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A percepção da informação e a Semiótica

“FUNDAMENTOS COGNITIVOS DA COMUNICAÇÃO”


Disciplina ministrada pelo professor Nilson Lage
UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina
EPS – Engenharia de Produção - Programa de Pós-Graduação – Doutorado
Autoria: Wladmir Perez
Palavras chaves: Cognição, Percepção e Semiótica.

Resumo

Este artigo se propõe a abordar algumas questões que permeiam o universo


comunicacional tais como: informação, percepção, atenção e sensação. A partir de uma
abordagem semiótica — notadamente as questões relativas à “abdução e indução”
desenvolvidas por Charles Sanders Peirce e descritas por Umberto Eco, em seu livro “O Signo
de Três” — pretende-se desenvolver algumas idéias que venham a auxiliar o entendimento do
processo cognitivo; a tomada de decisões a partir da formulação de hipóteses, os estímulos, os
inputs e o processamento de informações. Essas idéias se desenrolam a partir de uma
concepção sígnica da cognição.
O ambiente em que este artigo se desenrola foi determinado principalmente pelo
formato apresentado pelo texto de Umberto Eco, ou seja, uma história de mistério que serve de
pretexto para desenvolvermos tais questões. Esse formato foi escolhido devido ao fato dele
fornecer os elementos fundamentais ao estudo do processamento cognitivo; informações,
signos, representações etc. A necessidade de entendermos o conjunto de informações nos
obriga a percebermos os fatos em toda sua extensão, visível e invisível, e a lidarmos com o
imponderável na tomada de decisões.

Abstract

This paper intends to approach some issues that are all-pervading in communication universe as
information, perception, attention and sensation. From a semiotic approach — especially issues
regarding “abduction and induction” developed by Charles Sanders Peirce, and described by Umberto
Eco in his book The Sign of Three — it intends to present some ideas that assist understand the cognitive
process; the decision making from formulation of hypothesis, the stimuli, the inputs and the information
processing. Those ideas are developed on signic conception of cognition.
The environment in which this article unfolds itself was determined mainly by the format
presented by Umberto Eco's text, that is, a mystery story that serves as excuse for us to develop such
issues. This format was chosen for it provides fundamental elements to the cognitive process; clues,
signs, representations and so on. The need of understand the information set force us to perceive the fact
in all its extension, visible and invisible, and to deal with the imponderable on decision making.

A todo o momento somos bombardeados por inúmeras informações. Elas nos


chegam por todos os lados de todos os tipos, transformadas, mediadas, em estado
bruto, sofisticadas, enfim, chegam até nós e são captadas por nossos sentidos. Nosso
corpo funciona como um poderoso radar, com capacidades infinitas de absorção
dessas informações. Captamos, percebemos, sentimos, registramos, guardamos e,
muito mais do que isso, recebemos uma quantidade enorme de dados a todo instante.
transformadas em Informações, em mensagens, como pistas para que possamos
interpretar o mundo a nossa volta.
A energia que emana das coisas transmite impulsos, promove percepções,
estímulos, produz convicções, possibilita ações e novos impulsos. Cada tipo de
informação funciona sobre diferentes conjuntos de princípios. Segundo Vestergaard &
Schroder (1994) o valor de cada informação é afetado não apenas pela quantidade ou
qualidade dos impulsos contidos nela, mas também pela maneira com que ela é
estruturada.
Uma das funções básicas na recepção da informação é o perceber, captar a
informação que é emitida. Parte dessa informação que entra em nossa mente vem do
exterior, por exemplo, quando vemos os quadros de uma exposição de arte, quando
recebemos uma ordem para a criação de um produto, as músicas que ouvimos em um
rádio ou aparelho de som. Mas também há informações que se originam no interior da
mente, estas informações podem ser devido à natureza de um feedback, como ler no
velocímetro a ação sobre acelerador ou o contato sobre uma alavanca de câmbio, ou
pode ser a informação que é armazenada, a ação da memória e o repertório de cada
indivíduo.
As respostas físicas de pessoas a estímulos exteriores têm uma relação direta e
clara com algum impulso, como por exemplo, quando nós marcamos um número de
telefone, ou ao escrevermos no computador a partir de um original. Porém, em
trabalhos mais complexos pode existir um processo de comunicação mais complexo,
como fazer julgamentos e tomar decisões, entre a fase de impulso de informações e a
resposta real. Quando dirigimos um automóvel com tráfego denso, quando decidimos
que roupa comprar, ou mesmo quando nos defendemos ao recebermos sinais de
ataque, por exemplo, o processo interno de comunicação envolve um número maior de
condicionantes. O gráfico hipotético abaixo mostra as funções de recepção dos órgãos
sensoriais, percepção, memória a curto prazo, passagem da percepção para a ação,
base da resposta, controle da resposta, ação dos agentes e das funções relacionadas
com a memória a longo prazo e os circuitos fechados de resposta. Não é necessário
dizer que estas funções distintas não podem ser diferenciadas, mas pode servir como
representação do conjunto de funções combinadas.

O b je to e x te rn o

R e to rn o (fe d b a c k )
Ó r g ã o s s e n s o ria is

P e rc e p ç ã o

C o n v e rsã o d a
M e m ó r ia a p e rc e p ç ã o e m
C o n t r o le AÇÃO
a ç ã o : in te n ç ã o A g e n te s
c u rto E s c o lh a d a s das m o to re s
p razo re s p o s ta s re s p o s ta s o u e fe to re s

M E M Ò R IA A L O N G O P R A Z O

O percurso do estímulo
Fonte: o autor

O gráfico acima é um registro abstrato das diferentes fases do processo de


informação quando só existe uma fonte de informação. A este respeito, Broadbent
apud McCormick (1976), expõe que os sistemas nervosos de certo modo atuam como
um canal de comunicação simples, tendo assim uma capacidade limitada. Ele coloca
também que o indivíduo faz uma seleção de todos os impulsos sensoriais que recebe,
esta seleção é feita baseada na combinação da natureza dos estímulos; por exemplo
sua intensidade; com o estado do indivíduo; ou seu instinto. Embora esta teoria implica
que nós só prestamos atenção a um aspecto de nosso ambiente, isto não exclui uma
mudança expressa de atenção para dois ou mais aspectos, ou para a alternância de
atenção entre ambos como explica McCormick no mesmo texto.
A experiência perceptiva determina uma construção mental de um mundo
factível e possível de ser transitado, mesmo que as custas de equívocos. Segundo a
Gestalt1, o resultado do impulso percebido no cérebro é uma imagem; esta é o estímulo
retido do real percebido. A percepção é determinante em nossas escolhas e ações. A
comunicação existe em função do percepto constituído pela percepção, portanto dela
1 A gestalt é uma vivência significativa que resulta da interiorização de sensações através da percepção. A criação (representação mental) é a capacidade de
relacionar as imagens entre si, estabelecendo combinações. A criação resulta de uma tensão provocada pela percepção de um desequilíbrio; para que retorne o
equilíbrio,o indivíduo cria, isto é, reestrutura ou reorganiza suas “gestalten”.
dependemos para dar cada passo em nosso dia-a-dia. Esse conjunto de impulsos e
informações formam o algoritmo necessário para interpretarmos os caminhos mais
seguros ou os que nos trazem uma experiência singular, tal qual uma linguagem antes
secreta que nos é revelada a cada momento em razão de nossas experiências e
emoções. Ele liga os sinais, escolhe significações, fixa relações invisíveis percebidas
apenas pela nossa intuição, para depois representarmos em símbolos que, em muitos
casos, por si só não dizem nada, e talvez nunca venham a dizer, exceto se os
convencionarmos para tanto.
“Mas se os homens desenterram uma linguagem pré-histórica falada nas coisas,
se nisso há, além de nossos balbucios, uma idade de ouro da linguagem em que as
palavras diziam respeito às próprias coisas, então a comunicação não tem mistério”.
(MERLAU-PONTY, 1974 p. 2)

As informações são recebidas de forma muitas vezes caótica, no entanto


tomamos decisões precisas, ou com a convicção de termos plena certeza de tal. Tais
decisões não se fundamentam em argumentos lógicos na maioria das vezes, mas nós
só o sabemos após tomarmos tal decisão. A respeito dessa fieira de fatos incertos que
nos baseamos, dessa ubiqüidade Peirce apud Eco e Sebeok descreve o seguinte:
“Olhando através de minha janela, esta linda manhã de primavera, vejo uma
azálea em plena floração. Não, não vejo isso, embora seja essa a única maneira que eu
tenho para descrever o que vejo. Isso é uma proposição, uma sentença, um fato;
entretanto, o que percebo não é proposição, sentença, fato, mas apenas uma imagem, a
qual torno parcialmente inteligível por meio de uma enunciação do fato. Essa
enunciação é abstrata; o que vejo, porém, é concreto. Realizo uma abdução quando
procuro expressar em uma sentença algo que vejo. A verdade é que todo edifício do
nosso conhecimento é uma estrutura emaranhada de puras hipóteses, confirmadas e
refinada pela indução. O conhecimento não pode avançar nem um pouco além do
estágio do olhar que observa despreocupado se não se fizer, a cada passo, uma
abdução.”(ECO, SEBEOK, 1991, p. 20)

A abdução e a indução formam o eixo no qual o pensamento investigativo


se articula, assim Eco e Sebeok (p. 32) destacam que a abdução inicia-se a partir de
alguns indícios, de forma puramente empírica, motivada pelo sentimento de que os
fatos surpreendentes só são explicáveis a luz da teoria. Já a indução parte de uma
hipótese, sem necessitar, nesse instante, de qualquer fato para sua existência, ela se
justifica por si só e só mais adiante ela se apega a fatos para sustentar sua teoria.
Ainda em Eco e Sebeok, Peirce afirma: “a indução persegue os fatos, já a abdução a
teoria. Na abdução, a consideração dos fatos sugere a hipótese. Na indução, o estudo
da hipótese sugere a experimentação que traz à luz os próprios fatos, para os quais a
hipótese havia apontado”. Portanto constantemente estamos transitando entre uma
abdução e uma indução, esse é um processo que proporciona a movimentação
necessária de nosso pensamento para construirmos nossa realidade.
A história a seguir é utilizada como pretexto para discutirmos essa situação pela
qual passamos constantemente. Trata-se de uma ficção, e como tal, a partir dela
podemos construir fatos, combinar situações, colocar pistas nos lugares certos, enfim,
podemos recriar a realidade, que só não existe por determinação, por definição.
Podemos também induzir o leitor a algumas conclusões. Assim como na retórica, não
temos o compromisso com a verdade, tampouco com o falseamento, procuramos aqui
nos ater apenas na descrição de um percurso, em muitos casos insensato, que
percorremos na elaboração de hipóteses, escolhas e ações, diante dos impulsos
enviados pelos signos da realidade. Tal qual um júri que absolve ou condena um réu,
independente da verdade, baseado em evidências, fatos, retórica do advogado, os
signos vão aparecendo e determinando comportamentos, criando realidades a cada
olhada, a cada conjunto de fatos, de signos, julgamos, construímos uma história
possível, que é real até o momento em que a colocamos em questão, seja por
deliberação, seja por verificação empírica ou científica. A luz da semiótica, foco
principal deste artigo, procuraremos discutir algumas questões a respeito deste
processo tão importante, para não dizer significativo, que é a percepção e manipulação
da informação. A abordagem semiótica do processo de comunicação já adotada por
diversos autores notadamente Peirce (1999) enfoca alguns aspectos importantes
dentro do processo cognitivo, a dedução, a indução e a abdução. Um destes textos “O
signo de três” brilhantemente escrito por Umberto Eco e Thomas A. Sebeok inspira e
fundamenta este artigo. Nele, Eco e Sebeok, desenvolvem uma comparação entre o
mais famoso detetive da história, Sherlock Holmes de Conan Doyle, o não menos
famoso Dupin de Edgar Allan Poe, seus métodos de investigação e a compreensão
deste intricado universo de pistas invisíveis de nosso mundo. Não se pretende com
este artigo desenvolver uma análise sobre esse texto, tampouco esgotar este assunto,
mas acrescentar outras questões significativas no processo de compreensão dos
signos.
Segundo Damásio a tomada de decisões, entre elas as que exigem
conhecimentos relevantes e a lógica são facilitadas por uma influência inconsciente,
acontecendo antes mesmo que o conhecimento e a lógica sejam evidentes.
“A tarefa consiste em um jogo de cartas, no qual, sem que o jogador saiba,
alguns baralhos são bons e outros ruins. O conhecimento sobre qual deles é bom e
qual deles é ruim é adquirido gradualmente, à medida que o jogador vai removendo as
cartas de baralhos diversos.” (DAMÁSIO, 2000 p. 380)

Esse intricado processo de percepção das informações, compreensão dos fatos


e tomada de decisões, é decidido de forma aparentemente simples a despeito de todo
o processo envolver o complexo sistema que é o pensamento humano. A mente
humana, como que parte de um processo natural, está sempre predisposta às
suposições, Peirce apud Eco e Sebeok (p. 22), explica parcialmente isso segundo um
princípio conjectural, o fenômeno da suposição, “nós freqüentemente retiramos da
observação fortes sugestões de verdade, sem sermos capazes e especificar quais
foram as circunstâncias por nós observadas que conduziram a essas sugestões”.
Para ilustrarmos esse processo comunicacional apresentaremos uma história
que se passa num restaurante de uma cidade litorânea. Os fatos ocorridos
determinaram um caminho claro de raciocínio desenvolvido pelos observadores. A
combinação de um processo lógico, mas principalmente um conjunto de suposições e
sensações, levaram esta história a um desfecho extraordinário. Devemos observar que
o processo de entendimento das informações, dessa constelação de sinais e signos
sob os quais estamos sujeitos é que construímos toda nossa compreensão das coisas
que nos envolvem. Então, vamos a nossa história.

Os amigos

Terça feira, 30 de março de 1973, era uma tarde cinzenta, o outono já se fazia presente. Dois
amigos encontravam-se todas as semanas, no final da tarde, em um restaurante a beira mar, era comum
freqüentarem o local a essa hora. O proprietário, um homem aparentando uns trinta e três anos, mas perto
dos cinqüenta vividos, a pouco se instalara no local. Pela sua simpatia e atenção aos clientes, sempre
alegre e conversador, conquistara uma boa freguesia. Era um homem perspicaz, com um gosto particular
aos mistérios e principalmente a solução deles. Era um filósofo. Não daqueles formado nos bancos da
academia, mas sim dos bancos de bares, de longas leituras dos clássicos, de uma prática de observação
constante, arguta, daí talvez, sua facilidade em lidar com o intricado mundo da mente humana. Suas
observações e conclusões sempre enveredavam para o universo detetivesco. Tinha um apego especial aos
detalhes, e freqüentemente eles o haviam tirado de enrascadas. Os dois amigos por essas e por outras
acabaram ficando também amigos do proprietário. Em muitas ocasiões sentavam-se à mesa os três
bebendo, saboreando deliciosos aperitivos, conversando até altas horas, sobre o mar, pescarias, mistérios
e descobertas.
O mundo detetivesco tem sido motivo de fascinação para muitos. Edgar Alan
Poe é considerado pela maioria dos historiadores de policiais como o pai das histórias
deste gênero, afirma Eco e Sebeok (p.199). “Os Crimes da Rua Morgue” é tido como
um clássico. No entanto o mais famoso detetive da história foi Sherlock Holmes,
brilhante criação de Sir Conan Doyle (1859-1930). O resumo de uma obra sobre a
aplicação do método científico sobre o comportamento humano fez de Sherlock
Holmes um símbolo do talento investigativo que conquistou multidões pelo mundo
afora. Esse fascínio pelos métodos do detetive não atinge apenas os amantes da
literatura e da ficção, mas causou também uma enorme influência sobre os
criminologistas. Aston-Wolfe apud Eco e Sebeok (p. 63) afirma que um representante
dos Laboratórios Científicos de Marseilles, pertencentes à polícia francesa, descreve
que alguns métodos descritos por Conan Doyle hoje são empregados em seus
laboratórios científicos.

O homem cego

Essa era uma tarde como tantas outras, quando às dezoito horas, entra um homem alto, bem
vestido, como se tivesse saído da premiação de uma regata, meia idade, tez morena, pele curtida pelo sol,
caminhava com uma bengala na mão direita. Ele era cego. Movimentava-se com pouca desenvoltura a
despeito de sua condição. Senta-se numa mesa no canto do salão, coloca suas mãos sobre a mesa, depois
sobre o cardápio e aguarda ser atendido. Os dois amigos mais o dono do restaurante observam intrigados,
o homem, nunca o tinham visto por estes lados. O garçom para diante dele e orienta-o sobre o cardápio,
descrevendo todos os pratos contidos nele. O homem escuta atentamente inclinando, de vez em quando,
levemente a cabeça em direção contrária ao garçom, de forma a ouvi-lo melhor. Espera pacientemente a
descrição e após o final faz seu pedido. Logo em seguida entra um casal acompanhado de seu filho, um
menino de aproximadamente treze anos. Entram alegres, falando alto, o menino é o que mais fala. O
homem cego vira-se em direção a eles e ensaia um breve sorriso.

A sopa de gaivotas

Após alguns minutos o garçom volta com seu pedido, um prato fumegante de sopa de gaivotas.
Por inexperiência, talvez, nervosismo quem sabe, o garçom aproxima trêmulo o prato perto demais do
rosto do homem, este se assusta com a sensação de calor e instintivamente vira o rosto levantando a mão
esquerda próxima ao rosto para se proteger. Rapidamente o garçom afasta o prato e desculpando-se,
coloca-o sobre a mesa. O homem toma a colher em suas mãos vagarosamente, fica pensativo por alguns
instantes e sorve a primeira colherada, logo em seguida, com um ar incrédulo e de dúvida sorve a
segunda.
Os dois amigos acompanham atentamente cada gesto do homem, percebem que ele está
totalmente envolvido com a sopa, seu semblante diante do prato perde-se em devaneios como se quisesse
desvendar os mistérios nele contidos. Intrigava-os a maneira como o ele se portava após cada colherada,
parava pensativo, com um semblante triste, e ficava assim a cada nova colherada. Pensaram por um
instante que o prato não lhe caia bem, podia não estar bem preparado, o semblante do homem se contraía
a cada vez mais.

O menino

Ouve-se então um barulho que coloca o homem de sobressalto. Ao seu lado, em uma mesa
próxima, o menino que entrara a pouco, ao se movimentar na cadeira, perde o equilíbrio e cai. A mãe
assustada grita o nome do filho e corre para acudi-lo. Uma lágrima ou duas corre pela face do homem
cego, ele coloca a colher sobre a mesa, chama então o garçom e pede a conta. Alguns segundos mais tarde
ele paga a conta, recebe o troco, deixa uma larga gorjeta levanta-se e sai do restaurante.
O tempo decorrido desde sua chegada até então não ultrapassou uns trinta e três minutos. Nesse
período os dois amigos não conseguiram prosseguir sua conversa particular sem observar cada gesto,
cada movimento do homem misterioso.

Segundo Luria (1991), em todo tipo de atividade consciente deve ocorrer um


processo de seleção dos processos básicos dominantes, que constituem o objeto da
atenção, bem como a existência de um “fundo” formado por processos cujo acesso
está retido na consciência. Em qualquer momento, caso surja uma tarefa a eles
relacionadas, tais processos podem passar ao centro da atenção e tornam-se
dominantes. As lembranças nestes momentos surgem motivadas a partir de eventos
que por semelhança ou igualdade motivam a atenção e provocam a memória. Luria
(1991 p.9) descreve três características básicas para a atenção são elas: volume,
estabilidade e oscilações onde,
• O volume da atenção entende-se como o número de sinais recebidos ou
associações ocorrentes em função destes, que podem conservar-se no
centro de uma atenção nítida, assumindo caráter dominante.
• A estabilidade da atenção costuma-se entender a duração com a qual
esses processos discriminados pela atenção podem manter seu caráter
dominante.
• As oscilações da atenção entende-se o caráter cíclico do processo, no
qual determinados conteúdos da atividade consciente ora adquirem
caráter dominante, ora o perdem.

O caminho para a morte


O homem retira-se do restaurante, e, movido por um instinto desconhecido, caminha trôpego até
o penhasco que se situava há uns trinta metros do restaurante, e se atira para morte. Tudo foi muito
rápido, algumas pessoas que estavam fora do restaurante, antevendo o que veria ocorrer, ainda tentaram ir
ao seu encontro, para detê-lo, porém já não havia mais tempo. O homem caiu por uns segundos e
espatifou-se entre as rochas do penhasco.
Os que estavam no restaurante não ouviram e não viram nada. Nesse mesmo momento um
homem entra no restaurante estupefato, gritando...
– “Corram venham ver, um homem acaba de se jogar do penhasco!”.
Todos que estavam dentro do restaurante correram para fora para se inteiraram do ocorrido. O
proprietário do restaurante, antes mesmo de sair, disse:
– “Foi o homem cego!” E repetiu mais uma vez: “só pode ter sido o homem cego!”.
Os dois amigos olharam espantados para o proprietário, olharam pasmados entre si e saíram para
ver o ocorrido.

Eco e Seabok (1991) supõem que o conhecimento relaciona-se com a


elaboração de uma hipótese, porém, segundo ele, não existem motivos para que se
afirme isso. A partir de uma situação real apenas se infere um “pode ser” (pode ser ou
pode não ser). No entanto parece que temos freqüentemente uma predileção para a
afirmação sem dados precisos. Essa tendência para a afirmação sem, no entanto ter-
se fatos concretos e seguros nos parece ser um uma ação necessária e intuitiva que
adotamos como parte do processo de construção do conhecimento concreto que temos
sobre um evento.

A intuição

Constataram então que realmente tinha sido o homem cego, viraram-se para o dono do
restaurante, ansiosos por uma resposta.
– Como você concluiu que tinha sido o homem cego?
– Não pareceu lógico para vocês?
– Como assim lógico? Perguntaram em uníssono.
– Pareceu-me lógico. Embora eu tenha tido poucos indícios, foi muito mais uma intuição, talvez
gerado por um conjunto de pequenas referências, apenas isso. Tive uma sensação.
– Mas como você pode concluir algo com tanta certeza apenas com sensações e impressões?
– Sim, apenas uma impressão, uma intuição, nada mais poderia me levar a essa conclusão que
não uma sensação, algo me impeliu a fazer tal afirmação sem muita fundamentação.

A intuição caracteriza o processo de antecipação, fruição, vislumbre das opções e


possibilidades. Com a manifestação da intuição temos as primeiras noções daquilo que
pretendemos, temos um sinal, uma suposição, um vislumbre das possíveis soluções
dos problemas. É a percepção, a consciência da solução próxima. É nesse momento
que nos antecipamos à solução final e temos a consciência de outras ou novas
possibilidades para um determinado problema. A intuição é também conhecida como
aquecimento, ou antecipação, poderia ser descrito como o limiar da criação é quando
temos consciência das primeiras opções relacionadas ao problema. Peirce descreve a
intuição como sendo as primeiras sensações que temos de algo, mesmo antes de
imaginarmos o que poderá ser, mesmo sem sabermos do que se trata, já temos os
primeiros sentimentos de algo. Tudo pode ser, tudo poderá vir a ser.
Ao atuar em um nível consciente, os estados somáticos devem marcar os
resultados das respostas como positivos ou negativos, relacionados ou não com as
determinantes ou objetivos colocados a priori, levando assim a que se evite ou que se
prossiga uma determinada opção de resposta. Mas podem também funcionar de uma
forma oculta, ou seja, fora da consciência. Poderia ser gerado o imaginário explícito
relacionado com um resultado negativo, mas em vez de produzir uma alteração
perceptível no estado do corpo, inibiria os circuitos neurais reguladores localizados no
âmago do cérebro, que induzem os comportamentos apetitivos ou de aproximação.
Poderíamos então agir, ou não, sem termos a consciência das determinantes desta
atitude. Com a inibição da tendência para agir, ou o aumento efetivo da tendência de
afastamento, seriam reduzidas as probabilidades de uma decisão potencialmente
negativa. No mínimo, registrar-se-ia um ganho de tempo durante o qual a deliberação
consciente poderia fazer aumentar a probabilidade de se tomar uma decisão adequada
(senão a mais adequada). Além disso, seria possível evitar completamente uma opção
negativa ou tornar mais provável uma opção positiva pelo favorecimento do impulso de
agir. Esse mecanismo oculto, afirma Damásio (1996), seria a fonte do que chamamos
intuição, o mecanismo por meio do qual chegamos à solução de um problema.

O processo

Sim, o homem cego havia se suicidado, mas os motivos que o levaram a tomar tal atitude é que
não estavam claros. Em raros casos, os suicidas se colocam em situações críticas evidentes para que
sejam salvos, embora o número de indícios que recolhemos após esta ação nos levem nessa direção. No
entanto tais indícios podem muito bem definir um conjunto de informações, que se lidas com atenção,
soam quase como um pedido de socorro.
– Mas porque razão o homem teria se suicidado? Perguntam.
– Eis aí uma boa questão. Acredito que a cegueira deve ter sido recente, notaram seu andar
vacilante ao entrar e sair do restaurante? Como se não tivesse a necessária habilidade para
transitar pela escuridão. Quando sentou, notaram que levou a mão sobre a mesa, como que
procurando o cardápio?
– Sim, mas isso poderia significar outras tantas coisas, porque afirmar tal coisa? Terá sido então
a cegueira que o motivou ao suicídio? Perguntou um dos amigos.
– A questão não reside na certeza em um ou outro fato, mas na percepção e sensação do conjunto.
Não acredito também que tenha sido a cegueira. Muitas coisas aconteceram desde sua entrada no
restaurante. Ele provavelmente deve ter sofrido uma grande desilusão, quem sabe a perda de um
ente querido, provavelmente um filho. É necessário um motivo muito forte para o suicídio.
– Um filho? Espera um instante, com que base você afirma tal coisa?
– Não tinha tanta certeza até então. Perceberam a reação do homem cego quando da queda da
cadeira ao seu lado, quando a mãe chamou a atenção de seu filho? A reação do homem foi
incomum após ouvir a voz do menino. Por um pequeno instante ele se perdeu em seus
pensamentos. A pequena lágrima que rolou sobre sua face, provavelmente deve ter sido
provocada pela lembrança de seu filho ou algum fato relacionado a ele.
– Certo, é possível, então que a morte do filho deve ter sido o motivo de seu suicídio?
– Não se apressem, é pouco provável. Acredito que o motivo deve estar na sopa.
– Na sopa? Incrédulo um dos amigos pergunta. – Mas o que uma simples sopa pode ter de tão
poderoso? Já tomei essa sopa inúmeras vezes e sinceramente o máximo que ela me provocou foi
um desarranjo intestinal certa vez. O suficientemente apenas para algumas imprecações.
– Pois então, este maravilhoso prato, especialidade da casa, com certeza não teria o poder de
provocar um suicídio, mas causou. Vejam, tenho fortes indícios para supor que a sopa tenha
provocado alguma lembrança no homem e que em conjunto com outras informações como por
exemplo, a presença do menino ao seu lado, tenham sido os motivos suficientes para tal ato. Mas
notem, a questão não está na sopa em si, mas no que ela representa naquele instante. Portanto
devemos nos ater também no significado que o objeto tem, na sua força enquanto signo. Vejamos
mais algumas informações: notaram que homem tinha uma mancha ao redor de seu olho
esquerdo, e que se estendia até próximo da orelha? Bem, acredito que a causa de sua cegueira
tenha sido um acidente, provavelmente provocado por uma explosão seguida de incêndio, talvez
de um motor, um tanque, e que ao se se desviar desta, por ser destro, vira a cabeça protegendo-a
com a mão esquerda, expondo assim o lado esquerdo da face. Notaram que sua mão esquerda
também apresentava marcas de queimadura? Provavelmente motivados pelo acidente.
– Realmente, agora me lembro que ao posicionar o guardanapo sobre o colo, percebi sua mão
esquerda meio que fechada, querendo esconder algo. Mas isso pode provar que o acidente foi
recente, mas daí concluirmos que ele tenha sido provocado por uma explosão, é uma distância
razoável não acha?
– É comum pessoas com defeitos adquiridos recentemente por acidentes, sentem-se traumatizados
e tenham receio de expor suas seqüelas. Mas vejam, existem outros indícios. Quando o garçom
chegou com o prato de sopa quente, alguns centímetros de seu rosto isso o preocupou , houve um
certo desconforto de sua parte. Além disso, ao cair a cadeira ao seu lado, com o menino, ele teve
um breve sobressalto com o barulho abrupto, ao mesmo tempo em que abaixou levemente a
cabeça, fazendo um pequeno gesto com a mão esquerda, como que querendo se proteger? É
possível que o calor e o barulho tenham avivado em sua mente o momento de uma explosão!
Outro fato interessante é sua atitude quando ouve o garçom, ele inclina levemente a cabeça,
voltando o lado direito em direção a ele, talvez estivesse com algum problema de audição no
ouvido esquerdo, motivado quem sabe por um barulho ensurdecedor ou uma explosão.

Os indícios ou os fatos?

Os dois amigos ouvem atentamente os argumentos do dono do restaurante, incrédulos com a


quantidade de detalhes que se desprendem daqueles poucos momentos do homem no restaurante, um
sinal atrás do outro, e todos com uma ligação lógica, absurdamente lógica.
– Mas ainda continuamos com a questão principal, porque uma sopa provocaria um suicídio?
– E não provocou. Acredito que não tenha sido a sopa em si que provocou o suicídio, volto a
afirmar. Sendo o acidente e a cegueira recentes, poderíamos ter aqui ótimos motivos para um
suicídio, não acham?
– É possível. Li recentemente em um livro2 que alguns acidentes com seqüelas que inutilizem
alguma capacidade vital, do cérebro, por exemplo, desestabiliza um homem, criando verdadeiros
fantasmas em sua mente.
– Temos então motivos suficientes. Porém não lhes parece muito óbvio?

Eco e Seabok (1991) afirmam que não há nada mais decepcionante numa
investigação do que um conjunto de pistas óbvias. Damos muito mais destaque aos
sinais evidentes, extraordinários, ignorando os insignificantes, desconsiderando
inclusive todos aqueles que não contribuem para sua posição. Ainda segundo os
autores a melhor hipótese sempre é a mais simples, aquela que menos trabalho
proporciona para se chegar à compreensão dos fatos. Porém devemos entender que
uma hipótese deve ser considerada como uma pergunta que necessita de uma
averiguação, isso não significa que não podemos desenvolver conjecturas a partir de
dados insuficientes, muito pelo contrário, podemos desmembrar uma hipótese,
experimentando uma após outra concordando os resultados para a comprovação da
questão principal. Moles (1978) afirma que o valor da informação está relacionado ao
fator inesperado e novo, ao caráter original dela. Nesse sentido a imprevisibilidade
determina a quantidade da informação, onde o valor está ligado ao improvável. O dono
do restaurante desconfia de um indício tão óbvio como é o caso da cegueira como
motivo para um suicídio, porém procura outras pistas originais a partir dessa hipótese.
Ainda sobre a originalidade, a improbabilidade nos parece determinar nosso raciocínio
para a sua atenção. A certeza de uma informação informa o receptor da mensagem
porém não muda o seu comportamento tanto quanto a informação improvável.

2 Sacks, Oliver. Um Antropólogo em Marte. São Paulo, Cia. Das Letras. 1995. Na obra o autor relata diversos casos neurológicos
– Este seria um motivo perfeitamente compreensível se não tivéssemos alguns outros indícios,
Um evento relevante, não é necessariamente por si só, um motivo para eliminarmos a vida,
principalmente se considerarmos a existência de um filho, que é uma boa razão para se viver, ou
seja, temos um razoável motivo para a morte e um excelente motivo para a vida, lembrem-se que
ele fez um gesto terno ao ouvir o menino entrando. Então o que prevaleceria?
– A vida! Exclamou um dos amigos. – Exceto se o filho tivesse morrido no acidente. Concluiu.
– Correto. Porém ele poderia ter outros filhos? Abandonar seus filhos vivos por causa de um
morto, seria um pouco drástico, porém plausível, a não ser que tivesse um outro motivo
igualmente forte que contribuísse para o fato. Um acidente em si apesar de ser forte o suficiente,
não justifica uma atitude extrema, mas depende do que ele tira ou acrescenta a um homem. Um
sentimento de dor profunda, uma angústia, revolta, são possibilidades.
– Pronto acho que temos aqui indícios suficientes para concluirmos esse caso. Acho que sua
sopa, meu caro amigo, apenas entra como coadjuvante na história.
– Não afirmaria isso conta tanta convicção. Ninguém viria a este restaurante apenas para pedir um
prato, mesmo que incomum, sem que tivesse algum motivo a ele relacionado. Embora seja uma
especialidade do restaurante, a sopa não é encontrada apenas aqui. Também devemos considerar
sua atitude. Está claro que ele veio aqui para tomar a sopa, ou para conhecê-la. Ele experimenta
uma colherada, faz um ar de estranhamento, experimenta a segunda como que querendo
confirmar sua impressão, aqui sua expressão já não é mais de estranhamento, mas de angústia.
Esse é um momento crucial, ao tomar a terceira colherada, meio vacilante, inseguro, ouve a voz
do menino, retira-se do restaurante após pagar a conta e caminha para a morte. Foi uma seqüência
de fatos, podemos dizer uma seqüência de sinais. Tomar a sopa teria sido um último desejo?
Improvável, essa sopa não é tão saborosa assim, nem tão famosa. A questão reside na relação de
seu filho com a sopa. Senão vejamos: O homem era um marinheiro talvez, não um marujo
comum, mas um proprietário de barco, talvez um barco de porte, pelas suas vestes denota-se isso.
A seguir o dono restaurante descreve as características do homem, detalhadamente, a partir de
suas observações; roupas, acessórios, expressões, movimentos assim por diante, uma infinidade de
detalhes, são elementos que justapostos determinam uma configuração, uma imagem. Os dois amigos
ouvem atentamente questionando aqui e ali uma ou outra afirmação, mas aceitam a descrição tanto por
ela vir acompanhada por uma riqueza de detalhes como não ter argumentos por onde a recusarem.

A imagem que o dono do restaurante faz do homem cego é determinada por um


conceito elaborado em sua mente. O problema, ou objetivo pretendido, provocados
pelo conceito formado em sua mente, seria desvendar a personalidade e os motivos
que levaria alguém a cometer suicídio. Segundo Vigostsky (1998), a criação de
conceitos não é um processo mecânico, passivo ou sem controle. Ele surge a partir de
um processo complexo, destinado a solucionar algum problema. Para a definição de
conceitos é necessária uma conjunção de indícios determinantes, no entanto é o
sentimento ou emoção provocado em nossa mente por esses indícios que nos
possibilita a formação dos conceitos. Embora fosse possível supor a partir da
percepção um comportamento, na medida que os sinais, mesmo que ‘invisíveis’ vão
surgindo, a imagem vai se compelindo para fora, buscando uma mediação, se
delatando, como algo acima da vontade, controlada apenas pelos instintos e
sentimentos. Segundo Damásio (1996), a representação, na consciência, dos impulsos
são realizados através dos sentimentos, esses sentimentos podem ser advindos não
apenas interna como externamente, esse estágio pode ser relacionado com a
“terceiridade” proposta por Peirce (1999), onde a mediação assume a responsabilidade
de transformar uma realidade ainda possível em uma realidade concreta. A formação
de conceitos, portanto é um processo consciente, que se vale da indução e dedução.

O visível pelo invisível

O restante da história desenrola-se rapidamente, o dono do restaurante descreve uma seqüência de


fatos que conseqüentemente se enquadram nos motivos que levaram o homem cego ao suicídio. Os dois
amigos ficam a par dos motivos que levaram o homem a tal ato e se chocam quando comprovam as
hipóteses do dono do restaurante, mas se surpreendem principalmente pelos motivos que o levaram a
fazê-lo.
De tantas possibilidades ninguém poderia imaginar uma situação tão trágica. Tudo tinha
acontecido em uma viagem pelo mar. Pai e filho estavam passando o que seria um tranqüilo fim de
semana, haviam embarcado no dia anterior. Iam de barco visitar os avós do menino, ele estava exultante,
afinal essa era a sua primeira viagem longa que fariam juntos, muito embora não demorariam mais de
dois dias no mar. Para o menino, essa era uma aventura, e de barco, o que trazia um componente excitante
à situação. Era um belo barco, não era novo, já havia passado por algumas reformas. Um barco de porte
razoável precisava de uma boa tripulação, dois homens no mínimo.
Já estavam no segundo dia navegando, o menino já tinha superado os problemas com enjôo, e
lamentava não terem trazido equipamento apropriado para pesca, principalmente iscas. Afinal, dizia ele;
— vir para o mar e não pescar era como jogar futebol sem bola” — Num determinado momento o
barco para, um problema no motor da embarcação fez com que o motor apagasse. Um dos marujos tenta
consertar o motor. Pai e filho acompanham as tentativas de conserto de perto quando uma explosão
repentina, seguida de um incêndio atinge o motor. A explosão desloca partes do motor que se espalham
pela casa das máquinas. Tudo foi muito rápido, o marujo que estava no timão, ao ouvir a explosão desceu
até o porão preocupado em apagar o incêndio nem reparou na tragédia. O incêndio se alastrou até o
depósito. Após muito custo, quando conseguiu debelar as chamas é que se deu conta da situação. O
marujo que consertava o motor estava meio inconsciente desacordado. Com a explosão do motor e o
deslocamento de ar abrupto jogou-o contra a parede. Ele levantou-se cambaleando, atordoado ainda, pai e
filho estavam do outro lado, ainda desacordados, os dois marujos foram acudi-los. O pai que estava ao
lado do motor, onde ocorrera o incêndio, fora atingido diretamente no rosto pelas chamas. Tinha
queimaduras em sua face, principalmente na região dos olhos. O filho estava caído ao seu lado, parecia
apenas desacordado. Os marujos levam os dois para o convés. Ao colocarem o homem no chão, com o ar
mais fresco, ele logo recuperou os sentidos. Levou as mãos ao rosto e soltou um urro de dor. Em seguida
desesperado, tateando pelo chão gritava:
– Não enxergo nada, o que aconteceu? Onde está meu filho?
Em seguida desmaiou com a dor. Seu filho tinha sido atingido mortalmente na cabeça. O corte
não era profundo, muito pouco sangue saía, porém, atingiu uma região vital do cérebro, tinha sido fatal!
Foram momentos de tensão, um marujo resolveu verificar os estragos, enquanto o outro cuidava dos
ferimentos do homem. Quanto ao filho, nada restava fazer exceto manter o corpo conservado. O barco
estava à deriva, tinham se distanciado demais da costa, isso era perigoso. Com a explosão, o gerador tinha
se destruído isso comprometia todo sistema de comunicação. Restava ainda alguma energia para se
comunicarem pelo rádio. Várias tentativas foram feitas, e nada. Deviam ter-se distanciado demais,
estavam fora de alcance. Com o depósito parcialmente destruído, parte das provisões e alguns
equipamentos tinham se perdido. Estavam à mercê da sorte!
Vagaram quase dois dias pelo mar afora, enfrentando uma calmaria enervante. A energia se fora,
não havia como se comunicar mais através de instrumentos. Restavam ainda alguns sinalizadores. Apenas
o GPS estava funcionando, o suficiente para informá-los que estavam muito longe, perdidos. O homem
delirava, sua recuperação não estava nada fácil. O barco não possuía medicamentos para esse tipo de
lesão. Após dias a deriva, a comida se acabara, a água também. A situação era trágica, desesperadora.
Tinham outro terrível problema nas mãos, o que fazer com o corpo do menino? Jogá-lo ao mar? Até então
tinham-no mantido a custa de gelo e álcool. Mas ele já mostrava indícios de que não duraria mais que
algumas horas. A fome apertava, os poucos equipamentos de pesca, haviam se perdido com o incêndio,
não restava outra saída. A sobrevivência indicava um caminho, sinalizava para a única alternativa
possível, muito embora suas consciências o recriminassem por apenas pensar nisso. Inacreditável pensar
nessa possibilidade, mas eles o fizeram.
No terceiro dia a deriva, o homem acordou, estava melhor. Não enxergava, no entanto. Fraco,
balbuciando mais que falando, a primeira coisa que perguntou foi sobre seu filho. Foi difícil para os
marujos contarem o ocorrido, relataram tudo. Quase tudo. Por fim disseram que não conseguindo mais
ficar com o corpo do menino pela eminência da decomposição, lançaram-no ao mar. O homem ameaçou
um novo desmaio, ficou calado por alguns segundos, um misto de choro, dor, desespero, angústia se
apoderou dele. O destino tinha sido cruel. A cegueira proporcionava a ele, no entanto, a imagem muito
forte do filho, e era essa lembrança que o alimentava, que mantinha sua sanidade. Suas lembranças
mantinham ainda sua visão psicologicamente intacta.
Após alguns momentos, controlando sua tristeza, o homem com extrema serenidade e bondade,
que pareciam brotar de sua dor, agradece aos marujos os cuidados por eles despendidos. Ainda fraco,
pede algo para se alimentar, os dois marujos se olham e um deles responde:
– Nossas provisões se foram, parte com o incêndio, parte nós já as consumimos, restam-nos
apenas uma sopa que preparamos.
– Sopa de gaivota. Disse o outro.
O homem surpreso pergunta:
– Sopa de gaivota3?
– Isso mesmo. É um prato de marinheiro, é assim que temos nos mantido nestes últimos dias.
– Bom, vá lá. Disse o homem.
Ao tomar a sopa ele não gostou muito do sabor, era estranho, nunca havia ouvido falar nessa
sopa, imaginou como poderiam ter capturado uma gaivota, muitas coisas passaram pela sua mente,
hesitante, tudo parecia fora de lugar, mas não tinha forças para nada, tomou o suficiente para não se sentir
mal, afinal a fome e a fraqueza exigiam alimento. Um dia mais se passou até que foram resgatados. Os

3 O nome da sopa não se refere ao fato dela ter sido feita de gaivotas, mas é uma designação dada a uma sopa feita de pedaços de peixes. Gaivota é a designação

comum às aves caradriiformes larídeas. As gaivotas alimentam-se de pequenos peixes e toda sorte de detritos do mar, daí advém o nome da sopa.
dois marujos nunca mais se encontraram. O homem, bem, o homem ficou cego, as seqüelas do acidente
foram mais profundas do que se podia imaginar como vimos. De tudo que aconteceu, após o acidente, o
homem teve apenas sensações que muito pouco tiveram a ver com sua visão, no entanto ele conseguiu
reconstruir tudo a partir de algumas reminiscências. E essa reconstrução que precipitou sua
autodestruição.
Conclusão

As idéias apresentadas neste artigo nos levam através de um caminho intrincado, a um


universo fantástico que é o da cognição. Entender o complexo processamento da informação
na mente já é uma tarefa penosa na medida em que o conhecimento das faculdades e estados
mentais, só a partir desse século é que parece que está tomando um rumo definitivo. Nesse
panorama, milhares de teorias e estudos aparecem a todo instante. As Conferências de Macy4,
que para muitos são consideradas como o início das ciências cognitivas, ou o início da
cibernética, reuniram um grupo de estudiosos, onde foram levantadas questões fundamentais
relativas ao cérebro e mente e o processo de aprendizado. A maior parte dos cientistas e
estudiosos que se debruçam sobre esse assunto está focada ainda nos aspectos psicológicos,
biológicos e neurológicos da mente. O que nos leva a deduzir que esse é o caminho.
A abordagem semiótica para esse problema não é nova, Peirce (1999) propõe uma
série de teorias a respeito do funcionamento da mente a partir das informações obtidas,
referenciando seus estudos sob o manto semiótico. Porém não são muitos os estudiosos que
seguem seus passos. Eco parece ser um de seus mais ativos e criativos seguidores.
Se partirmos das premissas de Peirce segunda as quais temos uma tendência, e
podemos até dizer uma necessidade, de fazermos afirmações baseadas em indícios frágeis,
apenas referendadas por nossas sensações, nossa intuição de certeza, devemos olhar com
mais atenção para suas teorias. Podemos até estar caindo numa armadilha brilhantemente
armada por Peirce. Nunca haveremos de ter certeza até que nossas hipóteses sejam
comprovadas.
Na apresentação de seu livro “O Sítio da Mente” de 1997 Enrique Schützer Del Nero
coloca uma brilhante citação de Ervin Schrödinger, um dos grandes físicos do nosso século,
que em seu livro “O que é a Vida” de 1944 diz:

“Herdamos de nossos antepassados o desejo agudo pela unificação do


conhecimento. Mas o crescimento, tanto em abrangência quanto em profundidade, das
diferentes áreas do conhecimento nos últimos cem anos nos levou a um estranho dilema.
Sentimos claramente que estamos apenas agora começando a adquirir material
confiável para soldar todas as partes num todo único; mas, por outro lado, tornou-se
quase impossível para uma única mente comandar mais que uma pequena parte
especializada deste conhecimento.
Não vejo outra saída para esse dilema, para que não se perca para sempre nosso
verdadeiro objetivo, senão que alguns de nós devem arriscar-se, iniciando uma síntese
de fatos e teorias, a despeito de conhecerem muitas delas imperfeitamente e com domínio
de segunda mão e, além do mais, correndo o risco de serem tomados por tolos.”

4 DUPUY, Jean-Pierre. Nas Origens das Ciências Cognitivas. São Paulo, UNESP. 1995. p. 21.
Bibliografia

DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes; emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo, Companhia
das Letras, 1996.
DAMÁSIO, António. O mistério da consciência, São Paulo. 2000 Cia. das Letras
DEL NERO, Henrique Schützer. O sítio da mente; pensamento, emoção e vontade no cérebro humano.
São Paulo, Collegium Cognitio, 1997.
DUPUY, Jean-Pierre. Nas origens das ciências cognitivas. São Paulo, UNESP, 1994.
ECO, Humberto. Sebeock, Thomas A (organizador). O signo de três. São Paulo, Ed. Perspectiva. 1999.
LURIA, R. A. Curso de psicologia geral; vols. II, III, IV. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991.
MERLAU-PONTY, Maurice. O Homem e a Comunicação. R. de Janeiro, Ed. Bloch. 1974
McCORMICK, Ernest J. Ergonomia; Fatores Humanos en Diseño. Barcelona, Gustavo Gilli, 1976.
MOLES, Abraham. Teoria da Informação e Percepção Estética. Rio de Janeiro, Ed. Universidade de
Brasília, 1978.
PEIRCE, Charles Sanders; Semiótica (The collected papers of Charles S. Peirce). São Paulo,
Perspectiva, 1999.
SACKS, Oliver. Um Antropólogo em Marte, Companhia das Letras, 1997.

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