espaço de tempo que ainda me resta, gostaria de fazer-lhes ver que temos o
direito de crer que a ordem física é somente uma ordem parcial. Ou seja, nós temos o direito de
dar à natureza, como suplemento, uma ordem espiritual invisível, confiar em sua existência, se
ao menos assim a vida nos parecer de novo valer a pena ser vivida. Mas como tal confiança
poderá, para alguns de vocês, soar como uma coisa tristemente mística e sem o menor rigor
científico, devo dizer primeiramente uma palavra ou duas para suavizar a ideia de que a ciência
se opõe à nossa proposta.
Faz parte da natureza humana uma entranhada mentalidade naturalista e materialista,
segundo a qual só se pode admitir fatos tangíveis. Este tipo de mentalidade venera a entidade
chamada “ciência”. Para reconhecer os seus devotos, basta perceber o gosto com que
pronunciam a palavra “científico”, e o modo como qualificam de “anticientífico” tudo aquilo em
que não acreditam. Contudo, tal atitude é totalmente injustificável.
Sem dúvida, a ciência avançou gloriosamente nos últimos três séculos, estendendo
enormemente nosso conhecimento a respeito da natureza, tanto em suas grandes linhas como nos
menores detalhes. Os pesquisadores e cientistas, além disso, têm demonstrado possuir admiráveis
virtudes, o que torna compreensível que os adoradores da ciência percam a cabeça! Nesta
Universidade mesmo, cheguei a ouvir mais de um professor afirmar que todas as concepções
fundamentais da verdade já foram encontradas pela ciência, e que, no futuro, faltarão
pouquíssimos retoques para concluir o quadro.
Uma brevíssima reflexão, porém, em torno das reais condições do conhecimento leva a
concluir rapidamente o quanto essa concepção de ciência é equivocada. Aliás, pensar a ciência
dessa maneira revela ausência tão grande de imaginação científica que é difícil entender como
alguém que esteja trabalhando na vanguarda do saber humano possa, ao mesmo tempo, cair em
erro tão grosseiro. Recordemos as inúmeras ideias científicas absolutamente novas que surgiram
em nossa própria época, pensemos na quantidade de questões inéditas formuladas só
recentemente, e saltará aos olhos como a carreira de um cientista é curta diante de tantas coisas
que ainda precisamos investigar.
Tudo isso começou com Galileu, não faz trezentos anos, e foi a partir de Galileu que não
mais do que quatro geração de pensadores, cada qual transmitindo à outra as suas próprias
descobertas, conduziram a tocha da ciência até nossas mãos, nós reunidos agora neste recinto.
Aliás, diga-se de passagem, uma plateia bem menor do que a nossa, uma plateia com cerca de
cem pessoas 28, cada uma possuidora dos saberes de uma geração, seria capaz de nos levar à
desconhecida noite em que se perde o início da espécie humana, tempo remoto sobre cuja
história não nos chegou nenhum documento ou monumento.
No entanto, todo este saber ainda quase nada seria, não representaria mais do que um ínfimo
vislumbre do que o universo nos revelará quando for adequadamente conhecido. Não! Nossa
ciência não passa de uma gota d’água, e a nossa ignorância é um oceano. Se alguma coisa há de
realmente certo é que o mundo do nosso conhecimento natural, hoje, está envolto por um mundo
maior, por algum tipo de mundo, cujas propriedades, no presente momento, não conseguimos
conceber com um mínimo de clareza.
É óbvio que o positivismo agnóstico, em nível teórico e cheio de cordialidade, também
admite esse princípio, mas logo também insiste em que não devemos utilizá-lo para qualquer uso
prático. Segundo esta doutrina, não temos o direito de nos entregar a devaneios, ou supor coisa
nenhuma acerca da parte invisível do universo, tão somente para irmos ao encontro daquilo que
nos agrada designar como nossos anseios mais elevados. Cabe-nos sempre o dever de esperar
pela evidência sensível que justifique nossas crenças. Se tal evidência é inacessível, não devemos
de forma alguma levantar hipóteses.
Não há dúvida de que estamos diante de um posicionamento bastante sólido in abstracto. Se
precisássemos dar algum conselho a um pensador que não tivesse interesse pelo desconhecido,
ou que não considerasse como questão de vida ou morte saber o que o mundo invisível contém, a
recomendação mais sábia seria a da neutralidade filosófica e da rejeição a qualquer tipo de
crença. Infelizmente, porém, a neutralidade não é apenas algo difícil de manter interiormente, é
também irrealizável exteriormente, onde nossas relações com uma alternativa precisam ser
práticas e vitais, dado que, como os psicólogos nos dizem, crença e dúvida são atitudes de vida e
envolvem a nossa conduta.
O único modo de, por exemplo, duvidarmos que determinada coisa exista ou recusar-lhe
nosso consentimento é continuar a agir como se essa coisa não existisse. Se eu me recuso a crer
que faz frio dentro desta sala, devo manter as janelas abertas e o fogão a lenha apagado,
exatamente como se fosse um dia de verão. Se eu não acredito que determinada pessoa mereça a
minha confiança, não devo contar-lhe nenhum segredo da minha vida, como se de fato essa
pessoa não fosse confiável. Se eu não creio na necessidade de instalar um alarme de segurança
em minha casa, não devo instalá-lo, como se de fato esse cuidado fosse dispensável. Da mesma
forma, se eu porventura não creio na origem divina do mundo, o único modo de expressar tal
descrença é negar-me a agir como se o mundo tivesse esse caráter divino, o que implica
necessariamente comportar-me em determinadas situações críticas como se o mundo não fosse
mesmo uma criação de Deus, ou seja, comportar-me de modo não religioso.
Constatamos, assim, algo inevitável: há ocasiões na vida em que a ausência de ação é uma
espécie de ação, bem como não estar a favor de algo é, na prática, posicionar-se contra. Em
outras palavras, a neutralidade é rigorosamente inalcançável.
Pois bem, não é por acaso uma ideia extremamente ridícula falar em neutralidade, se a única
coisa que nos levaria a crer seriam, afinal de conta, os nossos interesses mais íntimos? Não é
loucura dogmática negar aos nossos interesses mais íntimos toda e qualquer conexão com as
forças que o mundo oculto porventura tenha? Por outro lado, prognósticos apoiados sobre esses
mesmos interesses revelaram-se bastante proféticos e acertados. A própria ciência é bom
exemplo disso! Sem esta nossa imperiosa necessidade interior de harmonias lógica e
matematicamente perfeitas, jamais teríamos conseguido descobrir tais harmonias, subjacentes ao
caos aparente do mundo natural bruto. Raramente uma lei científica foi estabelecida, dificilmente
um fato foi apurado sem que, antes, tivessem sido procurados com muito esforço, para satisfazer
uma íntima necessidade, cuja procedência nós ignoramos. No máximo, com base na psicologia
biológica, podemos classificar essas necessidades como “variações acidentais”, segundo Darwin.
No entanto, a necessidade íntima de acreditarmos que o mundo natural remete a algo mais
espiritual e eterno é tão forte e imperiosa quanto a necessidade íntima que uma cabeça científica
tem de identificar leis de causalidade. Se o trabalho dos cientistas ao longo das gerações provou-
se profético e acertado, por que não seria igualmente profético e acertado o esforço daqueles que
desde sempre acreditaram num mundo espiritual? E se nossas necessidades ultrapassam o
universo visível, por que não poderia ser isto um sinal de que existe um universo invisível? Em
suma, com que autoridade poderia alguém nos impedir de confiar em nossas aspirações
religiosas? A ciência como tal seguramente não tem essa autoridade, uma vez que ela só pode
pronunciar-se a respeito do que é e não do que não é. E o axioma agnóstico “não devemos
acreditar em algo sem provas sensíveis coercitivas” exprime, na verdade, um desejo subjetivo de
encontrar um especial tipo de evidências.
Ora, quando digo que devemos crer em nossas aspirações religiosas, a que tipo de “crença”
estou me referindo? Esta palavra nos daria licença para definir detalhadamente um mundo
invisível, anatematizando e excomungando aqueles cuja crença fosse diferente da nossa?
Certamente não! Nossa capacidade de crer não nos foi dada, inicialmente, para criar ortodoxias e
heresias, mas para viver. Confiar em nossas aspirações religiosas significa, antes de qualquer
coisa, viver à luz dessas aspirações e agir como se o mundo invisível que elas sugerem fosse real.
Pertence à natureza humana que uma pessoa possa viver e morrer em virtude de uma
espécie de fé que prescinda de dogmas e definições. Basta-lhe como única certeza e garantia que
o mundo natural seja algo passageiro, um sinal apenas, uma imagem, um aspecto externo de um
universo complexo, no qual as forças espirituais têm a última palavra e são eternas. Graças a esta
única certeza, a vida lhe parece valiosa, a despeito de todas as circunstâncias contrárias. Destrua-
se, porém, esta certeza interior, por mais indeterminada que pareça, e aquela pessoa, antes tão
segura e convicta, vê sua existência perder toda a luz e brilho. Muitas vezes, com o olhar
assustado, pensará então na possibilidade do suicídio.
Procuremos agora aplicar tudo o que vimos à nossa realidade. Todos nós aqui,
provavelmente, mesmo enfrentando muitos problemas e contrariedades, ainda assim
consideraríamos valer a pena viver, caso tivéssemos certeza absoluta de que, encarando as
dificuldades com bravura e resistindo com paciência, tudo acabaria bem, e poderíamos colher os
frutos desse nosso esforço em algum lugar de um mundo espiritual invisível. No entanto, dado
que não possuímos esta certeza, podemos concluir que a crença neste mundo espiritual é
necessariamente uma quimera, uma ilusão? Ou, ao contrário, trata-se de uma atitude existencial
aceitável? Certamente, somos livres para acreditar por nossa conta e risco em qualquer coisa que
não seja impossível. Algumas analogias justificam esta afirmação.
Que o mundo físico não seja absoluto é algo bem provável, conforme podemos deduzir de
uma série convergente de argumentos do idealismo. Que a nossa própria vida física como um
todo esteja mergulhada numa atmosfera espiritual, numa dimensão do ser que, presentemente,
não podemos apreender com nossos sentidos, é algo vivamente sugerido pela analogia com a
vida dos nossos animais domésticos.
Nossos cães, por exemplo, convivem conosco mas não participam da vida humana.
Testemunham todos os dias inúmeros acontecimentos mas não há forma possível de
compreenderem o sentido último desses fatos. Sua inteligência não pode entender nossa
realidade, por mais que eles próprios estejam desempenhando um papel importante ao nosso
lado. Se meu terrier morder uma criança que estava brincando com ele, o pai não terá dúvida em
me cobrar indenização por danos físicos. O cão poderá até estar presente em todas as conversas
que eu venha a ter com o outro homem, e poderá me ver pagando o valor negociado, mas sequer
desconfiará que tudo aquilo tem a ver com ele. Em sua vida canina, ele nunca entenderá o que
aconteceu.
Outro exemplo. Foi um caso que se deu comigo, quando era estudante de Medicina, e me
deixou profundamente impressionado. Eu estava no laboratório e um desventurado cachorro iria
sofrer uma vivissecção. O animal, atado à mesa, gania desesperadamente, tentando livrar-se dos
seus carrascos. Em sua vaga consciência, aquele local era literalmente uma espécie de inferno.
Ele não conseguia ver uma única possibilidade de salvação em todo aquele quadro, embora tudo
aquilo que poderia lhe parecer diabólico era, na verdade, resultado de intenções humanas. Se a
sua pobre mente irracional pudesse vislumbrar um motivo justo para aquele padecimento, sua
atitude de aceitação heroica alcançaria um valor religioso. A cura de uma doença e o alívio
futuro para os sofrimentos de outros animais e do ser humano poderiam cobrar o preço daquela
provação. Teríamos ali um genuíno processo de redenção. Deitado naquela mesa, o cão estaria
desempenhando uma função incalculavelmente superior à de qualquer outra vida canina, por
mais próspera que fosse. Contudo, é precisamente esta função o que permanecerá para além do
seu entendimento.
Regressemos à vida humana. Para o ser humano é perfeitamente visível aquilo que para o
cão é um mundo invisível, pois nós vivemos em ambos os mundos. No caso da vida humana,
embora só vejamos a nossa própria realidade, dentro da qual está o mundo dos cães, ainda é
possível admitir um mundo mais amplo que abrangesse esses dois mundos. Este mundo
ampliado seria tão invisível para nós quanto, para os cães, é invisível o mundo humano.
Acreditarmos neste mundo ainda mais abrangente poderia ser a indispensável função da nossa
vida, neste mundo.

POSITIVISMO CIENTÍFICO
A esta altura da palestra, posso ouvir o positivista exclamando com desdém: “Poderia? Como
assim, poderia? Para que serve uma mera possibilidade na vida científica?”. Minha resposta é
que a própria vida “científica” tem muito a ver com as possibilidades, e que a vida humana, vista
de modo integral, tem tudo a ver com essas mesmas possibilidades. Na medida em que o ser
humano assume alguma posição, produz coisas e dá origem a processos, está sempre lidando
com possibilidades. Nenhuma vitória é conquistada, nenhum gesto de lealdade ou coragem é
realizado sem que tenha entrado em jogo alguma possibilidade. Nenhum ato de serviço, nenhum
ímpeto de generosidade, nenhuma pesquisa, nenhuma experiência científica, nenhum livro
didático, nada está a salvo de um possível equívoco. É somente arriscando nossa vida, dia após
dia, que vivemos de fato. Muitas e muitas vezes, uma atitude antecipada de fé num resultado não
garantido é a única coisa que garante este resultado.
Vamos imaginar, por exemplo, que você esteja escalando uma montanha, e chegou a um
ponto a partir do qual só conseguirá prosseguir se der um terrível salto. Tenha fé de que você
dará este salto, e seus pés ganharão força para realizá-lo. Se, ao invés disso, você duvidar de si
mesmo, ao sabor das belas palavras do positivista contra as possibilidades, será invadido pela
hesitação, e, no final, enfraquecido e trêmulo, saltará por puro desespero, caindo no abismo.
Neste caso (análogo a muitíssimos outros, de diferentes naipes), tanto a sabedoria como a
coragem nos ensinam a acreditar na direção de nossas necessidades, pois somente pela crença a
necessidade será satisfeita. Recusando-se a crer, você mostraria estar certo em sua desconfiança,
e cairia no abismo irremediavelmente. Mas, ao acreditar, você estaria certo também, agora em
sua crença, e conseguiria se salvar.
Os dois universos são possíveis, apenas isso. Por sua crença ou por sua descrença, um deles
virá a ser o universo verdadeiro. E, neste sentido, você contribuirá para que tal definição ocorra.
Ora, parece-me que a questão sobre se a vida vale a pena ser vivida está sujeita a condições
logicamente muito semelhantes a estas. Em última análise, a resposta depende mesmo de você,
depende de quem está vivendo.
Se você se submeter à visão do pesadelo e coroar todos os males que o envolvem com o
suicídio, terá pintado, afinal, com suas próprias mãos, um quadro totalmente negro. O
pessimismo, consumado pelo ato que você mesmo cometeu, torna-se, sem a menor dúvida, algo
verdadeiro dentro do seu mundo. Sua falta de fé na vida anulou o valor que você poderia ter dado
à sua própria existência, caso tivesse resistido ao desespero. A partir desse momento, a descrença
demonstrou-se capaz de adivinhar e influenciar tudo o que acontecerá em sua vida.
Mas vamos supor, ao contrário, que em vez de admitir que as trevas do pesadelo invadam
sua vida, você se agarre à ideia de que este mundo não dará o ultimatum, de que não é o fim da
linha. Vamos supor que você descubra em si mesmo um manancial, como o poeta inglês William
Wordsworth29 descreveu num de seus poemas – uma fonte de:

[…] Entusiasmo, a força, o existir pela fé.


Como os soldados pela coragem vivendo
E o marinheiro contra o mar feroz lutando.

Vamos supor, enfim, que mesmo sendo perseguido por grandes males, você, com uma
subjetividade inquebrantável, desse mostras de estar à altura de todos os perigos, e, confiando
numa realidade maior, experimentasse uma alegria mais intensa do que qualquer prazer que uma
vida tranquila pudesse lhe oferecer. Você não acha que, lutando desse modo, agora sim valeria a
pena viver?
Afinal, que tipo de coisa seria a vida se, com todas as qualidades que você possui para entrar
em combate com ela, não houvesse oposição alguma, apenas tempo bom, temperatura agradável,
nada que desafiasse sua inteligência e sua vontade?
Lembre-se, por favor, de que otimismo e pessimismo são definições a respeito do mundo e
que as nossas reações sobre a realidade, por menores que sejam em si mesmas, são parte
integrante do todo, e necessariamente contribuem para o conteúdo da definição. Podem até
mesmo ser elementos decisivos nesta definição! Uma grande massa perderá seu equilíbrio
instável, se pusermos sobre ela o peso de uma pluma. O significado de uma longa frase ficará
totalmente modificado, se lhe acrescentarmos uma palavra de apenas três letras: n ã o.

CONCLUSÃO
Sim, esta vida valerá a pena viver, podemos afirmar agora, dependendo do que fizermos dela, do
ponto de vista comportamental. Ou seja, valerá a pena viver, se estivermos decididos a fazer de
tudo para atingir os melhores resultados.
Muito bem. Nesta minha descrição de crenças que se autoverificam, parti do pressuposto de
que nossa fé num mundo invisível inspira nossos esforços e nossa perseverança, dando sentido a
este mundo visível. Nossa crença na bondade do mundo visível (bondade que significa
disposição para uma vida religiosa e moral valiosa) conferiu legitimidade a si mesma, com base
na fé num mundo invisível. Mas poderia também esta crença neste mundo invisível
autolegitimarse? Quem saberá responder?
Mais uma vez estamos no terreno das possibilidades. E uma vez mais as possibilidades são
a essência da situação. Confesso que não vejo uma justificativa convincente para que a existência
de um mundo invisível não dependa, em parte, da resposta pessoal que cada um de nós possa dar
ao chamado religioso. Em suma, Deus mesmo poderia extrair sua força vital e crescimento da
nossa fidelidade. Quanto a mim, não sei qual seria a outra explicação para a quantidade de suor,
sangue e tragédia que há nesta vida.
Se esta vida não consiste numa luta real, em que algo de valor possa ser eternamente
conquistado para o universo, é simplesmente uma pecinha de teatro sem graça, da qual podemos
sair à vontade, a qualquer momento. Mas se, de fato, podemos senti-la como uma luta real, como
se houvesse algo de indomável no universo que precisasse ser redimido por nossos ideais e
convicções, salvando-se, antes ainda, nossos próprios corações de toda descrença e medo, então
nós nascemos para viver plenamente adaptados a este mundo problemático.
A coisa mais profunda em nossa natureza é esta Binnenleben (termo empregado
recentemente por um médico alemão),30 uma silenciosa região do coração humano, em que
estamos sozinhos com nossas próprias tendências e relutâncias, nossas crenças e receios. Do
mesmo modo como, através das fendas e fissuras das cavernas, brotam do seio da terra as águas
que dão origem aos rios, assim também das profundezas indefinidas da personalidade vêm à tona
e fluem todas as nossas ações e decisões. Aqui está o nosso mais profundo órgão de
comunicação com a natureza das coisas. Todas as afirmações abstratas e argumentos científicos,
comparados com esses movimentos concretos de nossa interioridade – pensemos, por exemplo,
no veto que o rígido positivista pronuncia sobre a nossa fé – não passam para nós de conversa
fiada. Pois aqui as possibilidades, não me refiro aos fatos inacabados, são as realidades com as
quais temos que lidar ativamente. Para citar o meu amigo William Salter,31 da Sociedade Ética
da Filadélfia, “assim como a essência da coragem é arriscar a vida por uma possibilidade, a
essência da fé é acreditar que a possibilidade existe”.
Estas são as minhas palavras finais nesta palestra: não tenham medo da vida! Acreditem que
a vida vale a pena ser vivida, e esta sua crença contribuirá para que realmente valha a pena. A
“prova científica” de que vocês estão certos não chegará antes do dia do juízo final, ou pelo
menos antes de alguma etapa da sua existência que simbolize este julgamento.
Os que hoje combatem cheios de fé e os seus sucessores futuros poderão dizer, aos que têm
medo de lutar, palavras semelhantes às de Henrique IV, dirigindo-se ao capitão Crillon, que não
chegara a tempo de participar de uma grande batalha vitoriosa: “Morra de inveja, corajoso
Crillon! Nós lutamos em Arques mas você não estava lá”. 32

1
A resposta dos críticos era “it depends on the liver”. Há aqui um trocadilho intraduzível entre living (derivado do verbo to live,
“viver”) e liver (fígado), que aponta para a relação entre a saúde física e o gosto pela vida. O fígado também está associado às
mudanças de humor. Outra possibilidade de tradução seria esta: “Vale a pena viver? Vai depender da vida que o vivente leva”.
2
Trata-se dos primeiros versos do prólogo da peça Henrique VIII.
3
Walt Whitman (1819–1892), um dos maiores poetas norte-americanos do século XIX, considerado o pai do verso livre nos
Estados Unidos.
4
Trechos do poema Canção ao pôr do sol, publicado em Folhas de relva, cuja primeira edição é de 1855. O autor trabalhou em
sucessivas edições desta obra até 1891. Este louvor ao anoitecer foi incluído na edição de 1860, a terceira, e é um dos muitos
poemas em que Whitman enaltece a vida, mesmo diante da certeza da morte.
5
Nesta passagem de Confissões, autobiografia de Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), o autor suíço relata sua felicidade (tão
fortemente individualista e romântica) durante o tempo em que viveu na cidade francesa de Annecy, na região dos Alpes, sob a
proteção da baronesa de Warens, a quem ele chamava de “mamãe”, e que se tornou sua primeira amante.
6
Na França de meados do século XIX, os “alienistas” (assim eram chamados os especialistas no tratamento de doenças mentais)
falavam em folie circulaire (William James utiliza a tradução para o inglês, circular insanity), definida na época como uma
entidade mórbida em que se verificava alternância regular de períodos de depressão e excitação, com forte caráter hereditário.
7
O poeta italiano Giacomo Leopardi (1798–1837), mergulhado na melancolia e no tédio, sentia-se morto em vida, estado de
ânimo, no entanto, que considerava como sinal de nobreza de alma e fonte de inspiração literária.
8
James Thomson (1834–1882), poeta escocês, admirador e tradutor de Leopardi, foi considerado ainda mais pessimista e
desesperançoso do que o italiano.
9
O escritor inglês John Ruskin (1819–1900) obteve grande prestígio como professor de história da arte e crítico social. Suas ideias
influenciaram movimentos reformistas como o de Mahatma Gandhi. Era, segundo Tolstói, um dos raros homens que sabiam
pensar com o coração. O texto citado pertence ao panfleto A abertura do Palácio de Cristal e suas relações com o futuro da arte
(1854), em que Ruskin analisa esta arrojada construção londrina, inaugurada em 1851, metáfora arquitetônica da civilização
ocidental moderna.
10
Trata-se da parábola evangélica do pobre Lázaro e do rico (tradução da palavra latina dives) epulão (cf. Lc 16,19–31). Enquanto
Lázaro morre de fome, o epulão (que não é nome próprio, mas adjetivo que significa “aquele que come fartamente”) se diverte
em seus banquetes, indiferente aos pobres. Dives aparece aqui como nome próprio, conforme algumas traduções inglesas da
Bíblia.
11
Em 1895, a população dos EUA girava em torno de 70 milhões de habitantes. Em 1999, com uma população em torno de 280
milhões de habitantes, registraram-se 29.199 suicídios. Em 2014, este número subiu para 42.773, numa população de 318 milhões
de pessoas. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2014, cerca de 800 mil pessoas tiram a própria
vida por ano, no mundo. Já no Brasil, segundo o Ministério da Saúde, registraram-se 62.804 suicídios entre 2011 e 2016, e esta é,
hoje, a quarta maior causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos.
12
Com o termo sensualism, no original, William James refere-se a um modo de viver em que há menos reflexão, menos abstrações,
e uma atenção quase exclusiva às sensações.
13
Criado pelo escritor romântico alemão Jean Paul (1763–1825), este conceito significa, literalmente, a “dor do mundo” ou o
“cansaço do mundo”. A aguda consciência do mal e do sofrimento leva à prostração, à profunda desilusão com relação a tudo.
14
O imperador romano Marco Aurélio (121–180) é um dos mais conhecidos representantes do estoicismo. Redigiu em grego suas
reflexões, reunidas sob o título de Meditações.
15
Em alemão, “estranheza”, sentimento que experimentamos quando perdemos toda e qualquer familiaridade com o mundo, o que
pode nos levar à angústia e ao desespero.
16
O escritor escocês Thomas Carlyle (1795–1881) é autor deste romance, Sartor resartus (O alfaiate remendado, em latim), em
que se narra a vida e se apresentam as ideias de Diógenes Teufelsdröckh, um filósofo preocupado em refletir sobre as influências
morais, políticas e religiosas das roupas.
17
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716), filósofo, cientista e matemático alemão, é tido como um dos grandes gênios do
ocidente. Sua obra mais conhecida são os Ensaios de Teodiceia: sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do
mal.
18
A natureza como meretriz significa, para o filósofo, uma realidade da qual não podemos extrair normas morais, pois nela não há
uma diferenciação entre certo e errado.
Cinco bilhões de francos foi o altíssimo valor de indenização cobrado à França pelos alemães, em 1871, como exigência do
Tratado de Frankfurt, assinado ao término da guerra Franco-prussiana.
20
O autor se refere à história do povo norte-americano.
21
Grupo religioso criado pelo leigo cristão Pedro Valdo, de Lyon, no século XII, os valdenses defenderam ideias contrárias à
ortodoxia católica e sofreram forte perseguição durante séculos. Ainda existem como corrente religiosa, especialmente na Itália e
no Uruguai, contando com cerca de 50 mil adeptos.
22
Não foi em 1483. Este édito contra os valdenses é de maio de 1487. Inocêncio VIII, aliás, só se tornou papa em 1484.
23
Esse escritor foi o Monsenhor de Vignaux, pregador valdense do século XVI.
24
O autor retirou esse trecho no livro Tyrol and the Skirt of the Alps (1880), de George E. Waring, seu contemporâneo, texto que
pode ser encontrado em forma ampliada na Histoire des Vaudois des vallées du Piémont et de leurs colonies, depuis leur origine
jusqu’à nos jours (1834), do pastor valdense Alexis Muston.
25
A expressão em alemão significa algo como “E ainda tem mais”!
26
O brilhante professor Xenos Young Clark (1855–1889), falecido com apenas 34 anos, foi um dos fundadores da PSK (Phi Sigma
Kappa), sociedade de amigos que tinha entre seus objetivos promover a fraternidade, a ajuda mútua e a excelência ética.
27
O filósofo Chauncey Wright (1830–1875), muito admirado por William James. Embora pouco tenha publicado, frequentava os
círculos intelectuais da época, exercendo grande influência sobre a vida cultural norte-americana.
28
Esta afirmação faz imaginar que o palestrante estivesse falando para um público numeroso. Talvez houvesse no auditório mais de
mil pessoas.
29
Referência obrigatória quando se fala no Romantismo, William Wordsworth (1770–1850) sonhava produzir um grande poema de
corte filosófico, a exemplo de Dante Alighieri e John Milton. Não concretizou plenamente este seu projeto, mas os poemas que
escreveu fizeram dele um dos clássicos da literatura universal. Os versos que William James cita pertencem ao poema The
excursion, publicado em 1814.
30
O médico alemão a que o autor se refere é Sigmund Freud (que era austríaco). Freud (1856–1939) tinha 39 anos na altura desta
palestra e ainda não escrevera as suas principais obras. Não foi esta a única vez em que William James se referiu ao conceito
freudiano de uma vida psicológica escondida e indefinível (às vezes encarada como “prisão secreta”), atmosfera interior a cada
ser humano em que habitam nossos segredos mais íntimos. E uma curiosidade sobre a relação entre James e Freud: há rumores de
que o norte-americano tenha ido se consultar com o criador da psicanálise, em Viena, pouco tempo antes de falecer, por volta de
1909.
31
William Mackintire Salter (1853–1931) foi um filósofo norte-americano especialmente atento à reflexão ética.
32
Louis de Crillon (1543–1615) entrou para a história da França como um dos seus militares mais corajosos e inteligentes. O
bilhete que o rei Henrique IV (1553–1610) supostamente lhe enviou é mencionado por Voltaire numa de suas obras e a partir de
então foi difundido sem base documental. Após cruenta batalha na cidade de Arques (1589), esta mensagem teria sido uma
espécie de repreensão do monarca ao oficial de seu exército. Na verdade, porém, tal bilhete jamais existiu e, nesta época, o rei
ainda nem conhecia Crillon.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
de acordo com ISBD

James, William [1842–1910]


Vale a pena viver:
William James
Tradução e apresentação: Gabriel Perissé
São Paulo: Editora Nós, 2018.
80 pp.
Título original: Is life worth living?

ISBN 978-85-69020-37-0

1. Filosofia I. Perissé, Gabriel II. Título


CDU-1 CDD-100

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva – CRB-8/9410

Índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia 100
1. Filosofia 1
© Editora NÓS, 2018

Direção editorial SIMONE PAULINO


Organização GABRIEL PERISSÉ
Projeto gráfico BLOCO GRÁFICO
Assistente de design LAIS IKOMA
Revisão LUISA TIEPPO

Texto atualizado segundo o novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos desta edição


reservados à Editora NÓS
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