Você está na página 1de 225

D ad os In tern acion ais d e C atalogação n a P u b licação (C IP )

(C âm ara B rasileira do L ivro , S P , B rasil)

Sodré, M uniz
As estratégias sensíveis : afeto, m ídia e
política / M uniz Sodré. - Petrópolis, RJ :
Vozes, 2006.
ISBN 85.326.3304-8
Bibliografia.
1. Afeto (Psicologia) 2. Com unicação
3. C om unicação de m assa 4. Estratégia (Filosofia)
5. Política I. Título.

06-0805 CDD -302.2

ín d ic es p ara catálogo sistem ático:


1. Estratégias sensíveis : Afeto, m ídia e
p o lític a : Sociologia 302.2
cVYlunlz/ S a d té /

esttatéfylcis/ s£MSMt&i&
sd^eta/, m ídia/ &potCUca/

Ò à ED I T O R A
▼ V O Z ES

Petrópolis
J \? ^ © 2006, E d ito ra V o zes L tda.
R u a F rei L uís, 100
2 5 6 8 9 -9 0 0 P etró p o lis, R J
Internet: h ttp ://w w w .v o zes.co m .b r

T odos os d ireitos reserv ad o s. N e n h u m a p arte d esta o b ra p o d e rá ser


rep ro d u zid a ou tran sm itid a p o r q u alq u er fo rm a e/o u q u aisq u er m eio s
(eletrô n ico ou m ecân ico , in clu in d o fo to có p ia e g rav ação ) ou arq u iv ad a
em q u alq u er sistem a ou b an co de d ados sem p erm issão escrita d a E ditora.

Editoração: M aria d a C o n ceição B o rb a de S ousa


Projeto gráfico: A G .S R D esen v . G ráfico
Capa: O rnar S antos

IS B N 85.32 6 .3 3 0 4 -8

C H A M - 3 1 6 .7 7 / S 6 7 9 e
R EG - 0101312
LO C - 1
D A TA - 05/ 10/ 2009
O BRA -56340

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.


Ohne unsern wahren Platz zu kennen,
handeln wir aus wirklichen Bezug' (R ainer
M aria R ilk e. Sonetos a Orfeu).

1 . " Se m c o n h e c e r o n o sso l u g a r v e r d a d e i r o , a g im o s a p a r t i r d e u m a r e f e r ê n c i a r e a l ."

CENTRO UN iytRSmON O RRAN€ NO


Rua dos Aui!ri--Jox,
i^ c p Q ~ m tU )Y ? - M u riq Ti V
Su m a r io

Introdução - “E stratég ias” , p o r quê?, 9

1. Sentir, c o m u n icar e co m p reen d er, 17

2. O em otivo e o ind iciai n a m ídia, 73

3. A d em o cracia co sm ética, 125

4. A reg ên cia da alegria, 199

Bibliografia , 225
In t r o d u ç ã o
“ E stra tég ia s” , p or q u ê?

Cyuponhamos que se trate de inform ar um núm ero grande de pessoas


sobre o estado atual da Física. A transmissão de um dom ínio do conheci­
mento pressupõe um a série de condições cognitivas ou procedim entos m e­
todológicos. O saber m atemático, por exemplo, é condição constitutiva do
sistema de conhecimento da Física, logo é um a regra a ser partilhada e apli­
cada por todo aquele que aspire a um domínio aprofundado desta ciência. A
comprovação de um a hipótese requer o emprego da regra m atem ática, as­
sim como de prescrições técnicas ou norm as institucionais (procedim entos
laboratoriais, controle de instrumentos, etc.) a serem respeitadas para a rea­
lização da experiência.
Por outro lado, não poderiamos transm itir um conteúdo científico com
o mesmo discurso ou os mesmos procedim entos cabíveis à filosofia. Já não
se trata aqui de regra a ser aplicada, nem de norm a a ser respeitada, mas de
uma restrição a ser satisfeita.
A regra acim a descrita vale para a Física que se destina a ser apreendida
cientificamente como campo de conhecimento. Se a nossa intenção, porém ,
é apenas produzir um discurso de vulgarização da ciência, estamos livres
para suprim ir algumas das citadas condições cognitivas. Por exemplo, a re­
gra matemática; mas tam bém a restrição relativa à especulação filosófica,
ou ainda a norma que, institucionalm ente, nos obriga a recorrer a experiên­
cias de laboratório.
Neste caso, como proceder? A resposta passa por um tipo de cálculo ou
de manobra que flexibilize a regra, a norma ou a restrição. Entre a condição
cognitiva e sua realização, interpõe-se uma relação suscetível de perm itir a
flexibilização ou a adaptação da exigência de princípio às circunstâncias
específicas de um a situação. Impõe-se um mapeamento completo da situa­

9
ção, cap az de fo rn ecer in d icaçõ es q u an to à esco lh a rac io n a l a se fa z e r em
cad a e v en tu a lid ad e po ssív el.
E ssa relação é o q u e n o rm alm en te se co n h ece co m o estratégia.
P ara se r efetiv a, ela tem de calc u la r os asp ecto s d e c o m eç o e d e fim d a
ação e não se co n fin ar ao d etalh am en to c o n creto d a m a n o b ra a q u e se d is­
põe. E sta ú ltim a cab e à tática , resp o n sáv el p e la co n tin g ê n c ia do a g ir e c o n ­
fin ad a ao tem p o p resen te. E stratég ia e tá tic a p o d e m e sta r refe rid a s a jo g o s
de g u erra, de co m ércio , de p o lítica, de en tre te n im e n to ou d e co m u n icação .
São m u itas as estraté g ias d iscu rsiv as no jo g o d a c o m u n icação . C ab e-
lhes jo g a r, seg u n d o as circu n stâ n cias d a situ ação in terlo cu tó ria, c o m a fo r­
m a in icial do sistem a, v isan d o à co m u n icação co m u m o u tro , c o m o é b e m o
caso de u m a e straté g ia d e d iscu rso so cial p a ra a v u lg a riz a ç ã o de u m a c iê n ­
cia. M as u m a lin g u ag em o u u m d iscu rso , co m o se sabe, n ão se re d u z à fu n ­
ção de transm issão de conteúdos referenciais. N a relação co m u n icativ a, além
d a in fo rm ação v e icu lad a p elo en u n cia d o , p o rta n to , alé m do qu e se d á a c o ­
n h ecer, h á o q u e se d á a re c o n h e c e r co m o re la ç ã o en tre d u as su b je tiv id a -
des, en tre os interlo cu to res.
E m term o s m ais p rático s, a q u estão p o d e ser re su m id a assim : Q u e m é,
p a ra m im , este o u tro c o m qu em eu falo e v ice-v ersa? E sta é a situ ação en u n -
ciativ a, d a q u al n ão d ão c o n ta p o r in teiro a ra c io n a lid a d e lin g ü ística, n e m as
m u itas ló g icas arg u m en tativ as d a c o m u n icação . A q u i tê m lu g ar o q u e no s
p erm itim o s d e sig n a r com o estratégias sensíveis , p a ra n o s re fe rirm o s aos
jo g o s de v in cu lação dos atos d iscu rsiv o s às relaçõ es de lo calização e a fe ta ­
ção dos su jeito s no in terio r d a lin g u ag em .
N ão d eix a de p a re c e r u m a c o n trad ição em te rm o s a p lic a r a id é ia de c á l­
culo d a ação a u m a d im en são p ré-re p re se n ta c io n a l, em q u e n ão d o m in a o
reg im e c a lc u la n te d a p re v is ib ilid a d e . L a n d o w s k i, p o r e x e m p lo , q u e p e r ­
se g u e u m a “ sem ió tica do sen sív el” , situ a-se te o ric a m e n te n u m “ aq u ém e
além das e straté g ias”2, ao c o n ceb er u m re g im e co m u n icativ o em q u e o sen ­
tid o tro ca a ló g ica c ircu lação de v alo res do e n u n cia d o p e la c o -p re se n ç a so ­
m ática e sen so rial dos actantes.
E n tretan to , q u an d o se age afetiv am en te, e m com unhão , sem m e d id a ra ­
cional, m as co m ab ertu ra criativ a p ara o O u tro , estra té g ia é o m o d o de d e c i­
são de u m a sin g u larid ad e. M u ito antes de se in sc re v e r n u m a te o ria (estéti-

2. C f . La n d o w sk i , Er i c . En d e j à o u a u - d e l à d e s s t r a t é g i e s: Ia p r é se n c e c o n t a g i e u se . In : C a d e r n o
d e D i scu ssã o d o C e n t r o d e P e sq u i sa s So c i o sse m i ó t i c a s, n . 7 , Ed . d o C P S, 2 0 0 1 .

10
ca, psicologia, etc.), a dim en são do sensível im plica um a estratégia de a p ro ­
xim ação das diferenças - d ecorrente de u m ajustam ento afetivo, som ático,
entre partes diferentes n u m p rocesso - , fadada à constituição de um sab er
que, m esm o sendo inteligível, nada deve à racionalidade c rítico -in stru m en -
tal do conceito ou às figurações abstratas do pensam ento. T rata-se, logo, do
cam po das o p erações singulares, estas que sè o ferecem ao reco n h ecim en to
tal e qual se p roduzem , sem dependência p ara com o p o d er co m p arativ o das
equivalências ou sem a caução racio n alista de u m p an o de fundo m etafísi­
co. A estratég ia co n fig u ra-se aí com o eustochia , a clássica d esig n ação g re­
ga para a m irada ju sta sobre um a situação problem ática, convocada pela p o ­
tên cia sensível do sujeito ou do objeto.
O singular não é o individual, nem o grupai, m as o sentido em po tên cia
- portanto, é u m afeto, isento de rep resentação e sem atribuição de pred ica­
dos a sujeitos - que irrom pe num aqui e agora, fo ra da m ed id a ( ratio ) lim i-
tativa. É o que co stu m a aco n tecer nas falências dos sistem as, nos regim es
de reciprocidade o u de interação direta entre as p essoas, onde u m a súbita
diferença po d e disso lv er as p o siçõ es fixas de sujeito. N ão é o m esm o o que
M ichel F o u cau lt cham o u de “ estratégia direta” ou “ estratég ia sem estrate­
g ista” p ara referir-se à autolegitim ação da racio n alid ad e que reg u la as n o r­
m as do funcionam ento social. A s experiências sensíveis po d em o rientar-se
p o r estratégias espontâneas de ajustam ento e contato nas situações in terati­
vas, m as salvaguardando sem pre para o indivíduo u m lu g ar ex terio r aos
atos puram ente lingüísticos, o lu g ar singularíssim o do afeto.
É v erdade que as m ídias e a pro p ag an d a têm m o strad o com o estratégias
racionais não espontâneas p o d em in stru m en talizar o sensível, m an ip u lan d o
os afetos. N a m aioria das vezes, porém , tudo isso se p assa em co n dições
não apreensíveis p ela consciência. Se já nas estratégias d iscu rsiv as a c o n s­
ciência do sujeito n ão rein a em term os absolutos sobre a sua p o sição de fa­
lante, m uito m enos co m andam a co n sciência e a racio n alid ad e calcu lad o ra
no tocante à zona ob scura e contingente dos afetos, m atéria d a estética co n ­
siderada em sentido am plo, com o m odo de referir-se a to d a a d im ensão sen ­
sível da experiência vivida.
A diversidade dos m o d o s de sentir e, ao m esm o tem po, a sin g ularidade
p o r vezes radical de cad a experiência config u rad a fazem do sensível u m a
espécie de terreno brum oso para a consciência do sujeito auto-reflexivo,
p orque o lançam n u m a im ediatez m últipla e fragm entada, onde os ju lg a ­
m entos ten d em a ser m ais estéticos do que m orais. M as igualm ente para o
pensam ento crítico ou reflexivo, que tradicionalm ente se apóia sobre a ar-

11
gumentação racionalista e ética, e não sobre algo que se confunde com as
im pressões dos sentidos, designável com o “estética” .
Esse “algo”, no entanto, faz-se cada vez m ais presente nas form as de
vida e nos embates ideológicos da contem poraneidade, com o um terreno
privilegiado ou um a espécie de teatro p ara as m anifestações dos fantasm as
de desencanto com a história. B asta dizer que a m aior parte do pensam ento
pós-m odem ista, avesso à política liberal-parlam entarista, gira em tom o da
estética. N asce daí um descom passo, senão um grande equívoco teórico na
relação entre a m aioria das pesquisas correntes em com unicação - guiada
pela discursividade linear e seqüencial - e a n ova racionalidade inerente às
tecnologias da informação. A em ergência de um a nova C idade hum ana no
âm bito de novas tecnologias do social nos im põe, não apenas no plano inte­
lectual, m as tam bém nos planos territoriais e afetivos, term inar com um v e­
lho contencioso da m etafísica que se irradiou para o pensam ento social: a
oposição entre o logos e o pathos , a razão e a paixão. N esta dicotom ia, a di­
mensão sensível é sistematicamente isolada para dar lugar à pura lógica cal-
culante e à total dependência do conhecim ento frente ao capital.
É um a oposição que perde progressivam ente a sua radicalidade diante
do desafio que os novos m odos operativos da ciência e da técnica lançam ao
racionalism o platônico, velha garantia entre o sensível das im agens e a v er­
dade inteligível do m undo. N ão é assim de se estranhar que o pensador res­
ponsável pelas mais densas reflexões sobre a essência ou o “m istério” da
técnica no século passado, vinculando-a à tem poralidade da presença hu ­
m ana (H eidegger), seja o m esm o que apresenta a situação afetiva com o m a­
nifestação da com preensão originária do mundo.
A inform ação, a com unicação, a im agem , com todas as suas tecn o lo ­
gias - uma forma de conhecimento sem os requisitos hierárquicos imprescin­
díveis à form ação e à circulação dos saberes clássicos - têm -se p ro g ressi­
vam ente imposto aos sujeitos da teoria e da prática com o o pretexto para se
cogitar de um outro m odo de intelig ib ilid ad e do social. P o r quê? P orque
a afetação radical da experiência pela tecnologia faz-nos viver plenam ente
além da era em que prevalecia o pensam ento conceituai, dedutivo e seqüen­
cial, sem que ainda tenham os conseguido elaborar um a práxis (conceito e
prática) coerente com esse espírito do tempo marcado pela imagem e pelo sen­
sível, em que em ergem novas configurações hum anas da força produtiva
e novas possibilidades de organização dos m eios de produção.
É particularm ente visível a urgência de um a outra p osição interpreta-
tiva para o campo da com unicação, capaz de liberar o agir com unicacional

12
das concepções que o lim itam ao nível de interação entre forças puram ente
m ecânicas e de abarcar a diversidade da natureza das trocas, em que se fa­
zem presentes os signos representativos ou intelectuais, m as principalm en­
te os poderosos dispositivos do afeto. N os fenôm enos da sim patia, da anti­
patia, do am or, da paixão, das em oções, m as igualm ente nas relações em
que os índices predom inam sobre os signos com valor sem ântico, algo p as­
sa, transm ite-se, com unica-se, sem que nem sem pre se saiba m uito bem do
que se trata. Em seu Journal Intime , o ensaísta francês H. A m iel aludia a
essa exterioridade tão próxim a ou tão íntima, em tom de queixa, como “tudo
que a natureza faz em nós sem nós” .
É que se trata propriam ente do que está aquém ou além do conceito, isto
é, da experiência de um a dim ensão prim ordial, que tem m ais a ver com o
sensível do que com a m edida racional. Por exem plo, a dim ensão da corpo-
reidade nas experiências de contato direto, em que se “v ive”, m ais do que se
interpreta sem anticam ente, o sentido: sentir im plica o corpo, m ais ainda,
uma necessária conexão entre espírito e corpo. O u então, a dim ensão da im a­
gem, em que o afeto e a tatilidade se sobrepõem à p ura e sim ples circu la­
ção de conteúdos. Trata-se finalm ente de reconhecer a potência em ancipa-
tória contida na ilusão, na em oção do riso e no sentim ento da ironia, m as
tam bém na im aginação, requisito indispensável do “capital hum ano” com ­
patível com as form as flexíveis do novo capitalism o.
É um cam inho teórico que privilegia o em ocional, o sentim ental, o afe­
tivo e o m ítico (nisto foi pioneiro, aliás, G ilberto Freyre, ao incluir afetos,
formas e até mesm o odores em suas análises da sociedade brasileira), con­
siderando-os subjacentes, de form a m ais determ inante do que nunca, às for­
mas emergentes de socialidade e, muito freqüentemente, em desacordo com
as instituições reconhecidas ou consagradas pelo poder de Estado, assim
como com as grandes categorias da racionalidade geralm ente tidas com o
chaves para a explicação total do m undo. Esse “desacordo” é, entretanto,
recuperável por parte do poder, o que não nos libera da responsabilidade de
um novo pensam ento crítico ou, pelo menos, de um a nova form a de inteli­
gibilidade sistem ática das form as emergentes. D entro do m ovim ento de fu­
são progressiva da vida com a tecnologia, tom a-se tam bém m uito eviden­
te hibridização da techné (a reboque do capital) com a aisthesis , com riscos
paralelos de conversão de toda a vida em em oção controlável.
Ao mesm o tem po, tom adas exponenciais pela tecnociência e pela rea­
lização cibernética do m undo (ou seja, pelo privilegiam ento do cálculo ou
das estruturas m atem áticas no interior de um paradigm a cognitivo orienta­
do pelo racionalism o instrum ental), as categorias platônicas do pensam en­

13
to social persistem no recalcam ento da experiência sensorial da realidade,
a m enos que se dê sob o controle dos dispositivos de inform ação. N ão que a
em ergência do sensorialism o tenha escapado por inteiro ao atual pensa­
mento do social (disto dá provas, por exem plo, a sociologia das form as e do
cotidiano). N o cam po da com unicação, porém , a m era reiteração do surgi­
m ento de um a “outra cultura” vertebrada pelas tecnologias da inform ação
não se faz acom panhar de um a outra atitude epistem ológica ou interpretati-
va - mais com preensiva, m enos intelectual-racionalista, capaz de apreen­
der os fenôm enos fora da m edida universal - para a análise que se pretende
cham ar de “com unicacional” .
Tom em os com o exem plo as pesquisas correntes em to m o dos fluxos
de inform ação que integram as cidades e os indivíduos à globalidade tecno-
econômica, criando, nos cenários urbanos de com unicação em ergentes, um
sensorium novo - social e culturalm ente m ais visível na tem poralidade p ar­
ticular dos jovens. D esenha-se aí, como se pode inferir, a perspectiva de ou­
tros modos de abordagem das redes de sentido que conform am o real, ou
seja, de outras estratégias de confrontação das diferenças a que se possa dar
o nome de “culturais” .
Mas os estudos correntes não parecem levar em conta esse “sensorium”
novo (como o faz, por exemplo, Lawrence Grossberg, ao usar a categoria
“investimento afetivo” para analisar a relação do rock com a audiência ju v e­
nil), preferindo ater-se à ambígua modalização ocidentalizada da categoria
“cultura” - pautada pelo poder dos signos e pela m edida universalista do sen­
tido apenas redesenhada instrumentalmente pelo culturalismo norte-am e­
ricano. E é precisamente a partir dela que a maioria dos pesquisadores latino-
americanos empenha-se em investigar os fenômenos de comunicação, con­
tribuindo para a constituição do campo latino-americano dos “estudos cultu­
rais de com unicação” . Reconhece-se o peso da tecnologia na interrogação
da cultura contemporânea, mas se aceita conceitualm ente “cultura” como a
mesma forma histórica que presidiu as iluminações da modernidade.
Vale acautelarm o-nos em especial com tudo que nos atrai, em termos
de pensam ento, para as águas turvas e paradas da “des-historização” nor­
te-americana, que recalca a dim ensão política do cultural. Isto não acontece
necessariam ente com os “estudos culturais” da vertente inglesa, m arcada
pela obra de Raym ond W illiams, na quais se destacam atualm ente autores
como Edw ard Said, Stuart Hall, H om i B abba e outros. Daí têm partido di­
retivas para os estudos de recepção, assim como subsídios conceituais para
a crítica das noções de atom ização e passividade contidas no conceito de

14
“m assa” , quando este perm anece subm etido a parâm etros estritos da trad i­
ção sociológica.
N um a nova “ sociedade da cultura” que im plique o cultivo das possibili­
dades sensoriais ou afetivas, cum pre inserir a problem ática da com unicação
ao m esm o tem po num a epistem ologia com preensiva e num direcionam ento
político, em busca de um sentido em ancipatório, diante da hegem onia m erca­
dológica da m ídia transnacional. Isto im plica fazer frente a um a espécie de
descom passo teórico, que reside, a nosso m odo de ver, na ênfase das pesqui­
sas culturalistas sobre o conteúdo argum entativo e crítico legado pela velha
tradição idealista (que gera o “bom ” nacional-popular, o “bom ” discurso edu­
cacional, a “boa” m em ória coletiva, etc.), enquanto que a nova tem poralida-
de da técnica parece apontar para o que conform a esteticam ente a dim ensão
do “sensório”, isto é, a form a e o sensível, sem os com prom issos teleológicos
extraídos da racionalização w eberiana tom ada ao pé da letra.
Profundam ente im ersos num processo civilizatório em que as im agens
exercem um poder inédito sobre os corpos e os espíritos, com eçam os de fato
a nos inquietar com o m istério da realidade sensível de todos esses signos
visíveis e sonoros que adm inistram o afeto coletivo e a tam bém a indagar so­
bre o encam inham ento político de nossas emoções. É aqui então que o agir
ético-político, quando acontece, faz em ergir o ser com um com o possibilida­
de de inscrição do diverso na tram a das relações sociais, para além das m edi­
das fechadas da razão instrum ental e da lei estrutural do valor, o capital.
Q uanto a u m a epistem ologia com preensiva específica para a C om uni­
cação, é preciso antes entender que as tradicionais ciências sociais e h um a­
nas sem pre procuraram inscrever positivam ente o fato (social, histórico, in­
dividual) num a ordem de causalidade capaz de levar a um a apreensão obje­
tiva da realidade p or m eio da interpretação adequada. O desafio epistem o-
lógico e m etodológico d a C om unicação enquanto praxis social, entretanto,
é suscitar um a compreensão , isto é, um conhecim ento e ao m esm o tem po
um a aplicação do que se conhece, na m edida em que os sujeitos im plicados
no discurso orientam -se, nas situações concretas da vida, pelo sentido co-
m unicativam ente obtido.
É verdade que o sentido de um a explicação sociológica ou de qualquer
outra disciplina clássica do pensam ento social pode sem pre acabar sendo
revertido para u m a orientação concreta de conduta por parte de indivíduos
ou de instituições. A s ciências hum anas e sociais são práticas teóricas que
respondem a d em an d as im p lícitas ou ex p lícitas da so cied ad e, de m an eira
que seus resultados ffeqüentem ente redundam em aplicações posteriores.

15
A diferença introduzida por um a abordagem co m p reen siv a d a C o m u n i­
cação está no fato de já inscrever a aplicação no ato in terpretativo (ou seja,
inscrever o “com unicativo” no “com u n icacio n al”), p o rq u e os objetos co- *
m unicacionais descrevem e integram um a ex p eriên cia im ediata e com um ,
que é a da midiatização, isto é, da articulação das in stituições com as m ídias
- o bios virtual, a nova esfera existencial em que estam os todos sensorial-
m ente im ersos. N ão se trata, pois, de um a so ciologia ou u m a an tro pologia
das “m ediações sociais” - a ciência social de um lado e o pro cesso co m u n i­
cativo do outro, sem pre acom panhados da intenção id ealista ou “terap êu ti­
ca” de converter a m assa em sujeito social resp o n sáv el - , m as de um saber
que transpareça de m odo im ediato na superfície sensível das condutas. N a
cognição com unicacional, a m atéria sensível (im agens, form as, aparências,
sinestesias, ritm os, etc.) não é “fato social” ou qu alq u er objeto separado do
sujeito, e sim “co isa” que já inscreve em si m esm a u m ag enciam ento co g n i­
tivo, um a espécie de pensam ento operativo, senão u m a “estratég ia sen sí­
vel”, totalm ente aberta para a possibilidade de que se co n ceba um a episte -
me do hum ano saída diretam ente da técnica.
O texto que se segue - resultado de nossa atividade p erm an en te com o
pesquisador do C N Pq - é um a deriva a partir da co ntraposição clássica en ­
tre afeto e razão, m as igualm ente a dem onstração de com o as estratégias
sensíveis perm eiam as form as em ergentes de socialidade na era d a m íd ia ou
da com unicação m odelada p o r m ercado transnacional e tecnologias avan­
çadas da inform ação.

16
1
Se n t ir , c o m u n ic a r e

CO M PREENDER

M ídia e com u n id ade afetiva. As va ria da s dim en sões


da sen sibi lid ade con t rapost as às da razã o na cult ura
ociden t al. Afecçáo, afet o, em oçã o e sen t im en to. Est ét i­
ca ou est esia com o cam p o d a s m a n ifest a ções sen sí­
veis. Valor- afet o, capitalism o- m undo, m ercado e m ídia.
Com un icação e com p reen sib ili da de.

< ^ >

V am os tom ar com o ponto de p artid a a seguinte reflexão de P em iola:


“Parece que é ju stam en te no plano do sentir que a n ossa época exerceu o
seu poder. Talvez p or isso ela p ossa ser definida com o um a época estética:
não p o r ter um a relação privilegiada e direta com as artes, m as essen cial­
m ente porque o seu cam po estratégico não é o cognitivo, nem o prático,
m as o do sentir, o da aisthesis ”3. E nossa questão inicial dispõe-se então na
pergunta sobre a possibilidade de existência de um a p otência em ancipató-
ria na dim ensão do sensível, do afetivo ou da desm edida, para além , p o rtan ­
to, dos cânones lim itativos da razão instrum ental.
Isso im plica um acordo inicial sobre o significado de “ação em ancipa-
tória” com o aquela socialm ente produtiva e não dom inada p ela transcen­
dência do poder (por exem plo, um a p o lítica que se enuncie orig in ariam en -
te com o inassim ilável pela ordem socioeconôm ica vigente, ou então um a
ação am pliativa dos direitos civis), para nos perguntarm os em seguida so­
bre a viabilidade de um a ação dessa ordem no interior de um a realidade es­
pecífica, a da sociedade dita da com unicação e da inform ação, sobre a qual
pesam as m uitas suspeitas intelectuais de não ser m uito m ais do que um a

3. Pe m i o l a , M a r i o . D o se n t i r . Pr e se n ç a , 1 9 9 3 , p . 1 1 .

17
estru tu ra vo ltad a p ara in teresses eco n ô m ico -co rp o rativ o s im ed iato s, sem a
id ealidade de form as o rig in ais ou sem a p ersp ectiv a de fins ético -políticos.
E ssas su sp eitas são em b asad as p o r to d a u m a trad ição h u m a n ista (e in-
tele c tu a lista ) de p en sam en to , segundo a qual u m d isp o sitiv o que grav ite na
ó rbita dita “ cu ltu ral” d ev eria reg er-se n ecessariam en te p o r u m a teleo lo g ia
d a transcendência da verdade, do sentido e do poder, coincidente co m a m ais
absoluta racionalidade da história. A este respeito, com eçam a m anifestar-se,
entretanto, v o zes d isco rd an tes. V attim o, p o r exem p lo , av en ta a hip ó tese de
que, num p ro cesso id eal de em ancipação, a co m u n icação n ão d ev eria cam i­
nh ar no sen tid o de u m a m a io r v e rd a d e de seu s c o n te ú d o s , e sim n o s e n ti­
do de u m a “in ten sificação de si m esm a com o fim ”4.
D e fato, n ad a no s asseg u ra que a co m u nicação d isp o n h a de u m a razão
técnico-social capaz de ap o n tar p ara u m a “m aio r v erd ad e” ou u m a fin alid a­
de cultural qualq u er de seus conteúdos. Já no com eço d a v o g a das tecn o lo ­
gias com unicativas, W ittg en stein ironizava: “H o m en s ju lg a ra m que u m rei
pudesse fazer chover; nós d izem os que isto é co n trad izer to d a experiência.
H oje se ju lg a que o aeroplano, a rádio, etc. são m eios de apro x im ação dos
povos e de difusão da cu ltu ra”5. É que, desde m eados dos anos trinta, circu ­
lavam em m eios acadêm icos ju íz o s de aproxim ação entre o au to m ó v el, o
avião e a televisão, sendo esta últim a consid erad a m esm o - a ex em plo do
psicólogo da arte alem ão R. A m h eim - u m “v eículo do esp írito ” , isto é, u m
instrum ento do m undo das form as da cultura.
M as o que W ittg en stein discute aqui, a p ro p ó sito do p ro b lem a da certe­
za, é a questão da experiência, sustentando não ser ela, e sim u m a to talid ad e
de proposições, o fundam ento do n osso m odo de ju lg ar, que nos leva a crer
em algum a coisa. E m sua observação sobre as tecn o lo g ias de deslocam ento
e com unicação, ele desqualifica im plicitam ente a ex p eriên cia de sucesso
desses m eios e sugere u m outro fundam ento p ara a crença em -sua positivi-
dade cultural.
É a um outro fundam ento que tam bém alude V attim o, m as, diferen te­
m ente de W ittgenstein, buscando transform ar a com unicação em ação em an-
cipatória. Seria talvez possível divisar nesta p roposição o eco de um a refle­
xão nietzscheana: “A s nossas vivências autênticas não são de m odo algum
elo q ü en tes. N ão p o d em o s c o m u n icá-las m esm o se o q u iséssem o s. É que

4. C o n f e r ê n c ia d e a b e r t u r a d o XII Co n g r e sso d a A sso c ia ç ã o N a c i o n a l d o s Pr o g r a m a s d e Pó s-


G r a d u a ç ã o (Co m p ô s). Bib lio t e c a N a c i o n a l , 0 4 / 0 6 / 2 0 0 2 .
5 . W it t g e n st e in , L. D e Ia ce r t l t u d e . G a l l i m a r d , 1 9 7 6 , p . 5 5 .
lhes falta p alav ra”6. M as com o au tenticidade não será certam ente o atributo
m ais adequado para a experiência industrial (logo, econom icam ente interes­
sada) da com unicação, que hoje se faz pública com poderosos recursos tec­
nológicos e m ercadológicos, levanta-se a hipótese de um fenôm eno que v ale­
ría p ela pu ra intensidade perform ativa de sua m im ese, isto é, p o r u m a expe­
riência intensa de apreensão de aspectos d a vida, diante da qual o “co n teú ­
do” ou a m atéria do aco ntecim ento acab a to m an d o -se in d iferen te7.
A célebre fó rm ula de M arshall M cL u h an - “o m eio é a m en sag em - ali­
nha-se neste m esm o quadro conceituai. D izer “m eio ” é d izer “ fo rm a” . O
m eio -fo rm a é, em princípio, a tecn o lo g ia que, no caso da televisão, consiste
no aparato d e tran sm issão e recep ção de im agens p o r m eio de recursos ana­
lógicos o u digitais. A ntes de M cL u h an se diria, ao m odo do dualism o aris-
totélico, qu e essa fo rm a é o en v o ltó rio ou o rev estim en to técn ico da m a té ­
ria co n stitu íd a p elo vivido sociocultural de u m grupo hum ano. O m eio seria
v eículo de u m conteúdo externo a ele, de onde p ro v iría o sentido.
M as q u ando se adm ite que “ o m eio é a m en sag em ” , está-se dizendo que
há sentido n o pró p rio m eio, logo, que a form a tecn o ló g ica equivale ao con­
teúdo e, p o rtanto, não m ais v eicu la ou tran sp o rta co n teú d o s-m en sag en s de
u m a m atriz de significações (um a “id eo lo g ia”) externa ao sistem a, já que a
p ró p ria form a é essa m atriz. T al é o sentido ou o “co n teú d o ” da tecnologia:
u m a form a de codificação hegem ônica, que intervém cu lturalm ente na vida
social, dentro de um novo m undo sen sível criado p ela rep rodução im aterial
das coisas, pelo divórcio entre form a e m atéria. L iberadas as p essoas e as
coisas de seu peso ou de sua gravidade substancial, to m ad as im agens que
ensejam u m a aproxim ação fantasm ática, a cu ltura passa a d efinir-se m ais
p o r signos de envolvim ento sensorial do que pelo apelo ao racio n alism o da
representação tradicional, que p riv ileg ia a linearidade d a escrita.
E ste novo ordenam ento cultural não pod ería deix ar de atin g ir o fu n cio ­
nam ento do logos clássico. C o nseqüentem ente, esta hip ó tese suscita críti­
cas in te le c tu a lista s no sen tid o de qu e as in d ú stria s d a co m u n ic a ç ã o p ode-

6 . N i e t z sc h e , F. O c r e p ú scu l o d o s íd o l o s . G u i m a r ã e s, 1 9 8 5 , p . 1 0 2 .
7 . Essa i n d i f e r e n ç a é u m a r e a l i d a d e h i st ó r ic a p a l p á v e l e e m e x p a n s ã o , p o ssi v e l m e n t e u m d o s
f a t o r e s r e sp o n sá v e i s p e l a c r i se d e c r e d i b i l i d a d e t a n t o d o j o r n a l i sm o i m p r e sso q u a n t o d o a u ­
d i o v i su a l , d e sd e o s f i n s d o se g u n d o m i l ê n i o . A o m e sm o t e m p o e m q u e j o r n a l i st a s e p e sq u i sa ­
d o r e s a d m i t e m p r o b l e m a s sé r i o s n a a u t e n t i f i c a ç ã o d o s a c o n t e c i m e n t o s, o p ú b li c o - l e i t o r e a s
a u d i ê n c i a s d e t e l e j o r n a i s d e c l in a m e m p a íse s d o C e n t r o c a p i t a l i st a i n t e r n a c i o n a l , a e x e m p l o
d o s Est a d o s U n id o s. A " v e r d a d e " q u e i m p u l sio n o u n o p a ssa d o a a t i v i d a d e j o r n a l íst i c a d á l u ­
g a r a o e m o c i o n a l i sm o su p e r f i c i a l d a s i m a g e n s o u à p u r a v e r t ig e m d a v e l o c i d a d e i n f o r m a c io -
n a l n a s r e d e s c i b e r n é t i c a s.

19
riam estar destruindo, pela indiferença ao racionalism o conteudístico ou pelo
excesso de banalização cultural, toda a ordem representativa clássica.
Mas sem este m esm o vezo pessim ista, Eco já havia assinalado, duas dé­
cadas atrás, a debilidade dos conteúdos da m ídia eletrônica, ao fazer um a dis­
tinção entre a recente “neotelevisão” e o prim eiro form ato geral da tevê, a
“paleotelevisão” . D izia ele: “A característica principal da N eotevê é que ela
fala (conforme a Paleotevê fazia ou fingia fazer) sem pre m enos do m undo
exterior. Ela fala de si m esm a e do contato que estabelece com o próprio p ú ­
blico” . N ão interessa o que diga ou sobre o que ela fale (tam bém porque o
público, graças ao controle rem oto, decide quando deixá-la falar e quando
m udar de canal). Ela, para sobreviver a esse poder de com utação, procura en­
treter o espectador, dizendo-lhe “eu estou aqui, eu sou eu e eu sou você”8.
A utores com o Francesco C assetti e R oger O din detectam aí um em po­
brecim ento: “A ssistir à paleotelevisão im plicava atividades cognitivas ou
afetivas com plena dim ensão hum ana: com preender, aprender, vibrar ao rit­
mo dos acontecim entos relatados, rir, chorar, ter m edo, am ar ou sim ples­
mente se distrair. Assistir à neotelevisão não im plica m ais nada disso. A sin-
tonização energética é um a sintonização no vazio, sem objeto”9. V erón re-
fere-se a esta argum entação, m as para criticá-la, sugerindo que o “vazio”
pertencería m ais “aos nossos instrum entos conceituais” do que à própria te­
levisão: o que se poria efetivam ente em jo g o é um a nova fase da tevê en­
quanto dispositivo sem iótico de contato.
É preciso, entretanto, a nosso m odo de ver, deixar bem claro que “con­
tato” não se reduz à idéia de m era conexão, devendo ser entendido com o
um a configuração perceptiva e afetiva que recobre um a nova form a de co­
nhecim ento, em que as capacidades de codificar e descodificar predom i­
nam sobre os puros e sim ples conteúdos. Partilhava esta linha de pensa­
mento o pedagogo Paulo Freire que, m esm o não sendo especificam ente um
analista de mídia, assinalava a centralidade dos processos com unicativos
na produção do saber. C om unicação era, para ele, a “co-participação dos
sujeitos no ato de pensar”, im plicando um diálogo ou um a reciprocidade
que não pode ser rom pida. C ontato e afeto eram , a seu m odo de ver, cate­
gorias centrais para a com preensão do agir com unicativo, ensejando a dis-

8 . Eco , U m b e r t o . Te v ê : a t r an sp a r ê n c ia p e r d id a. In : V i a g em n a i r r ea l i d a d e co t i d i a n a . N o v a Fr o n ­
t e ir a , 1 9 8 4 , p . 1 8 2 - 1 8 3 .
9 . C f . V e r ó n , Eli seo . H ist ó r ia d a t e le v isão e c a m p a n h a s p r e sid e n ció v e is. In : V e r ó n , Elise o & N e t o ,
A n t o n io Fau st o . Lu l a p r esi d en t e - Tel ev i sã o e p o l ít i ca n a co m p o n h a el ei t o r a l . H o ck e r , 2 0 0 3 , p . 21

20
tin ção entre m eios expressivos, com o o jo rn a l e a telev isão , no in terio r do
co m p lex o m idiático.
A p o n tan d o p ara a d iferen ça en tre F reire e M cL u h an (p ara q u em a tev ê
era u m m eio “ frio” , exatam en te p o r so licitar o en v o lv im en to do p ú b lico ),
S érgio G uim arães, co lab o rad o r do p ed ag o g o , reitera esta d istinção: “F reire
m esm o c o lo ca a d iferen ça entre u m m eio que seria m ais q u ente, o d a tele v i­
são, que teria u m a ab o rd ag em m ais em otiva, que m exe m ais co m o v ivo da
p essoa, co m as em oções, e u m m eio m ais frio, com o o jo rn a l, on d e o que
aparece não é o in strum ento ao v iv o ” 10.
S eja qual for o ju íz o de v alo r que se faça sobre estes aspectos, co n fig u ­
ra-se entre os analistas u m a espécie de con sen so quanto ao crescen te au-
to -referen cialism o da m íd ia eletrô n ica, que ten d ería a d ebilitar, p o r ex cesso
de tautologia, a p o tên cia intrín seca da linguagem . P ara os m uitos crítico s
deste fenôm eno, descartad o o ho rizo n te d a auten ticid ad e, o que im p o rtaria
m esm o é falar do que se co n fig u ra com o prim o rd ial n a v iv ên cia factícia da
co m u nicação (facticidade no sentido de co n tin g ên cia e não n a acepção hei-
d eg geriana de “q u ed a” do h o m e m * em face do Ser), ou seja, falar do en fra­
q uecim ento d a lin guagem pelo p red o m ín io da contingência, da carên cia de
“n ecessid ad e” ou da p resen ça forte de u m a o rdem sim bólica. P au ta-se p o r
esta linha de raciocínio a m aio ria das restrições que críticos d a cu ltura c o n ­
tem p o rân ea d irigem ao fenôm eno com unicacional.
O utra, porém , é a inspiração ex p lícita de V attim o, sem pre m ovido p ela
idéia de um prim ado da ex p eriência estética sobre q u alq u er outra, m as ao
m esm o tem po convicto de que essa exp eriên cia não se define p o r um h o ri­
zonte cognitivo, tal com o se h av iam esforçado p o r dem o n strar o n eo -hege-
lianism o e a fenom enologia, p o r exem plo. E le diz p artir da in terpretação
dada p o r G adam er aos fam osos parág rafo s 39 e 40 da Crítica do ju ízo , de
K ant, p ara com parar o agir com unicativo ao ju ízo estético, entendido com o
um ju ízo reflexivo, isto é, referente ao estado do sujeito e não à o b jetividade
realística e universal da coisa.
N os citados parágrafos, K ant p rim eiro sustenta que um a sensação só se
to m a com unicável quando há acordo ( Einstimmgkeit, eufonia) de afetos, o
que pressupõe um a com unidade afetiva ou com unidade do gosto. G osto, para
ele, é a faculdade de ju lg ar a priori a com unicabilidade (Mittelbarkeit) dos

1 0 . C f . M e d i t sc h , Ed u a r d o & Fa r a c o , M a r i a n a Bit t e n c o u r t . O Pe n sa m e n t o d e Pa u lo Fr e i r e so b r e
j o r n a li sm o e m íd i a . In : Rev i st a Br a si l ei r a d e C i ên ci a s d a C o m u n i ca çã o , v o l. X X V I, n . 1 , j a n .-
j u n ./ 2 0 0 3 , p . 3 0 .
* H o m e m , n e st a o b r a , se r e f e r e a o se r h u m a n o , n ã o sig n i f i c a n d o g ê n e r o .

C’Í';V cw ; / £ k ã j j Á H t f t íí. -i/v


CEP v ^ -----
se n tim e n to s, “ a faculdade qu e to m a o sentim ento u n iv ersalm en te co m u n icá­
v e l se m a m ed iação de co n ceito s” . C abe, portanto, ao senso co m u m (sensus
com m unis) asseg u rar o caráter u niversal, logo transcendental, do gosto.
O q u e V attim o está afirm a n d o é que, assim co m o o g o zo e stético po d e
se r c o m p re e n d id o co m o u m a ex p e c ta tiv a de c o m p artilh am en to (o sen so c o ­
m u m k a n tia n o ) do qu e se ex p erim en ta n a c o n tem p lação d e u m a o b ra de
arte, p o r e x em p lo , o ap elo d a c o m u n icação estaria n a p o ssib ilid a d e de in te­
g ra r o su jeito c o n tem p o rân eo n u m a so cied ad e de ig u ais, co -p artícip es de
u m ju íz o de g osto. E ste é o “ sen so co m u m ” rein terp retad o p o r G a d a m e r de
m o d o d iv erso d a in ten ção k a n tia n a de d a r a u to n o m ia à estética, u m a vez
q u e sob o p o n to de v ista g a d am e rian o a e x p eriên cia e stética não p o d e ser
p o sta à p arte d a realid ad e v iv id a. D esta m an eira, u m sentimento in ten so de
c o m u n id a d e , e n ã o u m a razão u n iv e r s a lis ta , e s ta ria n o â m a g o d o p r o c e s ­
so co m u n ic a c io n a l. A c o m u n icação en q u an to “ in ten sificação de si m esm a
co m o fim ” seria, assim , afim à id éia k an tia n a de b e le z a co m o “ fin alid ad e
sem a rep resen tação de u m fim ” .
E sta lin h a de p en sam en to g u ard a alg u m a sem elh an ça co m o m o d o p elo
qual Jauss ab o rd a o p ro b le m a d a recep ção n a e x p eriên cia estética, d esta­
c ando tanto a aisthesis - en q u an to atitu d e p e rcep tiv a qu e d á p rim azia à sen-
so rialid ad e ou afetiv id ad e sob re o co n ceito - q u an to a catharsis , que “ libera
o o b serv ad o r dos interesses p rático s e das op ressõ es d a realid ad e co tid ian a,
tran sp o rtan d o -o p a ra a lib e rd a d e e sté tic a do ju íz o , m e d ia n te a au to -sa tis-
fação no p razer alh eio ” 11. N e ssa relação en tre au to -satisfa ção e satisfação
alheia, Jauss enxerga o núcleo p ropriam ente com unicativo da recepção, onde
a ex p eriência sen sível p o d e g an h ar os foros em an cip ató rio s de que fala
V attim o.
D iferentem ente de Jauss, entretan to , V attim o não está p reo cu p ad o em
distinguir dim ensão recep tiv a de dim en são p ro d u tiv a da ex p eriên cia estéti­
ca, já que lhe p arece av u ltar em p rim eiro p lan o a c o n trap o sição da c o m u n i­
dade do gosto (o sensus communis kan tian o ) ao u n iv ersalism o co n ceituai
da razão, para co n to rn ar a recu p eração das form as sen sív eis p elos p arad ig ­
m as do poder e alargar, p o r m eio da com un icação , o ho rizo n te da ex p eriên ­
cia. O que m esm o o p reocupa, de m odo an álogo ao cu idado de K ant com o
prazer estético na contem p lação da obra de arte, é a co m u n icab ilid ad e pura
e sim ples, para além de q u alq u er co nteúdo específico.

1 1 . Ja u ss, H a n s R o b e i i . Ex p e r i ê n ci a e st ét i ca y h e r m e n ê u t i ca l i t e r á r i o - En sa y o s e n e l ca m p o d e Ia
e x p er i en ci a e st ét i ca . T a u r u s, 1 9 9 2 , p . 7 6 .

22
É n a realid ad e u m a p reo cu p ação c o m o q ue está aq u ém ou além do c o n ­
ceito, isto é, co m a e x p eriên cia de u m a d im en são p rim o rd ial, que tem m ais
a v e r co m o sen sív el do q u e co m a razão. P o r ex em plo, a d im en são d a cor-
p o reid ad e, u m a v ez q ue sen tir im p lica o corpo, m ais ain d a, u m a n e cessária
co n ex ão en tre esp írito e corpo. P o r isto, u m o utro m o d o de ex p o r esta m e s­
m a preocu p ação aparece quando se contrapõe a im ediatez da expressão co r­
p o ral, c aracterística d a c u ltu ra au d io v isu al, às m ed iaçõ es co n ceitu ais dos
sistem as rep resen tativ o s. O u en tão , q u an d o se reflete sobre a d iferen ça en ­
tre o fu n cio n am en to d a m u ltid ão (“m a ssa ”) e a ap reg o ad a racio n alid ad e do
su jeito ilum inista. E spinosa foi certam ente o p rim eiro pensador, senão o p ri­
m eiro “ an tro p ó lo g o ” , a d eb ru çar-se sob re a função d as imaginationes (se n ­
sações, im ag en s, d ev an eio s, etc.) n a o rien tação p rá tic a do vulgus (m u lti­
dão, m assa), em c o n traste co m o esclarecim en to racio n al da con sciên cia. A
fo rm u lação sim p lificad a d a q u estão m an ifesta-se n a opo sição entre corpo-
reid ad e e intelectu alism o .
P o r isso, retom a-se no pen sam en to contem porâneo a pergunta espinosia-
n a (de inspiração ren ascentista e barroca) n a Ética - “Q ue pode o co rp o ?” D a
resposta de E spinosa se infere que nin g u ém tem condições de sabê-lo, um a
v ez que não se conh ecem os lim ites das afecções, do po d er hum ano de ser
afetad o 12. N o p en sam en to espinosiano, o corpo hum ano é u m a m ultiplicida­
de ou u m a com plexidade, com p o sta de corpos diversos, cada u m dos quais,
p o r sua vez, im plica outras co m p o siçõ es13. T al com plexidade to m a-o capaz
de afetar e ser afetado p o r corpos externos, com os quais interage no m eio cir­
cundante. A lm a e corpo são a m esm a coisa, apenas m anifestada de form as
diferentes, tendo a corporeidade relevância e precedência, um a vez que a alm a
é a sua idéia ou a sua representação. É a capacidade de associação entre idéia e
corpo que suscita a im aginação. E sta se eleva no plano do conhecim ento e faz
da corporeidade um a p o tên cia afirm ativa do ser.
N a m e sm a e s te ira d e p e n s a m e n to , a p s ic a n á lis e a te s ta q u e n ã o e x is ­
te u m a id e n tid a d e in erente entre co rpo e p siq u ism o , esclarecen d o que, do
p o nto de v ista do in d ivíduo em desen v o lv im en to , “o s e lf e o corpo não são
ineren tem en te superpostos, em b o ra p ara h av er saúde seja necessário que
esta superposição se to m e um fato, p ara que o indivíduo venha a po d er id en ­

1 2 . C f . D e l e u z e , G i l l e s . Sp i n o z a e t l e p r o b l è m e d e 1 'exp r essi o n (M i n u i t , 1 9 6 8 ) e Esp i n o sa : f i l o so ­


f i a p r á t i ca (Esc u t a , 2 0 0 2 ) .
1 3 . V i d e a r e sp e it o d o a ssu n t o a se g u n d a e a t e r c e i r a p a r t e d a Ét i ca (Sp i n o za . Ét h i q u e - D ê m o n -
t r ée su i v a n t l ' o r d r e g é o m é t r i q u e e t d i v i sé e en ci n q p a r t i e s. To m e Pr e m i e r . G a r n i e r ) .

23
tificar-se com aquilo que, estritam ente falando, não é o se lf ” 14. Só aos p o u ­
cos o psiquism o chega a um acordo com o corpo - em term os espinosianos,
apenas na m edida em que o conhecim ento diferenciado da alm a acom panhe
o do corpo.
A infinita e im ediata expressividade do corpo leva à suposição de que o
poder ativo e passivo das afecções ou dos afetos, além de preceder a discursi-
vidade da representação, é capaz de negar a sua centralidade racionalista, seu
alegado poder único. U m exem plo talvez pequeno, m as certam ente significa­
tivo, m ostra-se no teatro, quando a qualidade de expressão no corpo do ator
transcende a qualidade do texto, fazendo às vezes com que um roteiro m edío­
cre ganhe dim ensões notáveis no palco. Fatores com o ritm o, tem po, entrosa-
m ento, energia, gesto e corpo sobrepõem -se à literalidade da peça.
P or outro lado, u m a parte ponderável do pensam ento contem porâneo é
atravessada pela intuição de que a dim ensão dos afetos pode escapar da
apregoada onipotência da razão m etafísica. O regim e afetivo da alegria é
um bom exem plo. Segundo o francês R osset, ela “é p o r sua p rópria defini­
ção, de essência ilógica e irracional. P ara p retender ao sério e à coerência,
sem pre lhe faltará u m a razão de ser que seja convincente ou m esm o sim ­
plesm ente que possa ser confessada e dizível. A língua corrente diz m uito
m ais a respeito do que geralm ente se pensa quando fala de ‘alegria lo u ca’
ou declara que alguém está ‘louco de alegria” 15.
É tam bém o caso do liberal-pragm atista R orty, quando opõe - com o,
aliás, já o fizera no passado K ierkegaard, ao apontar a ironia com o lim ite
entre sujeito e m undo, entre o estético e o ético - a figura do ultra-racional
pensador m etafísico à do ironista, que privilegia a dim ensão afetiva: “E n­
quanto o m etafísico considera que a característica m oralm ente relevante
dos outros seres hum anos é a sua relação com um po d er com um m ais vasto
- a racionalidade, D eus, a verdade ou a história, p o r exem plo - o ironista
considera que a definição m oralm ente relevante de um a pessoa, de um sujei­
to m oral é ‘algo que pode ser h u m ilhado’. O seu sentido de solidariedade
hum ana baseia-se no sentido de um perigo com um e não num a posse co­
mum ou num poder partilhado” 16. Em sum a, sentim ento em vez de razão.
A ssim com o R osset descarta qualquer hipótese de um a grande causa
por detrás da alegria - seja um “eu” sensível e poderoso, seja um a objetiva

1 4 . W in n ico t t , D .W . N a t u r eza h u m a n a . Im a g o , 1 9 9 0 , p . 1 4 4 .
1 5 . Ro sset , C l é m e n t . A l e g r i a : a fo r ço m a i o r . Re l u m e - D u m a r á , 2 0 0 0 , p . 2 5 .
1 6 . Ro rt y, Ric h ar d . C o n t i n g ên ci a , i r o n i a e so l i d a r i e d a d e . Pr e se n ç a , 1 9 9 2 , p . 1 2 4 .

24
p re se n ç a p erm an en te - e a p o n ta p a ra u m a esp écie d e “ fo rça m a io r” , q u e se ­
ria a ap ro v ação in c o n d icio n al d a v id a, R o rty n ão a c e ita a razão , n e m q u a l­
q u er o u tra o rd em n ecessária, c o m o fu n d am en to d o h u m a n o . E le tro c a as in ­
ferên cias ex p licativ as, feitas a p a rtir d e u m a e sse n c ia lid a d e racio n a lista ,
p elo sen tim en to , e n ten d id o c o m o su scetib ilid ad e co m u m a u m g ru p o so ­
cial. E o sen tim en to , d esd e a e x p licação d e H o b b es so b re a o rig em d a c o ­
m u n id ad e e da política, d eriv aria de u m a em oção p rim eira, do m in ad o ra, que
p o d e ser ch am a d a de “m e d o ” .

R a z ã o e a fe to

E stam o s aqui, no s d o is e x em p lo s citad o s, lo n g e d a n e c e ssid a d e e do lo­


gos , em p le n a zo n a o b scu ra, co n tin g en te o u fa ctícia dos afetos , isto é, da
energia psíquica que se deixa ver nas diferentes modulações da tensão no
corpo. C o m o b e m sab em o s, o logos , razão de ser do co sm o e do ethos (a
v id a h u m a n a em su a n a tu ralid ad e e em su a c o tid ian id ad e dos h áb ito s, c o s­
tu m es e afeto s), m as tam b é m lin g u ag em co m o o rd en am en to qu e aco lh e to ­
das d iferen ças, é d esd e a A n tig u id ad e g reg a o cam in h o d o m in an te p a ra o
co n h ecim en to e a v erd ad e. É a v ia que, d o tad a de metron ou ju s ta m ed id a,
in d u z ao p en sam en to e à cap acid ad e de fazer in ferên cias ló g icas, en sejan d o
assim o co n tro le das p o ssív eis d esm ed id as d a em o ção o u paix ão .
T rata -se, p o rta n to , d a razão , c o n c e b id a co m o lu c id e z e sa b e d o ria é ti­
ca im p lic a d a s n a c o n d u ta p ru d en te ou sab ed o ria p rá tic a d a phronesis , m as
tam b ém com o v a lo r de m ed id a e de n o rm ativ ização . N a realid ad e, a g en ea­
logia da razão ap o n ta p a ra u m a d u p licid ad e, cujos n o m es são, de u m lado,
nous ou intellectus e, de outro, dianoia ou ratio. Intellectus co m p o rta a in ­
tuição d os dados im ed iato s d a ex p eriên cia, o u seja, d á ensejo a ju íz o s se n sí­
v eis e sintéticos; ratio diz resp eito ao p en sam en to co n ceitu ai e discu rsiv o ,
m ais an alítico do que sintético.
T rad u zin d o -se to d a a am p litu d e do logos com o ratio , p riv ileg iam -se a
m ed id a e a n o rm a e se abre cam inho p ara u m do g m atism o que, a pretex to
de adesão à g rav id ad e do pen sam en to , d esco n h ece, irrefletid am en te, a p o ­
tên cia em an cip ató ria co n tid a n a ilusão, n a em oção do riso e no sentim ento
da ironia. E sse do g m atism o d ecorre da id éia do logos com o red u ção d a d i­
versid ad e do real (a in fin itu d e dos opostos, o m istério d a diferen ça) ao im ­
pério d a unidade. N ão se trata, portanto, do m esm o “u m ” h eraclitean o , que
m antém a p o rta ab erta ao diverso.
N o interio r do cam po filosófico, a razão é trad icio n alm en te co n sid era­
da em seus aspectos subjetivo e objetivo. N o p rim eiro caso e em especial

25
p a ra o s p e n sa d o re s a n c o ra d o s n o p la to n ism o , tra ta -se d e u m a fa c u ld a d e in ­
te lig ív e l o ra co m o u m a o p e ra ç ã o a rtic u la d a d a in te lig ê n c ia (filo s o fia e sc o -
lástica), o ra c o m o u m a fa c u ld a d e d e a b so lu to , v o lta d a p a ra a e x p lic a ç ã o ú l­
tim a d o s fe n ô m e n o s n as três id é ia s tra n sc e n d e n ta is d o eu, d o m u n d o e d e
D e u s (K an t). N o a sp e c to o b je tiv o , a ra z ã o é ta n to o c o n ju n to d as n o ç õ e s p ri­
m eiras (ser, su b stân cia, id en tid ad e, c a u sa e fim ) e d o s p rin cíp io s im p licad o s
n o s ra c io c ín io s (c o n tra d iç ã o , ra z ã o su fic ie n te e su b stâ n c ia ) q u a n to d as leis
e d as cau sas q u e to m a m in te lig ív e is o s fato s e o s seres.
N iss o tu d o re sso a fo rte m e n te a d o u trin a p la tô n ic a . E m su a fa m o sa a le ­
g o ria d a c a v e rn a , n a rra d a c o m o m ito n o d iá lo g o e n tre S ó crates e G lá u c o n
(A república ), P la tã o m o stra q u e, p a ra o s h o m e n s ap risio n a d o s e d ista n te s
d a lu z d o sol, a v e rd a d e d a c a v e rn a são as s o m b ra s o u as silh u e ta s das c o isas
qu e se p ro je ta m n a p are d e , à lu z d o fo g o . S o m b ras n ã o são p ro p ria m e n te
co isas, e sim o s seu s in d ício s. S em as re fe rê n c ia s b á sic a s, os h o m e n s d e i­
x a m d e p e rc e b e r as so m b ras en q u a n to ta is e v iv e m d e se n sa ç õ e s, isto é, d a
m e ra a p arên cia, q u e é ao m e sm o te m p o a su a re a lid a d e e a im p o ssib ilid a d e
d e fa z e r a d istin ção en tre as co isa s e su as p ro je ç õ e s. N e sta p u ra s e n s ib ilid a ­
de e m q u e c o n siste o se r das so m b ra s, se m se d a r c o n ta de su a ra d ic a l e sc ra ­
v id ão , o h o m e m n ão p e n sa liv rem en te, n ã o se re a liz a co m o p le n o su jeito da
razão e d a lin g u ag em .
P a ra a re a liz a ç ã o d e ssa p le n itu d e , n ã o se p o d e o b lite ra r a d im en são o b ­
je tiv a do ra c io n a lism o - a in te lig ib ilid a d e , ta n to e m seu sen tid o n o m in a tiv o
q u an to g e n itiv o , dos p rin c íp io s, d as leis e das cau sas - q u e fa z d a razão n ão
u m atrib u to esse n c ia l co lad o a u m a etn ia o u a u m a c iv iliz a ç ã o p a rtic u la re s,
m as u m a “ te c n o lo g ia ” d e c o n h e c im e n to in eren te a e x p eriên cias h istó ric a s
d iferen ciad as. G reco -ro m an o q u e se ja o id e a l d a razão , e sta n ão se red u z,
em su a efetiv id ad e o p eracio n al, à g eo g ra fia c iv iliz a tó ria do O cid en te.
D en tro d e certas p ráticas cu ltu rais p e rp e tu a d a s p e la s a cad em ias, a ra ­
zão p o d e, e n tretan to , p riv ile g ia r as d eriv as m e ta físic a s d e seu asp ecto su b ­
je tiv o e, en tão , ex ercer-se co m o o b jeto d e u m c u lto q u e a c o n sid e ra u m a fa ­
cu ld ad e, in eren te à “ n atu re z a ” h u m a n a e c ap az d e ro m p e r o v é u d as a p a rê n ­
cias no ru m o d e u m a realid ad e “v e rd a d e ira ” . A liás, n ão ap en as nas a c a d e ­
m ias d e feição o cid en tal: n a trad ição relig io sa do h in d u ísm o , a p a la v ra guru
co m p õ e-se de d o is étim o s q u e sig n ificam “ro m p e r as tre v a s” , isto é, p e n e ­
tra r n as ap arên cias q ue o b scu recem a v erd ad e.
Só qu e n o O cid en te, d esd e o ree q u ilíb rio racio n al en tre o rd em d iv in a e
o rd em h u m a n a p erseg u id o p elo teatro g reg o - p assan d o p elas d o u trin as de
P latão e de A ristó teles, q ue p reg av am o c o n h ecim en to co m o acesso a u m a
realidade superior - , a verdade transcendente, com o m ed id a de todas as c o i­

26
sas, to m o u -se a g a ra n tia do p rim a d o d a ra c io n a lid a d e co g n itiv a do logos
u n ificad o r. E sta ra c io n a lid a d e d ev eria re fe rir-se , e m p rin cíp io , à re g ra e ao
d o m ín io técn ico d a razão , m as n a p rá tic a so cial im p lic a a d ita d u ra ló g ic a d a
ra z ã o e n q u a n to d o m ín io u n iv ersal. N a d o u trin a c ristã (n e o p la tô n ic a ), D eu s
se fa z V erd ad e; n o c o n h e c im e n to , a c iê n c ia se faz deu s.
A ssim , d esd e os p ré-so crático s e estó ico s - estes ú ltim o s in d iferen tes à
sen sib ilid ad e e aos in stin to s, su b m etidos à m ed id a d a “L e i” - , o O cid en te ha-
b itu o u -se a fazer a distin ção entre o racio n alism o co g n itiv o e as tensões ou
p ertu rb açõ es d a a lm a co n h ecid as co m o e m o çõ es o u sen tim en to s, q ue A ristó ­
teles d esig n av a co m o topathos. E sta p alav ra d á co n ta d a im p ressão m o ral ou
física cau sad a p o r idéias, p essoas e coisas. E m grego, ela tem u m am plo a l­
can ce sem ântico, m as os latinos a trad u ziram co m o passio (de patior, sofrer)
p ara su b lin h ar o q u e o h o m e m “so fre” : a p assiv id ad e v itim izad a de sua ex p e­
riência. A ristó teles, q u e fez d a p aix ão u m a d e suas d ez categorias, o b serv a na
Retórica qu e “ as p aix õ es são to d o s aqueles sen tim en to s que alteram os ho ­
m en s, a p o n to de afetar seus ju íz o s e v êm aco m p an h ad o s de d o r e p razer,
co m o a ira, a co m p aix ão , o m ed o e seus o p o sto s” (L ivro II, 1377 b).
A d ico to m ia rad ical entre p aix ão e ju íz o , m as igualm ente a am b iv alên cia
d a razão , exp rim e-se p o eticam en te n a trag éd ia A s bacantes, de E urípides, em
que a racio n alid ad e tirân ica e co lérica do R ei P en teu se contrap õ e ao un iv er­
so insensato e ap aix o n ad o do culto ao deus D ioniso. N a peça, com o se sabe, o
g u ardião d a racio n alid ad e (Penteu, au x iliad o p elo v id en te T irésias) term ina
sendo d esp ed açad o p elas tebanas en fu recid as, d entre as quais a sua p ró p ria
m ãe, A gavé. N o em b ate das d iferen tes forças, fica p aten te que h á u m a parte
de p aixão, logo de lo u cu ra o u de delírio, em to d a razão.
N a Id ad e M éd ia, os e sco lástico s en te n d ia m p a ix ã o co m o q u a lq u e r m o ­
v im en to d o ap etite sen sív el. A lb erto M ag n o (p ro fe sso r de S an to T o m ás de
A q u in o ) d esig n aria essa ex p eriên cia co m o qffectio, geralm en te trad u zid a por
afecção ou afeto. P ara S anto A gostinho, term o s co m o qffectio, qffectus, pas-
siones são sim p lesm en te sin ô n im o s.
V ale assin a la r que, n e ssa o rd e m d o s fen ô m en o s h u m an o s, o n d e tem
p rim ad o o sensível o u a sensibilidade (e n te n d id a co m o p ro p rie d a d e d e a c o ­
lh er im p ressõ es e ex citaçõ es, a elas re ag in d o co m o p eraçõ es d istin tas dos
p ro cesso s in telectu ais), os co n ceito s rev elam -se p articu larm en te im p re c i­
so s, a d esp eito do em p en h o trad icio n al d a d isc ip lin a filo só fica e, d ep o is, da
p sico lo g ia, d a p sico sso cio lo g ia e d a p sican álise. O s term o s p o d em to car-se
e co n fu n d ir-se, en q u an to os teó rico s p ro p õ em d em arcaçõ es para um a sino-
n ím ia g en ericam en te relativ a aos estad o s c o n trasta d o s d e d o r ou d e prazer,
qu e co n stitu em os p ro tó tip o s ou m atrizes p síq u icas d o s afetos.

27
Afeto é nom e recente p ara o que antes se designava com o afecção , a
exem plo da doutrina de E spinosa: “E ntendo p o r paixões ( ajfectus) as afec-
ções (ajfectiones) do corpo que au m entam e dim inuem a p o tên cia do ag ir”
(Ética III, def. 3). R egistra-se, aqui, entretanto, um a sutil d iferença entre
afecção, com o um conceito referido diretam ente ao corpo e sua idéia, e afe­
to ( ajfectus), “que im plica tanto p ara o corpo quanto p ara o espírito um au ­
m ento ou um a dim inuição da potên cia de ag ir” 17. D este m odo, sendo a af-
fectio um estado do corpo afetado p o r outro presente, e o ajfectus , u m a p a s­
sagem de um estado a outro, são diferentes as afecções-imagens ou idéias
dos afetos-sentimentos. O afeto supõe u m a im agem ou um a idéia, m as a ela
não se reduz, p o r ser puram ente transitivo e não representativo.
N o pensam ento espinosiano, o entendim ento do que seja a afecção p a s­
sa pelo de “m odo” . E xiste, p ara ele, em tudo que é, o ser em si ou substância
e o ser em outra coisa. O m odo, ser em outra coisa, segundo term o da alter­
nativa daquilo que é, define-se com o o conjunto das afecções de u m a subs­
tância ou “em outras palavras, aquilo que está em outra coisa p ela qual tam ­
bém é concebido” (É tica, I, def. 5).
Como explica D eleuze, “u m dos pontos essenciais do espinosism o reside
na identificação da relação ontológica substância-m odos com a relação epis-
tem ológica essência-propriedades e a relação física causa-efeito” 18. E m bora
diferentes da substância em essência e em existência, os m odos são p ro d u ­
zidos “nesses m esm os atributos que constituem a essência da substância” .
Pois bem , as afecções equivalem aos m odos, que se acham presentes tanto no
corpo como no espírito. C orpo é um m odo da extensão, é coisa; espírito é um
modo do pensam ento, portanto idéia do corpo que lhe corresponde.

E m oção, p aixão e sen tim en to

Hoje, term os com o afeição ou afecção , provenientes de ajfectus e af-


fectio, entendem -se com o um conjunto de estados e tendências dentro da
função psíquica denom inada afetividade , m ais especificam ente, um a m u­
dança de estado e tendência para um objetivo, provocadas p o r causa exter­
na. Afeto , por sua vez, com a m esm a etim ologia, refere-se ao exercício de
um a ação no sentido B, em particular sobre a sensibilidade de B, que é um
ser necessariam ente vivo. A ação de afetar (no latim clássico, podia corres-

1 7 . D e le u z e , G i l l e s. Esp i n o sa : f i l o so f i a p r á t i ca . Esc u t a , 2 0 0 2 , p . 9 2 .
1 8 . Ib i d .

28
po n d er a commuoverè) contém o significado de emoção , ou seja, u m fenô­
m eno afetivo que, não sendo tendência p ara um objetivo, nem u m a ação de
dentro para fora (a sensação, vale lem brar, é de fora para dentro) define-se
p o r um estado de choque ou de perturbação na co n sciên cia19. O u seja, em
linhas gerais, afeto pode m uito bem equivaler à idéia de energia psíquica,
assinalada por um a tensão em cam pos de consciência contraditórios. M os­
tra-se, assim , no desejo, na vontade, na disposição psíquica do indivíduo que,
em b usca de prazer, é provocado pela descarga da tensão20.
Fixem o-nos no estado designado pela palavra “em oção” por sua alta ffe-
qüência no vocabulário m oderno da afetividade e por um certo consenso teó­
rico no sentido de que ela dá unidade aos fenôm enos sensíveis, fazendo com
que o estado afetivo dominante perm eie todos os estados de consciência. Emo­
ção deriva do latim emovere, emotus - donde, commuovere. Infinitivo e pas­
sado verbais referem -se a um “m ovim ento” energético ou espiritual desde
um ponto zero ou um ponto originário na direção de um outro, com o conse-
qüência de um a certa tensão, capaz de afetar organicam ente o corpo h um a­
no. “E m otus” significa abalado, sacudido, posto em movim ento.
Esse m ovim ento pode ser tam bém descrito com o um a “m oção” , a exem ­
plo de H obbes que, para explicar a o rigem da paixão, recorre à idéia de um
percurso, cuja prim eira etapa, a da apreensão sensível do objeto, consiste na
m oção cerebral provocada pela “concepção” ou aparência do objeto. N a se­
gunda etapa, a m oção é suscetível de transform ar-se no coração em dor ou
prazer21. A í então, denom ina-se propriam ente paixão, no sentido hoje cor­
rente de em oção.
A em oção é um tipo de afeto que se costum a atribuir exclusivam ente
aos seres hum anos, em bora com porte a possibilidade de ser tam bém p ensa­
da com o traço do anim al. A tradição m etafísica registra vários sistem as ex­
plicativos da natureza do anim al, desde os que lhe atribuem um a “alm a ra­
zoável” (Plutarco, M ontaigne, Spencer) ou u m a “alm a sen sitiv a” (A ristó ­
teles, Santo Tom ás de A quino, Leibniz) até os que o concebem com o um a
m áquina ou “autôm ato” aperfeiçoado (D escartes)22. Há, assim , reconheci-

1 9 . C f . La la n d e , A n d r é . V o ca b u l á r i o t écn i co e cr ít i co d e f i l o so f i a . M a r t in s Fo n t e s, 1 9 9 9 .
2 0 . D e le u z e e G u a t t a r i f a ze m u m a d ist in ç ão e n t r e p e r c e p ç õ e s/ a f e c ç õ e s (d im e n sã o su b je t iv a d a
se n sib ilid a d e ) e p e r ce p t o s/ a f e t o s, e n t e n d id o s co m o u m a d im e n sã o im p e sso a l , c a p a z d e u l t r a ­
p a ssa r t an t o su jeit o co m o o b jet o , a e xe m p lo d e f o r m a s au t o - su f icie n t e s (cf. Q u ' est - ce q u e Ia p h i-
l o so p h i e ?, 1 9 9 1 ).
2 1 . C f . Th e en g l i sh w o r k s o f T h o m a s H o b b e s o f M a l m e sb u r y . Jo h n Bo h n , 1 8 3 9 .
2 2 . C f . So r t a i s, G . Tr a i t é d e p h i l o so p h i e . V o l. I. P. Le t h ie l le u x , 1 9 2 1 , p . 4 9 1 - 4 9 5 .
m e n to d as m a n ife sta ç õ e s d e s e n sib ilid a d e e d e in te lig ê n c ia p o r p a rte do a n i­
m a l, c o m a re s e rv a de q u e ele é in c a p a z d e o p e ra ç õ e s p ro p ria m e n te in te le c ­
tu a is, p o r n ã o p o d e r ab strair, g en eralizar e ju lg a r. O s d ito s “ sen tim en to s sim ­
p le s” nele existentes, co m o o jú b ilo , a tristeza, o tem o r, o am or, o ódio, estão
n o n ív el das sen saçõ es, p o rtan to d a s o p e ra ç õ e s c o n sid e ra d a s “ in fe rio re s” .
A s a n a lo g ia s p o ssív e is en tre as m a n ife sta ç õ e s se n sív e is do h o m e m e as
d o an im a l ap e n a s in te n sific a m as d ific u ld a d e s d e se in s c re v e r a d im e n sã o
a fe tiv a n a razão e n o p en sam en to , d o m ín io s d a in telig ên cia e do sen tid o , p o r­
q u e ela n ão se o rg an iza co m o u m a estrutura: é m ais co n teú d o sen sív el do q u e
fo rm a o rg an izad a. E la p re c e d e , a ssim , o se n tid o lin g ü ístic o , q u e é u m a o r­
d e m de in telig ib ilid ad e e co m p reen são , p o rtan to u m m o d o ex isten cial e dia-
ló g ico em q u e re sso a sem p re, n e c e ssa ria m e n te , m ais d e u m a vo z.
D a m á sio , u m e sp e c ia lista c o n te m p o râ n e o e m p ro c e sso s n e u ro q u ím i-
cos, re su m e essa d iferen ça, a firm a n d o q u e “ as e stra té g ia s d e ra c io c ín io g i­
ra m em to m o de o b jetiv o s, o p ç õ e s d e ação , p re v isõ e s d e re su lta d o s fu tu ro s
e p la n o s p a ra a im p le m e n ta ç ã o d e o b je tiv o s e m d iv e rsa s e scalas d e te m p o ” ,
e n q u a n to q u e “ os p ro c e sso s d e e m o ç ã o e de se n tim e n to s fa z e m p a rte in te ­
g ra n te d a m a q u in a ria n e u ra l p a ra a re g u la ç ã o b io ló g ic a , c u jo c e m e é c o n sti­
tu íd o p o r c o n tro le s h o m e o stá tic o s, im p u lso s e in stin to s” 23.
A c o rp o re id a d e p e sa n a d iferen ça, tal co m o j á h a v ia a ssin a la d o E sp in o -
sa. D e le e stá p ró x im o D a m á sio , ao v e r “ a e ssê n c ia d a e m o ç ã o co m o a c o le ­
ção de m u d a n ç a s n o estad o d o c o rp o q u e são in d u z id a s n u m a in fin id ad e d e
ó rg ão s p o r m e io d as te rm in a ç õ e s n as cé lu la s n e rv o sa s so b o co n tro le d e u m
siste m a c ereb ral d e d ic a d o , o q u al re sp o n d e ao c o n te ú d o dos p e n sa m e n to s
re la tiv o s a u m a d e te rm in a d a e n tid a d e o u a c o n te c im e n to ”24. P arece ser-lh e
ca ra u m a citação d o p ra g m a tista W illia m Jam es: “ C a d a o b jeto q ue e x cita
u m in stin to e x cita ta m b é m u m a e m o ç ã o ” .
D am ásio p reo cu p a-se esp ecialm en te co m a v in cu lação dos sistem as c e ­
rebrais a co m p o rtam en to s de p lan ejam en to e decisão “p esso ais e so ciais” e
co n clu i p o r u m a p a rtilh a entre o q u e se c h a m a d e racio n alid ad e e o p ro cessa­
m en to de em oções. P artin d o d a n o ção de co rp o co m o o rg an ism o vivo c o m ­
plex o , plen o de p ro cesso s e m co n stan te m o d ificação , ele su sten ta qu e a ca p a ­

2 3 . D á m a si o , A n t ô n i o R. O e r r o d e D e sc a r t e s - Em o ç ã o , r a z ã o e o c é r e b r o h u m a n o . C o m p a n h i a
d a s Le t r a s, 2 0 0 1 , p . 1 0 9 . P a r a e st e a u t o r , o e r r o c a r t e si a n o c o n si st e p r e c i sa m e n t e n o e n u n c i a ­
d o " p e n so , l o g o e x i st o " , q u e d e v e r i a s e r c o r r i g i d o p a r a " e x i st o , e si n t o , lo g o p e n so " . N a h i st ó r i a
d o p e n sa m e n t o , e st a n ã o é u m a p r o p o si ç ã o n o v a : n o p a ss a d o , f o r a m v á r i o s o s p e n sa d o r e s a
f a l a r d o p r i m a d o d a " p a i x ã o " so b r e o j u íz o , d e s t a c a n d o - s e n o sé c u l o X IX Sc h o p e n h a u e r , o p r i ­
m e i r o a s i st e m a t i z a r f i l o so f i c a m e n t e a p r e d o m i n â n c i a d a v o n t a d e so b r e o i n t e l e c t o .
2 4 . I b i d ., p . 1 6 8 .

30
cidade de delib erar está relacio n ad a à capacidade de ordenação de im agens
internas (visuais, sonoras, olfativas, etc.). Estas constituem propriam ente o
pensam ento. O conhecim ento assum e em grande parte a form a de im agens.
P ara que se realize o raciocínio, é preciso que essas im agens estejam ativas e
^ disponíveis, o que supõe processos ligados a em oções e sentim entos.
A g o ra, a v u lg a ta co g n itiv ista tem falado de “ in telig ên cia em o cio n al” .
P o d e-se co m isso a firm a r a ex istên cia de u m a in telig ên cia b asead a não a p e­
nas n a racio n alid ad e co g n itiv a, m as tam b ém naq u ilo que se dá a co n h ecer
com o afeto s e que co n stitu iría u m elo essen cial entre o corpo e a co n sciên ­
cia. T rata -se, assim , tan to d a em o ção en q u an to p ercep ção direta dos esta­
dos co rp o rais q u an to do em o cio n alism o , ou cam po pró p rio do am or, da ra i­
va, d a aleg ria, d a tristeza, das div ersas paixões.
V E videntem ente, a inteligência não depende da consciência clara de um
“eu” p u ram ente racional, já que são m uitas as form as de com preensão que
cam inham n a obscuridade. M as a inteligência em ocional dos best-sellers
correntes é geralm ente entendida com o eficácia do estado afetivo, portanto,
com o p retex to p ara o controle gerencial das em oções apaixonadas em função
de u m a ra c io n a lid a d e in stru m e n ta l, qu e se p o d e p ô r a serv iço d a c ria tiv i­
d ad e n a p ro d u ção , m as principalm ente em função do consum o. Seu apelo di­
rige-se ao “ corpo do co nsum o”, isto é, a representações corporais afinadas
com as form as m utáveis necessárias à rápida evolução das m ercadorias, à po-
rosidade das identificações p rofissionais, às técnicas farm acológicas de saú­
de física e m ental e à cultura m idiática das sensações, em oções e paixões.
E m o ção não é exatam en te o m esm o que paixão, em bora d ela se ap ro x i­
m e o sen tid o p rim ai de p aix ão (am bos os afetos cab em no grego pathos ou
paskhein ), desig n an d o tu d o o que acontece de novo a u m sujeito. A ssim , fa­
lar d a v id a com o u m a p aix ão é falar, filo so ficam en te, d a v id a com o u m a di­
n âm ica em q ue se m o rre co n tin u am en te p ara deix ar su rgir o inesperado, ou
o novo d a ex istên cia. A p a ix ão im p lic a u m estado em o cio n al co n tin u ad o
ou d u ráv el, p o rtan to m ais p ersisten te do que o instantâneo abalo aním ico
da em oção. E la p red o m in a sobre outros recursos sensíveis, com o no exem ­
plo clássico da p aix ão p o r d inheiro p o r parte do perso n ag em H arpagão (em
O avarento ), de M olière. M as na E uropa do século X V II cham ava-se a em o­
ção de p aix ão (na verdade, este term o reco b ria o conjunto dos fenôm enos
da afetividade), à qual estaria o ho m em p assivam ente subm etido, segundo
E spinosa, u m “n eo -estó ico ” , p o r exem plo: “Frente à paixão, a razão é im ­
potente, m as o en tendim ento p erm ite libertarm o-nos dela” .
E ste é o tipo de ju lg am en to que, na A ntiguidade grega, pertenceu ao es-
toicism o (que tin h a com o ideal de m oralidade a ataraxia ou im perturbabili-

31
dade da alm a), m as que refloresceu no século X V II, quando am adurece u m
processo de quase quatro séculos de form ação de um a m entalidade quanti-
fícadora, logo um a racionalidade instrum ental, p o r exigência das tran sfo r­
m ações no m odo de produção econôm ica e das novas estratégias de d o m í­
nio, em que assum e lugar prim ordial o po d er de cálculo da ciência. A co n s­
ciência universalista da m odernidade européia - sem pre regida p ela d im en ­
são da medida im plícita no logos u n ificador grego - preside à elaboração de
um a vida social m ecânica e previsível.
Por isto, C rosby pode referir-se a um a vocação “p an to m étrica”25 do
O cidente, isto é, a um a inclinação histórica para a m edição universal das coi­
sas, dentre as quais o próprio planeta. A s evidências aparecem no com ércio,
com o controle m inucioso de receita e d espesa pela contabilidade, em subs­
tituição à m em ória do com erciante; na m úsica, com a representação gráfica
dos sons, que altera os cam inhos da com posição e do canto; na pintura, com
a precisão geom étrica da perspectiva; no tem po, com a cronom etria rígida
dos relógios; no espaço, com o ordenam ento técnico dos m apas e dos ins­
trum entos de n av eg ação . M as ig u alm en te no co rp o h u m an o que, a p a rtir
do século X V II, se dissocia do conceito de pessoa, convertendo-se num ob ­
jeto entre outros. C om o a carne se revela um em baraço p ara a racionalida­
de, banaliza-se o recurso à m etáfora m ecânica para d esignar e tecnologizar
a corporeidade.
N o transe de sua quantificação científica e tecnológica, o m undo m o ­
derno com eça a suspeitar m ais fortem ente dos afetos ou p aixões, enquanto
instâncias de confusão ou de um a desm edida socialm ente indesejável. A ci­
vilização ocidental avança no sentido do controle (ora a m edida técnica, ora
a repressão) das pulsões, sejam sexuais ou agressivas. A té na guerra a so­
ciedade civilizada im põe a seus m em bros um dom ínio rigoroso da afetivi-
dade, para que a capacidade de destruição se adapte à m ecanização. A ex ­
citação guerreira passa a ser despertada por catástrofes, doutrinas e p ro p a­
ganda, como observa Elias: “É preciso perturbações sociais e um a grande
miséria, é preciso, sobretudo, um a propaganda poderosam ente o rquestrada
para despertar no indivíduo e legitim ar de qualquer form a os instintos re­
calcados, as m anifestações pulsionais proscritas na sociedade civilizada,
tais como o prazer de m atar e de destruir”26. N a paz, a descarga das pulsões
converge para a prática do esporte ou para o desfrute do espetáculo.

2 5 . C f . Cr o sb y , A .W . Th e m e a su r e o f r ea l i t y - Q u a n t i f i ca t i o n a n d W est er n So ci et y , 1 2 5 0 - 1 6 0 0 .
Ca m b r id g e U n iv e r sit y Pr e ss, 1 9 9 7 .
2 6 . Eli a s, N o r b e r t . La ci v i l i sa t i o n d es m o e u r s. C a l m a n - Lé v y , 1 9 7 3 , p . 2 9 4 .

32
D iante de pressões civ ilizató rias d esta o rd em , m a terialm en te m ais v isí­
veis nas transform ações d a força de trab alh o e d as relaçõ es de p ro d u ção , in-
ten sificam -se a v isão racio n al-m aterialista do m u n d o e o d eslo cam en to do
p en sam ento do ser com o su b stân cia p ara o ser co m o sujeito, lastread o s p e la
do u trin a cartesian a (O discurso do método é de 1637), a p a rtir dos n o táv eis
p ro g ressos da A stro n o m ia e d a Física. C o m D escartes, o p rim eiro g rande
filósofo da m o d ern id ad e, a racio n alid ad e co n firm a -se o ficialm en te co m o
ratio , isto é, m ed id a e norm a. “M éto d o ” é p recisam en te esta m o d alid ad e de
razão, que agora leva o do m ín io do ser a p a ssa r p elo co n tro le do sujeito. E m
As paixões da alma , D escartes p reco n iza o co n tro le das “ in clin açõ es an i­
m ais” , inclusive o m edo, p o r m eio do p en sam en to , da razão e d a vontade.
N a reflexão cartesiana, o esp írito p e n sa e sente (p o r estar ligado ao c o r­
po) na m edida em que é u m “ eu ” racio n alm en te co n scien te de si m esm o.
S entir é, no lim ite, pensar. E n tro n izad a, a razão deve sem pre tran sp arecer
n a rep resentação e no sujeito. E ste ú ltim o term o deve ser en ten d id o com o
u m “su porte” ou u m “ su sten tácu lo ” , isto é, u m a id en tid ad e cap az de su sten ­
tar ou servir de fu n d am en to p ara a m u dança: ain d a que m u d em as q u alid a­
des acidentais, o sujeito perm an ece id ên tico a si m esm o. C o m D escartes, o
“ eu ”, de “ eu pen so ” , garan te a su b jetiv id ad e do sujeito, logo, a su b jetiv id a­
de da consciência, afirm ando a id en tid ad e p esso al. C o n stitu íd as em o bjeto,
as representações dispõem -se racionalm ente à consciência pensante (e “sen ­
sitiva”), sem pre id êntica a si m esm a.
N o século X V III, ain d a fo rtem ente cartesian o , en tendem -se filo so fica­
m ente as paixões (logo, a “d esm ed id a”) com o o conjunto dos fenôm enos
passivos da alm a. O un iv erso -m áq u in a de D escartes se aju staria p erfeita-
m ente, para seus discípulos ou sucessores, à m etáfo ra fisicalista e industria-
lista do m undo dos hom ens com o u m sistem a m aq uínico a vapor, onde a
alm a p o d ia existir, m as apenas com o o prin cíp io (racional) de u m m om ento
term odinâm ico, u m a quantidade de m ovim ento, d esencadeado no corpo,
pelo curso dos espíritos anim ais.
D esde então, p assam a ter realidade aceitável apenas os fenôm enos que
se reduzam à observação o bjetiva po r parte de um sujeito e à racionalidade
das leis de causa e efeito. N o pensam ento kantiano, cujo p rogram a básico é
o estudo da razão, o ideal m oral é atingir a insensibilidade ( apatheia ), em ­
bora sem o radicalism o da ataraxia estóica, um a vez que adm ite a m an u ten ­
ção dos sentim entos espirituais, com o o sentim ento do belo, a am izade, o
am or da verdade, etc.
A essa reflexão, separada da esfera dos afetos, sem pre se dirigiu, longe
dos círculos filosóficos da E uropa, a crítica proveniente de um a tradição de

33
p en sam en to h in d u , n ão sistem atizad a, m as c o m p re se n ç a e m v ário s g ran d es
m estres d a y o g a, se g u n d o a q u al o m u n d o do maya (a ilu são en g an ad o ra) é
a ativ id ad e m en tal d e slig a d a d a realid ad e e e m q ue as n o ssas p ro jeçõ es e in ­
terp retaçõ es p re d o m in a m so b re os afetos. O h in d u não c ritic a a ativ id ad e do
in telecto e m seu s asp ecto s de aten ç ão lú cid a, ex am e, d e scrim in ação e d eli­
b eração , e sim o in telectu alism o e sp ecu lativ o q u e tra n sfo rm a o h o m e m em
c ab eça se m c o ração n e m c o rp o 27. A lg o d esse esp írito reflu i p a ra o p e n sa ­
m ento ro m ân tico , e a p a rtir daí ten d e a d e sa p a re c e r a n u an ce p e jo ra tiv a atri­
b u íd a à p a ssiv id a d e d as p a ix õ es, qu e p a ssa m a ser lo u v ad as co m o a feto s in ­
d isp en sáv eis à g ra n d io sid ad e das ações.
É certo que, an tes d isso , a e stética k an tian a h a v ia p rep arad o o cam in h o
p ara se aco lh e r o afeto n a c a sa do p en sam en to : “H á, to d a v ez q u e n ós tra n s­
m itim os nossos p ensam entos, dois m odos ( modi) de com pô-los, u m dos quais
se ch am a maneira (modus aestheticus ) e o o utro, método (modus logicus ),
que se d istin g u em en tre si n o fato d e qu e o p rim eiro m o d o n ão p o ssu i n e ­
n h u m o u tro p a d rã o qu e n ã o o sentim ento de qu e h á u n id a d e n a a p re se n ta ­
ção (d o s p en sam en to s), ao p asso qu e o seg u n d o seg u e em tu d o p rin cíp io s
in d eterm in ad o s” {Crítica do juízo, p arág rafo 49).
M as aí a in d a é v isív el a h eg e m o n ia do su jeito e d a razão. O p ro b lem a da
diferença entre o in telig ív el e o sen sív el, en tre a m ed id a e a d esm ed id a, é de
fato u m a o u tra m an eira de se co lo ca r o an tiq ü íssim o p ro b lem a da d iferen ça
entre o uno e o m ú ltip lo , assim co m o o p ro b lem a, m o d ern o , d a distin ção e n ­
tre ciência e ex p eriên cia. E sta ú ltim a sem p re foi p ertu rb ad o ra do prim ad o
racionalista - b a sta lem b rar D escartes que e n x erg av a u m malin génie, u m a
espécie de esp írito trav esso , atu an d o sem p re n a esp o n tan eid ad e d a ex p e­
riência co n tra as leis d a n ec e ssid a d e e d a cau salid ad e.

Icon oc la stia s d o p e n sa m e n to

N o cam po filosófico, S ch o p en h au er foi o prim eiro a sistem atizar aquilo


que na ép o ca p ô d e ser elo g io sam en te classificad o com o u m a “ico n o clastia”
contra o p rim ad o d a cau salid ad e ló g ica e d a necessid ad e ab so lu ta em ter-

2 7 . N ã o h á n e n h u m a h o m o g e n e i d a d e d e p e n sa m e n t o d e n t r o d a t r a d i ç ã o h i n d u c a p a z d e l e ­
v a r a u m a p o siç ã o ú n ic a d e ssa o r d e m . Re f e r im o - n o s a q u i p r i n c ip a l m e n t e a u m a d e t e r m i n a d a
l in h a d e i n t e r p r e t a ç ã o d o t e xt o d a A d v a i t a V e d a n t a d o Y o g a v a si st h a , co m p o st o p r o v a v e l m e n t e
e n t r e o s sé c u lo s XI e X III , q u e sin t e t iz a o Sa m k h y a , a Y o g a , o Bu d i sm o e o s U p a n i sh a d s e se c a ­
r ac t e r iza p o r u m a a b o r d a g e m p r a g m a t i st a , d e a c e n t o m o d e r n i z a n t e e m u it o p r ó x im o d e f i g u ­
r a s e xp o n e n c i a is d a f i l o so f i a o c i d e n t a l , a e x e m p l o d e H o b b e s, Sc h o p e n h a u e r e N i e t z sc h e . Ist o
é p a r t i c u la r m e n t e v isív e l n o e n si n a m e n t o e sc r i t o e o r a l d e p e n sa d o r e s o u g u r u s c o m o K r i sh n a -
m u rt i e Sv â m i P r a j n â n p a d .

34
m os da ex istên cia hum ana. D esde antes d a prim eira v ersão de O mundo
como vontade e representação (1 8 1 9)28, ele já m an ifesta o seu espanto filo ­
sófico diante da idéia da n ecessid ad e causai, m o strando que, apenas no d o ­
m ínio das rep resen taçõ es em p íricas, a cau salidade coincide de fato co m o
princípio da razão. Este últim o não predom inaria entretanto nas noções ab s­
tratas, n as percep çõ es a priori e no “ ser en quanto q u erer” ou V ontade.
N eg an d o a necessid ad e ab so lu ta - e assim as co nstruções intelectu alis-
tas que id en tificam realid ad e e racio n alid ad e sob a égide do E sp írito a b so ­
luto (H egel) ou v êem o m u n d o com o “ sub stân cia ab so lu ta” (E spinosa) - ,
S ch o p en h au er concebe a ex istên cia h u m an a com o m erg u lh ad a n a p u ra co n ­
tingência, sem que q u alq u er in terpretação racionalista, in clusive as da tri­
u n fan te ciência, seja cap az de p reen ch er a b rech a da ex plicação causai. Sua
indignação p essim ista dian te do m al ou da dor pro ced e da con sciên cia da
ausên cia de ju stificativ as ou de causas absolutas, o que leva o ho m em à e x ­
periên cia difícil da co n tin g ên cia, isto é, de algo que aparece de u m a form a,
m as que b em p o d ería ap arecer de outra com p letam en te diferente.
D esiludido com a p o ssib ilid ad e de u m a m etafísica ex plicação últim a,
S chopenhauer concebe, entretanto, um substrato para os fenôm enos, as cau ­
sas físicas e as rep resen taçõ es do m undo, que é a fo rç a , um p rincípio d in â­
m ico m isterioso ou in ex p licad o em face d a con sciên cia que, em sua form a
global, é “ V o n tad e” ou “Q u erer” ( Wille , em alem ão). O term o, pro v en ien te
de u m vo cab u lário trad icio n al, p o d e p restar-se a confusões. N ão se trata de
m era função p rem ed itad a d a consciência, e sim de u m a força su bjacente à
univ ersalid ad e dos fen ô m en o s h um anos (conscientes e in co nscientes) e n a ­
turais. A palav ra voluntas , em latim , trad u zia tam bém a dynamis (força p ro ­
pulsora) g rega. É à lu z d e sta g e n e a lo g ia se m â n tic a qu e se d ev e e n te n d e r
a a d o ção d esse term o p o r S cho p en h au er (e inclusive a sua reto m ad a p o r
N ietzsche). A V ontade (co m m aiúscula, p ara d istin g u ir o Q u erer global da
vontade in dividualizada) sig n ifica o p rim ado do afetivo sobre o intelectual,
ou seja, o condicionam ento do espírito pelo dom ínio do que, no século X IX ,
se co n cebiam com o “p aix õ es” .
U m a m anifestação con creta d esse estado afetivo rad icalm en te oposto à
representação, a m ais p u ra expressão da V ontade, é a m úsica, p ara S ch o p e­
nhauer. E sta o ferecería a tradução m ais pro fu n d a da interioridade das co i­
sas, porque, revelando-se com o tem poralidade pu ra do vir-a-ser, não se d e i­

2 8 . Sc h o p e n h a u e r . Le m o n d e c o m o v o l o n f é e t co m m e r e p r é se n t a t i o n . P U F, 1 9 6 6 . Exist e u m a
t r a d u ç ã o b r a si l e i r a d e st a o b r a .

35
xa afetar pelo m undo do espaço. C opiando o m undo, m as sem realm ente re-
presentá-lo, a m úsica seria m anifestação radical da V ontade.
Em tom o das principais intuições de Schopenhauer se desenvolve o b á­
sico do pensam ento nietzscheano, um a das m ais instigantes elaborações fi­
losóficas do século X IX até hoje. Em am bos, em bora com inflexões dife­
rentes, tem seu prim ado a V ontade (em N ietzsche, Wille sur Macht , v o nta­
de de potência). M as beatitude (em alem ão, Seligkeit) é o term o que consti­
tui, n a ju sta opinião de R osset, o tem a central de N ietzsche: “P rovavelm en­
te, do m esm o m odo, outros term os conviríam : alegria de viver, gáudio, jú ­
bilo, prazer de existir, adesão à realidade, e ainda m uitos outros. Pouco im ­
porta a palavra29, o que aqui conta é a idéia ou a intenção de um a fidelidade
incondicional à nua e em a experiência do real, a que se resum e e se singula-
riza o pensam ento filosófico de N ietzsche”30. A m orfati , ou adesão incondi­
cional à realidade tal e qual aparece, sem angústia quanto aos fundam entos, é
o am or proclam ado por N ietzsche que, assim, se to m a sujeito consciente da
experiência transbordante da felicidade, da afirm ação beatífica do m undo.
Essa ex p eriên cia não ex clu i o ceticism o , n em o so frim en to . E m v á ­
rios dos aforism os da Gaia ciência, Crepúsculo dos ídolos e O viajante e sua
sombra , principalmente, N ietzsche em penha-se em m ostrar com o o pensa­
mento da felicidade engloba o da infelicidade e do sofrim ento. A afirm ação
alegre do mundo e a experiência da dor, para a qual deve o hom em discipli­
nar-se, cam inham juntas. E nenhum a razão fundam ental, isto é, nenhum a es­
sência nem qualquer realidade escondida no fundo das aparências, subjaz ao
testem unho afirmativo da existência perpassada pela alternância necessária
do prazer e da dor. A paixão de viver prim a sobre qualquer explicação inte­
lectual da vida ou sobre a razão enquanto força suprem a que gera a consciên­
cia individual. Daí, a conhecida crítica nietzscheana ao “hom em m eridiano”,
aquele que só vê a claridade, a transparência racionalista da consciência.
U m a vez mais, com N ietzsche, a filosofia ocidental - sob a pecha do ir-
racionalism o, é verdade —coincide em pontos fortes com aspectos cruciais
do pensam ento hindu que, m esm o reconhecendo o ilusório nas aparências,
afirma-as como a realidade do m undo fenom ênico. E sta é real para o obser­
vador, já que lhe aparece com o real. É essa realidade que o hindu busca in­
tegrar, para abolir a separação entre sujeito e objeto e atingir a plenitude ou
um modo de consciência não-dual. N ada aqui, entretanto, de fusão m ística

2 9 . V a l e le m b r a r q u e Le ib n iz u sa v a a p a la v r a G l ü ck sel i g k ei t , cu jo sig n if ic a d o o sc ila e n t r e a l e ­


g r ia e f e l ic i d a d e , p a r a d e sig n a r u m r e g im e af e t iv o se m e l h a n t e a o d escr it o p o r N ie t zsc h e .
3 0 . Ro sset , Cl é m e n t . O p . c/ t ., p . 3 5 .

36
do sujeito com o objeto, e sim de aceitação da d iv ersid ad e do real tal e qual
aparece, co m o fito de integrá-la e ch eg ar depois a u m a ex p eriên cia da u n i­
dade, que é apenas u m outro n om e p ara a p aix ão da v id a, o am or.
N a dim ensão dos afetos, com o se vê, u m a certa ín d ia e u m certo O ci­
d ente abraçam -se. Q uanto à paixão em seu4en tendim ento geral, cheg a à
m od ern a p sicologia ocidental com o u m a tendência durável, capaz de d o m i­
n a r intensam ente o espírito, em geral de form a exagerada, subordinando e
arrastando co n sig o o u tras in c lin a ç õ e s e sp iritu a is. Isto é c la ra m e n te c o r­
ro b o ra d o no in terio r da tradição p sico ló g ica francesa, onde o sentim ento é
tam bém conotado com o durável, em bora m ais atenuado, enquanto a em o ­
ção é aguda e efêm era.
E xplicitam ente d eb ruçada sobre o pen sam ento de S chopenhauer, a p si­
canálise - um a teo ria da ex p eriên cia sensível com im pacto transform ador,
po rque questiona a co n sciên cia e a identidade do sujeito - p articu lariza o
conceito de afeto, p re o c u p a n d o -se co m a su a o rig e m in fa n til e av e n ta n d o
a h ip ó te se de afetos inconscientes, tal com o a lo u cu ra aparece na análise
schopenhaueriana. N a ob ra de Freud - especialm ente em Inibição , sintoma
e angústia - term os com o Affekt (afeto), Empfindung (sensação) e Gefühl
(sentim ento) oscilam polissem icam ente, to m an d o às vezes problem áticos
o entendim ento e a tradução.
P o r outro lado, dentro da teoria geral dos p rocessos inconscientes, afeto
ou “p aix ão ” pode referir-se tanto à n oção de quantidade de energia pulsio-
nal (um a som a variável e descarregável de energia, u m quantum de tensão)
quanto à de um a qualidade subjetiva presente nos estados conscientes de
prazer ou desprazer. D istinta do que se entende com o “razão, entretanto in ­
terage com ela, com o sustenta Freud: “O E go rep resen ta o que cham am os a
razão e a reflexão, enquanto o Id, pelo contrário, é dom inado pelas paix õ es”
(cf. O ego e o id , 1923). Para o criador da psicanálise, o ego (ou o eu) é,
“acim a de tudo, corporal” , levando em conta que toda a m em ória não co n ­
centrada nas estruturas cerebrais m antém -se a v id a inteira no corpo (boca,
olhos, etc.), basicam ente em zonas to m adas erógenas pela relação da m ãe
com o filho. E sta é a m em ória afetiva ou pulsional.
Pulsão, term o difícil e indeterm inado, é um a espécie de m ito conceituai
criado po r F reud p ara representar no psiquism o, p o r m eio da idéia e do afe­
to, um estím ulo ocorrido num a parte do corpo. E m bora seja instintiva ou
corporal a sua fonte, pulsão não se confunde com instinto ou com naturali­
dade biológica, sendo de fato um artifício teórico para apontar os lim ites
entre o corpo biológico e o sim bólico. A feto é o que assinala o desvio ou a
transform ação do natural em sim bólico. E p o r isto pode m esm o a pulsão ser
p e n sad a co m o u m a p aix ão - “p aix õ es do id ” (p u lsõ es de v id a e de m o rte) n a
te rm in o lo g ia d a ú ltim a fase freu d ian a.
F risan d o q u e a “ a co n cep ção p sican alítica do afeto se d istin g u e de q u a l­
q u er o u tra ab o rd ag em dos fen ô m en o s que teo rize so b re esse term o , neu ro -
b io ló g ica, p sico ló g ica, so cio ló g ica ou filo só fica” , o fran cês G reen p ro p õ e
en ten d ê-lo co m o “u m term o c ate g o rial que ag ru p a to d o s os asp ecto s su b je­
tiv o s q u alificativ o s da v id a em o cio n al no sen tid o am p lo , co m p reen d en d o
to d as as n u an ças que a lín g u a alem ã ( Empfindung , Gefühl ) o u a lín g u a fran ­
cesa («émotion , sentim ent,passion, etc.) e n co n tram sob este tó p ic o ”31. “C a ­
te g o rial” q u e r d iz e r aí que, p a ra a p sican álise, o term o afeto será m ais “m e-
tap sico ló g ico ” do que descritiv o , isto é, m ais atin en te à c rítica in tern a do
co n h ecim en to p sican alítico do que à v iv id a div ersid ad e sen sív el dos in d iv í­
d uos e dos grupos.
É no in terio r do cam p o m etap sico ló g ico , p o rtan to , qu e se p o d e criticar
posiçõ es ex cessiv am en te rep resen tacio n ais ou u n itaristas d a fo rm a lingüís-
tica, a ex em p lo do que faz G reen co m a teo ria do seu fam o so co leg a Jac-
ques L acan. P ara G reen, a d istin ção essen cial feita p o r F reu d en tre os dois
tipos de ex citação p u lsio n al co rresp o n d en tes a rep resen tação de co isa e re ­
p resen tação d a p alav ra (e, co n seq ü en tem en te, a m o d o s d istin to s de d escar­
ga dos p ro cesso s p síq u ico s) d esap arece na teo ria lacan ian a, que parece p a s­
sar ao largo d a p lu ralid ad e dos m ateriais de trab alh o in co n scien tes e d a h e-
tero g en eid ad e p síq u ica, cen tran d o -se n a lin earid ad e da lin g u ag em . E m o u ­
tras palav ras, G reen cen su ra em L acan o esq u ecim en to do afeto e, assim ,
reco lo ca no cam p o p sican alítico a trad icio n al distin ção filo só fica entre afe­
to e intelecto.
A realid ad e é que L acan ou até m esm o seus o p o sito res co n to rn am sem ­
pre o p ro b lem a d a determ in ação co n ceituai do afeto (p referem g eralm ente
ater-se a seu s efeito s), h esita n te s d ian te de su a relação co m v e lh a s ca te g o ­
rias m etafísicas, co m o fo rça v ital e v o n tad e. M as sem p a ss a r d a m etap si-
c o lo g ia à descrição ativ a da v id a com um , a m o d ern id ad e p sican alítica dos
afetos a in d a não o ferece saíd a p a ra o v ezo d as a n tig as c o sm o v isõ es m eca-
n icistas e fisicalistas, onde rein a desp o ticam en te a razão instrum ental, co ­
m an d ad a p o r ficções históricas com o os conceitos de sujeito autônom o, apa­
relhado p o r u m a m en te ou u m a consciência.
A n eu ro p sico lo g ia co ntem porânea, p o r sua vez, trab alh a com a su posi­
ção de q ue a im ag em - não enquanto form a fixa, m as com o reinterpretação

3 1 . G r e e n , A n d r é . O d i scu r so vi vo - U m a t eo r i a p si ca n a l ít i ca d o a f e t o . Fr an c isc o A l v e s, 1 9 8 2 , p . 2 0 .

38
a n aló g ica d e u m a re a lid a d e ac io n a d a p o r sen saçõ es e em o ç õ e s - é o p rin ­
c ip al c o n teú d o do p e n sam en to , em fo rm a co n scien te ou in co n scien te. N e s­
ta seg u n d a direção , p esq u isas n eu ro co g n itiv as v êm ap o n tando p ara e v id ên ­
cias no sen tid o de q u e a p ro d u ção de im ag en s no s sonhos b aseia-se em e fe i­
tos de n e u ro tran sm isso res em d eterm in ad as fases do sono, co n tro lad as p o r
circu ito s “ in stin tiv o -m o tiv acio n ais” do cérebro. N as v iv ên cias em o cio n ais
p rim o rd iais, o p síq u ico e o co rp o ral rev elam -se em estreita conexão.
E ssa co n ex ão o cu p o u sem p re o cen tro de várias sistem atizaçõ es m eta­
físicas n ão -o cid en tais, p a ra as quais o m u n d o da n atu reza não se constitui
com o to talm en te e x terio r à in d iv id u alid ad e desig n ad a com o “ eu ” . E m o u ­
tras palav ras, o impessoal ou a objetividade não se rev elam com o exteriores
o b astan te p ara co n seg u irem red u z ir o ser do h o m em a u m “ eu ” cu ltu ral­
m en te id en tificad o no cam p o d a ex p eriên cia a u m p ro cesso de objetivação
q ue sep ara rad icalm en te su jeito de o b jeto e exclui a dim en são do sensível.
N a v erd ad e, o im p esso al, o n atu ral, o sen sív el - figuras de um cosmos rejei­
tado p elo logos da m o d ern id ad e o cid en tal - são íntim os d a in d iv idualidade
h u m an a, ex p rim in d o -se em tudo que a razão heg em ô n ica co stu m a desig n ar
com o o “ o u tro -d o -eu ” .
E fetiv am en te, o cam p o dos afetos ou a dim ensão do sensível sem pre
esteve aí, co m os artistas, os p o etas, os am antes, os visionários. O riginaria-
m ente, tam b ém co m os in v en to res da racio n alid ad e filosófica, com o Platão
e A ristó teles, p ara os q u ais o p en sam en to nasce de u m pathos, p resente nos
sen tim en to s de m ed o , curio sid ad e, p reo cu p ação ou espanto ( thaumatzein )
d iante do m undo e das coisas. A este pathos , tanto M ax Scheler quanto M ar­
tin H eidegger ch am am de disposição ou situação afetiva ( Befindlichkeit),
atrib u in d o -lh e u m caráter fu n d am en tal n o ex ercício do pen sam en to , po r ser
o elo en tre ele e a v id a. Já H en ri B e rg so n o p ta p e la intuição co m o u m a e s­
p écie d e traço v ital en tre a racio n alid ad e e o instinto que p o ssib ilita a em er­
g ên cia d a reflexão filosófica.
T an to a in tu iç ã o q u a n to o afe to c o n stitu e m m esm o a b a se de d o u tri­
n as é tic a s d ita s “ em o tiv istas” , a exem p lo d e Scheler, para quem os valores
(o ju sto , o b em , o m al, etc.) su rg em de in tu içõ es irred u tív eis à p u ra razão e
à co g n içã o discursiva. N o pen sam en to de S cheler32, tem lugar especial a
“p referên cia” com o u m tip o de ato que m ostra a graduação de um v alo r
(dentro de u m a escala diferen ciad a de valores, dos m ais altos p ara os m ais

3 2 . C f . Sc h e l e r , M a x . Ét ica - N u e v o e n sa y o d e f u n d a m e n t a c i ó n d e i p e n sa m ie n t o é t ic o . Rev i st a
d e O ccid en t e, 1 9 4 8 .

39
baixos) a partir de um a sensibilidade axiológica prim eira. O u seja, a partir
de um a percepção originária - que se entende com o u m a percepção ou um a
“escuta” ( Vernehmen em alem ão), e à qual Scheler atribui o m esm o nom e
que Pascal, “ ordre du coeur ” - pode-se acom panhar o conhecim ento da al­
tura relativa de um valor. Essa experiência é, para ele, “em ocional”, o que
obriga a distinção entre a objetividade de um a norm a m oral e a objetividade
de um fato. É um a distinção trabalhada prim ordialm ente pelo círculo dis­
cursivo da filosofia stricto-sensu, H eidegger, p o r exem plo: na sua visão, o
que as ciências nom eiam com o “ irracional” é apenas um ponto cego da teo­
ria. N a realidade, o dito irracional cam inha ju n to com a racionalidade - Pla­
tão chega m esm o a adm itir, no diálogo Fedro , o caráter benéfico de quatro
espécies de loucura, tidas com o dons divinos.
M as a questão é igualm ente pontuada pelos “pais fundadores” do m oder­
no pensam ento social. O próprio A ugusto Com te não deixa de observar em
seu Cours de philosophie positive que a verdadeira qualidade do positivism o
não era a de tom ar os hom ens m ais sistem áticos, e sim m ais “sim páticos” ou
sinergéticos. Q uanto ao positivista Émile D urkheim , que faz da racionalida­
de o m odelo teórico e prático do entendim ento social e da virtude hum ana (já
que o “social”, seu suposto objeto científico, integraria e regularia racional­
mente os indivíduos), tam bém não deixa de acentuar - particularm ente em
sua obra posterior ao início do século XX - que todo e qualquer tipo de razão
assenta-se em bases emocionais. D aí a im portância por ele atribuída às cren­
ças, seja na religião, seja nas práticas de m agia, em que as relações de causa­
lidade, mesmo quando predom inantes, contêm algo de m istério ou de inde-
terminação, capaz de resistir às medidas da razão suficiente. E convém não
esquecer que Comte acabou convertendo o seu grande sistem a de racionali­
zação do mundo, o positivism o, num a religião.
Sem dúvida, o pensam ento alem ão (D ilthey, Sim m el, W eber) é o m ais
explícito na oposição às concepções causalistas que possam desem bocar
no determ inism o social. W eber, a quem se tenta entronizar com o pai da ra­
cionalidade instrum ental m oderna por conceber a racionalização com o um
destino, põe em dúvida a im anência da racionalidade ocidental expressa no
capitalism o, apontando para o quanto de irracional existe no hom em posto
em função de sua em presa e não o inverso. D iz ele: “A racionalidade é um
conceito histórico que encerra todo um mundo de oposições. C abe-nos pes­
quisar de qual espírito nasceu esta forma concreta de pensam ento e de vida
racionais: a partir do que se desenvolveu essa idéia de profissão (B erufs-
Gedanke) e de devotam ento ao trabalho profissional (B erufsarbeit) - tão ir­
racional, já vim os, do ponto de vista eudem ônico do interesse pessoal - que

40
foi, contudo, e que perm anece u m dos elem entos característico s de n o ssa
cultura capitalista”33.
P o r outro lado, ainda que a teo lo g ia cristã ten h a partid o do racio n alis-
m o neoplatônico, a fé cristã, resp o n sáv el p ela cristian ização do O cidente,
sem pre teve m ais a v er co m os sentim entos de co m paixão, m isericó rd ia e
com os valores afetivos da caridade (quando não co m as p aix õ es gen o cid as
que levaram ao exterm ínio de p agãos) do que com a razão teológica. K ier-
kegaard, aliás, em sua recu sa d a totalização racio n alista em p reen d id a p o r
H egel, não se cansa de m o strar com o as m ediações racionais d a ética entre
sujeito e objeto são subvertidas p ela fé religiosa. D iz ele: “O cristian ism o é
espírito, o espírito é interioridade, a interioridade é subjetividade, a su b jeti­
vidade é essen cialm en te p aix ão , e no seu g rau m áx im o , u m in teresse in fi­
n ito, p esso al e apaixonado p o r sua p ró p ria felicidade etern a”34. P ara este
anti-hegeliano radical, a fé religiosa, fenôm eno particu lar e específico, su s­
pende “teleologicam ente” a dim ensão universal-ética, a exem plo de A braão
(cf. Temor e tremor ) que, dispondo-se a sacrificar Isaac com o p ro v a de fi­
delidade a D eus, transpõe a côm oda sim etria individual e social da ética e
arrisca-se ao abism o da razão e da linguagem .
N ão raro, porém , a pró p ria razão em erge do afeto. P o r exem plo, u m j o ­
vem convocado para o serviço m ilitar obrigatório pode v ir a ser u m soldado
apaixonado pelo E xército, m as n ada elide o fato de o recrutam ento ter sido
um a operação de força, independente de qualquer racionalidade p o r parte
do recruta. Se trocarm os de operação, substituindo a força pelo co n v en ci­
m ento, desponta a racionalidade do ato. É o convencim ento, a persuasão, a
sedução, ou qualquer outro nom e dado a isso, que preside à racionalidade.
O afeto vem prim eiro e induz à arquitetura racionalista. Isto não quer dizer
que se to m ar soldado seja um acerto existencial, e sim que há racionalidade
na coerência entre essa condição e os fatos afetivos (em oção, credulidade,
desejos) ao redor da decisão favorável à vida m ilitar.
É de conhecim ento corriqueiro o fato de que, a despeito de sua sofisti­
cação racionalista, m uitas das doutrinas ou das ideologias que m arcaram a
cultura ocidental atraíam inicialm ente os seus cultores por pressões m ais
em ocionais do que propriam ente intelectuais. Q uantos não trilharam o ca­
m inho do m arxism o revolucionário em virtude da com paixão para com os
oprim idos ou os desfavorecidos? E quando se concebe a filosofia com o ati­

3 3 . W e b e r , M ax. L' Ét h i q u e p r o t est a n t e et l ' e sp r ít d u ca p i t a l i sm e. Plo n , 1 9 6 4 , p . 7 .


3 4 . K ie r k e g a a r d , So r e n . Co n cl u d i n g u n sci en t i f i c p o st scr i p t . Pr in cet o n , 1 9 4 1 , p . 3 3 . C f . Ea g le t o n ,
Te r r y . A i d e o l o g i a d a e st ét i ca . Z a h a r , 1 9 9 0 , p . 1 3 6 .

41
v id ad e em an c ip ató ria no p lan o da reflex ão , não está aí im p lícita a p aix ão
p ela lib erdade?
O m esm o o co rre com as p aix õ es relig io sas que, freq ü en tem en te, a tin ­
gem o p aro x ism o fim dam entalista. U m b o m ex em p lo é o fu n d am en talism o
islâm ico em reg iõ es de e scassa trad ição escrita. O islam ism o é sab id am en te
u m a relig ião de v in cu lação visceral ao L ivro, o C orão, rev elad o ao profeta.
Já na p rim eira surata, o arcan jo G abriel, d iante d a resp o sta do p ro feta de
que é analfab eto , ord en a-lh e, to d av ia, ler “em n o m e do S en h o r” . A fé m u ­
ç u lm an a e a leitu ra são, em prin cíp io , in ex tricáv eis. E n tretan to , em reg iõ es
do m undo sem n en h u m a trad ição escrita, p o d e o co rrer m ais a “ em o ção d a
letra” do que a su a escu ta racio n al, p riv ileg ian d o -se assim ap en as u m dos
m odos possív eis de co n h ecim en to .
É que ap arecem n a h istó ria do p en sam en to m u çu lm an o três grandes
m odos de co n h ecim en to assim definidos: a) o comentário , que se v ale p rin ­
cipalm ente do recurso da an alo g ia e im p lica erudição lin g ü ística, assim o
co nhecim ento dos exeg etas trad icio n ais; b) o racionalismo , que se b aseia
na dem onstração e c) a mística aliad a ao racio n alism o , que lança m ão d a in­
tuição sensível, ou seja, p arte do assentim ento en ten d id o com o subm issão
ao saber do L ivro, m as se co m p lem en ta p o r m eios in telectu ais d iv erso s35.
O fu n dam entalism o caracteriza-se p o r u m assen tim en to irrefletido ao
L ivro, sobrepondo o sen sorialism o (a “em oção da letra”) às p ráticas da co n ­
trovérsia, que fo ram in telectu alm en te estim u lan tes p ara o pen sam en to m u ­
çulm ano clássico, o m esm o que desen v o lv eu a m atem ática, a m edicina, a
ó tica e tran sm itiu à cu ltu ra cristã a filo so fia grega. O conteúdo do L ivro im -
põe-se, assim , à consciência do crente com o algo sensorial, com o puro em o-
cionalism o dogm ático. C om os evangélicos, nas em p o brecidas zonas p eri­
féricas da A m érica L atina, reg istra-se algo sem elhante.
T odo este p ro cesso tem , n a v erd ad e, esco p o m ais am p lo do que o re li­
gioso. E speculando sobre com o chegam os a d izer que sabem os ou tem os
certeza de algum a coisa, W ittgenstein m o stra que “to d a verificação do que
se adm ite com o verdade, to d a confirm ação ou invalidação acontecem no
interior de um sistem a. [...] O sistem a não é tanto o ponto de p artid a dos ar­
gum entos quanto o seu m eio v ital”36. E le to m a com o exem plo o adulto que
diz a u m a criança já ter estado em determ inado planeta. C rédula, a criança

3 5 . C f . O u sse d ik , Fa t m a . Sa v o ir et r a i so n d a n s 1 ' o ccid en t m u su l m a n . Irr. D i o g è n e , n . 1 9 7 , j a n .-


m a r ./ 2 0 0 2 , p . 6 5 - 7 9 .
3 6 . W it t g e n st e in , L. O p . c i t ., p . 5 1 .

42
rejeita a p rin c íp io o u tro s a rg u m e n to s c o n trá rio s , m a s, d ia n te d e u m a c e r ­
ta in sistê n c ia , p o d e te rm in a r se c o n v en cen d o da im p o ssib ilid ad e d e ta l v ia ­
gem . O filósofo in d ag a e n tão se a reiteração não é e x ata m en te a m a n e ira d e
se e n sin ar u m a c rian ça a c re r o u n ão c re r em D eus, e daí, a p a rtir de q u a l­
q u er u m a das cren ças, se p ro d u z ire m razõ es a p aren tem en te p lau sív eis.
W ittg en stein não está, de m odo nenhum , atribuindo q u alq u er v alo r co g ­
nitivo à estética (p o r ele id en tificad a co m a ética). M as p a ra co m eç arm o s a
crer em alg u m a coisa, diz, é p reciso que fu n cio n e aq u ele “m eio v ita l” d os
arg u m en to s, que não co n siste de u m a p ro p o sição iso lad a, m as de u m “ in te i­
ro sistem a de p ro p o siç õ e s” , m u tu am en te ap oiadas, de tal m an e ira qu e “ a
luz se ex p an d a g rad u alm en te sobre o to d o ” . O qu e faz fix ar-se a cren ça não
é u m a q u alid a d e in trín se c a de c la re z a d a p ro p o siç ã o , m as a so lid e z do sis­
tem a. N ão se trata, p o rtan to , de saber o qu e se d iz saber, e sim de aceitar
com o solid am en te fixado aq u ilo que se sabe.
E p o r que se fixa? P o r co n fian ça n a au to rid ad e das fontes, p o r aq uilo
que se tran sm ite de u m a certa m aneira , isto é, no in terio r de u m a to talid ad e,
u m m eio , ex p erien ciad o co m o v ital, p o r ser fonte de razo ab ilid ad e e afeto,
logo, de con v en cim en to . D iz ele: “E assim que eu creio em fatos g e o g rá fi­
cos, quím icos, histó rico s, etc. E assim qu e eu ap rendo ciências. E claro,
ap ren d er ap ó ia-se n a tu ra lm e n te em c re r” 37. D iz e r qu e se sab e alg u m a c o i­
sa e q u iv ale a ter a co isa com o certa, m as a certeza está em q u em crê, logo
n u m a d im en são in d e fin id a o u o b sc u ra , e n ão n o fu n d a m e n to ra c io n a lista
e tra n sp a re n te da crença.
E sta argum entação é im p o rtan te p ara en ten d erm o s u m asp ecto da in ­
flu ência ex ercida p ela m íd ia sobre os indivíduos. Se aceitarm o s com o v ital
a ex p eriên cia da realid ad e criad a pelos d isp o sitiv o s técn ico s e m erc a d o ló ­
gicos d a com unicação, seg u e-se que os seus efeitos de co n v en cim en to têm
u m a especificidade, não necessariam en te afin ad a com a razo ab ilid ad e tra ­
dicional. V ale citar o fato de que m uita gente, em lugares diversos, recu sa-
v a-se a acreditar no desem b arq u e do h o m em na lua, tran sm itid o p ela te lev i­
são. A nte a indagação de um p esq u isad o r sobre se não p erceb ia que se tra ta ­
v a da transm issão de algo efetivam ente ocorrido n a realidade, um esp ecta­
dor respondeu: “ Sim , m as é te le v isã o !” O u seja, o te le sp e c ta d o r a c re d ita ­
v a n a telev isão , m as não forçosam ente na realidade extram idiática, su p o s­
tam ente objeto da transm issão. A form a de vida instituída p ela m ídia é um
outro m eio vital, tam bém fonte específica de razoabilidade e afeto.

3 7 . I b i d ., p . 6 3 .

43
A for ça d a e ste sia

A d im en são do afeto sem p re foi id eo lo g icam en te tratad a co m o o lado


obscuro, senão selvagem , do que se ap resen ta com o o ro sto g lo rio so e ilu ­
m inado do entendim ento, ou seja, do principal p ro cedim ento da razão. Esta,
entro n izad a p elo a scetism o ju d a ic o -c ristã o e p e lo p e n sa m e n to lib e ra l-u ti-
litário , p ro clam a-se p arceira do esp írito e alh eia ao corpo. M as sem p re se
teve razoável c o n sc iê n c ia de q ue a e fic á c ia d a razão , em d ete rm in a d o s ti­
p o s de ação h u m an a, dep en d e de tal lado o b scu ro , p o rtan to dos afetos. P or
exem plo, a eloqüência com o apelo ao lado em ocional do discurso argum en-
tativo faz H obbes dizer que “sem a poderosa eloqüência, que assegura atenção
e consenso, a razão seria p o u co eficaz” .
D e fato, d esde a A n tig u id ad e grega, sab em os gran d es o rad o res qu e a
m ais po d ero sa elo q ü ên cia é aqu ela que se vale da p aix ão , m as c o n tro lan ­
d o-a calcu lad am en te, com o no caso dos variad o s recu rso s reco b erto s p ela
retó rica clássica. N o cam p o desta técn ica p o lítica de lin g u ag em , os tropos
ou figuras de sentido sem p re c o n stitu íram ex celen tes recu rso s de m o b iliza­
ção em ocional do in terlo cu to r p ela palavra.
M as a m esm a d esco n fian ça que sem pre se teve p ara com a esfera dos
afetos acom panhou de p erto o descrédito da retórica, desencadeado p ela sua
im agem neg ativ a nas obras de Platão e A ristóteles. U m a retó rica tem com o
o bjetivos p ersu ad ir - objetivo racional se to m ad o no sentido “p a scalian o ”
de convencer m ed ian te u m arg u m en to im p ecáv el - e a g ra d a r (asp ecto a fe ­
tivo ou irracional), ou seja, em ocionar. D essa arte foram m estres na A n ti­
guidade ateniense sofistas com o G órgias, Protágoras, T rasím aco, P rodico,
H ippias e outros, que hoje se conhecem p o r interm édio da crítica p latô n ica
e aristotélica. H avia m ais de um a retórica, porém . A psicag o g ia (psychago -
gein = conduzir ou iniciar a alm a), p o r exem plo, represen tav a no século V
a.C. um a escola à m argem da p rim eira retórica oficial de T isias e C órax: em
vez de ten tar co n v en cer p ela v ero ssim ilh an ça, b u scav a a atração e m o c io ­
nal p ela palavra adequada.
Platão atacava particularm ente o ponto de vista de que, na arte de pensar,
a busca da verdade pudesse confundir-se com a busca do belo. N o entanto,
com o bem se sabe, nem ele, nem A ristóteles dispensavam o trabalho afetivo
da linguagem , em especial em sua form a psicagógica. Platão concebia a exis­
tência de dois tipos de retórica, a logograjia e a psicagogia , reservando aos
sofistas a prim eira, entendida com o técnica de convencer a qualquer custo,
para além da seriedade intelectual; a segunda, bem louvada no Fedro , é pro­
priam ente a retórica filosófica, portanto a “boa retórica”, cujo m étodo é a dia­
lética e cu ja finalidade é a b u sca d a v erd ad e p a ra b e m fo rm ar os espíritos.
C o m A ristóteles, autor de tratad o s d e retórica, esta arte é red efin id a co m o
u m a técn ica de argum entar, co m o au x ílio d e pro v as racio n ais, m as tam b ém
d a psicagogia, herdada de P latão e in teg rad a n a retó ric a aristotélica.
N a dialética platônica o u aristotélica é p erfeitam en te lícito apelar-se p a ra
as sensações, portanto p ara u m a retó rica que inclui estad o s o u d isp o siçõ es
psíquicas. À s sensações externas e internas pro d u zid as no corpo e das q uais o
indivíduo tem consciência, refere-se o v erbo grego aisthanomai, trad u zid o
pelos latinos com o sentire. A p ercepção sensível de alg o é a faculdade an ím i-
ca atinente àqueles que P latão e A ristóteles ch am aram de aistheta.
P latão hierarq u izav a, p o rém , os m o d o s d e sen sib ilid ad e. Isto fica m u ito
claro no d iálogo Ion, o n d e S ó crates se e m p en h a em d e m o n stra r a u m rap so -
do (d eclam ad o r pú b lico de p o em as h o m érico s) qu e n ão ex iste p ro p ria m e n ­
te u m a arte rapsódica, m as u m a ap tid ão sen sív el d e seg u n d a ordem . P o r
“ arte” o filósofo d esig n a o d o m ín io d e reg ras lastrea d as p o r u m sa b e r ra c io ­
nal, u m a episteme. P ara ele, a in terp retação rap só d ica, m as tam b ém a c ria ­
ção p o ética, não p assam do elo d e u m a cadeia: o p o e ta receb e a in sp iração
da M usa, tran sm ite-a ao rap so d o que, p o r su a v ez, a c o m u n ica ao p ú b lico .
O d om de interpretar, falar sobre H om ero ou q u alq u er ou tro p o e ta d e ­
correría de u m a força divina, o en tusiasm o, an álo g a à do im ã, cham ad o p o r
Sócrates de “ped ra de H eracléia” . D iz ele: “T odos os po etas épicos, com
efeito, os b ons p oetas, recitam todos esses b elo s p oem as, não p recisam en te
graças a u m a arte, m as p o r estar in sp irad o s e po ssu íd o s p o r u m deus. O utro
tanto h á que se d izer dos b o n s poetas líricos: d a m esm a m an eira que as p e s­
soas que são p resas do delírio dos co rib an tes não são donas de sua razão
quando d ançam , tam pouco os po etas líricos são d onos d e su a razão q uando
com põem esses b elo s verso s” (íon ). Seja n este diálo g o , m as tam b ém no Fe-
dro e no M énon , P latão opõe à epistem e o delírio sagrado ou a faculdade
em otiva do ser, que se inscreve n um aspecto particu lar d a aisthesis.
E verdade que o conceito de estética pertence à m odernidade européia.
M as B aum garten, que o inventou com o “ciência do m odo sensível de conhe­
cim ento de um objeto” , não restringia a idéia de arte ao que depois se passou
a entender por essa palavra (“artes do belo” , “belas artes” )38. A o criar a desig­
nação de “estética” —o conhecim ento da estesia —em vez da tam bém possí­
vel “poética filosófica” , ele pretendia m ostrar a existência de um a gnoseolo-
gia da sensação ou da percepção sensível, irredutível ao saber lógico.

3 6 . C f . Ba u m g a r t e n , A l e x a n d e r G o t t l i e b . Est h é t i q u e. L' H e r n e , 1 9 9 8 .

45
E sté tic a o u este sia são d e fato d e sig n a ç õ e s a p lic á v e is ao tra b a lh o do
se n sív e l n a so cied ad e. É u m tip o d e tra b a lh o feito d e falas, g esto s, ritm o s e
rito s, m o v id o p o r u m a ló g ic a a fe tiv a em q u e c irc u la m esta d o s o n írico s,
e m o ç õ e s e sen tim en to s. A em o çã o é o q u e p rim e iro ad v ém , co m o co n se-
q ü ê n c ia d a ilu são q u e fazem o s d e ca m in h o p a ra c h e g a r à re a lid a d e d as c o i­
sas. “A a lm a n ão c o n h ece sem fa n ta sia ” , en sin a A ristó te le s {Sobre a alma),
in d ican d o q u e in ex iste o triu n fo ab so lu to do logos so b re o mythos. M esm o
no in te rio r d a c iên c ia, o m ítico o u o ilu só rio p o d e m fa z e r-se p resen tes,
c o m o su ste n ta S erres: “ U m sa b e r sem ilu são é u m a ilu são to d a pu ra. O n d e
se p e rd e tu d o e o saber. T ra ta -se m ais ou m en o s d e u m teo rem a: não há mito
puro senão o saber puro de todo mito. E u n ão co n h eço o u tro s, tan to os m i­
tos são ch eio s de sab er e o sab er de so n h o s e de ilu sõ e s” 390 .4
É d a ilu são ou d a fan tasia , qu e re su lta m as e m o çõ e s (b em en ten d id o ,
em o çõ e s n o sen tid o d ad o p e la trad ição d e p en sa m e n to filo só fico e p sic o ló ­
gico, e não no sen tid o n eu ro b io ló g ico de m o b iliz a ç ã o n e u ro n a l arcaica), e s­
ses afeto s que, em b o ra co n stitu íd o s em v ia de acesso , im p ed em a v isão ad e ­
qu ad a d a sin g u larid ad e do real. N ã o h á lucidez no tran sb o rd am en to e m o ti­
vo, co n fo rm e atestam d esd e os p en sad o res d a b eatitu d e o rien tal até os teó ri­
cos d a m o d ern a n eu ro b io lo g ia, sem e sq u e c e r as ep isó d icas in cu rsõ es p o éti-
, . 40
cas n esta te m atica .
A e x ig ên c ia de lu cid ez n a e x p eriên cia a fetiv a é característica, co m o v e ­
rem o s, d e d eterm in ad a c o rren te d a trad ição in terp re tativ a h in d u , m as p e r­
m eia m o m entos im portantes do p en sam ento o cidental. R o usseau, p o r e x em ­
p lo 41 . P ara ele, a p ied ad e , u m a afecção so cial b ásica, é fu n d acio n al n a h u ­
m an id ad e e n a cu ltu ra, m as só na m ed id a em q ue é atrav essad a p ela lucidez
- p elas “ lu zes” , em seu m o d o de dizer. S em a im ag in ação e sem a reflex ão
qu e a acio n am , afirm a, “ a p ied ad e , em b o ra n atu ral no co ração do h om em ,
p erm an ecería in ativ a p ara sem p re”42. N o tav elm en te atual em R o u sseau - e

3 9 . Se r r e s , M i c h e l . La t r a d u c t i o n . M i n u i t , 1 9 7 4 , p . 2 5 9 .
4 0 . U m e x e m p l o é o p o e m a d a p o r t u g u e sa Ro sa A l i c e B r a n c o : " V e n h a d o u t o r e n si n a r - m e a
d ist i n g u i r / a e m o ç ã o d o se n t im e n t o . / G u i e - m e p a r a q u e a m e n t e se t o r n e c l a r a , o e sp ír it o l ú ­
c id o e a a l m a / - a h , t a l v e z p o ssa m o s d i sp e n sa r a a l m a . / En q u a n t o e sp e r o f i c a r e i e sc o n d i d a n o
a r m á r i o / e n t r e c a l o r d e u m l a d o t r e m e r e i d o o u t r o , / m a s n o c e n t r o o c o r a ç ã o e st a r á a b o a
t e m p e r a t u r a , / a u m a t é p i d a e sp e r a n ç a . Po r é m se d e m o r a r a i m o b il id a d e / m u d a r á a s e st a ­
ç õ e s d a r o u p a , a s f a se s d a l u a . / Est a a t r a c ç õ o / p o r si é u m a m a r é v i v a , u m a m a r é c e g a se n ã o
v i e r / e n si n a r - m e o q u e é a e m o ç ã o e o se n t im e n t o . / Fa r e m o s u m a r e sso n â n c i a a n t e s d o c h á ,
u m a so n d a p e r f u r a n d o / o i n so n d á v e l . V e n h a d o u t o r d iz e r - m e se sin t o f o m e , / se t e n h o se d e ,
i o u se n ã o p a sso d e u m a i lu sã o d o s se n t im e n t o s."
4 1 . C f . Ro u sse a u , Je a n - Ja c q u e s. Essa i su r / ' o r ig in e d e s l a n g u e s. G a l l i m a r d , 1 9 9 0 [ Text o e st a b e ­
l e c i d o e a p r e se n t a d o p o r Je a n St a r o b i n sk i ] .
4 2 .1 b i d ., p . 1 6 .

>
46
I
clara fo n te de in sp iração , a in d a qu e in co n fessad a, p a ra p o siçõ es n e o p rag -
m atistas co m o as do n o rte -a m e ric a n o R ic h a rd R o rty - é a sua c o n cep ção de
c o m o ção p ie d o sa c o m o u m a “p o ten c ia lid a d e ad o rm e c id a ” à esp era de se r
d esp ertad a p e la id en tificação so cial, re fle x iv a e e m p ática co m o O utro: “ Só
so frem o s n a m e d id a em q u e ju lg a m o s q u e ele sofre; n ão é em nós, é n ele
que so fre m o s” .
N o tá v e l ain d a é qu e em R o u sse a u se faz p resen te a in tu ição d e que, co m
o d e se n v o lv im en to d a reflex ão e d a cu ltu ra, se esv an ece a fo rça im ag in ativ a
do afeto , p erd en d o -se a d im en são do O u tro co m o d iferen ça sen sív el e m oti-
vad o ra. D e fato, n a c o n tem p o ran eid ad e, q u an d o o m u n d o se faz im ag em
p o r efeito d a razão tecn o ló g ica, a red e sc o b e rta p ú b lic a (e p u b licitária) do
afeto faz-se sob a ég id e d a e m o ção com o u m aspecto afetiv o das operaçõ es
m en tais, assim com o o p en sam en to é o seu asp ecto in telectu al. Se p o r um
lado afirm a -se a m o rte d a R azão u n a e u n iv ersal, que é a m etafísica do p e n ­
sam ento fo rte e ú n ico en tro n izad a p elo Ilu m in ism o , p o r outro p ro clam a-se
a v ida das m últiplas razões particulares, e p ode-se m esm o então instituir epis-
tem icam en te u m a razão ou u m a in telig ên cia para a em oção.

D e sc o n fia n ç a s cr ític a s

H á m arg em , com o se p erceb e, p ara desco n fiarm o s criticam en te das


em oções p u ras e sim ples. P o r isto P. M alap ert su stenta h av er lu g ar “p ara ter
em co n ta a distin ção entre as emoções-choque e as emoções-sentimentos.
A ssim com o n a esp eran ça, no ab atim en to , n a tristeza e na aleg ria não se
m o stram os elem en to s característico s d a em oção no sentido A ”43, isto é no
sentido do m o v im en to b ru sco ou vio len to .
É u m a distin ção an álo g a à que enco n tram o s, p o r ex em plo, u m a d eter­
m in ad a trad ição do p en sam en to h indu, a do Advaita Vedanta (A d v aita sig ­
n ifica “não d u alid ad e”) tran sm itid o p o r S vâm i P rajn ân p ad , p ara q uem to d a
em oção, com o to d a e q u alq u er o u tra en tidade, n asce da recusa, d a n ão-acei-
tação de u m a situação em que você se enco n tra no m om ento presente. Se a
situação p u d er ser aceita, d esaparece logo a em oção.
N este particular, não se acha o hindu distante de K ant, para quem a em o­
ção ( Affekt ) - sem pre cega e p recipitada, à m aneira de um acesso patológico
ou um a em briaguez - é um a rep resentação sensível incapaz de b uscar sua
própria finalidade. K ant abstém -se de fazer, com o o hindu, um a distinção

4 3 . C f . La la r t d e , A n d r é . O p . c i t ., p . 2 9 8 .

47
radical entre em oção e sentim ento ( Gefühl), um a vez que apresenta o esta­
do em ocional com o um grau de sentim ento, ou seja, de experiência su b jeti­
va do prazer ou do desprazer, apenas caracterizado p o r um a excitação sem
sabedoria, capaz de levar o espírito a perd er o dom ínio de si.
C om o discurso da neu ro lo g ia cognitiva, D am ásio tam bém enceta u m a
diferenciação entre sentim ento e em oção44. Para ele, em oção im plica a m obi­
lização de áreas cerebrais arcaicas (em oções prim árias) e m odernas (em o­
ções secundárias), de m odo a produzir alterações (total ou parcialm ente auto­
m áticas) do estado do corpo, dentro do quadro de regulação biológica do or­
ganismo. O sentim ento, por outro lado, seria a percepção dessas alterações:
“O processo de acom panham ento contínuo, essa experiência do que o corpo
está fazendo enquanto pensam entos sobre conteúdos específicos continuam
a desenrolar-se, é a essência daquilo que cham o de um sentim ento” .
R essalvando-se as pesquisas de neurocientistas com o D am ásio e outros
especialistas de renom e internacional, com o Eric K andel, P rêm io N obel de
m edicina de 2000, e Joseph E. L eD oux - de caráter neurocognitivo e volta­
das prim ordialm ente p ara o p roblem a da influência do padrão de conexões
cerebrais sobre a m em ória, a personalidade, a saúde e a própria origem da
c o n sc iê n c ia -, há nas abordagens de cunho m ais filosófico o esboço de um a
concepção crítica da em oção, análoga à dos estóicos, segundo os quais “to ­
das as em oções n ascem do ju lg a m e n to e d a o p in iã o ” . A em o ção não e x ­
p ressa, assim , a independência de um afeto, p orque surge sem pre acom pa­
nhada de pensam ento e representação. O u seja, há um pensam ento p o r trás
dela, logo, um a separação entre sujeito e objeto, entre o um e o outro, e o afe­
to surge da fantasia ou da im agem idealizada que a subjetividade (o m ental)
form a de algo colocado no m undo externo. A em oção é o afeto pelo m undo
próprio, que pertence p or sua vez ao ego e à idéia.
M as por que aparece a em oção e não sim plesm ente o pensam ento? Por­
que, diz a reflexão hindu, você não vê a coisa como ela é realmente, e então se
produz reativam ente um a ilusão - portanto, um a incom preensão, um a fal­
sa idéia - , que encobre o julgam ento intelectual. Q uando assistim os a um
pôr-de-sol com toda a amplitude das cores do céu, emocionamo-nos, porque
recusamos a aparição do real tal como ele é (o sol em declínio, o sol com suas
cores), projetando sobre ele idéias de beleza, que pertencem na verdade ao
quadro de nossas representações culturais prévias. Mas se as cores são substi­
tuídas por nuvens carregadas de chuva, nos entristecemos, porque o céu não

4 4 . C f . D a m á si o , A n t ô n io . O p . c i t .f p a ssi m .

48
m ais aparece com o d esejaríam os que ele fosse. N a realid ad e, co m o b e m o b ­
serva o poeta, “u m dia de ch u v a é tão belo com o u m d ia de sol. / A m b o s ex is­
tem ; cad a u m com o é” (F ernando P esso a e A lb erto C aeiro).
A em oção resu lta do d esejo , co m o já m o stra ra m H o b b es e D escartes,
ao assin alarem que ela (p aix ão , em o çã o ), p o r im p lic a r u m a co n cep ção do
p assad o e referir-se a alg o a in d a fu tu ro , é a tin en te ao desejo . P o d e m esm o
ser a lin g u a g e m p rio ritá ria do d esejo . C a rre g a , assim , tan to a fo rç a c a p a z
de d o m in a r o intelecto q u an to a a m b ig ü id ad e q u e d eco rre do fato de se r re ­
je iç ã o d e u m a sp e c to e a trib u iç ã o d e p riv ilé g io a o u tro . A e m o ç ã o p o s iti­
v a (c o rre sp o n d e ao desejo de alg u m a co isa) te m c o m o co n trap arte u m a n e ­
g ativ a (eu não tenho essa co isa, o qu e m e cau sa m ág o a).
O m edo é a em o ção m ais co m u m . H o b b es a p õ e n o cen tro de su a teo ria
d a so ciab ilid ad e e d a p o lítica, co m o aq u ilo que é “te rriv e lm en te o rig in á rio ”
em to d o s nós, lu g ar de fu n d ação do d ireito e d a m oral. E o m ed o é b a sic a ­
m en te m edo d a m o rte, em o ção de que som os su jeito s e, ao m esm o tem p o ,
assujeitados. Isto é o que sig n ifica serm o s “m o rtais” . A d o tan d o o p o n to de
v ista de E lias C an etti n o sen tid o de que a cen tralid ad e do m ed o faz a g ra n ­
deza e, ao m esm o tem p o , o c aráter in su sten táv el do p en sam en to de H o b b es,
E sp o sito afirm a: “E ste algo q ue sen tim o s com o n o sso - e que ju sta m e n te
p o r isto tem em o s ao ex trem o - é ex atam en te o m edo. E de n o sso m edo que
tem os m edo, da p o ssib ilid ad e de que o m edo seja nosso , que seja propria­
mente nós a te r m ed o ”45.
P rin cip alm en te em obras com o D e eive e De homine , H obbes co n ceb e o
m edo da m orte com o o co ntrário do que F reu d viría a ch am ar de pu lsão de
vida, ou seja, o conatus sesepraeservandi , fo rça ou instinto de p reserv ação
que, exatam ente p o r existir, deix a e n trev er a em oção que atravessa rad ical­
m ente os seres hum anos: o m edo de não m ais viver. O caráter fu ndacional
desse afeto aparece ainda m ais claram ente para H obbes na p olítica, em cuja
própria origem se constitui. T em , p o rtanto, u m a função não apenas d estru ­
tiva, m as igualm ente co n strutiva (o que faria a d iferença entre m edo e te r­
ror), na m edida em que p ropicia a agregação com unitária, cria as dem andas
de proteção ao E stado e to m a n ecessários o direito, a m oral, assim com o
toda e qualquer instituição voltada para a regulação do tem or m útuo que os
hom ens têm uns dos outros.
Para a tradição hindu, essa é igualm ente a em oção crucial, tanto que nos
U panishads —um dos principais conjuntos de textos da m etafísica hindu —,

4 5 . Esp o sit o , Ro b e r t o . C o m m u n i t a s - O r i g i n e e t d est i n d e Ia co m m u n a u t é . PU F, 2 0 0 0 , p . 3 6 .

49
brahman (Si suprem o , alm a u n iv ersal ou, sim p lesm en te, a d iv in d ad e que se
faz p resen te em c ad a atm an , ou alm a in d iv id u al) é d efin id o com o abhayam :
sem m edo. S er livre é lib erar-se d a em o ção do m ed o , que p o d e ap arecer sob
fo rm as div ersas, co m o o ciúm e, a raiv a, a a rro g ân cia, etc. D a m esm a form a
que H ob b es, o h in d u su sten ta que “ o m ed o é a m o rte ” (bhayam vai mrtyu ),
ou seja, u m a em o ção d efin id a p o r atração n eg ativ a, j á que o m edo de m o r­
rer é u m a atração p elo inev itáv el, p o r aq uilo a que não se escapa.
N ão h á co m o d eix ar de reg istrar a sem elh an ça entre as concep çõ es da
trad ição h in d u , d a d o u trin a de H o b b es e as elab o raçõ es de F reu d em to m o
d a teo ria do afeto, no que diz resp eito p articu larm en te à angústia. P ara o in ­
v en to r d a p sican álise, a an g ú stia - inv estim en to do ego p o r sinais de des-
p razer frente a u m a am eaça ou a u m perig o im p alp áv el - assenta-se ex clu si­
v am en te no ego, em fu nção de u m a cau sa ex tern a ou interna. O que em
H o b b es é m edo o rig in ário , deco rren te de u m a situação de p erigo im em o ri­
al, receb e em F reu d o n om e de angústia, com o evocação egóica de um a
am eaça prim itiva.
Seja qual for a inspiração teórica, vale in sistir no aspecto negativo d es­
sa em oção fundam ental. O m edo é a reação (um a recusa, portanto) à atra­
ção p o sitiv a que têm os hom ens p ela m orte. É, assim , a form a n egativa de
u m desejo, o riundo do co n h ecim en to que se tem do caráter inevitável da
m orte. A o recu sar-se o desejo, a em oção do m edo aparece.
N ão se v iv e, todavia, sem em oções. P en san d o -se em term os neurobio-
lógicos, à m an eira de D am ásio, elas são fundam entais p ara a “m áquina ho-
m eo stática” do corpo, que assegura a estabilidade do organism o em face
das m u d an ças am bientais. D o po n to de vista psicológico, sejam positivas
ou negativas, elas estão aí, constituem a v id a e têm de se expressar. Se acei­
tarm os o m odo de p en sar hindu, reco nhecem os esta evidência, m as tam bém
que c ada em oção p roduz u m a reação em ocional em cadeia, que nos im pede
de sentir plenam ente, a m enos que as p ercepções da paisagem corporal de­
nom inadas “ sentim entos” intervenham p ara resolver os p roblem as não-pa-
dronizados, fora do alcance das em oções.
O n azism o, o fascism o e o stalinism o foram grandes m estres no uso das
estratégias em ocionais, n a trilha dos grandes im périos do passado. M as di­
ferentem ente d estes com suas aristo cratizaçõ es dos ícones, foram estraté­
gias tecnológicas de dem ocratização das em oções, que incitavam à substi­
tuição da am bivalência da experiência viva p o r ideais pré-fabricados e este-
tizados - portanto convertidos a sensações e em oções - em bandeiras, des­
files, u n ifo rm es, fo g u eiras, sim p lificaçõ es artísticas, literárias e intelec-

50
tu a is, etc. A em o çã o p e lo d e v e r-se r im p lica q u ase sem p re o d esp rezo p elo
qu e o h o m e m re a lm e n te é, co m suas c o n trad içõ es e su a div ersid ad e.
São estra té g ia s se m elh an tes ao m an ejo in d u strialista das sen saçõ es e
e m o çõ e s h o je rea liz a d o p e la m íd ia de esp etácu lo o u p e la c u ltu ra d e m assa
e m geral. N o s g ran d es show s de m ú sica p o p u lar, n o s fo lh etin s telev isiv o s,
n a lite ra tu ra de g ran d e co n su m o , no s p ro g ra m a s h u m o rístico s de tevê, a
e m o çã o fácil é o p ro d u to c o m qu e se a d u lam os p ú b lico s, lev an d o -o s a riso s
e lág rim as fáceis. A e m o çã o está aí a serv iço d a p ro d u ç ã o d e u m n o v o tipo
d e id e n tid a d e c o letiv a e d e c o n tro le so cial, trav estid o n a felicid ad e p ré -fa ­
b ric a d a c o n tra a q u al a d v erte o p o eta: “A i d e ti e d e to d o s q u e lev am a v id a /
A q u erer in v en tar a m áq u in a de fazer felicidade!” (Fernando P essoa e A lb er­
to C aeiro ).
M as é p o ssív e l ta m b é m in terp re tar o ethos ou a atm o sfera afetiv a da m í­
d ia, a ex em p lo d e V attim o , co m o u m a “ in ten sificação de si m esm a” , com
vistas à fo rm ação de u m sen tim en to forte de co m u n id ad e. P o r aí se vê que a
p a la v ra e o co n ceito de em o çã o o ferecem p ro b lem as. É preciso , p o is, redis-
cu ti-lo s, co n tex tu alizan d o -o s, do m esm o m o d o com o se red iscu te a p alav ra
am o r, q u an d o se tra ta de fazer a d istin ção entre desejo am oroso e am o r g e­
n érico p e lo s o utros.

L u c id e z e sa b e d o r ia p r á tic a

N a v erd ad e, o v o cab u lá rio , ou a term in o lo g ia em sua am pliação e esp e­


cialização , é sem p re o territó rio on d e se d esen ro lam as lutas tanto p elo c o n ­
tro le q u an to p elo ap ro fu n d am en to das rep resen taçõ es. É po ssív el reinter-
p retar o p lan o to sco e im ed iato da em oção em fu nção do ap ro fu n d am en to
d a sab ed o ria p rática (isto m esm o que, em A ristó teles, se d e n o m in a phrone-
sis ), c o m v istas ao b em a g ir ou a u m a atitu d e reco n h ecid am en te epistêm ica.
A ssim , no in terio r d a p ró p ria h eg em o n ia m etafísica da razão , po d e-se in d a­
g ar sobre a “ra zo ab ilid ad e” das p aix õ es, q uan d o se leva em co nta que existe
u m a o sm o se entre a episteme e o pathos e que os afetos p o d em o rganizar-se
a p artir de u m cânone ou de u m pad rão até m esm o racio n alm en te forçado.
N esse aspecto, Parret cham a a atenção para a função “quase ju d icativ a”
da paixão: “A s razões da paixão são valores e a paixão sem pre regulam enta
os “ estados de coisas” , que são objeto de valoração. N o que concerne à os­
m ose da episteme e do pathos , H um e atribui às crenças o poder de com petir
com as im pressões, conferindo-lhes um a influência análoga sobre as paixões.
B asta que as crenças se igualem em força e vivacidade às im pressões para
que tenham esse m esm o poder: a sim ples concepção vigorosa e intensa de

51
um a idéia já é suficiente. M as o inverso tam bém é verdadeiro. H um e escreve
que “se a crença é quase absolutam ente necessária para despertar nossas p ai­
xões, tam bém as paixões, p o r sua vez, favorecem grandem ente as crenças”46.
H um e está-se referindo à relação entre crença e paixão. P ara incluir na
relação o juízo seria preciso, na opinião de Parret, priorizar a valoração com o
um ponto de p artid a p ara a co m p reensão da razo ab ilid ad e do pathos. D es­
ta m aneira, as paixões são tam bém avaliativas, ou seja, im plicam um juízo,
porém anterior à reflexão. D iz ele: “A ‘luz’ em que o sujeito de um a paixão
‘v ê ’ o objeto inclui um a avaliação que dá ao sujeito a possibilidade de utilizar
um a escala de m edidas som ente no caso m ais ‘objetivo’. M as a avaliação
perm anece m ais subjetiva do que objetiva, o que está ligado ao caráter de
apetite que é inerente à paixão e ao fato de que a em oção é dirigida p o r um
desejo , o que obscurece im ediatam ente qualquer cognição p u ra”47.
Essa “lucidez” e essa “visão” estão no cerne do pensam ento hindu, quan­
do se trata de ultrapassar o obscurecim ento inerente às ilusões do maya ou
da consciência agarrada aos dualism os das aparências im ediatas. Para o hin­
du, a em oção atravessada pela lucidez, isto é, pela experiência de se v er
para além da dualidade, dá lugar ao sentimento. Este term o, aliás, m esm o
no discurso da neuropsicologia (D am ásio), é o que se ju lg a adequado p ara
designar a percepção da m udança corporal pela emoção.
Tudo isso im plica dizer que é p o ssív el estab ilizar o cam po da afetivi-
dade, tom ando lúcidas as em oções, transform ando-as em sentim entos. D e
form a m ais simples: a em oção caracteriza-se p o r um a expressão com pulsi­
va e excessiva, p or um apego ao que é p o r dem ais particular, enquanto o
sentim ento define-se com o afecção deliberada, consciente, refletida, lúcida
e serena. O sentim ento é a em oção lúcida. N o em penho individual ou cole­
tivo e pela serenidade, é possível um a crítica do transbordam ento em otivo
pela lucidez que conduz ao sentim ento. Pelo sentim ento passam os da d is­
sociação entre sujeito e objeto a um a unidade, m esm o que provisória, entre
os termos disjuntos, entre o um e o “a /íe r” . A densidade e a verticalidade do
sentim ento contrapõem -se, assim , ao horizontalism o e à precaried ad e afe­
tiva da emoção.
M as como as em oções de todo tipo existem , é m ais do que im perativo,
como já se frisou, que se exprim am . Elas são os sinais de que o intelecto ca­
minha no sentido das falsas crenças e dos enganos. Q uanto m ais em oções

4 6 . Par r e t , H e r m a n . A est ét i ca d a co m u n i ca çã o - A l ém d a p r a g m á t i ca . U n ic a m p , 1 9 9 7 , p . 1 2 1 .
4 7 . Ib i d ., p . 1 2 3 .

52
sentirm os, m ais desperto estará o sentido d a co n sciên cia id en tificad a co m a
corporeidade. B loqueá-las, im pedi-las de se exprim ir, seria fech ar em si
m esm o a porta de passagem para a revelação de u m a d im ensão do real. P o r
conseguinte se aceita a em oção, perm ite-se a sua expressão, en q u an to fen ô ­
m eno inscrito na realidade, m as se b usca ultrap assá-la p ela “sim p atia” , pelo
que se resolve com o sentim ento am oroso do m undo, logo p o r aceitação ir­
restrita d a diferença. A ceitação irrestrita significa sem ju lg am en to in telec­
tual, sem a m ediação de um term o com parativo.
Isto não quer dizer que a razão esteja totalm ente ausente do processo.
E la apenas não se c o lo ca em p rim e iro p la n o , em q u a lq u e r do s v á rio s s e n ­
tid o s que se lhe p o ssa d ar (desde a co n caten ação ló g ica dos arg u m en to s
esp ecu lativ o s até a racionalidade que preside ao entendim ento no senso co ­
mum ). Coloca-se primeiramente, sim, o afeto ou dinâm ica de circulação im e­
diata das potências do corpo, que se pode associar a um a “razo ab ilid ad e”
das ações. A ssim , nos term os m itológicos de As bacantes, de E urípides, o
poder racionalista e ateu - no lim ite, delirante - de Penteu term ina dando
lugar à liberdade da p aixão de D ioniso.
Q ue im p o rtân cia te m to d a essa p ro b le m á tic a do sen sív el ou do s a fe ­
tos p a ra o pensam ento contem porâneo? E m prim eiro lugar, no cam po es­
trito da filosofia, levar em consideração a dim ensão sensível im plica alg u ­
m a proxim idade com estratégias não-representacionais para se descrever o
pensam ento e a linguagem . São estratégias caras, p o r exem plo, aos p en sa­
dores pragm atistas, em penhados em elim inar a distinção entre conhecer as
coisas e fazer uso delas. E x plica R orty: “P artindo da afirm ação de B acon
de que todo conhecim ento é poder, os pragm atistas prosseguem afirm ando
que poder é tudo o que h á no conhecim ento - que afirm ar conhecer X é afir­
m ar ser capaz de utilizar X, ou ser capaz de colocar X em relação com alg u ­
m a outra coisa. Para dar plausibilidade a essa afirm ação, entretanto, eles
têm que se contrapor à idéia de que conhecer X é um a questão de estar rela­
cionado a algo que é intrínseco a X, enquanto que utilizar X é um a questão
de estabelecer um a relação extrínseca , acidental, com X ”48.
A bolir a distinção entre o intrínseco e o extrínseco, isto é, entre um n ú ­
cleo duro (suposta essência) de X e a sua periferia (acidentes, relações, apa­
rências) é o program a teórico da posição que R orty identifica com o anties-
sencialismo. Para seus propugnadores, tudo o que há a ser conhecido de
qualquer objeto é tão-só o enunciado nas sentenças que o descrevem , expli-

4 8 . Ro rt y, Ric h ar d . P r a g m a t i s m o - A fi l o so f i a d a cr i a çã o e d a m u d a n ça . U FM G , 2 0 0 0 , p . 6 0 - 6 1 .
citando a sua relação - p o r vezes, u m a rede in finita de relaçõ es - com o u ­
tros objetos. C om o frisa R orty, “insistir que h á u m a d iferen ça entre um a
ordo essendi n ão -relacional e u m a ordo cognoscendi relacio n ai é, inevita­
velm ente, recriar a coisa-em -si kan tian a”49. Inexiste, assim , no trabalho do
conhecim ento, qu alq u er prim ado da verdade (a b u sca de u m a in trín seca ra ­
zão últim a das coisas, da coisa-em -si) sobre a utilidade.
M esm o conscientes de serem m uitas as coisas que os hom ens são incapa­
zes de controlar, os antiessencialistas rejeitam a hipótese de u m m istério do
m undo, de poderes capazes de transcender a ordem hum ana. É a concepção
de um m undo desencantado no que diz respeito ao ultra-hum ano, m as recep­
tivo da idéia do encantam ento diante das grandes realizações da im aginação
hum ana. O que não se conhece e, portanto, não se controla, estaria apenas
aguardando a sua adequada instrum entação técnica, ou seja, aquilo que, dan­
<C
do m argem à utilização, possibilitará ao m esm o tem po o seu conhecim ento.
Para a posição neopragm atista no rte-am ericana - avatar de pensadores
com o John D ew ey, H enry Jam es e C harles Sanders Peirce - , interessa a in­
quirição sobre os afetos, na m edida em que sirvam com o m aneiras de se
desfazer o dualism o entre co n h ecer e u tilizar. E x clu i-se q u alq u er p o ssib i­
lidade de u m “ co n h ecim en to p o r fa m ilia rid a d e ” (te rm in o lo g ia e m p re g a ­
da p o r B ertran d R ussell), isto é, não-descritivo, alheio à atitude sentenciai,
m as se adm ite im plicitam ente que o não-representacional e o não-ocular (por
exem plo, u m afeto), geralm ente associados apenas à dim ensão do fazer, in­
tegram tam bém a esfera do conhecer. N ão há q ualquer razão inefável ou
qualquer essencialidade hum ana (a exem plo da razão cultuada pelo Ilum i-
nism o) p or trás da sensibilidade, e sim contingências, que presid em à iden­
tificação dos indivíduos com outros dentro de circunstâncias históricas p re­
cisas, estim ulando-lhes a potência de agir pela m obilização afetiva.
Esta não é decididam ente a posição de Jürgen H aberm as, um dos m ais
influentes pensadores contem porâneos, que se vale da pragm ática da lin­
guagem para lastrear a sua teoria do agir com unicacional. M esm o distante
dos essencialism os m entalistas e naturalistas, ele ainda se atém a um a es­
sência, a razão ilum inista, supostam ente capaz de sustentar o conhecim ento
da sociedade e do hom em . M ais ainda: dela podería advir a realização, sem ­
pre obstaculizada, de ideais constantes do p rojeto civ ilizató rio da m o d er­
nidade, com o os de igualdade e liberdade. Para isso, H aberm as ataca o p a­
radigm a cartesiano do sujeito da consciência e vai assentar a racionalidade

4 9 . Ib i d ., p. 67.

54
num a lógica da in tersubjetividade, p reconizando u m a ética do discurso,
que d ev eria ser capaz de resp o n d er à perg u n ta sobre as fontes d a norm ativi-
dade e estabelecer as condições p ara a com preensão m útua.
A inda que inspirado pelo im perativo categórico de K an t - no tocante ao
u niversalism o das m áxim as de ação H aberm as dele se d istingue quando
se trata da fundam entação das n orm as m orais: não m ais a so lipsista decisão
a priori sobre a legitim idade das n orm as, e sim a sua ju stificação pragm áti-
co-linguística, a posteriori , p o r m eio d a a rg u m e n ta ç ã o no esp aço p ú b li­
co. E ssa racio n a lid a d e substancial im anente à lin guagem e à com unicação,
m esm o dependente de um a p erspectiva in tersubjetivista (em que o sujeito
não está em prim eiro plano, m as é preservado) p rescinde, na teoria haber-
m asiana, de qualquer apelo à dim ensão sensível. A sua visão de solidarie­
dade - que ju n to com o p o d er e o m ercado constitui u m dos m ecanism os de
in teg ração das so c ie d a d e s c o m p lex as d a co n te m p o ra n e id a d e - aco m o d a
n o rm as, v a lo re s e co m u n ic a ç ã o , m as n ão se d etém so b re n e n h u m a in ti­
m id ad e in tersu b jetiv a de natureza afetiva.

N ova s ra zõ es da p rod u ç ã o

A pesar de toda a influência filosófica do “kantism o am pliado” de H aber­


mas, o pensam ento classificado com o pragm atista ou neopragm atista ganha
forte visibilidade neste m om ento de transição histórica, de B aixa M oderni­
dade ou de m utação civilizatória, em que, “para produzir, precisa-se cada vez
m enos de razão e sem pre mais de afeto: não apenas as teorias e as práticas tec­
nológicas nos confirm am isso positivam ente; negativam ente tam bém , nos
dizem as doutrinas psicológicas e as práticas psiquiátricas”50.
N a realidade, é bem m ais am plo do que o neopragm atism o am ericano o
escopo do pensam ento que vincula o corpo e o afeto às form as em ergentes
de produção e de poder. Já na original análise fenom enológica que, desde
inícios do século X X , o so ció lo g o alem ão G eo rg S im m el faz da so c ie d a ­
de c ap italista, aparece com o atitude teórica central a atenção dispensada à
alm a e aos sentidos. Por sua vez, a m aior parte da obra dos franceses G illes
D eleuze e Félix G uattari procura m ostrar com o a v elha sociedade discipli­
nar (dissecada p or M ichel Foucault) dá hoje lugar à “ sociedade de contro­
le” , onde a tram a do poder ocupa o psiquism o e o corpo dos indivíduos, por
m eio do desejo.

5 0 . N e g r i, To n i . Exíl i o se g u i d o d e v a l o r e a f e t o . Il u m i n u r a s, 2 0 0 1 , p . 1 1 . V e r t a m b é m Im p é r i o ,
d e N e g r i & M ic h a e l H a r d t . Re co r d , 2 0 0 0 .

55
E sse “co n tro le” no lu g ar da d iscip lin a, co rresp o n d en te ao d e slo c a m e n ­
to da ênfase pro d u tiv a n a n ecessid ad e p a ra a ên fase no desejo , im p lica um
novo m odelo de reg u lação social e, p o rtan to , u m n o v o reg im e d e v isib ilid a ­
de p ública ou de co m u n icação , cu ja g ên ese rem o n ta à o rg an ização fo rd ista
do trabalho, no início do século X X . É a ép o ca em q ue o p ro d u to r c o m eç a a
analisar intensivam ente o co m p o rtam en to do c o n su m id o r e em que, co m o
narra M attelart, “o capitão de in d ú stria” co n v erte-se em “cap itão de co n s­
ciência” . A firm a ele: “E sta tran sfo rm ação co n trib u iu p ara d eslo car o cen tro
de gravidade do controle social do trab alh o p a ra o en treten im en to , do e sfo r­
ço para o prazer, do fato p ara o onírico, do racio n al p ara o d esejo ” 51.
E stabelece-se u m a certa equ iv alên cia en tre a n oção de acesso aos b ens
de consum o p o r m eio d o m ercad o e a de d em o cracia e ideal dem o crático . O
que se tem cham ado de “in d ú stria cu ltu ral” ou “cu ltu ra de m a ssa ” é de fato
um espaço, de natu reza estética e m oral, destin ad o a su sten tar u m a “ fo rm a
de v ida” (um bios , n a term in o lo g ia aristo télica), com suas o rg an izaçõ es e
suas práticas, necessária à circulação dos afetos req u erid a pelo cap italism o
de consum o, pós-fordista. M as esse espaço tran sfo rm a-se co m tal rap id ez
que já se faz im perativa a distinção entre a estandardização , característica
da produção de m assa afim ao capitalism o industrial, e a codificação , que
não visa, com o a prim eira, à circulação m ercan til do m aio r nú m ero p o ssív el
de produtos idênticos, e sim a “jo g a r co m com b in açõ es e in tro d u zir v aria­
ções com o objetivo de o b ter p ro dutos relativ am en te diferentes, em b o ra do
m esm o estilo”52. E stá aí im plicada u m a m utação capitalista, u m a esp écie de
“nova econom ia” , em que a dim ensão im aterial da m ercad o ria prev alece
sobre a sua m aterialidade, to m an d o o v alo r social ou estético m aio r do que
o valor de uso e o v alo r de troca. V alores sim bólicos e afetos gan h am o p ri­
m eiro plano tanto na econom ia quanto na cultura codificada.
N essa passag em da p ro d u ção fo rd ista ao p ó s-fo rd ism o , q u an d o o im ­
pério se define com o form a p o lítica do m ercad o m u n d ial, em erg e, se g u n ­
do N egri, um a nova experiência de exploração do hom em , em que o sujeito
“não é m ais um corpo que p ode ser posto a trabalhar, não é m ais um a alm a
que pode viver independentem ente de valores e paixões. D essa vez é a alm a
que é posta a trabalhar, e o corpo, a m áquina são seu suporte” . A produção é
principalm ente “produção de si” (aproveitam ento das com petências d esen ­
volvidas na própria vida cotidiana dos indivíduos), isto é, de subjetividade,
agora diretam ente produtora de capital hum ano fixo.

5 1 . M a t t e la r t , A m n an d . La in v e n c ió n d e Ia c o m u n ic a c ió n . Bo sc h , 1 9 9 5 , p . 3 4 9 .
5 2 . B o lt a n sk i , Lu c & C h i a p e l l o , Év e . El n u e v o e sp i r i t o d e i ca p i t a l i sm o . A k a l , 2 0 0 2 , p . 5 6 1 .

'v f 56
R e sso a aq u i o p en sa m e n to m a rx ista , o u m a is p re c isa m e n te o m a te ria -
lism o h istó ric o , se g u n d o o q u a l n a b a se d e to d a a o rd e m so c ia l se a c h a m a
p ro d u ç ã o e a tro c a d e p ro d u to s, re s p o n sá v e is e m ú ltim a a n á lise p e la a rtic u ­
laçã o d o s in d iv íd u o s em c lasses. T o d a p ro d u ç ã o c a ra c te riz a -se p e la p re s e n ­
ç a d e u m p ro cesso de tra b a lh o (tra n sfo rm a ç ã o d o o b je to em p ro d u to , e x te n ­
siv am en te a n alisad o p o r M a rx n o p rim e iro livro: O capital) e d e re la ç õ e s de
p ro d u ç ã o , q u e re sp o n d e m p e la fo rm a h is tó ric a e c o n c re ta e m q u e se d á o
p ro cesso de trab alh o .
E ssas são n o ç õ e s b a sta n te c o n h e c id a s, m as q u e v a le re p isa r, p a ra q u e
n ão se p e rc a m d etalh es o p o rtu n o s. É o caso d a d istin ç ã o e n tre o c o n c e ito de
trab alh o e o de fo rça d e tra b a lh o , fe ita p e lo p e n sa m e n to m a rx ista , m as ig n o ­
ra d a p e la e c o n o m ia p o lític a clássica . T ra b a lh o , q u e se co m p re e n d e c o m o a
ativ id ad e d e se n v o lv id a n u m p ro c e sso d e p ro d u ç ã o d e b e n s, é a lg o q u e p o d e
ser realizad o p o r u m a m á q u in a o u p o r u m se r h u m an o . F o rç a d e tra b a lh o ,
p o rém , é e m p rin cíp io a e n e rg ia h u m a n a e m p re g a d a n o p ro c e sso d e tra b a ­
lho. A co n fu são en tre as d e sc riç õ e s d essas d u as re a lid a d e s d ife re n te s tem
sérias co n seq ü ên cias e c o n ô m ic a s53.
P o r o u tro lad o , o co n ceito de fo rç a d e tra b a lh o p o d e se r a m p lia d o e g a ­
n h ar o u tro s co n to rn o s, q u an d o a p ro d u ç ã o - c o n v e rtid a p e la lei m e rcan til
do v a lo r e m razão h istó ric a e m o d elo g en érico d e realiz a ç ã o d a v id a so cial -
é p en sáv el co m o alg o m ais d o qu e u m modo eco n ô m ico , p o rta n to co m o u m
cam p o o p eracio n al o u u m código d e g estão d a to ta lid a d e so cial g lo b al. D aí,
a codificação, efeito d a flex ib ilização e d a m o b ilid a d e d o c ap ital, q u e to m a
p o ssív el a m e rcan tilização d e sin g u larid ad es (o a u tên tico , o étn ico , o sim ­
pático , etc.). N e sta n o v a c o n fig u ração cap italista, a fo rça de trab alh o p a ss a
do n ív el d a n atu ral en erg ia h u m a n a p a ra o d a rep re se n ta ç ã o o u d o s sig n o s
(da “ siderurgia” p ara a sem iurgia), co n v ertendo-se em estru tu ra de o b ed iên ­
cia ao código.
Isto im p lica u m a in d iv id u ação co n fo rm ad a p o r p ad rõ es (co letiv o s) de
su b jetiv id ad e, o p eracio n alm en te afin s à n o v a estru tu ra. E p o r m eio d essa

5 3 . U m a e x p l i c a ç ã o c l a r a : " Po r c o n f u n d i r a m b o s o s c o n c e it o s, o s e c o n o m i st a s c lá ssic o s f o r a m
i n c a p a z e s d e d e sc o b r i r a o r ig e m d a e x p l o r a ç ã o c a p i t a l i st a . Ele s su st e n t a v a m q u e o s a l á r i o e r a
o p reço d o t r ab a lh o r e a liza d o p elo o p e r á r io , m as q u a n d o c a lc u la v a m q u an t o d e v ia m lh e p a g a r
e sq u e c ia m - se t o t a l m e n t e d e st e e n u n c i a d o e , e m v e z d e c a l c u l a r o p r e ç o d o t r a b a l h o r e a l i z a d o
(n ú m e r o d e sa p a t o s a c a b a d o s, p o r e x e m p l o ), c a l c u l a v a m o p r e ç o d e o b j e t o s q u e o t r a b a l h a d o r
d e v i a c o n su m i r p a r a r e c u p e r a r a su a f o r ç a d e t r a b a l h o (n ã o só o b j e t o s m a t e r i a i s c o m o : a l i ­
m e n t o , a b r i g o , t e t o , p a r a e l e e su a f a m íl i a ; m a s t a m b é m o b j e t o s c u l t u r a i s: r á d i o , c i n e m a , e s ­
p o r t e s, e t c .), c f . H a r n e c k e r , M a r t h a . Lo s c o n c e p t o s e l e m e n t a l e s d e i m a t e r i a l i sm o h i st ó r i c o . Si g lo
V e i n t i u n o , 1 9 7 1 , p . 2 3 - 2 4 . Po r o u t r o l a d o , o m e c a n i sm o c a p i t a l i st a d a m a i s- v a l i a d e c o r r e d a
d i sp a r i d a d e e n t r e o sa l á r i o e a f o r ç a d e t r a b a l h o .

57
e stru tu ra p ro fu n d a d e se n tid o , e m q u e se in te rp e n e tra m e le m e n to s e c o n ô ­
m ic o s, p o lític o s, c u ltu ra is e a p ró p ria v id a h u m a n a e m su a n u a su b stâ n c ia
b io ló g ic a - e m te rm o s d a G ré c ia C lá ssic a , a v id a co m o zoé, isto é, n atu ral
o u a n im a l, e n ã o c o m o bios, so c ia lm e n te o rg a n iz a d a - n u m a v e rd a d e ira
“b io p o lític a ” to ta l54, o h o m e m se su b m e te , e m to d a a e x te n s ã o d e su a e x is­
tê n c ia , à d e te rm in a ç ã o d o v a lo r d e tro c a c a p ita lista .
P e n s a d o r e m ilita n te p o lític o , N e g ri p re o c u p a -se c o m o s d e sd o b ra m e n ­
to s su tis d a s fo rm a s d e d o m in a ç ã o d a fo rç a d e tra b a lh o , a p o ia n d o -se n a te o ­
ria d o v a lo r p a ra in d a g a r-se co m o a e x p re ssã o d o tra b a lh o v iv o o u co rp o ra l
do su je ito (a p ro d u ç ã o d o v a lo r) d e ix a a flo ra r n e le a c o n stitu iç ã o m en ta l e
afe tiv a . D e p a rtid a , e le s u b lin h a as d ific u ld a d e s d a e c o n o m ia p o lític a c lá s si­
c a p a ra m e d ir o tra b a lh o . L e v a e m c o n ta , p o r u m lad o , q u e a c o m p le x id a d e
c re sc e n te do tra b a lh o se m p re im p e d iu a su a re d u ç ã o p e lo cálc u lo ; p o r o u tro
q u e, n a o rd e m to ta liz a n te d o c a p ita l, as m e d ia ç õ e s - e n tre a p ro d u tiv id a d e
d o tra b a lh a d o r e a su a a b so rç ã o p e lo c ap ita l, e n te n d id a s c o m o p ro d u ç ã o , re ­
p ro d u ç ã o so cial, c irc u la ç ã o e re p a rtiç ã o d as re n d a s - to m a ra m -se cad a vez
m ais ab strata s.
E sses o b stácu lo s d e co rreríam do p o n to d e v ista do “ alto ” , isto é, d a e c o ­
n o m ia p o lítica d o m in an te. P ro cu ran d o p e n sa r “a p a rtir d e b a ix o ” , q u er dizer,
d a v id a co m u m das p esso as, N e g ri p ro p õ e a n o ção d e ífv alo r-afeto ” , qu e é o
v alo r d a fo rça d e trab alh o d e fin id a co m o afeto - afeto en ten d id o , p o rtanto, na
^ Í ^ '7 t r i l h a d e E sp in o sa, co m o “p o tê n c ia de ag ir” . M as en ten d id o tam b ém , espino-
sia n a m e n te , c o m o d is p o siç ã o in te rn a a rtic u la d a co m fo rm a d e v id a, co m
ethos, po rtan to . C o m o fo rm a, o afeto é, ao m esm o tem p o , in terio r e exterior,
p u lsão e fen ô m en o , o qu e im p lica levar em co n ta tan to ân im o qu an to corpo
em seu s m o d o s p articu lares d e in stalação e d eslo cam en to n o espaço.
/ U m e x e m p lo im ed iato d e o b stá c u lo é o tra b a lh o d o m é stic o das m u lh e ­
res, p le n a m e n te afetiv o , q u e d e ix a d e ser c o n ta b iliz a d o p ela e co n o m ia p o lí­
tica. U m o u tro d iz re sp e ito à “ e c o n o m ia d a a te n ç ã o ” , em q u e o v alo r d o su ­
je ito (afeto ) é p o sto em su a in te rativ id ad e co m o s serv iço s de co m u n icação .
T a m b é m n este caso , a ciên c ia eco n ô m ic a fu rta-se a co n ta b iliz a r o trab alh o
d e p ro d u ç ã o d e su b je tiv id a d e (q u e r d izer, p ro d u ç ã o d e n ecessid ad es, d e se ­
jo s , p o siç õ e s d o su jeito n a lin g u ag em , e tc.) im p licad o n as tecn o lo g ias da in ­
fo rm ação e d a c o m u n icação . F u rta-se, p o rtan to , a reco n h ecer um a eco n o ­
m ia d o afeto. ^ ,

5 4 . A t e m á t i c a d o p o d e r b io p o li t ic o , e x t e n si v a m e n t e t r a b a l h a d a p o r M k h e l Fo o c o o lt e n co n tro
r e sso n â n c i a s o r i g i n a i s n o p e n sa m e n t o d o i t a l ia n o G i o r g i o A g a n b e m

58
N ã o é n o v a, n e m e x c lu siv a do m ilitan te italian o , e ssa a rg u m en tação .
H á c e rc a de três d écad as atrás, B au d rilla rd , p o r ex em p lo , c h a m a v a a a te n ­
ção p a ra a p a ssa g e m d a fo rç a de trab alh o a u m p ara d ig m a p o liv a le n te e in ­
d iferen te do n ex o so cial, em q u e m u d a a n o ção de p ro d u tiv id ad e, e o p ró ­
p rio la z e r a ssu m e u m a p o sição o p e ra c io n a l no sistem a. D este m o d o , “ o tra ­
b alh o (ta m b é m sob fo rm a de laze r) in v ad e to d a a v id a co m o re p re ssã o fu n ­
d am en tal, co m o c o n tro le, co m o o cu p ação p e rm an en te em lu g ares e tem p o s
re g u la d o s, seg u n d o u m c ó d ig o o n ip resen te . É p reciso fix a r as p esso as p o r
to d a p arte, n a esco la, n a fáb rica, n a p ra ia o u d ian te d a T V , o u n a reciclag em
- m o b iliz a ç ã o g eral p erm an en te. M as esse trab alh o não é m ais p ro d u tiv o no
sen tid o o rig in al: ele n ão é m ais do qu e o esp elh o d a so cied ad e, seu im ag in á­
rio , seu p rin cíp io fa n tástico de realid ad e. P u lsão de m o rte ta lv e z ”55.
E sta^çqnsideração in teressa-n o s p articu larm en te p o r re m e te r à reflex ão
d e(V a ttim o so b re a m íd ia, fo rte d isp o sitiv o de fix ação dos su jeito s, en q u an ­
to co m u n id ad e a fetiv a o u “ in ten sificação de si m esm a com o fim ” . O p ro ­
b le m a está em se d e te rm in a r q u e in ten sificação é essa è a serv iço de quê se
põe. D e fato, o estético “ senso c o m u m ” , su g erid o p o r K an t no to can te à
c o n tem p lação das o b ras de arte, p o d e reen co n trar-se n a esfera d a m ídia,
m as certam en te atrav essad o p e lo s c o n flito s p o lítico s característico s do d o ­
m ín io h eg em ô n ico . N a v isão de N eg ri, p o r ex em p lo , a economia da aten­
ção , em qu e se in clu i a m íd ia, n ão escap a ao do m ín io das co n d içõ es de re ­
p ro d u ção d a fo rça de trab alh o p e lo capital. E stas con d içõ es - que ficav am
fo ra d a re g ra c a p italista d u ran te a fase clássica de acu m u lação e q ue p erm i­
tia m ao o p erariad o co n stitu ir-se co m o “ classe h istó rica” - term in aram sob
o co n tro le ab so lu to do v a lo r de tro ca, d o rav an te em p en h ad o n a cap italiza­
ção do co n h ecim en to e do co n ju n to das relaçõ es so ciais e v itais, até então
tid as co m o in ap ro p riáv eis.
N a etap a clássica d a acu m u lação cap italista, o in telectu al ain d a d etin h a
alg u m p o d e r com o sen h o r de u m a razão u n iv ersal que, n as p o líticas da e s­
q u erd a, d ev eria p ro d u z ir o m áx im o de c o n scien tização p o ssív el ju n to à ag i­
tação d esen fread a das p aix õ es rev o lu cio n árias. H oje, com o se sabe, in telec­
tu al ilu m in ista e m ilitan te p o lítico são p ro g ressiv am en te n eu tralizad o s p ela
organização total capitalista. N o horizonte da globalização, entendida com o
fo rm a to talizan te (m ercad o e v id a social) do cap italism o m undial, todo v a­
lo r é co n tro lad o p o r u m sistem a de trocas, sem q u alq u er outro co m p ro m isso
além de sua p o sitiv id ad e técnica. Inclu siv e o v alo r do sujeito, que é o afeto

5 5 . B a u d r i l l a r d , Je a n . L ' Éc h a n g e sy m b o l i q u e e t Ia m o r t . G a l l i m a r d , 1 9 7 6 , p . 2 8 .

59
^ subsumido na interatividade do indivíduo com as m áquinas de inform ação
e comunicação. Isto se tom a cada vez mais claro com a evolução das mais
novas tecnologias da inform ação: na rede cibernética, o sujeito tende p ro­
gressivam ente a definir-se como usuário de serviços, que polarizam para o
\ /^com ércio, preferencialm ente a qualquer outro tipo de m otivação, a sua sen­
sibilidade individual. Seu valor de sujeito é aquilatado por sua integração
no ethos empresarial-m idiático.
M ais preocupado com formas de prazer com o o jogo e a liberdade de
expressão, V attim o abstém -se de juízos políticos sobre a dita econom ia da
atenção. Prefere proclam á-la como um a nova form a de com unidade estéti­
ca, m elhor ainda, estésica, na acepção de um com um do gosto ou da sensi­
bilidade enquanto form a de vida, para além do ju ízo estético em sentido es­
trito, m as certam ente nas im ediações da idéia de pulsão com o um a força so­
cialmente transform adora. N a com unicação, enxerga m ais o trabalho im a­
ginário da alocução, da form a sensível, do que a racionalidade da m ensa­
gem. Ora aproxima-se, ora afasta-se de pensadores da pós-m odem idade co­
mo Lyotard, V irilio, B audrillard e outros. A proxim a-se no que diz respeito
à “língua” filosófico-culturalista com que aborda a tem ática da estética e do
corpo m obilizador de afetos. A fasta-se quanto ao tom francam ente pessi­
mista das reflexões pós-m odem istas, de que L yotard e B audrillard consti­
tuem um bom exemplo.
Especialm ente no pensam ento de Baudrillard, o corpo pode tom ar-se
um a espécie de “estandarte das pulsões”, mas a sua liberação é im ediata­
mente capturada pelo mesm o processo com que funciona a econom ia polí­
tica. O mesmo acontece com a subjetividade associada a esse corpo “libera­
do”, já que se acharia inscrita no valor de troca. “A ssim com o o trabalho só
é liberado enquanto força de trabalho num sistem a de forças produtivas e de
valor de troca, tam bém a subjetividade só é liberada enquanto fantasm a e
valor/signo no quadro de um modo de significação dirigido, de um a siste­
mática da significação cuja coincidência com a sistem ática da p rodução
é bastante clara. Em resumo, a subjetividade só é ‘liberada’ na m edida em
que é retomada por um a economia política”, sustenta ele56.
N esta perspectiva, portanto, o corpo como lugar dos afetos (processos
primários e secundários, na linguagem da psicanálise) é subm etido a uma
racionalização sob o signo do valor. São figuras desta racionalização a libe­
ração da sexualidade como valor de uso biológico, a prom oção do corpo

5 6 . Ba u d r illa r d , Je a n . O p . cr t ., p . 1 8 3 .
erótico pela publicidade e pela m oda, a m anipulação tecnonarcísica do co r­
po e todas as reinterpretações funcionais d a corporeidade. É dentro deste ho­
rizonte que o afeto é capturado, ora pela produção, ora p elo consum o57.
Entretanto, na descrição filosófica que faz V attim o dessa nova realidade,
em princípio niilista e m enos violenta que a era da m etafísica clássica (ou
seja, Deus, o m undo e o eu perdem a sua transcendência, que era forte e im-
positiva), transparece um certo otimism o. A í onde B audrillard enxerga um a
repressão pacificada, sob a égide de um narcisism o dirigido, o teórico italia­
no vê apenas o enfraquecim ento da metafísica, portanto a dim inuição da vio­
lência. E assim não deixa de evocar a esperança neopragm atista na irradia­
ção da dem ocracia por m eio de novos dispositivos técnicos ou a confiança no
progresso moral como um a questão de incremento da sensibilidade humana.
Igual otimism o, em bora com outra argum entação e bem distinta orienta-
Q j ção política, transparece nas proposições de N egri, para quem , no “pós-m o-
dem o” (por ele identificado com o período posterior aos anos 60), em erge a
figura do comum com o m aneira nova de qualificação do ser, que se realiza­
ria nas determ inações da linguagem , da produção de subjetividade e da bio-
política 58. A linguagem é hoje, para ele, a ferram enta privilegiada da rela­
ção entre hom em e natureza, tom ando-se im anente ao cérebro e retirando
as bases das ilusões m etafísicas. Ú nica form a de produção da am biência
hum ana, a linguagem é o m odo de ser do com um (não m ais um a sim ples
form a de expressão): “N ão há m ercadoria que não tenha se tom ado serviço,
não há serviço que não seja relação, não há relação que não seja cérebro,
não há cérebro que não seja com um ”59. A o m esm o tem po, a subjetividade -
entendida não com o algo interno, m as com o “im putação de força com um
produtiva, que identifica (ou seja, dá nom e ao) o ator das produções lingüís-
ticas” - é, como a linguagem , um outro m odo do ser comum . O terceiro
m odo é a recom posição da p rodução de linguagem e da v ida num co n ju n ­
to denom inado “biopolítica” . Próteses lingüísticas e subjetivas aderem ao
homem , levando o com um a se organizar como m áquina biopolítica. Toda
produção é, em últim a análise, com unicação.

5 7 . Ist o já é t ã o v isív e l n o n ív el d as p r át ic as so c iais q u e , n o in ício d o g o v e r n o Lu la (2 0 0 3 ), o M i­


n ist r o d o D e se n v o lv im e n t o , Lu iz Fe r n a n d o Fu r l a n , d ef e n d e n d o a o r g a n iz a ç ã o d e c a d e i a s p r o ­
d u t iv as p ar a q u e o Br asil p o ssa t e n d e r a n ich o s d e m e r cad o , af ir m o u se r p r e ciso " m e l h o r a r a
im ag e m d e p ro d u t o s q u e a g r eg u em e m o çã o " , a e xe m p lo d e jó i a s. Par a e le , " a v e n d a d e p r o d u ­
t o s co m u m cu n h o e m o c io n al t e m m ar g e n s m aio r e s q u e o s p r o d u t o s d e c u n h o r a c io n a l e d e v e ­
m o s ca m in h a r p ar a p ro d u t o s n o s q u ais a co m p r a t em ap e lo e m o cio n al, e o co n su m id o r d iz ' q u e ­
ro t e r e sse p r o d u t o ', n ã o im p o r t a q u an t o c u st a" .
5 8 . C f . N e g r i, A n t o n io . K a i r ó s, a lm a v en u s, m u lt it u d o - N o ve l i çõ es en si n a d a s a m im m esm o .
DP& A , 2 0 0 3 .
5 9 . / b / d ., p. 1 1 0 .

61
Supondo p ossível um a transform ação do m undo sim ultânea à sua inter­
pretação, N egri vê a m ilitân cia com o u m a “tecn o lo g ia do am o r” , com p o ­
tência biopolítica. P o r isto, ele insiste no arquétipo do m ilitante político
com o o de u m a figura histórica que, pensando e agindo, opõe-se rad ical­
m ente à v elh a fig u ra do in telectu al, que apenas sente e pensa. E m sua m i­
litância, ele critica q ualquer form a de pensam ento p ó s-m o d em ista que es­
vazie o quadro biopolítico de suas dim ensões “p ro d u tiv as”, definidas com o
toda atividade subjetiva de produção de um a fratura no enquadram ento ope­
rado pelo sistem a.
N ão m ais ex istiría um lu g ar específico p ara a v elh a d ialética entre c a ­
pital e trabalho, já que a dom inação se exerce sobre a própria capacidade
abstrata de se produzir. T rata-se do “trabalho im aterial” , que d em anda um a
m obilização inaudita das capacidades intelectuais e afetivas, com o tam bém
sugerem C om bes e A spe: “D oravante, não nos é m ais possível saber a p artir
de quando estam os 6do lado de fo ra’ do trabalho que som os cham ados a
realizar. N o lim ite, não é m ais o sujeito que adere a um trabalho; m ais que
isso, é o trabalho que adere ao sujeito [...]”60.
A ssim pode a força de trabalho se apresentar, nos term os de N egri,
com o um “não-lugar” , isto é, um a configuração dinâm ica organizada em
term os circulatórios e definida num contexto biopolítico de reprodução so­
cial, suscetível de um a abertura ontológica, de um a expansão m ultidirecio-
nada. P o r um lado, o trabalho - baseado em conhecim ento tecnológico -
apresenta-se com o um a rede afetiva (desejante, liberada, com unicativa) de
trabalhadores bem qualificados, plenam ente a serviço da ordem capitalista
global. Por outro lado, tentando fazer Espinosa e N ietzsche darem -se (filo­
soficam ente) as m ãos e apostando no afeto com o um a potência de liberda­
de, N egri en v ered a p o r u m pro jeto de resg ate p o lítico da d im en são a fe ti­
va en q u an to “ sedim ento ontológico” de lutas sociais e enquanto potência
de transform ação expansiva, presum idam ente capaz de revalorizar “o que é
com um ” em term os de singularidade e universalidade.
Possibilidades dessa ordem são im plicitam ente reconhecidas por G orz,
ao referir-se às riquezas prim árias (“a fonte de onde brotam todas as rique­
zas” , no dizer de M arx em O capital, vol. I), entendidas com o recursos na­
turais e culturais, que estão na origem de todos os sistem as econôm icos e
constituem um a segunda econom ia não form alizável, “ invisível” . Diz ele:

6 0 . C o m b e s, M u r ie l & A sp e , B e r n a r d . Rev en u g a r a n t i e t b i o p o l i q u e . C f . G o r z , A n d r é . O i m a t e ­
r i a l : co n h eci m e n t o , v a l o r e ca p i t a l . A n n a b l u m e , 2 0 0 5 , p . 2 2 .

62
“ Sem ela, a ‘p rim eira’ econom ia reinante nunca podería surgir. Sem ela,
não pod ería perdurar. E la abrange todas as relações e realizações não co m ­
p utáveis e não rem uneráveis, cuja m otivação é a alegria espontânea na co ­
laboração livre, no convívio e na doação livres. D ela resulta a capacidade
de sentir, de am ar, de se u n ir e de viver com o próprio corpo, com a natureza
e com o próxim o. [...] Som ente nessa outra econom ia, que tam bém é o outro
d a econom ia, aprendem os a hum anizar a nós m esm os reciprocam ente e
pro d u zir u m a cultura da solidariedade e da coletividade”61.
N egri im prim e a esta argum entação um acento revolucionário, que re ­
cusa a Realpolitik liberal do E stado contem porâneo em favor da aposta na
força im anente dos excluídos pela nova ordem de poder. D aí a sua insistên­
cia no com bate ao controle do valor, agora definido com o “investim ento de
desejo” , p ela econom ia política. T enta-se controlar o que não pode ser m e­
dido. O m ercado e a m ídia são os veículos do controle: “A convenção (isto
é, o conjunto dos m odos de vida produtivos e de troca) e a com unicação
(isto é, o conjunto das relações interativas que form am o m ercado e a co n s­
ciência do m ercado) ofereceríam , portanto, à econom ia política, a oportuni­
dade de restringir a desm edida do afeto-valor pelo e no controle”62. É de
fato o m ercado, co adjuvado p ela p u b licid ad e e pela m ídia, que influi p o ­
d e ro sa m e n te na red efin ição da su b jetiv id ad e co n tem p o rân ea, acen tu an ­
do os elem entos do im aginário e do desejo. ^

U m a nova p ersp ec tiva

O trabalho teórico com o sensível im plica um a nova perspectiva no


cam po das ciências hum anas em geral e das ciências da linguagem , em p ar­
ticular. N o prim eiro caso, destaca-se a em ergência de um paradigm a estéti­
co no interior do círculo acadêm ico da sociologia, em especial a sociologia
“neoform ista” (a revalorização da form a, confrontada à falência dos ideais
racionalistas do Ilum inism o)63, em penhada em resgatar a im portância do
pensam ento de G eorg Sim m el, posto em segundo plano frente a M ax W e-
b er e É m ile D urkheim p o r influência do funcionalism o estrutural nor-

6 1 . G o r z , A n d r é . O p . c i t ., p . 5 7 .
6 2 . N e g r i, To n i . O p . c i t ., p . 6 9 .
6 3 . Po d e- se c h a m a r t am b é m e ssa so cio lo g ia d e " v it a li st a " , n a m e d id a em q u e f a z c o n st an t e s
e m p r é st im o s a o s p e n sam e n t o s d e N ie t zsc h e , Be r g so n , m as t am b é m D e le u ze e G u a t t a r i . N e sse
c ír c u lo , m o v e m - se i n t e le c t u a is co m o G i l b e r t D u r a n d , G e o r g e s B a l a n d ie r , Se r g e M o sco v ici, M i-
ch e l M af f e so li e o u t r o s q u e , q u a n d o n ã o p r iv ile g ia m a u t o r a l m e n t e , p e lo m e n o s le v am a sé r io
o s t e m a s v in cu la d o s à a n a r q u i a d a v id a e a o p o lit e ísm o d o s v a lo r e s.

63
te-am ericano (beatiflcado por T alcott Parsons), que se to m o u preem inente
após a Segunda G uerra M undial. Praticante de um a descrição fenom enoló-
gica que não se deixa fixar pela rigidez racionalista do conceito, Sim m el re-
interpreta o conceito kantiano de “form a” , deslocando-o da posição de um
a priori incondicionado (m odos e princípios de ordenam ento de fenôm enos
e objetos da experiência) para a de um esquem a cognitivo tensional, capaz
de ordenar um cam po observado, relacionando m odos de ser que oscilam
entre o racional e o sensível. A form a nasce da vida concreta dos sujeitos,
mas pode a ela contrapor-se com o u m padrão interativo acabado, em nível
supra-individual.
Para a sociologia da form a, o dado social é algo orgânico, sim ultanea­
m ente constituído por um ordenam ento p reexistente e pelas ações ou atitu­
des que se desenvolvem em efeitos de reciprocidade. A heterogeneidade da
vida social não é apreendida p o r nenhum a estrutura forte, m as p or um a coe­
são (evocativa do ksynon heracliteano) que transparece no esteticism o (ri­
tuais, vestuários, hábitos, etiquetas, diversões, etc.) da form a. A sociabili­
dade - conceito cunhado p o r Sim m el para designar a form a espontânea da
interação social, livre de conteúdos específicos - resulta da tensão entre a
form a a priori e o vivido m ultiform e, logo é feita de interação e da dinâm i­
ca dos valores de um a individualidade qualitativa. É esta sociabilidade que
enseja hoje um a revalorização cognitiva dos fatos m iúdos ou anódinos da
existência, do m esm o m odo que a im aginarização do real-histórico, por
efeito da difusão im agística da m ídia eletrônica.
Persegue-se, assim , um a vitalista “sociologia dos sentidos”, conside­
rando-se, com o M affesoli, que “não é o que um objeto social é , m as a m a­
neira como ele se dá a ver que pode guiar a nossa pesquisa. A í está resum i­
da toda a am bição do form ism o”64. Para ele, o que se pode guardar das v á­
rias m odulações da “form a” é que “elas insistem no fato de que as m últiplas
situações da vida cotidiana se esgotam no próprio ato, se vivem no presen­
te. E é im portante que esse presente, cam po específico da sociologia, d e­
pois de ter sido ocultado por m uito tem po em função da ideologia prom e-
teica, retome o lugar preem inente que lhe cabe”65. N esta perspectiva da teo­
ria do social, adquirem im portância realidades descuidadas pela tradição do
pensam ento ocidental, tais com o a im agem e o espetáculo, que se encon­
tram decididam ente no centro da nova sociedade da inform ação e da com u­
nicação, dem andando um a nova atitude cognitiva.

6 4 . M af f e so li, M ich e l. La co n n a i ssa n ce o r d i n a i r e . M é r id ie n s, 1 9 8 5 , p . 1 1 4 .


6 5 . Ib i d ., p. 116.

64
M as essa nova atitude pode ser pertu rb ad a p o r algo j á pressen tid o p o r
K ierkegaard ao alertar contra o niilism o p resente n a au to m o d elag em artísti­
ca do experim entalism o estético: n a livre expansão das faculdades criativas
do sujeito, sem o peso da história, hav ería u m desejo o n ipotente e gratuito
de si m esm o, no fundo um a auto-supressão da liberdade. Im ed iata ou refle­
xiva, entregue apenas a si m esm a, a im aginação estética co nfina-se nos li­
m ites da fínitude sensível, indiferente ou conform ista com a o rdem social.
P or outro lado, essa atitude cognitiva ainda busca um a co m preensão racio ­
nal de um certo “irracionalism o” (os tem as postos à m argem p ela grande so­
cio lo g ia das in stitu içõ es e d as e stru tu ra s so ciais, tip ific a d a no trab alh o
de pesquisadores com o T alcott P arsons, P ierre B ourdieu, etc.).
O utra é a postura de B audrillard, que não se reconhece com o sociólogo
(m anifestam ente dando p referência ao viés filosófico-antropológico) p o r
não acreditar na racionalidade do conceito novecentista de história, logo,
no realism o dos diagnósticos sobre a sociedade contem porânea ou n a p o ssi­
bilidade de que se possa hoje fazer u m a verificação h istoricam ente objeti­
va, não-indecidível, das coisas. Ele reencontra, assim , p o r outros cam inhos,
a m esm a suspeição do pensam ento construído pelo racionalism o, feito de
definições prontas e acabadas. E as form as tam bém lhe p arecem im portan­
tes, m as com o alg o além da consciência e do desejo, com o p u ra circulação
sim bólica das regras do jo g o e dos rituais.
y\
N o tocante às ciências da linguagem , em especial no seu em penho de
pensar o fenôm eno com unicacional, é relevante a “atitude p ragm ática” de
Parret66, que critica a preocupação excessiva ou o unidim ensionalism o das
pesquisas em tom o do v alor de verdade das enunciações. T rata-se n a verda­
de de criticar o “p aradigm a verifuncionar em que o sujeito falante, social e
com unitário, é esvaziado de suas p róprias m otivações e m odalizações para
tom ar-se um com unicador ou informador, apoiado apenas na relação do dis­
curso com as suas circunstâncias referenciais. Para um tal paradigm a, que
institui a com unicação com o fundam ento estrutural da subjetividade, toda
intersubjetividade equivalería à com unicabilidade, e toda com unicação a
um a transferência de inform ações, sem m aior atenção às expressões sensí­
veis da experiência vivida. O corolário deste m odelo é a consolidação da in­
form ática com o “espírito” da sociedade contem porânea.
Qual a alternativa? N a perspectiva de Parret - que pode ser subscrita
em vários de seus pontos por outros autores de linhagem pragm ática, mas

6 6 . P a r r e t , H e r m a n . O p . c i t ., p a ssi m .
tam bém p o r sociólogos atentos ao p ap el da im ag in ação e da in certeza na d i­
n âm ica co g n itiv a - , será p reciso ev itar a ten d ên cia h istó rica de co n ceb er a
sociedade segundo u m a teo ria de jo g o s finitos, cu ja razão - ap o iad a no cál­
culo e n a represen tação - term in a sem pre p o r ratificar u m a su p o sta “natu re­
za” eco n o m icista e bélica do hom em .
A estes jo g o s pu ram en te societários, o p õem -se os “jo g o s de cu ltu ra” ,
que apostariam no infinito, na am pliação dos lim ites e, assim , n a indeterm i-
nação cultural frente à d eterm inação das elites cu lturais históricas. A o in ­
vés da sociedade definida exclusivam ente pela otim ização econôm ica, em er­
ge a id éia do “ se r em c o m u m ” , m ais c e n tra d o no afeto ou n a se n s ib ilid a ­
de do q u e em q u alq u er fu n d am en to de cará te r é tico -racio n alista. N o lu ­
gar, p o rtan to , de u m a com unidade arg u m en tativ a e consensual, pro d u to ra
de norm as e sentido n u m contexto intersubjetivo de livre discussão, em erge
u m a com unidade afetiva, de base estética, onde a p aix ão dos sujeitos m o b i­
liza a discursividade das interações.
A e lev ação do sen sív el à co n d ição de fu n d am en to do ag ir ético é p re ­
cisam ente a posição da b io lo g ia do conhecim ento trab alhada p o r biólogos
: :y \ com o M aturana e V arela67. Partindo do p o nto de vista de que a racionalida-
de depende de prem issas aceitas a priori , am bos atribuem ao dom ínio afeti­
vo essa aceitação. A preocupação da ética com o agir hum ano em face do
p roblem a de aceitação da alteridade desloca-se, assim , da razão substancial
e supostam ente inerente à livre discursividade no espaço público (H aber-
m as) para u m a intersecção do afeto (“em oção”) com a linguagem .
N ão h á praticam ente n ada em M aturana e V arela que não já tenha sido
pensado p o r S im m el, S ch eler, H e id e g g e r e W ittg e n ste in . O s dois b ió lo ­
gos são principalm ente epistem ólogos (e não “p en sad o res”, em sentido
lato) que vêm trabalhando sistem aticam ente um a “teoria dos sistem as vi­
vos” , bastante próxim a das abordagens neurofisiológicas por onde envere­
dam autores com o D am ásio, B lock e m uitos outros. E m bora altam ente d is­
cutível, esta conexão da biologia com fenôm enos sociais é im portante como
sintom a de um a m udança nos padrões de com preensão da dinâm ica da con­
vivência hum ana.
Está-se relativizando, senão se desconfiando, de todo um paradigm a que,
transform ado em m ito, vem ocupando o centro das atenções práticas e teó-

6 7 . C f . M a t u r a n a , H . & V a r e l a , F. A á r v o r e d o co n h eci m e n t o . Psy II, 1 9 9 5 .

66
ricas desde a segunda m etade do século X X : o da com unicação. Pelo m e ­
nos, a com unicação entendida com o transferência de sentido ou de dados,
p o rtanto com o processo de inform ação, a tal ponto intensificada p ela m ate­
rialidade tecnológica que a superabundância inform acional e a racio n alid a­
de funcional tendem a d o m inar toda dinâm ica interativa. N a hiperinform a-
ção, algo d a vida parece degradar-se em função da crescente m ercantiliza-
ção dos tem pos sociais, quando n ão se suscita o conhecim ento proveniente
da identificação e diferenciação com unitárias (onde prevalece o cam po afe­
tivo), que é o conhecimento compreensivo . N a base de u m a experiência on-
tológica da com unicação (em term os de ciência, política e vivência), encon­
tra-se o problem a da com preensão, suscitado pela vinculação inerente ao
comum. O entendimento e a explicação se obtêm p o r m eio das interpreta­
ções que fazem os do m undo a partir de nossos habituais quadros conceituais.
A com preensão, porém , fica além desses circuitos autolegitim ativos, fora
dos puros atos de linguagem .
O A ssim , em vez da pura e sim ples com unicabilidade (pelo m enos na acep­
ção com que este term o é em pregado n a atual sociedade tecnológica), põe-
se em prim eiro plano a com preensibilidade com o o problem a da articulação
dos cam inhos que p o ssibilitam toda e qualquer percepção. Isto é o que res­
soa, p o r exem plo, n a d istinção heideggeriana entre linguagem e língua, ou
seja, en tre o o rd en am en to cap az de aco lh e r to d as as d iferen ças e a esq u e-
m atização discursiva. N o dizer discursivo, conseqüente a um a espécie de
atração com unicativa, algo se retrai ou se cala, a linguagem , justam ente para
p ossibilitar o pensam ento e o afeto, a p ergunta e a resposta.
Esse entendim ento de linguagem não difere do que H eráclito entendia
p o r ethos , isto é, a a m b iên cia sen só rio -co g n itiv a (en ten d id a p o r W ittgens-
tein com o “form a de vida”), onde se estabelecem as diferenças e as aproxi­
m ações constitutivas da com unidade. Pode-se resum ir sustentando que, de
um ponto de vista geral e pragm ático, o ethos de hoje se deixa ver com o a
consciência atuante e objetivada de um grupo social - explicitada em costu­
m es, hábitos, regras e valores - , onde se m anifesta a com preensão h istórica
do sentido da existência, onde têm lugar as interpretações sim bólicas do
m undo e, portanto, funciona a instância de regulação das identificações in­
dividuais e coletivas.
N o pensam ento heideggeriano, com preensão é algo m ais do que “com ­
preender algum a coisa”, com o ele próprio explica, “com o sentido de ‘estar
a cavaleiro d e...’, ‘estar por cim a d e...’, ‘poder algum a co isa’. O que se pode
na com preensão enquanto existencial não é um a coisa, mas o ser com o

67
existir. Pois na com preensão subsiste, existencialm ente, o m odo de ser da
pré-sença enquanto poder-ser”68. N ão é aqui o caso de nos estenderm os na
com plexidade em que o pensador insere o problem a da com preensão, e sim
de assinalar que, para ele, a “disposição” ou “situação afetiva” ( Befindlich -
keit), isto é, o m odo de se sentir ou se achar de determ inada m aneira, é um
existencial que precede a própria com preensão.
M as é preciso ficar bem claro que essa disposição não pode ser entendi­
da como um “estado afetivo” individual m anifestado em em oções ou senti­
m entos, e sim com o Grundstimmung , isto é, um a fundam ental tonalidade
sensível que provoca e arrasta o indivíduo num m ovim ento capaz de ultra­
passar as próprias determ inações da consciência individualizada. N ão se
trata, pois, do sentim ento que acom panha o sujeito, m as de um a potência do_
sensível, inseparável do pensamentcfe dá ação no interior de um comum que,
para além da dicotom ia sujeito/objeto, preside à originariedade da com pre^
ensão. U m a outra m aneira de apresentar esta m esm a questão é o apelo à no ­
ção de experiência , tal como a desenvolve B ataille, em term os de singulari­
dade (constitutiva ou geradora do agir) e, portanto, de um a prioridade exis­
tencial, inapreensível pelo racionalism o69. E xperiência não se reduz aí às
formas de apreensão (objetiva ou subjetiva) dos sujeitos, já que é um valor
de originariedade da ação hum ana com um .
E só se com preende no comum . C om preender significa agarrar a coisa
com as mãos, abarcar com os braços (do latim cum-prehendere ), isto é, dela
não se separar, com o acontece no puro entendim ento (do latim in-tendere ,
penetrar) intelectivo, em que a razão penetra o objeto, m antendo-se à dis­
tância, para explicá-lo. N o entendim ento explicativo, um fenôm eno p arti­
cular fica subsum ido a um a lei geral, enquanto na com preensão o fenôm eno
guarda a sua singularidade, isto é, a sua u n icid ad e in co m p aráv el e irrepe-
tível. O requisito essencial da com preensão é, assim , o vínculo com a coisa
que se aborda, com o outro, com a pluralidade dos outros, com o m undo.

6 8 . H e id e g g e r , M . Se r e t em p o . Par t e I. V o ze s, p . 1 9 8 . À g u i sa d e e x p li c a ç ã o : " p r é - se n ç a " é a


p a la v r a a d o t ad a n a v e r sã o b r a sil e i r a (é t am b é m p o ssív el a e x p r e ssã o " e st a r - a í" ) p a r a t r a d u zi r
D a sein q u e , em a l e m ã o , sig n if ica " e x i st ê n c i a " e q u e , em H e id e g g e r , e q u iv a le a " se r - n o - m u n -
d o " . N ão é sin ô n im o d e " h o m e m " , m as a p o n t a p ar a a sit u ação d in â m ic a d o h o m e m n o m u n d o ,
ist o é , p ar a o seu e st a r e sse n cia lm e n t e r e f e r id o a p o ssib ilid a d e s, n a co n st r u ção d e seu m o d o
h ist ó r ico d e se r . Po is b e m , a c o m p r e e n são é o m o d o d e se r d a p r é - se n ç a , lo g o , h e id e g g e r i a n a -
m en t e, é u m " e x i st e n c i a l " . So m o s se m p r e e xist e n c ia lm e n t e co n st it u íd o s p o r u m a co m p r e e n sã o
o r ig in á r ia o u u m a p r eco m p r e en são d o m u n d o , in t e r n am en t e a r t ic u la d a p o r in t e r p r e t ação e d is­
cu r so , p o ré m m a n if e st ad a co m o af e t o .
6 9 . Cf . Ba t a i l le , G e o r g e s. L' Ex p ér i en ce i n t ér i eu r e. G a l l i m a r d , 1 9 9 2 .

68
A exigência do “agarrar com as m ão s” põe em jo g o a corporeidade, não
devidam ente acentuada por H eidegger. D e fato, com entando u m tópico de
Ser e tempo - o estar-aí ( Dasein ) enquanto cuidado e enquanto mortal - Jo-
nas, tam bém filósofo e discípulo de H eidegger, observa que o predicado
“m ortal” rem ete de m odo im perativo à existência do corpo em toda a sua n a ­
turalidade bruta e exigente. N o entanto, no texto heid eg g erian o , o corpo não
é sequer nom ead o . É co m o se a filo so fia a lem ã, co m su a tra d iç ã o id e a lis ­
ta (co n firm ad o ra do dualism o m etafísico entre espírito e m atéria), fosse de al­
gum m odo nobre dem ais para falar de coisas físicas ou g rosseiram ente o b je­
tivas. Logo, H eidegger não teria perm itido à filosofia inscrever o enunciado
“eu estou com fom e” : a m ortalidade do estar-aí seria, assim , u m a m o rtalida­
de abstrata, sem fundam ento concreto, na verdade, um a interpretação da inte-
rioridade do hom em que pode o u torgar u m lu g ar p reem in en te ao sen sív el,
m as a p artir de u m a esp iritu alid ad e que deix a de lado a q u estão co rp o ral70.
Q uanto ao com um (instaurador do vínculo), é precisam ente esse p lural
m anifestado na totalidade das vinculações hum anas, que não se d eix a d efinir
nem com o u m a unidade universal abstrata, n em com o u m a centrifugação de
diferenças. N ão se trata, portanto, de u m m ero estar-juntos, entendido com o
aglom erado físico de individualidades (por exem plo, a com unidade en q u an ­
to m assa gregária substancializada), e sim da condição de possibilidade de um a
vinculação com preensiva. O co m u m é a sintonia sensível das singularidades,
capaz de p roduzir u m a sim ilitude harm o n izad o ra do diverso.
U m a outra m aneira (e u m outro vocabulário) p ara se en cam in h ar esta
concepção é form ular a hipótese de u m a estética originária, capaz de determ i­
nar os m odos de sentir de u m a com unidade, um a v ez que com preender é p ró­
prio da dim ensão sensível, hoje sociologicam ente invocada sob a égide de u m a
estesia generalizada. D iante dela, no lim ite, deixa de ter sentido qualquer bina-
rism o, q ualquer distinção radical entre razão e afeto, inteligível e sensível, u m a
vez que, sobre o pano de fundo co m u m de u m a to talid ad e “có sm ica” , p e n sa r e
sentir em erg em de u m m esm o ato. N o v ig o r d a com p reen sib ilid ad e d a d i­
m ensão co m u m po d e estar o lim ite p ara a co m u n icab ilid ad e m idiática, asses-
tada p ara u m tipo esquem ático de relação societária em que co m u n icação se
define p o r fala e conversa, distante, portanto, da “linguagem ” e da potência que
instituem a vinculação h u m an a na p lu ralid ad e do com um .
O co m u m q u e lev a à c o m p reen são é feito de u m a p a rtilh a do sen sív el
que ev o ca o territó rio p ró p rio d a estética. R eto m am -se, assim , alg u m a s d as

7 0 . C f . Jo n a s , H a n s . P o u r u n e é f h i q u e d u f u t u r . Pa y o t & R i v a g e s, 1 9 9 8 , p . 3 8 - 4 4 .

69
p o siçõ es qu e m a rc a ra m as ch am a d as “ estética d a v id a ” e “ esté tic a d a fo r­
m a ” - D ilthey, H erbart, S antayana, B ergson, S im m el, U n am u n o , Jaspers,
O rteg a y G assett e outros - ao longo do século X X . A in d a que se ch o q u em as
posições otim istas e as p essim istas quanto a u m a estetização d a v id a social e
da política, o fato é que esse tipo de argum entação introduz o afeto no debate
das ciências hum an as e das linguagens sobre novas con fig u raçõ es advindas
das m utações tecnológicas e da conversão d a v id a social à lei do m ercad o .
E o afeto, território p róprio da estesia, revela-se u m m ecan ism o de co m ­
preensão irredutível às verificações racionalistas da verdade. P o r m eio dele,
divisa-se u m a teoria compreensiva da comunicação , p resu m id am en te capaz
de trazer m ais luz ou hipóteses m ais fecundas sobre as tran sform ações das
identidades p esso ais e co letiv as, as m o d u laçõ es d a p o lític a e as am b iv alên -
cias do p luralism o cultural no âm bito da globalização contem porânea.
N o interio r de u m a ab o rd ag em co m u n icacio n al do discu rso so cial (em
que “ co m u n icação ” seja to m ad a n u m sen tid o “ o n to lo g icam en te am p lo ” e
não n u m esq u em atism o red u to r), a co m p reen são o p era b u scan d o as reg u la-
ridades lin güísticas da pro d u ção de sentido não apenas em seus asp ecto s
em píricos e po sitiv o s, tran sfo rm áv eis em ju íz o s arg u m en tativ o s, m as ta m ­
b ém n aq ueles de caráter su b jetivo e afetivo (ap reen sív eis p o r ju íz o s reflex i­
vos, de ap reciação e av aliação) que, em in úm eros casos, p reced em o d iscu r­
so e o sentido. A estesia ou estética, cen trad a n a id éia k an tian a do senso co­
mum, constituiría, po rtan to , o p onto de p artid a para a leg itim ação tan to do
co nhecim ento aceitáv el quanto da v id a b o a e ju s ta (ética) em co m unidade.
A já referida idéia de V attim o sobre a com unicação pressupõe um a co ­
m unidade afetiva, m antida p o r um acordo de gostos em tom o do p roblem a da
partilha coletiva de vozes e sensações. M as ainda que aparentem ente partin ­
do de K ant, ele se revela plenam ente heideggeriano quando assevera que “a
afetividade não é um acidente que se coloque ao lado da pura visão teórica das
coisas” , por ser u m aspecto constitutivo da abertura hum ana para o m undo.
Diz: “ Se a situação afetiva é algo que encontram os sem dela poderm os dar
razão, a conclusão será que ela nos põe perante o fato de o nosso m odo origi­
nário de captar e com preender o m undo ser algo cujos fundam entos nos esca­
pam , sem ser, por outro lado, um a característica transcendental de um a razão
‘p u ra’, já que a afetividade é precisam ente o que cada u m de nós tem de m ais
profundo, de m ais individual e de m ais cam biante”71.
O problem a é hoje a determ inação quanto à real natureza do sensível
nos processos de com unicação ou de inform ação. D e que a com unicação é

7 1 . V a t t im o , G i a n n i . In t r o d u çã o a H e i d e g g e r . Ed . 7 0 , 1 9 7 1 , p . 3 9 .
u m n ovo tip o de fo rça p ro d u tiv a, qu ase não h á h oje m ais n en h u m a dúv id a,
u m a v ez qu e se m u ltip licam os reco n h ecim en to s an alítico s de que as e stra ­
tég ias do d iscurso e d a sen sib ilid ad e in teg ram d ecisiv am en te a p ro d u ção e
de que até m esm o a ação ética p o d e se d efin ir com o co m u n icação criativa.
v j M as ain d a não se av alio u co m p ro fu n d id ad e a p arte da dim en são afe ti­
v a nisso que se vem ch am an d o de p assag em do “ sen só rio -m o triz” (caracte­
rizad o p e la in terv en ção en erg ética do co rp o em trab alh o ) ao “ sensório síg-
n ico ” , que se entende com o o deslocam ento da corporeidade ativa p ara o ges-
tu al de in terp retação e co n tro le sígnico (p rin cip alm en te em sua form a in d i­
ciai) d os d isp o sitiv o s técnicos. E m outras palav ras, a p assag em da “sid eru r­
g ia” (aqui, m etáfo ra p a ra a p ro d u ção en ten d id a apenas com o realização da
m atéria em term os substan cialistas) à “ sem iu rg ia” .
E são pond eráv eis as m u taçõ es no n ív el da ética im ediata das condutas
h um anas, m esm o quan d o po ssam p arecer superficiais. U m exem plo é dado
pelas variad as m od ificaçõ es do corpo h u m an o (as escarificações, as tatu a ­
gens, os piercings ); outro, p ela em erg ên cia do cyborg (corpo h íbrido de
bios e techné , sem carne, m as investido de em oções), com o sonho de fusão
da m áq u in a com a vida. E ssa co alizão de arcaísm os tribais com fantasias
tecn o ló g icas delin eia u m n ovo im aginário e u m novo p siquism o, em que a
“n atu reza” revela-se ten d en cialm en te m aquínica.
P o r enquanto, os p esq u isad o res e os críticos da cu ltu ra parecem levados
a o scilar entre p o sições otim istas e cata strofistas quanto às p erspectivas h u ­
m anistas n u m a civilização que se p lan etariza o bjetiva e subjetivam ente em
term os de realidade virtual. P ara u m crítico rad ical com o B audrillard, v iv e­
m os u m a no v a form a de terro r n u m sistem a tecnológico em que a idéia de
inform ação suplantou a idéia de verdade, exterm inando o real, o O utro e toda
transcendência. u .v
O discurso o tim ista sustenta, em contrapartida, que a poten cialid ad e
h um ana p ara libertar-se do determ inism o trivial dos artefatos (a reifícação
do hum ano e a sensibilização da “co isa” , portanto, do inum ano) e assu m ir a
plenitude das condições em que se institui o novo “hom em -m áq u in a” , esta­
ria no apelo p erm anente à d im ensão afetiv a - às em oções, às p aixões e aos
sentim entos - com o força com um que, ao lado da intelecção, constitui e in­
tegra a vida. A inda que no b ojo das novas condições de existência geradas
pela ciência e pela tecnologia, a força ético-política da paixão de viver p o ­
dería im pedir que a integração h arm ônica da m áquina seja equivalente à as­
sim ilação do capital com o “natu reza” à consciência do hom em .
»■

71
O E M O T IV O E O IN D IC IA L N A M ÍD IA

A m an ipulação ret órica e est ét ica das em oções pel as


primeiras^ dit aduras t ecn ológicas do sécul o XX. A difu­
são do espet áculo na sociedade con t em porân ea. A pr o­
dução de relações sociais po r im agens a serviço do m er­
cado global. A t atilidade na m ídia elet rôn ica. A com u­
n icação indiciai na t elevisão e na rede cibern ét ica.

c ) ã o razoavelm ente conhecidas, graças ao cinem a e à literatura, as p er­


form ances oratórias de A d o lf H itler, tidas p o r m uitos com o extraordinárias
n a m obilização das grandes platéias alem ãs. “N os seus discursos” , relata
Axel Heyst, “nós ouvim os a voz abafada da paixão sensual retirada da lingua­
gem do amor; ele grita com ódio e voluptuosidade; um espasm o de violência
e crueldade. Toda a sua gam a de sons é tirada de b ecos sórdidos dos instin­
tos. Fazem -nos lem brar nefandos impulsos por m uito tem po reprim idos”72.
E sta citação consta de um a avaliação da personalidade do líder do III
R eich alem ão - feita em 1943, a pedido do governo norte-am ericano, pelo
psicólogo e psicanalista W alter L anger - e se segue à observação, aliás, re ­
petida em todos os ensaios e tratados de propaganda política, de que, para
H itler, as m assas têm um caráter essencialm ente fem inino. N elas p red o m i­
naria o afeto sobre a razão: “O povo em sua grande m aioria é tão fem inino
em natureza e atitude que suas atividades e pensam entos são m otivados m ais
pelos sentim entos do que por sóbrias considerações” (Mein K am pf ).
P or isso, em seus inflam ados discursos, H itler agiria com o diante de
um a m ulher, a princípio inseguro, nervoso e inquieto, depois dom inador e
bruto. R elata Langer: “Procura prim eiro ‘sentir’ os seus ouvintes e com eça

7 2 . A p u d La n g e r , W a lt e r C . A m en t e d e A d o l f H i t l e r - O r el a t ó r i o se cr e t o d a II G u e r r a M u n d i a l .
A rt en o va, 1 9 7 3 , p . 17 4 .
sem pre com cuidado, num tom de voz norm al e de m aneira objetiva. À m e­
d ida que prossegue, no entanto, a voz com eça a elevar-se e o ritm o acele-
ra-se. Se a reação dos ouvintes fo r boa, a voz to m a-se m ais forte e o ritm o
cada vez m ais acelerado. Já aí d esapareceu toda a o bjetividade, já está sim ­
p lesm ente desvairado. A boca, que fora da trib u n a n unca pro n u n cia p ala­
vras profanas, já agora d eixa sair u m a v erdadeira torrente de blasfêm ias, de
insultos e de ódio. [...] A torrente constante de im undícies continua a jo rrar
até que tanto ele com o os ouvintes encontrem -se com pletam ente frenéticos.
[...] M uita gente já com entou a respeito dos com ponentes sexuais de seus
discursos, chegando a com parar o seu clím ax com u m verdadeiro orgasm o.
[...] E é o próprio H itler quem diz que ‘a paixão sozinha dá àquele que ela
escolhe as p alavras que, com o os golpes de u m m artelo, conseguem abrir as
portas p ara o coração do povo. [...] Ele constrói cuidadosam ente inim igos
im ponentes com o os ju d e u s, os b o lch ev istas, os capitalistas e as d em o cra­
cias, p ara depois dem oli-los im pied o sam en te’”73.
A s perform ances públicas do Führer são, em princípio, u m claro exem ­
plo do que a língua alem ã designa p o r Schwârmerei, isto é, um desregra-
m ento do espírito que vai dos transbordam entos da im aginação até a exalta­
ção característica dos fanáticos religiosos. A palavra aparece no vocabulá­
rio kantiano com o um a extravagância perigosa a que se deve contrapor a ra­
zão hum ana. K ant a vê tam bém com o um m eio de ocultar a própria ignorân­
cia: “A astúcia habitual, que perm ite cobrir a sua ignorância com um a apa­
rência de saber, consiste em perguntar, com o o faz o Schwãrmer : vocês com ­
preendem a verdadeira causa da força m agnética, ou: vocês conhecem a
m atéria que exerce ações tão m aravilhosas nos fenôm enos elétricos?”74 A
extravagância consiste aí, evidentem ente, em tirar da im aginação d eliran ­
te supostos fatos verdadeiros ou científicos.
As táticas de discurso hitleristas configuram -se, prim eiram ente, como
estéticas, na m edida em que, com o toda exaltação fanática, legitim am pela
dim ensão sensível as suas convicções políticas e religiosas. D epois, são em
grande parte velhos artifícios políticos de discurso, recorrentes no passado,
principalm ente no âm bito do uso racionalista do afeto pela retórica. Esta, já
vim os, se caracteriza com o a arte da expressão e da persuasão em pregada
com o técnica política, em virtude de seus efeitos de instrum entalização e
controle dos discursos. Serve para convencer, no sentido racionalista do ter­
mo, e para agradar ou bajular , o que dá bem o alcance de seu aspecto afe­

7 3 . Ib i d ., p . 1 7 3 - 1 7 4 .
7 4 . C f . Eisl e r , Ru d o lf . K a n t - Lexi k o n . G a l l i m a r d , 1 9 9 4 , p . 9 4 1 - 9 4 2 .

74
tivo ou irracional - portanto, em linhas gerais, serve p ara com unicar idéias
e em oções, produzindo sensações. R etórica e estética entrelaçam -se com
m uita freqüência.
E xiste um a retórica dos tropos ou figuras de sentido, em belezadoras e
criadoras de linguagem - portanto, u m a técnica de linguagem m ais voltada
p ara a estética da obra - , assim com o um a retórica dos topos , que são grades
form ais ou m eios m nem otécnicos p ara se descobrir as idéias do discurso,
portanto, recursos para a argum entação. R azão e afeto aí cam inham juntos,
com o b em se vê n a teoria de A ristóteles, quando ele distingue três cam i­
nhos argum entativos: ethos , pathos e logos , sendo os dois prim eiros um a
m atéria puram ente afetiva. Preocupada com a recepção das em oções, entre­
tanto, a retórica aristotélica aplica-se m ais à estética do público. É sem e­
lhante à m esm a que, na m ídia contem porânea, concretiza-se com o um a for­
m a de institucionalização tecnológica da linguagem , voltada predom inan­
tem ente p ara o contato, p ortanto, p ara as expectativas e a conform ação psi-
cológica das m assas.
C om o im pério da m ídia, as técnicas retóricas de persuasão e controle
das m assas, exacerbadas pela propaganda política, term inaram sendo apro­
priadas p ela publicidade com ercial. M as as velhas técnicas da propaganda
continuam ainda hoje, a despeito de seus anacronism os, em ditadores rem a­
nescentes, extrem istas políticos, líderes populistas, fanáticos religiosos. A
instilação coletiva do m edo (tida p or H obbes com o a em oção fundam ental)
faz parte de estratégias contem porâneas de controle de comportam entos que
baseiam seus recursos retóricos na sem iose da velha propaganda política.
São claros exem plos disto os film es de catástrofe norte-am ericanos, assim
com o toda um a literatura de grande consum o voltada para a acentuação pa-
roxística dos tem ores sociais e, ao m esm o tem po, o culto às arm as que, nos
Estados U nidos, se associa à violência física e mental.
A retórica do bode expiatório (cuja fonte de conhecim ento m ais antiga
é o Levítico, no A ntigo T estam ento), isto é, ji invenção de alguém a quem se
atribuam as culpas latentes e m anifestas no grupo social, é atualíssim a para
os grandes dem agogos. N os Estados U nidos, a extrem a-direita elege com o
alvos os cidadãos não-brancos, em especial negros e hispânicos. N a E uro­
pa, árabes e turcos são bastante visados. N o B rasil do início dos anos 90,
um dem agogo conseguiu chegar à presidência da R epública vestido na pele
“ em ocionalista” de um herói jo v em e sem com prom issos com a classe polí­
tica, auto-investido da m issão de com bater um bode expiatório: um a supos­
ta casta de funcionários públicos privilegiados, os “m arajás” . O objeto co­
letivo da expiação é sem ioticam ente conotado por afetos negativos e terro­

75
ristas quanto ao princípio de realidade, geralm ente com o concurso da m í­
dia, de m odo a que se configure com o um “O utro” em que se cristaliza a in ­
certeza ou o Mal.
O uso político da em oção com porta dois aspectos: a agitação e a pro p a­
ganda. Esta é a fam osa distinção trabalhada pelos bolcheviques e assim re ­
sum ida por Plékhanov: “O propagandista inculca m uitas idéias em u m a só
pessoa ou em um pequeno núm ero de pessoas; o agitador só inculca um a
idéia ou um pequeno núm ero de idéias; por outro lado, ele as inculca a toda
um a m assa de pessoas”75. Essa idéia, para Lênin, deveria ser a da injustiça
capitalista, que o agitador trabalharia verbalm ente, enquanto o propagandista
se ocuparia da escrita.
Salientando que esta é um a distinção prática, baseada em aptidões de
tem peram ento, D om enach com enta: “Pode-se facilm ente acom panhar es­
sas duas fam ílias ao longo da história das revoluções, sejam elas sociais,
políticas ou até mesmo religiosas. Hébert, M arat eram agitadores; R obespier-
re, Saint-Just eram propagandistas. M ussolini nunca pôde ultrapassar a
condição do agitador. H itler, ao contrário, era um agitador que soube ele-
var-se ao nível de sistem atização teórica do propagandista”76.
A p ro p ag an d a b o lch ev iq u e era b astan te d iferen te da n azista. A p o ia ­
da em idéias racionalm ente dem onstráveis e saídas de um pensam ento pro ­
gressista, herdeiro da m elhor filosofia européia, consistia basicam ente na
denúncia política , destinada a revelar à classe operária os m ecanism os de
dominação m ontados pelas classes dom inantes, e na palavra de ordem , que
traduzia verbalm ente um m om ento da tática revolucionária. A p ro p ag an ­
da nazista, por outro lado, apoiada no m ais obscuro irracionalism o euro­
peu, apelava para a excitação nervosa das m assas por m eio da instilação do
medo e da exaltação étnica.
O êxito popular do regim e nazista, im pressionante exem plo de em patia
entre um discurso irracionalista e todo um povo supostam ente habituado à
racionalidade da letra, foi interpretado por Tchakhotine a partir da teoria
dos reflexos condicionados de Paviov77. Em resum o: um torrão de açúcar,
posto diante de um cão im obilizado, faz o anim al salivar. A ssociando-se o

7 5 . Cf . D o m e n ac h , Je a n - M a r i e . La p r o p a g a n d e p o l i t i q u e , n . 4 4 8 , 1 9 6 5 , p .2 5 . PU F [ Co l. Q u e
sais- je ?] .
7 6 . Ib i d ., p . 2 6 .
7 7 . Cf . Tch ak h o t in e , Se r g e . Le v i o l d es f o u l es p a r Ia p r o p a g a n d e p o l i t i q u e . G a l l i m a r d , 1 9 6 3 . A
t r ad u ção b r a sile ir a d est e liv r o (Ci v il i za ç ã o Br a si le ir a ) f o i r e t ir a d a d e c ir c u la ç ã o e m 1 9 6 8 p elo
re g im e m ilit ar .

76
açúcar ao som repetido de um a buzina, o cão continua a salivar. N u m terceiro
m om ento, apenas buzinando, sem m o strar o açúcar, o cão salivará tam bém .
A continuação da experiência sem o “agente condicional sim ples” (o açú ­
car), m as com o “agente condicional co m p lex o ” (a buzina) e n um ritm o re ­
gular, não provocará nenhum aum ento de salivação, m as sim inibição das
funções reflexas, capaz de criar um estado de narcose.
N a propaganda nazista, os agentes condicionais sim ples eram as de­
m onstrações de poder m ilitar. C om plexa era a vasta gam a de recursos sim bó­
licos aplicados nas m anifestações (bandeiras, estandartes, em blem as, u nifor­
mes, cânticos, saudações, frenesi corporal, etc.) e nos m eios de com unicação
(rádio, teatro, cinem a, jornais). Todos estes recursos obedeciam à sintaxe do
espetáculo, isto é, da encenação suscetível de cativar ou distrair u m público
determinado. E este é um tipo de jo g o cujo m aterial básico é a em oção.
Esse tipo de propaganda política, bastante testado nas prim eiras ditad u ­
ras tecnológicas (nazism o, stalinism o e fascism o), m as hoje anacrônico, tem
função pioneira e experim ental na aproxim ação entre estética, tecnologia e
controle político das massas. Foi o prenúncio da hegem onia da em oção sobre
a razão na esfera pública da sociedade burguesa - igualm ente, a prevalência
do particular sobre o geral e do subjetivo sobre o objetivo - com o um a carac­
terística fo rte da m o d ern a so cied ad e de m assas, m aio r do que o seu re s tri­
to uso político. Registra-se, porém , um a m udança im portante nesse estado
de agregação da pluralidade que se vem designando com o massa : “A s m as­
sas atuais pararam essencialm ente de ser m assas de reuniões e ajuntam entos;
elas entraram num regim e no qual o caráter de m assas não se expressa m ais
na reunião física, m as n a participação em program as de m eios de com unica­
ção de m assa”78. H averia, assim, um a espécie de continuidade funcional en­
tre o culto pelas m assas ao Schwãrmer ou ao líder m agnetizador (esfera típ i­
ca da propaganda política) e o culto às grandes vedetes da indústria do en ­
tretenim ento, onde prevalecem a p ublicidade e o marketing.
H oje se busca estabelecer um a distinção técnico-profissional entre p ro ­
paganda e publicidade, m as se trata na verdade de brotos de um a m esm a
raiz (há inclusive indicações de que a publicidade am ericana possa ter in ­
fluenciado a propaganda nazista), apenas com roupagens diferentes. A clás­
sica propaganda política, de esquerda ou de direita, ainda inscreve em seus
enunciados a roupagem de “universais” , entendidos com o dinâm icas de

7 8 . Slo t e r d ijk , Pe t e r . O d e sp r e z o d a s m a ssa s - En sa i o so b r e l u t a s cu l t u r a i s n a so ci e d a d e m o d e r ­


n a . Est a çã o Lib e r d a d e , 2 0 0 2 , p . 1 9 - 2 0 .

77
realização p lan etária de idéias ilum inistas. A pu b licid ad e, p o r sua vez, v es­
te-se com p ad rões de un ifo rm id ad e, que n ad a têm a v er co m ideais univer-
salistas, e sim com estratégias de m ercado globais. N o uso com um da lín­
gua portu g u esa, as duas palavras ainda são sinônim as. N a prática, tudo isso
se deslocou e se concentrou poderosam ente nos m ecanism os retóricos e
em o cio n alistas da m ídia, que funciona com o u m a espécie de sism ógrafo
não apenas dos p o ntos rítm icos n a superfície do cotidiano social, m as tam ­
b ém das inquietações, sobressaltos e desejos individuais. Isto já estava cla­
ro m uito antes do nazism o, aliás, ju n to aos p rim eiro s especialistas em con­
sum o n o rte-am erican o s, a exem plo de E d w ard B am ay s, sobrinho de Freud,
que c o m e ç o u a d is s e rta r, n a d é c a d a d e 2 0 , p a ra in d u s tr ia is e p u b lic itá ­
rio s so b re o caráter limitado das necessidades e o ilim itado dos desejos. U m a
cam panha p u b licitária p o r ele o rientada (o cigarro com o sím bolo da em an­
cipação fem inina, p o r sua form a fálica) deu o sinal de p artid a p ara o consu­
m o de tabaco pelas m ulheres no rte-am erican as79.
A p u b licid ad e realiza hoje, diariam ente, tudo aquilo que pontuava os
m om entos excepcionais da v elh a p ro paganda política. É viável a analogia
com m ecanism os do nazism o: “H itler reage às vibrações do coração h um a­
no com a d elicadeza de um sism ógrafo... e isso perm ite-lhe, com um a certe­
za que n enhum dom consciente p o d eria lhe outorgar, agir com o um alto-fa­
lante que p ro clam a os m ais secretos desejos, os m enos perm issíveis instin­
tos, os sofrim entos e as revoltas pessoais de um a nação inteira”80. E m ou­
tras palavras, tirando de si m esm a os m ateriais para a construção de um “eu
ideal” , a m assa fazia-se sujeito de um a vontade poderosa ao fundir-se im a-
g inariam ente, n u m plano de banalidade e m ediocridade, com a figura de
um “ igual” , venerado com o líder.
Isto levanta o inevitável ponto de dúvida sobre o “extraordinário” dos
dotes oratórios do líder do III R eich: ele, n a verdade, não passava de um a
espécie de “canal sinergético” com as m assas, ou seja, um Schwàrmer que
dizia aquilo que o seu público desejava escutar. N ada de dons oratórios ex­
traordinários, nem m esm o da hip ó tese do h ip n o tizad o r e seu objeto fasci­
nado, a m enos que se conceba a hipnose com o um a “com unhão” . A platéia
alem ã identificava-se tanto com o Führer quanto um a audiência pode iden-
tificar-se com a sua m ídia, a tal ponto que um term o faz curto-circuito com
o outro, bloqueando-se quaisquer funções críticas.

7 9 . C f . G o r z , A n d r é . O p . c i t ., p . 4 8 - 4 9 .
8 0 . La n g e r , W a lt e r . O p . c i t ., p . 1 7 4 .

78
D iz Sloterdijk: “O segredo do Führer de antes e dos astros de hoje con­
siste no fato de que são tão sem elhantes aos seus m ais apáticos adm iradores
com o não o ousaria supor qualquer envolvido. [...] N o que diz respeito às
qualificações de A d o lf H itler, os resultados são conhecidos: na m edida em
que se entregava com o líder, ele não era absolutam ente um contraente d es­
tacado das m assas p or ele conduzidas, m as o seu subordinado e sua essên­
cia. Ele possuía quando queria a ordem im perativa da vilania. E le não en ­
trou em cam po em função de algum a extraordinariedade, m as p o r sua ine­
quívoca rudez e pela m anifestação de sua trivialidade”81.
P ersuadir, em ocionar, abrir os canais lacrim ais do interlocutor por
m eio do apelo d esabrido à banalidade são recursos centrais da retórica pro-
pagandística, aperfeiçoada pela publicidade e pelo marketing de hoje. ,A di­
ferença p ara com o passad o é que, agora, sob a égide da m ídia, o sism ógra-
fo tam b ém produz o abalo “sísm ico” , ou seja, a m ídia não se define como
m ero instrum ento de registro de um a realidade, e sim com o dispositivo de
produção de u m certo tipo de realidade, espetacularizada , isto, é prim o r­
d ialm ente produzida p ara a excitação e gozo dos sentidos. C om a m ídia, o
sísm ógrafo e o sism o são a m esm a coisa.
M as esta identificação produz um novo tipo de realidade, que já não mais
se presta ao tipo de ju lgam ento ético-político restrospectivam ente aplicável
à conjuntura nazista. O “ artifício” da publicidade e da mídia, com todas as
suas am bigüidades no plano dos valores, converte-se num a espécie de “ter­
ceira natureza” do hom em , progressivam ente aceita com o plenam ente so­
cial e em estreita ligação com a estética.

O esp etá cu lo com o realid ad e

R ealizando o esforço teórico de englobar cultura, m entalidade e em o­


ção pelo viés do espetáculo, D ebord foi o prim eiro a apresentar um a visão
original dessa nova conjuntura histórica82. É certo, porém , que B enjam in já
havia cham ado a atenção para o fato de que, em conseqüência de um a re­
presentação “coisista” (o ponto de vista que leva a consciência culta a iden­
tificar e a colecionar os fatos da história e as criações da hum anidade sob a
form a de coisas) da civilização, “as form as de vida nova e as novas criações

8 1 . Sl o t e r d i j k , Pe t e r . O p . c i t ., p . 3 0 - 3 1 .
8 2 . C f . D e b o r d , G u y . A so ci e d a d e d o e sp et á cu l o . Co n t r a p o n t o , 1 9 9 7 . A p r im e ir a e d iç ã o f r a n c e ­
sa d est e liv r o é d e 1 9 6 7 .

79
de base econômica e técnica que nós devemos ao século passado entram no
universo de uma fantasmagoria”83.
A fantasmagoria é explicada por Benjamin como uma “iluminação”,
tanto ideológica como “na im ediatez da presença sensível” : as exposições
universais, as grandes transformações urbanísticas, as galerias ou “passa­
gens”, o imaginário espetaculoso do mercado. A fantasmagoria é, assim, o
germe de um novo tipo de espetáculo, inerente à idealização do valor de tro­
ca das mercadorias pelas exposições universais. A identificação divertida e
prazerosa das massas com esse valor de troca abre caminho para o adven­
to do consumo como uma forma nova, “fantasmagórica” e fetichista de re­
lação social.
Essa relação social é moldada pelo mesmo investimento afetivo das
massas que as tom a receptivas à velha propaganda política e à publicidade
contemporânea. Debord concebe duas formas de espetáculo: o concentra­
do, típico do stalinism o e do nazism o, em que o Estado e o partido políti-
^ co dominante fazem um uso propagandístico dos meios de comunicação e
^ das grandes manifestações públicas; o difuso, característico da sociedade
de massa contemporânea, em que o mercado usa publicitariamente a mídia
para consolidar o fetichismo da mercadoria.
Evidentemente, o espetáculo é um a elaboração socialm ente relevan­
te desde a Antiguidade, em qualquer que seja o complexo civilizatório. Os
gregos valorizavam seus jogos olímpicos, seus festivais de poesia trágica e
seus embates retóricos na praça pública. Os rom anos, suas ofertas de pão
e circo, seus desfiles e monumentos imperiais. O mesmo se dá na Idade
Média com as encenações da Igreja, assim como na aurora da modernidade,
com os espetáculos como parte das estratégias monárquicas de poder. Ma-
quiavel tinha plena consciência da importância política do espetáculo.
Entretanto, para Debord, certamente movido pelas concepções vincula­
das à Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, M arcuse e outros) no sen­
tido de uma sociedade regida por um tipo de “administração total”, o espe­
táculo converte-se num conceito unificador de uma enorme variedade de
fenômenos, sob a égide do tecnocapitalismo ou da sociedade de mercado
global. Trata-se, em seus próprios termos, por um lado, do momento histó­
rico em que “o consumo atingiu a ocupação total da vida social”; por outro,
do advento da exploração psíquica do indivíduo pelo capital - ou do que se
vem chamando hoje de exploração do valor-afeto.

8 3 . Be n ja m in , W alt er . Pa ris, ca p i t a le d u XIXe si ècl e. A l li a , 2 0 0 3 , p . 8 .

80
C onfigura-se, assim , o espetáculo com o um a v erdadeira relação social,
constituída pela objetivação da vida interior dos indivíduos (desejo, im agi­
nação, afeto), graças a im agens orquestradas p or organizações industriais,
, ^ dentre as quais se im põe contem poraneam ente a m ídia. A im agem -espetá-
culo resulta dessa operação com o um a espécie de form a final da m ercado­
ria, que investe de form a difusa ou g eneralizada a tram a do relacionam ento
social, reorientando hábitos , percepções e sensações. U m a grande diversi­
dade de aspectos da vida social - da alim entação à política e ao entreteni­
m ento - é ressignificada ou “colonizada” pela lógica do espetáculo, graças
a essa reorientação intelectiva e afetiva.
Hábito (do latim habitus , por sua vez tradução do grego skhema , que
significa “ form a exterior”) é essa disposição estável adquirida pelo indiví­
duo e incorporada a seu m odo de ser com o algo que ele “tem ” ( habere , ha­
bitus) e persiste, a fim de adaptá-lo às circunstâncias de seu am biente. Os
hábitos, em suas diversas m odalidades, ativas e passivas, constituem a m o­
ralidade, os m odos de viver os sentim entos e o exercício social das faculda­
des intelectivas e afetivas de um indivíduo.
Percepção é a intuição prim eira de um conjunto ou um todo exterior ao
sujeito, a partir de um a im pressão sensorial e graças a um a estrutura especí­
fica, sem pre na dependência de um sentim ento de realidade - senão ocorre
a alucinação, que é um a percepção sem objeto real.
Sensação define-se com o um passo à frente da percepção no conheci­
mento de um objeto, porque, enquanto “form a da intuição” (K ant), é a apre­
ensão de um a qualidade do todo, independentem ente do conjunto, assim
como quando se sente o amarelo na asa de um a borboleta. A sensação é sub­
jetiva, mas im plica um a análise.
A influência da im agem sobre essas operações do psiquism o é com pre­
ensível quando se leva em consideração que ela é igualm ente um a dessas
operações. Trata-se, com efeito, da representação interna de um objeto con­
creto, form ada em sua ausência. Os escolásticos cham avam -na de “ fantas­
m a” . Em termos objetivos, m ais fam iliares ao senso com um , im agem é a re­
produção externa de um objeto percebido pela vista. D ebord insiste particu­
larmente no aspecto visual e objetivo da im agem , considerando que a visão
é o sentido hum ano privilegiado pela m odernidade, em detrim ento, por
exem plo, do tato.
É preciso, no entanto, levar em séria consideração a im agem subjetiva
ou interna, uma vez que “ im agem ” faz referência não apenas ao sentido da
visão, mas tam bém a padrões mentais articulados com qualquer modalida-

Kl

\ m f •Á o
de sensorial, como, por exemplo, um a im agem auditiva. E m bora diferindo
essencialmente da sensação, a im agem subjetiva a esta se assem elha em al­
guns aspectos, como o das mesmas reações diante de um objeto ou o do pro­
longamento im agético da sensação. Assim, as im agens internas podem ser
visuais, auditivas, gustativas, olfativas e táteis.
N o sentido do tátil e do olfativo cam inha a análise sem iótica de G rei-
mas sobre o fenôm eno da apreensão sensível, com entada por Fabbri: “Para
a exploração estética, G reim as retom a e discrim ina as baterias dos senti­
dos, repassa fenom enologicam ente a estratificação (fílogenética?); inclui
(se não enumera) as traduções estésicas. Parece-nos que, diferentem ente de
Merleau-Ponty, valoriza o “áptico” contra o óptico, põe o acento no olfato e
no tato muito mais do que no mais intelectual dos sentidos: a visão. N o tato,
em particular, por sua qualidade de percepção gestáltica e de im aginação
material (intimidade e densidade, compacidade e textura); por seu valor sen­
sual (sensual é o sensível que culm ina no tangível). E, sobretudo, porque no
tato coincide a parábola da paixão e da ação, do autoposicionamento e da au­
to-afirmação, assim como da intim idade intersubjetiva”84.
A esse propósito, Jeudy reitera a tradição do ensinam ento psicológico
segundo o qual o gosto e o tato são geralmente induzidos por im agens su­
gestivas. Especulando, porém , sobre a dom inância da arte do toque na cul­
tura japonesa a pretexto de um a leitura crítica de A casa das belas adorme­
cidas', de Kawabata, ele arrisca a hipótese de que a im agem possa ser ape­
nas um sinal, “apenas o m om ento de fraqueza na apreensão estética do cor­
po do Outro”85. O texto do escritor nipônico descreve o prazer dos velhos
que se deitam com jovens belíssim as, deixando entrever que, mesmo sem
que se realize o ato sexual, o choque entre os sentidos provoca um a sensua­
lidade extrema.
Comenta o sociólogo: “N a obscuridade, a presença do jovem corpo fe­
minino é vivida pelo velho ao ritm o das sensações táteis, olfativas, auditi­
vas, que não são mais subordinadas ao poder único da visualização. N ão se
pode pensar que tais sensações estão ligadas a im agens que invadiríam o es­
pírito dos velhos, como as lembranças ou as visões incongruentes. E pró­
pria ligação que, em perigo, provoca um prazer estético. Os velhos não to­
cam as jovens. [...] Eles não esperam nada e esperam tudo do nascimento
interno de suas sensações. [...] O desaparecim ento da relação entre aquele

8 4 . Fab b ri, Pao lo . In : In t r o d u çã o . C f . D a i m p er f ei çã o , d e G r e i m a s, A l g ir d as Ju li e n . H a c k e r ,


2002, p. 100.
8 5 . Jeu d y, H en r i- Pier r e. O co r p o co m o o b jet o d e a r t e. Est ação Lib e r d ad e , 2 0 0 2 , p . 9 6 - 9 7 .

82
que vê e aquele que é visto possibilita um a estranha fusão estética (no senti­
do grego de aisthésis), à revelia de qualquer sinal de visualização do tem-
po”86.
A situação descrita im plica uma experiência de co-presença sensível de
sujeitos humanos, em que os corpos interagem epidemicamente. No que diz
respeito à “quase-presença” produzida pela mídia, tom a-se pertinente a no­
ção escolástica de im agem tátil, desde que reinterpretada como esse “sinal”
para a relação estésica, interativa dos sentidos, de que fala Jeudy. É aqui
oportuno o registro da acurada observação de Marshall M cLuhan no sentido
de que médium eletrônico é tátil87. É escasso, quase nenhum, o esclarecimen­
to pelo teórico canadense de sua própria observação, mas não lhe faltaram in­
terpretações. Um bom pioneiro foi Baudrillard, para quem, na era das gran­
des tecnologias eletrônicas da comunicação, as pessoas estão mais próximas
do universo tátil88 do que do visual. N a ordem do visual, é maior a distância
entre o estímulo e a reação, dando margem ao intelectualismo na apreensão
perceptiva da realidade. Afirma ele: “No momento em que o tato perde para
nós o seu valor sensorial, sensual (“o tato é mais uma interação dos sentidos
do que um simples contato da pele e de um objeto”), é possível que ele volte a
ser o esquema de um universo da comunicação - mas como campo de simu­
lação tátil e tático, onde a m ensagem se faz “m assagem ” , solicitação ten-
tacular, teste. Por toda parte, você é testado, tateado, o método é “tático”, a
esfera da comunicação é “tátil”. Sem falar da ideologia do “contato”, que
sob todas as suas formas visa a substituir a idéia de relação social”89.
^ • De fato, quando se olha de perto o funcionam ento do sistem a publici­
tário, não se demora a perceber que a construção de um mundo im aginário
(por fantasia e romance) ao redor dos produtos anunciados é ao mesmo tem ­
po um laboratório sub-reptício em que se experim entam comercial e politi-

8 6 . Ib i d .
8 7 . D e r r ick d e Ke r ck h o v e , co n h ecid o e p íg o n o c a n a d e n se d e M c Lu h an , d e se n v o lv e em seu liv r o
A p el e d a cu l t u r a (Reló g io D ' Á g u a Ed it o r e s, 1 9 9 7 ) e st a h ip ó t e se , p a r a a q u al Je a n Ba u d r illa r d
ch a m a v a a a t e n ç ã o , já e m 1 9 7 6 , n u m t ext o in t it u lad o " Le t act ile et le d ig it a l" , co n st an t e d o v o ­
lu m e L' Ech a n g e sy m b o l i q u e et Ia m o r t (G a ll i m a r d ).
8 8 . É p r eciso d e i xa r c la r o , e n t r e t an t o , q u e a t a t ilid a d e já se f a z p r ese n t e n o s a lb o r e s d a g r a n d e
ar t e p ict ó ri ca d o O c id e n t e , co m o o co m p r o v am , p o r e xe m p lo , o s af r e sco s d e Gio t t o n a f a m o sa
Ca p e l l a d eg li Scr o v eg n i, em Pád u a (It á li a ). Gio t t o p in t av a co m co r es co m o se e sc u lp isse , o q u e
lev a d e t e r m in ad as f ig u r açõ e s su a s a p ar e c e r p r o je t ar e m - se d a p ar e d e - caso d as ár v o r e s n a
ale g o r ia d a in ju st iça - , à m a n e i r a d e e sc u lt u r as. A t a t ilid a d e é a í u m efe it o d e lib e r a d a m e n t e
b u scad o . Po r o u t r o l ad o , h á q u e m p o ssa d ist in g u ir (co m o o f a z A . Rieg l n o c am p o d a h ist ó r ia d a
ar t e) en t r e u m est il o ó t i co e u m est il o t á t il , e n f at izan d o q u e o seg u n d o p r ivileg ia o co n t at o , a p r o ­
xim id ad e d as p esso as e d o s o b jet o s.
8 9 . Ba u d r illa r d , Je a n . O p . c i t , p . 1 0 0 .

83
7r

camente as aptidões dos consumidores para a conformação de um novo tipo


de subjetividade, mais com patível com a ordem do consum o. E esta com ­
patibilidade é de ordem mais afetiva do que racional, mais persuasiva do
que disciplinar, já que a persuasão ou o convencimento, recursos centrais
do mundo dos negócios, são as formas ideológicas privilegiadas na realida­
de midiática. Aí se testam identidades e, mesmo, comunidades im aginárias,
na forma de “tribos” subculturais que podem terminar correspondendo a
agrupamentos diferenciados na realidade histórica.
Uma outra interpretação, a de Kerckhove, embora pareça híbrida de
uma grande variedade de disciplinas, é basicam ente tecnoneurobiológi-
ca. Em McLuhan, o médium é entendido como forma condicionante de uma
experiência historicamente marcada. Não é um a priori kantiano (assim
como tempo e espaço são formas apriorísticas do conhecimento), já que é
capaz de interagir com o real-histórico, mas é forma de unificação da expe­
riência sensorial, uma vez que mobiliza tatilmente todos os sentidos.
Kerckhove entrega-se ao determ inism o tecnológico. N ele, perm ane­
ce como fundamental a ênfase na tatilidade, mas a “m assagem ” de que fala
o conhecido aforismo de M cLuhan (“o meio é a mensagem”, “o meio é a
massagem”) deixa de ser entendida como uma metáfora compreensiva, de
natureza socioestética, para passar a significar um efeito realista de impreg­
nação do corpo do espectador pelos signos da televisão. Toda a explicação
é orientada pela especificidade técnica do dispositivo televisivo, portanto
pela eletrônica em si mesma.
Kerckhove parte da distinção entre televisão e cinema. A imagem cine­
matográfica é um objeto externo (fotográfico, não-m ental) que, na monta­
gem, se segmenta e se cola quadro a quadro, de acordo com um roteiro pré­
vio. O processamento da imagem televisiva é parecido, mas como se cons­
titui de impulsos eletromagnéticos se aproximaria mais da música do que
dos fotogramas postos em seqüência na montagem cinematográfica. Traba­
lhando em ritmo muito rápido com as reações neurofisiológicas do especta­
dor, a televisão processaria quase-musicalmente (no sentido da aglutinação
de elementos por contigüidade harmônica, mais do que por significação) os
afetos de uma comunidade de recepção, m odulando-lhe magneticam ente
a sensibilidade.
Por isto, diz ele, “a televisão fala, em primeiro lugar, ao corpo e não à
mente”. Ou seja, o essencial dos estímulos televisivos estaria na varredura
dos elétrons que percorrem velozmente as linhas que constituem a super­
fície do vídeo. Retoma-se sempre ao aforismo mcluhaniano: o conteúdo, a
mensagem, é secundário diante do feixe de elétrons que define tecnicamen-

í
te o meio. A ausência de intervalo entre o estím ulo eletrônico e a reação psi­
cológica do espectador provocaria um tipo de interpretação das imagens no
vídeo p or um a “m ím ica sensom otora”, portanto um a reação de natureza
neuromuscular, extensiva a todo o corpo.
Parecem-nos outras, entretanto, as indicações teóricas de McLuhan.
Acentuando a interação dos sentidos, ele aborda esteticamente o conceito
escolástico de imagem tátil, isto é, a representação interna ou a forma inten­
cional de um contato físico, de natureza diferente da pura e simples sensa­
ção. A tatilidade resulta de signos que sintetizam propriedades analógicas,
programáticas e associativas, capazes de modificar ativa, cognitiva e afeti­
vamente o estado geral de consciência dos indivíduos. Não se trata de mero
efeito técnico, e sim de um jogo complexo de linguagem, em que intervém
modos de habitar, de trocar e de olhar dos indivíduos e, fundamentalmente,
da construção sociotécnica de uma espécie de corporalidade maquínica (em
que se lida mais com ferramentas do que com significações), à qual se po­
dem dar nomes como “corpo espectral” (Turing) ou qualquer outro, já que o
essencial mesmo é o funcionamento de uma esfera digital e tátil como nova
forma de vida total.
A partir daí, isto é, de um a forma organizativa baseada em tecnologia
da informação avançada, com um mesmo tipo de pressão sintática - a for­
ma global da mídia eletrônica - , as imagens evocam umas às outras por as­
sociação, combinam-se e reproduzem-se à m aneira de um vírus, perm ean­
do e oferecendo novos repertórios culturais ou “vocabulários” (lineares e
análogicos) para hábitos, percepções, sensações e práticas sociais.
Nada disto é “manipulativo”, no sentido inerente à manipulação retóri­
ca das velhas técnicas de propaganda, uma vez que a recepção dessa síntese
tátil do ethos comunitário é, em si mesma, um novo tipo de partilha social
fortemente apoiada em emoções fragmentárias. Por isto é possível à análise
sociológica valer-se de uma “categoria tátil”90 para explicar a tendência do­
minante nos fatos sociais da contemporaneidade no sentido da valorização
do corpo e de tudo que favoreça o tocar.
A tatilidade implica sem dúvida a sensação individualizada que se tem
ao tocar numa superfície, mas pode às vezes redundar numa “sensação co­
mum”, que é tanto imaginada quanto real. Cabe aí o sentido aristotélico de
aisthesis koiné, isto é, a sinestesia, que ocorre quando os diferentes sentidos

9 0 . Cf . M af f eso li, M ich el. O m i st éri o d a co n ju n çã o - En sa io s so b r e co m u n i ca çã o , co r p o e so ci a l i-


d a d e. Su lin a, 2 0 0 5 , p . 7 0 .

85
humanos interagem , à m aneira de um a com unidade de estím ulos, consti­
tuindo uma única manifestação sensível. Retomamos, aqui, portanto à idéia
de estética, mas entendendo-a como “estesia” ou prática de um tipo de per­
cepção e comportam ento prioritariamente orientado para a intuição sensí­
vel. É isto o que preside à invenção moderna na m odernidade, no interior do
espírito em que se deu a formação do Sturm und Drang , um a clara reação
dos rom ânticos ao absolutismo racionalista do Iluminismo.

T eoria do sensível

V oltam os, assim, à origem m oderna da estética (1750-1758), portanto a


A.G. Baumgarten. Com sua epistem ologia da sensibilidade, na qual o belo
- signo intrínseco do que há de verdade na sensação - teria valor cognitivo,
o inventor da estética punha-se na contramão de Kant, para quem a aparên­
cia sensível é apenas fonte (pedagógica, provisória) de saber. A beleza, se­
gundo Baumgarten, não é apenas a marca sensível da idéia, mas o único
modo possível de manifestação de determinados objetos, o que garante à
estética a sua autonom ia em termos de conhecimento. A obra de arte é uma
representação bem -sucedida e privilegiada, mas não esgota o objeto da es­
tética, que é na verdade “arte de perceber”, um a poética da percepção, por­
tanto, um modo de conhecimento do sensível em sentido amplo - a faculda­
de de sentir do sujeito humano, sem anticamente im plicada no grego aisthá -
nesthai, isto é, perceber por meio dos sentidos. Aisthesis (sensibilidade, es­
tesia), por sua vez, é tanto sensação quanto percepção sensível.
Baum garten era, como se sabe, discípulo de W olff que, em s\xà Psicolo­
gia empírica (1732), se refere ao que chamava de capacidade “inferior” do
conhecimento (a dos sentidos), em bora sem detalhá-la teoricam ente. É
esta lacuna que vBaumgarten pretende preencher ao inventar a estética em
1750 comüteona. das potências inferiores da alm a (por extensão, a teoria do
belo91) ou uma teoria da sensação e da intuição, pertencentes aos campos da
filosofia e da psicologia. Sempre mantendo, como seu mestre, esse tipo de
conhecimento num patam ar de inferioridade, ele afirma, aristotelicamente,
a existência de um vínculo entre o juízo de gosto (o judicium sensitivum, que
reconhece apenas o “individual sensível”) e a sensibilidade (aisthesis).
Sua invenção combina os diferentes sentidos de 1) lógica da capacida­
de inferior do conhecimento (fantasia, im aginação, afetos) e 2) poética filo­
sófica (lógica do conhecimento sensível), presentes na tradição filosófica

9 1 . Cf . Ka in z, Fr ied r ich . Est ét ica . Fo n d o d e Cu lt u r a Eco n ô m ica, 1 9 5 2 .

86
que rem onta a A ristóteles. Ao sistem atizar estes princípios num a teoria ou
ciência pura (<episteme), B aum garten m antém igualm ente a concepção de
um a ciência aplicada ( techné ), destinada à formação de gostos pelo desfru­
te de obras artísticas. Explica Kainz: “Para esta últim a finalidade atribuída
a tal ciência concorre, entre outras circunstâncias, a de que B aum garten a
batize com um nom e term inado em -ica. Sabe-se, com efeito, que as pala­
vras gregas com a term inação -ik (que com eçaram sendo adjetivos qualifi­
cativos do substantivo techné, como logiké, ethiké, techné) designam atitu­
des e regras da arte suscetíveis de aplicação prática, enquanto que as term i­
nadas em -ia (como filosofia, zoologia, etc.) expressam disciplinas predo-
, . ,,99
m m antem ente teóricas
A acepção literal e prim eira da estética aparece na Crítica da razão
pura , de Kant. De um m odo geral, estético é o que depende da sensibilidade
ou o que se refere à dim ensão puram ente subjetiva na intuição na represen­
tação de um objeto. A ssim, o estético não diz respeito ao conhecim ento do
objeto,_e.sim ao sentim ento que acom panha a intuição, o que liga a reflexão
estética à m etafísica e à filosofia da história na indagação sobre o sentido da
vida individual e coletiva. Este depende da faculdade do “ju ízo ”, o princí­
pio unitário de um a diversidade de fenôm enos, que não procede de concei­
tos porventura existentes do objeto nem da experiência, e sim do sentim en­
to de prazer.
Esta prem issa teórica (o juízo) para a ligação entre estética e vida está
de fato claram ente apresentada na Crítica da faculdade do juízo (Kritik der
Urteilskraft, formulada quatro décadas depois do tratado de B aum garten).
Considerando, entretanto, que a qualidade transcendental do gosto, a sua uni-
^ ^ versalidade, resulta de uma sanção do senso comum (sensus communis), Kant
encaminha-se para outra acepção, segundo a.qual os juízos estéticos são
aqueles referentes ao belo e ao sublim e na natureza e na arte. A ssim, um ju í-
- zo do tipo “esta com ida é saborosa” não é estético, por ser subjetivo e não
s; necessariam ente sancionável por um a com unidade afetiva. “Esta paisagem
y é bela”, em contrapartida, é um juízo estético, por ser reflexivo e não im pli-
/ car qualquer individualidade. O atestado de beleza é garantido por um a co-
s—munidade abstrata, isenta de conteúdos psicológicos, mas aberta ao jogo
das faculdades de entendimento e de im aginação.
Por força do influente pensam ento de K ant junto ao humanism o oci­
dental emergente, o conceito de estética centrou-se na concepção de um a 9
2

9 2 . K a in z, F. Ib i d ., p . 5 5 .

87
teoria do com portam ento contem plativo e intuitivo que se tem diante do
belo, já que este é kantianamente elevado à posição de atributo gerado por
um sentimento de satisfação desinteressada - isto é, isenta de qualquer inte­
resse prático ou teórico - e, ao mesmo tempo, autotélica, sem qualquer obje­
tivo fora de si mesma, a exemplo da atividade do jogo. A beleza, em Kant,
manifesta-se, negativamente, sem a representação de interesse, de conceito,
de finalidade, mas positivamente como objeto de um a satisfação necessária.
Pode-se perguntar se essa força ou influência da abordagem kantiana
decorrería de um a verdade inquestionável, inerente ao seu conceito de esté­
tica ou, antes, ao poder de irradiação do pensam ento de K ant dentro do
campo da filosofia. A verdade, como bem nos adverte Benjam in, “não con­
siste num a referência que encontraria a sua determ inação através da reali­
dade empírica, m as num poder que daria de início sua form a característica à
essência dessa realidade”93. Tal poder, para ele, é o do nom e, único capaz
de determ inar a m aneira como as idéias (a partir das quais se constitui o que
se convencionou cham ar de verdade) são dadas, isto é, como aparecem fora
de qualquer intenção.
Exceto por sua insistência platônica num “ser” da verdade que, por de­
pender da idéia, seria diferente da m aneira de ser daquilo que se manifesta,
Benjam in aproxim a-se bastante dos pragm atistas de hoje ao sustentar que
as idéias são dadas num m ovim ento de percepção original, onde as pala­
vras, nomeando, geram conhecimento. E ele deixa isso particularm ente cla­
ro: “N um certo sentido, pode-se perguntar se a teoria platônica das “idéias”
teria sido possível se o sentido desta palavra não tivesse levado o filosofo,
que só sabia a sua língua materna, a divinizar o conceito de palavra, a divi-
nizar as palavras: as “idéias” de Platão, se é possível arriscar este juízo par­
cial, não são no fundo nada mais que palavras ou conceito de palavras divi-
nizadas”94. Dito de outra maneira, a idéia dependería da língua, mais preci­
samente, da dim ensão simbólica ou originária da palavra.
O que estamos querendo dizer com essa referência às reflexões de B en­
jam in é que a palavra estética tem feito um trajeto triunfante na história das
idéias no Ocidente, a partir do im pulso vigoroso dado por Kant, mas que
nela nada existe de intrinsecamente verdadeiro, em termos absolutos. Assim,
à margem da estrita interpretação kantiana, perm anece igualmente um a tra­
dição de entendimento, em cujo interior a palavra estética é mais ampla do

9 3 . Be n jam in , W a lt e r . O r i g i n e d u d r a m e b a r o q u e a l i em a n d . Fla m m a r i o n , 1 9 8 5 , p . 3 3 .
9 4 . Ib i d ., p . 3 3 .

88
que a esfera do artístico e se define, em linhas gerais, com o um modo de
acolher a experiência sensível de captação dos v alo res (e, logo, um m odo
guardião do vocabulário ordenador dessa vivência), portanto com o um m o­
do não redutível aos parâm etros da experiência política, ética, religiosa, in­
telectual, etc. Em outras palavras, esse “m odo” é capaz de acolher um a teo­
ria do belo e da arte, m as igualm ente um a teoria da sensibilidade, en tendi­
da com o o conhecim ento intuitivo transm itido pelos sentidos, sem a m edia­
ção reflexiva dos conceitos.
Essa tradição de entendim ento é perfeitam ente visível quando se consi­
dera que as sugestões de B aum garten e, m esm o as de K ant em sentido lato
no século X V III (aliás, antecedidas pela de G iam batista V ico), bem com o
as posteriores de K ierkegaard - para quem a estética era indissociável da
fenom enologia da vida cotidiana - são com paráveis à do tcheco Jan M uka-
rovsky, um dos expoentes do Círculo Lingüístico de Praga, no prim eiro
quartel do século XX. M ukarovsky enfatiza que “a arte não é naturalm ente
a única portadora da função estética: qualquer fenôm eno, qualquer fato,
qualquer produto da atividade do hom em podem tom ar-se signo estético” .
Pensando em term os do funcionalism o característico da m oderna socieda­
de industrial, ele concebe a função estética com o diferente de qualquer ou­
tra, mas capaz de atuar com o dinam izadora de todas as atividades hum anas.
Em bora esta função predom ine na arte, a ela não se reduz, um a vez que in­
tervém em um sem -núm ero de atividades cotidianas95.
O italiano Pareyson propõe a noção de “form atividade”, para sustentar
que toda e qualquer operosidade hum ana, da m ais sim ples à m ais com ple­
xa, possui algo em com um com aquilo que se especifica com o arte96. F or­
m atividade é, para ele, um “fazer” que, enquanto faz, inventa o “m odo de
fazer”, portanto, um a produção que é ao m esm o tem po invenção. Em deter­
m inadas operações, a exemplo da produção de objetos, o aspecto executivo
é mais evidente do que em outras, como quando se trata de pensar ou agir.
De um a m aneira geral, porém , toda atividade que im plique um a operação
sobre a realidade requer um a form a própria. A arte é um a dessas operações
que se distingue ou se especifica, dando-se um conteúdo (a intervenção do
artista ou estilo), um a matéria (a materialidade física) e um a lei (a regra in­
dividual da obra que se realiza).
Em outras palavras, a vida, quando interrogada sobre o seu sentido, está
diretam ente ligada à estética. Outro não foi, por exem plo, o objetivo do na-

9 5 . C f . M u k ar o v sk y , Ja n . II si g n i f i ca t o d el l ' est et i c a . S. C o r d u a s, 1 9 7 3 .
9 6 . C f . Par e y so n , Lu ig i. Est ét ica - Teo r i a d el i a fo r m a t i v i t à . Bo m p ian i, 1 9 8 8 .

89
turalism o, co m seu projeto de apreender a realidade em seus aspectos im e­
diatos, com v istas a um a estetização total da vida. E precisam en te a partir
deste projeto é q ue W ilhelm D ilthey (1833-1911) dispõe-se a atualizar a re­
flexão estética, b u scando na concretude das obras dos grandes artistas-nar-
radores (G oethe, H õlderlin e outros) a tradução da experiência vivida.
D entro dessa linha de pensam ento, a p articularidade do signo estético é
a p luralidade do sentido, a polissem ia, que ju stific a tanto a abertura do sen­
tido (a po ssib ilid ad e de a obra m udar de significação ao longo do tem po)
com o a relação m utável com o m undo externo. N esta relação, o signo esté­
tico funciona com o signo de “co m unicação” , abrindo-se p ara um a sem ânti­
ca do im aginário coletivo, presente na ordem das aparências fortes ou for­
m as sensíveis que investem as relações intersubjetivas no espaço social. O
estético - m elh o r ainda, o “estésico” , p ara se desem b araçar a estética da tra­
dição filosófica de ju lg am en to de obras de arte ou m esm o industriais - ap a­
rece aí, então, com o o conteúdo afetivo da viv ên cia co tidiana97.

O sign o, a c om u n ic aç ão

M as o que é exatam ente um “signo de co m unicação”? A resposta passa


por Peirce, este sutilíssim o teórico da m ediação e da representação que o
lingüista R om an Jakobson justam en te caracterizou com o “o m ais inventivo
e universal dos pensadores norte-am ericanos, tão im portante que nenhum a
u niversidade encontrou um lugar para ele” . T rata-se de u m tópico bastante
técnico, m as que se pode tentar resum ir em algum as form ulações peircea-
nas: “U m signo, ou representamen , é algo que, para alguém , representa ou
se refere a algo em algum aspecto ou caráter. D irige-se a alguém , isto é, cria
na m ente dessa pessoa um signo equivalente, ou, talvez, um signo ainda
m ais desenvolvido. Este signo criado é o que eu cham o o interpretante do
prim eiro signo. O signo está em lugar de algo, seu objeto. E stá em lugar des­
se objeto, não em todos os aspectos, senão com referên cia a um a espécie de
idéia, que às vezes tenho cham ado de fundamento do representamen ”98.

9 7 . H á q u e m p a r e ç a a t r i b u i r a s n u a n c e s d a s n o ç õ e s d e e st é t i c a e e st e sia a o se m io t ic ist a f r a n ­
cês A lg ir d a s Ju li e n G r e i m a s e m se u l iv r o D e 1 ' l m p er f ect i o n [ Tr a d u ç ã o b r a si l e i r a : D a i m p e r f e i ­
çã o , H a c k e r , 2 0 0 2 ] . N a r e a l i d a d e , p o r é m , a d ist i n ç ã o a c o m p a n h a u m a l o n g a t r a d i ç ã o d e p e n ­
sa m e n t o , q u e r e m o n t a a B a u m g a r t e n .
9 8 . Pe ir c e , C h a r l e s Sa n d e r s. La ci ê n ci a d e Ia se m i ó t i ca . N u e v a V i sio n , Bu e n o s A i r e s, 1 9 7 4 , p .
2 2 [ Co le cció n d e Se m io lo g ía y Ep i st e m o lo g ía ] . A m a io r p a r t e d a s c it a ç õ e s d e Pe ir c e a q u i f e i t a s
p er t en ce a e st e v o l u m e . São n o çõ es b a st a n t e c o n h e c i d a s p e lo s e st u d io so s d a o b r a d e sse co r i-
fe u d o p r a g m a t ism o , m as q u e é c o n v e n ie n t e se m p r e r e p e t i r , d e v id o a seu r e f i n a m e n t o t e ó r ic o
e à s su as v a r i a d a s n u an c e s t e r m in o l ó g i c a s.

90
U m exem plo: o signo “casa” , que obviam ente está em lugar do objeto
físico (um a outra coisa, portanto), m as acentua um aspecto fundam ental da
ação de habitar, suscita para alguém (não exatam ente um a pessoa, m as o
próprio sistem a lógico da língua atuante na m ediação com unicativa) um a
interpretação, que é por sua vez um outro signo, ou “ interpretante” . Só que
esse objeto denotado pelo signo pode ser perceptível, apenas im aginável,
ou ainda inim aginável. “C om efeito, o vocábulo inglês “ fast” , que é um sig­
no, não é im aginável, dado que não é a palavra mesma a que pode ser escri­
ta em um papel ou pronunciada, m as apenas uma instância dela; e dado,
adem ais, que é exatam ente a m esm a palavra quando é escrita e quando é
pronunciada, mas, pelo contrário, é um a certa palavra quando significa “ra­
pidam ente” e outra totalm ente distinta quando significa “estável”, e ainda
um a terceira diferente quando alude à abstinência”, precisa P e irc e ".
O filósofo está aí, com o se vê, debruçado sobre as questões essenciais
da m ediação, da com unicação e da representação. M ediação é o ato o rigi­
nário de qualquer cognição, porque im plica o trânsito ou a “com unicação”
da propriedade de um elem ento para outro, por m eio de um terceiro term o.
Este terceiro é precisam ente o signo, um m eio de articular dois elem entos
diversos, por exem plo, um objeto e um a idéia interpretante. O signo é, p or­
tanto, um m eio ( médium) de co m u n icação 9
100 por to m ar possível a partilha
de um a experiência: “U m signo, por outro lado, na m edida em que cum pre
a função de signo, e nenhum a outra, conform a-se perfeitam ente à definição
jde m eio de com unicação. Ele é determ inado pelo objeto, m as em nenhum
outro respeito do que aquele que o capacita a agir sobre a quase-mente in­
terpretante; e quanto m ais perfeitam ente ele cum pre a sua função com o sig­
no, m enos efeito ele tem sobre essa quase-mente , senão a de determ iná-la,
com o se o próprio objeto tivesse agido sobre ela. A ssim , depois de um a con­
versa com um , em que funcione um tipo de signo m aravilhosam ente p erfei­
to, sabe-se que inform ação ou sugestão foi transm itida, mas não se é abso­
lutam ente capaz de dizer em que palavras ela foi transm itida, e freqüente-

9 9 . Ib i d ., p . 2 3 .
1 0 0 . É p r e ciso n ão co n f u n d ir e sse t e r m o p e i r c e a n o co m q u a l q u e r d isp o sit iv o d e m íd i a . Co m o
e xp lic a m Sa n t a e l l a e N ò t h , " o sig n o co m o m éd i u m d e c o m u n ic a ç ã o n ã o se c o n f u n d e co m a q u i ­
lo q u e , d e sd e a s p r im e ir a s d é c a d a s d o sé c u lo XX, p a sso u a se r c h a m a d o d e m e io s d e c o m u n i ­
c a ç ã o , p o is e st e s, n a r e a li d a d e , r e f e r e m - se a o s v e íc u l o s d e m a ssa : j o r n a l , r á d i o , c in e m a , t e l e ­
v i sã o , e t c. O r a , v e íc u lo s e m si n ã o c u m p r e m f u n ç õ e s m e d i a d o r a s. Essa s f u n ç õ e s sã o d e se m p e ­
n h a d a s p elo s f lu xo s d e sig n o s q u e n e le s c ir c u la m " (Sa n t a e l l a , Lú c ia & N õ t h , W in f r i e d . C o m u n i ­
ca çã o e se m i ó t i ca . H a c k e r , 2 0 0 4 , p . 2 0 2 - 2 0 3 ).

91
mente se pensará que a transmissão se deu em palavras, quando de fato se
deu em tons ou em expressões faciais” 101.
A mediação é, desta maneira, um a com plexa operação sem iótica - de-
signável também como semiose - , que articula relações de determinação e
de representação. Retom ando o mesmo exemplo de há pouco, o objeto físi­
co “casa” determina o signo (ou representamen) “casa” que, por sua vez,
representa o objeto. Para tanto, é preciso um terceiro elem ento, o interpre-
tante, suporte lógico da representação. Trata-se, portanto, de uma tríade que,
logicamente articulada, m ovim enta os com ponentes do signo, por meio de
um processo dinâmico capaz de levar um signo a desdobrar-se em outro e a
constituir a ação mediadora da semiose.
A semiose é possibilitada pelo a priori de um comum , pela pressuposi­
ção de uma dim ensão comunitária, habitada por um a quase-mente. Este ter­
mo é um refinam ento teórico peirceano, que visa a descrever não exata­
mente o falante de carne e osso participante de um ato com unicacional, e
sim o “lugar”, a configuração topológica na tram a das relações de sentido
em que se dá a interpretação. Deste modo, o conceito de quase-mente - que
não deixa de evocar as regras comunitárias denom inadas “jogos de lingua­
gem” por W ittgenstein - converte a determ inação pessoal do falante em
pura determinação sígnica, de natureza lógico-interpretativa. Ou seja, um a
espécie de “mente com unitária”, definida por Peirce como um “interpretan-
te comunicacional” ou, mais apuradam ente, um commens (abreviação lati­
na de “mente comunitária”).
Explica ele: “H á o Interpretante Intencional, que é um a determinação
da mente do falante; o Interpretante Efetivo , que é um a determinação da­
quela mente dentro da qual têm de se fundir as mentes do falante e do intér­
prete, para que ocorra qualquer comunicação. Esta mente pode ser chamada
de commens. Ela consiste em tudo que é, e deve ser, bem entendido entre
falante e intérprete no início, de modo que o signo em questão possa preen­
cher a sua função” 102.
Peirce está aí descrevendo o processo individualizado da comunicação
lingüística. Mas ao invocar o conceito de comunidade (ação recíproca entre

1 0 1 . Peir ce, C .S. M s. 2 8 3 , 1 9 0 6 : 1 1 7 - 1 2 0 . Est a p assag e m , f r ag m e n t o d o s m an u scr it o s m ic r o ­


f ilm ad o s d e Peir ce exist en t es em in st it u içõ es n o r t e - am e r ic an as co m o o Pei r ce Ed it io n Pr o ject
(In d ian a U n iv e r sit y , In d ian áp o lis), fo i t r an scr it a p elo p e sq u isad o r e p r o f esso r u r u g u aio Fe r n a n ­
d o A n d ach t , q u e a t em co m o " a m elh o r d escr ição d o p ro cesso co m u n icacio n al q u e já l i" .
1 0 2 . Peir ce, C .S. Tr ech o d e car t a d e Peir ce à ló g ica V ict o r ia Lad y W elb y . In : Sem i o t i cs a n d si g n i -
fi cs - The Peir ce- W elb y co r r esp o n d en ce, C .S. H ar d w ic k (e d ,). In d ian a U n iv e r sit y Pr ess, 1 9 7 7 .

92
agente e paciente, portanto com unicação enquanto ser-em -com um , vincu-
lação fusional entre um eu e um outro), ele dá m argem à expansão de seu
escopo para a dim ensão coletiva, onde a vinculação aparece com o a radica-
lidade da diferenciação e da aproxim ação entre os seres h u m a n o s103, e daí
com o a estratégia sensível que institui a essência do processo comunicati­
vo, este que John D ew ey cham ava de “interação co m u n al” . Se reinterpre-
tarm os a argum entação peirceana dentro de u m a perspectiva genealógica de
constituição do grupo social organizado, poderem os inferir que, d a v in cu la­
ção ou do entrelaçam ento econôm ico, político, cultural e afetivo que co n s­
titui o ser social, o socius - em outras palavras, a condição de po ssib ilid ad e
do sujeito - , surgem as instituições (nação, fam ília, associações diversas,
etc.) capazes de funcionar tanto com o pano de fundo quanto com o o p erad o ­
res da identidade hum ana. São vinculativos os discursos, as ficções e os m i­
tos de fundação da com unidade h istórica que preside às identificações -
com o Estado-N ação, com os valores (com unidade, fam ília, trabalho, etc.)
e com o ethos ou atm osfera em ocional coletiva.
V incular-se (diferentem ente de apenas relacionar-se) é m uito m ais do
que um m ero processo interativo, porque p ressupõe a inserção social e ex is­
tencial do indivíduo desde a dim ensão im aginária (im agens latentes e m an i­
festas) até às deliberações frente às orientações práticas de conduta, isto é,
aos valores. A vinculação é propriam ente simbólica , no sentido de um a exi­
gência radical de partilha da existência com o O utro, portanto dentro de um a
lógica profunda de deveres para com o socius , p ara além de q u alquer racio-
nalism o instrum ental ou de qualquer funcionalidade societária.
Se, em term os puram ente lógicos, a com unidade é, segundo K ant, “ a
causalidade de um a substância na determ inação das outras, em toda recipro­
cidade” , nos term os da habitação hum ana num território, essa noção é aplicá­
vel à possibilidade que tem o indivíduo de pôr-se em disponibilidade para
algo em com um - concretam ente, para o valor ou a troca num a relação geral
de cada u m com todos os outros. A ssim com o no caso da com unicação lin-
güística, a com unidade, enquanto idéia originária da diferenciação e da apro­
xim ação, é a questão subsum ida no conceito de com unicação coletiva.
A p alavra latina communitas , referida à idéia de pôr um a tarefa em co ­
m um , im plica o coletivo, oposto ao particular. O ser-em -com um da com u­
nidade é a partilha de u m a realização, e não a com unidade de um a substân-

1 0 3 . C f . So d r é , M u n iz. A n t r o p o l ó g i ca d o e sp el h o - U m a t eo r i a d a c o m u n ic a ç ã o l i n e a r e em r e d e
(V o ze s, 2 0 0 2 ), o n d e d e se n v o lv e m o s a q u e st ão e p ist ê m ic a d a c o m u n ic a ç ã o .

93
cia. Em outras palavras, com u n id ad e não é o m ero estar-junto num territó­
rio, com o num a aldeia, num bairro ou num gueto, e sim um com partilha­
m ento (ou um a troca), relativo a u m a tarefa, u m munus, im plícito na obriga­
ção o rig in ária ( onus ) qu e se tem p a ra com o O utro. O s in d iv íd u o s d iferen ­
ciam -se e identificam -se dentro da dinâm ica de reconhecim ento e acatam en­
to dessa dívida sim bólica.
Situando o commens ou “m en te co m u n itária” no âm ago do processo
com u n icacio n al-lin g ü ístico , P eirce assinala a rad icalid ad e sim bólica da
vinculação. R ev estid o da fo rm a -sig n o , n e c e ssá ria aos có d ig o s de fu n c io ­
n am en to da co m u n icação hu m an a, o vín cu lo faz ap arecer o sentido, que é
algo destacado do “o b jeto ” ou d a co n fig u ração m aterial, e se co nverte em
realidade in tersu b jetiv a e social. E sta, p o r su a vez, in v estid a das caracterís­
ticas do signo (d a lin g u ag em , p o rtan to ), m an ifesta-se com o um co n ju n to de
in stituições e práticas, in terlig ad as p o r u m a red e sutil de sen tid o , a que se
p o d e d ar o n o m e de cultura.
Subjaz à com unicação hum ana, portanto, u m a realidade m uito m ais com ­
p lex a ou rad ical do que aq u ela que se ap resen ta nos d isp o sitiv o s técn ico s
c o n h ecid o s com o “m eio s de c o m u n icação ” , en ten d id o s co m o os m o d em ís-
sim os ap arato s que, asso cian d o te c n o lo g ia e m ercad o , a g ilizam o p ro cesso
in terativ o dos d iscu rso s sociais.
O que P eirce tem em v ista é o signo n a a cep ção do q ue K an t en ten d e
com o “ facu ld ad e de d esig n ação ” (.Bezeichnungsvermõgen ), isto é, as fo r­
m as lin g ü ísticas que p o ssib ilita m a c o m p reen são en tre os q u e falam e o u ­
vem . A ssim , o in terp re tan te E fetiv o o u quase-m ente , q u e ele m e n c io n a p ara
in d ic a r a fu são en tre falan te e intérp rete, é fu n ção do v ín cu lo , m a rc a de u m a
estru tu ra o rig in á ria de co m p reen são , e não d e q u a lq u e r in te ra tiv id a d e in s­
tru m en tal. P o r isso, às v ezes, d ep o is de u m a b e m -su c e d id a c o n v e rsa c o ­
m u m , p o d e n ão se sa b e r se u m a in fo rm ação fo i tra n sm itid a p o r p a la v ra s ou
p o r tons e ex p ressõ es faciais. O signo, im p rescin d ív el à rep resen tação , é ta n ­
to d a o rd e m do in telig ív e l q u an to do sen sív el, é c o n sc iê n c ia e c o rp o , q ue
d e m a n d a m o su je ito n a to ta lid a d e d e su a v in c u la ç ã o so c ia l, n a r a d ic a lid a ­
d e d e u m a co m u n h ã o co n creta, p a ra qu e o se n tid o p o ss a em erg ir.

O c o m u m e su a s p r ó te se s

U m o u tro tip o d e “ c o m u m ” , am p lia d o a té o n ív e l d a p ro d u ç ã o c a p ita ­


lista , a p a re c e m o d e m a m e n te na esfera p ú b lic a lib e ra l-b u rg u e s a , h is to ric a ­
m e n te c o n stitu íd a sob o signo da u n iv e rsa lid a d e a b stra ta d e su a s in stitu i-

94
Còesicu. A partir do século W l l l europeu, a culmra ocidental, garantida
pela suposta universalidade da Razão. assenta na cidadania - o entrelaça­
mento social e político que transfere do monarca para a entidade chamada
" p o v o " a ideia de poder soberano - a sua forma principal de coesào social.
O trabalho e o grande atrator ou operador desse novo tipo de ordenamento,
que Hegel chamaria de ò\»7rgc'n7c^cyc'Sc'íV^\v;.:/; ou "sociedade civil", opos­
ta à . à rale. O bem publico ou comum e apanagio da cidadania. E para
a realização desse bem. Kant ja havia considerado a perspectiva de uma
"sociedade civil ética ^:hisKhbur^criick<r ücscüsch^fí ao lado da "socie­
dade civil ju n d ica" {rech;bürgcrIichc ucsellsckjfèX voltada para a preven­
ção do mal e realização do bem. entendido como concretização das "puras
leis da virtude" Republica política e republica enca deveríam, assim, influ­
enciar-se recipavam ente.
Embora esteja contida na pala\xa "publico" a ideia de uma coisa co­
mum. como em rcs o publico assoe ia-se pa^gressivamente na his­
toria ocidental ao que ocupa o lugar da vinculacão comunitária, ou seja. o
Estado. Este leva ao entendimento de comunidade como sujeito e substân­
cia (território, aldeia, parem esc o \ ao mesmo tempo em que procura neutra­
lizar a troca simbólica, visceral e concreta. Assim e que o publico e o políti­
co estão estreiramente ligados, desde as suas origens.
O publico forma-se nos modos de organização da cidadania e de auto-rc-
presentacão da sociedade, nos modos como ela deseja perceber-se e se tomar
visível. Ora. o publico de hoje - e. conseqüentemente. as formas hegemôni­
cas de manifestação do "comum" - vem sendo afetado pela tone mudança na
consciência histórica enquanto manifestação de um sentido determinado do
ser humano ou enquanto expressão de um poder da representação. Isto leva ã
hipótese de que ja se esgotou o entrelaçamento social, a coesão por cidadania
e sociedade civil modeladas pela Revolução Francesa.
È uma grande transformação, que privilegia a dim ensão técnica do ho­
mem. em tal magnitude que a forma da consciência contemporânea e fim-
damentalm ente tecnológica, o que equivale a dizer que o relacionamento
do sujeito humano com a realidade obriga-se hoje a passar pela tecnologia,
em especial as tecnologias da informação, em todos os seus modos de reali­
zação. Para este sujeito, e o mercado global - isto e. sem fronteiras - e não
mais o Estado-Nacào. que fornece os principais cenários da identidade.
Enfraquece-se a ficção histórica da cidadania política e emerge a figura do 1 4
0

1 0 4 . C f . So d r a M u n e.. O p . d l .. IV cap

05
consum idor com o novo sujeito social. Este, com o bem observa G orz, “foi
concebido desde a origem com o o contrário do cidadão; com o o antídoto da
expressão coletiva de necessidades coletivas, contrário ao desejo de m u ­
dança social, à preocupação com o bem com um ” 105.
Por que isso ocorre? C ertam ente porque, com o capitalism o transnacio-
nal e o m egaincrem ento tecnológico, am plia-se o m undo. A lei de organiza­
ção estrutural (o capital) planetariza-se, subm etendo direta ou indiretam en­
te outras formas de regência da realidade que, um a vez fora da realidade ca­
pitalista, destinam -se à m iséria e à fome. N essa conjuntura, o com um é pro­
duzido por tecnologias de distribuição de inform ação e p o r organizações de
mídia num espaço sem território, isto é, sem a predom inância de m arcações
hum anas ou sim bólicas.
Esse novo espaço é configurado prim ordialm ente pelo m ercado, cujo
poder, coadjuvado pela mídia, apequena o poder do Estado nacional. T ra­
ta-se de um espaço que se am plia tanto horizontalm ente quanto p o r dupli­
cação, na m edida em que cria realidades paralelas ou virtuais p o r meio de
dispositivos de alta tecnologia. O “com um ” é am pliado p o r com putação, te­
lecom unicações e mídia, aum entando a exterioridade técnica do hom em e
reduzindo a dim ensão do sim bólico e da linguagem .
Este não é um fenôm eno estranho ao pensam ento ocidental. Indicativa
disto é a frase de H egel - “der Mensch ais Geist verdoppelt sicK \ ou seja, “o
homem enquanto espírito ou consciência se duplica” 106 - em que o pensador
sustenta que o homem existe primeiramente para si, como objeto natural, mas
logo depois existe para a Vergegenstândlichung (“objetualização”), quer dizer,
para a criação de artifícios ou objetos transformadores da natureza. O artifício
converte-se numa espécie de nova natureza, agora environment habitual e do­
méstico do indivíduo. Cada nova técnica amplia, por extensão ou por duplica­
ção, o espaço humano, aumentando a espessura do envoltório protetor ao re­

1 0 5 . G o r z , A n d r é . O p . c i t .r p . 4 9 . D e f a t o , f u n d a r a c id a d a n i a n o co n su m o (t e n t at iv a d e u m
n o vo t ip o d e b o a co n sciê n cia t e cn o ló g ica) é a p e n a s u m a d as v á r i a s su g e st õ e s t e ó r ic a s r e c o r ­
ren t e s em cer t o s set o r e s d as c iê n c ia s so c ia is c o n t e m p o r â n e a s, a n si o sa s p o r u m a g g i o r n a m en t o
co g n it ivo e c ie n t es d e q u e p a r e c e se r est e o p lan o e xist e n c ial em q u e o i n d iv íd u o c o n t e m p o r â ­
n eo p o d e e xe r c e r a lg u m a lib e r d ad e c iv il. En t r e t an t o , se em su a f r a g i l id a d e c o n t e m p o r â n e a a
id en t id ad e in d iv id u al r e a d q u ir e f o r ç a s n a i n t e lig ib ilid ad e p r o p iciad a p elo c o n su m o , ist o n ão
im p lica n e ce ssar iam e n t e u m n o vo t ip o d e " c id ad an ia m o d e r n a" (r e in t e r p r e t ação lib e r a l d o co n ­
ceit o g r eg o q u e r e la c io n a in d iv íd u o co m Est ad o ), e sim u m a n o v a d in â m ic a id e n t i t á r ia , em q u e
as a p a r ê n cia s p o st as em c ir c u la ç ã o p elo m er cad o t êm p o d e r d e co n st r u t iv id ad e . A m en o s q u e
se r e in st it u a o co n ce it o lim it at iv o d e " c id a d ã o p a ssiv o " , p r e se n t e n a p r im e ir a Co n st it u içã o s a í­
d a d a Rev o lu ção Fr a n c e sa .
1 0 6 . Cf . D o rf les, Gillo . M y t h es et r ifes d 'a u jo u r d 'h u i . Klin ck sie ck , 1 9 7 5 , p . 1 7 3 - 1 8 0 . A f r ase d e H e ­
g el en co n t ra- se em V o r lesu n g en u b er d ie A est h et i k , Ju b ilãu m au sg ab e , St u t t g art , 1 9 5 3 , I, p . 5 8 .

96
dor da corporeidade, m as tam bém contribuindo para eventualm ente to m ar as
formas “protetoras” mais im portantes do que o protegido.
Esse fenôm eno é notável nas tecnologias do v er e ser visto, com o já ob­
servava em 1859 o escritor norte-am ericano O liver W endell H olm es a p ro ­
pósito da im agem fotográfica. Para ele, a fotografia, “u m espelho dotado de
m em ória”, assinalava o início de u m a época em que a im agem se to m aria
m ais im portante do que o próprio objeto. N a verdade, o objeto, enquanto
substância estática e pesada, se to m aria inútil diante das form as expressivas
resultantes da desm aterialização das coisas. Textualm ente: “A m atéria em
grandes m assas é sem pre custosa. [...] A form a custa pouco e é transportá­
vel. D oravante, som os donos do fruto da criação sem m ais o incôm odo do
caroço. Q ualquer objeto da N atureza e da A rte se despojará da sua superfí­
cie para cedê-la a nós. O s hom ens darão caça a todos os objetos curiosos,
belos, grandiosos, assim com o hoje caçam anim ais n a A m érica do Sul para
apoderar-se das peles, abandonando as inúteis carcassas” 107.
D e fato, a transform ação de um objeto em im agem im plica a negação
de dim ensões m ateriais com o o relevo, o peso, o cheiro, m as tam bém o tem ­
po e o sentido. R eduzem -se a duas as três dim ensões do universo. B audril-
lard vê aí um a “desencam ação” , cham ando a atenção para o fato de que “é
ao preço desta d e sen cam ação que a im ag em gan h a essa p o tê n c ia de fa s­
cinação, que ela se to m a médium da objetualidade pura, que ela se to m a
transparente a um a form a de sedução m ais sutil” 108.
Entretanto, dentro do pensam ento cristão, verifica-se u m outro sentido
para a palavra “encarnação”, já que só a im agem p odería realm ente encar­
nar algum a coisa, por seu poder específico de m ostrar, encenando corpos,
espaços e formas. Isto im plica as instâncias do visível, do invisível e de u m
olhar capaz de fazer a relação entre um e outro. D iz M ondzain: “Já que a en ­
carnação crística não é nada m ais do que a vinda ao visível do rosto de
D eus, a encarnação não é nada m ais do que o se to m a r im agem do infigu-
rável. É isto encarnar, é tom ar-se u m a im agem , e m uito precisam ente, um a
im agem da paixão” 109.
N esta linha de pensam ento, encarnar, enquanto ato de operar na ausên­
cia do objeto (em bora se discuta sobre se a im agem não é tam bém um tipo

1 0 7 . C f . Ew e n , St u ar t . A p u d A b r u z z e se , A lb e r t o . Lo sp l en d o r e d e Ia T V - O r i g i n i e d est i n o d ei l i n •
g u a g g i o a u d i o v i si v o . Co st a & N o la n , 1 9 9 5 , p . 9 8 - 1 0 0 .
1 0 8 . Ba u d r i l la r d , Je a n . Le p a ct e d e l u ci d i t é o u 1 'i n t ell i g en ce d u m a l . G a l i l é e , 2 0 0 4 , p . 8 2 .
1 0 9 . M o n d z a i n , M a r ie Jo sé . U i m a g e p eu t - el l e t u er ? Ba y a r d , 2 0 0 2 , p . 3 2 .

97
de objeto), é d ar a um a au sên cia “carn e” , isto é, carnação e visib ilid ad e, e
não corpo. N a in c o rp o ra ç ã o , p o r o u tro la d o , a c o n te c e m a id e n tif ic a ç ã o
e a fu sã o d e algo de real, de um a su b stân cia co m um corpo e um espírito.
A ssim , na eucaristia, dá-se u m a in co rp o ração , já que se p ro p õ e, pelo m isté­
rio da tran su b stan ciação e p ela p erfo rm ativ id ad e da palav ra, a ingestão de
D eus em p esso a (p erso n ificad o no co rpo da Igreja) e não u m a co n v ocação
do o lh ar p ara o v isível da divindade. N a inco rp o ração , com u n g a-se; na e n ­
carnação, m ostra-se.
O ra, não existe nen h u m artifício en g an o so ou disp o sitiv o de falsidade
n a “ en carn ação ” o p erad a p e la im agem . E la realiza, na v erd ad e, u m a m ed ia­
ção im p rescin d ív el entre o m u n d o e si m esm o , senão entre o p ró p rio in d iv í­
duo e si m esm o. S o cialm en te, fora do âm b ito do m istério e, po rtan to , fora
de qu alq u er p retensão a u m a inco rp o ração in stitu cio n al, a im agem to m a-se
instrum ento d a co n sciên cia de artistas ou de cid ad ão s, não necessariam en te
para to m ar p resente a au sên cia sagrada, o in v isível do m istério, e sim para
m o strar o que não foi visto n a esfera do v isív el da com unidade. N ão se trata
do invisível da tran scen d ên cia, e sim do “n ão -v isto ” da im anência.
A inda assim , a im agem é encarn ação de alg u m a coisa, de um objeto ou
u m a palavra. Para se a ter à tradição da term in o lo g ia eclesiástica, onde B au-
drillard diz “d esen cam ação ” , d eve-se ler “ d esm aterialização ” . R ealizando
o divórcio entre form a e m atéria (na v erdade, desm aterializan d o a realidade
física), a duplicação foto g ráfica é o germ e do médium co n tem porâneo, seja
ao m odo do d isp ositivo telev isiv o ou das im agens sintéticas. Esse “ germ e”
guarda, m ais do que o cinem a, a televisão ou o com putador, resso n ân cias
do ícone religioso, p o r não sim u lar o tem po, n em o m o vim ento a ater-se, em
seu congelam ento, à in stauração de u m a o utra cena para o real.
O que aciona a desco n fian ça n essa m o d alid ad e de encarnação p or parte
de um certo p ensam ento crítico da co n tem p o ran eid ad e é que, sob a reg ên ­
cia neocapitalista das tecn o lo g ias da in form ação e da com unicação, a im a­
gem to m a-se o o p erador de u m a v isibilidade p ro g ram ática (derivada, aliás,
da p ropaganda da C o n tra-R eform a), que co m unica o tem po todo a m en sa­
gem unívoca do m ercado. O médium de hoje não se define com o um m ero
dispositivo técnico (em bora esse suporte lhe seja necessário), nem com o
um a form a fechada em to m o de um a gram ática expressiva própria (tevê, ci­
nem a, jo rn al, etc.), e sim com o o conceito de desdobram ento tecnológico
da C idade H um ana, um a espécie de prótese ontológica para o controle das
relações sociais e das novas subjetividades p or tecnologias inform acionais.
Sim m el foi provavelm ente o prim eiro a detectar essa “pró tese” a pro­
pósito da televisão: “O espaço de em issão delim ita, pois, um a nova região.

98
dotada de características sociais, geográficas e culurais próprias. O inter­
ru p to r do aparelho de T V faz nascer u m a ordem sintética: o m undo da “ lín­
gua tev ê” , a “ g eo grafia tev ê”, a “com u n id ad e-tev ê” . A televisão cria , as­
sim , u m espaço social - que é, entretanto, de um a outra ordem que a sim ­
ples m elh o ria da vid a fam iliar ou da com unidade. N ão h á aí, antes de q u al­
quer coisa, u m a influência sobre a realidade, m as ao contrário a constitui -
ção de u m a realid ad e” 110.
H oje se to m a claro que esse espaço social é u m a v erd adeira form a dei
vida, não lim itada ao escopo televisivo. N a “objetu alização ” do com um í
em erge hoje com o duplo exteriorizado, ou eco ssistem a tecnológico, u m a r
form a virtu alizad a de vida, a que cham am os de “bios v irtu al” (cuja m a n i- ;
festação m ais evidente é a dim ensão m id iá tic a )111, retom ando o conceito
aristotélico de bios com o esfera existencial ou v id a ético-social organizada
no in terio r da polis, d istin ta da zoé, que é v ida natural. A o lado dos bioi tra­
dicionais, reconhecidos p o r A ristóteles (o cognitivo, o sociopolítico e o
sensível, correspondentes a três m odos de conhecim ento da realidade, a sa­
ber, a teoria , a práxis e a poiésis ), em erge um novo, feito de fluxos (letras,
sons e im agens) d igitalizados e redes artificiais, definido p o r um a m ateria­
lidade “ leve” , ou m esm o p eja im aterialidade, dos circuitos eletrônicos. O u
seja, a p artir de u m a realidade sistêm ica (ponto de partida e, infelizm ente,
de chegada, das análises de H aberm as sobre a adm inistração da cultura),
surge u m a verd ad eira form a de v id a bios virtual,.um a espécie de com u-
4iidade_afetiva de caráter técnico e m ercadológico, onde im pulsos digitais e
im agens se co nvertem em prática social.
N ão h á aí nada de intrigante em term os civilizatórios: essa realidade só
é possível porque a m odelização ou as im agens já estão inscritas na própria
cultura, n a m ediação do sujeito consigo m esm o. O novo bios é tão-só um a
exacerbação do processo, que se to m a socialm ente relevante porque inter­
vém nas relações espácio-tem porais, estas p o r m eio das quais percebem os
o m undo e agim os sobre ele. O indivíduo e o m undo relacionam -se efetiva­
m ente p o r m eio do tem po e do espaço (base de toda com unicação concreta),
que são quadros de percepção m utáveis, de form as m odificáveis segundo
as variações da história e da cultura. Q bios m idiático é um a transform ação
técn ica do. espaço-tem po, adequada às novas estruturas e configurações da
vida social.

1 1 0 . Sim m e l , Ge o r g . So zi o l o g i e - U n t er su ch u n g en ü b er d ie Fo r m en d er V er g esell sch a f t u n g . D u n ck e r


& H u m b lo t , 1 9 6 8 , p . 5 2 4 .
1 1 1 . C f . So d r é , M u n i z . A n t r o p o l ó g i ca d o e sp e l h o . V o z e s, 2 0 0 2 , p a ssi m .

: -fy/AyO
• <v , . 99

S
v
Uma maneira, digam os, m ais sociológica de apresentar essa realidade
podería ser extraída da teoria dos cam pos sociais de B ourdieu112. Ele cham a
-de “campo” a um sistem a de relações sociais que atribui a cada sujeito prin-
cípios, estratégias e conteúdos cognitivos que lhe cabem em função do lu-
gar ocupado na hierarquização grupai. N o cam po científico, por exem plo, o
cientista destaca e valoriza a questão capaz de ser reconhecida como im por­
tante por seus pares. O campo im põe-se com o um a ordenação de procedi­
mentos e um protocolo de reconhecim entos. Pode-se, assim, aventar a h i­
pótese de que a informação massiva contem porânea constitui um campo so­
cial relativam ente autônom o, com repertório cultural próprio, tecnologias
específicas e formas diferenciadas de organização, suscetível de conform ar
. as ações sociais dos agentes nele inseridos.
Esta noção de campo parece proceder, na verdade, do bios aristotélico,
assim como a noção de habitus , preem inente na teoria sociológica de B our­
dieu, inspira-se claramente no modo como Aristóteles entende “hábito” ( hexis).
Entretanto, o bios virtual ou m idiático de que falam os é m ais do que o con­
junto de atribuições e competências técnico-profíssionais de um campo, por­
que se trata de um a “forma de vida” duplicada, que engloba o profissional e
seu público, instaurando um novo tipo de relacionam ento com o real. Essa
nova forma de vida im plica um a intervenção profunda na dim ensão espá-
cio-tem poral clássica: se retirarm os daquilo que cham am os de real o espa­
ço e o tem po, teremos o virtual. O - ^ ^ v i r t u a E portanto, não se_alinha de
modo neutro ao lado dos cam pos sociais, um a vez que participa ativamente_
ji a Luta pelo controle das representações do real, afetando ontologicam en-
te a própria idéia m oderna do social e do exercíciqjle poder.
^ Fora desse viés sociológico, outras designações poderíam ser invoca­
das - “telecracia”, “cibercracia” , “sociedade de controle”, “telerrealidade”,
etc. Baudrillard fala de “telem orfose” para referir-se à vida plasm ada, e re­
duzida ao grau zero da significância, pela televisão113. N ão se trata, porém ,
de arrolar os efeitos catastróficos do principal m eio-síntese de im agens do
século passado sobre a realidade tradicional, e sim de identificar um a nova
forma de vida, para cuja construção concorrem transform ações im portantes
de toda uma estrutura social básica. Está-se aqui além do panóptico , descri­
to por Bentham e Foucault: “N ão se trata mais de tom ar as coisas visíveis a
um olho exterior, mas de tom á-las transparentes a si m esm as. A potência de

1 1 2 . Cf . Bo u r d ie u , Pie r r e . O p o d e r si m b ó l i co . Be r t r an d , 1 9 9 8 . N e st e e em o u t r o s t r ab a l h o s d o
so ció lo g o f r an c ê s co m p ar e ce m ap lic a ç õ e s d e t a lh a d a s d o co n ce it o d e " c a m p o so c i a l" .
1 1 3 . Cf . Ba u d r illa r d , Je a n . Tél ém o r p h o se. Se n s & To n k a , 2 0 0 1 .

100
controle é com o que internalizada, e os h o m en s não são m ais v ítim as das
im agens: eles m esm os se transform am em im ag en s” 114.
A ssim , um a “telem orfose integral da so cied ad e” não deve ser co m p re­
endida com o efeito específico de u m a p ro g ram ação especial da tevê, e sim
com o evento da m idiatização, isto é, da articulação ex p o nencial das trad i­
cionais instituições sociais com o co n junto das tecnologias d a inform ação a
reboque do m ercado. P psta em outros term o s, tra ta -se jie u m a associação
estreifa entre práticas sociais e espaço p ú b lico , ativada p o r pro cesso s tecn o ­
lógicos de com unicação. É, assim , u m a to talid ad e espacial virtu alizad a ou
um “ fato social to tal” (expressão do an tro p ó lo g o M arcei M auss p ara d esig ­
n ar um fato que p erm eia as instâncias econôm icas, p o líticas e culturais de
um a sociedade), m as com duração co n tin u ad a de um a form a de vida, um
bios, característico de um novo tipo de ord em social, ao qual a d esignação
de “ sociedade de co n trole” pode ser adequada, em especial q u ando se pensa
nesse bios com o parte das estratégias de indução social dos d isp ositivos
técnicos de controle da zoe (a v ida “n u a” , natural, anim al). E m outras p ala­
vras, trata-se de um novo tipo de atrato r ou op erad o r social, m ais tem poral
do que espacial, m ovido a tecn o lo g ia avançada.
C om o se d etecta teoricam ente o novo bios ? U m a m etáfo ra co nveniente
p ara se dem onstrar a p assagem de u m a superfície ou de um registro (reali­
dade efetiva) para a tela (realidade virtual, m idiática) é a fita de M oebius.
O utra é da clave m usical: no caso, o co nceito m usical de keying (p ô r em
clave), sugerido p o r G offm an, p ara dar conta da alteração de um a form a so­
cial q u alq u er115. A clave, com o b em se sabe, é um sinal que m arca a elev a­
ção e dá nom e às notas num a pauta m usical; é tam bém a “ch av e” u n ificad o ­
ra de tem as no discurso. A m esm a con v ersa que se tem n um a m esa de bar
pode transform ar-se em aula se lhe for aplicada a “clave” do po d er p ed ag ó ­
gico. Pode igualm ente transform ar-se em m aterial p sicanalítico num con­
sultório (na psicanálise, a “clave tran sferen ciai” cria espaço próprio, con­
fundindo m ito e h istória) ou em entretenim ento (por intensificação estética
dos enunciados) num program a de televisão.
O bios m idiático é u m a espécie de clave virtual aplicada à vida co tidia­
na, à existência real-histórica do indivíduo. Em term os de puro livre-arbí-
trio, pode-se entrar e sair dele, m as nas condições civilizatórias em que vi­
vem os (urbanização intensiva, relações sócio-m ercadológicas, predom ínio

1 1 4 . B a u d r i l l a r d , Je o n . Le p o et e d e l u ci d i t é o u r i n t e l l i g e n c e d u m a l . G a l i l é e , 2 0 0 4 , p . 8 0 .
1 1 5 . C f . G o f f m a n , Er v in g . Fr a m e a n a l y si s. N o r l h e a st e m U n iv e r sit y Pr e ss, 1 9 8 6 .

101
do v alo r de tro ca capitalista), estam os im ersos n a v irtualidade m idiática, o
que nos o u to rg a u m a form a de v id a v icária, p aralela, “ alterad a” pela inten­
sificação da tecn ologia au d io v isu al con ju g ad a ao m ercado. Isto faz do bios
m idiático a indistinção entre tela e realid ad e - realid ad e “trad icional” , bem
entendido, u m a vez que a realidade de hoje já se constitui sob a égide da in-
tegralidade esp etacu larizad a ou im agística a que aspira o virtual. T rata-se
de um a inflexão ex acerbada do im aginário que, com o bem o viu D eleuze,
“não é o irreal, m as a in d iscem ib ilid ad e do real e do irreal” 116.
Esse bios não se define rad icalm en te, entretanto, com o som a de todas
as im agens tecnicam ente p ro duzidas, e sim com o o poder dos modelos (as­
sim com o na o rdem m ítica, o p o d er é dos sím bolos prim ordiais ou dos ar­
quétipos), que se atualizam ou se con cretizam em determ inados tipos de
im agens, historicam ente sobredeterm inadas. A s im agens m idiáticas que re ­
gem as relações sociais p rovêm dos m odelos hegem ônicos do capital e do
m ercado globais.
O espetáculo de hoje resulta, assim , de um a sobredeterm inação h istó ri­
ca da im agem . A espetacularização é, n a prática, a v ida transform ada em
sensação ou em entretenim ento, com um a econom ia poderosa voltada para
a produção e consum o de film es, program as televisivos, m úsica popular,
parques tem áticos, jo g o s eletrônicos. E feitos de fascinação, m oda, celebri­
dade e em oção a todo custo p erm eiam sistem aticam ente essa form a de vida
em ergente, em que a estesia d etém o prim ado sobre velhos valores de natu­
reza ética. O fenôm eno estético to m a-se insum o para a estim ulação_da vida,
doravante dirigida para a indústria e o m ercado. É, portanto, m ais aisthesis
do que ethos - em bora se possa falar de um ethos da estética, ou seja, de
um a inteligibilidade do sensível capaz de levar a u m a “ética” ou um a arqui­
tetura social de valores.
É verdade que os m odelos geradores de im agens são logicam ente inte­
ligíveis. N a prática, porém , trata-se de um real sem iurgicam ente constituí­
do em toda a sua extensão, um a verdadeira cultura das sensações e em o­
ções, da qual se faz um a experiência m ais afetiva do que lógico-argum enta-
tiva. D aí a prevalência dos estereótipos, que são em oções coletivas estetica­
m ente condensadas, nos territórios im ateriais do bios m idiático. R ealiza-se
um a espécie de “ação estética” industrial, extensiva à vida social com o um
todo, o que não deixa de lem brar a concepção do pragm atista norte-am eri­
cano John D ew ey sobre a ação estética como interação da forma com o real-

1 1 6 . D e le u z e , G i l le s. Po u r p a r l er s. M in u it , 1 9 9 0 , p . 9 3 .

102
histórico, assim com o circu lação de reflexos e se n saçõ es117. A o m esm o
tem po, p o rém , vale aten tar p ara a sua ad v ertên cia no sentido de que tal ex ­
p eriên cia p o d e d efo rm ar-se p o r acú m u lo de fantasias e p o r falta de reelabo-
ração afetiv a do vivido.
P ode-se levantar aqui a questão de se saber se o novo bios ainda está an ­
corado no plano da representação. São vários os teóricos da cham ada “reali­
dade v irtual” que consideram estar ultrapassada a lógica da representação,
u m a v ez q ue o objeto d u plicado em im agens sintéticas p elas novas tecn o lo ­
g ias d a inform ação - n a realidade, “recriado” a partir de suas características
internas e de suas regras de ação, portanto, a partir de seu m odelo de constru­
ção, e não de sua form a fechada - induz a u m a nova experiência perceptiva,
independente de q ualquer realidade prévia. C ertam ente não se trata m ais da
representação que tem p o r trás o real fenom ênico ou u m a identidade forte,
social ou individual, ancorada n a história, o que autoriza falar em superação
da lógica tradicional das reproduções icônicas. D e fato, todo esse sistem a de
representações sem referentes, tom adas puros m odelos-im agens, digitaliza­
das e táteis, parece p ertencer a u m a dim ensão aquém da representacional.
M as a exem plo do sistem a rep resen tativ o trad icio n al, esse novo regim e
de v isib ilid ad e fu n cio n a em n om e do p rin cíp io de realidade, do sentido de
presen tificação de algo au sen te {re-presentar) e tam bém de auto-reivindi-
cação de legitim idade. É u m a reiv in d icação co m preensível, já que na nova
c o n fig u ração tec n o ló g ic a do d iscu rso e do tex to são in ó cu as as v elhas in ­
terp retaçõ es dos m ecan ism o s de rep resen tação o ferecidos pela m etafísica
ou pelo hum anism o. A “rep resen tação ” , ou “qu ase-rep resen tação ” , agora
se preten d e real o u qu ase-real - de q u alq u er form a, “in teg ral” em seus efei­
tos - a p o iad a no n o v o estatu to sem ió tico o u c o g n itiv o d a im ag em , em que
a v isib ilid ad e in co rp o ra facetas sonoras e táteis, in crem entando a potência
in terativ a do sistem a com u n icacio n al e, p o r conseq ü ên cia, dos sujeitos so ­
ciais que “ im erg em ” sen so rialm en te nos fluxos m idiáticos. D os disp o siti­
vos de televisão aos de inform ática, a visu alid ad e eletrô n ica converte-se em
im agem p riv ad a e p ú blica, red im en sio n an d o as form as de visibilidade da
cu ltura e produzindo relações sociais.
D e fato, os teóricos da sem iótica sem pre ch am aram a atenção para um a
das características básicas da im agem , que é a de ser, ao m esm o tem po, um
signo e u m a ação. O u seja, ela tem u m v alo r ilocutório , que se entende - na
trilha da filosofia analítica da E scola de O xford - com o o valor de um enun-

1 1 7 . C f . D e w e y , Jo h n . A r i a s e x p e r íe n c e , 1 9 3 4 .

103
1

ciado que acarreta o c u m p rim en to d e u m ato b em d efin id o . P o d e ch a m á -lo


tam b ém de fu n ção perform ativa do d iscu rso q u em p re fe rir ate r-se ao v o c a ­
bulário do in g lês J.L . A u stin . M as o ilo c u tó rio o u o p e rfo rm a tiv o re fe re -se
à m esm a coisa, isto é, à fo rça d a ação n o sig n o , q u e o b rig a à ex ec u ç ã o d e
algo, com o n a sentença de u m ju iz , tran sfo rm an d o as relações en tre o s su jei­
tos sociais. O s sig n o s im ag ístico s p re se n te s tan to no im ag in á rio d iscu rsiv o
com o no im ag in ário d e o u tro s sistem as (n ão -lin g ü ístico s) artic u la m -se c o m
d e s e j o s e in teresses so ciais, o rien tan d o as ações.
N a m íd ia , a e x e m p lo d a im a g e m , q u e se s itu a a m e io c a m in h o e n tr e
i a re p re s e n ta ç ã o e o real, tu d o é d a o rd e m do quase: q u ase-p resen ça, qu a-
\ se-verdade, q u ase-real e, p o r q u e não, q u ase-m en te. O co n ceito p e irc e a n o
: de quase-mente p arece m ateria liz a r-se n a tecn icid ad e m id iá tic a d a co m u n i-
I cação, c o n stitu íd a p o r m áq u in as de co m p u ta r e de rep resen tar. U m a im a ­
gem m ais p reg n an te d isto tu d o é aq u ela , de in sp iraçã o m clu h an ian a, do sis­
tem a nervoso central fu n cionando fora do corpo h um ano. A lgo parece “p e n ­
sar” fo ra d a su b je tiv id a d e c lá s sic a (ta n to a te le v is ã o q u a n to a in fo rm á tic a
o p eram p ro cesso s d in âm ico s, a n álo g o s a o p eraçõ es m e n ta is) ao m e sm o
tem po em qu e o rg an iza u m a realid ad e feita de im ag en s táteis, cap azes de
rep etir co m v e ro ssim ilh an ça as ro tin a s do co tid ian o tra d ic io n a l e, assim ,
p ro d u zir u m a forte sen sação d e realid ad e.
O bios v irtu al é u m q u ase-m u n d o tátil, ev o cativ o d as fo rm as que, se ­
gundo o ro m a n ista fra n c ê s H e n ri F o c illo n , te ria m u m a “v id a ”J n d e p e n -
, d en te do co rp o o rg ân ico d o h o m em . D esc re v e P em io la : “ E n tre o o rg ân ico
e o ino rg ân ico , F o cillo n v ê u m a tro ca, u m trân sito qu e d e u m lad o e sten d e a
bio lo g ia às ‘c o isa s’; d o o u tro , p o r m eio do o rn am en to e d a m o d a cria u m a
‘hum an id ad e artific ia l’. [...] A o sen tir su b jetiv o e o rg ân ico , F o c illo n o p õ e
um “ sentir p o r fo rm as” , in d ep en d e n te das im ag en s e d as reco rd açõ es in d i­
viduais, no q u al a d im en são se n sív e l (o to q u e ) e a d im e n sã o su p ra -se n sí-
vel (a in sp iração ) não p o d em ser d istin tas u m a d a o u tra ” 118.
P o r este cam in h o se o rien ta o artifício m id iático p a ra c o n stitu ir u m
novo padrão com unicacional, em que atu am sim ultaneam ente, segundo P ac-
k er e Jordan, cinco p ro cessos: integração, en ten d id a co m o h ib rid ização de
tecnologias e form as artísticas; interatividade, co m o p o ssib ilid a d e d e m a ­
nipulação direta do p ro cesso m id iático p elo usu ário ; hipermídia, o u en tre-
cruzam ento em b ases p esso ais d e elem en to s sep arad o s d a m íd ia; narrativi-
dade, com o co njunto das e straté g ias estéticas e fo rm ais q u e se re so lv e m em

1 1 8 . P e r n io la , M a r i o . U Est e t i ca d e i N o v e c e n t o . II M u l in o , 1 9 9 7 , p . 6 5 .

104
textos n ão -lin eares na h ip erm ídia; imersão , que é o en v o lv im en to dos sen ­
tidos n a sim ulação de um am biente trid im en sio n al119.
Trata-se realm ente de algo m ais do que o m ero tecnicism o do contato
entre a m íd ia e seu público. É n a d ireção desse tecn icism o que cam inha,
p o r ex em plo, o interessante em penho investigativo de V erón, ao dem o n s­
trar p or meio da análise discursiva de program as políticos a dim ensão visual
do contato (que Rom an Jakobson cham a de “função fática” da com unicação”)
entre o falante televisivo e seu p ú b lic o 120. A n alisan d o com o ín dices as in ­
flexões faciais e tonais dos falantes, V erón traz à luz a produção sem iótica
do corpo na televisão. Revela-se aí o modo como um corpo, colocado à distân­
cia, num a tela, incita frontalm ente o espectador a “ler” os seus índices e sinais.
Segundo V erón, o vínculo indiciai do contato - o o lhar fixo do ap resen­
tador nos olhos do espectador - é um a “dim ensão estrutural” da televisão.
T om ando acertadam ente a televisão com o um veículo em evolução, com
fases diferenciadas, ele sustenta que, apesar disto, “a relação do olhar é a
condição estruturante com um a todos os gêneros propriam ente telev isi­
vos” . A fase atual, tam bém dita “n eotelevisão”, caracteriza-se p o r u m a m u ­
dança no m odo de relacionam ento dessa tecnologia de com unicação com o
espectador que, im pulsionado pelas inovações em telecom unicações e in­
form ática, retroage fortem ente sobre a organização m idiática, m an ifestan ­
do com rapidez as suas p referên cias e assim con trib u in d o p ara ap ro x im ar
a m íd ia ainda m ais do m undo cotidiano. A televisão auto-referencializa-se,
isto é, incorpora a função referencial e to m a-se interpretante de si m esm a
(um a “b oca” do m ercado), m as absorvendo a atm osfera em ocional in d iv i­
dualista do público.
JE tal absorção que leva o indivíduo a v iver virtualm ente no espaço im a-
ten al das redes de inform ação, a que cham am os de bios m idiático. N este,
entretanto, o contato é m ais do que sim plesm ente v isual - é tátil, entendido
com o interação dos sentidos a partir de im agens sim uladoras do m undo.
V em da tatilidade a sensação de se ocupar um ponto qualquer num a am -
biência ou num a “paisagem ” feita de “m atéria” audiovisual ou de com pres­
são num érica em altíssim a velocidade. E sta é a idéia do “ponto de existên­
cia” que, para K erckhove, perm itiría ao indivíduo encontrar um a posição

1 1 9 . C f . C a st e ll s, M a n u e l. A g a l á x i a d a i n t er n et - Re f l e x õ e s so b r e a i n t e r n e t o s n eg ó ci o s e a so ­
cied a d e. Z ah ar, 2 0 0 3 , p . 1 6 5 .
1 2 0 . C f . V e r ó n , Eli se o . El cu e r p o d e Ia s i m a g e n e s. N o r m a , 2 0 0 2 [ C o l. En c ic lo p é d ia La t in o a m e -
r i c a n a d e So c io c u lt u r a y C o m u n ic a c i ó n ] . A m e sm a l in h a d e p e sq u isa p e r c o r r e v á r i o s o u t r o s t r a ­
b alh o s d e V e r ó n , t a is co m o o ar t ig o II est l à , je le v o is, il m e p ar le (Co m m u n i ca t i o n s, n . 3 8 , 1 9 8 3 )
e o s t e xt o s d e Lu l a p r esi d en t e - Tel ev i sã o e p o l ít i ca n a ca m p a n h a e l e i t o r a l . H a c k e r , 2 0 0 3 .

105
física em m eio aos sentidos tecnologicam ente prolongados. D iz ele: “A
sensação física de estar em alg u m lado é um a ex p eriên cia tátil, não visual.
É am b ien tal e não frontal. É co m p reen siv a e não ex clusiva. O m eu ponto
de ex istên cia, em vez de m e distanciar da realidade, com o acontece com o
ponto de vista, to m a-se o ponto de p artilha do m u n d o ” 121.
D esta m aneira, quando levam os em consideração toda um a form a de
vida ( bios ) virtual, e não a gram ática exclusiva de um m eio de com unicação
separado, a ex p eriência sensorial do “ espectador” ultrapassa a das expres­
sões externas do corpo de um falante (m eneios de cabeça, piscadelas, sorri­
sos, m ovim entos de m ãos, etc.). É que ele não m ais se institui com o m ero
espectador, e sim com o m em bro orgânico de u m a am biência que deixa de
funcionar n a escala tradicional do corpo hum ano, para adequar-se existen­
cialm ente (“ponto de existência” , em vez do visual ponto de fuga), pelo êx ­
tase ou pelo deslum bram ento da imersão , à escala de um sistem a “neural”
(a interconexão dos m uitos dispositivos representacionais, a que se dá o pre­
cário nom e de “m íd ia”), onde desaparece a corporeidade com o tal. Esta é
tatilm ente su b stitu íd a p o r seus m uitos índices , que favorecem a in ten sifi­
cação de form as apresentativas (logo, n ão-representativas) e, conseqüente-
m ente, um novo tipo de sensibilidade individual e coletiva.

A circu lação in d icia i

R esta determ inar o que se quer dizer com “ índice” . C om o se sabe, se­
gundo Peirce, ele é um dos três tipos de signos possíveis, ao lado do ícone
(referente ao funcionam ento da im agem ) e do sim bolo (dom ínio dos siste­
m as lingüísticos predom inantes no discurso co tid ian o )122.
É dele a explicação: “V ejo um hom em com um andar balançado, o que
é provavelm ente um a indicação de que se trata de um m arinheiro. Vejo um
hom em de pernas algo curvadas, com calças de brim , polainas e jaquetas.
São provavelm ente indicações de que é um cavaleiro ou algo parecido. Um
relógio de sol, ou um relógio qualquer indicam a hora do dia. [...] U mas ba-
tidinhas num a porta fechada são um índice. Q ualquer coisa que atraia a
atenção é um índice. Q ualquer coisa que nos sobressalte é um índice, en­
quanto m arca a articulação entre duas partes de um a experiência. A ssim um
trem endo barulho indica que algo considerável aconteceu, em bora não sai-

1 2 1 . Ke r c k h o v e , D e r r ic k d e . O p . c/ t ., p . 2 3 8 .
1 2 2 . Elise o V e r ó n ad v e r t e q u e se t r a t a , n a v e r d a d e , d e t r é s o r d e n s d e f u n c io n a m e n t o d o se n t i ­
d o , e n ã o d e u m a m e r a t a x io n o m ia d e sig n o s.

106
bamos exatamente de que se trata, mas pode ser provável que possamos ligá-lo
a outra experiência. [...] U m barôm etro com m arcas baixas, conjuntam en­
te com a um idade do ar, é um índice de chuva próxim a...” 123
C om variados exem plos dessa ordem , Peirce explicita a natureza do ín­
dice que, para ele, é “um signo, ou representação, referente a seu objeto não_
Jan to por causa de qualquer sem elhança ou analogia com ele, nem porque
esteja associado com as características gerais que o dito objeto possa ter, e
sim porque está em conexão dinâm ica (incluindo a conexão espacial) com
o objeto individual, por um lado, e com os sentidos ou a m em ória da pessoa
para quem serve com o signo, por outro”. A ssim , para responder a um a per­
gunta do tipo “onde está o incêndio?”, o indivíduo recorre a um índice, que
consiste em apontar para o fogo com o dedo, estabelecendo um a conexão
dinâm ica entre o dedo e o incêndio. Está aí im plicado um laço existencial,
que funciona por contigüidade, entre o signifícante e a referência. O índice
com plem enta.de algum m odo o objeto que o determ ina, a ele conectando-se
por extensão física.
Em Lingüística, o índice pertence ao capítulo da deixis, isto é, da fun­
ção indicativa de tem po e espaço no discurso (exem plos: “aqui”, “agora”),
presente nos diferentes m odos da enunciação ou nos diversos processos de
significação. Isto quer dizer que não se trata de um signo plenam ente repre-
sentacional, já que não tem significado. A sua leitura aponta para relações
particulares ou situadas (o que exclui qu alq u er abstração ou u n iv ersali­
dade) e para posições, em vez de conceitosvN a com unicação, os gestos, os
olhares, as entonações, as variadas expressões corporais são índices im ­
prescindíveis à interpretação dos signos propriam ente lingüísticos ou re-
presentacionais.
O fato de que exista, portanto, um dispositivo indiciai ao lado de outros
no interior de um regim e sem iótico não significa que eles se excluam: os ín­
dices coexistem com palavras e im agens. O índice pode ser, sim, relegado a
segundo plano em determ inado tipo de suporte com unicacional, a exemplo
do livro, m as pode tam bém (sem m encionar a com unicação interpessoal)
ganhar um peso extraordinário num m eio como a televisão, conform e de-
- m onstra a já m encionada pesquisa de Verón.
O m esm o se dá na internet ou na rede cibernética de um m odo geral, es­
pecialm ente quando se considera, com Peirce, que “alguns índices são ins-
Jtn içõ es m ais ou m enos detalhadas sobre o que o receptor deve fazer para

1 2 3 . Pe ir c e , C .S. La ci ên ci a d e Ia sem i ó t i ca . N u e v a V i sio n , 1 9 7 4 , p . 4 9 - 6 2 .

107
colocar a si m esm o em co n ex ão d ireta de ex p eriên cia, ou de o utro tipo, co m
a coisa significada. P o r ex em p lo , os b o letin s da G u ard a C o steira que dão la­
titudes e longitudes, qu atro ou cinco d ad o s do s o b jeto s p ro em in en tes, etc., e
dizem que em determ in ad o lu g ar há u m a ro c h a ou u m recife ou u m a b ó ia ou
um farol. E m b o ra e x istam outros elem en to s em tais in stru çõ es, de to d o s os
m odos são fun d am en talm en te ín d ices” 124. A p alav ra que, n o co m p u tad o r,
transform a-se em m ero com an d o e rem ete a ou tras p alav ras-co m an d o , é
p u ram ente indiciai.
A descrição de P eirce ap lica-se p e rfeitam en te ao tipo de tex to fu g az e
fragm entário que caracteriza tanto a telev isão qu an to as m o d alid ad es enun-
ciativas do digitalism o cibernético. E xiste, p ara isto, u m a term inologia m ais
recente:JLash in tro d u z a ex p ressão signo mim ético p a ra d e sig n a r o tip o de
signo que, p re sc in d in d o d a m ed iação c o n c e itu a i, c a ra c te riz a tan to a arte
de elev ad o alcan ce sim b ó lico qu an to a aisthesis b an al, p ro d u zid a p e la so­
ciedade do espetáculo ou p ela m íd ia 125. A expressão é m ais atinente ao cam ­
po das im agens, m as p o d e ab ran g er tam b é m a dim en são indiciai.
N a verdade, L ash v isa a um co n tex to teó rico m ais am plo do q ue a a n áli­
se co m u nicacional, po sto que sua p rin cip al p reo cu p ação , de fu ndo h e rm e ­
nêutico, é alarg ar a id éia de reflexividade , m o stran d o que a estética é u m a
verd ad eira “ alterid ad e” p ara a d im en são co g n itiv a. O s “ sig n o s m im ético s”
p erm eiam o ethos co tid ian o com o u m a co n d ição im p rescin d ív el d a in tera­
ção hum ana. P o r isto, o h isto riad o r italian o G in zb u rg av en ta a h ip ó tese de
u m “parad ig m a in d iciai” , que G u tierrez en ten d e com o “u m a m atriz c o g n i­
tiva b asead a em p ercep çõ es de ord em d istin ta, n ecessária n a h isto rio g rafia
e na pesquisa, p ro p u lso ra de u m in stru m en tal ló g ico qu e b u sca a realid ad e
nos indícios, e não nos tó p ico s e n as ev id ên c ias” 126. T rata-se m esm o de u m
outro m o d elo e p iste m o ló g ic o , su rg id o em fin s do sé c u lo X IX ta n to n a li­
te ra tu ra p olicial quanto nas ciências sociais, ao qual não se p resto u m u ita
atenção. Sua m atriz é a estesia, que p rio riza “ o u tros sen so res p araló g ico s e
alógicos” 127, tais com o o olfato, o g olpe de v ista e a intuição. ín d ic e s o u sig ­
nos m im éticos resp o n d em pelos co m p o n en tes intu itiv o s d a cognição.

1 2 4 . C .S . Pe i r c e . La ci ê n c i a d e i a se m i ó t i c a , p . 5 3 .
1 2 5 . C f . La sh , Sco t t . A r e f l e x iv i d a d e e se u s d u p lo s: e st r u t u r a , e st é t i c a e c o m u n i d a d e . In : G i d -
d e n s, A n t h o n y e t a i . M o d e r n i z a ç ã o r e f l e x i v a . U n e sp , 1 9 9 7 .
1 2 6 . G u t i e r r e z , A n t o n i o G a r c i a . O u t r a m e m ó r i a e s p o si b l e - e st r a t é g i a s d e sc o l o n i z a d o r a s d e i
a r ch i v o m u n d i a l . La C r u j i a , 2 0 0 4 , p . 9 9 . O a u t o r e st á c o m e n t a n d o G i n z b u r g , C a r i o . M i t o s, e m ­
b l em a s, ín d i ce s: m o r f o / o g i a e h i st ó r i a . G e d i s a , 1 9 9 4 .
1 2 7 . I b i d ., p . 9 9 .

108
S eja qual for a term in o lo g ia d escritiv a, o fato é q u e o tex to in fo rm ac io -
nal - m enos estru tu rad o ou sin taticam en te h ie ra rq u iz a d o do q u e o tex to tra ­
d icio n al, em que a su b jetiv id ad e do leito r era estáv el e c e n tra d a em c o o rd e ­
nad as cu ltu rais que b u scav am g a ra n tir a u n iv o c id a d e d a p a la v ra im p ressa -
co n v id a hoje o sujeito a ta te a r em ín d ices n e c e ssá rio s à su a o rien tação . N o
jo rn a lism o colado ao m ercad o , co m o d escrev e A b ram o , “ o tex to p assa a ser
m ais im portante que o fato que ele rep ro d u z; a p alav ra, a frase, no lu g ar da
inform ação; o tem p o e o esp aço d a m a té ria p re d o m in a n d o so b re a c lareza
da exp licação ; o v isu al h arm ô n ico so b re a v era c id a d e o u a fid e lid a d e ” 128.
N a tevê, no esp aço v irtu al o u n a n o v a realid a d e d o s g ran d es esp aço s u r­
b anos, a p re d o m in ân cia d os flu x o s co n trib u i p a ra d isp e rsa r o an tig o tro p is-
m o in teg rad o r do su jeito, arrastan d o -o a u m a esp écie de e rrân cia co g n itiv a,
em que são v elo zes e c o n tin g en tes os p ro ced im en to s de leitu ra ou de a te n ­
ção. E x istem p o r certo d iferen ças en tre o esp ectad o r e o u su ário dos se rv i­
ços de teleco m u n icaçõ es ou de in fo rm ática, m as em am b o s os caso s já n ão
está m ais a cav aleiro do p ro cesso in teracio n al o sig n o lin g ü ístico co m to d a
a su a p len itu d e sem ân tica.
E m sum a, q u er se ap resen te co m o traço co rp o ral, co m o sin al de u m
aco n tecim en to ou co m o in stru ção , o ín d ice é o tip o de sig n o q u e p re d o m in a
larg am en te nas fo rm as de co n h ecim en to e de tran sm issão d a in fo rm aç ão
características da so cied ad e m id iatizad a, isto é, m o v id a p o r tecn o lo g ias d a
inform ação e da com unicação que se b aseiam em dígitos e im agens. A té m es­
m o a o rig in alid ad e artística da fo to g rafia (b astan te c o n tro v ertid a, d ev id o ao
seu caráter técn ico ) é d ita “ in d iciai” , n a m ed id a em qu e d eix a ver, p elas len ­
tes de alguns g randes fotó g rafo s assestad as sobre os asp ecto s m iú d o s e c o ­
tidianos de u m a so ciedade, os sin to m as cu ltu ralm en te sig n ificativ o s de u m
p rocesso civilizatório.
O índice config u ra-se co m o o signo m ais ad eq u ad o a u m n o v o tipo de
relação social caren te de dim en sõ es de p ro fu n d id ad e sem ân tica ou de v a lo ­
res éticos o rd enados, em que pred o m in a, no lu g ar da clássica “ in terio rid a-
de” psíq u ica ou do su jeito defin id o p o r um p o n to de v ista estratég ico , a pu ra
con tig ü id ad e relacionai das redes m id iáticas ou cib ern éticas. E le é de fato o
p rincipal o p erad o r das relaçõ es entre a lógica do d iscu rso e as m o d u laçõ es
da sen sibilidade na esfera do audiovisual. T anto nas ab straçõ es lógico-nu-
m éricas (onde se m u ltip licam as instruções co m p u tacio n ais) com o nas con-

1 2 8 . A b r a m o , Pe r se u . P a d r õ e s d e m a n i p u l a çã o n a g r a n d e i m p r e n sa . Fu n d . Pe r se u A b r a m o ,
2003, p. 29.

109
y

cretizações a n a ló g ic a s (o n d e se m u ltip lic a m as in d ic a ç õ e s p a ra a d e c o d i-


fic a ç ã o das im agens), o índice asseg u ra o p o ten cial o peratório, interativo e
m etafó rico das form as p erceptíveis.
A esfera do indiciai apresen ta-se com o a co n tin u id ad e nas diferenças
entre as variad as tecn o lo g ias da in fo rm ação e d a com u n icação . E m bora a
“ gram ática” do rádio d ifira da telev isiv a e esta, p o r sua vez, d istinga-se da
rede cibernética, a p red o m in ân cia do índice atesta a esp ecificid ad e do cam ­
po au d io v isu a l fre n te ao c lá ssic o ca m p o d a e sc rita . É v e rd a d e q u e a te le ­
v isã o , p o d ero so m eio -sín tese de im ag en s fig u rativ as, te m -se c a ra c te riz a ­
do p e la p ro d u ç ã o de e x p re ssõ e s e e m o ç õ e s, e n q u a n to q u e a re d e c ib e rn é ­
tica, m esm o trab alh an d o in terativ am en te com im agens, escritos e sons, d á
p rim azia às abstrações digitalistas.
D e fato, no to cante à televisão, ain d a se p o d e aco m p an h ar as im p res­
sões de Paulo Freire: “D e u m lado, p o rtan to , está a força do pró p rio ap are­
lho, a força da im agem que ap arece no v ídeo, que não é p alp áv el e que, p o r­
tanto, sugere algo que é e não é. U m a esp écie assim de força m isteriosa, es­
piritual, a que o aparelho traz: está p erto e ao m esm o tem p o está longe; vejo
e ouço, m as n ão pego, com o co isa de E spírito Santo. M as, além disso tudo,
ou pondo tudo isso de lado, h á u m elem ento que, em certo sentido, reforça,
assusta, ap av o ra o telespectador: é que, quando tu apareces lá, o q ue está cá,
m esm o sem fazer u m a reflexão sobre, lá no m ais fundo d ele m esm o, se sen ­
te entre m ilhões diante de ti. N o fundo, tu estás e não estás só e o que está
• , ~ , ,,, 129
aqui, esta e nao esta so
O u seja, n a tevê, ainda se reg istra a quase-p resen ça do corpo hum ano,
com todas as suas sinalizações p ara o sentido, ao p asso que, n a rede, o cor-
V po d esap arece p a ra d ar lu g ar a u m a v elo z c ircu lação in d iciai, sem lin e a ri­
dade discu rsiv a n em o rdenam ento estético, cu ltu ralm en te prov o cad o ra de
u m a p ro fu n d a fratura no velho logos e, tecn icam en te, tátil.

O sen tid o d a visão

N esse regim e de tatilidade, o sentido da visão - fundam ental p ara o d e­


senvolvim ento da escrita e suas d erivações técnicas, com o a im prensa e o
livro - perm anece im portante, m as já não tem a m esm a p reem inência que
na E ra do L ivro ou da linearidade sin tag m ática dos discursos. É u m a p ree- 1
9
2

1 2 9 . Fr e i r e , Pa u lo & G u i m a r ã e s, Sé r g i o . So b r e e d u c a ç ã o - V o l . 2 : D i á l o g o s. Paz e T e r r a , 1 9 8 4 ,
p. 37-38.

110
m in ên cia que rem onta, aliás, ao antigo grego. D e fato, na p alav ra tele-visão
(que literalm en te sig n ifica visão à distân cia) já se acha in scrita u m a carac­
terística em p ro cesso de m atu ração d esde a A n tig u id ad e, que é a v isib ilid a­
de com o fonte de poder, d onde a o n ip o tên cia do olhar, do ver.
A ssim , o olhar - em especial essa fascinação irresistível, que é se ver,
olhar-se - é problem atizado tanto no âm bito da ciência do conhecim ento, da
ep is teme, quanto no âm bito do m ito. O lhar im plica constituir m odelos p ro d u ­
tores de im agens, que são as form as prim ais da m ediação entre o hum ano e o
m undo. Prim eiro v em o m odelo e, depois, a sua atualização n u m a im agem .
C onhecer u m a coisa é deslocá-la de sua realidade im ediata, “natural” , para
u m a outra, u m m odelo que dá partida à ord em do espelham ento, do reflexo,
ou ainda d a im agem - ou seja, um jo g o de aparências, u m a “ilusão” que m i-
m etiza de algum m odo a coisa prim eira. C onhecer, teorizar é v er ( theorein ,
em grego), o que pressupõe u m espelham ento p rim ordial e depois o controle
de sua deriva p o r u m a m edida, um metron , cham ado R azão. V er corretam en­
te (eustochia) é o que, p ara A ristóteles, caracteriza o estrategista.
D essa experiência fundam ental fala o m ito de N arciso, n a versão que
O vídio apresenta em suas Metamorfoses. N arciso, filho do deus C efiso e da
ninfa Liríope, tinha sido advertido pelo adivinho cego, Tirésias, de que ele v i­
vería m elhor se não se olhasse. H om em m uito bonito, u m a vez chegado à
idade adulta, tom a-se o objeto da paixão de um grande núm ero de m oças e de
ninfas. C om o ele sem pre recusasse o amor, as m ulheres ficam furiosas e com e­
çam a pedir punição a N êm esis, que é a divindade da vingança. U m dia, ele se
inclina sobre u m a fonte p ara m atar a sede e vê p ela prim eira vez o próprio
rosto. D aí em diante, apaixonado p o r si m esm o, fica absolutam ente indife­
rente ao m undo, debm ça-se sobre a p rópria im agem e se deixa m orrer, despe-
nhando-se no lago. C om o deixa claro o m ito, a deriva descontrolada das im a­
gens leva à m orte do hum ano, identificado com a m ediação sim bólica.
E n tretan to , o excesso de co n h ecim en to p ela d esm ed id a do ver, a ex em ­
p lo do excesso de luz solar sobre os olhos, é tam b ém indesejável. U m outro
m ito, o de É dipo, fala da on ip o tên cia da v isão e m o stra com o ela po d e cu l­
m in ar n a cegueira. M as, em sua am b iv alên cia im agística, o m ito ain d a é c a ­
paz de ad v ertir que p erd er a visão p o d e ser u m a m an eira de v er m ais, já que
o ad iv in h o e ceg o T irésias “v ia ” (sab ia) m ais do qu e to d o s. E sta p o ss ib ili­
dade é altam en te in stru tiv a n o que d iz re sp e ito à im ag em , p o is nos ch am a
a aten ção p ara o fato de que a “v isão ” o rig in ária (im agística, especular,
a q u ela que separa o hu m an o da physis ) p rescin d e da m aterialid ad e ocular.
4 jm a g e m é tam b ém interna, associativa, o lfativ a e tátil, sem red u zir-se em
term os absolutos à realidade_.das cópias.

111
É principalmente para o suposto perigo da imagem-cópia - designada
como eidolon, um eidos enganoso, um falseamento ontológico - que Platão
assesta a sua arma crítica. No idealismo platônico, o fenômeno imita a idéia,
e a imagem imita o fenômeno - duplamente enganosa, portanto, longe da re­
presentação da realidade do mundo das essências. O domínio da imagem (na
verdade, o controle metafísico do sensível) implica um conhecimento da im i­
tação, mediante uma racionalidade do olhar, que deveria acrescentar ao olho
orgânico toda a inteligibilidade do “olho do espírito”. A fixação ótica da im a­
gem é um meio de controlar a sua deriva ou multiplicação infinita. Por isso,
os gregos tinham de ter, e tiveram, um a episteme da ótica.
Só que o objeto da antiga ciência da ótica era um a entidade mítica: os
raios visuais - e não os raios luminosos, como muito tempo depois a física
astronômica de Kepler viría estabelecer. Para o grego, os raios visuais loca­
lizavam-se no olho, de onde partiam para atingir o alvo visado. A transm u­
tação do visível em coisa vista pertencia tanto à ordem da física, quanto à
do mistério.
No Timeu, Platão concebe os olhos como incrustados de luz. A luz está
dentro do olho, que carregaria incrustada uma luminosidade essencial. Os
deuses teriam providenciado um a substância parecida ao fogo, sem a pro­
priedade de queimar, mas capaz de gerar um a luz suave, afim à diurna. Esse
fogo é uma espécie de fluxo que escorre pelos olhos, parente da luz, mas
dela diferente porque subsiste como se fosse um a entidade autônoma na au­
sência da luz, nas horas noturnas. Nas geometrias óticas de Euclides, de
Ptolomeu, de Arquimedes e de Crisipo (atravessadas pelo mito, que im pli­
cava também um modo de fixação das imagens), até mesmo na Idade M é­
dia, o raio visual perm anece como um centro explicativo do ver. Há exce­
ções teóricas, que vão ser buscadas, por exemplo, nas óticas atomistas.
Mas no início da modernidade, quando o sujeito se constitui como au­
tônomo diante da natureza e da divindade, ver e tom ar-se visível equivalem
praticamente a “ser”. Por um lado, a nova subjetividade constrói-se atrain­
do para um “espaço emotivo” interno as experiências sociais e psíquicas
antes reguladas por dispositivos externos e rituais. Por outro, o processo ci-
vilizatório recalca progressivamente a prevalência de outros sentidos hu­
manos em favor do olhar, de maneira que até mesmo os prazeres resultantes
de uma gestualidade ativa tendem a ser reprimidos em função de um codifi­
cado “prazer dos olhos”, como atesta o exemplo oferecido por uma edição
da Civilité, de La Salle, do ano de 1774: “As crianças gostam de passar as

112
m ãos na roupas e nas outras coisas que lhes agradam ; é preciso corrigir n e­
las esta tentação e lhes ensinar a só tocar com os olhos tudo o que vêem”no.
R eco m endações desta o rd em to m a m -se p re c e ito s co n d icio n an tes na
ed u cação dos jovens, levantando barreiras para várias outras satisfações sen-
soriais. D esta maneira, o processo civilizatóriõ do O cidente pode ser descrito
(a exemplo do que faz o sociólogo N orbert Elias) com o um a reorientação so­
cial da m o tricid ad e, no sen tid o da c o n v ersão da tatilid a d e im ed iata (o to ­
que físico ) para o tato com o “bons m odos” , controlados pelo olhar.
Para atestar a realid ad e da no v a ord em em ergente, a sociedade b arro ­
ca constrói um a verdadeira tecnologia da im agem , convicta de que a visão
é m ais form adora de espíritos do que a oralidade. Tendo o teatro com o seu
principal m eio de com unicação, o barroco aposta na surpresa e no assom ­
bro, utilizando o fascínio plástico e m usical. B arrocas ou m aneiristas são
igualm ente as criações de ilusão visual, com o a m áquina de som bras do je ­
suíta A thanasius K ircher.
O fato é que surge um novo conhecim ento físico, e o raio visual da
A ntiguidade já não m ais dá conta das condições geom étricas da form ação
da im agem precisa na retina. A gora se sabe que, de um ponto objetivo, parte
um feixe de raios divergentes ou m esm o raios paralelos e, no instante em
que o cristalino é suficientem ente convergente, aparece no fundo do olho
um a im agem . Isto é a visão, isto é o olhar hum ano, m as esta m esm a explica­
ção se dá no caso de um a im agem recolhida sobre um a tela, num a câm ara
escura m unida de um a lente. O u seja, a m áquina com eça tam bém a enxer­
gar, com eça a ver, o que abre cam inho para o cinem atism o das m áquinas
m odernas. A própria m etáfora genérica da subjetividade m oderna com o um
espaço interiorizado é designada por m etáforas particulares associadas às
novas técnicas do olhar, a exem plo da com paração feita por H obbes entre
psiquism o e câm ara escura.
N a passagem do olho para a câm ara escura, do órgão hum ano da sensi­
bilidade perceptiva para a m áquina, dá-se tam bém a objetivação do olhar.
A visão com o que se to m a objeto e passa a se m aterializar em novos objetos
técnicos com o o astro láb io , o sex tan te, o m apa, que racio n alizam o e sp a ­
ço e universalizam os novos modelos de registro do real. Investido de gran­
des poderes técnicos, o olhar tom a-se contábil, quantifica, mede o planeta
num a escala universal e se põe a serviço do sujeito. O sujeito autônom o di­
ante de Deus, com sua tem poralidade unificada e transform ada em valor 1 0
3

1 3 0 . C f . El i a s, N o r b e r t . O p . c ü ., p . 2 9 4 .

113
produtivo, constitui o olhar como soberano num espaço psicotécnico, que se
entende com o o espaço geom étrico, tecnológico e hom ogeneizado.
D esde o R en ascim en to , com o bem sabem os, o p o n to de v ista do o b ­
serv ad o r dita as regras da construção do espaço representativo da natureza.
A nteriorm ente, a im agem atualizava m odelos arquetípicos. A gora, basica­
m ente a partir do trabalho do arquiteto florentino Filippo Bruneleschi (1377-
1446), se redescobre a perspectiva linear, já conhecida na Antiguidade por
gregos e romanos. N os term os do próprio arquiteto, “a perspectiva consiste
em dar com exatidão e racionalm ente a dim inuição e o aumento das coisas
que resulta para o olho hum ano seu afastamento ou na proximidade: casas,
planos, m ontanhas, paisagens de todas as espécies, figuras e outras coisas” .
O método concretiza um modelo geométrico, o m esm o que serve para des­
crever ou explicar os objetos naturais: as regras artísticas da projeção ótica
vão assegurar a transposição do espaço tridimensional para um suporte bidi­
mensional, que é o quadro, e vão criar, por meio da convergência de linhas
paralelas para um “ponto de fuga”, um a ilusão de profundidade.
O ponto de fuga ordena ou centra o espaço da representação visual.
A rm ado pela identificação técnica entre m odelo e im agem , o olhar do ob­
servador corresponde ao de um a subjetividade soberana, desligada do m un­
do natural e, m esm o, da experiência espácio-tem poral im ediata, o que lhe
confere um poder de arbítrio (e de verdade) do m undo, autônom o com rela­
ção ao conteúdo da im agem. É esse olhar racionalista e objetivo que se im ­
põe e orienta até hoje todas as apropriações tecnológicas do m undo. O cine-
m atism o moderno e contem porâneo das im agens é um aperfeiçoam ento au­
tom atizado da perspectiva. E por m ais que o olho hum ano busque identifi-
car-se com a tecnologia visual da fotografia, do cinem a e da televisão, o ar­
tifício é sem pre m ais a b ran g en te do que o o lho na cap tação da re a lid a ­
de, constituindo um repertório de im agens inadvertido pela visão natural.
A partir daí, B enjam in assinala um a sem elhança entre o registro artificial e
o m ecanism o inconsciente da percepção hum ana, aventando m esm o a h i­
pótese de um “ inconsciente ótico” .
Registra-se na cultura contem porânea do espetáculo, entretanto, um es­
gotam ento da visualidade serializada ou contábil, classicam ente dependen­
te do estatuto cognitivo da escrita e da sucessão tem poral dos eventos. É
que o espetáculo audiovisual de hoje mobiliza mais o desejo e a com pulsão
escópica (olhar por olhar) do que a percepção discrim inativa. D á-se um a
espécie de reorientação do olhar, cotidianam ente visível nas práticas con­
tem porâneas em que se enxerga m ais do que se vê, isto é, olha-se sem m aior

114
responsabilidade para com a cena, como se o observador apenas se m oves­
se num décor teatral.
D iante de um aparelho de tevê num desses restaurantes de classe m édia
é com um que as pessoas olhem sem realm ente ver (isto é, sem perceber arti-
culadam ente) o que se passa no vídeo. Já saturada de imagens, a visão acom ­
panha a passagem dos ícones, atenta apenas aos pequenos índices que gui­
am a recepção, de algum m odo integrando o conteúdo do vídeo ao am biente
em que efetivam ente se encontra. A lgo sem elhante ocorre ao se ouvir um a /
canção, sem verdadeiram ente escutá-la: a letra pode estar desprovida deí^
sentido, e o que se retém são os índices dados pelo ritm o e pela m elodia, que \
perm item um a certa vibração corporal, de natureza estética.
A travessada pela tecnicidade tátil, a visualidade subm erge na pura inte­
ração dos sentidos, dando prim azia à corporeidade na produção e recepção
de m ensagens. Em certos contextos, destacam -se o som e seus efeitos v i­
bratórios, que “m assageiam ” o corpo do receptor; noutros, é a im agem, com
efeitos im pactantes de luz; ainda noutro, é a sensorialidade do indivíduo,
capturada pelas exigências técnicas do controle cibernético, para que a p r e - '
enda os índices (setas, figuras, palavras) necessários à construção de um a
espécie de cartografia de trânsito (ou “navegação”) na rede. ^
T ateia-se n os itin erário s sonoros, visu ais e tex tu ais em b u sca dos ín ­
dices de co n ex ão ou elo s {links). M cL u h an tin h a p len a razão , não fez
m ero jo g o de palavras, quando se referiu a “m assagem ” , e não a m ensa­
gem, com o efeito característico da m ídia eletrônica. N o rádio, na televisão
tradicional e nos espetáculos da canção, predom inam as em oções fortes. No
hipertexto ou hiperm ídia, onde se hibridizam recursos diferenciados como
arquivos sonoros, textos, videoclipes, fotos, etc., o usuário trafega em com ­
plexos am bientes dinâm icos, espreitado pela possibilidade estésica e m ani­
festam ente narcísica da vertigem , com o bem assinala M achado: “O ‘nave­
g ante’ está sem pre a um passo da vertigem , perm anentem ente arriscado a
^se perder no m ar de textos” 131.
O sensível produz-se agora na esfera sígnica (há quem prefira a ex ­
pressão “ sim bólica”) do bios virtual ou m idiático, constituído de visualida-
t de eletrônica, em que se m esclam interativam ente textos escritos, sons e
I im agens, sob a regência da abstração digital. Seria im produtivo tentar en-
I tender isoladam ente um dispositivo de com unicação, porque os m eios inte-
. ragem no âm bito dessa retórica formal de base que, em últim a análise, pre-

1 3 1 . M a c h a d o , A r lin d o . M á q u i n a e i m a g i n á r i o . Ed u sp , 1 9 9 3 , p . 1 8 9 .

115
side ao b os. O caos estético do hipertexto, o zapping da recepção televi­
siva, o videoclipe publicitário, as imagens dispersas do audiovisual, a frag­
mentação narrativa influenciam-se mutuamente, concorrendo para a que­
bra da tradicional linearidade dos repertórios culturais e trazendo o elemen­
to rítmico para o primeiro plano da produção midiática. Vem do ritmo, hoje
cada vez mais veloz e frenético, a estim ulação tátil que regula a sensoria-
lidade no interior do bios , com o aporte im plícito de um novo tipo de sen­
sibilidade.

Realidade do im aginário

Uma questão oportuna é a indagação sobre a medida do im aginário e da


realidade nessa nova ordem de conexão dos sentidos. Para começar, é pre­
ciso deixar bem claro que a noção de im aginário não é nada evidente, sen­
do, aliás, bastante notória a confusão conceituai em tom o desta palavra. To­
mando-a ao pé da letra, vamos entendê-la como esfera de_ predomínio da..
imagens, um tipo homomórfico de signo, isto é, uma realização icônica.
Recorrendo a Peirce132, aprendemos que um ícone ou signo icônico é
capaz de representar o seu objeto predominantemente por similaridade, pres­
cindindo de seu modo de ser. Peirce chega a criar um outro substantivo, o
hipoícone, para aprofundar o detalhamento: “Q ualquer imagem material,
tal como um quadro de um pintor, é amplamente convencional em seu modo
de representação; mas considerada em si mesma, sem necessidade de eti­
queta ou designação alguma, podería ser denominada um hipoícone”.
_ A imagem é, para o pensador pragmatista, um hipoícone. Sua justificati­
va passa por uma terminologia arrevesada (familiar apenas aos exegetas de
sua obra), mas ainda assim é esclarecedora: “Os hipoícones podem ser classi­
ficados em grandes traços de acordo com o modo de primeiridade que parti­
lham. Aqueles que partilham qualidades simples, ou primeiras primeirida-
/des, são imagens; os que representam as relações, primordialmente diádicas,
ou consideradas como tais, das partes de algo por meio de relações análogas
entre suas próprias partes, são diagramas; aqueles que representam o caráter
representativo de um paralelismo em alguma outra coisa, são metáforas”.
Filósofos, antropológos, psicólogos, escritores sempre foram atraídos
pelas forças espirituais de produção de imagens, norm alm ente enfeixadas
no conceito de “imaginação”, a vis imaginativa, que os escolásticos enten­
diam como o sentido interno capaz de conservar o traço dos objetos perce-

1 3 2 . A s cit açõ es, aq u i, p ro vêm d o já cit ad o La ciên cia d e Ia sem i ó t i ca .

116
bidos, representados sob a form a de im agens. P ara os m odernos, além da
reprodução de percepções passadas (que alguns preferem reservar ex clu si­
vam ente à m em ória), a im aginação im plica principalm ente o p oder de criar
ficções, com binando as im agens do passado em novas sínteses.
O tópico da imaginação criativa é recorrente nos estudos sobre a p rodu­
ção poética. Bachelard distingue duas im aginações: “um a im aginação que dá
vida à causa formal e um a im aginação que dá vida à causa m aterial ou, m ais
brevem ente, a imaginação form al e a imaginação material” 133. As im agens
da forma, mais trabalhadas pela psicologia da im aginação (form as conscien­
tes ou inconscientes) ou pela estética, são as que decorrem de um a causa in­
terna, sentim ental. A s outras, saídas diretam ente da m atéria (a água, o fogo, o
espaço, a pedra, etc.), têm um a causa “substancial” ou m aterial.
À im aginação m aterial, B achelard dedicou várias de suas lum inosas
análises. M as fez a ressalva de que, num a obra poética, a prim eira sedução
do leitor é a da beleza form al, em que detém o prim ado, o sentim ento da ale­
gria pelo contato com a variedade das form as: “E m razão dessa necessidade
de seduzir, a im aginação trabalha geralm ente na direção da alegria - ou
pelo m enos na direção de u m a alegria! - , no sentido das form as e das cores,
no sentido das variedade e das m etam orfoses, no sentido de um futuro da
superfície” 134.
Sejam oriundos da experiência afetiva das formas ou da matéria, os pro­
dutos da im aginação constituem um repertório individual ou coletivo de im a­
gens, a que se dá o nom e de imaginário. O term o ganha sentido na separação
disjuntiva com o princípio de realidade, operada pelo racionalism o da cultura
ocidental. Peirce prefere evitá-lo, optando por categorias fenom enológicas
que abrangem três m odalidades da experiência semiótica. A primeira, a que
chama de Firstness (primeiridade) - relacionada às noções de acaso, indeter-
minação e possibilidade - , diz respeito ao universo do possível, onde tudo é
espontâneo e original, guiado pelo livre curso da im aginação135.
N a teoria psicanalítica, o im aginário refere-se a “processo p rim ário ” ,
o m odo inconsciente de funcionam ento do psiquism o, cuja m anifestação

1 3 3 . Ba c h e la r d , G a st o n . L' Ea u et l es r êv es — Essa i su r l ' i m a g i n a t i o n d e Ia m a t i èr e. Jo sé C o r t i ,


1942, p. 2.
134. / b id ., p . 2 - 3 .
1 3 5 . A s o u t r as d u a s m o d a lid a d e s c h a m a m - se Seco n d n e ss (se cu n d i d a d e ), q u e é a e x p e r i ê n c ia
d e t e r m i n a d a , m at e r ial, co n flit iva e v iv id a, e Th i r d n esss (t erceir id ad e) o u e sf e r a d a sín t ese , d as c o n ­
clu sõ es g e r a is, d o h áb it o e d a a p r e se n d iz a g e m , q u e p er m it e p e n sa r a s o u t r a s c a t e g o r i a s.

117
m ais evidente é o sonho. De m odo mais categórico na teoria lacaniana, im a­
ginário é um efeito necessariam ente decorrente do fato da constituição do
sujeito do desejo. Em term os m uito sim plificados, pode-se dizer que todo
processo de sim bolização desenrola-se entre um lim iar m ínim o de abertura
(o im aginário) entre natureza e consciência e um lim iar am plo de realiza­
ção, que é a relação social identificada com a linguagem e, portanto, já den­
tro da diferença essencial entre m atéria e psiquism o. N o im aginário, há o
nível prim ordial dos fantasm as ou fantasias e aquele que B achelard cham a­
va de im aginação m aterial, ou seja, as im agens já dadas em sua articulação
com a organização simbólica.
Im portante para a psicanálise é dem onstrar que a identificação im agi­
nária, ou identificação com a im agem de um sem elhante (identificação nar-
císica, no vocabulário de Freud), caracteriza o “eu” , ou seja, a form ação do
inconsciente que desconhece a causa de sua própria constituição ou de sua
condição produtiva, dando assim m argem ao funcionam ento da estrutura
inconsciente. Esse registro ou m atriz gerativa é o lugar privilegiado dos com ­
plexos e das fantasias.
A psicanálise freudiana herda e tenta afastar-se da dicotom ia cartesiana
entre ilusão e realidade, a m esm a que levou a civilização contem porânea a
separar radicalm ente da vida onírica a vida real. M as essa tentativa está longe
do senso comum e até mesmo do pensam ento social, que costum a entender o
imaginário como um outro termo, além da realidade: “N a partição hom em /
natureza, a natureza (objetiva, material) é apenas o imaginário do hom em as­
sim conceituado. N a partição sexual m asculino/fem inino, distinção estrutu­
ral e arbitrária que funda o princípio de “realidade” (e de repressão) sexual, a
“mulher” assim definida é sem pre apenas o im aginário do hom em . C ada ter­
mo da disjunção exclui o outro, que se tom a o seu im aginário” 136.
O outro termo da disjunção é, portanto, sob a hegem onia do logos, m a­
téria de desejo, sonho, devaneio e m ito, como assinala Charles Rodier: “O
m apa do mundo im aginável só é traçado nas fantasias. O universo sensível
é infinitam ente pequeno” 137. N a cultura ocidental, o im aginário resulta pri­
m ordialmente de um a im aginação ativa que leva criadores e contem plado-

1 3 6 . Ba u d r illar d , Je a n . L' Éch a n g e s/ m b o l i q u e et Ia m o r t . G a l l i m a r d , 1 9 7 6 , p . 2 0 5 .


1 3 7 . Cf . Bac h e lar d , G ast o n . O p . ci t ., p . 2 4 .

118
jFT

res a participarem conjuntam ente da circulação das formas sensíveis138. A


sua valorização por poetas e artistas fez-se sem pre acompanhar, entretanto,
de um a profunda desconfiança por parte do senso comum, para quem a
im aginação era freqüentem ente encarada como la folie du logis , isto é, “a
louca da casa”, aquela que se m antinha acorrentada nos fundos da residên­
cia burguesa.
Em certos casos, porém , os próprios criadores m anifestaram a sua des­
confiança p ara com o excesso de im aginário - entendido tanto com o su-
perexcitação intelectual quanto como descam inho da im aginação ou abuso
do inconsciente - na produção artística. U m bom exemplo francês é Balzac,
que vituperava contra “a abundância grande demais do princípio criador”,
m ortal para a execução da obra, em sua opinião. Outro exemplo é o alemão
Hoffrnann, para quem o desbordamento intelectual e imaginativo seria capaz
de tom ar o homem cego ao mundo natural. Comenta um crítico: “O que faz
Nathanel perder-se em O homem de areia é que ele não é mais capaz de dis­
tinguir um ser humano vivo de sua cópia artificial (a boneca O lym pia)” 139.
O realista Balzac e o rom ântico Hoffrnann, duas figuras exponenciais
da literatura européia, m ovem -se aí no interior de um a tem ática que reflete
as preocupações com os limites entre a vida e a arte, com o desgaste da vita­
lidade hum ana em virtude da superabundância de recursos intelectuais ou
im aginativos. Hoje o conflito desloca-se para os limites entre a vida “nua” e
suas cópias, artificialm ente produzidas por um a tecnologia que se estende
da manipulação genética à produção de um a realidade virtual m ediante dis­
positivos de inform ação e comunicação.
( Com efeito, é forçoso pensar hoje a im agem a partir de seu novo estatu­
to cognitivo, que advém de sua captura pela ordem do audiovisual no bios
y m idiático, onde predom inam os ícones e os índices, indutores de identifi-
! cação e projeção, principais formas de participação im aginária do público;

1 3 8 . Ev id e n t e m e n t e , est e m a n e jo d a n o ção d e i m a g in á r io co m o u m r e p e r t ó r io d e im ag e n s se ­
p ar ad o d o r e al é p r ó p r io d e u m a so cio lo g ia d a c u lt u r a . A s v á r i a s d isc ip lin as so ciais o u h u m a ­
n as ad e q u a m o co n ceit o a seu cam p o e sp ecíf ico d e co n h e cim e n t o . N a t e o r ia la c a n ia n a d a p si­
c a n á l ise , são i m a g i n á r i a s as r e p r e se n t aç õ e s d as p u lsõ es q u e , co m o v a lo r d e sig n if ic an t e s, se
a r t ic u lam co m o sim b ó lico e co m o r e al p a r a f u n d a r o e u . Já n a p sico lo g ia p r o f u n d a d e Ju n g , o
i m a g in á r io é alg o q u ase su b st an c ial e p a lp áv e l em f o r m a s o u e n t id ad e s (r e ais o u f ic t íc ia s, se ­
g u n d o a c la ssif ic a ç ã o f e it a p elo u t ilit ar ist a Be n t h am ) u n iv e r sa lm e n t e p r o d u zid as p o r u m i n ­
co n scien t e co let iv o . V a l e t am b ém l e m b r a r Sa r t r e , q u e e m p r e e n d e u u m a d e scr ição f e n o m e n o -
ló g ica d o q u e c h am av a d e " o b jet o s im a g in á r io s" , ist o é , im ag e n s m en t ais, m an ch as, fi g u r as p r o ­
je t iv as, re t r at o s, et c. H o je , h á t o d a u m a so cio lo g ia e u m a an t r o p o lo g ia d o im ag in ár io q u e , d e a l ­
g u m m o d o , f aze m r e p e r cu t ir a c a d e m ic a m e n t e a g n o se ju n g u i a n a .
1 3 9 . W a is, Ku r t . Le r o m an d ' a r t ist e : E.T.A . H o f f r n an n et Ba lza c . fn : La li t f ér a t u r e n a r r a t i v e d '
i m a g i n a t i o n . PU F, 1 9 6 1 , p . 1 4 7 [ Co llo q u e d e St r asb o u r g ] .

119
igualm ente, da captura com putacional, onde predom inam os dígitos e os
modelos subm etidos ao cálculo. O que antes pensadores e p o etas ch am a­
vam de im aginário é agora, graças aos recursos da inform ática, a m atéria
corrente de um fluxo inform acional capaz de produzir infinitam ente form as
sonoras, visuais, táteis, sem que o resultado possa ser concebido com o um
outro termo ou um a outra margem , separada do real. A idealidade m ateria­
liza-se no bios virtual, constituindo o próprio solo orgânico do novo tipo de
sociabilidade em ergente. Protegido pelo m ercado, afastado da pura co n ­
tem plação do objeto com o se dava na dim ensão representativa tradicional,
o im aginário realiza-se tecnologicam ente, confundindo-se com as represen­
tações hum anas da vida real.
Essa associação entre im aginário e vida real difere radicalm ente do m odo
como as sociedades antigas ou arcaicas viviam as experiências com a “o u ­
tra m argem ” , isto é, com a esfera do invisível, p len a de en tid ad es fantas-
m áticas, vivas e m ortas. A associação presente evoca de algum a m aneira a
identificação que a biopolítica m oderna prom ove entre a dim ensão bio ló g i­
ca e a política, tal com o assinala A gam bem ao com entar u m opúsculo de
O ttm ar von V erschuer, um alto funcionário do III R eich A lem ão, especia­
lista em saúde e eugenia, segundo o qual “a vid a de um povo só é garantida
se as qualidades raciais e a saúde hereditária do corpo po p u lar ( Volkskõr-
per) forem preservadas” 140.
N esta frase, A gam ben discerne um indício da m odernidade b iopolítica,
que é “o fato de o dado biológico ser, com o tal, im ediatam ente político, e
reciprocam ente”, m as que ele não vê da m aneira que o pensador-m ilitante
A ntonio N egri, por exem plo, com o o m odo de ser contem porâneo, indistin­
guível da linguagem e da produção da subjetividade. E xplica ele: “A vida
que, com as declarações dos direitos se tinha tom ado o fundam ento da so­
berania, tom a-se agora o sujeito-objeto da política estatal (que se apresenta,
portanto, cada vez m ais com o ‘p o lícia’); m as só um E stado intim am ente
fundado na própria vida da nação podia identificar com o sua vocação p ri­
m eira a formação e a saúde do ‘corpo p o p u lar’” 141.
O termo “polícia” , que em francês (police) já foi sinônim o de “civiliza­
ção” , tinha a conotação de p reservação da v id a e desen v o lv im en to da c i­
dadania, o que lhe dava um a finalidade positiva, diferentem ente da política,
que visava (negativam ente) a lutar contra os inim igos internos e externos

1 4 0 . Cf . A g am b e n , G io r g io . O p o d e r so b er a n o e a vi d a n u a - H o m o Sa ce r . Pr e se n ça, 1 9 9 8 . p . 1 4 1 .
1 4 1 . Ib i d .

120
do E stado, na linha das form ulações de von Justi e C arl Schm itt. Para A gam -
bem , a com preensão da b io p o lítica nazista, assim com o de g rande parte da
po lítica m o d ern a, p assa p elo re c o n h e c im e n to da id e n tificação en tre p o lí­
cia e política.
O exterm ínio eugênico das d iferen ças étn icas e h u m an as (judeus, c ig a­
nos, m as tam bém de doentes, deficien tes físicos e m en tais) perten ce à ló g i­
ca d essa p o lítica-polícia, na v erd ad e u m a b io p o lítica de b ases tecn o ló g icas,
em que se to m am idênticos o co n tro le do E stad o - co m sua ex ig ên cia p e r­
m anente de m o b ilizar em term os m o rais e id eo ló g icas a v id a dos indivíduos
- e a dim ensão corporal, bio ló g ica d a cid ad an ia, do rav an te o bjeto de ju íz o s
de valor. A o enferm o, ao aleijado, ao não-eu ro p eu , a extinção.
D a contin u id ad e histó rica desse em p en h o de p reserv ar e m o b ilizar so ­
b ressai a im portância das tecn o lo g ias g en éticas e in form acionais, que ag ora
tocam a v id a dos in divíduos p o r m eio das m an ip u laçõ es tran sg ên icas dos
alim entos, da fertilização in vitro , das clo n ag en s, d a gu erra b acte rio ló g ica
e, no plano da cultura p ú blica, p o r m eio da m ídia. Se antig am en te “lia-se” o
ho m em a p artir de seus valores, v eicu lad o s em d iscu rso s e ações, ho je a le i­
tura deslo ca-se p ara o corpo - a decifração do g en o m a indicaria, assim , os
novos cam inhos do hum ano. Só que a m áq u in a p ú b lica a cargo disso tudo
não é m ais apenas a do Estado, e sim todas as m áquinas organizacionais (em ­
presas, fundações, etc.) do capital, com prom etidas com a reorganização do
m undo p ela tecn o ciên cia e pelo m ercado.
A m íd ia não resu lta certam en te de n en h u m a b io p o lítica deliberada ,
seja da p arte do E stado, seja das o rg an izações privadas. M as ela está v isc e ­
ralm ente co nectada a u m novo tipo de gestão da v id a dos indivíduos pelas
forças tran snacionais do m ercado e, im plicitam ente, a u m a po lítica e n ten d i­
da com o “d ar form a à v ida do p o v o ” - enquanto p ró tese su b jetiva e cultural
- nos te rm o s da b io p o lític a a n u n c ia d a p e lo n a c io n a l-s o c ia lism o a lem ão
e te n ta d a pelo totalitarism o tecn icista do stalinism o soviético. P o r isto, é
sem pre p reciso in clu ir o stalinism o quando se fala das p io n eiras ditaduras
tecnológicas do século passado. Já em seu p rim eiro P lano Q üinqüenal, Sta-
lin pro clam av a que “a técnica decide tu d o ” e, em sua id éia de u m a cultura
técnica extensiva a to d a a nação, fazia-se presen te o im aginário b iopolítico
do corpo hígido, direcionado para a p rodução, do o p erário soviético.
( N a b io p o lítica genética, assim com o no trabalho redefinido pelo afeto,
I senão com o n a m ídia, o corpo está em p rim eiro plano. N o caso do nacio-
of n al-socialism o tratava-se de g arantir as “qualidades raciais e a saúde here-
j ditária do corpo p o p u lar ( Volkskõrper)” , agora se ten ta g aran tir a captação

121
d a en erg ia p síq u ica ou do afeto, apelan d o -se p ara a d iv ersão e a qualidade
de gozo do lazer p o r parte das m assas, disp o n ib ilizad as p ela nova ordem
p ro d u tiv a p ara o consum o. N ão se ten ta elim inar, com o no nazism o, o d efi­
ciente físico ou a alteridade étn ica (ou p síq u ica, ou sexual), m as se buscam
alin h ar esteticam en te as diferen ças a p artir de p arad ig m as m ercadológicos
de aparência, co n d u ta e pen sam en to . O bios é u m lu g ar m agneticam ente
afetivo, u m a recriação tecn o estética do ethos , capaz de m ob ilizar os hum o- ^
res ou estados de espírito dos in divíduos, reo rg an izan d o seus focos de inte- j
resse e de hábitos, em função de u m novo un iv erso m enos p siquicam ente
“ in terio rizad o ” e m ais tem p o ralm en te relacio n ad o ou conectado pelas re- )
des técnicas.
Bios midiático ou bios virtual são, assim , ex p ressões adequadas p ara o
no v o tipo de form a de v id a {bios, n a term in o lo g ia aristotélica) caracteriza­
do p o r u m a realid ad e im ag in arizad a, isto é, feita de fluxos de im agens e d í­
gitos, que rein terp retam co n tin u am en te co m n ovos suportes tecnológicos
as rep resen taçõ es trad icio n ais do real. T rata-se g eralm en te de u m im aginá­
rio co n trolado e sistem ático, sem p o tên cia im ag in ativ a ou m etafórica, m as
com um a notável c ap acidade ilo cu tó ria (portanto, u m im aginário adaptável
à pro d u ção ) que não deixa de ev o car a d in âm ica dos espelham entos ele­
m entares ou prim ais. O elem en tarism o fu n d ad o r da m áquina-espelho reen ­
contra-se, reforçado, no im aginário ad m in istrad o pelas m áquinas eletro n i­
cam ente inteligentes.
E m erge daí um novo tipo de política-polícia, que incide sobre os costu­
m es - de agora em diante definitivam ente regidos pelas diretivas do m ercado
- e sobre a ap ro p riação d a in fo rm aç ão co letiv a. Se an tes o E stad o to ta litá ­
rio p reten d ia enraizar-se na vid a da nação, reunificando (contra o liberalis­
m o) corpo e espírito, agora j é a m í dia, esse forte dispositivo cinem ático, que
se enraiza cu lturalm ente n a v id a social, p o r m eio de u m a form a sim ulativá
ou esp ectral de v id a (o bios), m o b ilizan d o os corpos da cidadania, instituin­
do u m im aginário que se confunde com a realidade da vida nua, natural, de
m odo a constituir u m a nova esfera existencial plenam ente afinada com o ca­
pital, onde o desejo se im ponha preferencialm ente com o desejo de m ercado.
N essa operação, reciclam -se, n u m m undo especializado do estético, o
bios, todas as v elhas e gastas im agens, g uardadas nos diferentes arquivos
óticos da civilização ocidental. E sse m undo especializado, logotécnico, é,
com o q ualquer ou tra ordenação do sensível, um m undo de aparências, m as
sem a contraposição ou a liberdade frente à realidade efetiva que caracteri­
za a tradição do cam po artístico . C o m o j á assin alam o s, o fenôm eno esté ti­
co atu an te na m íd ia p ertence ao cam po da estesia em sentido am plo, onde

122
os signos de com u n icação p rescin d em da separação, em preendida pelo
p en sam en to k antiano, entre a elevada q u alidade das form as (em que se dá a
u n id ad e n a v ariedade, a em erg ên cia do belo) e a esfera pura e sim ples das
sen saçõ es ag radáveis, atraentes ou fascinantes.
A gora, m ed ian te a aceleração retó rica cad a vez m aio r dos p rocessos de
reg istro e recu p eração , tudo in cita a co n sciência, fascinada, em ocionada,
afetiv am en te m o b ilizad a a en trar no jo g o da pro d u ção e consum o dos efei­
tos en erg ético s do real, a im erg ir no bios v irtual, onde se ap rofunda o esva-
escim en to d a ex p eriência. E xp eriên cia, com o b em se sabe, é o constituinte
do ag ir hu m an o - n ecessariam en te ap o iado n a au toridade, na linguagem e
n a n arrativ a - que ap o n ta p a ra a ind eterm in ação e a surpresa. A experiência
faz-se v isív el na v o n tad e do h o m em de sin g ularizar-se, em suas escolhas e
no seu p o ten cial de tran sfo rm ação e passagem .
São vário s os p en sad o res da con tem p o ran eid ad e, de M artin H eidegger
e W alter B en jam im até ho je, que assin alam o decair d a experiência, em
função do av assalam en to tecn o ló g ico e da ban alização extrem a da vida co ­
tidiana. O p ro b lem a não se define, entretanto, pelo refin am en to técnico em
si m esm o (um a v ez que as m áq u in as p odem , q uem sabe, to m ar-se “n atu re­
z a ” , assim com o as p lan tas e os anim ais), e sim pela fraca n aturalização h u ­
m an a da técnica, p red o m in an tem en te a reb o q u e das abstrações reguladoras
do capital.
N o bios virtual (pelo m enos nesse que, até agora, tem -se m ostrado com o j
u m a an tro p o técn ica a serviço do m ercad o ), o ethos h u m ano p arece subm er- t
g ir n u m a estesia teleco m an d ad a, onde o in d iv íd u o é ex propriado da expe- ^
riên cia e d a sin g u larid ad e, p o rtan to d a v o n tad e, d a esco lh a criativ a e da p ar­
tilh a sim b ó lica, logo de u m a co rp o reid ad e p ró p ria e ativa, g eradora de sen ­
tido, que ten d e h oje a ser cad a vez m ais g en ética e cu lturalm ente controlada
- a p e sa r da e x altação do co rp o do co n su m id o r p elo s a u to m atism o s senso-
riais da m ídia. O iso lam en to sensorial do h o m em contem p o rân eo , sob a
rede gratifican te do co nsum o con sp ícu o e sob as ap arências de um a co n ­
centração tecn o cu ltu ral do d iverso ou do m ú ltip lo , é o av atar do ex trem is­
m o ind iv id u alista do O cidente.
A o m esm o tem po, p arecem confirm ar-se velh as suspeitas sociológicas
no sentido de que o in d iv íd u o da tard o m o d em id ad e tende a trocar a ação
d elib erad a (p len a de lib erd ad e ética) pelo “com p o rtam en to reflex o ” , isto é,
p ela co n d u ta b asead a na m era racio n alid ad e funcional ou no cálculo u tilitá­
rio dos efeitos, afm s à co n v en iên cia dos sistem as técnicos e do m ercado.
C om o b em se sabe, o m odo de ser de um co m p ortam ento tem a v er com a
o n to lo g ia dos m odos hu m an o s de p erceb er e de realizar algo no m undo. O s

123
atos de perceber, sentir, pensar, conhecer, empenhar-se e fazer im plicam o
levar-se a si mesmo (“portar-se”) ao encontro (“com ”) de um comum.
Em cada um desses m ovimentos do comportar-se, a consciência vai
além de si mesma na direção de um destino comum com os objetos, o meio
circundante, as máquinas e os outros homens. Para tanto, impõe-se o “refle­
xivo” e não o m e ra ^ e fle x o ”, portanto o que se “pensa” (pensamento como
integração harínônica num todo e não com o p ura rep resen tação ou puro
cálculo), e não o que simplesmente se “pratica” .
A afirm ação de que “parece” confirmarem-se velhas suspeitas socioló­
gicas, entretanto, deve ser feita com cautela. De um lado, é forçoso levar em
conta que a tecnologia como forma hegem ônica de consciência histórica
anuncia um a m utação antropológica, já visível nas novas gerações que nas­
cem e se desenvolvem no interior do bios virtual, com novas aptidões neu­
rológicas, dentre as quais um a pronunciada sensibilidade para com os com ­
portamentos ligados à vertigem (substituição rápida de valores, descartabi-
lidade dos códigos de conduta, gestualidade indiciai gerida pela m oda ou
pelo mercado, velocidade inform acional) das im agens, das conexões ou das
realizações táteis. Diante deste quadro, a aceitação do mundo se inscreve em
premissas bastante diferentes daquelas que orientaram a percepção e as ar­
mas da crítica no ordenam ento tradicional das representações do real.
De outro lado, é preciso levar em conta a força do que M arx cham ou de
“capital variável”, o trabalho vivo sem pre latente no trabalho acum ulado e
morto da produção. Daí, ainda que sob outras m odalidades históricas de
realização, poderá advir a potência (política) de ser num a nova Cidade H u­
mana, onde as desm edidas do sensível sejam razoavelm ente acolhidas.

124
3
A D E M O C R A C IA C O S M É T IC A

Legitim ação e relacion am en t o da polít ica com a es­


t ét ica. A p o l i s com o lugar on t ológico do hum ano. O
sent ido da polít ica. A dem ocracia grega. Form ação do
Est ado e da dem ocracia na m odern idade. Ética , p o lí­
tica e m oral. Sat uração e transform ação das institui­
ções liberais. O livre- agir const ituinte. Soberan ia e h e­
gem on ia. M ídia e esfera pública am pliada.

c b r i ssim com o foi a política para a modernidade, a estética arrisca


ser a m arca da pós-m odem idade. E stética que é preciso claro com preen­
der, em seu sentido etimológico: óJOatqjde^experimentar, juntos, emoções. /
É um a tal estética que fonda a comunidade, que fonda o que eu cham ei a
‘tribo’ pós-m odem a” 142. A esta proposição de um sociólogo, pode-se apor a
de um teórico da linguagem : “ Seria insustentável e frívolo legitimar o po ­
lítico pelo estético? M as é bem isso o que H annah A rendt propõe: a crítica
kantiana do juízo estético ou juízo de gosto seria então o com plem ento e
quiçá o coroamento do pensam ento político de A ristóteles” .143
São diferentes, porém, as duas proposições.
N a primeira, o sociólogo quer deixar im plícita a suposição de que a po­
lítica não tem mais a centralidade na vida social que lhe aconteceu ter, por
exemplo, entre as últim as décadas do século XIX e a prim eira metade do sé­
culo XX, quando tam bém a economia e o indivíduo se constituíam como
grandes eixos da estruturação social. A forma política teria atingido um

1 4 2 . M af f eso li, M ich el. Est h ét iq u e co m m u n au t air e. In : M íd i a , cu lt u ra , co m u n i ca çã o . A r t e & C i ê n ­


cia, 2 0 0 2 , p . 1 3 . Est a p o sição d o so ció lo g o f r an cê s é r e t o m ad a em alg u n s d e seu s liv r o s, m as
e sp ecialm e n t e em A t r a n sf i g u r a çã o d o p o l ít i co - A t r i b a l i za çá o d o m u n d o . Su li n a , 1 9 9 7 .
1 4 3 . Par r e t , H e r m an . O p . crt ., p . 2 0 1 .

125
ponto de completa saturação (conceito recorrente na sociologia de Pitirim
Sorokin para indicar a substituição de uma forma socialm ente dominante
por uma outra, até então secundária), donde uma “transfiguração do políti­
co”. O primeiro plano estaria sendo agora ocupado pela efervescência ética
de novas formas sociais, caracterizada pela experiência comum, pelo im a­
ginário coletivo e pela acentuação do tempo presenteio que evoca a origi-
nariedade da estética. Ou seja, estética e ética estariam interpenetrando-se
de modo socialmente determinante, o que deslocaria o cálculo utilitário co­
mo fundamento da ação individual em favor de estilos de vida mais ligados
às aparências, às formas não produtivistas ou instrumentais.
A segunda proposição não abre mão da política como evento essencial
à organização da pluralidade humana em comunidades. Mas faz apelo ao
pensamento aristotélico, para o qual o adjetivo “político” designa expressa­
mente a experiência do indivíduo na polis (portanto, a experiência singular
de um homem em sua relação com a cidade) no tocante à mediação das di­
ferenças entre os iguais (os pares, os cidadãos) e ao equilíbrio comunitário.
Isto implica igualmente uma estética primeira, por determinar quem seria
visível ou invisível na cena pública.
Não há, assim, nada de radicalmente novo na associação da política à es­
tética, desde que não se entenda estética apenas como uma prática que toma
visível um modo de fazer artístico ou que se volta unicamente para efeitos de
sensibilidade emocional. Na Grécia Antiga, tomar-se visível no espaço co­
mum - o que é um apelo à intervenção dos sentidos - estava na base da ativi­
dade política. Mas neste caso o “estético” ou o “estésico” não estava no apro­
veitamento dos efeitos de práticas deliberadas e exclusivamente voltadas para
impressionar as faculdades sensoriais, e sim na divisão por meio do sensível
entre os incluídos e os excluídos no comum da cidadania.
Um exemplo desse aproveitamento de efeitos estéticos pode ser encon­
trado muito mais tarde, após o Renascimento, nas chamadas sociedades de
corte européias, quando a atividade e até mesmo categorias políticas passa­
vam pelo exercício da “cortesia”, isto é, um comportamento diferenciado,
que se caracterizava pelas “boas maneiras” e pelas “belas aparências”, in­
dispensáveis à conquista da simpatia dos grandes senhores da aristocracia.
A exacerbação dessas aparências verifica-se no reinado de Luís XIV, o
“Rei Sol” francês, que ritualizava e dramatizava o cotidiano da Corte a tal
ponto que se podiam confundir, na maioria das vezes, o gesto estético e o
gesto político. Vale observar, porém, que a centralização dos artifícios sen­
síveis na pessoa do monarca era o prolongamento de uma “teologia políti­
ca” que remontava à Idade Média e que outorgava ao corpo do rei um esta-
tuto corporal duplo, ao mesmo tempo físico e simbólico (político), sucedâ­
neo do corpo místico de Cristo. Assim, o “político” de Luís XIV não é da
ordem do político moderno, que começa apenas depois da derrocada da
antiga estrutura ontoteológica do mundo, cujo centro de poder podia ser
ocupado pelo monarca.
Dentro dessa perspectiva, a própria realidade de uma função governa­
mental pode não ser hoje mais do que um fato estético, como acontece com
certas monarquias persistentes na contemporaneidade. Como bem se sabe,
algumas têm poderes verdadeiramente políticos, senão ditatoriais (as cortes
petrolíferas do Oriente Médio), mas outras não ultrapassam as funções or­
namentais, como é o caso dos países escandinavos. A Grã-Bretanha, a mais
antiga das monarquias constitucionais - com sua evidente distância entre a
chefia simbólica do Estado e o controle efetivo do governo é estética no
sentido mais amplo do termo, quando se leva em conta que a presença deco­
rativa da realeza na vida britânica se liga progressivamente ao bios virtual
do marketing nacional e da grande mídia.
Mesmo fora do anacronismo monárquico, é suspeita a uma certa cons­
ciência republicana, a associação da estética à política. Benjamin, por exem­
plo, em seu famoso ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da arte, vê a este-
tização da vida política como uma tendência do fascismo, argumentando que
todos os esforços neste sentido culminam na guerra. Ele se refere explicita­
mente ao manifesto de Marinetti sobre a guerra da Etiópia, em que o futurista
afirma, entre outras coisas: “A guerra é bela porque realiza, pela primeira
vez, o sonho de um homem com o corpo metálico. [...] A guerra é bela porque
cria novas arquiteturas, como a dos tanques, das esquadrilhas aéreas em for­
mas geométricas, das espirais de fumo subindo das cidades incendiadas e
muitas outras ainda”. Ao que Benjamin retruca: “Na época de Homero, a hu­
manidade se oferecia em espetáculo aos deuses do Olimpo; ela agora se con­
verteu no seu próprio espetáculo. Tomou-se tão alienada de si mesma que
consegue viver a sua própria destruição como um prazer estético de primeira
ordem. A resposta do comunismo é politizar a arte” 144.
No entanto, dentro do campo de pensamento de esquerda, é possível
encontrar posições em nada negativistas sobre a relação entre estética e po­
lítica, como é o caso de Marcuse, para quem “a linguagem da imaginação

1 4 4 . Be n jam in , W alt er . A o b r a d e ar t e n a é p o ca d e su a re p r o d u t ib ilid ad e t é cn ica. In : Lim a, Lu iz


Co st a (o r g .). Teo ri a d a cu l t u ra d e m a ssa . Sag a, 1 9 6 9 , p . 2 3 7 - 2 3 8 .

127
p erm an ece lin g u ag em de desafio , de acusação e p ro testo ” 145. O p en sad o r
alem ão q u e r m o stra r a p o ssib ilid a d e de u m a a ltern ativ a p ara a v ida co n s­
tru íd a n o s term o s do m ercan tilism o e da rep ressão sexual, apresentada pela
m o d ern a socied ad e b u rg u esa co m o ú n ica im aginável. P ara ele, “a negação
d efin itiv a da realid ad e estab elecid a seria um u n iverso ‘e stético ’ - estético
no duplo sentido de p erten cen te à sen sib ilid ad e e à arte, ou seja, a capacida­
de de receb er a im pressão d a form a: form as belas e agradáveis com o o
m o d o p o ssív el de existên cia de ho m en s e co isas” 146. D inam icam ente tran s­
fo rm ada, a arte ten d ería, assim , p ara a política, reform ando em pro fu n d id a­
de a m o ral (logo, pon d o u m fim à rep ressão das pu lsões) e liberando a en er­
gia b io p síq u ica n ecessária ao b em -esta r hu m ano e a novos m odos de reali­
zação pro d u tiv a.
T an to p ara B en jam in q u an to p a ra M arcuse, p erm anece intacta a po líti­
ca com o u m c o n c e ito -c h a v e d a modernidade.__M as o q u e.a te m á fic a ^ q r-
r re n te d a este tiz a ç ã o d a p o lític a v em ag o ra p ô r em questão é a idéia dq em _
fraq u ecim en to d a p o lítica c lássica - co n cretam ente, a substituição da rela­
ção de fo rças em co n flito p ela relação de form as h arm ônicas - , assim com o
a de su a red efin ição nos term o s de u m “en trelaçam ento do social e do sensí­
v e l” , an álo g o s aos dos v ín cu lo s de so lidariedade e am izade detectados por
A ristó teles n a fo rm ação c o m u n itária (koinoonia).
Entretanto, é possível, partindo-se exatamente da reflexão aristotélica, con­
ceber u m outro m odo de relacionam ento da estética com a política, tal como
adverte Rancière: “N a base da política, há um a estética que não tem nada a ver
com essa “estetização da política” , própria da “era das m assas”, de que fala
B enjam in. Tal estética não deve ser entendida no sentido de um a captura per­
versa da política p o r um a vontade de arte, pelo pensam ento do povo com o obra
de arte” 147. O corre aqui u m distanciam ento da concepção de estética como
um a teoria d a arte em geral, p ara entendê-la com o u m “regim e específico de
identificação e de pensam ento das artes” que, n a prática, consiste em de­
m o nstrar um m odo de articulação entre “m aneiras de fazer, form as de visibi­
lidade dessas m aneiras de fazer e m odos de reflexão sobre suas relações” .
R ein terp retan d o P latão e A ristó teles, R ancière enxerga n a estética um
sentido originário, prim eiro de “p artilh a do sen sível” , entendida com o um
sistem a que faz v e r e faz sentir, to m an d o visível a existência de um “co-

1 4 5 . M a r c u se , H e r b e r t . A ar t e n a so c ie d a d e u n id im e n sio n a l. In : Lim a , Lu iz Co st a. O p . c/ t ., p . 2 4 4 .
1 4 6 . Ib íd ., p . 2 4 7 .
1 4 7 . Ra n c iè r e , Ja c q u e s. Le p a r t a g e d u se n si b l e - Est h ét i q u e e t p o l i t i q u e . La Fa b r iq u e , 2 0 0 0 , p . 1 3 .

128
m um ” , assim com o os recortes que definem os lugares e as partes resp ecti­
vas. Textualm ente: “Esta repartição das partes e dos lugares funda-se num a
divisão dos espaços, dos tem pos e das form as de atividade que determ ina a
própria m aneira com o um com um se presta à participação e com o uns e ou ­
tros tom am parte nessa partilha” 148.
A ssim , quando A ristóteles diz que cidadão é aquele que participa do
fato de governar e ser governado, já está sendo precedido p o r um a outra fo r­
m a de partilha, a saber, aquela que determ ina quem pode participar. O es­
cravo, por exem plo, não pode, segundo A ristóteles, p o r não “p o ssu ir” a lin­
guagem com um ; o artesão, de acordo com Platão, tam bém não pode, p o r
não possuir o tem po p ara dedicar-se a algo em com um além de seu trabalho.
Em resum o, no recorte dos tem pos, dos espaços, da fala, do visível e do in ­
visível, alguns ficam de fora da política, já que esta diz respeito ao que se
vê, se sente e se pensa, logo ao que se pode d izer sobre o visível no âm bito
da polis , a C idade-Estado. A visibilidade de algum m odo “p recodifica” as
posições a serem assum idas p o r aqueles a quem se destina o suposto jo g o li­
vre da política.
Essa estética originária não diz respeito ao conteúdo de m itos ou de
obras, e sim àquilo que o ju rista e politólogo alem ão Carl Schm itt cham aria
de nomos , isto é, a reg ra de d istrib u ição das p esso as e suas funções em e s­
paços determ inados. A ssim com o o pastor apascenta (nemeiri) as ovelhas no
campo, organizando-lhe os lugares, a com unidade constitui-se definindo âs
condições de organização da vida de todos, o que abrange os espaços, os tem ­
pos e as formas de atividade que podem entrar na p artilha do que é com um
ao grupo - e isto já constitui um aspecto essencial do fenôm eno político.
A quele que é investido da fala com um , p o r exem plo, é socialm ente v i­
sível e assim pode tom ar parte no jo g o político, já que este, p o r im plicar o
governo da polis, é um a atividade referida ao que se pode ver e falar. O ar­
gum ento prim eiro para a exclusão de determ inados indivíduos dos direitos
políticos da cidadania incide precisam ente sobre um a suposta im possibili­
dade de se estar em dois lugares ao m esm o tem po e, conseqüentem ente, fa­
zer duas coisas sim ultaneam ente. O escravo, para A ristóteles, ainda que
com preenda a linguagem , não ocupa o lugar de sua “p o sse” , logo não tem a
identidade com unitária im prescindível à cidadania. E m outras palavras, a
sua “m aneira de fazer” não é suficiente para tom á-lo p oliticam ente visível,

1 4 8 . Ra n c iè r e , Ja c q u e s. O p . c/ f ., p . 1 2 .

129
isto é, p ara p o d er realizar aquilo que é fu n d am en tal à p o lítica grega: falar.
R azão e lin g u ag em ab rig am -se n u m a m esm a p alav ra, o logos.
Igualm ente, p a ra Platão, tanto no teatro com o n a escrita, as identidades
são pertu rb ad as, seja p ela ficção, seja p e la p ertu rb ação das p o sições dos
corpos no espaço com um . A d em o cracia in eren te à circulação aleatória das
palav ras n a escrita ab ala as h ierarquias d a rep resen tação e institui co m u n i­
dades que fo g em ao co n tro le do Poder. S urge daí u m a o u tra co nfiguração
p o lítica, e em erg e o p ro b lem a - que se esten d e até os dias atuais, m an ifes­
tan d o -se p rin cip alm en te sob a form a d a satu ração dos pro cesso s - da deter­
m in ação do que se q u er d izer co m “p o lítica” . M elh o r ainda, co m o “p o líti­
c o ” , d istin g u in d o -o de “p o lític a ” , assim c o m o se co stu m a sep arar o “ e sté ­
tic o ” da “ estética” , co m o o bjetivo de d eterm in ar ò sentido do fenôm eno,
sem a dep en d ên cia de suas form as in stitu cio n ais particu larizad as, apesar da
suspeita p o r p arte d e v ários ensaístas de que e ssa d istinção p o ssa não passar
de m ero jo g o re tó ric o 149. U m a coisa é p reciso te r sem pre em m ente: a p a la ­
v ra “p o lítica” é eu ro p éia (grega) e p ressu p õ e in stân cias - p o lis , E stado, te r­
ritório e au to cto n ia - que se afirm aram no âm b ito da esp ecificid ad e cultural
e civ ilizató ria da E uropa. A sua u n iv ersalid ad e tal e qual é um m ero pressu ­
po sto europeu, m esm o quando ad m itim o s que algum as das características
do reg im e dem o crático p o d em ser u n iv ersalm en te desejáveis.

O sig n ific a d o d e p o lític a

N os d icionários especializados, a p ala v ra p o lítica aparece geralm ente


com o u m tipo de ação caracterizado p ela in teg ração de elem entos com o “ o
b em público, caráter po lêm ico ou con flitu o so dos atos que v isam à sua re a ­
lização e in terv en ção das agências de p o d e r” . T em sem pre a v er com poder,
portanto, em b o ra a ele não se red u za todo o alcan ce do conceito. A referên ­
cia ao que, no p o d er, se faz im plícito (o p o lêm ico ) e explícito (agências de
in tervenção) d á m arg em a co n cepções v ariad as no âm bito da ciência p o líti­
ca, que o scilam entre o en tendim ento d a p o lític a com o u m “ liv re-ag ir” do
cidadão - po rtan to , u m a atividade livre (não su jeita à o rdem ju ríd ica), cria­
tiv a e orig in ad o ra de transform ações no âm b ito da cid adania - e o de um a
ação de p o d er o rganizado (E stado), com u m v a lo r configurativo de ordem ,
então dita “v in cu lativ a” . A o lado dessas o scilaçõ es conceituais, situa-se a
política com o “orientação para a realização de fins” , para a qual existe em in­
glês o term o policy , distinto de politics.

1 4 9 . H a n n a h A r e n d t , p o r e x e m p l o , n ã o f a z n e n h u m a d ist i n ç ã o e n t r e " p o l ít ic a " e " o p o l ít ic o " .

130
P ara o antigo grego, o ad jetivo politikon referia-se ao originário no p o ­
der org an izad o r da Polis (d e pelo.pelein = m orar), term o que reúne as acep ­
ções (m o d em am en te separadas) de sociedade urbana e Estado. P artiam daí
as condições p ara que os cid ad ão s pud essem ad otar u m p o nto de vista críti­
co e racional sobre as relações do indivíduo com a com unidade, o que dava
à po lítica o estatuto de arte - de p articip ar e interv ir livrem ente n a vid a p ú ­
blica da Polis - fin alisticam ente v oltada p ara a su b sistência da cidade e
p ara a liberdade dos cidadãos. E m b o ra houvesse tam b ém u m en tendim ento
negativo da liberdade (não g overnar, n em ser governado), o liv re-ag ir co m ­
portav a prin cip alm en te u m a d im ensão positiva, que era a de m o v im entar-
se n a p lu ra lid a d e d o s ig u ais. É e ste o sen tid o g reg o de isonom ia : ig u a ld a ­
de n a p o lític a , logo, isogoria , que é a ig u ald ad e no falar, no p o d e r ex p re s­
sar-se n a ágora , a p raça que ab rigava a assem bléia soberana dos cidadãos,
com poderes p ara m od ificar a lei e ap licar a ju stiça.
P o r isto, Platão e A ristó teles rep u tav am o saber p olítico com o o m ais
im portante n u m a escala h ierárq u ica do conhecim ento. N o diálogo A repú­
blica (.Politeia ), Platão atribui com o idealidade ou fundam ento teórico ao
ser político o saber essencial da diké, a virtude da ju stiça. T rata-se apenas
em parte de ju stiç a entendida, ao m odo da m o d ernidade liberal, com o ex p e­
riência ju ríd ica. Isto fica perfeitam en te claro quando, na Ética a Nicômaco ,
A ristóteles distingue o sentido estrito d a ju stiç a (o ju ríd ico ) de um sentido
geral, que com preende o co njunto das norm as éticas e políticas. Diké subs­
titui, n a histó ria grega o direito sagrado e autoritário ( themis ), adm inistrado
pelos nobres segundo a tradição dos costum es. O novo conceito, que traz
im plícito o sen tid o de ig u a ld a d e , serv ia co m o p la ta fo rm a da v id a p ú b lic a
e das lu tas políticas, co n vertendo-se em v alo r hum ano p rim ordial, portanto
em virtude ( areté ) p o r excelência.
Diké im plica, assim , u m a ex p eriência ontológica, ou seja, u m a ex p e­
riência, ao m esm o tem po m ito ló g ica e histórica, do m odo com o se realiza e
se integra to d a realidade dentro da C idade, o que a faz p erm ear todos os n í­
veis da existência hum ana, sejam reais ou potenciais. N o nível real, a v o n ta­
de de ju stiç a funciona com o v alo r cívico constitutivo do h o m em d em o cráti­
co, ao qual se subordina até m esm o a virtude da v alentia guerreira. O po ten ­
cial sinaliza para a p ossibilidade que tem o h o m em ju sto de afirm ar a sua li­
berdade, superando o real já dado e fazendo aparecer o novo, condição es­
sencial à preservação e ao crescim ento do grupo, inscrita com o princípio
(ético) originário.
E ssa im bricação da ética com a política (im plícita na diké) não deve ser
confundida com a m oderna associação entre as duas instâncias sem pre rea-

131
lizada pelo liberalism o burguês na base de um a deliberação racional. A éti­
ca antiga - essencialm ente um a ética das virtudes, e não dos puros deveres,
como na m odernidade - surge, no quadro do d estino com um , com o o cui­
dado para com a regra do ascendente, do ancestral, esse “p a i” que, m esm o
m orto, determ ina a continuidade e a expansão da com unidade. É o culto aos
ancestrais que, nas sociedades antigas ou arcaicas, responde pelo pai funda­
dor. N as sociedades m odernas inexiste tal culto, m as há um a cultura da his­
tória que incorpora o m esm o princípio, com o bem o viu M arx: “Os hom ens
fazem a sua própria história, m as não a fazem com o querem ; não a fazem
sob circunstâncias de sua própria escolha, e sim sob aquelas com que se de­
frontam diretam ente, legadas e transm itidas pelo passado. A tradição de to ­
das as gerações m ortas oprim e com o um pesadelo o cérebro dos vivos” 150.
Trata-se, com a ética, de rem ontar ao nascim ento, ao com eço (Arkhè)
ou ao despertar de um a form a, portanto à fonte dos princípios constitutivos
da com unidade, onde se evidencia a força do agir fundacional, a sua espon­
taneidade criativa. É a força que se atribui à poesia, a exem plo do poeta ale­
mão Stefan Georg, para quem “dentre todas as artes, só a poesia conhece o
m istério do despertar (.Erweckung )”, devendo-se entender despertar como
o constituinte ou o “nascim ento” que existe em toda experiência.
A ética im plica a experiência do agir, isto que, no lim ite, persegue a p o ­
lítica. O que é ela p recisam en te? A té h o je, n en h u m tratad o , n en h u m a en ­
ciclo p éd ia foi capaz de um a definição conclusiva, devido m uito provavel­
m ente à diversidade das m udanças de curso que esse conceito tem sofrido
em sua história. Em bora sem pre vinculada, na experiência vivida, ao desejo
ancestral de equilíbrio comunitário para o agrupam ento hum ano, a reflexão
ética só aparece como tal na G récia quando a polis desponta como com unida­
de política (em substituição ao genos), gerando um novo tipo de hom em e,
assim, a tensão da diferença entre indivíduo e com unidade, entre história e
destino, tem atizada tanto na poesia trágica quanto em escolas filosóficas
como o estoicismo, o epicurismo e o ceticismo. N a tragédia, com o observou
A ristóteles, a fala dos personagens é m ais ético-política do que retórica.
Trata-se ainda aí, porém , de polis grega. M ais tarde, com o cristianis­
mo, a ética desloca-se dos quadros com unitários para o m undo inteiro (o
ecumenismo ), pregando a igualdade do ser hum ano enquanto tal. Em segui­
da, já na m odernidade, o pensam ento ético vai se to m an d o laico até che­
gar à filosofia novecentista, quando os problem as sociais e espirituais inse­

1 5 0 . M arx, Karl. 0 18 b r u m á r ío d e Lu ís B o n a p a r t e . A b r i l, 1 9 7 8 , p . 3 2 9 [ C o l. O s p e n sa d o r e s] .

132
rem -se na história. A ética, que já era deontológica (finalidades m orais, de­
veres, etc.) desde K ant, term ina confundindo-se com a m oral, p o r sua vez
reduzida aos im perativos de funcionam ento da sociedade m oderna, com
seus ideais de progresso e em ancipação. D essa confusão nasce a crise m o ­
derna do pensam ento ético.
Entretanto, há um a diferença entre a problem atização da ética no interi­
or do circulo discursivo da filosofia (constante nos tratados e nos “m es-
tres-de-pensam ento”) e os m odos com o os valores, as orientações práticas
do agir incidem sobre a vida concreta das sociedades. Por um lado, a ética
consiste em estratégias norm ativas, para o controle e o ajustam ento do agir
à idealidade da polis ; por outro, num nível m uito m ais com plexo, em sinali­
zações para o limite (a m orte) inerente a toda form a de poder já constituída
e cristalizada. É que, no agir, no com andar um a ação essencial ( arkhein , em
grego; agere , em latim ), capaz de dar vida a um a nova form a, está a liberda­
de do grupo.
Esse livre-agir é político, m as respaldado pela ética, enquanto discurso
da autoridade ancestral que perpetua a continuidade do todo ( holos ), p rovo­
cando os lim ites im p rescin d ív eis à m o rte e ao ren ascim en to das form as
de v ida grupais. Por isto, toda ética tem sem pre algo do holismo grego. Por
exem plo, toda educação - para A ristóteles, a form ação da personalidade
por um a boa fam ília num a boa cidade, logo, o processo pelo qual os indiví­
duos se tom am bons - im plica fundam entalm ente um a ética, na m edida em
que se destina a organizar as finalidades e os objetos consensuais em tom o
das forças de equilíbrio com unitário, isto é, do B em (to agathon).
Em bora a palavra “ética” tenha origem grega, o seu sentido, como se
pode inferir, tem alcance universal, na m edida em que as questões por ela le­
vantadas - por exemplo, as questões do bem e do mal, do justo e do injusto -
constituem mistérios a ser sondados por todo e qualquer agrupam ento hum a­
no que reflita sobre si mesmo, em especial a sociedade moderna, que faz da
filosofia e das ciências sociais as suas plataform as de auto-entendimento. E
isto o que leva a ética, nos últim os dois séculos, a estender-se do campo nor­
mativo até a análise cultural, não só o estudo antropológico e sociológico de
formações culturais diversas, mas tam bém das grandes obras literárias.
Ética não se com preende, portanto, com o m ero saber dos costum es ou
da moral, tal como se confundem os campos a partir da tradução latina (mos,
moris). A confusão se explica no com entário de Bergson: “Mores e moral,
norm a no sentido de constância e norm a no sentido im perativo: a un iv er­
salidade de fato e a universalidade de direito se exprim em quase do m es­

133
mo m odo” 151. H egel fazia um a distinção clara entre um a e outra, referindo
m oral à esfera das decisões subjetivas quanto ao agir e a ética ao espaço co­
m unitário dos costum es e dos m odos de realização do real. A confusão de­
corre, entretanto, de um parentesco: assim com o a im agem pode ser um a
encarnação da divindade, a m oral encarna a ética - é a “ ética social im edia­
ta” , de que fala H egel e com a qual fazem os contato. São coisas distintas,
m as a indistinção passa ao senso com um n a m odernidade, quando a ética se
confina à experiência da consciência subjetiva ou então aos regulam entos
especializados (“deontologias”), criando tensões recíprocas entre o agir in­
dividual e o coletivo.
São vários, com o bem se sabe, os pensadores m odernos que contornam
o problem a da ética, seja alegando a sua im possível form ulação (W ittgens-
tein: “a ética, se existe, é sobrenatural”), seja considerando que ela chegaria
sem pre atrasada (o livre-agir não p o d ería estar encerrado num a lei geral ou
na form a institucional dos deveres), com o é o caso de H eidegger, cuja preo­
cupação com o valor hum ano centra-se n a existência autêntica, portanto,
um a ética da autenticidade, que consistiría em evitar a im pessoalidade do
m undo. M as de um m odo geral, no interior do círculo discursivo da filoso­
fia (onde a rigor se levanta essa questão), a ética é de fato um a ontologia,
isto é, um a teoria do ser que indaga sobre as finalidades da existência hum a­
na e sobre os m eios para atingi-las, e não u m a m era interrogação deontoló-
gica sobre os deveres sociais.
A ética socrático-platônica, p o r exem plo, centra-se na injunção de que
tem os de indagar o que são form as com o coragem , justiça, lei e governo,
antes de acederm os à cidadania, que adv ém da plenitude política. Só que,
enquanto a ética antiga diz respeito às virtu d es no m odo hum ano de m orada
num território (logo, ao lugar ontológico do hom em ), a política refere-se ao
governo da Polis , portanto, ao controle e à participação nos m eios para se
atingir o B em na m orada em com um . O enunciado aristotélico “em toda
ação vige o em penho por algum b em ” ÇÉtica a Nicômacó) é ético por sua
referência à universalidade do valor, m as inclui tam bém a política na m edi­
da em que esta se legitim e por um a virtude, associada ao bem com um . T an­
to a ética quanto a política contêm a idéia de habitação ou de distribuição
dos lugares num território ( nomos ), com a d istinção de que a m orada p o lí­
tica diz respeito ao hom em enquanto im plicado num a situação polêm ica
quanto ao exercício, distribuição e d elim itação de poder.

1 5 1 . Be r g so n , H e n r i . A s d u a s f o n t es d a m o r a l e d a r e l i g i ã o . Z a h a r , p . 1 0 3 .

134
É tica pressu p õ e autoridade , que é um a d eco rrên cia d a am pliação da o r­
d em fu n dacional d a cid ad e - co n sid erad a com o um universo construído em
escala red u zid a ou u m a co m unidade “p erfeita” , no sentido de bu sca do m á ­
xim o de c o n clusão p o ssív el —e consenso em to m o dos fundam entos co m u ­
n itários, ao p asso que p o lítica pressu p õ e poder e contradição 152. M as n e­
n h u m destes dois term os existia de m odo autônom o ou separado, o que fica
patente na reivindicação (ética) da virtude da ju stiça com o fundam ento onto-
lógico da política. D a m áxim a socrática “virtude é conhecim ento” parte a
exigência platônica de u m saber correspondente à idealidade política, que se
traduziu n a convocação dos “am antes do saber” (os filósofos) a assum irem o
exercício da política. O p ensador não convocou a um “golpe de E stado” dos
filósofos, e sim invocou o saber da ju stiç a com o eticam ente essencial ao go­
verno dos hom ens, o que pressupunha u m a elite de alm as bem form adas.
C laro, esse apelo à tran scen d ên cia não corresp o n d ia a toda a realidade
p o lítica no interio r da polis , com o b em o dem o n stra o fenôm eno da tirania.
M as in d icav a a n ecessária vin cu lação da p o lítica à ética, o que levava A ris­
tó teles a en x erg ar n a po lítica u m a d eco rrên cia “natu ral” da v ocação h u m a­
n a p ara realizar escolhas em função do b em co m u m e individual, p rin cip al­
m ente levando-se em co nta que esse “p o lítico ” não se distingue do que a
m o d ern id ad e v eio a c h am ar de “so cial” , em co n seq ü ên cia da separação en ­
tre E stado e sociedade. O ho m em com o “ anim al po lítico ” ou “ anim al so ­
cial” ( zoon politikon ) é esse ser que tem a p articu larid ad e da busca de um
“co m u m ” inscrita em seu leque de p o ssib ilid ad es e “n atu ralm en te” dirigido
p ara a relação harm o n io sa co m o outro n a po lis , porque, diferentem ente dos
anim ais, é dotado de logos , ou seja, d a capacid ad e de to m ar a palavra e d e­
cid ir eticam ente sobre o ju sto e o injusto. Isto não im plicava afirm ar que to ­
dos os h om ens fossem po líticos, m as que o rg an izar a polis era um a excelsa
e ex clu siv a co n q u ista do hum ano.

U m a ig u a ld a d e su sp eita

P o r outro lado, a dem o cracia - p o sta em suspeição p o r Platão com o


pro v áv el o rig em da tiran ia - não era ex atam en te objeto de exaltação p o r
p arte desses m esm os que ap elavam p ara a o rdem excelsa dos valores. Eti-
m o logicam ente, dem o cracia significa p o d er dos demoi , isto é, das tribos,

1 5 2 . A r t i c u l a r n a m o d e r n i d a d e o s d o is c o n c e it o s (u m r e ú n e , o o u t r o d iv id e ) é b u sc a r l e g i t im a r
o p o d e r p e lo a p e l o a u m a e sse n c i a l i d a d e c o m u m , à t r a n sc e n d ê n c i a d o s v a lo r e s e d a s v ir t u d e s,
c o m o n a p o l i s g r e g a , n a c i v i t a s r o m a n a o u n a s f o r m u l a ç õ e s d e t e ó r i c o s c lá ssic o s d a p o l ít ic a .

135
co n sideradas em sua b ase territo rial (a base étn ica era a fratria), que co n sti­
tuíam o povo grego, ou seja, u m a co m u n id ad e (koinonia) fu n d ad a ao m e s­
mo tem po no sangue e no solo. A p o lis , m u ito p o ssiv elm en te fu n d ad a p ela
oligarquia das grandes fam ílias, garan tia o p rim ad o da co m u n id ad e sob re
os indivíduos. E stes p o d iam p a rticip ar d iretam en te das in stân cias de p o d e r
enquanto cidadãos, iguais entre si, m as sem p re su b m isso s às n o rm as e sta ­
b elecidas pela polis. N o ap o g eu da d em o cracia clássica, essa p a rticip ação
no p o d er co n so lid a a ãgora.
E ssa igualdade, com o b em se sabe, excluía os metecos , ou estrangeiros
com direitos lim itados, e os escravos, u m a v ez que, não sendo considerados
essencialm ente “p o lítico s” , eram “priv ad o s d a p a la v ra ” {aneu logou). O ri-
ginariam ente, a dem ocracia com o vontade co m unitária do povo de A tenas,
E sparta e T ebas (a politeia dem ocrática) era isonôm ica (a igualdade política,
que concedia liberdade de p alav ra aos cidadãos) apenas para com os “m ais
iguais que os outros” , ou seja, a m inoria elitista ou aristocrática dos cidadãos
constituída pelos filhos do genos , a etnia, a estirpe, de n atureza sagrada, que
representava para os gregos o ideal de excelência hum ana. O s gregos esta­
vam preocupados com essa liberdade e não com d em o cracia igualitária.
M as no final do século V , após o p erío d o de P éricles, os aten ien ses fa­
zem a ex p eriên cia de u m a d em o cracia rad ical (a demokratia ), em q u e o de­
mos, definido p o r A ristó teles com o o co n junto dos cid ad ão s qu e “ d ev em
trab alh ar para v iv er” (cam p o n eses, artesãos, trab alh ad o res, co m ercian tes,
marinheiros), revela-se onipotente, intolerante e violento. É precisam ente essa
h eg em onia dos m ais po bres que su scita a crítica à d em o cracia. U m o p ú sc u ­
lo anônim o sob o título de Athenaion Politeia (d atad o p ro v av elm en te do
período 429-424 a.C. e g eralm en te atrib u íd o a X e n o fo n te) ataca o s fu n d a ­
m entos da dem ocracia, p o r co n sid erá-la “um sistem a o p ressiv o e d eletério ,
m as perfeito à sua m an eira” , já que é co erente co m os in teresses dos m ais
p o b res153. Só que estes não teriam as qualid ad es da cu ltu ra e da fo rm ação ,
essenciais à bo a p articipação n a assem b léia dos cid ad ão s.
Para Platão, por ex p rim ir a sup rem acia de u m gru p o sob re o u tros, a d e ­
m ocracia nasce de um ato de violência: “Q u an d o os p o b res, tendo c o n q u is­
tado a vitória sobre os ricos, m assacram uns e b an em os o u tro s” 154. A d e m o ­
cracia é, para ele, um “ arm azém ” de gostos p articu lares e h o m en s de to d as
as espécies, em que o espírito da to lerân cia im p era sob re a ju stiça. A ristó te-

1 5 3 . C f . C a n f o r a , Lu c ia n o . La d é m o cr a t i e co m m e v i o l e n c e . D e sj o n q u è r e s. 1 9 8 9 , p . 6 1 .
1 5 4 . Ib i d .

136
les, p or sua vez - voltado para um a d em ocracia harm ô n ica, sem an tag o n is­
m os entre ricos e pobres deixa claro que dem o cracia não sig n ifica n eces­
sariam ente po der da m aioria, m as dom inação de u m grupo social, o demos.
D aí pode resultar a dem ocracia dem agógica ( demokratia ), resu ltan te da v i­
tória de um a totalidade inculta e invejosa frente aos m ais dignos p ara o
exercício do poder, ou u m a “bo a” dem ocracia, em que não h á opressão dos
pobres sobre os ricos, o que assim pro p iciaria o “m áxim o de lib erd ad e” .
B oa ou dem agógica, o fato é que em to d a a A n tig u id ad e, seja g rega ou
rom ana, a dem ocracia jam ais se realizou do m odo que seria d epois id ealiza­
do pela m odernidade liberal e p erm aneceu sem pre com o u m a am eaça de ti­
rania originária de estratos sociais reputados com o indignos p elas elites.
M as em bora os precedentes culturais da d em ocracia eu ropéia (e n o rte-am e­
ricana) rem ontem à G récia C lássica, a m o d ernidade desse reg im e tem p o u ­
co a v er na prática com suas fontes de inspiração, p o r ser o efeito p olítico do
individualism o renascentista (a que sem pre se associaram idéias de lib erd a­
de e progresso) e do universalism o de v alores característico do legado civi-
lizatório judaico-cristão. F u ndada no sistem a de rep resentação p arlam en tar
- individualista, prim ordialm ente voltado para a eco n o m ia e p ro m o to r do
universalism o ju ríd ico da cidadania - a liberdade assegurada p elas institu i­
ções dem ocráticas da m odernidade é individual (um a in d ep endência a ser
1 realizada) enquanto a liberdade grega se en tendia com o um livre-agir co ­
m unitário frente a outras organizações sociais, tidas com o bárbaras. A d e­
a m ocracia dizia respeito propriam ente à com unidade não-su b m etid a à tira­
nia estrangeira.
o Para o politólogo Schm uel E isenstadt, o ferm ento da m o d ern a d em o ­
i- cratização da relação entre governantes e governados está na energia in d i­
>, v idualista das sociedades civis (en ten d id as com o co letiv id ad es c a ra c te ri­
LS zadas p ela p resen ça de am p lo s seto res so ciais au tô n o m o s e in d e p e n d e n ­
tes fren te ao E stado) da E uropa O cidental. E le distingue sete característi­
cas institucionais e culturais de base: “ 1) a multiplicidade dos centros de deci­
são autônom os; 2) o alto grau de perm eabilidade entre as p eriferias sociais
S- e os centros políticos; 3) a flexibilidade social e a ausência de separações
> por dem ais estanques; 4) a forte autonom ia dos grupos sociais; 5) a p lu rali­
iS dade das elites, ao m esm o tem po que seus m últiplos recortes; 6) a indepen­
e- d ência do siste m a ju r íd ic o fre n te ao E sta d o ; 7) a a u to n o m ia das c id a d e s
e dos centros de criatividade intelectual, econôm ica ou científica” 155.

1 5 5 . C f . H e r m e t , G u y . Cu f t u r e et d em o cr a t i e . U n e sc o / A l b i n M ic h e l , 1 9 9 3 , p . 6 0 .

‘RASCJSC. ASO
iSr
C EN T R O
UKI VSZ 16J-*
Ruti ài >5 Maria
Este parece ser de fato o quadro em que o in d ividualism o, solo g erm i­
nal da d o u trin a c o n tratu alista, d e sp o n ta co m o p rin c íp io axial do lib eralis­
m o p o lítico (basicam en te com o ju sn atu ralism o de John Locke no século
X V II), p osto que, dotado de um d ireito h u m ano que se lhe afigura com o
“n atu ral” , cad a indivíduo é ju rid icam en te igual a todos os outros. A palavra
“in d iv id u alism o ” não aparece, entretanto, co lad a às origens do contratua-
lism o: ela é, sabidam ente, u m a ex p ressão criad a p o r A lexis de T ocqueville
na prim eira m etade do século X IX p ara d esig n ar o isolam ento social do in­
divíduo p o r ele observado nos E stados U nidos. M as tam b ém aquilo que, na
individualização, constitui a sob eran ia com o ú n ica e poderosa.
D e olhos excessivam ente abertos para o sol de sua pretensa igualdade e
autonom ia, o indivíduo de algum m odo se cega frente às condições em que se
produz agora a sua servidão. D iante deste novo ser posto no m esm o plano do
divino, desaparecem os fundam entos ou as transcendências, em que se assen­
tava a legitim idade da teo lo g ia p o lítica m edieval. A im anentização do m u n ­
do inerente ao liberalism o estabelece, não apenas o sentido da m odernidade,
com o tam bém as próprias possibilidades de realização da política, definidas
pela divisão do antigo poder absoluto e concepção de um a m oralidade ima-
nente, pela criação de um espaço de visibilidade para a ação hum ana (o espa­
ço público), pela idéia de constituição de direitos e dem ocracia.

D em o cra cia e m o d ern id a d e

N ada neste q uadro se reporta, entretanto, à ex p eriência antiga da dem o­


cracia, exceto um a certa idealização, que a erige em valor , ao m esm o tem po
em que o cu lta os o b scu ran tism o s do m o d ern o in d iv id u alism o d e m o c rá ti­
co. É o que transparece em observações irônicas, com o a do politólogo Gio-
vanni Sartori, para quem d em ocracia seria “ o nom e pom poso de algo que
não existe” . Q uando não é o nom e, é sim plesm ente a sua idéia, que pode sc
prestar a abusos autoritários de toda ordem : os fascistas italianos a reiv in d i­
caram sob a etiqueta de “N ação pro letária” , os nazistas tentaram confun-
di-la com a noção de Volk (povo).
M esm o fora do âm bito totalitário, d em ocracia pode não ser m ais do que
um m ecanism o form al ou “ pro cessu al” de governo sem q ualquer su b stân ­
cia histórico-social, m era regra tecnojurídica do jo g o político que consiste
em assegurar direitos individuais ou coletivos e form as institucionais relati­
vas à representação popular ju n to às esferas do Poder - o que não exclui a
p ossibilidade de tiranias da m aioria. É clássica a dicotom ia entre esta face
processual ou form al e a face da d em ocracia substancial, que ultrapassa o

138
nível d a m era form a de governo, p ara se d efinir, eticam ente, com o u m todo,
um m odo de vida, u m a cu ltu ra v o ltad a p ara a prom oção dos d ireitos sociais
e da responsabilidade cívica.
Q uando não é o caso de lutar contra os regim es ditatoriais pelo puro e
sim ples restabelecim ento da dim ensão form al da dem ocracia, a idealização
do valor dem ocrático encontra geralm ente o seu lugar no âm bito do p ensa­
m ento de esquerda, em que a dem ocracia é figurada com o u m a construção
sim bólica posta a serviço da soberania popular. C outinho, p o r exem plo, a en ­
tende com o a tentativa m ais bem -sucedida de superar a alienação n a esfera
pública, isto é, de levar o conjunto dos cidadãos a se reapropriar dos bens p o r
eles criados. Sustenta: “U m dos conceitos [...] que m elhor expressa, portanto,
a dem ocracia é precisam ente o conceito de cidadania. C idadania é a capaci­
dade conquistada p o r alguns indivíduos, ou (no caso de um a dem ocracia efe­
tiva) p o r todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialm ente cria­
dos, de atualizarem todas as potencialidades de realização hum ana abertas
pela vida social em cada contexto historicam ente determ inado” 156.
E ssa idealização con tem p la natu ralm en te as referências européias, em ­
bora se saibam de fontes africanas alusivas u m a form a endógena de d em o ­
cracia, abusivam ente d esco n h ecid a p ela an tro pologia e p ela h isto riografia
coloniais. É fato que o despotism o estatal só apareceu na Á frica em função
dos reinados postos a serviço do tráfico de escravos. A in d a assim , em ter­
m os da argum entação estritam ente po lítica em v o g a nos círculos acad êm i­
cos ocidentais, é teoricam ente m ais seguro falar-se de “reiv indicação d e­
m ocrática” do que de sua p rática efetiva. P recisa H erm et: “É m elhor, pois,
falar de reivindicação do que de p rática d em ocrática na longa duração afri­
cana. C om efeito, as análises detalhadas e docum entadas d em o n stram que a
hipótese de m ecanism os realm ente d em ocráticos nas sociedades africanas
tradicionais se verifica m al historicam ente. O s sistem as centralizados co n ­
servavam um a estrutura h ierárquica p ro nunciada, enquanto que os sistem as
clânicos ou “ sem E stado” se fundavam n u m a outra hierarquia, b asead a em
idade ou sexo e excluindo dos conselhos os jo v en s e as m u lh eres” 157.
Pode-se sem pre contra-argum entar com a evidência de que, tam bém na
G récia, a dem ocracia era excludente. M as o fato é que a identificação p ro ­
gressista entre soberania popular, dem ocracia e cidadania resulta de um a
reinterpretação histórica to m ad a possível pela idealização ou p ela atrib u i­

1 5 6 . C o u t i n h o , C .N . N o t a s so b r e c i d a d a n i a e m o d e r n i d a d e . In : C o n t r a a co r r en t e - En sa i o s so ­
b r e d em o cr a ci a e so ci a l i sm o . C o r t e z , 2 0 0 0 , p . 5 0 .
1 5 7 . H e r m e t , G u y . O p . c i t ., p . 7 2 - 7 3 .

139
ção de valor sim bólico à ex p eriên cia orig in ária d a d em o cracia acad em ica­
m ente bem conhecida. A idealidade filosófica da Polis g reg a ou da civitas
rom ana - onde a p o lítica é con ceb id a com o um a ação livre e afirm ativ a da
experiência integradora da j u s t i ç a - perm an ece com o u m a esp écie de norte-
am ento ético, um a espécie de fundo de reserv a ax io ló g ico do u n iv ersalis­
m o, para as teorias políticas subseqüentes n a h istó ria o cid en tal (as de H ob-
bes, Pufendorf, Locke, K an t e outros), m esm o que estas n a p rática en cam i­
nhem a política para o âm bito da técnica m o n o p o lista e ad m in istrativ a do
Estado. N a verdade, com o bem ob serva A rendt, “a polis d eterm in o u de fo r­
m a decisiva, quanto ao léxico e ao conteúdo, a rep resen tação euro p éia do
que é propriam ente a po lítica e seu sentido” 158. O ag ir p o lítico perten ce, as­
sim , àquela dim ensão que a an tro pologia cham a de simbólica (co n trastan-
do-a com o real e o im aginário), isto é, a in stân cia de estru tu ração das leis e
dos pactos fundacionais de u m a ordem social.
P or m eio da política, a m o d ernidade parece d ialo g ar diretam en te co m a
A ntiguidade grega. M esm o nos discursos de acento refo rm ista ou rev o lu ­
cionário, fazem -se latentes ou m an ifestas as referên cias à ex p eriên cia g re­
ga. A parece latente em G ram sci quando faz d a “catarse” u m conceito d e­
m onstrativo do papel da con sciên cia n a sociedade civil, ou então q uando
atribui ao m om ento “ético -p o lítico ” a possib ilid ad e de su p eração do eco n ô ­
m ico. U m exem plo atual de referên cia m anifesta: n u m tex to em que sugere
a incom patibilidade do capitalism o com a cid ad an ia p len a (a p len itu d e m o ­
derna dos direitos políticos, civis e sociais, que ab ran g ería inclusive a so ci­
alização da propriedade), o gram sciano C outinho afirm a que “não h á c id a­
dania plena (ou, o que é o m esm o, não h á d em ocracia) sem o que M arsh all
cham ou de “direitos po líticos” , isto é, sem a reto m ad a d aq u ela d im ensão da
cidadania que era própria dos gregos” 159.
N ão há, entretanto, nada de “natu ral” n a p o lítica - nem na cidadania,
nem n a dem ocracia - e m uito m enos no E stado, que é u m a realidade h istó ri­
ca. A organização política a que se dá o nom e de E stado não surge com o
um a expansão evolutiva das organizações de fratria ou de fam ília, e sim de
um a dinâm ica de articulação e integração social de co m unidades n um a u n i­
dade investida de suprem acia. Isto im plica poder , ou seja, u m a relação assi­
m étrica de forças em que a m arg em de lib erd ad e de u m do s p ó lo s re la c io ­
nais é m aior do que a do outro, quando se trata de decidir. N o lim ite entre o
previsível e o im previsível, entre o determ inado e o indeterm inado, insta-

1 5 8 . A r e n d t , H a n n a h . Q u ' e st - ce- q u e Ia p o l i f i q u e ? Se u i l , 1 9 9 5 , p . 7 4 .
1 5 9 . C o u t i n h o , C .N . O p . c i t ., p . 5 8 .

140
Ia-se a instrum entalidade da relação de p oder, d entro d a qual se in stitui a
política, em bora o poder, enquanto p ro cesso , p o ssa elid ir a esfera d a p o líti­
c a definida pelo Estado, com o b em o vê Foucault: “O p o d e r não é u m a in s­
tituição, e não é um a estrutura, n em u m a certa p o tên cia d e que alguns esta ­
riam dotados; é o n om e que se dá a u m a situação estraté g ica co m p lex a
nu m a sociedade d eterm inada” 160.
A polis ateniense resu lta do p o d er in teg rad o r de dez trib o s d istintas, a s­
sim com o R om a é a integração das co m u n id ad es do L ácio. In ex iste q u al­
qu er naturalidade de língua ou de raça nesse pro cesso , e sim o fenôm eno
histórico d a im posição de u m a u n idade suprem a, m ais n ítid o em R o m a do
que em A tenas. D e fato, séculos depois de terem in teg rad o os p o v o s do L á ­
cio, os rom anos absorveram co m unidades de lín g u a e etn ia d iferentes, re c o ­
nhecendo-os com o h ab itantes do Im pério.
São d iferentes os graus de intensidade das form as integ rad o ras g regas e
rom anas. A concretude em p írica que caracteriza a u n id ad e da C id ad e-E sta-
do {polis ), isto é, a identificação entre o E stad o e a sociedade em geral, dá
lu g ar à idéia (abstrata) de E stado am pliado quando, p o r m o tiv o s v ários, a
coesão da cidadania ganha força suficiente p ara m an ter a estab ilid ad e de
u m território extenso, p ro tegido p o r fronteiras - não m ais p o r m uralhas.
T rata-se m esm o da idéia co nstitutiva do E stado m o derno, não estruturado
pelo holos (totalidade), que é a racio n alid ad e d a in tegração ab so lu ta de to ­
dos os cidadãos num a u nidade po lítica ( a politeiá) orien tad a p e la eudaimo-
nia (a felicidade da integração), e sim em razão da v io lên cia fun d ad o ra e
guerreira. A palavra “ estado” é o m esm o que “un id ad e de do m in ação ” , g a ­
rantida pelo m onopólio perm anente de u m po d er central com a ajuda de ap a­
ratos de dom ínio crescentem ente especializados.
N os term os do p ensam ento político m oderno, essa un id ad e resu ltaria
da luta ilim itada e selvagem entre os hom ens, d ecorrente da instabilidade
de sua convivência. O s indivíduos não m ais se ag regariam p ara co m p arti­
lhar u m a existência ju sta e feliz, e sim - u m a vez convertidos em subjetivi-
dades autônom as, livres p ara contratar e g u errear - im p o r o dom ínio sobre
os outros. D aí, a exigência de u m controle externo capaz de reso lv er os c o n ­
flitos. Passa-se da “naturalidade” aristotélica d a p o lítica p ara a concepção
de política com o u m artifício im peditivo do caos.
Para M aquiavel, pensador inaugural da m odernidade política (exatam en­
te porque a concebe fora de qualquer transcendência), esse controle externo

1 6 0 . Fo u c a u l t , M . V i g i a r e p u n i r . V o z e s, p . 1 2 6 .

141
17.

deve centralizar-se na figura arquetípica do príncipe , que detém as condições


individuais ( virtú), tais com o sabedoria e força, para atuar com o líder (con-
dottiere) nas condições sociopolíticas existentes (fortuna). R enega-se total­
m ente a lição grega (aristotélica): não é a virtude que agora im porta, m as o
ser considerado virtuoso; portanto, não o valor, m as a sua im agem .
M aquiavel desloca, assim , a ênfase po sta sobre a relação harm ô n ica en ­
tre os h o m en s p a ra se o b te r c o esão so cial e p õ e em p rim e iro p la n o a arte
de governar, que im plica engano ou “astúcia da rap o sa” , não p o r desejo de
am oralidade, m as por ter o E stado com o valo r m ais alto. A o m odo dos artis­
tas do m aneirism o (derivação do barroco, onde p ro liferav am as distorções,
os jo g o s de espelhos, as m áquinas de p ro d u zir som bras), o príncipe deveria
ser um m estre do em bevecim ento e do engano. O p o d er po lítico seria reg i­
do p o r um a espécie de princípio da “sincera ilu são ” : finge-se sem pre, inclu­
sive acreditar no que se finge. A o príncipe cabe, assim , articu lar racio n al­
m ente virtú com fortuna , superando a fragm entação m edieval do poder, se­
parando dos eclesiásticos os interesses estatais e coagindo quando isto se
revelar necessário à constituição de u m E stado forte.
O m aquiavelism o, com o observa B obbio, é “a exposição teórica m ais
audaciosa sobre o absolutism o do p o d er estatal” , isto é, do E stado sem lim i­
tes. D iz ele: “Q uando se p ro clam ava que o p ríncipe estava acim a das leis,
geralm ente não se queria dizer com isso que ele estivesse tam bém acim a
das leis divinas e m orais. Por m eio da teoria do m aquiavelism o são quebra­
dos tam bém esses lim ites: o príncipe não é m ais som ente livre dos vínculos
ju rídicos, m as é tam bém (para usar um a expressão p rovocativa) além do
bem e do m al, quer dizer, livre dos vínculos m orais que d elim itam a ação
dos sim ples m ortais” 161. A soberania estatal - d efinida com o potestas supe -
riorem non recognoscens , isto é, “po d er que não reconhece su perior” e en ­
carnada num com plexo aparato de coerção - ju stificav a-se p ela doutrina de
um a m oralidade “natural”, presum idam ente capaz de g arantir a autonom ia
do sujeito e seus direitos individuais. N a suprem acia dessa m áquina de p o ­
der sobre toda a sociedade hum ana se assentam as bases do estado de d irei­
to e da dem ocracia m oderna.
M as tão forte terá parecido ao espírito m oderno esse artifício coercitivo
que H obbes o identifica ao L eviatã, o m onstro m arinho descrito nos capítu­
los 40 e 41 do Livro de Jó (A ntigo T estam ento) com o um anim al indom á­
vel, de força extraordinária. N a visão hobbesiana, o vínculo pacífico e v ir­

1 6 1 . Bo b b io , N o r b er t o . D i rei t o e Est a d o n o p en sa m en t o d e Em a n u el Ka rt t . M a n d a r i m , 2 0 0 0 , p . 2 1 .

142
tuoso dos hom ens é m antido pelo m edo, de tal m aneira que o governante
“deve dispor das forças necessárias para suscitar o terror que leve a vontade
dos indivíduos à conform idade com a unidade e a concórdia” 162. Esse m edo
atávico do estado de caos ou de natureza - onde cada um pode m atar a quem
queira - é o ponto de partida para a construção do E stado em H obbes, com o
nos faz v er Schm itt: “O terror do estado de natureza em purra os indivíduos,
cheios de m edo, a ju n tar-se; a sua angústia chega ao extrem o; fulge então a
chispa de luz da razão e perante nós surge subitam ente o novo d eus” 163. O
“novo d eus” é o L eviatã (na verdade, descrito com o “D eus e hom em , ani­
m al e m áquinas”), portador de segurança e paz para os hom ens e, p o r isto,
soberano que exige obediência absoluta.
E m sum a, é da racionalização de um estado em ocional originário e p er­
m anente (no lim ite, o m edo da m orte que atravessa e form a a consciência
dos indivíduos) que surgiría a socialização política, m as não com o um a
com pensação tirânica ou despótica para u m a distorção irracionalista. O
m edo, em H obbes, diferencia-se do terror ou pânico absoluto, porque não
tem um sentido puramente destrutivo, mas principalmente construtivo de agre­
gação e relaçõ es sociais - m ais co n cretam en te, de subm issão das m assas
ao E stado. E ssa subm issão, decorrente do interesse próprio dos carentes de
proteção, apresenta-se, assim , com o perfeitam ente racional. Todas as p ai­
xões da dignidade pessoal e das lutas pelo reconhecim ento de si m esm o dão
lugar ao bem com um adm inistrado pelo Estado. N a antropologia política de
H obbes, com o bem observ a S loterdijk, há o p ro p ó sito delib erad o de o rg a­
n izar a m assa com o súdita absoluta: “P areceu necessário a H obbes castrar
politicam ente todos os p retendentes a reconhecim ento, praticam ente toda a
população do Estado absolutista, em particu lar a alta nobreza e a nobreza
rural, a fim de m arcar a todos com o critério distinto da capacidade estatal,
da subm issão solícita” 164.
O m edo põe fim à distinção entre aristocratas, burgueses e cam poneses,
nivelando-os. Por isto é a origem e a m anutenção do pacto fundacional da
política: a dem anda de proteção engendra a dom inação, e da relação d ialéti­
ca entre estes dois term os surgem tanto os m ecanism os do poder quanto os
p rincípios de sua lim itação. U m a dádiva (a proteção) é de fato a fonte o rigi­
nária da autoridade necessária para que os subordinados, aqueles que ob e­

1 6 2 . H o b b e s, Th o m a s. D e e iv e . In : O p e r a p h i l o so p h i c a . A a l e n , 1 9 6 1 , v o l . II, p . 1 2 7 .
1 6 3 . Sc h m it t , C a r l . El Lev i a t h a n en Ia t eo r i a d e i Est a d o d e To m á s H o b b e s. St u h a r t & C i a ., 1 9 9 0 ,
p. 30.
1 6 4 . Slo t e r d i j k , Pe t e r . O p . c i t ., p . 4 3 .

143
decem , reconheçam com o legítim a a dom inação im plícita na relação subor-
dinante. N enhum poder m antém -se com o puro (no sentido de m ero exercí­
cio de constrangim ento ou de força) ou ditado exclusivam ente pelo m edo,
um a vez que, durando, obriga-se à socialização (proteção, concessões, b e­
nefícios, etc.), im plicada na dádiva. Este é, portanto, o princípio e a lim ita­
ção da subordinação.
“D ádiva” (ou “dom ”), term o pertinente à dim ensão sim bólica, é certa­
mente um a expressão m ais cara à antropologia do que à teoria política. N o
entanto, como sinaliza B audrillard, nele está assentado o essencial de um a
relação de poder, que é tanto m aior quanto menores são as chances de um a re­
versão sim bólica pelo “contradádiva” . D iz ele: “O poder pertence àquele
que pode dar e a quem não se pode restituir. D ar, e fazer de tal m aneira que
não se possa receber algo de volta, é quebrar a troca em benefício próprio e
instituir um m onopólio: o processo social fica assim desequilibrado. D ar de
volta é quebrar esta relação de poder e instituir (ou restituir), à base de um a
reciprocidade antagonista, o circuito da troca sim bólica” 165.
Isso está perfeitam ente claro na origem da política m oderna, resultante
da doutrina liberal, que nasce ao suspender a violência e a caução da trans­
cendência (o sagrado, a Igreja, etc.), “doando” aos indivíduos a garantia de
proteção, acrescida de benefícios e favores. O poder de Estado im põe-se,
assim , a partir da m onopolização do exercício da força (a suspensão da vio­
lência, garantida pelo poder m ilitar) e da econom ia (finanças, im postos, b e­
nefícios), progressivam ente adm inistrada p o r um aparato de dom inação di­
ferenciado, que protege os “ sujeitos do m ed o ” , os cidadãos, m as sem pre
sob um reg im e de am eaça secu n d ário , a rtific ia l, p re se n te n a p o ss ib ili­
dade da sanção: o m onopólio da violência é, assim , tam bém o m onopólio
do medo. E o m esm o pressuposto do direito e da m oral. Trata-se de um a di­
nâm ica em que o E stado se p laneja nos term os de u m a especificidade fun­
cional (uma complexa m áquina administrativa, distinta da totalidade da exis­
tência social) e do aum ento de garantias para o exercício do poder.
N este âm bito, onde perdem sentido a legitim idade teológica ou qual­
quer fundam ento transcendental (o Leviatã hobbesiano é um “deus m or­
tal”, avesso a qualquer teologia política), a política efetivam ente existente
só se tom a possível no interior da institucionalização estatal, ainda que os
processos eleitorais e os m ecanism os representativos introduzidos na es­
fera civil procedam praticam ente da Igreja. O que confere unidade ao E sta­

1 6 5 . Bau d rillard , Je an . Po u r u n e cri t i qu e d e l 'éco n o m ie p ol it iq u e d u si g n e. G a llim a r d , 1 9 7 2 , p . 2 0 9 .

144
do, caracterizado por M arx com o o rganização da classe dom inante (logo,
com o um instrum ento form ado à im agem das classes no poder) que abarca
tanto as relações econôm icas quanto a d iv ersid ad e relacio n ai d a sociedade
civil, é basicam ente a política. U m a p olítica, d iz ele em seu Manifesto do
Partido Comunista , que o scila d ialeticam en te en tre a d itad u ra e a d e m o ­
cracia: o Estado burguês, ainda que dem ocrático, é um instrum ento de opres­
são p ara os explorados; o E stado socialista, transição suposta do cap italis­
mo para um a sociedade sem classes, seria instrum ento de dom inação do p ro ­
letariado.
P or quê? Porque se supõe que, n a fixação das estruturas sobre as quais
os indivíduos realizam os seus interesses privados, p rev alecería a ação li­
b ertária do operariado, dirigida para u m a m aio r identificação entre o E sta­
do e a sociedade em geral.

S ob eran ia e h eg em on ia

A o definir soberania, em m eados do século X V I, com o “o po d er ab so ­


luto e perpétuo que é próprio do E stado, Jean B odin, cu ja reflexão p o lítica é
tida com o a m ais im portante da época de form ação dos g randes E stados te r­
ritoriais, precisa que “ quem é soberano não deve estar sujeito, de m odo al­
gum , ao com ando de outrem ; deve po d er p ro m u lg ar leis para os seus sú d i­
tos, cancelando ou anulando as palavras inúteis dessas leis, substituindo-as
- o que não pode fazer parte quem está sujeito às leis ou a pessoas que lhe
im ponham seu poder” 166. E sse po d er absoluto - em bora lim itado p ela sum-
ma potestas divina e pelas leis fundam entais do Estado - pode, segundo B o ­
din, resid ir tanto no povo com o no p ríncipe ou na classe aristocrática.
C laro, a dom inação p o lítica exercida pelo E stado m oderno, apesar da
persistência de seu caráter burguês, p assa p o r transform ações, identificadas
por G ram sci já em pleno século X X e refletidas em seu conceito de hege­
monia, que am p lia o alca n c e so cial do E sta d o , d eix an d o de c o n sid e rá -lo
o p u ro in stru m en to visto p o r M arx. T rata-se, p ara ele, de um a hibridização
de liderança (na prática, u m a direção ideológica e política) com dom inação,
exercida p o r m eio de força e im posição entre B loco H istórico (bloco, co n s­
tituído p o r alianças sociais e políticas, com controle do p o der de E stado e

1 6 6 . C f . Bo b b io , N o r b e r t o . A t eo r i a d a s f o r m a s d e g o v e r n o . U n B , 1 9 9 7 , p . 9 6 . Bo b b io , q u e e st á
c it a n d o D e Ia r e p u b l i q u e (p u b lic a d o e m 1 5 7 6 , e m f r a n c ê s), sa li e n t a q u e e st a é " a o b r a d e t e o ­
r i a p o l ít ic a m a is a m p l a e m a is sist e m á t ic a d e sd e a P o l ít i ca , d e A r i st ó t e l e s" .

145
com predom ínio cultural na sociedade civil), classes sociais e suas frações.
A sociedade civil (conceito central na teo ria g ram sciana), ainda que dialeti-
cam ente co m plem entar à sociedade política (governo, forças arm adas, b u ­
rocracia, po d er ju d iciário , etc.), é o locus de co n strução e irradiação da h e­
gem onia, ou seja, dos v alores que co n fo rm am os interesses da cidadania e
co ncorrem p ara a direção intelectual e m o ral dos g rupos sociais.
U m a transform ação no táv el é que, n a p o lítica necessária à construção
da heg em o n ia de u m p ro jeto de E stad o -N ação , o prín cip e deixa de ser o
condottiere descrito p o r M aq uiavel (m onarca, dirigente, tirano, presidente,
etc.) p ara to m ar-se partido político , ou seja, u m a co letividade capaz de in­
terp retar e lid erar indivíduos, grupos e classes sociais. Isto im p lica um in­
crem ento n a racio n alid ad e o rganizativa do E stado: a dom inação bu ro cráti­
ca é de fato u m passo adiante, em term os de ex ercício de poder, do carism a
ou do em ocionalism o característicos do gov ern an te antigo. “O m oderno
prín cip e” , su stenta G ram sci, “não pode ser u m a pesso a real, um indivíduo
concreto, só pode ser u m organism o, u m elem en to com plexo de sociedade
no qual já ten h a tido início a co n cretização de u m a vontade coletiva reco ­
n h ecid a e afirm ada parcialm en te n a ação. E ste o rganism o j á está dado pelo
desenvolvim ento histórico e é o partido p o lítico ” 167. O organism o p artid á­
rio é u m “intelectual orgânico e co letiv o ” , capaz de fazer as m ediações en­
tre as forças produtivas e as condições só cio -político-culturais e, portanto,
responsável p ela conexão histó rica entre a teo ria e a prática.
Sem pre dialogando com a obra de M aquiavel, G ram sci m ostra que, no
partido, com binam -se líderes e liderados, com pelidos a trabalhar com o con­
senso im plicado n a hegemonia e com a força característica da soberania , que
é o suprem o p o der de decisão. M as distante quatro séculos do pensador re­
nascentista do A bsolutism o, o teórico m arxista é u m crítico da política, tal e
qual ela se realiza no cam po da práxis (algo, p ara ele, suscetível de transfor­
m ações históricas), com o m ero conjunto das práticas e das instituições que
regem as relações de poder entre governantes e governados. Este é o conceito
restrito de política (objeto de um a “ciência política”), isto é, a Realpolitik ou
política com o efetivam ente se realiza. P ara G ram sci, trata-se aí da “p eq u e­
na po lítica (política do dia-a-dia, política parlam entar, de corredor, de intri­
gas” , que “com preende as questões parciais e cotidianas que se apresentam

1 6 7 . G r a m sc i , A n t o n i o . O m o d e r n o p r ín c ip e . In : M a q u i a v e l , a p o l ít i ca e o Est a d o m o d e r n o . C i ­
v i l i z a ç ã o B r a si l e i r a , 1 9 8 8 , p . 7 8 .

146
no interior de um a estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela pre­
dom inância entre as diversas frações de um a m esm a classe política” 168.
N essa política em sentido restrito, há sem pre, segundo B adiou, três ele­
m entos: “D e início, há as pessoas, aquilo que elas fazem , o que pensam , o
conjunto de suas atividades concretas, o conjunto da vida popular. E m se­
gundo lugar, há as organizações. O rganizações que tentam form ular p ers­
pectivas coletivas: os sindicatos, as associações de bairro, os grupos, os co­
m itês e, finalm ente, os partidos políticos. E m terceiro lugar, há os órgãos do
p o d er do Estado, os órgãos constitucionais e oficiais do poder: as A ssem ­
bléias Legislativas, o poder do Presidente, do G overno, e o conjunto dos po­
deres locais. [...] U m a p o lítica consiste sem pre em b uscar os seus objetivos
articulando os três elem entos: o povo, as organizações e o E stado” 169.
P ara B adiou, a concepção clássica desta articulação - m anifestada sob
as form as conservadora, reform ista, revolucionária e fascista - é unânim e
quanto à idéia de que os partidos políticos, representantes de interesses
opostos, entram em conflito pela posse do poder de Estado, m as divergente
quanto à natureza do conflito ideológico: necessariam ente violento para as
form as fascista e revolucionária; controlável p or regras constitucionais, se­
gundo as concepções reform ista e conservadora. U nânim e ainda é a p o si­
ção da concepção clássica quanto ao fato de que a política é a representação
desse conflito.
Pois bem , parlam entarism o é o nom e da representação que perpassa
m odem am ente a articulação entre o povo, as organizações e o Estado. T ra­
ta-se, em resum o, da organização da representação por meio de eleições co­
m o m ecanism o central. M ais um a vez, B adiou: “O parlam entarism o tem as
seguintes características: de início, as tendências presentes no povo podem
organizar-se livrem ente em associações [...] expressam , assim , de m aneira
coletiva, as idéias, as reivindicações, a vontade, incluindo ações públicas, o
que significa um a série de direitos: direito de greve, direito de m anifesta­
ção, direito de publicar. Esses direitos, todos eles, podem ser cham ados de
direitos à representação p ú b lica” 170. N a verdade, porém , a segunda caracte­
rística d eixa claro que só os partidos p olíticos podem ser representados di-

1 6 8 . C o u t i n h o , C a r l o s N e lso n . O c o n ce it o d e p o lít ic a n o s C a d e r n o s d o C á r c e r e . In : C o u t i n h o ,
C a r l o s N e lso n & T e i x e i r a , A n d r é a d e Pa u la (o r g .). Le r G r a m sci , e n t e n d e r a r e a l i d a d e . C i v i l i z a ­
ç ã o B r a si l e i r a , 2 0 0 3 , p . 7 2 .
1 6 9 . B a d io u , A l a i n . Po l ít i ca : p a r t i d o , r e p r e se n t a çã o e su f r á g i o . Pr o je t o , 1 9 9 5 , p . 1 9 . -
1 7 0 . I b i d .f p . 2 0 - 2 1 .

147
retam ente no nível do E stado. E m co n seq ü ên cia, a p o lítica efetiv am en te
existente no sistem a p a rlam en tarista é su b o rd in ad a ao E stado.
H istoricam ente, foi o lib eralism o que p o ssib ilito u o pro jeto m o d ern o
do político. Isto se deu ao cu sto de u m a red u ção d a am p litu d e do ag ir p o líti­
co p o r parte do governo dos ho m en s, p o r sua v ez d ep en d en te da técn ica, d a
adm inistração, da delegação de p o d eres, do d ireito , do racio n alism o arg u -
m entativo, etc. P ensada rad icalm en te, essa red u ção é u m a neg ação do ag ir
p olítico em sentido am plo - afirm ativ o e cria d o r - e a lib erd ad e daí d eco r­
rente é negativa, é a liberdade de não ser obrigado a algo. D este m od o , o
p o lítico, u m ad je tiv o , re ific a -se c o m o o su b s ta n tiv o “p o lític a ” , q u e p a ss a
a se r e n ten d id a em sentido restrito com o ex ercício do p o d e r de E stad o (re­
lação de p o d er entre gov ern an tes e g o v ern ad o s), q u an d o não se co n fu n d e
com o direito, u m a v ez que as in stitu içõ es lib erais p lasm am -se com o d ire i­
tos, ao invés de deveres.
E m p rincípio, não se v ê aí m ais n en h u m esp aço p a ra a essen cialid ad e
eticam ente in v o cad a no o rd en am en to p o lítico d a A n tig u id ad e. M as a u n i­
versalid ad e da p o lítica vive d a id éia de u m a ação p o ten cialm en te livre e c o ­
letiva - logo, u m a liberdade afirm ativ a, a in d a qu e p a rta d a n eg ativ id ad e li­
b eral - e não da p ad ro n ização to talitária das açõ es a p a rtir dos m o d elo s e s­
tatais de exercício do po d er, qu e term in am de fato ab so lu tizan d o o E stad o
com o valor.
A id éia desse p o tencial liv re-ag ir não se m an tém p o r m era id ealid ad e
teó rica ou p o r qu alq u er sub lim id ad e d a ex istên cia h u m an a, m as p ela razão
de que a política, n a m ed id a em que se assente no im p u lso ético de u ltra p a s­
sar os lim ites de u m d eterm inado m o d elo societário , é sem p re excessiv a, ou
m esm o infigurável, com relação às institu içõ es que h isto ricam en te a m o l­
dam . Q uando um rev o lucionário com o K au tsk y faz u m a d istin ção en tre os
pontos de v ista do teórico da p o lítica e o p o lítico p rático , está ciente de que
ao prim eiro cabe traçar as tendências gerais do m ovim ento histórico, en ­
quanto que o segundo se atém ao exam e das etapas co n cretas e da co m p le­
xidade desse m ovim ento.
M as teórico e prático têm de se ap o iar n u m solo “ ético ” (a p alav ra p o d e
e v en tu a lm en te e sta r au se n te , m as n ã o o se n tid o d e a firm a ç ã o d a lib e rd a ­
de ou de um v alo r absoluto da vida), p ara su sten tar que a p o lítica, en q u an to
p ro m essa o u a n tec ip ação , ja m a is c o in c id e c o m o q u e e fe tiv a m e n te e x is ­
te em term o s de estrutura. Seu cenário de esperan ças terren as (su b stitu to d a
esperança religiosa de u m a v id a m elh o r n u m outro m undo, após a m orte)
instaura u m a tensão escatológica (p rogresso, em an cip ação , rev o lu ção , etc.)

148
qu e acio n a as u to p ias, os m o v im en to s d e tran sfo rm ação , v isto s p o r M arx
co m o m ó v eis h istó rico s p a ra a co n stitu ição final de u m a co m u n id ad e p o lí­
tica. M u ito s dos d ireito s p o lítico s (su frág io u n iv ersal, d ireito d e o rg an iza­
ção , de g rev e, etc.) dos trab alh ad o res e das classes su b altern a s, ainda que
teo ricam en te in scrito s no h o rizo n te de p o ssib ilid a d e s do lib eralism o b u r­
g u ês, resu ltaram d e d u ras lutas c o n tra esse m esm o reg im e liberal.
N o “e x cesso ” , q u e d á m a rg e m às lu tas e às c o n q u istas dos setores p o p u ­
lares, o v a lo r ético ap arece co m o e lem en to de d in am ização do agir. O v alo r,
d iría a an tro p o lo g ia, p ro ced e d a d im en são sim b ó lica ou, seg u n d o a reflex ão
filo só fica, do fato d a ex istên cia: o h o m e m n ão v iv e sim p lesm en te, co m o o
an im al, m as existe, o q u e sig n ifica p aix ão p e la v id a e im p u lso d e d eb ru ­
çar-se reflex iv am en te sobre ela, em b u sc a d e sen tid o e d a am p liação de seus
h o rizo n tes existen ciais. Isto o faz su jeito d e u m a in q u ietação e o leva a to car
n a b o rd a d o tem p o qu e o c o n stitu i co m o su jeito , a u ltra p a ssa r lim ites.
O entendim ento do conceito d e v alo r está ligado à co m p lexidade do p ró ­
prio p ensam ento, p o is se trata d a d im ensão onde se m o v im en ta o espírito
p ara ir além d a ex p eriên cia atual ou d a “n aturalidade” dos desejos (a sim ples
satisfação d e n ecessidades, a p u ra v o n tad e de m anu ten ção d e si m esm o). Só
que é u m a dim ensão, assim com o a do infinito, que não po d em o s conhecer
instrum entalm ente. C om o assin ala A lquié, “n ó s não tem os conhecim ento
positivo do infinito ou do valor: v alo r e infinito estão, contudo, presentes p ara
nós, u m a v ez que a p artir deles nós ju lg am o s curtos dem ais os instantes de
nosSa vida, baixos d em ais os instintos de n o ssa natureza, peq u en o s dem ais os
objetos lim itados e tem porais que são p o r n ós encontrados” 171.
V a lo r é a in d eterm in ação que d e a lg u m m o d o n o s d eterm in a. N ão é n e ­
n h u m ab so lu to (ao m o d o de u m co n ceito g erid o p e lo s te ó lo g o s) d e que o li­
b eralism o te n h a d e se d esem b araçar p a ra d ar lu g ar à política. É, sim , e n ­
qu an to relacio n am en to v isceral co m a v ida, u m a m o tiv ação p ro fu n d a da
ação do ho m em , esse sujeito de u m d e sco n ten tam en to rad ical qu e o lev a a
sem p re ir além , su b stitu in d o a “ etern id ad e” m etafísica o u tran scen d en te do
ser p e la d in âm ica h istó rica e im an en te do ag ir o u do realizar. A ética d eco r­
re p recisam en te das d ecisões que a co m u n id ad e to m a so b re o v alo r quando
se p õ e o p ro b le m a de o rien tar as relaçõ es in d iv id u ais e co letiv as no em p e­
nho de p ro d u ção do real. P o r isto ela é a p o ssib ilid ad e d e estru tu ração sim ­
b ó lica do sujeito, a m esm a que m o d em am en te nos d iz que cad a h o m em
v ale o outro.

171. A l q u i é , Fe r d i n a n d . Le d é si r d ' é t e r n i t é . Q u a d r i g e / P U F, 1 9 9 0 , p . 9

CENTRO ffft.* •'.-V . 149 , , .


• '• ■ • • • ^ / r c . NO
n c ‘OCA
N a d in âm ica h istó rica do agir, v alo r e d ev er (d ev er ser, fins coletivos,
etc.), sem o abso lu tism o im o b ilista dos univ ersais relig io so s, exigem -se re­
ciprocam ente, expondo assim u m a das grandes dificu ld ad es do liberalism o
co n tem p o rân eo , que é ju sta m e n te a de aceitar, p o r seu apego estrutural ao
im an en tism o dos d ireito s, a im p licação de v a lo r e dev er. N a co n tem p o ra-
neid ad e, as referências axiológicas - parâm etros de v alo r - que antes regiam
o com p o rtam en to h u m ano vão p erdendo p ro g ressiv am en te o seu p otencial
de atração das co n sciências. P o r quê? P o rque o simbólico - dim ensão de re ­
cip rocidade e tro ca inerente à estru tu ra social, em que se ex p licitam as leis e
as co n venções fun d acio n ais do grupo hu m an o - é levado a retrair-se em b e­
nefício de u m a espécie de cu rto-circuito entre im ag in ário e real, p o ten ciali­
zado p ela m ídia.
N ão é que in ex istam n o rm as - elas estão aí n o s códigos escritos ou nos
costum es vividos. M as a radicalid ad e ética não está no conteúdo das n o r­
m as, e sim n a form a com que o ho m em se relacio n a com elas, está no res­
peito ou no reco n h ecim en to com unitário de sua im p o rtân cia vital. C om a
co ntínua p erd a de força ax io lógica (o enfraq u ecim en to dos valores e dos
univ ersais) das estruturas sociais, as ações não têm p o r que se o rien tar na
direção de g randes fins. Isto conduz a p o lítica (d essim bolizada) à form ali­
zação do aparato ju ríd ico -co n stitu cio n al ou ao fetichism o da técnica e do
m ercado, dos quais constitui irradiação ex em p lar a p rev alên cia da m ídia no
p rocesso eleitoral de hoje.
P o r isso, tal d in âm ica solicita um a concepção não restrita, m ais livre,
de política. É o q ue já fazia G ram sci, po r exem plo, com o observa C.N. Cou-
tinho, ao em pregar nos Cadernos o conceito de política tam bém num a acep­
ção am pla, “ id en tificad a co m liberdade, co m univ ersalid ad e, ou, m ais p re­
cisam ente, com todas as form as de práxis que su peram a sim ples recepção
passiv a ou a m an ipulação dos dados im ediatos d a realid ad e (recepção e m a­
n ipulação que caracterizam grande parte d a práx is técnico -eco n ô m ica e da
práxis co tidiana em geral), e que se dirigem , conscientem ente, ao contrário,
para a to talidade das relações objetivas e sub jetiv as” 172.
N esta concepção, ética e p o lítica reen co n tram -se com o experiência on-
tológica, p erm eando todas as dim ensões da realidade social e encam inhan­
do-se para o que G ram sci designa com o catarse , ou seja, “a passagem do
m om ento m eram ente econôm ico (ou eg o ístico-passional) ao m om ento éti-
co-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na

1 7 2 . C o u t i n h o , C a r l o s N e lso n . O p . c i t ., 7 0 .

150
consciência dos hom ens. Isto significa, tam bém , a passagem do ‘objetivo
ao su b jetiv o ’ e da ‘necessidade à liberdade’: assim , a subjetividade política
(o partido, p o r exem plo) constitui-se pela intem alização da objetividade da
classe social, pela passagem da ‘classe em s i’ à ‘classe para s i’. A estrutura,
de força exterior que esm aga o hom em , assim ilando-o e o tom ando passi­
vo, transform a-se em m eio de liberdade, em instrum ento para criar um a
n ova form a ético-política, em origem de novas iniciativas” 173.
C om o se vê, n a distinção categorial que faz entre “grande política” e
“p equena p o lítica” , G ram sci reserva à prim eira a acepção de form a social­
m ente criativa, que pode abranger desde “as questões ligadas à fundação de
novos E stados” até novas relações de força no interior de um m esm o grupo,
o que im plica a preocupação com a dim ensão potencial, o dever-ser, consti­
tutivo da ética. É o im pulso ético no interior da política (portanto, no m ovi­
m ento de apontar para os lim ites das form as históricas, resultantes da práxis
m anipulatória das instituições, o im pulso de cam inhar p ara a afirm ação de
u m a liberdade) que leva as classes sociais a priorizar a estrutura, a conceder
o prim eiro plano à totalidade, com o se faz na “grande p olítica” .
C om outra term inologia, A rendt atribui à política a condição (tam bém
excelsa, tam bém ética) de ú nica atividade que relaciona diretam ente os ho­
m ens. E la parte do conceito de mundo ( mundus , com o bem se sabe, era a
fossa ou o buraco central, em tom o do qual R ôm ulo e R em o dem arcaram as
terras fundadoras de R om a, passando daí a significar o círculo dos próxi­
m os) para entender o fenôm eno político, já que essa palavra contém os
pressupostos do território e d a autoctonia. D efinindo o mundo com o lugar
da produção hum ana, oposto a terra e natureza, ela vê nele o objeto da po lí­
tica, pois esta se destinaria a co n stm ir “relações que existem entre os habi­
tantes deste m undo feito pelo h o m em ” 174. C om a p rem issa da equivalência
entre v iver e estar ju n to a outros (inter homines esse), a pensadora alem ã
afirm a a p luralidade com o “lei da terra”, logo, o m undo com o pressuposto
da política. E sta surge precisam ente no espaço que está entre os hom ens,
logo em algo externo ao indivíduo: “N ão existe um a substância verdadeira­
m ente política. A política nasce no espaço interm ediário e se constitui
com o relação. E o que H obbes tinha com preendido” 175.

1 7 3 . Ib i d .
1 7 4 . A r e n d t , H a n n a h . La v i e d e 1 'esp rít , / . PU F, 1 9 8 1 , p . 9 1 . C f . C o u r t i n e - D e n a m y , Sy lv ie . In :
Pr e f á c io a Q u ' e st - ce - q u e Ia p o l i t i q u e ?
1 7 5 . A r e n d t , H a n n a h . Ib i d ., p . 4 2 .

151
P ara A rendt, H o b b es p erceb era q u e o “ estad o d e n atu reza com o g u erra
de todos contra todos” tinha com o p ressuposto a co n cepção do h o m em cria­
do à im agem de u m D eus ú n ico e so litário , d ian te do q u al cad a u m , p o r sua
insignificância, to m a-se ob jeto de ó dio do o u tro - “ o h o m e m é o lobo do
h o m em ” . F o ra desse so lip sism o p o ten cialm en te v io len to existe, seg u n d o
ela, o espaço entre um h o m em e o utro, q u e se a p resen ta co m o “ liv re” p o r
não estar subm etido aos im pulsos in d iv id u ais, n em às m ú ltip las d ep en d ên ­
cias às necessidades de o rd em m aterial. A s relaçõ es to m a d a s p o ssív eis p ela
ação h u m ana dentro desse espaço in term ed iário c o n stitu em a p lu ralid ad e
dos seres d iferen tes e o m undo. Sobre tais p ressu p o sto s fu n d a-se a p o lítica,
u m a p rática de o rganização da recip ro cid ad e dos seres d iferen tes em co m u ­
nidade, cujo sentido básico é a liberdade. P o lítica seria assim , p rim o rd ia l­
m ente, ação h u m an a p reo cu p ad a co m p lu ra lid a d e e m undo.
C om o se vê, essa co n cep ção en fo ca a p o lític a fo ra de seu sentido re stri­
to - e, po rtan to , fora d a p u ra racio n alid ad e e co n ô m ico -cap italista que lhe
retira a autonom ia e o rem ete circularm ente ao conceito de E stado - , m as no
interior de um pensam ento da tran scen d ên cia que v ive m ais da filosofia da
história do que da existência concreta e ago n ística d a política. P erde-se, as­
sim, de algum m odo, a singularidade das ações políticas, que se alim enta das
tensões entre o form alism o dos direitos ditos un iv ersais e as p o ssibilidades
concretas de ação livre dos indivíduos, sem pre legíveis n as entrelinhas da es­
crita do p oder e no excesso ético que a m p lia a d im en são do p o lítico .
É tal “ex cesso ” que d á m arg em à p erm an ên cia da questão: E m que c o n ­
siste ex atam ente o p o lítico en q u an to tal, p ara além de su a m era in stitu cio ­
nalização ju ríd ica? S chm itt, u m dos m ais arg u to s p en sad o res p o lítico s e j u ­
ristas do século passado, p arte d a sup o sição de a u to n o m ia da p o lítica com o
cam po, opondo-se diferen cialm en te a o u tro s p ro cesso s e ten d en d o a to tali-
zar-se, absorvendo todo e q u alq u er o u tro m o d o de agir. M as p ara d ete rm i­
n ar a especificidade do “p o lítico ” com o essa esfera d istin ta de decisõ es -
“U m a determ inação conceituai do po lítico só p o d e ser ob tid a m ed ian te a
descoberta e identificação das categorias esp ecificam en te p o líticas” 1761 7-
seria necessário fixar dois term os o p o sitiv o s cap azes de d elim itá-la. A ssim
com o um a distinção últim a no âm bito d a e stética seria en tre o b elo e o feio,
no cam po da ética entre bem e m al, etc., “ a d istin ção esp ecificam en te p o líti­
ca a que podem reportar-se as ações e os m o tiv o s político s é a d iscrim in a­
ção entre amigo e inimigo”111, desde que se en ten d a esta co n ceitu ação co ­

1 7 6 . Sc h m it t , C a r l . O co n ce i t o d o p o l ít i c o . V o z e s, 1 9 9 2 , p . 5 1 .
1 7 7 . Ib i d .

152
m o u m “ c rité rio ” (d e ju lg a m e n to a p a rtir d e u m a c a te g o ria ) c o m fo rça on-
to ló g ic a , e não com o u m a d escrição ex au stiv a de co nteúdos. N a visão de
Schm itt, u m tem ível id eó lo g o po lítico d a d ireita alem ã, só o s preco n ceito s li­
berais d e seus p ares os im p ed iam de a tin ar c o m a v erd ad eira n atu reza do fe­
n ô m en o , caindo assim n a arm ad ilh a dos ju íz o s tau to ló g ico s qu e os levavam a
d efin ir E stad o co m o en tid ad e po lítica, e a p o lític a co m o e sfe ra do E sta d o 1781.
9
7
R etrab a lh an d o as id éias h o b b e sia n a s d e p e rig o e m ed o , S ch m itt e n c o n ­
tra -se ev id en tem en te m u ito d istan te d a co n c e p ç ã o d e m u n d o co m o fo rm a
p o lític a do se r e m co m u m (A ren d t). M as a su a d ic o to m ia e stá p ró x im a p elo
m e n o s d a id é ia d e m u n d o c o m o u m “ n ó s ” , u m a p lu ra lid a d e d e se m e lh a n ­
te s , à q u al se p o d e e v id e n te m e n te c o n tra p o r u m a p lu ra lid a d e d iferen te, u m
“ O u tro ” o p o sitiv o - n o sso m u n d o c o n tra o m u n d o do o utro. C lássica e
atu al, a h ip ó te se re p o rta -se etim o lo g ic a m e n te ao g reg o e ao latim , lín g u as
q u e fazem a d ife re n ç a en tre “ in im ig o ” (polém ios , hostis) e “a d v e rsá rio ”
(iekhtrós , inimicus). P a ra o p o litó lo g o , am ig o /in im ig o n ã o são m etáfo ras ou
sím b o lo s, m as term o s a serem to m a d o s e m seu sen tid o c o n creto co m o u m
crité rio rad ic a l d e a g ru p a m e n to dos p o v o s, d istin to s d o s co n ceito s d e “ c o n ­
c o rre n te ” o u “ ad v e rsá rio ” . F risa ele q u e a red u ç ã o d o co n ceito d e in im ig o
ao d e c o n co rren te é u m a co n se q ü ê n c ia d o d ile m a lib eral en tre esp írito (é ti­
ca) e eco n o m ia, u m a v e z que, n o d o m ín io do eco n ô m ico , n ão h á in im ig o s,
179
m as ap en as co n co rren tes .
E m su m a, p a ra S ch m itt, trata-se d e u m an tag o n ism o c o n creto qu e se
v e rific a en tre u m E stad o e o u tro (p o r ex e m p lo , d u ran te u m a gu erra) o u no
in te rio r d e u m E stad o , q u an d o se p ro d u z e m co n ceito s “ se c u n d á rio s” de p o ­
lítica, a ex em p lo d a p o lític a p artid ária, p o lític a so cial, etc. M as a rig o r, só se
as re p resen taçõ es tiv e re m u m sen tid o p o lê m ic o - co m o n a g u erra ou n a re ­
v o lu ção , o n d e se m a n ife sta o ag ru p am en to a m ig o /in im ig o - é qu e se e n c o n ­
tra rá a e ssên cia do p o lítico . A p o ssib ilid a d e real de lu ta d e v e ria e sta r sem ­
p re p re se n te q u an d o se fala de p o lítica.

1 7 8 . O u t r o s i m p o r t a n t e s t e ó r i c o s d a p o l ít ic a p r e o c u p a r a m - se i g u a l m e n t e co m a d e l i m i t a ç ã o
c o n c e i t u a i d o f e n ô m e n o . V a l e c i t a r o f r a n c ê s Ju l i e n Fr e u n d (í/ e sse n c e d u p o l i t i q u e . P a r i s,
1 9 6 5 ) , c u j a c o n c e p ç ã o " p o l e m o l ó g i c a " d o p o l ít ic o a p o n t a - o c o m o " a i n st â n c i a p o r e x c e l ê n c i a
d o d e sd o b r a m e n t o , d a g e st ã o e d a so l u ç ã o d o s c o n f l i t o s" . Fr e u n d si t u a - se c o n c e it u a l m e n t e
m u i t o p e r t o d e Sc h m i t t . C i t á v e l é t a m b é m o a l e m ã o H .P . Pla t z (V o m W e se n d e r p o l i t i sch e n
M a c h t , 1 9 7 1 ) , m a s se m q u a l q u e r g r a n d e o r i g i n a l i d a d e .
1 7 9 . N e st e p o n t o , Sc h m i t t t e m u m i n si g h t p a r t i c u l a r m e n t e a g u d o : " [ ...] e n u m m u n d o t o t a l ­
m e n t e m o r a l i z a d o e e t i c i z a d o t a l v e z a p e n a s r e st e m a d v e r s á r i o s d e d i sc u ssã o " . N ã o se p o d e
d e i x a r d e v e r a n t e c i p a d a n e st a o b se r v a ç ã o a r e a l i d a d e d a p o l ít ic a n o e sp a ç o d a m íd i a c o n t e m ­
p o r â n e a , o u e n t ã o a b a se d a s p r e d i c a ç õ e s d a é t i c a a r g u m e n t a t i v a n a t e o r i a d o a g i r c o m u n i c a ­
t i v o d e Jü r g e n H a b e r m a s .

153
S ch m itt não se vê co m o b e licista ou m ilita rista p o r su a fo rm ulação do
p o lítico . “ A g u e rra n ã o é, a b so lu ta m e n te , fim e o b je tiv o , se q u e r c o n te ú ­
do d a p o lític a , p o rém é o p ressu p o sto sem p re p resen te co m o po ssib ilid ad e
real, a d e te rm in a r d e m o d o p e c u lia r o a g ir e o p e n s a r h u m a n o s , e fe tu a n ­
do a s s im u m co m p o rtam en to esp ecificam en te p o lític o ” 180. E m b o ra seja o
m eio p o lítico m ais ex trem o , a g u erra não c o n stitu i o sen tid o do político: ao
co n trário , é o po lítico que d á sen tid o à guerra. U m a o p o sição de natu reza,
d igam os, relig io sa, p o d e p ro v o c a r u m a guerra, ap en as se elev ad a à co n d i­
ção política.
O que seria então u m m u n d o sem p o lítica? N e sta lin h a arg u m en tativ a,
seria a ab so lu ta ind istin ção en tre am igo e in im ig o . N ad a im p ed e a ap recia­
ção estética do p o lítico , d esd e que este seja en ten d id o p o r m eio da refe rê n ­
cia a essa opo sição básica. O critério a m ig o /in im ig o tran sfo rm a q u alq u er
o u tra co n trap o sição (eco n ô m ica, relig io sa, estética) em an tag o n ism o p o líti­
co. Q u ando A lex is de T o cq u ev ille, a p ro p ó sito dos n o rte-am erican o s, a fir­
m a q ue “a relig ião é a p rim eira de suas in stitu içõ es p o lític a s” , está dizen d o
n a verd ad e que a sua g ran d e m o tiv ação p a ra u m a cau sa cív ica o u p o lítica é
a co n v icção relig io sa, p resen te, à m an eira de u m p acto social, em sua forte
trad ição pu ritan a. O p o lítico p o d e estar em q u a lq u e r âm bito, j á que não tem
lu g ar próprio. É ap en as “ o g ra u d e in te n sid a d e d e u m a asso c ia ç ã o o u d is­
so ciação en tre os h o m en s” 181, cujos m o tiv o s p o d e m variar. A in ten sid ad e
atin g e o nív el po lítico , p o rtan to , q u ando ex iste a p o ssib ilid ad e real do ag ru ­
p am en to am ig o /in im ig o , qu e cria u m a u n id ad e n o rm ativ a e soberana.
E ntende-se p o r “soberana” a decisão em últim o caso, ou seja, sobre um a
situação excepcional. E sta é a céleb re fo rm u laç ão de S chm itt, segundo a
qual u m a ord em se ap ó ia no p o d er ex cep cio n al de d ecid ir e não n u m siste­
m a no rm ativ o vigente. A í resid e, p ara ele, a essên cia do p o d e r p o lítico , que
se to m a v isív el q u ando se co n seg u e o cu ltar o reg im e ju ríd ic o que n o rm ati-
v iza o seu exercício. D o n d e o caráter p o lítico do E stado, u n id ad e su p rem a
que m o n o p o liza o p o d e r de d ecid ir n a exceção.
É certo que, n a m o d ern id ad e, essa so b eran ia - que rev ela a essên cia do
po d er, p o r ser a condição de p o ssib ilid ad e de sua fo rça arb itrária, assim
com o de sua rep ro d u ção - é ex ercid a em n o m e de u m “pov o n a c io n a l” . N a ­
ção, com o se sabe, é u m a id éia m o d ern a e re v o lu cio n ária n a E u ro p a, d eriv a­
da d a sim bolização do territó rio p elo corpo do rei: a id eo lo g ia d a so b eran ia

1 8 0 . Ib i d ., p. 6 0 .
1 8 1 . Ib i d ., p. 6 4 .

154
do corpo do rei rep resen tav a e m o n arq u ia e o pró p rio reinado pela m etáfora
corporal, n u m a espécie de d essacralização do corpo de C risto. O s rev o lu ­
cio n ário s do século X V III deslo cam essa m etáfo ra p ara a de “ corpo p o líti­
co ” , fazen d o da n ação u m corpo in d ep en d en te do corpo do rei e, em nom e
desse g rupo dos grupos, dessa “ co m u n id ad e im ag in ad a” , preserv am a idéia
de soberan ia, m as p ara a m assa, a an tig a p lebe ( vulgus ), ag o ra alçada à co n ­
dição de u m sujeito co letivo - o povo. E ste p assa a o cu p ar as funções do
p rín cip e, incorporado à n ação, co n ceito que con v id a sem pre a p en sar ad ­
v en to s d a m o d ern id ad e com o o m odo de pro d u ção capitalista, o E stado e as
g uerras de d efesa e co n q u ista de territó rio s. O territó rio m o d ern o é u m a ex ­
p an são do corpo po lítico nacional.
M as associar nação e povo foi de fato a estratégia ocidental de d esenvol­
vim ento e consolidação do po d er de E stado contem porâneo. N essa dupla,
com o acentua o canadense M airet, “é o povo que é dom inante, a tal ponto que
não se podería, hoje com o ontem , alim entar um a am bição política para si
m esm o o u para todos, se não se tem com o u m a evidência que o povo é sobe­
rano. E ste p o v o ap arece, co m efeito , co m o o referen te o b rig ató rio , a fonte
e a n o rm a de to d a p o lítica desde que ressoaram n a E uropa e no m undo os
‘id eais’, com o se diz, da gloriosa R evolução Francesa” 182. P or isto, “a ideolo­
gia do povo pode com parar-se a u m espelho m ágico que diz a verdade de
um a política - de um p oder - toda vez que é interrogado. O Estado deve, é um
dever , ser dem ocrático, ou m elhor, o ser do Estado é de natureza ‘po p u lar’, o
que perm ite declará-lo dem ocrático. O povo não é, pois, um a população, é
u m princípio, e a id eo lo g ia do p o v o é o co n ju n to sistem ático das significa­
ções de to d as as espécies ded u zid as desse p rin cíp io ” 183.
E ssa idéia de povo não é ab so lu tam en te nova: em seu Tratado da repú­
blica , C ícero já ad v ertia que “pov o não é to d a reu n ião de hom ens, co n g re­
gados de qu alq u er m aneira, m as u m a associação dos que aceitam as m es­
m as leis e têm interesses co m u n s” . N o entanto, sem essa v elh a idéia, não se
pode seq u er p en sar em regim e rep u b lican o m oderno. A in d a por cim a, ela
não tem a tran sp arên cia que se p retende à prim eira vista, p o r ser cheia de
am b ig ü id ad es e d eixar em b ran co a resp o sta à questão do que significa v e r­
dad eiram en te “u m p o v o ” . H obbes, p o r exem plo, em seu em penho de n eu ­
tralizar quaisquer idiossincrasias das m assas, responde autoritariam ente que
se trataria de um corpo estruturado e hom o g ên eo , subm etido ao soberano
p o r contrato; R ousseau, p o r outro lado, sustenta que esse soberano seria o

1 8 2 . M a i r e t , G é r a r d . Pe u p l e e t n a t i o n . In : H i st o i r e d e s i d e o l o g i e s. H a c h e t t e , 1 9 7 8 , p . 5 7 .

1 8 3 . Ib i d .

155
próprio povo, sugerindo que, n a base do E stad o m o d ern o , antes m esm o da
R evolução F rancesa, o p o v o j á d esp o n te co m o categ o ria po lítica, en troni-
zado não com o rei, m as com o prín cip e, in v estido de u m a fo rça com um , que
é a soberania.
O p o d er de E stado co n segue se p e rp etu ar g raças ao m ito de p o tên cia
que se constitui ao red o r d a id éia de po v o , visto com o u m a essên cia de li­
berdade garantida p o r leis e direitos. P o r isto são fun d am en tais à realização
da d em ocracia m o d ern a as ideologias de susten tação da sob eran ia po p u lar,
que geralm ente p reco n izam a p articip ação das m assas nas to m adas de d eci­
são que reg u lam as tran sfo rm açõ es sociais. O espaço p ú b lico , com o o g ran ­
de m ed iad o r clássico entre E stad o e p ovo, d ev eria m an ter-se com o a p la ta ­
form a de luta contra a au to leg itim ação tecn o b u ro crática d a gestão g o v ern a­
m ental e contra a au to n o m ia in stitucional do p o d e r p olítico.
M as na p rática só o E stad o tem o d ireito de d ecla rar q u em é o in im ig o -
externo ou interno. E, em conseqüência, arroga-se o direito de declarar gu er­
ra, ordenando aos in d iv íd u o s que p o n h am em jo g o as suas v id as e as dos
outros. D estaca-se aí, p ara Schm itt, a fo rça do sensível: “A guerra, a p ro n ti­
dão p ara a m orte de ho m en s que co m b atem , o m atar o utros h o m en s que se
encontram do lado do inim igo, tudo isso não tem n en h u m sentido n o rm ati­
vo, m as sim um sentido existencial. [...] Não há nenhuma meta racional ,
nen h u m a no rm a p o r co rreta que seja [...] que p o ssam ju s tific a r que os h o ­
m ens se m atem m u tu am en te p o r elas” 184. O que hav eria então, além de um a
g arantia racio n al da decisão? A “afirm ação de ser d a p ró p ria fo rm a de e x is­
tê n cia frente a u m a n egação tam b ém de se r” .
É notável n a reflexão do po litó lo g o a p resen ça d a d im ensão sensível (a
afirm ação não racio n alista de u m a form a) sem que a estética seja a p ro p ó si­
to explicitam ente reivindicada. Im portante m esm o é o sentim ento ou a ex ­
periência da diferenciação entre am igo e inim igo (entre u m E stad o e o utro),
sem a qual deixaria de ex istir v id a p olítica. E sta ú ltim a p o ssib ilid ad e é o
que se daria, se u m a espécie de “E stado m u n d ial” en g lo b asse todo o p lan e­
ta, acabando com a p lu ralidade dos E stados e, assim , co m as diferen ças en ­
tre am igos e inim igos. Schm itt parece an tec ip ar “p rem o n ito riam en te” a
ideologia da globalização contem porânea, que aventa a hipótese de u m a u ni­
dade m undial à base de econom ia e tecn o lo g ias d a com unicação.
C om efeito, a etapa p resente da plan etarização do capitalism o ag reg a à
antiga dinâm ica das trocas econôm icas u m v asto discurso de legitim ação,

1 8 A .l b i d ., p . 7 5 .

156
basead o nu m m odelo cu ltu ral que p ro cu ra co n so lid ar fo rm as de v ida e de
co n su m o esp ecíficos. A s d iferen ças cu ltu rais assu m iríam , assim , o p rim ei­
ro plano. Só que aí, então, p a ra S ch m itt, não h av ería E stad o , m as um a “c o o ­
p erativ a de pro d u ção e co n su m o à p ro cu ra de u m p o n to n eu tro entre as p o ­
larid ad es da ética e d a e co n o m ia” .

A p o litic is m o e c u ltu r a

N o ap o liticism o d en u n cia d o p o r essa h ip ó tese reen co n tram -se todas as


fan tasias de d esp o litização d a v id a so cial co rren tes nas d o u trin as políticas
do lib eralism o b u rg u ês em to d o s os d iferen tes p erío d o s d a m o d ernidade.
R een co n tram -se ig u alm en te as p ro p o siçõ es co n tem p o rân eas no sentido de
u m a p u ra e sim ples su b stitu ição d a p o lític a p e la estética, em b alad as pelas
p ro m essas, im p lícitas n a id eo lo g ia d a g lo b alização , de u m a co m u n icação
g en eralizad a d as cu ltu ras e d e u m a m u ltip licação das p o ssib ilid ad es de um
“ e star-ju n to s” .
E vid en tem en te, no etnocentrism o dessas proposições, h á o recalcam ento
do fato de que a ló g ica do d iscu rso de leg itim ação g lo b alista n ão é adeq u ad a
à d iv ersid ad e dos esp aço s cultu rais, assim co m o h á tam b ém o “esq u eci­
m en to ” d a co n tin u id ad e d as guerras de E stad o (g eralm en te teleg u iad as ou
c o m an d ad as d iretam en te p ela p o tên cia m ilitar n o rte-am erican a) em pleno
terceiro m ilên io , sob as aparên cias de con flito s étn ico -relig io so s - guerras
in eq u iv o cam en te “ im p eriais” . M as não resta d ú v id a q u anto ao fato de que a
g lo b alização eco n ô m ica traz co n sig o , p rim eiram en te, u m p ro jeto im plícito
de ex ten são a to d o o p lan eta d a lei de e q u iv alên cia g en eralizad a ao v alo r de
troca, o qu e im p lica a reg ên cia to tal d a eco n o m ia, cu ltu ra, socied ad e e p o lí­
tica pelo capital. N este pon to , não m ais tem v ig ên cia o m o d elo clássico se ­
gundo o qual u m a infra-estru tu ra eco n ô m ica exerce força determ in an te so ­
bre u m a sup erestru tu ra p o lítica, já q ue o cap ital, en q u an to lei total de o rg a ­
nização do m undo se to m a u m a realid ad e p o lítica im p o sta à existên cia hu ­
m an a em todos os seus aspectos. U m co n seq ü en te sin to m a de “ arru m ação ”
a essa realid ad e é a crise do E stado m od ern o , com o inevitável abalo de ca ­
teg o rias po líticas clássicas (p o r exem plo, o co n ceito d e so b eran ia n acional)
e com a evidente tran sfo rm ação do espaço pú b lico - instância m ediadora
da in teração po lítica na m o d ernidade - p o r efeito de novas tendências h is­
tóricas, in crem en tad as p ela m ídia.
D esde a rep ública rom ana, a idéia de um comum su scitav a a associação
entre o político e o público. Publicum , no latim clássico , referia-se ao que
perten cia a todos, logo ao E stado, logo tam bém ao que se to m aria co letiv a­

157
m en te visível. N a m o d ern id ad e, o esp aço p ú b lico , resu ltan te h istó rica do li­
b eralism o , é, antes de q u alq u er o u tro atrib u to (p o r ex em p lo , v eto r d a o p o si­
ção entre p ú b lico e p riv ad o , rep resen tação u n iv ersal das particu larid ad es,
etc.), o p rin cip al espaço mediador d a cid ad a n ia em seus term o s clássicos.
P o r m eio d esse esp aço , a b u rg u esia p ô d e co n tro lar isso que, d esde Platão
(em b o ra a ex p eriên cia greg a de u m a d em o cracia direta p rescin d isse da ab s­
tração co n tid a n a id éia de “p ú b lic o ”), era essen cial n a p o lítica: a visib ilid a­
de dos cid ad ão s e dos aco n tecim en to s. M as, em se tratan d o de u m espaço
aberto à ex p ressão e às trocas, o co n tro le da rep resen tação p o lítica não p u ­
n h a entraves à livre circu lação das idéias. N ele, u m “co m u m ” - po rtan to ,
algo ex terio r aos su jeitos sociais - exerce fo rça cen tríp eta sobre as ex p res­
sões individuais, tran sfo rm an d o suas referên cias e seus direcio n am en to s.
O espaço p úblico realiza, assim , m o dem am ente, a m ediação dos interes­
ses particulares da sociedade civil (c o n ceito h eg e lia n o de so cied ad e o rg a ­
n izad a em to m o da produção econôm ica, reinterpretado p o r L ênin e, depois,
po r G ram sci, m as no sentido de lugar da luta p ela hegem onia), visando prin ­
cipalm ente a p reservar as garantias dos direitos individuais frente ao p oder de
Estado. É aí fundam ental o papel da im prensa. A o red o r do que se tem cha­
m ado de “ im prensa de opinião” (ou de “p u b licism o”, caracterizado pela p ro ­
dução artesanal e p o r textos fortem ente polêm icos), organizaram -se os espa­
ços públicos das dem ocracias inaugurais n a m odernidade ocidental. A cum ­
plicidade política entre os jo rn ais e seus leitores estim ulou a p rática da argu­
m entação pública n a sociedade b u rguesa e, sem dúvida, contribuiu p ara a p o ­
pularização da idéia de representação do povo ju n to ao poder.
M as é preciso d eix ar claro que, a desp eito de sua g ran d e im portância, a
im p ren sa não defin e o espaço pú b lico . E m outras palav ras, este não é u m
puro espaço de com un icação , e sim u m a p o tên cia de co n v ersão ou de tran s­
form ação do in d iv id u al em com um , o que não d eix a de co m p o rtar zonas de
som bras ou de opacid ad es não n ecessariam en te co m u nicativas. A ssim , a
am pliação técn ica d a trad icio n al esfera p ú b lica p elo adv en to da m íd ia ou de
todas as tecn o lo g ias da in fo rm ação não im p lica necessariam en te o alarg a­
m ento d a ação política.
P o r outro lado, no contexto d a crise do E stad o e d a p ró p ria sociedade
civil, v em defin h an d o a rep resen tação p op u lar, que era o m o to r p o lítico do
espaço p ú b lico e b ase d a socied ad e d em ocrática. São v ários os analistas li­
berais, a exem plo do italiano B obbio, que se em penham em dem onstrar co­
m o hoje, p o r to d a parte, o indivíduo autônom o é esm agado pelo s grupos de
pressão (grandes em presas e o lig arq u ias), o q ue leva à substituição do m an ­
dato livre pelo im perativo do neo co rp o rativ ism o . O fenôm eno rem onta ao

158
século X IX , quando a experiência da soberania popular se converte, por efei­
to de u m a representação distorcida, em p uro diálogo, senão m era en cen a­
ção e sp e ta c u la r. D iv isa m -se aí os g erm es do a p ro fu n d a m e n to dos c e n á ­
rio s e do espetáculo, portanto, da estética com o estratégia com p en sató ria
da m oderna política liberal, destinada a preencher os vazios produzidos pela
secularização da v ida social.
U m a das principais características d a m o d ernidade ocidental é, com o
b em se sabe, a secu larização . A isto co rresp o n d e o d eclín io d a fé relig io sa
e, p o rta n to , o d e c lín io d a a p o sta m e ta físic a n a tra n sc e n d ê n c ia , no sa g ra ­
do, e n o apego m ais com ezinho à idéia de u m a v id a m elh o r depois da m o r­
te. C om o o b serva R orty, foram m uitas as p essoas nos séculos X V III e X IX
a ach ar que esse fenôm eno enfraq u ecería as sociedades liberais, p o r p en sa­
rem que “ a esperança no céu era u m requisito para p ro p o rcio n ar fibra m oral
e cim ento so cial” 185. 0 indivíduo su p ortava o sofrim ento terrestre graças às
e speranças de u m paraíso. N ão houve enfraquecim ento, entretanto, já que
as esperanças religiosas foram progressiv am en te substituídas p o r esp eran­
ças sociais, que co n sistem b asicam en te em narrativas coletivas sobre re ­
c o m pensas futuras capazes de to m a r suportáveis os sacrifícios presentes:
“A s sociedades m odernas, alfabetizadas e seculares, d ependem da ex istên ­
c ia de cenários políticos razoavelm ente concretos, otim istas e plausíveis,
p o r oposição a cenários sobre a redenção além -túm ulo” 186.
O problem a é que, desde as quatro últim as décadas do século passado até
agora, vem -se tom ando cada vez m ais difícil contar histórias plausíveis que
sustentem a esperança social. O fracasso das ideologias anticapitalistas, a vo-
ragem da acum ulação do capital, a absurda concentração de renda, a violên­
cia social, a fom e nos continentes pauperizados, m as principalm ente a disse­
m inação do equacionam ento de dem ocracia e liberdade política com liberda­
de de m ercado, tudo isso contribui p ara corroer o solo utópico em que viceja
a esperança. O s cenários políticos já não m ais podem ser “razoavelm ente
concretos” , e a própria política m oderna e liberal entra em declínio.
N o espaço deixado em branco, entra agora, de um lado (o lado m ais po ­
p u lar ou econom icam ente m ais m iserável d a p eriferia hum ana), o revival
religioso traduzido no recrudescim ento de seitas e igrejas eletrônicas; de
outro, a im agem e o espetáculo, orquestrados pelos m eios de com unicação
ou m ídia. D e fato, vem sendo dito e repetido que um dos principais efeitos

1 8 5 . Ro r t y , Ric h a r d . C o n t i n g ê n ci a , i r o n i a e so l i d a r i e d a d e . Pr e se n ç a , 1 9 9 9 , p . 1 1 7 .
1 8 6 . Ib i d .

159
da transform ação do m o d elo clássico do esp aço p ú b lico p ela influ ên cia
prog ressiv a da m íd ia é a c o lo n iz a ç ã o d esse esp aço p e la im ag em , em e sp e ­
cial a im agem espetacu larizad a. N a o rig em e tim o ló g ica d a p alav ra e sp etá­
culo (spectaculum), já está de alg u m m o d o in scrita a p resen ça do p ú b lico na
cena, u m a vez que a palav ra em latim inclui tam b ém os lu g ares dos esp e c ta ­
dores. O espetáculo é a cen a e seu p ú b lico .
H oje se po d e d izer tam b ém qu e a p ró p ria v id a so cial, co m a im p lícita
sedução das antigas esp eranças, se to m a im ag em , isto é, u m tipo de rep re­
sentação analó g ica da realid ad e que sem p re ex istiu, só que ag o ra ap arece
de form a so cialm ente tran sb o rd an te - de tal m an eira que p erm eia as re la ­
ções so cialm ente ob jetiv as - e reg id a p e la d im en são do esp etácu lo . A v id a
substitutiva, v icária, das telas, do s v íd eo s, dos m o n ito res su rg e com o u m a
nova form a de existência, u m n o v o bios, co m o q u e ten tan d o n e u tralizar os
conflitos e as tensões com u n itárias.
N esse transe e com o au x ílio d a tecn o lo g ia, tu d o p o d e ser esp etacu lar­
m ente tran sfo rm ad o em im agem . A té m esm o u m h o m em p ú b lico po d e to r­
nar-se pu ra im agem . Ser p u ra im ag em p ú b lica sig n ifica to m a r-se interpre-
tante vivo ou n úcleo p o litó p ico de u m a d eterm in ad a c o n ju n tu ra de valores,
significa to m ar-se “m éd iu m ” . M as sig n ifica tam b ém se rea liz a r com o fo r­
m a acabada e ab strata da relação h u m an a m ed iad a p elo m ercad o , ou seja,
existir com o in d ivíduo “irreal” , m ero su p o rte p ara sig n o s q ue se d isp õ em a
rep resen tar u m a realid ad e institu íd a ex clu siv am en te co m o m ercad o ria.
O ra, se a p ró p ria red u ção clássica do ag ir p o lítico à p alav ra (isto é, à
p articipação pelo m ero diálogo) já co n stitu ía u m claro sin to m a da crise da
ordem p o lítica c lá ssic a , m a is sin to m á tic a a in d a d a fa lê n c ia d a re p re s e n ­
tação é a co n v ersão do espaço livre de diálo g o à fo rm a im ag ética m ercan ­
til. A realidade à m argem das im ag en s é co n stru íd a p elo im p ério crescen te
dos interesses n eo corporativos, dos p o d eres in v isív eis d entro do E stado de
direito, da força dos grandes grupos em p resariais, das no v as olig arq u ias fi­
nanceiras, etc. A p rev alên cia da im agem e do e sp etácu lo no univ erso da p o ­
lítica sig n ifica, n a v erd ad e, a d esm o b ilização do e sp aço p ú b lic o tra d ic io ­
nal e a co n so lidação do fim da esp eran ça social.
E xistem certam ente as utopias cib erculturais: a esp eran ça na internet,
na realidade virtual, na redenção do so frim ento in d ividual e social pelas
alegadas recom pensas do co n h ecim en to arq u iv ístico e da co m u n icação ili­
m itada. M uito ao contrário do que elas pregam , po rém - todas em b u sca de
legitim ação por u m a suposta univ ersalid ad e d em o crática da im agem tecno-
logicam ente expandida - , o cam po das im agens no un iv erso co n tem p o râ­

160
n eo d a Realpolitik in stitui de fato u m a d e riv a d e p arad o x o s, dos quais o
p rin c ip a l pod ería ser assim sintetizado: a polis u niv ersal, so nhada p elo s p en ­
sad o res c lá s sic o s d a p o lític a e im p o s s ib ilita d a p e la re a lid a d e d o s E s ta ­
d o s n acio n a is, já chegou, m as apenas em sua form a tecnologicam ente v irtu al,
lo g o n a fo rm a d a m ais a b so lu ta in an ição do a g ir p o lítico .
O h o m em p o lítico qu e h o je p e d e v o to s n u m p ro c e sso e leito ral p o d e n ão
ser se q u e r im ag em (en ten d id a c o m o re fle x o d e u m a re fe rê n c ia co n creta
n u m real-h istó rico p o litizad o ), e sim “ ec to p la sm a ” alea tó rio dos m e c a n is­
m o s do p o d e r de E stado. N o in terio r d esse fen ô m en o , o trad icio n al sujeito
p o lítico (aq u ele q ue so b eran am en te d e le g a seu p o d e r a u m a in stân cia re p re ­
sen tativ a) é silen ciad o tan to p o r sig n o s ic ô n ico s q u an to p e la a v ala n ch a reti-
c u la r de “b its” in fo rm acio n ais, qu e im p o ssib ilita m a co rreta d iscrim in ação
d as fo rm as no real. E m b o ra c o n tin u e in v estid o do p o d e r d e v o to , o cid ad ão
te m cad a v ez m en o s “ v o z” p o lític a real, p e lo m en o s n o s q u ad ro s de e n ten ­
d im en to d a Realpolitik o u p o lític a e fetiv am en te ex isten te n o âm b ito do p o ­
d e r d e E stado. Se p o r u m lad o p o d e ser co n sid e ra d a co m o p o sitiv a a am p lia­
ção do espaço p úblico a to d a e q u alq u er experiência, p o r outro, não h á com o
d e ix a r d e se c o n sid erar os asp ecto s c ru ciais d a crise d o d iscu rso arg u m en ta-
tiv o , a d eb ilitação d as e sp eran ças so ciais e su as c o n seq u ên cias p ara o tra b a ­
lho d as m ed iaçõ es sociais.
C o m efeito, a p ro p alad a “ d e sp o litiz a ç ã o ” m id iá tic a o u te c n o ló g ica re ­
su lta in eq u iv o cam en te do e n fraq u ecim en to é tico -p o lítico das an tig as m ed i­
açõ es e do fo rtale cim en to d a m id iatização . Sob a ég ide d a p ro d u ção infor-
m acio n al d a realid ad e, a tecn o in teração - en te n d id a c o m o h ip ertro fia d a o r­
g an iza ção te c n o ló g ica sobre os asp ecto s in stitu cio n ais d a m ed iação social -
to m a o lu g a r d a m ed iação , d esv ian d o os ato res p o lítico s d a p rá tic a re p re ­
sen tativ a co n creta (n o rtead a p o r co n teú d o s v a lo rativ o s o u d o u trin ário s)
p a ra a p erfo rm an ce im ag ética, isto é, p a ra o esp etácu lo co n v ertid o em re la ­
ção social.
C o n seq ü ên cia s im ed iatas são a falta d e p a rticip ação dos cid ad ão s na
v id a coletiva, o abstencionism o ou a in diferença eleitoral crescentes e a d e s­
p o litização ten d en cial do E stado. É qu e o L ev iatã, isto é, o E stad o d escrito
p o r H o b b es com o u m co rpo ausen te de to d o s os outros corpos, com o p u ra
m an ifestação de po d er, esq u iv a-se à in teração m ed iad o ra. A s m íd ias e n ­
tram no espaço v azio d a so b eran ia p o p u lar e d a d esv in cu lação entre o corpo
p o lítico e o co rp o do h o m em n a ru a. A s te c n o lo g ia s d a co m u n ic a ç ã o a m ­
p lia m o esp aço pú b lico , m as apen as de m odo técn ico o u retórico.
A p o lítica to m a-se, assim , u m a o u tra coisa. O d iscu rso p o lítico c o n ti­
n u a tão retó rico quanto antes, q u er dizer, tão sed u to r e p o ssiv elm en te tão

161
falaz q uanto no p assado. M as se an tes ele fazia o jo g o d a v erd ad e, isto é, co ­
b ria u m a su p o sta v erd ad e h istó ric a co m os véu s d a lin g u ag em , ag ora não há
realm en te m ais n en h u m a a p o sta n a vin cu lação o n to ló g ica en tre as palavras
e as coisas. S u b stan cializad a em im ag em , a retó ric a d escarta a referên cia da
v erdade e acena apenas co m u m a c red ib ilid ad e m o v id a p o r reg ras próprias.
N o que diz resp eito às m o d alid ad es de relacio n am en to da classe p o líti­
ca com as m assas ou aos p ro cesso s eleito rais, são g ritan tes as d iferenças en ­
tre as práticas atuais e aq u elas an terio res à gran d e p en etração social da im a­
g em televisiva. A s im agens b u scad as p o r u m a retó ric a d o m in ad a pelo ver-
b alism o ain d a não tin h am a su b stan cialid ad e de u m a “ q u ase-p resen ça” si­
m u lad a p elas atuais tecn o lo g ias do aud io v isu al. P o de-se, assim , su p o r que a
retó rica d eliran te de H itler, p o r exem p lo , seria in ad eq u ad a p ara a m íd ia te­
lev isiv a de hoje, que p recisa de u m certo “fam iliarism o ” das im agens p ara
pen etrar nos espaços priv ad o s do p ú b lico recep to r.
O u então, com o exem plo m ais p ró x im o , o fen ô m en o d a cu rta p assagem
de Jânio Q uadros p ela p resid ên cia d a R ep ú b lica b rasileira (sete m eses em
1961), m arcad a p o r sua ex cen tricid ad e e p o r su a en ig m ática renúncia. E m
sua cam panha, Jânio havia co n seg u id o p o p u larizar a U n ião D em ocrática
N acio n al (U D N ) - partido criado em 1945 p ara co m b ater a d itadura var-
guista e depois caracterizado com o disp o sitiv o das classes m éd ias urbanas,
em penhado na m o ralização da esfera p ú b lica - co m a v asso u ra com o sím ­
bolo de seu projeto m oralizador. N os c artazes e n os com ícios, o candidato e
sua v asso u ra im punham -se com o im agem de h o n estid ad e no trato da coisa
pública. E leito presid en te da república, ele p erm an eceu encerrado em seu
próprio reflexo, na p rática um a caricatu ra d a b an d eira de luta udenista.
A hipótese de um jo rn alista que aco m p an h o u de p erto os aco n tecim en ­
tos é que Jânio, naquele tem po “p ré-telev isiv o ” - entenda-se: em que a tevê
não detinha o m esm o p o d er de hoje - , “talv ez b u scasse, m ais do que tudo, a
im agem ” . E specula: “ Suas p equenas ex travagâncias, se feitas hoje, iriam
diluir-se n a en xurrada de cores, gestos, berros, m o nólogos, m úsicas e sons
d esconexos que a televisão leva aos lares e escritórios, ou à rua: jam ais re ­
p resen tariam o que representaram n em teriam o im pacto que tiveram n a­
quele 1961, em que os discursos e as idéias po líticas ain d a construíam so­
nhos ou d errubavam m uralhas” 187.

1 8 7 . T a v a r e s, Flá v i o . O d i a em q u e G et ú l i o m a t o u A l l e n d e e o u t r a s n o v el a s d o p o d e r . Re co r d ,
2 0 0 4 , p. 191.

162
E m outras palavras, na falta de um a verdadeira representatividade p o lí­
tica, escudado num sim ulacro populista, Jânio Q uadros seria, em si m esm o,
televisivo, com o se “v estisse” , em curiosa antecipação de m uitos anos, a
program ação extravagante e grotesca que hoje caracteriza horários priv ile­
giados da m aioria das em issoras de tevê. A hipótese do jo rn alista é de que,
se ele fosse hoje reproduzido em tem po real p ela televisão, p oderia “d ilu­
ir-se” n a banalidade das im agens sem elhantes. Igualm ente, a renúncia p o ­
deria ser entendida (em bora a indeterm inação do ato perm aneça para sem ­
pre) à luz de um a teatralidade m elodram ática, em que se exageram os ges­
tos e as fantasias.
N este exem plo “p ré-globalista” e “pré-telev isiv o ”, entretanto, o h o ­
m em político ainda se apresenta com o um “ato r” , que acena para a m assa -
cheia de potencial agregativo, capaz de reunir-se em grandes núm eros ao
redor dos palanques de com ícios - com a ilusão (retórica) da palavra e da
im agem referentes a atos supostam ente necessários à organização das con­
dições de v ida social, portanto com os recursos de um pensam ento político
dos m eios e dos fins. N essa conjuntura, era de fato m uito im portante para as
decisões de voto a influência dos cham ados “ grupos prim ários (fam ília, v i­
zinhança, am biente de trabalho, lideranças com unitárias, etc.), ou seja, o
entorno caracterizado p o r contatos interpessoais. R efere-se a essa realidade
o fam oso estudo em que Lazarsfeld, B erelson e G oudet, a p artir de um a
am ostragem de m il inform antes, concluíam que a influência dos grupos p ri­
m ários sobre os eleitores era m aior do que a dos m eios de com unicação, não
se ju stifican d o , portanto, as hipóteses anteriores quanto os efeitos ilim ita­
dos da com u n icação 188.
Im p õ e-se, entretanto, co n trap o r o m o d elo desen v o lv id o p o r L azars­
feld a u m a con tem p o ran eid ad e em que as m assas p erd em d en sid ad e física
em fav o r da dispersão e do an o n im ato das au d iên cias m id iáticas e em que
a consciência política d á lugar a u m a consciência técnica na política. A g o ­
ra, a form a de intervenção e co n trole do espaço pú b lico não m ais co m p o r­
ta a luta p ela represen tação da realid ad e (um verd ad eiro d ebate de idéias,
u m real co n trad itó rio dos partid o s), já que o prim ad o dos m eios sobre os
fins, da m id iatização da ex p eriên cia sobre a orig in alid ad e dos conteúdos,
esv azia o p o lítico de sua força co n stitu in te e tran sfo rm a a represen tação
em p u ra p erform ance.

1 8 8 . La za r sf e l d , P., Be r e lso n , B. & G o u d e t . Th e p e o p l e ' s ch o i ce : h o w t h e v o t er m a k es u p h i s m i n d


in a p r e si d e n t i a l ca m p a i g n . C o lu m b i a U n iv e r sit y Pr e ss, 1 9 6 8 .

163
D á-se, assim , o que alg u n s an alistas d en o m in a m de p assag em d a “p o lí­
tica de p artid o s” à “p o lítica m id iá tic a ” , co m a co n seq ü en te p e rd a de id e n ti­
ficação com os program as p artidários p o r parte do eleitorado. É isto o que
leva o pesquisador Jay G. B lu m ler a su sten tar que “a investigação co m u n ica­
tiva deverá p artir de três pressupostos: a) os eleitores indecisos ou que d eci­
dam m udar de partido têm as m esm as p o ssib ilid ad es de seguir as tran sm is­
sões eleitorais que os eleitores partidaristas, isto é, fiéis a u m partido; b) a fal­
ta de um a m ilitância estável im plica que o interesse p elas m en sag en s eleito­
rais se concentre durante p o ucas sem anas e que, p o r isso, não p o ssa prolon-
gar-se p o r períodos m ais alargados, e c) os m eios de com u n icação de m assas,
substituindo parcialm ente os partidos políticos, co n vertem -se no s n ovos p o n ­
tos de referên cia p a ra a crescen te m assa de eleito res in d eciso s” 189.
A s ev idências dessa tran sfo rm ação no sistem a p o lític o se m u ltip licam
nos p ro cessos eleito rais das ch am a d as “te c n o d e m o c ra c ia s” , em p aíses do
C en tro e d a P e rife ria do cap ital. U m e x e m p lo c la ro é o d as e le iç õ e s m u n i­
cip ais no B rasil em 2004, assim resu m id o p e la im prensa: “A cam p an h a foi
cara, um a das m ais caras de todos os tem pos. O debate n em sem pre elevado,
o marketing reg eu a cena. O s show s su b stituíram os com ícios; visitadores
p ro fissio n ais, os v e lh o s c a b o s e le ito ra is. A té o botox e n tro u n o re c e itu á -
rio p a ra candidatos. T udo isso faz p arte da m utação dem o crática [...]” 190. A o
m esm o tem po, a candidata à reeleição para a prefeitu ra de São P aulo (M artha
Suplicy) atribuiu a sua derrota a “fatores políticos, midiáticos e sociais” , ins­
crevendo, possivelm ente p ela prim eira vez, o adjetivo relativo a m ídia ao lado
de fatores trad icio n alm en te afins à d em o cracia rep resen tativ a.
N ão se trata de u m ex em plo restrito a u m a data, p o rq u e, d esd e m uito
tem po, esse tipo de caracterização é ap licáv el a eleiçõ es n o s d iv erso s n íveis
do sistem a federativo das rep ú b licas on d e fu n cio n a a d em o cracia eleitoral
associada às m odernas tecn o lo g ias d a co m u n icação . N e m é ex em p lo re s tri­
to aos países do cham ado “C entro d e sen v o lv id o ” : o trân sito in tern acio n al
da propaganda confere força de h o m o g en eid ad e q u alitativ a às suas téc n i­
cas, igualando, neste plano, p aíses de status so cio eco n ô m ico d iferen ciad o .
Isso não quer dizer, entretanto, que a televisão e o marketing decidam so­
zinhos um processo eleitoral. G eralm ente, a função do marketing é converter
em votos a imagem pública do político p rofissional, o que se faz a p artir dos
índices de aprovação/rejeição fo rn ecidos p o r p esq u isas de opinião. E sta

1 8 9 . C f . Sa p e r c is, En r i c . O s e f e i t o s co g n i t i v o s d a c o m u n i c a ç ã o d e m a ssa s. A SA , 2 0 0 0 , p . 3 3 .

1 9 0 . C f . c o l u n a d a j o r n a li st a T e r e sa C r u v i n e l . In : O G l o b o , 0 3 / 1 0 / 2 0 0 4 .

164

T
fu nção in cid e co m m ais fo rça sob re a c am a d a do s eleito res in d eciso s (que
au m en ta a cad a eleição), b astan te in flu en ciáv el p o r p erso n ag en s d a m íd ia
ou p o r po p u listas de to d a natu reza. M as é p reciso lev ar em co n sid eração
tanto as cam adas correspondentes às diferentes categorias profissionais (sin­
dicalistas, m ilitares, p ro fesso res, etc.), que c o n stitu em n ich o s sociais e te n ­
d em a v o ta r con scien tem en te em fu n ção d a rep resen tação de seus in te re s­
ses, q u an to as cam ad as “ d is trita liz a d a s” , q u e e sc o lh e m c a n d id a to s g e re n ­
cia lm e n te co m patíveis co m os in teresses de u m a reg ião específica.
P ara q uem j á o c u p a c a rg o s p ú b lic o s, tr a ta -s e de fix a r ju n to ao e le ito ­
ra d o os a sp e c to s fav o ráv eis d a im ag em e ten tar p a ssa r a m en sag em de sua
continuidade num novo m andato. N este caso, a cam panha do candidato, ain­
da q ue seja apenas v irtu al a can d id atu ra, te m de ser p erm an en te, a exem plo
d a p u b licid ad e de u m p ro d u to com ercial, an tec ed en d o e su ced en d o ao p e ­
río d o eleitoral propriam ente dito. M as n ada disto constitui u m a receita p ro n ­
ta e acabada, já que a v ariação de época, de lugar, de co n ju n tu ra das a lian ­
ças p artid árias, da cap acid ad e de ad eq u ação p lástica do can d id ato ao gosto
m o m en tân eo do p ú b lic o , p o d e so b re p o r-se aos e le m e n to s p u ra m e n te té c ­
n ico s do s in stru m en to s de m ídia.
U m a coisa, no entanto, é constante: a im ag em (e não o conteú d o , o d is­
curso arg u m en tativ o das p ro m essas e p ro jeto s) é o elem en to p o sto em p ri­
m eiro p lan o , o que acarreta o p rim ad o da midiatização - isto é, da articu la­
ção v isceral da m íd ia co m as institu içõ es d a so cied ad e trad icio n al - n a co n ­
dução do p ro cesso p o lítico. N a socied ad e m id iatizad a, o “p rín cip e” m u d a
de id en tid ad e e m o v im en ta-se p re feren cialm en te n a atm o sfera em o cio n al
dos costu m es e das form as sen sív eis de p ercep ção (a eticidade, o rein o dos
fins m o rais), ao invés d a co n tex tu alização h istó rica dos em bates po lítico s,
e m que rep ercu tiam fo rtem en te no espaço pú b lico as lutas das facçõ es v an-
gu ard istas co n tra as d iscrim in açõ es e em fav o r d a igu ald ad e social. C o n ­
correndo tam bém com a fam ília e com a escola, instituições tradicionalm ente
afin ad as co m a o rientação p o lítica dos jo v e n s, o “p rín cip e” cria os seus p ró ­
prio s c o n te x to s a fe tiv o s, q u e n ã o p a ssa m , em ú ltim a a n á lise , de c e n á rio s
e sté tic o s o ferecidos à particip ação coletiva.
Ian n i esboça u m p an o ram a teó rico desse fen ô m en o , v endo nas d iferen ­
tes fig u rações do “p rín cip e” - tanto a fig u ra m aq u iav élica do condottiere
q u anto a concepção g ram scian a do p ríncipe com o partid o político, p o rtanto
com o u m “ intelectual co letiv o ” - dois arq u étip o s que “ap an h am aspectos
fu n d am en tais da p o lítica com o teo ria e prática. R esp o n d em a d iferen tes d e ­

165
safios h istórico-sociais, próprios de cad a épo ca [...] sintetizam algo da es­
sência da p o lítica, ao re ssa lta r com o fu n d am en tais as cate g o rias hegemo­
nia e soberania”191.
P ara o sociólogo, entretanto, o príncipe de ho je é “ eletrô n ico ” , ou seja,
u m a criação da m íd ia que ultrap assa o condottiere e o p artido político, à
m an eira de “um a entidade n eb u lo sa e ativa, p resen te e invisível, p red o m i­
n ante e ubíqua, perm eando co n tinuam ente to d o s os n íveis da sociedade, em
âm bito local, nacional, regional e m undial. É o intelectual coletivo e orgâ­
nico das estruturas e blocos de p o d er presen tes [...] sem pre em co n fo rm id a­
de com os diferentes contextos socioculturais e p o lítico-econôm icos dese­
n h ados no novo m apa do m u n d o ” 192. S ensível à atualidade, isto é, “ao que
vai pelo m undo, desde a p erspectiva das classes e grupos sociais subalter­
nos até a persp ectiv a das classes e grupos sociais pred o m in an tes” , o p rín ci­
pe eletrônico pro d u z heg em o n ia (dom inação p o r consenso do dom inado),
m as, diferentem ente da o rd em po lítica tradicional, abala a identificação da
soberania com o E stado-N ação, n a m edida em que se afirm a com o potência
cultural de deslocam ento das fronteiras regionais ou n acio n a is1931 .
4
9
N a visão de Ianni, as categorias m aq uiavélicas da fortuna e da virtú fo­
ram incorporadas pelo p rín cip e eletrônico, em tal m edida que este agora
“influencia, subordina, tran sfo rm a ou m esm o ap aga partidos políticos, sin­
dicatos, m ovim entos sociais, correntes de opinião, L egislativo, E xecutivo e
Judiciário. Perm anente e ativo, situado e u bíquo, visível e invisível, p redo­
m in a em todas as esferas da política, adquirindo diferentes figuras e figura-
çoes, segundo a p o m p a e a circunstancia
O utra, entretanto, é a posição de G om es, p ara quem é necessário d istin­
g u ir entre o novo e o perm anente em todo esse processo, observando que
“certos aspectos novos são apenas u m a n ova versão de um a dim ensão p er­

1 9 1 . Ia n n i , O c l a v i o . O p r ín c ip e e le t r ô n i c o . In : En i g m a s d a m o d e m i d a d e - m u n d o . C i v i l i z a ç ã o
B r a sile ir a , 2 0 0 3 , p . 1 4 2 - 1 4 3 .
1 9 2 . I b i d ., p . 1 4 8 .
1 9 3 . A o e n f a t i z a r a d im e n sã o e le t r ô n i c a d a c o m u n ic a ç ã o , Ia n n i v a i a o e n c o n t r o d a p e sq u isa
a n g l o - sa x ô n i c a q u e , d e sd e a se g u n d a m e t a d e d o s a n o s 5 0 , r e c o n h e c e a m a g n it u d e d o s e f e it o s
d a t e le v isã o n a v id a p o l ít ic a . Pe sq u isa d o r e s c o m o E. Bu r d i c k , Ku r t Lan g e G l a d y s La n g , Ja y
B l u m le r e D e n i s M c Q u a i l , Eli z a b e t h N o e l l e - N e u m a n n (a l e m ã ) - n a t r il h a d o s e st u d o s j á c l á ssi ­
co s d e Pau l La z a r sf e l d , B e r n a r d Be r e l so n e o u t r o s - c o n v e r g e m p a r a a e v i d ê n c i a d e q u e a t e l e ­
v i sã o t r a n sf o r m o u p r o f u n d a m e n t e o r e la c i o n a m e n t o d a m íd i a co m a v id a p o l ít ic a , n ã o co m o
m e r a c o n se q ü ê n c i a d e u m p r o c e sso p e r su a si v o , m a s c o m o e f e i t o d e m u d a n ç a s e st r u t u r a is n a
e sf e r a p ú b lic a e n o a m b i e n t e c o m u n ic a t i v o .
1 9 4 . Ia n n i , O c t a v io . I b i d ., p . 1 6 1 .

166
m anente da política” 195. Ele cham a a atenção para o fato de que a política
não é um a configuração unitária, e sim um a variedade de sistem as de p ráti­
cas, com regras de funcionam ento diferentes. A lgum as delas são internas
ao cam po profissional da política, outras são externas. A ssim , a prática do
que G ram sci cham a de “pequena política” (negociações, acordos de lide­
ranças, pressões e contrapressões, etc.) perm anece tal e qual, enquanto m u ­
dam as práticas externas, atinentes ao espaço público. A cham ada “política
m idiática” não passaria da condição de apenas um dos sistem as de práticas,
portanto, de novos processos de habilitação de atores e de form as de rep re­
sentação por parte dos que realizam a atividade política contem porânea.
C onsiderando que parte relevante dessa prática política se dá na disputa
pela opinião pública, G om es afirm a que tal política de opinião “é sobretudo
com petição pelo fazer ver, fazer pensar, fazer sentir” 196. Isto com porta evi­
dentem ente novas habilidades e saberes, que confluem para o cam po p ro ­
fissional dos estrategistas de marketing e dos especialistas em opinião p ú ­
blica, onde pontificam as diversas form as expressivas da m ídia. A “p olítica
de espetáculo” - apontada pelos pensadores do pós-m odem ism o europeu
com o o sinal de m orte da política - não seria m ais do que um a nova form a
de espetáculo político, que dispensa o cerim onial do poder, as grandes sim -
bolizações, em favor do envolvim ento da audiência p ela m ídia.
G om es acerta de fato ao distinguir sistem as de práticas no interior do
cam po político e ao m ostrar a persistência de m ecanism os da “pequena p o ­
lítica” ao lado das m utações no espaço público causadas po r sua am pliação
tecnológica. E ssa am p liação é m ais do que ev id en te, q uando se c o n sid e ­
ra a publicização da vida privada pela m ídia, não apenas nas m odalidades
“abertas” de com unicação (televisão, internet, etc.), m as tam bém nas tec­
nologias digitais de acesso e contato. Em casa, no trabalho ou no lazer, o in­
divíduo é instado p or esse novo espaço público tecnicamente ampliado —
m as tam bém fragm entado p ela diversidade dos dispositivos com unicacio-
nais - a integrar-se com o um novo “cidadão m ercantil” .
P or outro lado, sem pre atuou em toda prática política o tríptico “fazer
ver, fazer pensar e fazer sentir” , com diferentes graus de intensidade para
cada um deles. A política dos grandes m onarcas, com o Luís X IV , dava o
prim ado ao fazer ver a m agnificiência do p oder real e, para isto, partiam do
teatro as técnicas de com unicação adequadas. N a política burguesa, a partir

1 9 5 . G o m e s, W il so n . Tr a n sf o r m a çõ es d a p o l ít i ca n a er a d a co m u n i ca çã o d e m a ssa . Pa u lu s,
2004, p. 417.
1 9 6 . Ib i d ., p . 3 5 8 .

167
do século X IX eu ro p eu e n o rte-am erican o , p red o m in av a o fa ze r pensar
(isto é, a discussão e a pu b licid ad e com o p rin cíp io s liberais do sistem a p a r­
lam entar), que ap ela v a p a ra as téc n ic a s de p u b lic iz a ç ã o de id éias, c o m p a ­
tíveis com a im prensa escrita, em que a ilusão tam b ém se fazia reto rica-
m ente presente.
C ontem poraneam ente, a d isp u ta p ela h eg em o n ia d a op in ião d á p rim a­
zia ao fa zer sentir , o que to m a a opinião p ú b lica u m “ co n stru ctu m ” d ireta­
m ente ligado aos m ecan ism o s estéticos de p ro d u ção dos d iscu rso s sociais.
N a disputa p ela h egem onia, n ão se trata tan to de sen sib ilizar p ara fo rm ar
u m a opinião racio n alm en te p o lítica, e sim de c o n stru ir im ag en s (p o rtan to ,
um cam po sensível), às quais a au d iên cia ad ere afetiv am en te, d ando com o
suposta a concretude do ver e do pensar. A retórica e a estética deixam de ser
m eros in strum entos de in v ersão do real-h istó rico d estin ad o s à persu asão
das m assas em favor de u m a cau sa ou de u m p ro g ram a, p a ra se co n v erterem
no próprio real, isto é, na realid ad e da sim u lação (o v irtu al), que abre m ão
do ra c io n a lism o a rg u m e n ta tiv o e in tro d u z o fa z e r se n tir (o e m o c io n a lis-
m o m id iático ) no âm ago da d isp u ta h eg em ô n ica.
E m bora essa esfera do fazer sen tir não ju stifiq u e , p elo m ero destaq u e
dado ao espetáculo, u m a “ d o u trin a dos fins ú ltim o s” à m an eira do p e n sa ­
m ento p ó s-m o d em ista, p arece evid en te que a “p o lític a m id iá tic a ” não ap e­
nas altera substan cialm en te a n atu reza do espaço p ú b lico trad icio n al p o r
am pliá-lo tecn o lo g icam en te, m as tam b ém d eix a v e r a in an ição da Realpoli -
tik lib eral-p arlam en tarista no to can te ao livre-agir. A in d a é p o ssív el lutar
dem ocraticam ente pela predom inância de u m a opinião, m as a soberania p o ­
lítica restrin g e-se ao ato de v o tar, não m ais tem no h o riz o n te a p o ss ib ilid a ­
de de rep resen tação de um a v o z p o p u lar ativ a na esfera do poder. H á um
abism o entre o “corpo” po lítico e o corpo do h o m em nas ruas.
A ssim , a p artir de u m a perm an en te estetização tecn o ló g ica d a realid ad e
operada p o r elites logotécnicas (jornalistas, atores, p u b licitário s, escritores,
etc.) desenvolve-se hoje u m m undo virtual que desestab iliza os m o d o s clás­
sicos de organização da v id a social e p ro m o v e u m a d esp o litização do E sta­
do, no sentido forte da palavra “p olítica” (o sentido d a “ grande” política) em
favor de sua dim ensão g eren cial-burocrática atin en te à “p e q u en a” política.
A m ídia é, na verdade, um dos p rincipais d isp o sitiv o s estratég ico s dessa d i­
m ensão, o que gera p ro g nósticos às vezes catastro fistas p o r parte de críticos
da cultura contem porânea, m as tam bém avaliaçõ es p o n d eráv eis de p o líti­
cos profissionais, a exem plo de C ardoso, so ciólogo e ex-p resid en te da R e­

168
p ública: “ [...] H oje não existe n ad a sem a m ídia. N a p o lític a atual, p arafra­
seando D escartes (“p enso, logo ex isto ” ), é ‘esto u n a T V , logo e x is to ’. Se
v ocê não é v irtual, v o cê não ex iste” 197.
D e fato, a representatividade, base d a d em o cracia clássica, troca-se pau-
latinam ente p ela in term in áv el ex ib ição m id iá tic a do p ro cesso de rep ro d u ­
ção do p o d e r de E stado, que, p o r su a v ez, é p arte g eren cial de um vasto
“jo g o d e p articip ação ” p o p u lar. A s h ip ó te se s de “ su sp e n sã o ” d a p o lítica ou
de su b stitu ição do po lítico pelo estético ap arecem no âm b ito d essas tran s­
fo rm açõ es do esp aço pú b lico , o n d e em erg em fo rm as d e u m a d em o cracia
m ais “ so cial” (ig u alitarism o n as relaçõ es in tersu b jetiv as, d ireito s de m in o ­
rias, etc.) e m ais p leb iscitária (ad esão às técn icas d e c o n su lta p o p u lar p o r
m eio do “ sim ” e do “ n ão ” ) do qu e “p o lític a ” em su a d e fin ição tradicional.
M as essa articu lação no esp aço p ú b lico d e fo rm as co m u n icacio n ais com o
fun cio n am en to do c am p o p ro fissio n al d a p o lítica a in d a n ão n o s p erm ite in ­
ferir qu e p o lítica e m íd ia se eq u iv alh am so cialm en te.
O que não se p õ e em d ú v id a é q ue esse co n tex to , em q u e se d esv alo riza
a im ag em d a classe p o lítica trad icio n al e d a rep resen tação p arlam en tar d i­
ante d a o p inião pú b lica, fav o rece o ap arecim en to d e p ro p o stas d e e x p eriên ­
cia de u m a “d em o cracia d ireta” p o r m eio d e p leb iscito s e referen d o s, p o ssi­
b ilitad o s p elas tecn o lo g ias d a in fo rm ação e d a co m u n icação . E ssas p o ssib i­
lidades lib eral-d em o cráticas não d esto am do p en sam en to d e B ob b io que,
m esm o sem rom per com a concepção p arlam entar e ju ríd ica do processo d e­
m ocrático, se d á co nta de que d em o cracia não é alg o ap en as po lítico , não é
só a particip ação po ssív el do cid ad ão nas d ecisõ es de E stad o , m as h oje algo
fu n d am en talm en te “ so cial” .
B obbio não está p reo cu p ad o , com o G ram sci, co m a su p eração po lítica
das relações entre d o m in an te e d o m in ad o , m as co m um a esp écie de p ro lo n ­
gam ento do liberalism o q ue im plica, no p ro cesso d em o crático , o u ltrap asse
da esfera estritam ente po lítica ru m o àq u ela em que o in d iv íd u o se define
não ex clusivam ente com o “ cid ad ão ” (conceito em in en tem en te político), e
sim na “ v ariedade de seu status e de seus pap éis esp ecífico s, p o r exem plo,
de pai e de filho, de cônjuge, de em p resário e de trab alh ad o r, de p rofesso r e
de estu d an te” .
D em ocracia seria, assim , tam b ém um apren d izad o , em qu e instituições
ed u cativ as, d esd e a esco la até a fam ília, sem e sq u e c e r a p ró p ria m íd ia, te-

1 9 7 . C f . e n t r e v ist a d o se n a d o r p e t ist a C r i st o v a m B u a r q u e c o m Fe r n a n d o H e n r i q u e C a r d o so .
In : O G l o b o , 2 9 / 1 1 / 2 0 0 4 .

169
riam p ap el relev an te. A lg o aí p o d e ría ser v isto c o m o u m a rem o n ta g e m da
h e g e m o n ia p ela so cied ad e civ il - n ão c e rta m e n te no u so g ram scia n o deste
co n ceito , qu e v ai alé m d a c o n ciliação e do co n se n so - q u e d esse esp aço às
lu tas re s u lta n te s d a c o n tra d iç ã o e n tre o e c o n o m ic is m o d o sis te m a lib e ra l
e p ro je to s p o lítico -id eo ló g ic o s afin s ao s in teresses d as classes su b alternas.
M esm o d en tro do e sp írito do q u e G ram sci c h a m o u de “rev o lu ção p assi­
v a ” (o refo rm ism o lib eral en raizad o n a so cied ad e civ il), a p o siç ã o de B o b -
b io im p lica tam b ém u m a red escrição c o n ceitu ai d e u m a v e lh a p ala v ra e um
v elh o reg im e do g o v ern o dos h o m en s (d em o cracia) à luz de u m a m u tação
h istó rica, de um p arad ig m a em ergente das relaçõ es hu m anas, segundo o qual
a so cied ad e d eix a de fu n cio n ar em term o s de o rg an ism o s un ilaterais: p o r
ex em p lo , o o rg an ism o p o lítico red u ziría o cid ad ã o a u m sim p les m eio de
realização das fin a lid a d e s e stra té g ic a s d a p o lític a . N a v e rd a d e , d e m o c ra ­
cia e c id ad a n ia, tan to em term o s co n ceitu ais q u an to p rático s, são fen ô m e­
n os h istó rico s, logo su jeito s à v ariação d os p ro cesso s. D en tro do n o v o p a ra ­
d igm a, a so c ie d a d e c o n v e rte -se n u m c o m p le x o c o m u n ic a c io n a l (co m n í­
v eis d e sig u a is de p articip ação so cial), o n d e as fin alid ad es p articu lares d e­
p en d em da tro ca d ialó g ica entre livres in terlo cu to res, e a d em o cracia p assa
a o rien tar-se m ais p o r u m a estrutura sensível de percepção , cu ja p rática é a
co n stru ção e a re co n stru ção do su jeito so cial em su a co tid ian id ad e.
N essa m u d an ça de o rien tação , en tretan to , p erd e v italid ad e h istó rica a
rep resen tação p arlam en tar, que classica m en te su sten tav a a d em o cracia re­
p resen tativ a. E staria tam b ém p erd en d o su b stân cia h istó rica a peq u en a b u r­
g u esia o u c la s s e m é d ia , e m to rn o d a q u a l te m g ira d o a so c ie d a d e n o s ú l­
tim o s dois séculos. N u m ro m an ce de ficção cien tífica (Terroristas do milê­
n io ), J.G . B allard , u m dos exp o en tes ing leses desse gênero, d esenvolve a
h ip ó tese de que a classe m éd ia estaria fo rm an d o o nov o pro letariad o . N u m
m u n d o em que as decisõ es essen ciais são sem p re to m ad as p o r tecnoburo-
cratas n ão -eleito s do B anco M undial, do F u n d o M o n etário Intern acio n al e
das m ultinacionais, o niilism o crescente estaria levando à corrosão das cren­
ças, dos v alo res e dos pró p rio s fu n d am en to s da d em ocracia. A ssev era o es­
critor: “N in g u ém m ais acred ita em n ad a hoje. M esm o pesso as bem -ed u ca­
das, co m bons em pregos, p en sam apenas nas p ró x im as férias no H avaí, na
b o lsa G ucci, no p ró x im o B M W . Ig reja e p o lítica não significam n ada para
elas. D e m o c ra c ia é a p e n a s u m a u tilid a d e p ú b lic a q u a lq u e r, co m o os c o r­
re io s ou o fo rnecim ento de eletricidade. N ad a é v erd ad e e nad a é falso ” 198.

1 9 8 . C f . e n t r e v ist a à r e v i st a Ép o c a , 3 0 / 0 5 / 2 0 0 5 .

170
P o r o u tro lado, se é v erd ad e que os m eios de co m unicação m assivos p o ­
dem ser in terp retad o s com o u m alarg am en to tecn o ló g ico do espaço p ú b li­
co, p o rtan to com o u m a su p o sta am p liação do funcio n am en to dem ocrático,
não se segue n ecessariam en te que esses m eios p o ssam ser tidos com o res­
p o n sáv eis p e la co n stru ção ou p e la co n so lid a ç ã o de in stitu içõ es d e m o c rá ­
tic a s n o re a l-h is tó ric o . A ú n ic a ju s tif ic a tiv a h is tó ric a do d isc u rso da m í­
d ia d e m a ssa é a atenção (m o m en tân ea, flutuante, caó tica) que lhe pode
d isp en sar u m a audiência. A observ ação das ex p eriências p o líticas na A m é­
rica L atin a d u ran te to d a a d écad a de 90 d eix a claro que o aum ento do n ú m e­
ro de consultas populares, eleições parlam entares, prestações públicas de con­
tas, crescim en to d a p lu ralid ad e de fontes de inform ação (internet, jo rn ais,
tab ló id es, rev istas, rádios, em isso ras de tevê, etc.) não im pediu que d eter­
m in ad o s p aíses (o Peru, p o r ex em p lo ) ten h am passad o p o r fases pouco d e­
m o cráticas e m u ito corruptas.
O fato é que aquele peso m aio r atribuído ao social ratifica a distinção
histó rica, d atad a do com eço d a m o d ern id ad e ocidental, entre E stado e so­
cied ad e, o p o lítico e o social (o politíkós aristotélico ab rangia os dois ter­
m os, co m o é sabido), garan tid a p o r u m terceiro term o, que é o indivíduo.
Isso tu d o é u m a resu ltan te do liberalism o clássico, que desde o século X IX
p ro cu ro u co n to rn ar o E stado e a p o lítica, com o o b serva Schm itt, para que o
indivíduo perm an eça terminus a quo e terminus ad quem , isto, princípio e
fim do processo. D iz ele que “assim se chega a um sistem a com pleto de
co n ceitos d esm ilitarizados e d esp o litizad o s [...] estes conceitos liberais se
m o v em de u m a m aneira típica entre ética (‘espiritualidade’) e econom ia ( ‘ne­
g ó cio ’) e a partir destas m argens polares procuram aniquilar a política como
um a esfera do ‘p o d er co n q u istad o r’, p ara o que o conceito de Estado de ‘d i­
re ito ’, isto é, de ‘direito p riv a d o ’, serve de alavanca, e o conceito de pro­
pried ad e p riv ad a constitui o centro do globo, cujos pólos - ética e ciência
eco n ô m ica - são apenas as irradiações opostas deste ponto central” 199.
R atifica-se hoje igualm ente a aguda p ercepção de Schm itt quanto ao
fato de que, num m undo inteiram ente “eticizado e m o ralizad o ”, restariam
apenas adversários de discussão e não m ais os term os fortes da oposição ou
da luta que constitui a política. E videntem ente, a “ética” a que se refere
Schm itt em nada difere da m oral h u m anitária que, desde o século X V III,
em penhou-se na inculcação da idéia ilim itada de progresso na consciência
liberal burguesa. E ssa eticidade m oralista abre cam inho agora para a p re­

1 9 9 . Sc h m i t t , C a H . O p . c/ t ., p . 9 8 .

171
tensão do Centro capitalista m undial (E stados U nidos, Europa e Japão) de
que, no âmbito da globalização, o m oralism o liberal possa ser a últim a fun­
dação da política (tentando, na verdade, escam otear a evidência da funda­
mentação econôm ica de todo esse processo e do poder m ilitar com o sua g a­
rantia em últim o caso) com apelo aos valores civilizatórios da m odernidade
ocidental (por exem plo, o v alor absoluto da p essoa hum ana com seus direi­
tos universais).
Do ponto de vista ideológico, m odernidade é a elaboração histórico-
m etaflsica de um discurso (liberal) de rom pim ento com um passado e com
diferenças tidas com o anacrônicas ou bárbaras. E ssa ruptura é v ivida pelas
“belas alm as” ou pela boa consciência da intelectualidade progressista como
um fenôm eno de o rdem m oral. Sob aleg ação de d efesa m oral desses v a ­
lores cronocêntricos (a te m p o ralid ad e m o d ern a com o eixo) e etnocên-
tricos (prev alên cia do paradigm a europeu), os países do C entro exercem
hoje todo tipo de ação im perialista, visando à sua suprem acia político-eco­
nôm ica no plano internacional. A rvoram a bandeira do neoliberalism o.
A poiada na crença de que a sociedade regulada pelo m ercado é o m elhor
dos m undos, esse m isto de doutrina e prática econôm ica prega com o “natu­
rais” o desm onte de quaisquer artefatos econôm icos que sugiram um E sta­
do do bem -estar, estruturas regulatórias estatais, controle de dem anda efeti­
va, etc. A m oralidade de senso com um m ercantil que lhe é inerente tem fá­
cil trânsito na grande m ídia e em políticos da ultradireita.
A ssim é que a eleição do Presidente G eorge B ush em 2004, considera­
da por muitos a m aior vitória das facções de ultradireita na história m oder­
na dos E stados U nidos, dev eu -se b asicam en te a v alores m o rais (p ro ib i­
ção do aborto, do casam ento entre hom ossexuais, de experiências genéti­
cas avançadas, etc.), claramente reputados pela consciência pública da m aio­
ria norte-am ericana com o m ais im portantes do que um fato com o o dos cem
mil civis iraquianos mortos posteriorm ente em conseqüência dos ataques
aéreos dos Estados Unidos. À som bra da ortodoxia m oral dos neoconserva-
dores norte-am ericanos, representados por G eorge Bush, constitui-se um a
“quase-teologia” m essiânica (ou seja, um híbrido doutrinário de atitude p o ­
lítica e dogma de fé), aceita sem críticas por um a m aioria urbana e rural po ­
liticamente inculta, quando não diretam ente acionada pela cultura reacio­
nária dos chamados rednecks (produtores rurais brancos).
Ao mesmo tempo, em nível nacional e transnacional, a mídia, que im ­
plica uma nova ortodoxia de individualism o e negócios, encena um a m ora­
lidade objetiva - consentânea à reform a cognitiva e m oral necessária à or­
dem do consum o, pautada pela criação de um a eticidade (no sentido, par­

172
cialm ente hegeliano, de costum es e rotinas socialm ente dadas) paralela e
virtual. Em H egel, a eticidade (<Sittlichkeit ) tom a o lugar dos valores ditos
“m orais” , a fim de sustentar o prim ado do político sobre a m oral, coincidin­
do com a figura do Estado, que seria em si m esm o substância ética e, p o r­
tanto, condição da sua própria existência e da liberdade individual200. A eti­
cidade m idiática é um a outra coisa: corresponde, p o r um lado, ao ethos in­
dividualista do universalism o ju ríd ico (o form alism o dos direitos hum anos
ou da presum ida igualdade de todos diante da lei) e, p or outro, à abstrata
equivalência dos sujeitos da troca n a econom ia m onetária, que neutraliza a
política representativa e prom ove o retom o de todo tipo de ju ízo m oral.
N um discurso essencialm ente prescritivo (algo assim com o o conteúdo
injuntivo de um a receita m édica), os enunciados m orais vinculam as cons­
ciências individuais a padrões grupalm ente aprovados (no em penho de re­
solver tensões ou conflitos) e coordenam as ações públicas dos sujeitos so­
ciais, em detrim ento da ação política, que im plica história e luta de classes.
Essa m oralidade, suscetível de ser estetizada tanto pela m ídia quanto p or
form as de vida em ergentes e com patíveis com o liberalism o m ercadológi­
co, é freqüentem ente confundida com um a “ética da estética”, supostam en­
te aplicável a toda a vida social, em substituição às form as clássicas de or­
ganização política.
Isso significa que o poder político m orreu? D e certo m odo, sim, quando
se entende poder com o form a legítim a do político. C om o se sabe, o fenô­
m eno m oderno do poder apresenta-se com o o traço de união entre o E stado
enquanto m onopólio legítim o da força e a política com o m ovim ento con­
traditório (confronto de interesses e idéias em tom o do princípio da repre-
sentatividade) de form ação, distribuição e exercício de um a soberania ou
um a summa potestas. Q uando se fala m o d em am en te de poder, as referên ­
cias visam, portanto, os aparatos de Estado, o ordenamento jurídico e as cons­
truções ideológicas.
Este tipo de poder, que rem ete em últim a análise à soberania do povo
ou à faculdade de decidir n a exceção, não está m ais p o r inteiro na classe p o ­
lítica, m as em outro lugar , fora dos controles republicanos: as grandes cor­
porações, os governos do “N orte” e os organism os financeiros m undiais,
diretam ente conectados com as oligarquias nacionais do m ando, os estam en­
tos que cooptam lideranças políticas e tecnoburocratas. N ão raro, um a coa­
lizão dita “de esquerda” chega ao Poder para descobrir que, sim plesm ente,

2 0 0 . C f . H e g e l , G .W .F. G r u n d l i n i en d e r P h i l o so p h i e d es Rech t s. N i c o l a i, 1 8 2 1 .

173
ele não m ais está lá onde se esperava, a exem plo do socialista François M it-
terrand, na França (1981). É conhecida a frase do político A lain Peyrefitte
dirigida aos socialistas e com unistas na conjuntura das nacionalizações em ­
preendidas por M itterrand: “V ocês foram eleitos para m udar o governo, e
não para m udar a sociedade” .
Para H ardt, essas m utações constituem evidências do evanescim ento
da sociedade civil, tal com o reinterpretada po r G ram sci, na esteira do pen­
sam ento hegeliano 201- conceito que, entretanto, tem servido para a susten­
tação de diferentes posições políticas em países de todo o m undo, com o
um a espécie de atributo essencial de qualquer dem ocracia, p o r indicar a in ­
fra-estrutura institucional de m ediação política e negociação pública. A ar­
gum entação de H ardt parte da prem issa de que essas estruturas, dependen­
tes das funções de d isc ip lin a (id eo lo g ia) e ex p lo ração do trab alh o (eco ­
n om ia), estariam sendo corroídas ou esvaziadas nas form ações sociais
contem porâneas. Em vez de “pós-m odem idade” - segundo ele, um a noção
vaga e abstrata dem ais para ser útil - estaríam os hoje fazendo a experiência
de um a sociedade “pós-civil” , que traz em seu bojo um novo paradigm a de
relações sociais. C om o a clássica disciplina dá lugar ao “controle” , seria
im perativo levar a sério a incitação feita p o r M ichel Foucault (num a entre­
vista, em 1978) no sentido de que com ecem os a p ensar a política num a so­
ciedade não-disciplinar.
N a realidade, pesando-se bem as coisas, esta idéia de um “pós-civilis-
m o” não contesta a existência da sociedade civil, apenas sugere a urgência
do ultrapasse ideológico da velha sociedade disciplinar, com o objetivo de
se poder pensar o potencial das novas práticas sociais. H ardt procura esta­
belecer de m odo m ais nítido a com plem entaridade entre H egel, G ram sci e
Foucault, m ostrando em cada um deles o que não m ais se sustentaria nos
term os clássicos da sociedade civil. C om relação ao prim eiro, se trataria de
repensar o conceito de trabalho (em tom o do qual H egel constrói a idéia de
sociedade civil), am pliando-o desde a atividade assalariada até a produção
de desejos, subjetividades e criatividade intelectual.
De fato, em nossa contem poraneidade, as m utações na esfera do traba­
lho, tanto nas econom ias ditas “centrais” quanto nas periféricas, provocam
um a grande d iv a g e m entre o crescim ento econôm ico e as form as tradicio­
nais de emprego, baseadas na grande indústria e na relação assalariada. Este

2 0 1 . H ar d t , M ic h a e l. Th e W it h er in g o f Civ il So cie t y . In : So ci a l Text 4 5 , v o l. 1 4 , n . 4 , W in t e r 1 9 9 5 .


D u k e U n iv e r sit y Pr ess.

174
tipo de trabalho já não assegura a reprodução capitalista, nem a reprodução
do Estado, em crise continuada exatam ente por esta razão. A expansão do
setor terciário, isto é, da esfera dos serviços, dem anda um novo tipo de rela­
ção de em prego e, portanto, de nova “educação” (ideologia, leia-se tam ­
bém ) para o trabalho. O aspecto educativo da sociedade civil é tam bém en­
fatizado p or H egel com o o cam po onde o Estado pode realizar o universal,
superando a abstração do trabalho pela concretização da Idéia ética.
G ram sci não quer preservar o Estado capitalista (e burguês) que serve
de horizonte para a teoria política hegeliana e prevê m esm o o seu desapare­
cim ento, reabsorvido pela sociedade civil. Sua questão seria, assim, a de
d em onstrar a crise das instituições que form am a espinha dorsal da socieda­
de civil e, portanto, a crise de seus potenciais dem ocráticos. G ram sci defi­
nira com o finalidade de toda atividade p olítica a criação de condições para
a expansão da sociedade civil que, depois de conquistar o poder em separa­
do da sociedade política, se transform aria em “sociedade regulada” , isto é,
autodeterm inada e eticam ente m otivada. N esta eventualidade, desaparece­
ríam o Estado, os partidos e a própria política.
O que H ardt sugere é que tais instrum entos - transitórios, na concepção
gram sciana - já entraram em colapso sem que tivesse advindo qualquer
“sociedade regulada”, e sim a crise perm anente do Estado e seus aparatos,
devido a um a nova configuração do trabalho, acom panhada da decom posi­
ção das form as tradicionais de representação política. Este fenôm eno res­
pondería pelo m al-estar generalizado de um a cidadania que não m ais reco­
nhece os tradicionais contextos de confiança (por exem plo, aqueles antes
criados pelo Estado-Providência ou pelas instituições liberais) e experimenta
a vertigem de sua própria fragm entação pelo m ercado.
Foucault, por sua vez, ao longo de vasta pesquisa filosófica, ensinou a
distinguir entre o unilateralism o dos “estados de dom inação” e a multiplici­
dade das relações de poder, onde este últim o não aparece, em determinados
contextos, como um foco centralizador de decisões, e sim principalmente
como um a “m icrofísica” de táticas criadas a partir de situações particulares e
depois eventualm ente consolidadas em articulações mais extensas e coeren­
tes por estratégias de classe social. M esmo dentro de contextos dados como
revolucionários - logo, voltados para a abolição de estruturas de dominação
vigentes - , o poder é capaz de fazer-se presente no nível das relações inter­
pessoais ou na forma assum ida por configurações hierárquicas particulares,
destinadas a fixar ou mesm o mitificar um a liderança específica.
C om o ilustração dessa hipótese, pensem os na história de vida, entre o
patético e o pitoresco, do tipógrafo brasileiro A ntonio Bernardo Canellas,

175
n arrad a p o r u m a jo rn a lista 202. A n a rq u ista de fo rm ação , co n v ertid o ao id e á ­
rio com unista, o tip ó g rafo tin h a 24 anos q u an d o p articip o u do IV C o n g re s­
so da In tern acio n al C o m u n ista, em 1922. E m o c io n a lm e n te a rreb atad o p e la
h istórica to m ad a do p o d er p elo s b o lch ev iq u es, C an ellas v iu o ab ism o ab rir-
se a seus pés q uando, d u ran te u m d iscu rso de T ro tsk i, o u so u ap artear o se ­
gundo ho m em m ais p o d ero so n a re v o lu ção de o u tu b ro d e 1917, sin alizan d o
p ara u m a su p o sta “ lav ag em cereb ral d o s p re se n te s” . Foi este o in ício de su a
d esgraça, até ser ex p ulso do p artid o co m o “tra id o r” . S u a co n clu são foi que
os ideais rev o lu cio n ário s não re sistiam aos m iú d o s ach aq u es do p o d e r p e r­
sonalizado num a individualidade ciosa de seu m ando. O fato é que, na im posi­
ção de form as interp esso ais de d o m ín io , n a p ro x im id a d e co tid ia n a das re la ­
ções h u m an as, o p o d e r é “p ro té ic o ” , tem m il faces, e to d as elas são o b stá c u ­
los p o ten ciais ao p rin cíp io da liberdade.
M as en q u an to se m an tém a d im en são p e sso a l e afe tiv a d a d o m in ação
(caso das chefias nas sociedades tradicionais, d as tiranias, do s absolutism os,
dos b o n ap artism o s, etc.), h á am b iv alên cia e p o ssib ilid a d e s de rev ersão nas
relações de poder. P o d e-se to m ar co m o ex em p lo a d itad u ra e stad o n o v ista
no B rasil, d e fo rte acento im ag in ário , co m to d o s os recu rso s técn ico s e re tó ­
ricos de que p o d ia d isp o r o b o n ap artism o p o lítico . O co n tro le d a im p ren sa
nos esp aço s u rb an o s e a p en etração d a rád io ta m b é m nas zo n as ru rais, c o ­
m andados pelo fam igerado D epartam ento de Im p ren sa e P ro p ag an d a (D IP),
p ro p iciaram o su rg im en to de u m a m ito lo g ia p ate rn a lista ao re d o r d a c e n tra ­
lização fed eralista e das m o d ern izaçõ es o p erad as p o r G etú lio V argas. E le
term in o u m ito ló g ica e afetiv am en te co n o tad o co m o “o V e lh o ” , d esig n ação
fam iliar e carin h o sa p ara a fu n ção patern a.
Isto não é exclusivo do B rasil. C o nhecem -se as ficcionalizações do “p a ­
ren tesco ” en tre P eró n , E v a P eró n e a p á tria a rg e n tin a . P o r to d a p a rte , aliás,
a e n u n cia ção das relaçõ es de p o d e r em term o s de p aren tesco alim en ta a
am bivalência dos repertó rio s d iscu rsiv o s da p o lítica. E x am in e-se a m ito lo ­
gia da em p resa-fam ília no Japão p o sterio r à m o d ern ização em p reen d id a
pelo Im p erad o r M eiji, ou então as rep resen taçõ es do E stad o -P ap ai ou de
M am ãe-P átria na T u rq u ia m o d ern izad a. A a m b iv alên cia é an álo g a à que
Freud detectou nos sen tim entos entre pais e filhos, co m o acréscim o de q ue,
na esfera das relaçõ es de p o d er de E stad o , o so rriso e n tro n izad o p elo s ó r­
gãos de p ro p ag an d a p o lítica p o d e en co b rir a v io lê n c ia ino m in áv el.

2 0 2 . C f . Sa l l e s , Iz a . U m c a d á v e r a o so l . Ed i o u r o , 2 0 0 5 .

176
E stam os q uerendo enfatizar que p o d er é, antes de q u alq u er sistem atiza-
ção, um a m ultiplicidade de form as de su b o rdinação, u m a verd ad eira tecn o ­
logia das form as de d esigualdade relativ as à adm in istração da co n tingência
social, portanto, estratégia e táticas no in terio r de u m a situação com plexa,
que hoje - após a longa p rev alên cia de form as disciplinares de sub o rd in a­
ção - se ap resen ta co m o controle202. T o m a d o p o ssív el p o r fo rm as tecn o ­
ló g icas avançadas de organização, o co n tro le se perfaz quando deixam de
funcionar os m ecanism os de rev ersib ilid ad e do p o d er (p o r exem plo, as re­
beliões) e a subordinação p assa a p rescin d ir de q u aisq u er p rin cíp io s de m e­
d iação - esses que recusam a au to -in stitu ição da po lítica com o esfera au tô ­
n om a e ensaiam estratégias de rev ersib ilid ad e da sociedade frente ao E sta­
do - p ara se exercer.
O enfraquecim ento da m ediação já co m eçara com a so ciedade de v ig i­
lância ou d isciplinar (o p anoptism o, prim eiram en te teorizado pelo filósofo
liberal Jerem y B entham ) n a m ed id a em q ue o p o d er se tran sferia do enfren-
tam ento tópico ou descontínuo das co n testações p ara ubiq ü id ad e da norm a,
que opera p o r m eio da pro filax ia co ntínua e ex ten siv a a toda e qu alq u er ca­
tegoria de “d esv io ” , do louco ao d elin q ü en te. A c o n tem p o rân ea “ so cied a­
de de co n tro le” , entretanto, am plia tecn o lo g icam en te a norm alização, a tal
ponto que a contestação já se inscreve prev iam en te no próprio cam po do
poder. E a m ídia - dispositivo de tecnologia social, p rivilegiado nessa nova
o rdem - funciona, no lim ite, com o u m sim ulacro de m ediação política, sem ­
pre em busca de hegemonia, a serviço de um poder que tende a se tom ar “puro” ,
sem q ualquer transcendência, im anente à vida social. N ão m ais, portanto, a
energia disciplinadora de instituições centralizantes, e sim um a dom inação
invisível (a do “social-técnico em estado p u ro ” , para retom ar a definição
deleuziana de televisão), que acom panha as redes de inform ação, privati-
zando a clássica esfera pública e concorrendo fortem ente para o esvazia­
m ento do sentido político nas novas form as de organização estatal.
N o p ensam ento fo u cau ltian o , aliás, o E stado m o derno já não é e n ten ­
dido p ropriam ente com o um a fonte transcendente das relações de poder na
sociedade, e sim com o um resultado de forças de “estatização ” im anente às 2 3
0

2 0 3 . A i d é i a d e " c o n t r o le * c o m o c a r a c t e r íst i c a d e u m a so c i e d a d e e m q u e o p o d e r e a d o m i n a ­
ç ã o su r g e m d o p ó lo e c o n ô m i c o , a l i a d o s à p r o p a g a n d a e à su g e st ã o d e m a ssa s, p e r t e n c e o r ig i-
n a r i a m e n t e a C a r l Sch m it t e n ã o a o f il ó so f o f r a n c ê s G i l l e s D e l e u z e . O q u e e st e d e f at o f a z é r e ­
f i n a r o c o n c e it o , a t u a l i z a n d o - o e m t e r m o s d a le i e st r u t u r a l d o v a l o r n a c o n t e m p o r o n e id a d e e
f i x a n d o - o co m o " so c i e d a d e d e c o n t r o l e * . Est a e x p r e ssã o é t o m a d a d e e m p r é st im o d o e sc r i t o r
n o r t e - a m e r i c a n o W il l ia m Bu r r o u g h s, a l i á s , a n t e c e d id o p e lo c lá ssic o C y b em et t cs (1 9 4 8 ) , e m q u e
N o r b e r t W ie n e r r e f e r e - se à p a ssag e m d o e r a d o v a p o r à d o co n t r o le e d a c o m u n ico çó o , cu jo e c o ­
n o m i a e st a r ia b a se a d a n a " r i g o r o sa r e p r o d u ç ã o d o si n a l " .

177
relações sociais de poder. Isto não significa d izer que não existe Estado, e
sim que ele não pode ser isolado e contestado nu m n ível separado da socie­
dade. Logo, não faria grande sentido a distinção (gram sciana) entre socieda­
de política e sociedade civil. P or isso, F oucault prefere usar, em vez de
E stado, o term o governo , que indica a m ultiplicidade e a im anência das for­
ças de estatização para o cam po social.
Tudo isto, para H ardt, continua presente e de form a m uito am pliada. A
form a social que, tanto ele com o N egri, cham am de “im pério” - ou seja,
um a nova ordem planetária que aglutina a potên cia econôm ico-m ilitar nor­
te-am ericana com instituições transnacionais e o m ercado m undial - seria
isom órfica à “ sociedade de controle” . M as im porta agora evidenciar o que
se deixou de lado, isto é, as redes de socialidade e form as de cooperação en­
caixadas nas práticas sociais contem porâneas. E las constituiríam o germ e
de um novo m ovim ento, com novas form as de contestação e um a nova con­
cepção de liberação. U m a com unidade alternativa de práticas sociais seria,
assim , o m ais potente desafio para o controle da sociedade pós-civil, insti­
tuindo form as singulares de reversibilidade.

U m a an álise de caso

C om o sobrevive a p olítica da dem ocracia representativa no interior da


nova m ultiplicidade das forças de estatização?
V am os tom ar com o objeto para um a pequena análise de caso a eleição
de L uiz Inácio “L ula” da Silva para a presidência da R epública brasileira
(período de 2002/2006), assim com o o seu governo, atingido por um escân­
dalo histórico que com prom eteu tanto o C ongresso quanto o aparelham ento
partidário. É um objeto exem plar para alguns dos pontos aqui já levantados,
porque se trata de um grupo político nascido de um a convergência entre in­
telectuais e trabalhadores com um pano de fundo auto-explicitado como “éti­
co” , m as que, um a vez no controle do poder de Estado, afastou-se sem de­
m ora da base social responsável pela sua ascensão, para confinar-se ao jogo,
m oralm ente duvidoso, do aparelham ento burocrático do partido (intem a-
m ente, m ontagem de um a m áquina financeira; extem am ente, fomento de um
sindicalism o de n egócios) e de um a rep resentação parlam entar subm etida
a um a legislação eleitoral cuja prática conduz ao financiam ento abusivo e
ao marketing generalizado.
A dvêm daí todas as conseqüências teoricam ente antecipadas pela refle­
xão política, das quais a principal é o fecham ento da representação sobre si

178
•*

m esm a com o fenôm eno da autonom ia corporativa da classe política, que


passa a girar burocraticam ente ao redor de seus próprios interesses, dando
m argem ao desenvolvim ento de um a corrupção sistêm ica.
E m prim eiro lugar, é p reciso levar em consideração os antecedentes do
Partido dos T rabalhadores (PT), cuja form ação em 1980 - obra de sindica­
listas (trabalhadores organizados), jornalistas, professores, estudantes, so­
breviventes da repressão no regim e m ilitar e militantes católicos das com uni­
dades eclesiais de base - m arcou fortem ente a história nacional, por ter im pli­
cado a representação organizada de um a tendência de independência política
dos trabalhadores, ou pelo m enos de um a fração im portante (“trade-unionis-
ta”) dos trabalhadores formais frente ao Estado, num m om ento de reorgani­
zação da vida dem ocrática no país. A fundação do partido contribuiu em
m uito para o desm onte da coalizão militar-tecnoburocrática que se serviu du­
rante m ais de duas décadas do poder de Estado para sufocar as liberdades ci­
vis do povo brasileiro. O cenário de esperanças introduzido por um a organi­
zação política de origem operária - a m ilitância petista , um tipo de adjetivo
que não se podería apor, fazendo algum sentido, a nenhum a outra formação
partidária no quadro das organizações políticas brasileiras - sugeria cam i­
nhos novos (o “socialismo democrático) e m enos desiguais (reformas na dis­
tribuição de propriedade e de renda) para a sociedade global.
Do ponto de vista das relações entre capital e trabalho, vale observar
que os sindicalistas m etalúrgicos de São Paulo orientavam -se m uito mais
pelo livre jo g o de m ercado nas relações entre patrões e operários do que p e­
las regras históricas de tutela da legislação trabalhista. Esta tendência con­
trastava com a história dos partidos que se autoproclam avam “obreiros” ,
m as fortem ente dependentes em sua estrutura de setores das classes diri­
gentes. N essa fase, o PT representava um a “heterogeneidade” - ou seja, algo
que ameaça, no máximo, o princípio m antenedor da ordem vigente e, no m í­
nim o, a continuidade da oligarquia predom inante - frente ao que figurava
com o hom ogêneo, ou seja, com o o que não devia ser m udado nas configu­
rações hegem ônicas da econom ia e do poder de Estado.
A ssim , quando o líder petista Luiz Inácio Lula da Silva quase se tom a
presidente da R epública em 1989 estava incorporando em seu trajeto eleito­
ral as posições de um a esquerda política que entrava em crise, a partir do es­
facelam ento do cam po socialista e da difusão da doutrina neoliberal no âm ­
bito de um a globalização que se im punha não apenas com o uma intensifi­
cação das trocas internacionais, mas principalm ente com o um novo projeto

179
político m undial de regulação social, em que paradoxalm ente prosperava
um a ideologia de desregulam entação estatal204.
N esse projeto, avulta ao prim eiro plano o esboço de um a econom ia sem
ancoragem territorial (com prom etida com a sua p rópria lógica sistêm ica),
conectada exclusivam ente pelos m ercados financeiros e seu aparelham ento
tecnológico, assim com o reconhecidam ente incapaz de g erar desenvolvi­
m ento e estabilidade, logo, avessa ao E stado desenvolvim entista. A política
de que aí se trata exclui a dim ensão política do com um e, portanto, a discus­
são pública sobre as escolhas coletivas. O enfraquecim ento dos m ovim en­
tos sociais, portanto, da potência reivindicatória das cam adas assalariadas,
m arca os espaços nacionais sob o program a neoliberal. O anúncio do fim da
“E ra V argas”, prom ovido pouco tem po depois pela coalizão que levou FH C
à presidência, as privatizações do patrim ônio público, a subm issão aos p ac­
tos da dívida externa, etc. ratificariam a virada neoliberal, destinada a glo­
balizar a qualquer custo a econom ia nacional, em nom e de um a suposta “su­
peração do atraso histórico” .
N aquele m om ento, a virad a neo lib eral tev e com o in eq uívoco op o sito r
o PT, cada vez m ais perm eado por funcionários públicos e intelectuais (a
cham ada classe m édia assalariada), logo, teoricam ente com prom etido com
a prevalência do público sobre o privado. É precisam ente nesse m om ento,
aos olhos da observação fina, que com eçam a se dissipar quaisquer ilusões
de que o PT enveredasse p o r um a radical p o lítica de em ancipação, isto é,
por um refo rm ism o p ro g ra m á tic o (ru p tu ra co m a o rd em so c io e c o n ô m i-
ca in stitu íd a ), que era no fundo o horizonte ideológico do socialism o de­
m ocrático colim ado por grande parte dos fundadores do partido. A inda as­
sim, os tem ores quanto a isto se estendiam das federações de indústria e co­
m ércio às organizações da m ídia hegem ônica e, conseqüentem ente, a am plos
setores das classes m édias urbanas, onde não raro se cogitava em ocional­
mente que Lula, um a vez eleito, desapropriaria as casas próprias dos m ais
abastados205. Todo um afeto público negativo foi capitalizado na direção do
voto da pequena burguesia interm ediária.

2 0 4 . Ef e t iv a m e n t e , n ã o se t r at a d e d e sr e g u la m e n t a ç ã o , e sim d e u m a o u t r a m o d a l id a d e d e r e ­
g u l a m e n t a ç ã o , e m q u e a s e m p r e sa s d et êm a su p r e m a c i a , m a s se m p r e co m a c o n iv ê n c i a d o
Est ad o .
2 0 5 . Esse sen t im e n t o a i n d a p e r d u r av a ju n t o a se t o r e s r e d u zid o s n a c a m p a n h a e le it o r a l d e
2 0 0 2 . M u it o r e p e r cu t iu o e p isó d io em q u e u m a co n h e cid a a t r i z d e t e le n o v e l as, ap r e se n t a n d o - se
n u m p r o g r am a e le it o r al d o p ar t id o ad v e r sá r io (o PSD B), m an if e st o u o se u m e d o d e Lu l a . O l h o s
e sb u g alh ad o s, f ilm a d a em d o se , e la in t e r p r e t av a co m o n u m t e le d r a m a : " Eu t e n h o m e d o ! "

180
A realid ad e, porém , é que, ao d isp u ta r p e la p rim e ira v ez a p re s id ê n ­
cia d a R epública, o PT já sinalizava, com sua opção pela identidade eleito­
ral partidária (na prática, isto significa u m a separação entre o discurso de
cam panha e as posições ideológicas do partido), que as eleições im p lica­
vam um a form a inevitável de adaptação à ordem estabelecida. A distância
frente ao Estado, que p ossibilitaria ao partido u m a nova dialética entre o an­
tigo e novo (logo, um a nova p rática política), foi quebrada pela entrada es­
tritam ente eleitoral no sistem a parlam entar vigente. O aparelham ento p arti­
dário - em term os buro crático s e fin an ceiro s - e a p rev alên cia do ju d ic ia -
lism o sob re form as pú b licas de m o v im en tação social seriam co nseqüên-
cias dessa lógica de “pequena política” .
Entretanto, do ponto de vista da im agem público-m idiática do sindica­
lista Lula, no contexto b rasileiro de 89, os setores latifundiários, em presari­
ais, financeiros e, principalm ente, as frações das classes m édias com m aior
possibilidade de reproduzir os estilos de v ida das cam adas dom inantes ou
de legitim ar a diferenciação cultural de sua form a de vida rejeitavam a can ­
didatura presidencial de um indivíduo de origem operária e, em princípio,
caracterizada com o vanguarda de um a frente popular. P or isto, fazia-se n e­
cessário para a identidade eleitoral-partidária do PT um outro cenário de
representação.
Este conceito (introduzido p o r Stuart H all no cam po dos estudos cultu­
rais) diz respeito à com preensão das representações da realidade na m ídia,
em diferentes instâncias (política, gêneros, religião, etc.). É um conceito di­
retam ente relacionado à articulação da hegem onia com a m ídia, conform e
observa Lim a: “N as dem ocracias representativas contem porâneas, os C e­
nários de R epresentação são o espaço específico das diferentes representa­
ções da realidade, constituído e constituidor, lugar e objeto de articulação
hegem ônica total, construído em processos de longo prazo, na m ídia e pela
m ídia (sobretudo na e pela televisão”206.
Para o projeto p residencialista do PT era preciso, portanto, trocar o ce­
nário de representação em ocionalm ente inquietante p o r um outro, concilia­
tório e tranqüilizante. A partir daí, ao longo das outras cam panhas que se
desenrolaram na década de 90, o partido foi m ontando (com as evidentes
contradições intrapartidárias, em que se opunha o “cam po m ajoritário” aos
m ilitantes radicais) estratégias eleitorais m ais moderadas. Estas faziam p ro­

2 0 6 . Lim a # V e n íc io A . d e . C e n á r i o s d e r e p r e se n t a ç ã o d a p o lít ic a, CR- P. In : Ru b im , A n t o n io A lb in o


C a n n e l a s (o r g .). C o m u n i ca çã o e p o l ít i ca : co n cei t o s e a b o r d a g e n s. Ed u f b a / U n e sp , 2 0 0 4 , p . 1 4 .
gressivam ente silêncio sobre referências a “classe social” , “frente popular”
e “ socialism o” - expressões-chave do repertório tradicional da esquerda
p olítica - em favor da am pliação de alianças com setores hegem ônicos, o
que significa conivência com o núcleo ideológico do n eoliberalism o, isto é,
prevalência da dim ensão econôm ico-fm anceira sobre a “grande p o lítica”,
m anutenção dos acordos públicos e secretos com o B anco M undial e o Fun­
do M onetário Internacional sobre privatização m assiva, extinção de p ro ­
gram as sociais efetivos, redução das aposentadorias, desinvestim ento em
educação pública, etc. C onseqüências claras dessas estratégias foram a re­
dução progressiva da m ilitância, dos debates internos e a consagração do
pleito eleitoral com o finalidade organizacional básica. O novo “cenário de
representação” recebeu acabam ento form al, em função do processo eleito­
ral de 2001, com o docum ento “C arta aos B rasileiros”, destinado a tranqüi-
lizar consciências e m ercados.
O que a esquerda política, definida p o r seu histórico com prom isso com
as m obilizações populares, efetivam ente esperaria do PT? C ertam ente,
um a práxis de conteúdo libertário, um “choque social” ou um a ruptura do
m odelo econôm ico dom inante que se inscrevesse no escopo da “grande p o ­
lítica” , um a política de em ancipação. O ra, em 1993, pouco m enos de um a
década antes da eleição de L ula p ara a presidência, B adiou, em palestra na
A ssem bléia L egislativa de M inas G erais (depois debatida pelo petista Ro-
nald Rocha), já m anifestava a sua descrença quanto à possibilidade de que
um partido qualquer, no interior da dem ocracia parlam entarista, pudesse de­
senvolver tal práxis207.
M uito antes dele, Schm itt e G ram sci já haviam feito, cada um à sua m a­
neira, duras críticas ao sistem a liberal-parlam entarista. M as o teórico francês
parte do ponto de vista de que, nesse sistem a, a subordinação da política ao
Estado é um a questão de princípio, resultante da idéia de representação.
Argumenta, retom ando a idéia dos três term os (povo, organizações e Estado)
de toda política, para sustentar que a única articulação com pleta entre eles se
realiza no ato de votar. Por quê? Porque, diz ele, “no m om ento do voto, a re­
presentação do povo no nível dos partidos se tom a ao m esm o tem po um a re­
presentação dos partidos em nível de Estado. Será, por conseguinte, o mo­
m ento da articulação com pleta entre os três term os, já que se trata de um a du­
pla representação: representação das tendências populares no nível dos parti­
dos e representação dos partidos no nível do Estado”208. M as com o o voto de-

2 0 7 . C f . Bad io u , A l a in & Ro c h a, Ro n aid . O p . c i t ., 1 9 9 5 .


2 0 8 . / b id ., p. 2 2 .

182
*

pende da regulam entação estatal, pressupõe-se um consenso político sobre a


idéia de representação, m ais precisam ente sobre a dupla representação, cons­
titucionalm ente controlada, logo, subordinada ao Estado.
A ssim raciocinando, B adiou faz v er que as m obilizações populares em
favor de u m a ru p tu ra dos m o d elo s so c io e c o n ô m ic o s h eg e m ô n ic o s (fri­
sam o s: com prom isso da esquerda política, eticam ente ratificado pelas cir­
cunstâncias originárias do PT) atingem o prim eiro nível da representação,
m as não o segundo, que se dá no nível do Estado. Sob tal ponto de vista, “o
parlam entarism o é um a form a política que exclui a ruptura, já que ele ga­
rante pelo m enos um a continuidade, que tem a v er com a form a constitucio­
n al do Estado e, talvez, m ais fundam entalm ente, a continuidade da idéia de
representação em sua dupla form a”209. Em outras palavras, havería um con­
servadorism o de estrutura no parlam entarism o, que subordina a voz popu­
lar ao voto, portanto subordina a política ao autoritarism o estatal com seus
ritos de calendário eleitoral. A ascensão de L ula e do PT ao Poder se dá nos
term os desse enquadram ento conservador.
U m a outra m aneira de m anifestar a m esm a descrença é m anifestada por
A quino quando se pergunta se a idealização m oderna do parlam entarism o
não seria um a ocultação de seu lugar estratégico com o “organism o v oca­
cionado a tolerar, quando não favorecer práticas nada condizentes com a
res publica”210. Inspirado em Schmitt, para quem a crise do parlam entaris­
m o “se m ostra na incom patibilidade entre instituições e regulações rem a­
nescentes do século passado e a nova realidade” , ele vê a degeneração do
parlam ento na passagem de sua antiga condição de instituição de debate pú­
blico à de articulação de negócios privados e argum enta que o parlam ento
instrum enta a corrupção e tende ao centro, isto é, à despolitização e suas con-
seqüências. N a visão de A quino, o centro, cuja fundação no Brasil dataria
do prim eiro governo de Fernando H enrique C ardoso (1993), é um a espécie
de álibi da direita política.
A s posições de B adiou e A quino, em bora com inspirações teóricas di­
ferentes e apesar das contra-argum entações no sentido de que seria possível
“participar do Parlam ento sem cair no parlam entarism o” (R onald Rocha),
parecem convergir anos depois, já em pleno governo petista, por um lado,
para a realidade da estrutura constitucional do presidencialism o, dependen­
te de mecanism os problemáticos de governabilidade; por outro, para um con-

2 0 9 . Ib i d .
2 1 0 . A q u i n o , Ro m é lio . Pa r l a m en t o , co r r u p çã o e ce n t r o . A PU B - Se ção Sin d ical d a A n d e s- SN ,
1 9 9 5 , p a ssi m .

183
senso analítico quanto à realidade política da centro-direita, em que o Parla- 5
mento mostra-se assujeitado por inteiro aos interesses privados, corporifi- e
cados em “bancadas” parlam entares especializadas e dispersas, em m eio à j
corrupção generalizada das arrecadações ilegais e das negociatas de cargos r
públicos e das eleições - eletronicam ente m odernizadas, m as tão retrógra- r
das em termos de compra de votos e aliciam ento de eleitores quanto na Re- ^
pública Velha. N enhum slogan partidário de “paradigm a ético na política”, t
nenhuma postura m oralista resiste à corrupção inerente aos acordos da “pe- r
quena política”, isto é, a politicagem da Realpolitik, em sua busca de alian­
ças para obter governabilidade (como, aliás, ficou dem onstrado com os es- c
cândalos do PT em meio ao governo de Lula). '
Argentária, clone da im aginação publicitária e orientada p or m édias es- t
tatísticas, a classe política tom a-se refém de seus próprios interesses, além r
daqueles de empresários e tecnoburocratas. N o Legislativo, em vez de le­
gislar e fiscalizar, os supostos representantes do povo gerenciam verbas. s
No Executivo, adm inistram -se fisiologicam ente os votos de m aioria ou os /
acordos de liderança, para garantir a prática de um a gerência do Estado, te- c
leguiada pelos caciques internacionais do capital. As perspectivas de cor- d
rupção são tanto m aiores quanto maiores sejam o tam anho do Estado e a ti- a
bieza das legislações eleitorais. c
No período eleitoral, os candidatos a legisladores e governantes não di- P
ferem em estatuto sem iótico das ações na Bolsa, subm etidas às flutuações r]
nervosas das pesquisas de m ercado, nem dos produtos de superm ercado, re­
tocados e sedutores. O alinham ento geral pelo centro está ligado a im pera- h
tivos econômico-sociais (consolidação de um m odelo globalista de respon- u
sabilidade fiscal e monetária, pressões do capitalismo financeiro, atrofia dos c
partidos políticos, medo da instabilidade social, etc.) com patíveis com a su- c
posta neutralidade axiológica do mercado.
e]
Há violência nisso tudo. As eleições municipais de 2004 no Brasil, que
a mídia classificou como “um dos maiores espetáculos eleitorais da m oder- Q{
nidade” (5.563 municípios, 350 mil candidatos a vereador, 15 m il candida- ^
tos a prefeito, 400 mil um as eletrônicas, 360 mil seções eleitorais e 120 mi- ZJ
lhões de eleitores), realizadas contra um fundo de desem prego generaliza­
do, foram na prática um a combinação violenta de marketing avançado com
currais eleitorais ao estilo antigo. ^
Isto é o que transparece na dim ensão chamada por G omes de “interna”, —
a esfera da “pequena política” gramsciana. N a dim ensão pública, prevale-
cem a mídia e o marketing , para os quais existe na política apenas o proces- 21

184
so eleitoral com suas campanhas tendencialm ente perm anentes, enquanto
esquerda e m obilizações populares são fantasm as de um passado rem oto.
A testa o ex-presidente FHC: “N a cam panha, é natural um certo oportunis­
mo. C om jogada de marketing , você cria um m ito, conta um a história. O
m eu mito era fácil, era o real, m oeda, estabilidade. O Lula era ele próprio, a
vida dele. Eu não estava mentindo, realm ente tinha feito o real. O Lula tam ­
bém não, representa a ascensão de um a cam ada. M as um a coisa é cam pa­
nha e outra é governo. No governo, não basta paz e am or”211.
O “m ito” em questão deve ser entendido com o o m aterial sensível de
que se valem o marketing eleitoral e a grande m ídia na cosm ética da dem o­
cracia. Ao se narrar o mito, seja por agentes de propaganda, seja p o r sim pa­
tizantes, a história pessoal do líder e a do partido interpenetram -se em otiva-
mente, colorindo-se com os m atizes próprios do narrador. Por exem plo:
“Vi dona M aria Clara, na periferia de V ila V elha, fazer da sala apertada de
seu casebre sede do núcleo do partido. Vi Bacuri, hanseniano, reunir no
A cre enferm os de um a colônia para deb ater o p ro g ram a do PT. V i a g ri­
cultores do sertão paraibano pintarem im ensa estrela verm elha na parede
de um galpão”212. Os m atizes católicos naturais neste narrador, um frei e
ativista social, poderíam ser m itologicam ente am pliados, associando-se as
circunstâncias hum ildes da criação do partido (casebre-“m anjedoura”, le­
prosos, estrela-guia, etc.), assim como a origem operária do líder, à trajetó­
ria crística.
U m a vez no Poder, entretanto, a origem hum ilde e a m ilitância sindica­
lista de Lula, componentes fortes de sua m itologia, term inaram gerando
um a postura que se reproduziu não apenas no presidente e no grupo p ala­
ciano, mas tam bém na própria im prensa: o antiintelectualism o ressentido,
clara m arca de diferença para com a postura do presidente da R epública an­
terior. Exemplo disto é o discurso na Confederação N acional da Indústria,
em que Lula reiterava: “Já conseguimos em seis m eses, do ponto de vista de
política internacional, aquilo que muitos que estudaram a vida inteira não
conseguiram ” . O efeito da mitificação é irradiante. D ias antes, um colunista
da im prensa carioca responsabilizava os intelectuais por terem “inviabili­
zado” o governo de FHC e, agora, por tentarem fazer o m esm o com Lula.
O im aginário desse voluntarism o espontaneísta esquece que a eleição
de Lula, senão o próprio Lula, foi um fenôm eno produzido tam bém pela in­

2 1 1 . C f . a já r e f e r id a e n t r e v ist a d e Cr ist o v am Bu ar q u e c o m - FH C.

2 1 2 . Fr ei Bet t o . O p aís v ai b em , o p o vo b r asile ir o a in d a n ã o . In : O G l o b o , 2 7 / 0 2 / 2 0 0 5 .


telectualidade nacional, desde que o m etalúrgico do A B C paulista co n v er­
teu-se em líder p o lítico . O s m ap as eleito rais sem p re m o straram que a v o ­
tação m aciça no candidato p etista acontecia nas zonas caracterizadas por
m aio r instrução e dentro do raio de influência dos discursos intelectuais. A
base eleitoral do PT não se definiu jam a is apenas pelo dim inuto operariado
nacional, m as tam bém e prin cip alm en te p ela intelectualidade orgânica das
u n iv ersidades e do serviço público.
N a realidade, a m atéria “real-h istó rica” (objeto im ediato da ciência p o ­
lítica) de que se v alera o PT até o ano anterior ao da eleição presidencial,
apesar das contradições internas do partido, era o fato de sua afinação com
o m undo do trabalho nas disputas im portantes de classe social, a exem plo
das greves do A B C paulista, da luta p ela reform a agrária, da cam panha das
D iretas-Já, do m ovim ento contra o pagam ento da dívida externa e outras.
O u seja, era u m ganho de h eg em o n ia na luta social. E ntretanto, quando a
pessoa de L ula p assa a sim bolizar a p o ssibilidade de u m a política de tran s­
form ação do status-quo (“sim b olização” é algo que se faz com afeto e d ese­
jo , com m atéria “m ítica” , portanto), a h eg em onia partidária, logo a força da
m ilitância ou das bases sociais do PT, com eça a ser suplantada pelo carism a
da liderança, perdendo posição para o marketing eleitoral.
D o ponto de vista psicossocial, a eleição de L ula foi p recedida pelo sen­
tim ento generalizado entre as cam adas populares de que o “M al” se havia
alastrado. Entenda-se “M al” , em sentido am plo, com o um a potência de des­
truição da diversidade de forças que garante a vinculação com unitária, aves­
sa à idealização transcendente de um “B em ” , sem pre sugerido pelos discur­
sos críticos da oposição política, inclusive do próprio PT. Era o que se ex ­
traía em ocionalm ente do abandono de qualquer projeto nacional p ela longa
década de regim e neoliberal (os F em andos: C ollor de M ello e H enrique
C ardoso); da escalada da v iolência urbana com o efeito da corrupção p olíti­
ca e policial, aliada ao agigantam ento do tráfico de drogas; da ausência de
valores coletivos e de esperanças de trabalho p ara os jo v en s; da redução da
ética social im ediata em função da estética da banalidade prom ovida pela
m ídia; do aprofundam ento do fosso social em m atéria de distribuição de
renda; das am eaças veladas do Fundo M onetário Internacional (FM I) quan­
to a um desastre econôm ico-financeiro sem elhante ao da vizinha A rgenti­
na, m esm o sabendo-se da particularidade forte do B rasil com o país expor­
tador de produtos industriais.
C om essa atm osfera afetiva, intensificavam -se respostas sociais an a­
crônicas, a exem plo do crescim ento desm esurado dos cultos evangélicos
ju n to às faixas populacionais m ais em pobrecidas nas periferias das grandes

186
n

cidades. Este é um fenôm eno claram ente consentâneo à degradação da po­


lítica: assim com o a Igreja C atólica pôde locupletar-se econom icam ente no
passado por inexistência de um a política m ais forte do que a teológica, hoje
se constituem multinacionais da fé (evangélicas, neopentecostais), com im en­
so po d er de arrecadação, à som bra da decadência dos cenários de esperan­
ça políticos.
Em contrapartida, observam -se respostas politicam ente atuais, visíveis
na m ovim entação das associações com unitárias, nas estratégias populares
de resistência e nas esperanças depositadas num a alternância do Poder cen­
tral. A eleição de Lula foi coletivam ente experim entada com o um a resposta
ao M al - sem quaisquer conotações m essiânicas, nem m itos sebastianistas,
m as com o depositário político de um cenário de esperança. Daí, a alegria
nacional que presidiu à eleição e à posse - algo inédito na história do país,
m esm o considerando-se a popularidade de governantes com o G etúlio V ar­
gas, Juscelino K ubitschek e João G oulart - na presidência da República.
M ais do que qualquer “verdade” racionalista da política, o transborda-
mento afetivo da alegria adequava-se a um a participação popular que ia além
da dim ensão formal do voto, na direção de um nível em que a dem ocracia pa­
recia realizar-se com o “poder dos hom ens” (expressão usada pelo politólo-
go C laus O ffe) e não com o simples rito processual, mesm o considerando-se
o quanto de risco para a hegem onia dem ocrática possa existir em investimen­
tos carismáticos dessa ordem. O fato é que não se tratava da abstração impli­
cada em todo cargo de presidente da República, mas de um a suposta concre-
tude do poder em mãos de um hom em oriundo das camadas populares213.
Do ponto de vista estritam ente jurídico-político, a eleição de Lula não
foi diferente da anterior, que levou FH C à presidência. A diferença parecia
ser de natureza substancial, por se im aginar o eleito de agora com o encarna­
ção tem porária da soberania popular na figura de um m em bro da classe
operária. O esboço de um a vontade coletiva soberana e o forte investim ento
afetivo das m assas ali se afinavam com o que há de sensível no valor dem o­
crático, isto é, na experiência da política com o um a virtude.
C entenas de m ilhares de pessoas deslocaram -se para a C apital F ede­
ral, p or todos os m eios de transporte possíveis, no dia da posse. Em Brasí-

2 1 3 . Est e asp e c t o , p r o p r ia m e n t e in t r ín se co , d o p o d e r su st en t o u p o r m u it o t e m p o a p o p u l a r i d a ­
d e d e Lu la d u r a n t e a s su as c r ise s d e g o v e r n a b il id a d e . É u m asp e ct o q u e d iz r e sp e it o à d im e n ­
sã o se n sív e l , o n d e e n t r a m e m jo g o a f e t o s e a f e t a ç õ e s c o l e t iv a s. A i m p r e n sa t o r n o u c o n h e c id a
a e x p r e ssã o " b li n d a g e m " : o g o v e r n o p o d ia i r m a l , m as o g o v e r n an t e p e r m a n e c e r ía " b li n d a ­
d o " , ist o é , af e t i v am e n t e im u n e ao s e f eit o s d a cr ise p o lít ic a.

187
lia, m as tam b ém em todo o resto do p aís, o p o v o cele b ra v a aq u ilo qu e co n si­
derava com o u m a vitó ria sua. Im p ren sa e p o p u lares rep etiam em u n ísso n o
que, p ela p rim eira vez nos cinco sécu lo s de h istó ria do B rasil, u m h o m em
saído dos estratos m ais h u m ild es do pov o , u m e x -to m e iro m ecâ n ico e líd er
sindical, o cu p av a o P alácio do P lan alto . V iv eram -se d ias em q u e o M al p a ­
recia banido da cen a p ú b lica, e o real era irrestrita m e n te ap ro v ad o , p o rta n ­
to, dias de alegria. N essa ex p eriên cia co letiv a, p o lític a e e ste sia (d esd e a es-
tetização m id iática até as m an ifestaçõ es e sp o n tâ n e a s d a e m o çã o p o p u lar)
eram a m esm a coisa.
D esd e o co m eço do g o v ern o , o d iscu rso d e L u la sem p re d e ix o u v isív eis
alg u m as m arcas retó ric as de seu p e rte n c im e n to p o p u lar. O fu teb o l é su a
p rin cip al fonte de m etáfo ras p a ra d e sc re v e r os b a stid o re s d a p o lític a e a
v id a nacio n al. P o r ex em p lo , “ g o v e rn a r é q u e n e m u m a p a rtid a de fu teb o l.
V ocês já assistiram a um a partida com um adversário de v o cês no sofá? Q u an ­
tas vezes não d á v o n tad e de b rig a r co m o c o m p a n h e iro q u e e stá ao lad o ?
T erm in ad a a p artid a, o q u e v o cê faz? G o v e rn a r é a m e s m a c o is a ” (falando a
prefeitos)\ “ E sc o lh e r o m in isté rio é c o m o e sc a la r a seleção . C a d a to rc id a
ach a que tem u m tim e de c raq u es. S o u o té c n ic o , eu é q u e e sc o lh o . P o sso até
errar. M as farei o p o ssív e l p a ra e sc o lh e r os m e lh o re s ” (antes de anunciar
seu m inistério ); “ O s fu n d a m e n to s do fu te b o l p a ra o F ilip ã o (técnico da se­
leção brasileira) e stã o m a is o u m e n o s ig u a is a o s fu n d a m e n to s d a e c o n o ­
m ia p a ra o M in istro P e d ro M alan . T o d o m u n d o sa b e o q u e te m d e fa z e r e
n ão faz. N ã o é p o ss ív e l!” (criticando o regim e neoliberal de seu antecessor
na presidência). E assim p o r d ia n te 214.
A o m e sm o te m p o , e n tre ta n to , se fa z ia p e rc e p tív e l a d is so n â n c ia , se m
se q u e r u m m ín im o d e c o e rê n c ia , e n tre a fa la d e c a n d id a to e a d o g o v e rn a n ­
te. Já no in íc io d o m a n d a to , L u la p ro c la m a v a ao s o u v id o s m a is o rto d o x o s
q u e “ja m a is fo ra d e e sq u e rd a ” , a n u n c ia n d o q u e “ e n tre o p ro g r a m á tic o e o
p ra g m á tic o , m u ita s v e z e s e u v o u fic a r c o m o p ra g m á tic o ” . E e m p o u c o s
m eses de g o v e rn o , m e sm o m a n te n d o u m e le v a d o ín d ic e d e a p ro v a ç ã o p o ­
p u la r, ele to m a v a e x p líc ita a d ife re n ç a e n tre o d is c u rs o e le ito r a l d o P T (o b -

2 1 4 . I sso é c e r t a m e n t e r e f e r e n d a d o o u e st i m u l a d o p e l o s e sp e c i a l i st a s e m c o sm é t i c a e l e i t o r a l
(marketing p o l í t i c o ) , q u e t iv e r a m im p o r t â n cia e x t r a o r d in á r ia ju n t o a o p o lít ico , a n t e s e d e p o is d a
e l e i ç ã o . A l é m d o f u t e b o l , o e s p a ç o d o m é st i c o ( a c a s a , o q u i n t a l , e t c.) se r v e t a m b é m c o m o f o n t e
" m i t i f i c a d o r a " d e m e t á f o r a s. Em j u n h o d e 2 0 0 5 , n o c a l o r d a c r i se d e s e n c a d e a d a p o r d e n ú n c i a s
d e p a g a m e n t o s i l e g a i s a c o n g r e ssi s t a s, o d i s c u r so d e Lu l a à N a ç ã o l a n ç a v a m ã o d e s s e t i p o d e
r e c u r so r e t ó r i c o : " T e n h o a f i r m a d o q u e o c o m b a t e à c o r r u p ç ã o é c o m o u m a c a s a o n d e h á m u i t o
t e m p o n ã o se f a z u m a l i m p e z a d e v e r d a d e , e o n d e m u i t a su j e i r a e st á a c u m u l a d a h á m u i t o
t e m p o . Q u a n d o v o cê c o m e ç a a li m p a r , o q u e m a is a p a r e c e é lix o : a t r á s d a p o r t a , d e b a ix o d o s
m ó v e i s, d e n t r o d o s a r m á r i o s" .

188
tendo su prem acia sobre as alas esq u erd istas no cam p o m ino ritário do p a rti­
do) e a Realpolitik em B rasília. Foi m an tid a a m esm a po lítica so cial-n eo li-
b eral que o p residente e seus co m p an h eiro s de p artid o criticavam , isto é, a
p o lítica da b alança com ercial su p erav itária que caracterizo u o segundo go ­
v ern o de F H C , refo rçad a p o r u m a p o lítica de ex p o rtação afin ad a co m os in ­
teresses do capital financeiro. U m a vez no cargo, as posiçõ es eonôm ico-fi-
nanceiras do M inistro da F azenda, um an tig o tro tsk ista (m em bro d a facção
que o p tara p ela luta arm ad a d urante o reg im e m ilitar), não se rev elaram em
n ada diferentes daquelas assum idas an terio rm en te p elo ex-m inistro Pedro
M alan, u m neoliberal, co m petente in teg ran te da in telectualidade o rgânica
das finanças internacionais.
N o jo g o do p o d er em B rasília, o d iscurso do liv re-ag ir p o lítico p resente
no pro g ram a refo rm ista do PT o riginal d av a lu g ar a u m “p rag m atism o ” si­
tu acio n ista e conservador, com forte tro p ism o p ara a centro-direita. A “v ir­
tu d e” d eslocava-se da p o lítica p ara o rig o r fiscal, natu ralm en te ex altado p o r
ban q u eiro s e p o r o rg anism os internacionais. N esse d eslocam ento, revela-
se em to d a a sua plen itu d e a crise da p o lítica tradicional: u m governo p o liti­
cam ente precário (im passes institucionais, rejeição popular, etc.) p o d e su s­
tentar-se, desde que a econom ia funcione a con ten to dos o rganism os in ter­
nacionais de controle. Isto ocorreu com o gov ern o de A lejandro T oledo, do
P eru, que co nseguiu cheg ar até o fim de seu m an d ato com o apoio de ap e­
nas 7% d a população; o correu tam b ém co m o g o verno de L ula que, em
m eio à d ev astad o ra crise po lítica de 2005, m an tin h a o b o m desem p en h o da
econom ia, segundo os p adrões do p o d er fin anceiro internacional.
Intem am ente, com o em qualquer outra organização política, o PT b u s­
cou desde o início a autonom ia de suas lideranças parlam entares, burocrati-
zando os seus processos e distanciando-se das bases m ilitantes. E ste diagnós­
tico não provém apenas de círculos ideológicos com prom etidos com a es­
querda. N u m a coluna jornalística de u m jo rn al conservador, anterior às elei­
ções municipais de 2004, lê-se a m esm a conclusão: “Q uando parecia que com
o PT chegava tam bém a esquerda ao poder, o que aconteceu foi um a descam ­
bada do governo para a centro-direita. A inda m ais agora que Paulo M alu f
passou a ser aliado im portante na disputa da capital paulista”215.
E m outras palavras, o “p ragm atism o” ag o ra levava o antigo líder p ro ­
gressista a to m ar-se atração no F órum E conôm ico M undial em D avos (S u í­

2 1 5 . M e r v a l Pe r e i r a e m O G l o b o . V a l e l e m b r a r q u e Pa u lo M a l u f t o r n o u - se u m a e sp é c i e d e íc o ­
n e (n e g a t iv o ) n a c i o n a l d a p o lít ic a b r a si l e i r a .

189
ça), onde se cruzam os cam in h o s do cap italism o g lo b alista, e a tach ar o F ó ­
ru m M undial Social (evento de im p o rtân cia sim b ó lica p a ra cam in h o s alter­
n ativ o s d a p o lítica) de “ feira de p ro d u to s id eo ló g ico s, on d e cad a um co m ­
p ra o q ue q u iser e ven d e o q ue qu iser” ; a aliar-se a p artid o s id eo lo g icam en te
distan tes do p en sa m e n to p ro g re ssista , em n o m e d a fo rm a ç ã o de b ase p a r­
la m e n ta r e da vitó ria eleitoral; a d isco rrer p u b lic a m e n te sobre sua em patia
co m o presid en te no rte-am erican o G eorge B u sh ou co m o u ltraco n serv ad o r
esp an h o l José M aria A znar.

U m a ra zã o im p o ssív e l

R eto m a-se, deste m odo, à arg u m en tação de B a d io u que, m esm o p are­


cendo à p rim eira v ista u m a m era especu lação ló g ico -filo só flca sobre a p o lí­
tica, m o stra-se ratificad a p ela realid ad e h istó rica no caso brasileiro. Essa
arg u m en tação não traz p o r certo n en h u m a so lução real p ara os im passes da
rep resen tação p arlam en tar, m as levanta p o n to s cru ciais p ara a reflexão, a
exem plo da questão de se determ in ar se a ativ id ad e eleito ral, isto é, a sua o r­
g an ização estatal e co n stitucional, con fig u ra-se de fato com o um lugar da
p o lítica. P o r exem plo, depois da invasão do Iraq u e p elo s E stados U nidos e
de suas tentativas de m o n tar eleito ralm en te u m reg im e local, até m esm o a
im p ren sa m ais conserv ad o ra levantava q u estões da seg uinte ordem : “A té
que p o n to o sim ples exercício do voto fará v aler a sua vo n tad e individual ou
lhe d ará voz ativa nas futuras decisões do gov ern o que ajudou a eleger?
Pode-se cham ar de dem ocracia qualquer país onde haja votação popular, m es­
m o quando p atro cin ad a p o r u m a po tên cia in v aso ra?”
A resposta de B adiou é datada de quase duas d écadas antes dessa p er­
g u nta específica: “A rigor, im porta pouco se o pov o v o ta ou não; porém não
farem os cam panha p ara que as pessoas v otem ou não. O ponto que importa
é que nesta atividade p articular, o voto, um a q u estão sabidam ente subordi­
n ad a à questão do governo e do E stado, mesmo assim ainda haja por oca­
sião do voto uma ponta de verdade que diga respeito à política de em anci­
p ação tal com o a defino”216. P ara o pensador, seria hoje realm ente im possí­
vel “ construir form as de participação d em o crática a partir do conceito de
represen tação ” , ou seja, do parlam entarism o em sua presente concretização
histórica. A inda assim , continua-se a votar, m esm o sem qualquer “ponta de
v erd ad e” , m as por m era ilusão, com o sugeria um editorial de um jornal ale­
m ão às vésperas de um a eleição nacional: “ V otar não é um ato ditado pela

2 1 6 . B a d io u , A l a i n . O p . c i t ., p . 6 6 .

190
razão; é a expressão de um sentim ento ou de um a ilusão, talvez de u m a es­
p eran ça” (Berliner Zeitung, 15/09/2005).
C om arg u m entações diferentes, outros analistas franceses term inam
con v erg in d o p ara a m esm a sentença neg ativ a quanto à política. É o caso de
B au drillard, ao longo de suas críticas aos d ispositivos da m odernidade o ci­
dental. N ão lhe escap a seq u er o supostam ente inatacável valor d em ocráti­
co: “N o m o m e n to a tu a l, a d e m o c ra c ia é u m a fo rm a so c ia l m a is ou m e ­
n o s tã o a n c e stra l quanto a tro ca sim bólica das sociedades prim itivas. E nós
so nham os co m ela da m esm a form a. O político em geral continua a ser o so­
nho acordado das sociedades ocidentais - das sociedades exotéricas, onde
tudo se m an ifesta p ela técn ica”217.
E v identem ente, o p en sad o r p ó s-m o d em ista não está recusando o reino
das leis ou a dim ensão p ro cessual do regim e dem ocrático, e sim assinalan­
do a sua insuficiência, ao lado das form as éticas com pensatórias com que
sonham g eralm ente os ideólogos da esquerda. Im porta-lhe proclam ar a im ­
possib ilid ad e de realização da razão política, devido a um a presum ida cor­
rupção estrutural, a u m descom prom isso progressivo com a coisa pública,
m as tam b ém pelo advento da “transpolítica” , isto é, de u m a esfera onde os
aco n tecim entos v erdadeiram ente não têm m ais lugar, p o r se perderem no
vazio da inform ação. A v irtualidade m idiática estaria abolindo o m ovim en­
to real da história.
P ara B audrillard, o fenôm eno é de tal am plitude que a m ilitância da boa
causa dem ocrática, v oltada para a reabilitação do que se poderia cham ar de
“ essên cia” do político, term ina alim entando essa form a corrupta do social.
A esfera eco nôm ica deixa cada vez m ais claro que as grandes finalidades
escapam à lógica do que se v em cham ando de política. D esta m aneira, “a
alternativa política, estritam ente política, não tem futuro. E la era um a u to­
pia, ou u m a p rom essa vinda da m odernidade industrial e d um a racionalida­
de final. N em essa finalidade, nem essa p rom essa existem m ais”218.
O bserva-se, com efeito, que d eterm inadas reversões sim bólicas ao des­
potism o estatal definem -se prim ordialm ente pelos costum es afinados com
a m ídia e o m ercado, deixando de lado as form as estritam ente políticas. U m
exem plo exposto na im prensa é o Irã da p rim eira década deste século, onde
a ditadura sócio-político-m oral dos aiatolás e m ulas - que assum iram o p o ­
d er um quarto de século atrás - é progressivam ente constestada pela mo-

2 1 7 . Bau d r illar d , Je a n . Le p a r o xi st e in d if fér en t - En fr efi en s av e c Ph ili p p e Pet it . Gr asse t , 1 9 9 7 , p . 1 1 9 .


2 1 8 . Ib i d ., p . 1 8 0 .

191
demização dos costumes ju nto aos jovens de am bos os sexos. N arra um jo r­
nalista: “Hoje, há dois Irãs: o das ruas e o do interior das casas, onde inclusi­
ve há festas a fantasia em que hom ens se vestem de Tarzan e m ulheres usam
a roupa colante da M ulher-G ato. São regadas a bebidas contrabandeadas. O
proibido rockn ’roll é fundo musical. Se a G uarda R evolucionária bate à
porta, a reação tem duas etapas: dizer que se trata de um a reunião religiosa
e, em seguida, pôr dinheiro no bolso do agente”219. D etalhes (abandono p e­
las mulheres do véu tradicional em favor do lenço de seda, sapatos fechados
trocados por sandálias vistosas, m aquiagem pesada, cirurgias em belezado-
ras, casais de mãos dadas nas ruas, etc.) comuns no Ocidente revelam-se ffan-
camente subversivos num a realidade social vigiada por um a Polícia M oral,
composta por guardiões dos preceitos fundam entalistas do Islã.
Im plicaria tal fenôm eno supor (guardadas as devidas diferenças entre
as ditaduras fundam entalistas e as tecnodem ocracias ocidentais) que a d i­
fusa dim ensão do sensível, atuante nos costum es e m onopolizada pelas or­
ganizações de mídia, aponte aí para a substituição da política pela estética,
como sugere a sociologia neoform ista? A hipótese é duvidosa. Há, por um
lado, a “cosm ética” m idiática da classe política e dos processos eleitorais,
que se tem expandido grandem ente nos m oldes do marketing internacional
e da americanização da política. Mas, como já assinalam os, é antiga a troca
da convicção racional pela sedução do discurso ou das im agens (desde fins
do século XIX, registram-se observações críticas sobre a força do espetácu­
lo nas campanhas eleitorais norte-am ericanas), em bora seja de fato extraor­
dinária a atual m udança de escala dessa substituição.
É o que também salienta R ubim ao observar que a visibilidade social da
política se faz acompanhar de um conjunto de práticas fam iliares à plastici­
dade ou à estética. Argumenta: “A ágora grega, o senado rom ano, a coroa­
ção do rei, o parlamento m oderno, a posse do presidente, as m anifestações
de rua, as eleições, enfim, toda e qualquer m anifestação da política, anterior
ou posterior à nova circunstância societária, supõe sem pre encenação, ritos,
etc. A mudança acontecida, portanto, não diz respeito à dim ensão estética
ou espetacular da política, mas à potência e à m odalidade de seu aciona­
mento em uma nova formação social”220.
E inegável, entretanto, a existência de um a crise profunda da represen­
tação, visível nos ganhos do im ediatismo m ercadológico sobre o liberalis­

2 1 9 . Cf . Jo sé M eir elles Passo s. In : Jo r n a l d o Br a si l , 1 9 / 0 6 / 2 0 0 5 .


2 2 0 . Ru b im , A n t o n io A lb in o C a n n e l a s. Esp e t d cu lar izaç ão e m id ia t iza ç ã o d a p o lít ic a . In : C o m u ­
n i ca çã o e Po l ít ica : co n cei t o s e a b o r d a g e n s. O p . d t ., p . 1 9 1 .

192
mo republicano, na proliferação das técnicas de sondagem plebiscitárias
em detrim ento de form as públicas de representação popular, no enfraqueci­
m ento da ação sindical em favor do interm inável e redundante diálogo nas
redes cibernéticas, na crise da antiga esfera pública disfarçada po r sua am ­
pliação m idiática, e assim p o r diante. P or outro Jado, quando se faz o balan ­
ço das novas form as de ativism o social - alterm undialistas, ecologistas, in-
digenistas, etc. - , verifica-se que, apesar de todo o seu potencial de p ertu r­
bação de grandes encontros capitalistas (D avos, Seattle, e outros exem plos
de focos de políticas neoliberais), nada parece realm ente afetar a m aquiná-
ria da velha institucionalização política, inercialm ente garantida pelo orde­
nam ento jurídico e pela reprodução burocrática dos partidos. O u então, p or
trás dessas novas form as, desenham -se estratégias capazes de vir a p rovo­
car efeitos sociais significativos, m as que são efetivam ente estratégias p o lí­
ticas de antiga conform ação, apenas legitim adas p or um tipo de m ovim en­
tação que apela para a estesia do entrecruzam ento da d iv ersidade (as in te­
rações coloridas e festivas dos fóruns sociais) e p ara a interatividade veloz
das redes cibernéticas.
N ão se pode, entretanto, m inim izar o potencial ativista das redes, ex­
presso não apenas em cap acid ad e d iscu rsiv a, m as tam b ém em p o ss ib ili­
dades de m obilização social, insólitas na experiência dem ocrática de p aí­
ses periféricos, geralmente voltadas para causas extrapartidárias, como ques­
tões de direitos hum anos, de ecologia, de saúde, etc. N as cam panhas em fa­
vor da liberação de embriões hum anos para a pesquisa de células tronco (fe­
vereiro e março de 2005) e contra o exagerado aum ento salarial de deputa­
dos, a internet foi o principal instrum ento da pressão exercida diretam ente
por pessoas físicas sobre o Parlam ento. O m esm o se passou na votação da
M edida Provisória 232, que pretendia um aum ento da carga tributária sobre
o setor de serviços: a m obilização pela internet do grupo profissional visa­
do significou um forte contrapeso m idiático para a pretensão governam en­
tal, que term inou derrotada na C âm ara Federal.
E significativo tam bém o potencial cooperativo das redes no desloca­
m ento de grupos de ativistas, assim com o o potencial de participação popu­
lar ensejado pela eventual convergência das redes com a televisão. N o B ra­
sil, isto se tom ou conspícuo no caso das audiências das com issões parla­
mentares de inquérito, transmitidas ao vivo pela Tv-Senado e interativam en­
te com entadas por usuários da internet.
M as a e fervescência estética (no sentido da p ro p o sição em o cio n alis-
ta do “estar-ju n to s”) ainda guarda algo da velha ilusão positivista de que se
possa chegar a um consenso p or m eio do diálogo puro e sim ples (passando

193
r
»
i
p or cim a das contradições) e não parece apontar saídas p ara a dispersão ou
i
fragm entação institucional da sociedade, que se deixa v er no en fraqueci­
m ento dos sindicatos, das associações de classe ou dos m ovim entos sociais
organizados em term os m ais consistentes do que os apresentados pelos g ru ­
pos de d iscu ssão n a re d e c ib e rn é tic a . O p u ro e ste tic ism o faz v is ta g ro s ­
.1 sa p a ra o fato de que o espaço público, em bora tecnologicam ente am pliado
* e funcionalm ente interativo, apresenta-se tão fragm entado p o r sua p rópria
* diversidade técnica quanto a sociedade contem porânea. A o m esm o tem po,
d eixa intactas as antigas desigualdades sociais, passando ao largo das novas
form as de exploração do sujeito hum ano.
* Enquanto isso, o sistem a liberal-parlam entarista, m esm o saturado ou ul­
* trapassado em seus aparatos representacionais, continua servindo de alavan­
* ca para o fecham ento sistêm ico da econom ia sobre si m esm a, para o aum ento
(hobbesiano) do poder estatal sobre a cidadania ou, no caso das grandes p o ­
D tências econômicas, para caucionar intervenções m ilitares em outros países.
© N esse contexto, a cidadania (que já vim os conceituada pelo pensam ento de
esquerda como base política de apropriação popular dos bens sociais) pode
©
ser redefinida, sem ferir a lógica neoliberal, sob a ótica do consum o.
É aqui conveniente recorrer a M arshall, que generalizou esta noção a
* partir do caso inglês no início do século X X 221. P ara ele, a cidadania tem
m com o elem entos constitutivos os direitos de primeira geração (civis e p o lí­
ticos), frutos dos séculos X V III e X IX , e de segunda geração (sociais), co n ­
» quistados no século X X. Os civis, preconizados pelo liberalism o clássico,
correspondem aos direitos individuais de igualdade, propriedade, liberda­
a> de, expressão, etc.; os políticos, direitos individuais exercidos coletivam en­
te, referem -se à liberdade de associação e reunião, ao sufrágio universal, à
0 organização política e sindical, etc.
a Por sua vez, os direitos sociais dizem respeito à garantia de acesso ao
bem -estar coletivo, traduzido em recursos com o trab alh o , educação, saú ­
de, etc. Estas várias form as de cidadania estão politicam ente conectadas,
0 por decorrerem de lutas do m ovim ento operário e sindical no âm bito da so­
0 ciedade civil. O ra, a redefinição de cidadania a p artir do consum o, fora de
quaisquer perspectivas de reorientação social da econom ia, portanto fora
do espectro político das lutas sociais, im plica u m a tentativa de consolidá-la
com o m ero sim ulacro de soberania popular, alheia às negociações entre as
0 classes típicas da construção da hegem onia.

0
0 2 2 1 . C f . M a r sh a l l, T .H . C i d a d a n i a e c la sse so c i a l. In : C i d a d a n i a , c l a sse e st a t u s. Z a h a r , 1 9 6 7 ,
p. 57 - 114.
0
0 194

0
N o plano interno, a im possibilidade de existência do político em seu
sentido forte (o da “grande política”) não inibe a continuidade das clássicas
atividades de Estado, em que o estamento (no sentido sim plificado de gru­
po de pessoas com o m esm o status social) dos políticos profissionais fun­
ciona com o teatro de fantoches do poder econôm ico. N a realidade, existem
m esm o form ulações teóricas sobre a natureza da política que podem ser
usadas na tentativa de legitim ação dessa política indissociável do Estado e
do capital, em que o prim eiro, m esm o esquivando-se da clássica interven­
ção direta no processo econôm ico, reforça o seu papel de garantir por m eio
das novas regulam entações o livre trânsito dos capitais.
U m a d elas (nas antípodas da concepção de Schm itt) é a do politólogo
norte-am ericano E aston, para quem a p o lítica se define pela existência de
um regim e de alocação de valores, em que a vontade de um a parte é n eces­
sariam ente subm issa à vontade da o u tra222. P or “alocação” ele entende a
transferência in stitucionalizada de bens, dentro do p rocesso social, de uns
indivíduos para outros. Se a alocação se dá p o r costum e ou p o r troca, em
contextos precários de interação, inexiste política. E sta ú ltim a req u er a o r­
dem de um terceiro term o, o p oder vinculatório, dotado da p o ssibilidade
de co erção físic a e v á lid o p a ra a to ta lid a d e do gru p o so cial. A c o n c e p ­
ção de E aston, com o se vê, serve para afirm ar a continuidade da política,
d esde que entendida com o a pu ra e sim ples tarefa de governar, ad m inis­
trando um processo eleitoral, n a m esm a direção do que G ram sci cham a de
“pequena po lítica” .
Por outro lado, a estetização m idiática não esgota o potencial de “for-
m atividade” social inerente ao com portam ento das m assas historicam ente
atuantes nas sociedades contem porâneas. N em o político profissional de­
tém o controle de todos os afetos que a m ídia desencadeia. A ssim , o exercí­
cio da presidência da R epública por L ula - ainda que objetivam ente repeti­
dor do m odelo m acroeconôm ico neoliberal iniciado no início da década de
90 ou ainda que objetivam ente prom otor de alianças político-partidárias
com a velha direita, visando a assegurar a governabilidade em term os con­
servadores - deixou intactos m uitos dos aspectos sensíveis da subjetividade
política popular que o tom ou eleitoralm ente possível. A alegria m assiva e
transbordante, tanto da eleição quanto das circunstâncias da posse - aquela
“ponta de verdade” por ocasião do voto, a que se refere B adiou - , transpare-

2 2 2 . C f . Ea st o n , D a v id . Th e p o l i t i ca l sy st em : A n i n q u i r y in t o t h e St a t e o f p o l i t i ca l Sci e n ce . Kn o p f ,
1953.

195
ce nos resultados paradoxais das pesquisas de opinião, que freqüentem ente
desaprovam o governo, mas reiteram a aprovação à pessoa do presidente223.
N ada de culto à personalidade, nem de doutrinam ento partidário (m es­
mo com o ideário inicial de um “socialism o dem ocrático”, o PT não tem
doutrina), mas há sem dúvida um a potência coletiva da ilusão no sentido
positivo ou afirm ativo desta palav ra, que é o de se se n sib ilizar com a v e r­
tigem de um instante ou de um acontecim ento contra o fundo por dem ais
cheio e estabilizado das formas hegem ônicas. O sentido originário de ilu­
são é pôr as coisas em jogo, é jo g ar com a possibilidade de algo, talvez um
destino, além da mutação acelerada de estados da história (racionalm ente
linear) e da polaridade antagonista das relações sociais geridas pelo capital.
Não foi nenhum program a político racional e argum entativo que sedu­
ziu as massas na eleição de Lula, e sim a ilusão de que ele se configurava
como veículo de um a expressão política própria das classes m ais pobres,
portanto como agente virtual de um aprofundam ento da dem ocracia social
(am pliação dos direitos civis e sociais), em que a cidadania pudesse escapar
de sua condição passiva, conciliatoriam ente liberal, de exclusivo pólo con­
sum idor rum o à plenitude de um a política em ancipatória. Em ancipação de
quê? C ertam ente, da política de força resultante da lógica neoliberal - um a
política de emancipação, em que reform as e um a m ais ju sta distribuição de
serviços e rendas viessem a com pensar o desnível histórico das classes su­
balternas, possivelm ente num nível global de articulação.
Evidentem ente, a idéia de em ancipação dem anda hoje um a participa­
ção intensa dos cidadãos no planejam ento, execução e fiscalização das des­
pesas públicas, assim com o nas decisões estratégicas sobre os direitos so­
ciais (educação, saúde e cultura). N ão é nenhum segredo para os econom is­
tas de boa-fé que a redução das desigualdades na distribuição de renda de­
pende mais da participação popular em decisões estratégicas do que do tão
propalado crescim ento econôm ico global.
Emancipar-se equivale de fato a reduzir a inocência política. M as essa
inocência seria, como bem se viu depois, a condição m esm o do gozo da ilu­

2 2 3 . A m íd ia e o s g est o r es d a p e q u e n a p o lít ica co st u m am a t r i b u i r g r a n d e im p o r t â n c ia a e sse s


jo g o s p le b iscit ár io s q u e , e n t r e t an t o , p o d em e st a r n o m esm o g r a u ze r o d a p o lít ic a q u an t o a re -
t r o alim e n t aç ão d a a u d iê n c ia d e p r o g r am as d e t e v ê . Em f e v e r e ir o d e 2 0 0 5 , o s v o t an t e s n a e l i ­
m in ação d o s m em b r o s d o " Big Br o t h e r " , r ea l i f y - sh o w d a Red e G l o b o , at i n g i r a m a c a sa d o s 31
m ilh õ es d e p e sso as, p o u co m en o s d o q u e o s 35 m ilh õ e s d e e le it o r e s d e Lu la n o p r im e ir o t u r n o
d as e le içõ e s p r e sid e n c iais d e 2 0 0 2 e m ais d a m et ad e d o s q u e o e le g e r a m (53 m ilh õ e s) n o se ­
g u n d o t u r n o . Esse p o d er d e m o b ilização su scit a r e f le xõ e s, p r in c ip a lm e n t e q u an d o se c o n sid e r a
q u e são vo t o s vo lu n t ário s (o vo t o p o lít ico n o Br asil, co m o se sab e , é o b rig at ó r io ) e p ag an t es, q u a n ­
d o se u t il iza o a p a r e l h o t e le f ô n ico em v e z d a in t e r n e t .

196
são e da exuberância da alegria coletiva. A sua redução im plica, p o r um
lado, a com preensão de todo o alcance da crise do E stado, das tran sfo rm a­
ções do trabalho e da representação política, assim com o o im perativo de
que se encontrem novas form as de p ensam ento e ação p ara o vácuo d a d ife­
rença entre a velha dem ocracia rep resen tativ a e a nova d em ocracia social,
em que o sensível, cosm ético ou não, adquire um tipo inédito de vigor. Já
no com eço do novo m ilênio, para se falar apenas em A m érica do Sul, as cri­
ses ou revoltas populares na A rgentina, E qu ad o r e B olívia trouxeram novas
características de m ovim entação das m assas, em que o afeto (tanto a indig­
nação ou a raiva quanto a solidariedade coletiva) contou m ais do que a tra­
dicional lógica classista das velhas rep resentações da esquerda política.
V islum bra-se aí a falência de velhas categorias de p ensam ento da es­
querda clássica que, em bora ainda investidas de poder argum entativo e em o­
cional, m ostram -se em descom passo, no n ível operacional do real-históri-
co, com as exigências concretas da atual acum ulação capitalista e com a
gestão te c n o b u ro c rá tic a das in stitu iç õ e s. P a ra u m a p la ta fo rm a de re fo r­
m as, ao m esm o tem po representativo-dem ocráticas e socializantes, em que
se concretizasse u m a aliança entre classes populares e setores m édios da
sociedade co n tra as fo rm as m ais re b a rb a tiv a s do m o d elo so c ia l-n e o lib e -
ral de v id a, seria provavelm ente preciso a superação d esse descom passo da
práxis. E nesse em penho será vital, m ais do que nunca, b em avaliar os n o ­
vos cenários das estratégias sensíveis - isto é, as tecnologias da co m unica­
ção dentro e fora das grandes organizações de m íd ia - n ecessárias a um agir
político disposto a enfrentar os problem as da fragm entação da cidadania
pelo m ercado e da perda de potên cia sim bólica dos m ecanism os clássicos
de representação das m assas.

197
4

A R E G Ê N C IA D A A L E G R IA

Alegria ou alacridade com o um a regên cia harm ôn ica


dos afet os. A aprovação da vida, qu e se ren ova con t i­
n uam ent e. O dest ino, o t rágico e o cr uel. A pot ên cia
de t ransform ação e cont in uidade da exist ên cia na cos-
m ovisão afro- brasileira. Al egria e cultura do povo.

C3 sta m úsica é alegre, m as não com u m a alegria francesa ou alem ã.


Sua alegria é africana. O destino cego pesa sobre ela, sua felicidade é curta,
repentina, sem piedade”224. N esta entusiasm ada observação sobre a Car-
mem, N ietzsche faz do apelo à sensibilidade - que lhe parece um traço afri­
cano e ao m esm o tem po um a ousadia de B izet frente ao status quo da arte
m usical européia, representada por W agner - um a m arcante diferença cul­
tural. A parece igualm ente aí um a distinção significativa entre dois tipos de
regim e afetivo identificados com o “alegria” .
A alegria africana é propriam ente trágica , no sentido nietzscheano des­
te term o, que é o de “dizer sim à vida m esm o nos seus problem as m ais es­
tranhos e árduos; a v ontade de vida regozijando-se de sua inesgotabilidade
no sacrifício em que lhe são im olados os seus m ais elevados representantes
- a isso que eu cham o dionisíaco, isso foi o que eu intuí com o ponte que
leva à psicologia do poeta trágico”225.
Sacrifício é a entrega radical do indivíduo à com unidade, a recusa da
autopreservação física ou m oral diante dos interesses m aiores do grupo.
T rágica não é, portanto, a purgação do tem or e da com paixão, tal com o in­
terpretava A ristóteles as obras dos grandes poetas gregos, m as a experiên-

2 2 4 . C f . N i e t zsc h e , F. O ca so W a g n e r : u m p r o b l em a p a r a m ú si co s. C i a . d a s Le t r a s, 2 0 0 2 , p . 1 3 .
2 2 5 . N i e t zsc h e , F. O cr e p ú scu l o d o s íd o l o s. O p . c i t ., p . 1 4 3 .

199
cia poética do sacrifício que lev a o in d iv íd u o a se r ele m esm o , n u m p ra z e r
de transform ação que inclui o p ró p rio an iq u ilam en to . U m a a leg ria trág ica
não exclui o destino e dá-se, p ara além da consciência, n u m tran sb o rd am en to
de forças, sem d ep endências de p assad o nem futuro, no aq u i e a g o ra de u m a
situação existencialm ente excessiva.
A idéia de um tran sb o rd am en to ou u ltrap asse d a co n sc iê n c ia p elo d e sti­
no ou p o r q u alquer o u tra fo rça m aio r faz-se p resen te n a c o n cep ção de ale ­
gria, um dos m o vim entos m ais v iv o s d a sen sib ilid ad e, p a ra o qu al ex istem
em latim term os diferenciados: gaudium , laetitia , alacer. O g áu d io refere-
se a um a extravasão im ediata, m ais profana, atinente a u m g ozo o u u m reg o ­
zijo incitado p o r um m óvel p ro n tam en te d iscem ív el. Já laetitia (do latim
castrense, term o p re fe rid o p o r E sp in o s a ) im p lic a “ g ra ç a ” , isto é, o in v e s ­
tim e n to da c o n sciên cia p elo d o m d iv in o 226. G raça, q u e sig n ific a sa u d a ­
ção, trad u zia n a A n tig u id ad e o esp an to e a cele b ração d a v id a, razão p e la
qual estavam colocadas as três G raças na entrada da acrópole de A tenas. A la­
cer , alacris (no latim v u lg ar, alicer , alecris) são a d je tiv o s se m a n tic a m e n -
te referid o s à liberdade d a asa {ala) no céu e à p e rm a n ê n c ia d a te rra (acer
deriva de ager , cam po).
D entro do escopo reflex iv o sobre a alegria, a d im en são p sic o ló g ic a está
n ecessariam ente v in cu lad a à d a ética. A ssim se co m p re e n d e a reflex ão de
N ietzsche sobre a alegria trágica e assim se en cam inha esta q uestão n as m ar­
gens do círculo discu rsiv o d a filo so fia o cid en tal, on d e o p en sa m e n to sobre
a felicidade ou a b eatitu d e co m p o rta an alo g ias co m o u tras trad içõ es re fle x i­
vas, com o a africana e a hindu. U m ex em p lo de certo m o d o su rp reen d en te é
o p ensam ento de W ittg en stein que, em seu h erm ético Tr ac tatus Logicus-
Philosophicus e em p artes de seus Cadernos , a p resen ta arg u m en to s p ara
u m a aceitação álacre do m undo, an álo g o s a m o d o s de p e n sa r em n ad a afins,
n a sua totalidade, a q u alq u er co isa que se p o ssa ch am a r d e razão u n iv ersal,
nem se enquadrar em q u alq u er fo rm a de p o sitiv ism o lógico.
C om o assinala u m de seus ex eg etas227, W ittg en stein d istin g u e no Trac-
tatus fatos de atitudes, sem to m á-lo s m u tu am en te irrele v an tes. P rim eiro ,
diz ele que “os fatos todos p erten cem apenas à tarefa a trib u íd a ( Aufgabe ),
não à sua p erfo rm an ce” . E m seguida, frisa que a p erfo rm an ce d essa tarefa
(ou finalidade, ou dever) p erten ce de alg u m m o d o aos fatos. N ão em sua

2 2 6 . M a n t e m o s a q u i , e e m a l g u n s d o s p a r á g r a f o s se g u i n t e s, o n o sso d e se n v o l v i m e n t o so b r e o
a ssu n t o e m O t e r r e i r o e a c i d a d e . V o z e s, 1 9 8 8 [ Im a g o , 2 0 0 2 ] .
2 2 7 . C f . M o r a n , Jo h n . T o w a r d t h e w o r l d a n d w i sd o m o f W i t t g e n st ei n ' s T r a ct a t u s. M o u t o n t h e H a -
g u e , 1 9 7 3 , p a ssi m .

200
ap licação aos fatos, m as n a o b ten çã o de u m p o n to d e v ista q ue os tra n sc e n ­
d a e q u e fun cio n e com o u m “ lim ite” do m u n d o . A p a rtir d e sse p o n to d e v is ­
ta d elim itad o r, que é algo ex tern o ao m u n d o - lo g o , u m su jeito tra n sc e n ­
d en te seria po ssív el “v e r o m u n d o p ro p ria m e n te ” . T rata -se d e u m ra c io ­
cín io h erm ético , in d isfarçav elm en te m ístico , qu e se re su m e assim : é p re c i­
so sair do m u n d o para b em v ê-lo .
E sta co n cep ção ética de u m a v isão “ p ró p ria ” o u “p u ra ” do m u n d o , isto
é, do real tal e qual se ap resen ta, é a m esm a, co m o v e re m o s, d e u m a c o rre n ­
te in terp re tativ a do Vedanta h in d u , assim c o m o d a tra d iç ã o sim b ó lic a d a c i­
v ilização african a. V er “p ro p ria m e n te ” o m u n d o seria d a r-se c o n ta de que
co n siste in teiram en te de fato s e q u e fren te a ele se d ev e te r u m a atitu d e de
d esap eg o , sem esp era de q u a lq u e r g ratificação . P re ssu p õ e -se q u e o m u n d o
é “b o m ” , in d ep en d e n tem en te das av alia ç õ e s racio n ais, d as v o liçõ es ou dos
ju íz o s d e cad a u m , n ão d ev id o ao “c o m o ” e le é, m as sim p lesm en te (e m isti-
cam e n te) p o r ser m undo.
U m outro exegeta 228pode, assim , co n clu ir que a receita de W ittg en stein
p ara felicidade - g eralm ente in terp retad a co m o u m a satisfação ab so lu ta e to ­
tal - seria a aceitação do m u n d o com o “b o m ” , isto é, ad equado, p ró p rio , tal e
qual aparece n o presente, v ivido com o eterno, sem p ag ar q u alq u er tributo à
história. O desapego o u a in d iferen ça im p licad o s n a atitude d e não se o p o r ao
m undo req u erem u m a m in im ização das necessid ad es, m em ó rias, d em andas,
esforços, hierarquias, m edo, etc. N o entanto, a aceitação trad u z u m a p osição
ativ a (a “v isão p ró p ria”), po rq u e atenta às co n d içõ es im ed iatas do aqui e a g o ­
ra, às convenções sociais e suas exigências, das q uais é p reciso desapegar-se.
A exp eriên cia de v iv er n o p resen te im plica, em con seq ü ên cia, u m a espécie
diferente de consciência do tem po, em que as ilusões de p assad o e futuro se­
ja m abolidas pelo fluxo tem p o ral d e u m a v isão co m p reen siv a.
Felicidade p o d ería ser u m term o ad eq u ad o , e m p rin c íp io , p a ra se d e sig ­
n a r esta ex p eriên cia. A su a in serção no p en sa m e n to o cid en tal cerca-o , p o ­
rém , d as v eleid ad es de u m critério so cial, d estin ad o a c a u c io n a r o sen tid o
d e reflex õ es, ações e obras, in clu siv e do p ró p rio e m p reen d im en to filo só fi­
co, p o is m u ito já d isse qu e a in d ag ação so b re a felicid ad e é o g ran d e m ó v el
d a filo so fia, p re o c u p a d a c o m a p a ix ã o de v iv e r e c o m a c o n stâ n c ia do so ­
frim e n to h u m an o . A lém disso , não se p o d e e sq u e c e r d e su as rep ercu ssõ es
ju ríd ic o -p o lític a s: n a C o n stitu ição n o rte-am erican a, a felicid ad e é lib eral-

2 2 8 . C f . M c G u i n n e s s, B r i a n F. T h e m y st i c i sm o f l h e t r a c t a t u s. In : Th e Ph i/ o so p h ico / Re v / e w , 7 5 ,
1966.

201
m e n te p re c o n iz a d a co m o u m “ d ireito n a tu ra l e in a lie n á v e l” d o ho m em . N a
F ra n ç a , e m 1793, os ja c o b in o s seg u em e sta m e sm a o rien tação .
V erifica-se n a h istó ria sem ân tica d essa p a la v ra u m a fu n d am en tação éti-
co -p o lítica, p re se n te d esd e as su as o rig en s g reg as. A eudaimonia (fe lic id a ­
d e) re fe rid a à in te g ra ç ã o do in d iv íd u o n a p o lis e c o n sig o m e s m o , im p lic a ­
v a a p rá tic a d a v irtu d e, co n fo rm e e sta tu ía P latão : “ O s felizes são felizes p o r
p o ss u íre m a ju s tiç a e a te m p e ra n ç a ” ( Górgias , 5 0 8 -b ). D e T ales d e M ileto
(p assan d o p o r P latão , A ristó te le s, D ió g e n e s L a é rc io , P lo tin o ) ao s p e n sa d o ­
res m o d e rn o s (L eib n iz, L o ck e, H u m e, K an t, S tu a rt M ill e o u tro s), a fe lic i­
d a d e é e n ten d id a, d e m o d o n ã o -re lig io so (d ife rin d o , p o rta n to , d a b e a titu d e
o u b em -av en tu ran ça), com o u m estado d e satisfação frente à situação do h o ­
m em no m undo.
O s eco s d o p en sa m e n to a risto télico p e rp a s sa m e ste en ten d im en to . E stá
d ito n a Ética a Nicôm aco ( / e X ) q u e “ e m to d o h o m e m v ig e o em p en h o p o r
u m b e m ” , isto é, p o r u m a fin alid ad e in te g ra d o ra q u e o rie n ta to d a esc o lh a e
to d a ação h u m an a. O “ b e m ” , p o n to p a ra o n d e c o n v e rg e m to d as as fo rças de
e stru tu ra ç ã o d a co m u n id ad e, é h o lístic o - in d iv id u a l e co letiv o ao m esm o
tem p o . E le im p lic a eudaimonia , a asp ira ç ã o su p re m a e o fim p erfeito , p o r­
q u e é “ sem p re d esejáv el em si m esm o e n ão o é n u n c a em v ista de o u tra c o i­
sa ” . D esejáv el, p o rq u e é alg o qu e n o s falta, m a s n ã o à m a n e ira d e u m re c u r­
so p a ra a o b ten çã o d e q u a lq u e r o u tra co isa, e sim p o r e la m esm a, co m o u m a
fin a lid a d e ab so lu ta, en tretan to in atin g ív el, p o r ser a p u ra esp eran ça de u m
estad o o n d e não ex ista o so frim en to .
E sta é u m a lin h a de p en sam en to q u e p a rte d e P la tã o (p ertu rb ad a a p en as
p e la s re fle x õ e s an terio res d os ep icu ristas e d o s e stó ico s, p a ra os q u ais a fe li­
cid ad e é realizáv el), alca n çan d o P a sc a l e S ch o p en h au er, m as ta m b é m K an t.
D e fato , p ro c u ra n d o co n fe rir rig o r ao c o n ceito d e felicid ad e, K an t o v in cu la
à c o n d içã o do ser racio n al n o m u n d o , co m a a d v e rtê n c ia de qu e se trata de
alg o e m p iricam en te im p o ssív el, lo g o irre a liz á v e l o u in atin g ív el. R e c o n h e ­
ce im p licitam en te, p o rém , su a fo rça co m o u m id eal d a co n d içã o hu m an a.
É p o ssív e l, p o is, in d ag ar so b re a d ife re n ç a e n tre felicid ad e e alegria. E la
n e m sem p re é m u ito clara, p rin c ip a lm e n te q u an d o se lev a em co n sid eração
q u e, assim co m o a alegria, h á m o d a lid a d e s d iv ersas d e felicid ad e, co rres­
p o n d e n te s, em d eterm in ad as lín g u as, a p a la v ra s d iferen tes. U m exem p lo é a
lín g u a fran cesa, qu e c o n ta c o m felicité e bonheur. À p rim eira, reserv a-se o
sig n ific a d o d e u m a sa tisfa ç ã o m a is ilu só ria do q u e re a l, u m a b so lu to c o n ­
c e b ív e l ap en as nas esferas d a relig ião o u d a étic a e, p o r isto m esm o , se m e ­
lhante ao que se designa com o “beatitude” . É o q ue K ant cham ava de um ideal
“ não d a razão , m as d a im ag in ação ” .

202
Bonheur , em con trap artid a, é a felicidade que pode ser experim entada,
p o rq u e n ão se in screv e n a ord em do absoluto nem das g randes expectativas,
e sim n a relativ id ad e dos sen tim en to s que so brevêm em m eio ao desprazer
ou ao so frim ento. N este caso, a felicidade relativ a assem elha-se ao estado
calm o d a aleg ria e então se trad u z sem anticam ente com o u m a espécie de
b em -esta r su b jetiv o , su scetív el de av aliações p sicossociais. N a verdade,
su scetív el m esm o de m edida : a felicidade é qu an tificáv el ou m ensurável. É
a m esm a que tem servido à in d ú stria da cu ltu ra p ara acio n ar os m ecanism os
p ro jetiv o s e id e n tific a tó rio s do s p ú b lico s. A s m ito lo g ia s elab o rad as p o r
cin em a, telev isão , show-business e p u b licid ad e su stentam -se no im perati­
v o social de que cad a cidadão, n u m a so ciedade in ap elavelm ente individua­
lista, b u sq u e a sua co ta p articu lar de satisfação co m o m undo. E um tipo de
eu fo ria de certo m odo an álo g o ao que a dro g a oferece a seu consum idor.
É adm issív el, pois, a distinção, já que a alegria escapa visceralm ente à
m ed id a. L eib n iz foi talv ez o prim eiro a assin alar que felicidade im plica a
co n cep ção de u m “p razer d u ráv el” , sem a in stantaneidade e sem a expansão
da aleg ria ou d a alacridade, que se estende a todo o conteúdo da consciên­
cia. U sam o s aqui indiferen tem en te estas duas palavras, m esm o cientes de
que alacrid ad e é sem an ticam en te m enos com p ro m etid a do que a outra (de­
vid o à estreita asso ciação feita p elo senso co m um entre alegria e o que ch a­
m am os de gáudio im ediato ou descarga eufórica) para designar o regim e afe­
tivo que p ro p icia ao indivíduo, ain d a que p reso à gravidade ou à constância
d a terra (ou seja, às conv en çõ es e suas exigências), a experiência do m o v i­
m en to no céu, que é n a p rática u m “d eslig am en to ” ou um “desapego” .
E sse deslig am en to está filo lo g icam en te assinalado nas palavras alacer ,
alacris , qu e relacio n am a terra ao céu. M oven d o -se, as nuvens to m am o fir­
m am en to claro ( hilarus , em latim ) que tam b ém se p o d e trad u zir com o “jo ­
v em ” . A h ilarid ad e (que term in aria san cionando o riso) e a jo v ialid ad e (p a­
lavra d eriv ad a do deus Jú p iter) caracterizam , p o r exem plo, aquele instante
em que o in divíduo, ab rindo-se sen siv elm en te ao m un d o - o sol que nasce,
a ág u a co rren te, o ritm o das coisas, u m e n can tam en to 229- , abole o fluxo do
tem p o cro n o ló g ico e, co m o corpo livre de qu alq u er gravidade, ex perim en­
ta um a sensação in ten sa de presen te, capaz de en v o lv er os sentidos e lib er­
tar a co n sciên cia de seus entraves im ediatos.

2 2 9 . A e x e m p l o d o q u e o p a v ã o m e t a f o r iz a n o p o e m a d o b a i a n o So síg e n e s C o st a : " O r a , a a l e ­
g r i a , e st e p a v ã o v e r m e l h o , / e st á m o r a n d o e m m e u q u i n t a l a g o r a . / V e m p o u sa r co m o u m so l
e m m e u jo e lh o / q u a n d o é e st r id e n t e e m m e u q u i n t a l a a u r o r a ..."

203
Próxim o à experiência da “saída de si m esm o ” , esse estado evoca tanto
o êxtase quanto a vertigem , que são coisas diversas. N a v ertigem p ro d u z-se
um arrebatam ento eufórico que arrasta a consciência, com o num torveli-
nho, para um a entrega fascinada e ainda dirig id a p elo ego. O êxtase co n sis­
te de desam paro e tensão, porém sem a m an ipulação da con sciên cia pelo
ego, pois im plica um a experiência de abertura sossegada e criativa para com
o outro ou com o cosm o.
N enhum dos dois, entretanto, se confunde co m a alegria que, seja cal­
ma ou exuberante , é ao m esm o tem po u m “ espanto de ser” (B ergson) e u m a
sanção lúcida da vida tal e qual se m anifesta, aqui e agora. N ão u m a sanção
intelectual (inexiste um “ideal” da alegria, assim com o p ode h av er o da feli­
cidade) ou apenas espiritual, m as corporal e co n cretam ente ligada ao p razer
constitutivo de viver. N ela, de fato, a elação do d esligam ento das am arras
convencionais sugere algo de loucura (a “alegria lo u ca”), b em ap o n tad a p o r
Fritz H eidegger: “Em nós, no cantinho m ais íntim o do coração, vive algo
que supera todas as aflições: a alegria, ú ltim o resq u ício da do id eira o riginal
da qual nós todos hoje m al tem os u m a n o ção ”230.
A alegria não é retrospectiva, m as presente. U m p razer ou bem -estar
circunstancial, sim , pode reportar-se ao p assad o e m an ifestar-se nu m a im a­
gem de futuro. N ão a alegria, enquanto gáudio profundo: esta maneira de
extravasão afetiva, provocada pela conco rd ân cia de todos os sentidos - re ­
conhecível pelos sentim entos de jú b ilo , regozijo, gozo - surge de u m a tem -
poralidade própria, diferente da cronológica, com o n a celebração festiva,
quando a alm a ganha au tonom ia e fo rça dian te das agru ras físicas e m e n ­
tais. O real não em erge aí da tem poralidade ab stratam en te criada e co n tro ­
lada pelo valor que ordena o m undo do trabalho. D a singularidade das co i­
sas, no aqui e agora do m undo, advém , álacre, a sua presença.
H á algo de perm anente ou eterno nessa aparição singularizada do presen­
te, algo com o o eterno reto m o da vida, cu ja aceitação co n siste p re c isa ­
m ente na alegria. U m a outra condição para isto, com o já vim os, é a aceitação
do m undo. T udo redunda num a apro v ação livre, in co n d icio n al ou irre stri­
ta do real, diz R osset - sem a justificativa de u m a representação, um a causa
ou qualquer m otivo abstrato que im pressione a consciência. N ão que o senti­
mento de regozijo não possa ser m otivado por um objeto ou p o r um a circuns­

2 3 0 . C f . Sa f r a n sk i , Rü d ig e r . H e i d e g g e r : u m m est r e d a A l e m a n h a e n t r e o b em e o m a l . G e r a ç ã o ,
2 0 0 0 , p . 3 4 . Fri t z H e id e g g e r , ir m ão m ais v e lh o d o f iló so f o M ar t in H e id e g g e r , e r a g ag o e t id o co m o
m u it o b e m - h u m o r a d o .

204
tância. M as na alegria, com o ele ju stam en te observa, o efeito é m aio r do que
a causa, o regozijo não se esgota no objeto ou n a circunstância.
A leg ria é m esm o o que red u z a zero a a b stração , jo g a n d o fora, e x te rm i­
nan d o os co n teú d o s rep resen tativ o s de u m c o n ju n to q u a lq u e r ou, m esm o ,
d a co n sciên cia - “é a p ro v a dos n o v e ” , c o m o a d efin ia o m o d e rn ista O sw ald
de A ndrade. T rata-se de fato de u m reg im e sen sív el fo rm ad o p o r u m a in tu i­
ção im ed iata do m u n d o , em que se ex p erim en ta o v ig o r do tem p o p resen te
(o nunc instans dos esco lástico s) e se en tra em c o m u n h ão co m o real. E sta
exp eriên cia p rescin d e de q u alq u er racio n alização , ex ig e tão -só a cap a c id a ­
de de sentir.

O a q u i e o a g or a

N en h u m a e sp e ra n ç a co n stitu i a a leg ria. D e fin in d o -a co m o a fo rça v i­


tal p o r e x celên cia, p o rtan to com o “ fo rça m a io r” , R o sse t o p õ e rad icalm en te
ao “h o m em d a esp eran ça” , su jeito de u m a d u v id o sa v id a su b stitu tiv a, o h o ­
m em alegre, en q u an to aquele lo u cam en te d irecio n ad o p a ra a e x istên cia
im ediata, cru elm en te ind iferen te a tu d o q u e n ão seja m an ife sta ç ã o d a v id a,
tal e qual ela se apresenta. P o r que “ cru elm en te” ? P o rq u e o crudus , de on d e
v em a p alav ra “cru el” , sig n ifica tan to cru, em o p o sição a co zid o , q u an to a
ausên cia de um “tem p ero ” civ ilizató rio , isto é, a au sê n c ia d e u m álibi ra c io ­
nal (um a causa, u m a ju stificativ a, u m a esp eran ça) p a ra u m fen ô m en o ou
u m ato qualquer. P o r isto, o francês Jacq u es D errid a refere-se à cru eld ad e
com o “ sem -álib i” .
O h o m em alegre é, assim , o h o m em do d esesp ero ou d a d esesp eran ça,
m as no sentido que C om te-S p o n v ille d á a esta p alav ra: “É m en o s a tristeza
do que a au sê n c ia to ta l de esp e ra n ç a e é n o q u e ela c o n stitu i o estad o n o r­
m al do sábio. A q u ele que tem tudo, o q ue iria esp erar? E p o r que, j á qu e
n ad a lhe falta? O real, aqui e agora, lhe b a sta ”231.
P ara este m odo de p en sar co n v erg em as trad içõ es esp ecu lativ as dos
epicuristas, dos estóicos e dos hindus. A s d uas co rren tes greg as su sten ta­
v am a in u tilidade de se esperar p ela v irtu d e e p e la felicid ad e, en q u an to que
um trecho do S am khya-S utra sintetiza a p o sição oriental: “ Só é feliz aquele
que p erd eu to d a a esperança, pois a esp eran ça é a m aio r to rtu ra que existe, e
o desespero a m aio r felicid ad e” .

2 3 1 • C o m t e - Sp o n v i l l e , A n d r é . D e / a u t r e co t e d u d e se sp o i r — In t r o d u ct i o n à Ia p e n sé e d e Sv â m i
P r a jn â n p a d . A c c a r ia s/ L' O r ig in e l, 1 9 9 7 , p . 2 5 .

205
N a v erd ad e, C o m te -S p o n v ille e stá fazen d o re fe rê n c ia d ire ta ao e n s i­
n a m en to do sábio in d ian o S vâm i P rajn ân p ad (1 8 9 1 -1 9 7 4 ), q u e se v aleu de
elem en to s da teo ria freu d ian a p a ra atu alizar, e to m a r m ais co m p reen sív eis
ao esp írito o cid en tal, asp ectos im p o rtan tes do p en sam en to hin d u . M esm o
sem ter deix ad o q u alq u er livro escrito (em b o ra e x istam v árias tran scriçõ es
de suas falas), ele in flu en cio u alg u n s in telectu ais fran ceses co m u m a in ter­
p retação su rp reen d en tem en te m o d ern a e crítica da A d v a ita V e d a n ta (o V e-
d anta é um dos seis sistem as clássico s do p en sam en to hin d u , m as S v âm i faz
dele u m sin ô n im o de A d v aita, que sig n ifica “n ã o -d u a lid a d e ”) fren te às tra ­
d ições do b u d ism o e do hin d u ísm o .
A ferrad o à v alo rização do aqui e agora, Svâm i g aran te q u e “ só o p re ­
sente é re a l” , o que equ iv ale a c o n sid erar o p assad o e o fu tu ro co m o p u ras
ilusões. E v iv er no p resen te im p lica aceitar o p rim ad o d a ação (o ato) sobre
a esperança, o que equ iv ale a tro car a passiv id ad e do estad o de esp era p ela
m an ifestação ativ a d a v o n tad e de fazer. É o m esm o racio cín io do escrito r
francês R o g er M artin du G ard q u an d o diz que “esp erar a felicid ad e já é ser
feliz” (Os Thibault ), p ois à m irag em do que se d iz esp erar so b rep õ e-se a
força de u m a ação p resen te em si m esm a satisfatória.
C om efeito, a ação, ao m odo de u m a flech a em m o v im en to , exige ap e­
nas o aqui e agora, to m an d o d esn ecessário o alvo, que seria a esperança.
D iz Svâm i: “É a espera, é essa esp era a cau sa de to das as preo cu p açõ es. [...]
Suas esp eran ças e seus desejos estão em v o cês, en q u an to que as ações dos
outros e os aco n tecim en to s se d esen ro lam no m u n d o exterior. [...] E ntão? A
esp era n ão é inútil? A s coisas p o d em resu ltar com o vo cês esp eram ou não.
T udo d epende dos fatores “ ex terio res” ! E não de vocês! E n tão? E sp erar o
quê? V o cês têm que aceitar o que aconteceu, o que acontece. N ão h á lugar
para a esp e ra n ç a !”232
O u seja, im porta a flecha m ais do que o alvo, o ato m ais do que a expecta­
tiva. C om o bem acentua C om te-Sponville, a ausência pu ra e sim ples de espe­
rança não significa a m ágoa traduzida na acepção com um da palavra deses­
pero. Pode-se acrescentar: nem m esm o a culta acepção do pensam ento de K i-
erkegaard, para quem o desespero seria a p ior de nossas m isérias, a perdição
do hom em . A qui, o desespero/desesperança é, antes, o grau zero da expecta­
tiva, portanto um regim e de acolhim ento do real sem tem or, sem desengano,
sem tristeza. E ste regim e, ou esta regência, p o d e ser cham ad o de b eatitude
ou de alegria: u m a aceitação e um a experiência da plenitude do presente.

2 3 2 . C o r r e sp o n d ê n c i a d e S. Pr a j n â n p a d . I b i d ., p . 3 0 .

206
E ssa co ndição de p len itu d e obriga a u m a distinção entre em oção e sen­
tim ento. N ão é u m cuid ad o m eram en te acadêm ico, um a v ez que leva a ati­
tudes d iferen tes no do m ín io d a afetividade, onde costum a rein ar um a gran ­
de con fu são de term os - a ex em plo da p alav ra “ am o r” , que d esigna desde a
p aix ão sexual até a relação de u m a m ãe com seu filho. N o ensinam ento de
Svâm i, a em oção é um afeto que perten ce à vida, m as do qual é p reciso libe-
rar-se. A ausên cia de em oções não é in com patível com a p lenitude afetiva,
que oco rre quando aparece o sentim ento.
D iz ele: “O sen tim en to ap arece q u ando você vê, você reconhece, co m ­
p reen d e u m a coisa tal e qual ela é... O sentim ento produz u m a ação positi­
va, que não p ro v o ca n en h u m a reação. A reação pro d u zid a pela em oção é o
início de u m a reação em cadeia... H á u m elem ento com pulsivo num a rea­
ção em ocional, en quanto que, no sentim ento positivo, há um a ação d elibe­
rada. E le en contra a sua fonte em si m esm o. O utro ponto: um a em oção vai
até aos extrem os... h á algo de excessivo. É um a expressão m uito bonita: en ­
co n trar a sua fonte em si m esm o! A ssim , o sentim ento se basta, só depende
de si p ró p rio ”233.
A s noções de “v er” e de “ação p o sitiv a” concorrem para a distinção e
para trazer a idéia d iferencial de sentim ento p ara perto do regim e afetivo
d en om inado “aleg ria” . P ara u m terapeuta bioenergetista, a alegria pertence
ju stam en te “ ao reino das sensações corporais positivas; não é um a atitude
m ental. N ão se p ode decid ir ser aleg re”234. 0 positivo deve aqui ser entendi­
do, dentro da dualidade co n stitu tiv a das sensações e percepções hum anas,
com o u m a excitação o p osta a u m a outra, negativa, de m edo ou de culpa.
“Q uando a excitação p razero sa aum enta, a partir da linha de origem de um a
sensação boa, a p esso a conhece a alegria. Se a alegria transborda, tom a-se
êxtase” , diz o terapeuta, que vai lo calizar a sensação de alegria (assirrrcom o
a da tristeza) na barriga: “O envolvim ento da barrig a tanto na tristeza com o
n a aleg ria está refletido em expressões com o “chorei de doer a b arriga” e “ri
de d o er a barrig a”235.
A p esar da diferença de vocabulário e de certas nuances de p ensam ento,
o terap eu ta encontra-se nas im ediações do ensinam ento da A dvaita V edan-
ta de Svâm i Prajnânpad quando assinala que a sensação positiva é o outro

2 3 3 . C f . Ro u m a n o f f , D a n i e l . Sv â m i P r a jn â n p a d - To m e 1: M a n q u e e t P l en i t u d e . La Ta b l e Ro n d e ,
1 9 8 9 , p . 2 9 5 - 3 0 2 . A s r e f e r ê n c i a s a o e n si n a m e n t o d e Sv â m i p r o v é m d e g r a v a ç õ e s e a n o t a ç õ e s
d e d isc íp u l o s. É o c a so d e Ro u m a n o f f , q u e a p r e se n t o u n a So r b o n n e u m a t e se so b r e o g u r u .
2 3 4 . Lo w e n , A l e x a n d e r . A l e g r i a - A e n t r e g a a o co r p o e à v i d a . Su m m u s, 1 9 9 7 , p . 2 0 .
2 3 5 . Ib i d ., p . 5 8 .

207
termo, opositivo, de um a sensação negativa. Igualm ente, p ara o hindu, toda
coisa tem dois aspectos, m otivo pelo qual a realidade, tal e qual aparece, é
dvaita, isto é, dualidade - a não-dualidade, advaita , m anifesta-se com a
anulação da diferença. A m bos, oriental e ocidental, co nvergem certam ente
para o m esm o ponto, quando se trata de m o strar que a advaita n ão pode ser
com preendida intelectualm ente, é algo a ser vivido: saber equivale a ser.
Isto im plica dizer que não se pode recusar a dualidade enquanto ponto
de partida inscrito na realidade: “Todas as atividades estão na dvaita : você
é a dualidade aqui e agora! C om ece p o r essa dualidade, veja essa dualidade,
conheça essa dualidade, realize essa dualidade e deixe-a desaparecer. E isto
é a advaita: não esqueça o segredo e o m istério da ação: esteja aí onde você
está, ultrapasse o que você é, a realização (consum ação) se m anifestará p o r
si m esm a” (Svâm i). U ltrapassar a cadeia de ação e reação significa “liber-
tar-se”, isto é, chegar à positividade do sentim ento.
Svâmi parte, entretanto, de duas “leis da natu reza” para chegar à ale­
gria. A prim eira lei é a da diferença ou não-identidade , segundo a qual tudo
é único, mas sem que haja identidade ou entidade com características fixas.
“Tudo é diferente significa que tudo é outro além de m im ”, diz. D iferença
não quer dizer, porém , separação, um a vez que um a energia subjacente liga
todas as coisas. A diferença está nas form as e na aparência, enquanto que a
unidade está na realidade, no que é. “Tal com o você está aqui e agora, você
é único. V ocê não é nunca o mesmo. V ocê nunca será o m esm o. O que você é
aqui e agora, você nunca o tinha sido antes. V ocê não o será nunca m ais” .
A gora, se consideram os a “diferença no tem p o ”, chegam os à segunda
lei, que é a mudança. O que vem vai, “tudo que vem , vem para ir em bora”,
diz Svâmi. A vida existe, assim, para a m orte, o que dá m argem à renovação
contínua - a vida é um “festival do novo” . E ssa renovação é a fonte de toda
beleza, m as tam bém de toda alegria. E este sentim ento, com o já assinala­
mos, convive com ausência de certezas característica da m udança, com a
ausência de esperanças.
M as frisam os que, na alegria, o “v er” acom panha a “ação positiva” .
Ver, aqui, se entende com o atingir a não-dualidade. Im plica, portanto, dei­
xar de recusar a realidade tal e qual se m ostra; im plica chegar à consciência
da não-separação. N orm alm ente, “você não vê o m undo, m as vê o seu m un­
do”, afirm a Svâmi. Este ponto é ilustrado pela história do p o eta p ersa G ha-
lib, convidado para um banquete na corte do G rão-M oghol. V estido de rou­
pas pobres, ele é m andado em bora pelo guarda do palácio, que não o “vira”
realm ente. V oltando com roupas apropriadas, participa do festim , m as a

208
certo m om ento derram a com ida e b eb id a sobre suas vestes, dizendo: “N ão
é G halib que foi convidado, e sim as roupas de G h alib ” .
V er é, assim , d esbancar o mental (a co n sciência p u ram ente intelectual
das coisas, a esfera racio n alista das rep resentações) que, feito de recusa,
cria sem pre um a “outra co isa” no lugar d a realidade. Svâm i em prega a p a la ­
vra inglesa awareness p ara d ar conta de u m a form a particu lar de ver, m ais
interiorizada, que pode até m esm o p rescin d ir dos olhos (com o quando al­
guém se to m a consciência de algo que está a seu lado ou às suas costas) e
pode ser traduzida com o “ lu cid ez” ou “co n sciên cia lú cida” . E m sânscrito, a
palavra usada por Svâm i é avadhâna, que significa “dirig ir a atenção ou o
espírito para algum a co isa” . A lucidez faz-se aí presen te com o qualidade de
clareza na expressão e de penetração n a com preensão das coisas.
A consciência lúcida não pressupõe atividade m ental, n em co n cen tra­
ção. T rata-se, sim , de um p o tencial de com unhão co m a diversidade de ele ­
m entos de um a situação, no horizonte de um a ação integradora. É o h o ri­
zonte de h arm onia ou integração da diversidade que traz a lucidez, isto é, a
abertura para a m udança e a p o ssibilidade de se unir àquilo que se vê. N ão é,
portanto, o controle técnico de si, nem o controle de u m processo - um a vez
que se trata de absorver afetivam ente o que está aí. É u m p rocesso contínuo,
que prio riza a observação aberta e a ação. “A lucidez não é nada m ais do

• #
que estar livre de tudo o que é exterior, ou m elhor, ser livre significa ser uno
com todas as variedades de coisas exteriores. Ser livre p od ería querer dizer


que não h á coisas exteriores? N ão. A s coisas exteriores estão aí, m as você

#
não se sente separado d elas” , diz Svâm i.
E stão aí expostos alguns dos traços de um pensam ento associado à ale­

#
gria. A lucidez que o oriental a ela associa p o d ería ser cham ada de “ loucu­
#
ra” pelo ocidental, inclusive pelo sujeito do senso com um , para quem se
#
pode “e sta r louco de a le g ria ” . T am b ém p a ra to d o s os efeito s d a id e n tifi­
#

cação ocidental, Svâm i Prajnânpad é u m guru, um m estre espiritual, m as é


preciso excluir daí a religiosidade tal com o costum a ser entendida. E que,
#

para ele, “crer em D eus, freqüentar os tem plos não traz nen h u m a espiritua­
#

lidade” . E spiritualidade não é nada que se o btenha no cam inho beato da es­
#

p erança de um a outra vida ou no reino dos céus, e sim no trabalho penoso


da lucidez, que im plica desesperança e aceitação da vida. E spiritualidade,
#

em seus próprios term os, é apenas “u m outro nom e p ara in dependência” .


#

Tal e qual u m m estre grego do estoicism o, o sábio hindu insiste no sentido


#

da diferença e da m udança, n a unidade dos contrários e na b eleza da ren o ­


vação em que im plica a vida real.
#
#

209
#
e
S e n tim e n to e p o tê n c ia

É fato b e m sab id o qu e a o rie n ta liz a ç ã o do c o rp o e as té c n ic a s d a ioga


fo ram a ssim ila d a s, g u a rd a d a s alg u m a s d ife re n ç a s, p e la s p rá tic a s o c id e n ­
tais d e re c o n c ilia ç ã o co m a m a te ria lid a d e c o rp o ra l, p o ste rio re s aos m o v i­
m e n to s c o n tr a c u ltu ra is d o s a n o s se te n ta . A in d a a s s im , a a titu d e s u g e r i­
d a p o r S v â m i P ra jn â n p a d e stá m u ito d ista n te do c o tid ia n o v iv id o p e lo h o ­
m e m d as g ran d es c id a d e s o c id e n ta is, em m eio às p re ssõ e s in d iv id u a lista s
d a in d ú s tria e d o c o n su m o , e v e n tu a lm e n te m itig a d a s p o r u m a r e lig io s i­
d a d e d e b a se sa c e rd o ta l e c o n sta n te m e n te in v o c a d a s p e lo s d isp o sitiv o s do
e sp etácu lo m idiático, sem pre tendente a o ferecer-se com o co m pensação diá­
ria p a ra a a n g ú stia d a ex istê n c ia .
N ã o é, en tretan to , u m a atitu d e d istan te de certas co n fig u raçõ es sim b ó li­
cas que c ele b ram a Arkhé, isto é, a ritu alização d a o rig em e do d estino, d en ­
tro do p ró p rio espaço g eo g ráfico em q ue a so cied ad e m o d ern a p ro cu ra im ­
p le m e n ta r a todo cu sto a lei estru tu ral de o rg an ização do m u n d o p elo v alo r
eco n ô m ico , que é o capital. O sim b o lism o d a litu rg ia e dos m ito s p erm an e­
ce, em m eio ao im pério do racionalism o em pirista, com o u m a p o rta de aces­
so a im ag en s p rim ais e a anseio s de tran scen d ên cia.
C laro ex em p lo d esse tipo de co n fig u ração sim b ó lica é oferecid o p elos
cu lto s afro -b rasileiro s, que atestam e co n tin u am en te co n firm a m a p resen ça
n a h istó ria n acio n al de u m co m p lex o p ara d ig m a civ ilizató rio , diferen cial-
m en te d istan te do p a ra d ig m a e u ro p eu , c e n tra d o n o s p o d e re s d a o rg a n iz a ­
ção c a p ita lista e d a racio n alid ad e sígnica. N a co sm o v isão d esses cultos, de
m o d o an álo g o à atitu d e h in d u , co lo cam -se em p rim eiro p lan o o reco n h eci­
m en to do aqui e ag o ra d a ex istên cia, as relaçõ es in terp esso ais con cretas, a
ex p eriên cia sim b ó lica do m u n d o , o p o d e r afetivo das p alav ras e ações, a p o ­
tên cia de realização das coisas e a aleg ria fren te ao real.
Inexiste, com o b em se sabe, u m hom ogêneo paradigm a africano: há quem
fale de quarenta e cinco e, m esm o, cinqüenta “Á fricas” diferentes. Entretanto
a diversidade das realidades socioeconôm icas e das tradições culturais con­
verge p ara p ontos paradigm áticos com uns, um dos quais é a atitude m ística,
ch am ada de “anim ism o” pelo racionalism o teológico do O cidente, m as que
de fato se trata d a experiência do sagrado em sua radicalidade.
D ecorre daí a grande im portância outorgada ao corpo. E este não se en­
tende com o um receptáculo passivo de forças da alm a, da consciência ou da
linguagem , a exem plo da frase de um teólogo: “C orpo é a c am e possuída pe­
las palavras que nele habitam ” . N ão, o fato de ser o corpo um lugar de inscri­
ções da representação não faz dele objeto inerte de um a posse por palavras.
N ós não “tem o s” sim plesm ente u m corpo, já que “som os” igualm ente um
corpo: a tentativa de conscientização coletiva dessa realidade orientou gran ­
de p arte das ditas “contraculturas” dos anos setenta, teorizadas p o r gente
com o N o rm an O. B row n, B erger e L uckm ann e outros. E tudo isto acabou
sendo interpretado pelos estrategistas de m ercado em função do consum o,
que “ libera” o corpo p ara tom á-lo disponível a ofertas pré-program adas.
M as p a ra além do corpo inerte ou do corpo em m o v im en to , racio n aliza­
dos p e la cu ltu ra do consum o, h á nas cu ltu ras trad icio n ais o “ si m esm o ” c o r­
p oral, que con siste n a sua p o tên cia afetiv a de ação, n a d im ensão tácita , e
n ão -síg n ica , de seu fu n cio n am en to . N a Arkhé african a, o corpo se c o n c e ­
b e c o m o u m m icro co sm o do esp aço am p lo (o cosm o, a região, a aldeia, a
casa), igu alm en te feito de m inerais, líquidos, veg etais e pro teín as, para cuja
fo rm ação e preserv ação acorrem elem en to s do p resen te cósm ico e da an-
cestralid ad e. P ara além d a cam e , o corpo e suas rep resen taçõ es (portanto, a
co rp o reid ad e) p o d em ser co n cebidos com o u m territó rio onde se entrecru-
zam elem en to s físicos e m ítico s e se erig em fronteiras e defesas.
N o in terio r d a diásp o ra escrav a (bantos, iorubas ou n agôs) nas A m éri­
cas, a p resen ça do p arad ig m a africano é atestado pelo p o sicionam ento do
corpo no prim eiro p lano das cosm o v isõ es negras. O s nagôs, p o r exem plo,
v in cu lam o corpo ao sagrado, que é p erceb id o p o r u m a ex p eriência de ap re­
ensão das raízes da ex istência e da sua co n tínua ren o vação (a Arkhé, p o rtan ­
to, que, sendo origem sem pre refeita p elo s ritos, é ren ascim en to e fonte de
ações no v as), até o po nto em que o vivido não é m ais do que u m conjunto de
virtu alid ad es. E m outras palavras, o que se vive está de algum a m aneira
inscrito nas espirais dos ciclos de destino em que se m ovem , com plem en-
tarm en te, h o m ens e deuses, os orixás.
C om p lem en tarid ad e pressu p õ e, entretanto, d iv ersid ad e de princípios e
de m undos. P ara os nagôs, o u n iverso d ivide-se em dois grandes planos: o
m u n d o te rre n o (o aiê), o n d e v iv e a h u m a n id a d e ; o m u n d o u ltra -h u m a n o
(o orun ), habitado p elas entidades sobrenaturais, os orixás , os ancestrais,
to dos os seres de espírito. U m m ito de o rigem fala de u m tem po em que não
h av ia a separação entre os dois m undos, o que p erm itia a p assagem livre de
u m p lan o p ara o outro, até o dia em que u m a d ivindade lança o seu cajado
ritual p ara assin alar a divisão dos espaços.
P o r que dividir os espaços? C ertam ente para reforçar a consciência h u ­
m ana de seus próprios lim ites, especialm ente do grande lim ite, que é a morte.
C o m p a ra d a ao h o m e m , a d iv in d a d e é u m a a lte rid a d e - is e n ta de fin itu -
d e, m a is potente, perfeita. Para o paradigm a africano (m as igualm ente para a
p rática religiosa dom inante n a G récia A ntiga, ao lado dos m uitos cultos dos

211
mistérios), os deuses não constituem um a diversidade abscondita e absoluta, a
exem plo do D eus cristão, já que in terag em ritu alisticam en te com os hom ens.
N o plano com parativo, entretanto, são de fato u m a v erd ad eira alteridade.
N essa configuração sim bólica, u m a co isa é o sagrado, o u tra a re lig iã o 236.
O sagrado im p lica o p rin cíp io de u m a re a lid a d e “ se p a ra d a ” ( sacer , em la­
tim ) que perm ite u m co n tato im ed iato co m a d iv in d ad e. Já a relig ião , q u e é
adm inistração e m o n o p ó lio in telectu alizad o d a fé m o n o teísta, v is a a su p e­
rar os transes em otivos e “v io le n to s” (no sen tid o das ex p e riê n c ia s d e sa c ri­
fício e de m o bilização de forças có sm icas) do sag rad o . A e x p e riê n c ia sacra
é m ais corporal do que in telectu al, m ais so m ática do qu e p ro p ria m e n te p s í­
quica, quando se en tende p siq u ism o co m o u m reg istro de in terio rid a d e não
ritualístico.
N a Arkhé , o corpo defin e-se ritu alisticam en te, reso lv e n d o a d ic o to m ia
entre sin g u lar e plu ral, in teg ran d o -se ao sim b o lism o c o letiv o n a fo rm a de
gestos, p o stu ras, d ireções do olhar, m as ta m b é m de sig n o s e in flex õ es m i-
crocorporais, que ap o n tam p a ra o u tras fo rm as p ercep tiv as. O ritu al é o lu ­
gar p róprio à p len a ex p ressão e ex p an são do co rp o . D ife re n te m e n te d a te o ­
logia cristã ou da m ed itação orien tal, ele não ra c io n a liz a os seus co n teú d o s,
m as constitui, em ú ltim a an álise, o m o d o de ser refle x iv o d a co m u n id ad e. O
ritual é u m a fo rm a so m ática de p ensar.
N a ord em d a Arkhé, o desejo afirm a -se p rim o rd ia lm e n te co m o p o tê n c ia
(ao invés da falta) de d esfru te, g o zo e realização . A p o tê n c ia to m a p o ssív e l
a ativ id ad e e a exp an são co rp o rais. E m física, e n e rg ia é v e lo c id a d e ao q u a ­
drado, ao passo que potência é en ergia p o r u n id ad e de tem po. O u seja, qu an to
m aio r a en erg ia que se utiliza n u m a m e n o r u n id ad e de tem p o , m a io r a p o ­
tê n c ia . E sta é a id é ia c o n tid a n a p a la v r a n a g ô a x é , q u e d á c o n ta d e fo rç a
e ação , qualidade e estado do corpo e seus p o d eres de realização .
Axé (noção an im ista ou fetich ista n a v isão d a an tro p o lo g ia o cid en tal,
influenciada pela in terpretação red u cio n ista d ad a p o r M alin o w sk i ao mana
dos m elanésios) é na verd ad e u m p o ten cial de realização , p o rtan to u m a m a ­
nifestação de força ou V ontade, ap o iado no corpo. E m o u tro s term o s, é um
princípio b io ssim bólico de m o v im en tação e n erg ética dos seres (d iv in d a ­
des, hom ens e ancestrais) atin en te à fo rça c o n tid a em su b stân cias do rein o
m ineral, vegetal e anim al. G uard ad as as dev id as d iferen ças c u ltu rais, c o r­
responde ao que E spinosa cham a na Ética de conatus , o esfo rço o u m o v i­

2 3 6 . C f . So d r é , M u n i z . C l a r o s e e sc u r o s - Id e n t i d a d e , p o v o e m íd i a n o B r a si l . V o z e s, 1 9 9 9 [ 2 a
e d ., 2 0 0 2 ] .

212
m en to afetiv o em fav o r de tu d o q u e a u m en te ou facilite a p o tê n c ia de ag ir
do corpo. E x p erien ciad o co m o u m c o n te ú d o real, a c u m u lá v e l e tra n sm issí­
v el p e la m e d ia ç ã o c o rp o ra l, o axé fa z fu n c io n a re m o s c ó d ig o s c o m u n itá ­
rio s, p re sid in d o às tran sfo rm açõ es e p a ssa g e n s de u m a situ ação a outra. P o r
isto, é o co n teú d o m ais v alio so g u ard ad o (n a realid ad e, su as re p resen taçõ es
são fisicam en te “p la n ta d a s” no c h ão ) n as c o m u n id a d e s litú rg icas ( egbé , em
n ag ô ) d itas “terreiro s” .
N o in terio r d essa co n fig u ração sim b ó lic a qu e d e sig n a m o s co m o Arkhé,
o in d iv íd u o h u m an o é p erm eáv el ao m u n d o h istó rico e co sm o m ítico, e x i­
bindo ritualisticam ente esta sua singularidade. A divisão estrutural entre co n s­
cien te e in co n scien te que, n a m o d e rn id a d e o cid en tal, d efin e o p siq u ism o do
sujeito, não é o m esm o que essa ab ertu ra o rig in ária p ara o utros m undos p o s­
síveis ou im ag in áv eis, p a ra a m o d u lação d e u m a situ ação e x isten cial a o u ­
tra, o u seja, d a ex istên cia p ro p ria m e n te h u m a n a p a ra a e x p e riê n c ia de c o n ­
tato co m a d iv in d ad e ou co m o an cestral. T al é o sig n ificad o do tran se m ísti­
co: p rin cíp io s co sm o ló g ico s e an cestrais, o rig em e m o rte ree n c o n tra m -se
sim b o licam en te n a ex p eriên cia de deslo cam en to ritu alístico dos corpos n u m
espaço. N a d a é in co n scien te, p o rq u e n a d a se recalca, tu d o se v isib iliz a n a
d ram aticid ad e do ritual.
Seria ta lv e z p o ssív e l d e sc re v e r o p ro c e s so d in â m ic o do axé , em te r ­
m o s p sic a n a lític o s, co m o u m a m u ltip lic id a d e p u lsio n al. M as co m a p alav ra
“p u lsão ” F reu d p reten d e referir-se a u m a “a rran cad a” ou u m a p ressão so-
m ático -sim b ó lica, n u m corpo in d iv id u alizad o , e no sen tid o de u m o bjeto,
onde se co m p leta a sua fin alid ad e. Axé, entretan to , é ao m esm o tem p o in d i­
v id u al e co letiv o - h á o axé do s d eu ses, d o s in d iv íd u o s v iv o s e dos a n c e s­
trais - , u m m ú ltip lo de impulsos biossim bólicos no q u a d ro d e u m a p o tê n ­
cia de realização e de co m u n icação d a co m u n id ad e, atrav essad o p o r u m
sin cretism o de afetos e p ráticas de elab o ração e ab so rção , im p rescin d ív eis
ao c o n h ecim en to iniciático. P o r m eio dele, h o m e m e co isa, ser v iv o e m a té ­
ria interp en etram -se real e m etafo ricam en te, ren o v an d o a p o tê n c ia de e x ­
p an são do grupo, o que im p lica p a ra cad a u m e p a ra to d o s ex istên cia p len a
(in teg rid ad e corporal, saúde, realizaçõ es, etc.) e d e v ir g ru p ai assegurado.
A autoridade, isto é, o d iferen cial de ex p eriên cia é tica ou sab ed o ria (v a ­
lores, co n h ecim en to s prático s e m ítico s, etc.) dos m ais v elh o s n a co m u n i­
dade litúrgica, é essencial à tran sm issão d essa p o tên cia ren o v ad o ra. “R ece-
b e-se o axé das m ãos e do h álito dos m ais antigos, de p e sso a a p esso a, n u m a
relação in terpessoal d in âm ica e viva. R eceb e-se atrav és do co rpo e em to ­
dos os níveis da personalidade, atingindo os planos m ais profundos pelo san ­
gue, os frutos, as ervas, as o feren d as ritu ais e p elas p alav ras p ro n u n c ia ­
d as”237. N essa tran sm issão , a d im en são racio n al e sem ân tica d a lin g u ag em
é p o sta em segundo p lano p ela d in âm ica afetiva, m ítica e s im b ó lica do axé .
D essa d in âm ica é p arte n ecessária a m úsica. A p o tên cia do axé afina-se
co m a sua energ ia p o lissêm ica, cujos elem en to s b ásico s (m elo d ia, h a rm o ­
nia, ritm o, tim bre, tessitura, etc.) p ro d u zem m atizes e m atrizes de som , con-
tem p láv eis p ela im aginação e passív eis de abso rção p elo corpo. A s im a ­
gens sonoras são tanto au ditivas qu an to táteis. N u m a d in âm ica reg id a p elo
axé , com o é o caso da litu rg ia affo, a m ú sica o rien ta-se p elas m o d alid ad es
d a ex ecu ção rítm ica, do canto e da dança, em que a tatilid ad e é fu n d am en ­
tal. Se o rito é a expressão corporal e afetiv a do m ito, o ritm o é u m rito su s­
cetív el de realim en tar a p o tên cia existen cial do grupo.
Rhytmos parece derivar, em grego (esta etim ologia é m atéria controverti­
da), de rheim , que significa fluir, escorrer. É um a m odalidade do m ovim ento
(“ordem do m ovim ento” , define Platão em Leis, II, 665a) investida pelo fluxo
tem poral, portanto u m esquem a cíclico de transform ação e reprodução das
coisas. T rata-se, com o diz B enveniste, da “ form a no instante em que é assu­
m ida pelo m ovente, m óbil, fluida, a form a do que não tem consistência orgâ­
nica. [...] É a form a im provisada, m om entânea, m o d ificável”238. M as sem ­
pre, é preciso frisar, a periodicidade de u m m ovim ento de passagem de um a
coisa a outra, o que de fato lhe outorga a condição de h arm onizadora dos con­
trários. Instaurando u m a tem poralidade ordenada, m as d iversa da cronológi­
ca, o ritm o cria um espaço próprio e suscita um im aginário específico. Isto
quer dizer que não se trata apenas de u m artifício técnico no contexto da m u­
sicalidade, m as de um a configuração sim bólica que, conjugada à dança,
constitui ela própria um contexto, um a espécie de “lugar” , ou de cenário si-
nestésico e sinergético, onde ritualisticam ente algo acontece239.
O que acontece, p o r exem plo, n a d ança em sua o rig in aried ad e? P rim ei­
ram ente, a reatualização dos saberes do culto sim u ltân ea à inscrição do co r­
po do indivíduo n um território, p ara que se lhe realim en te a força cósm ica,
isto é, o p o d er de pertencim ento a u m a to talidade integ rad a. A lém disso,
graças à intensificação dos m ovim entos do d an çarino n a festa - todo um
com plexo que abrange ação, voz, gestos, cânticos e afeto s - , espaço e tem ­

2 3 7 . Sa n t o s, Ju a n a Elb e i n d o s. O s n à g ô e a m o r t e. V o z e s, 1 9 7 6 , p . 4 6 .
2 3 8 . Be n v e n i st e , Em i l e . La n o t io n d e r h y t m e d a n s so n e x p r e ssio n l i n g u i st i q u e . In : p r o b l è m e s d e
l i n g u i st i q u e g é n e r a l e . PU F, p . 3 3 7 .
2 3 9 . Pa r a m e lh o r d esen v o lv im en t o d est e t ó p ico , v id e o n o sso O t er r ei r o e a ci d a d e (Im ag o ), assim
co m o St o k e s, M ar t in . Et h n icit y , id en t it y a n d m u si c: Th e m u si ca l co n st r u ct i o n o f p i a c e . Be r g ., 1 9 9 4 .

214
po to m am -se um ún ico v a lo r (o d a sacralização) e, assim , se autonom izam ,
p assan d o a in d ep en d er daq u ele que ocupa individualm ente o espaço. P ro ­
p riam en te u m a in tegração rítm ica do m o vim ento ao espaço e ao tem po, a
d an ça cria ou “ in v en ta” as ações a p artir do fluxo tem poral do im aginário
co letiv o e, deste m odo, p ro d u z u m agir autônom o frente às técnicas p a rti­
cu lares de cad a ação (caça, com bate, am or, etc.).
N a com u n id ad e litúrgica, o ritm o é de fato u m a verd ad eira “tecn o lo g ia”
de agreg ação hum ana. P o r m eio da dan ça e da festa, ele reelab o ra sim b o li­
cam en te o espaço, n a m ed id a em que m o difica, ainda que m o m en tan ea­
m en te, as hierarq u ias territo riais, estim ulando o p o d er expressivo do corpo
até o po n to de p rodução de im agens pró p rias de liberação e auto-realização.
N a G récia A ntiga, no O riente e n a Á frica, as cerim ônias rítm icas sem pre se
co lo ca ram no centro dos ritos m ítico-religiosos, m as tam bém das com em o­
raçõ es cívicas e dos jo g o s de guerra. Sabe-se o quanto o ritm o eletrizava as
falanges g u erreiras na v elh a Á frica. Seja com o m anifestação prim ai de um a
fo rça ou de u m a V ontade, h á u m inequívoco agir político nessa etem a re-
con fig u ração do Ser pelo ritm o.
N a co sm o v isão afro, é o espaço litúrgico que cria os saberes da festa,
isto é, os cânticos, os to q u es p ercussivos, os gestos e os passos coreográfi-
cos de base. D essa organização rítm ica e g estual origina-se um a m atriz cor­
p oral, que se d esterritorializa e viaja, acionada pela alegria. E fetivam ente, a
co m unhão e o jú b ilo coletivos fazem parte da n atureza profunda do culto às
d ivindades. D urkheim : “É o culto que suscita essas im pressões de alegria,
de p az interior, de serenidade, de entusiasm o que são, para o fiel, com o a
p ro v a experim ental de suas crenças. O culto não é sim plesm ente um siste­
m a de signos pelos quais a fé se traduz de fora; é a coleção dos m eios pelos
q uais ela se cria e recria perio d icam en te”240.

U m câ n tic o ex em p lar

É outro o contexto a que se refere o sociólogo, mas a observação vale


igualm ente para o ethos mítico e afetivo dos cultos affo-brasileiros, onde os ri­
tos de renovação do axé, portanto da dinâm ica de continuidade da existência,
estão estreitamente associados à experiência da alegria. Isto fica explícito na
prática ritual, m as tam bém em aforism os e cânticos, a exemplo de alguns da­
queles que celebram o poder fem inino nas comunidades de culto (“terreiros”).

2 4 0 . D u r k h e i m , Ém i l e . Les f o r m e s e l e m e n t a i r e s d e Ia v i e r e l i g i e u se . PU F, p . 5 9 6 .

215
C ultuadas e invocadas com o an cestrais, as “g ran d es m ã e s” ( Iya ) re ­
presentam personalidades fem ininas de linhagens e c o m unidades liturgica-
mente im portantes, razão p o r que são fortes transm issoras de valores co m u ­
nitários e do axé im prescindível à co n tinuidade da ex istên cia física. São d i­
tas Ialaxé , zeladoras da p otência m ítica, do p o d er de realização. N o culto,
elas se m odulam m iticam ente em divindades genitoras associadas a ele­
mentos da natureza (água, lam a, etc.) e sim bolizadas p o r p ássaro e p eix e -
penas e escam as aludem sim bolicam ente a p ed aços do corpo m aterno, ao
poder de gestação.
Por isso, com o relata Juana E lbein, “u m longo po em a, com posto de
um a série de cantigas, celebra nas com unidades a p rim eira Ialaxé do m ais
antigo terreiro da B ahia, M arcelina da Silva, Oba-Tosi, sacerd o tisa de X an ­
gô, filha da legendária Ialuso Odanadana, da trad icio n al linhagem d o s^ x z-
pá, cujo “oriki” Axipá Borogum Elese Kan Gongo é invocado d epois de
cinco gerações p o r seus descendentes e p o r todos os in tegrantes dos egbé
tradicionais. E ssa hom enagem se estende a to das as Iya fu n dadoras e tran s­
m issoras da Arkhé nagô. O canto expande seu axé , os vín cu lo s se ren o v am e
renascem ”241.
Oriki é um cântico de celebração, m as tam b ém u m a “ja n e la ” de m em ó ­
ria que se abre sobre o passado coletivo. A qui nos in teressa particu larm en te
o seu início: “lyá o bogunde (a guerra trouxe a M ãe), / Omo Afonja o bo-
gunde (filha de X angô, que chegou com a guerra). I E m a be ru já (m as não
tem a a batalha), / Iya asa o (Pois a M ãe p erd eu o m edo). / Eni ma be òrisà
(Roguemos aos orixás), l Aiye b ’ode (P ara que a alegria se ex p anda no m u n ­
do). É tam bém particularm ente relevante u m outro trecho: “Awa de tere
tere (Chegam os e estam os aqui com divertim ento) / Awa de t fayo (E stam os
aqui com m uita alegria)”242.
Como se perceb e, o cân tico co m eça falan d o d a v ic issitu d e d a d iásp o -
ra escrava, em razão das guerras entre os reinos africanos, e a conseqüente
chegada à Bahia. M as ao invés de um discurso lam entoso, de vitim ização ou
mesmo de recalcamento de tudo o que aconteceu, a liturgia negra reconhece
a realidade da mudança, de m odo análogo à prajnâna (sabedoria) h indu que
diz: “tudo é samsâra , tudo m uda” . O antigo príncipe, o antigo guerreiro, o an-

2 4 1 . San t o s, Ju a n a Elb e in d o s. Text o m i m e o g r a f a d o , s.d .


2 4 2 . A t r ad u ção é d e Ju a n a Elb e in d o s Sa n t o s, q u e a d v e r t e t r a t a r - se d e u m a a p r o x i m a ç ã o :
" D est it u íd o s d e su a s n u an c e s m e l ó d i c a s, d a v a r i e d a d e e su p e r p o si ç õ e s r ít m i c a s e , a i n d a m a is,
d esse alg o e sse n cial q u e a e sc r it a r e t i r a , o s v e r so s r e f le t e m p o l id a m e n t e a e m o ç ã o e a c o n v i c ­
ção co m q u e são e v o ca d o s" .

21 6

HJ
tigo sacerdote, o antigo artesão e o antigo agricu lto r to m aram -se escravos em
terra alheia. É im perativo aceitar o real d essa transform ação.
S eria essa u m a c o n sciên cia re sig n a d a ? N ão , m u ito p elo co n trário , é a
c o n sciên cia de q u em vê tu d o o q ue lhe aco n te ce, o u seja, o flu x o de um a
m u d an ça qu e co m p o rta u n ião e sep aração , n ascim en to e m o rte, so rte e azar,
satisfação e in satisfação. N ão se trata de a ssu m ir tristem en te o seu d estino,
já q u e a lu ta ou a g u erra p o d e m fa z e r p arte do p ro cesso , e sim de afirm a r
que, u m a vez perd id o o co n tro le do cu rso dos a c o n te cim en to s ex terio res
(“A g u e rr a tro u x e a M ã e ), é p re c is o p e r d e r o m e d o (“ P o is a M ã e p e rd e u
o m e d o ...” ) p ara se te r o “ c o n tro le” in terio r, isto é, a ab ertu ra lú cid a p ara o
nov o , que não ex clu i ab so lu tam en te a p o ssib ilid a d e de n o v a luta (“N ão
te m a a b ata lh a ”). A a firm a ção é ao m esm o tem p o u m sen tim en to , u m a se n ­
sib ilid ad e lúcida, o que im p lica u m afeto lig ad o a u m a ação p o sitiv a, não
em o cio n alm en te reativa.
E n to a-se afirm a tiv am en te u m sen tim en to . É o que tam b ém sig n ifica,
além de falar e arrazo ar, o greg o logos : “ e n to aç ão ” , “can ção ” . N a v o z e no
can to , p ro clam av a Santo A g o stin h o , en co n tram -se “ to d o s os afeto s de m i­
n h a alm a” . O cântico é, assim , u m a c ele b ração e u m co n v ite a que se faça a
ex p eriên cia v ital das coisas, isto a que a trad ição h in d u ch am a de bhoga , ou
seja, a ex p eriên cia co m p leta e g o zo sa do real, p o rq u e d em an d a ao m esm o
tem p o corpo e espírito. D iferen tem en te d a calm a aleg ria hin d u , que é m ais
p ró x im a d a tran q ü ila felicid ad e dos sábios o rientais, a african a é e x u b eran ­
te, sem p re ten d en te a fazer, ag ir e e x ib ir p o r m eio de ap arên cias fortes a
ex istên cia de u m seg redo iniciático.
E m q u alq u er dos dois casos, p o rém , a co m p letu d e e o gozo fazem parte
de u m a “reg ên cia” ou de u m a “m an eira” - do alem ão M anier , que significa
form a ou estilo, m as tam b ém um relacio n am en to que extrai a sua força de si
m esm o , e n ão de u m a cau sa ex terior, ap resen tan d o -se em K an t com um o u ­
tro no m e p ara o m odo e stético de ap reen são do m undo. E ssa maneira , a cei­
tando o real tal e qual se ap resenta aos sentidos, p ro m o v e o acordo h arm ô n i­
co dos afetos, isto é, a alegria , a alacridade.
N ão se trata, p o r conseguinte, de em oções, nem de sensações esp ecífi­
cas, m as de um a regência, ou um a subo rd in ação de sen tim entos a um a m a­
neira, resultante de um inter-relacio n am en to d in âm ico (g arantido pelo axé)
em que a linguagem é in d issociavelm ente sem ântica, afetiva e cósm ica. O u
seja, cada palavra, cada som e cada gesto carregam não apenas as co n v en ­
ções sígnicas de toda língua, m as tam bém a ex p eriên cia h istórica e a Arkhé
do grupo. A legria não é então o m ero registro incidental ou ep isó d ico de um
estado de ânim o, m as a acmé (em grego, ponta de um sistem a ou ponto cul-

21 7
m in a n te d e u m p ro c e sso ) d a afetiv id ad e litú rg ic o -c o m u n itá ria , u m re g im e
au to -en g en d rad o , à m a n e ira d a p ró p ria v id a q u e, irre d u tív e l a q u a lq u e r ex-
terio rid a d e , se au to -ex p lica.

R e g im e se m c a u sa

S o b re o sen tim en to q ue h o je se d esig n a co m o “ a m o r” (m as qu e b e m p o ­


d e ría se r alg o co m o “ ale g ria ”), d iz H e ráclito s e r “he auton aukson”, o u seja,
p ro m o to r de si m esm o , sem causa. O a fo rism o h era c lite a n o tra d u z iu -se em
latim , ta m b ém re fe rid o a esse afeto , c o m o am or se ipse augens , p a ra in d ic a r
a d in â m ic a de algo que se ex p an d e a p a rtir de seu p ró p rio m o v im en to , fo ra
de u m a relação de cau salid ad e ex p lícita. A o m o v erm o s u m o b jeto q u a lq u e r
n u m esp aço d eterm in ad o , a fo rça qu e im p rim im o s in icialm en te é a c au sa do
d eslo cam en to ; m as o esp aço on d e isto o co rre não tem cau sa, é he auton
aukson , u m a co n d içã o de p o ssib ilid ad e de m o v im en to .
P o d e-se ch a m a r isso de “ a m o r-ação ” , a ex p e riê n c ia d a u n id a d e de que
falam os tex to s sag rad o s d a ín d ia e que está sem p re p resen te no reg im e da
alegria. O u então ap ro x im á-lo do am o r que p arece c o n fig u rar-se n a n o ssa
m o d e rn id a d e ta rd ia co m o u m c a m in h o de re to m o p a ra a e x p e riê n c ia re li­
g io sa d e n atu reza cristã, em q u e o D eu s v e rticalm en te tran scen d en te e o n i­
p o ten te do V elh o T estam en to cede lu g ar ao agapismo crístico ou p au lin o ,
isto é, ao am o r u n iv ersal e h u m an o com o v e to r d a crença.
M as n ão se p o d e d eix ar de o b serv ar que, p a ra ser u n iv ersal, o am o r cris­
tão tem de ser ab strato frente a u m ob jeto am ad o em particu lar, co m o se vê
n a in terp retação feita p o r H an n a A ren d t d a c o n cep ção de Santo A g o stin h o ,
p a ra q u em o p ró x im o que se deve am ar não é u m a d eterm in ad a pesso a, m as
alg u ém po sto em relação co m D eus. A rendt: “ O cristão p o d e am ar a todas
as p esso as p o rq u e cad a u m a d elas é so m ente u m m o tiv o , [...] o in im ig o e até
o p ecad o r [...] m ero s m o tiv o s p ara o am or. N ão é realm en te o p ró x im o q ue é
am ado em seu am o r ao p ró x im o - é o p ró p rio am o r”243.
A aleg ria n ão se con fu n d e com esse am or, p o rq u e é um reg im e concreto
de sentim entos. N o entanto, com o o he auton aukson heraclitean o , ela é au-
top o ten ciad o ra, coin cid in d o co m a pró p ria realização do real, q u er dizer,
co m o fluxo tran sfo rm ad o r das coisas no espaço-tem po. N ão é u m a “ ex p e­
riên cia” , no sentido trad icional de u m contato esp o n tân eo co m a su rpresa

2 4 3 . C f . Se n n e t t , Ric h a r d . Re sp ei t o — A f o r m a çã o d o c a r á t e r em u m m u n d o d e si g u a l . Re c o r d ,
2 0 0 4 , p. 1 6 3 .

21 8
ou o inesperado (esta m esm a experiência que, como assinalou W alter Ben-
jam in, falta à modernidade), mas é certam ente o que a possibilita, qualquer
que seja o seu nível - na tragédia, no ritual, na narrativa, etc. - por ser um
evento da “espontaneidade” que, num nível primai, é análoga à liberdade
política. Por isto, não existe propriam ente o sujeito da alegria. Há, sim, o
sujeito da em oção, o objeto da sensação, até m esm o o sujeito de um senti­
m ento, m as alegria é regência, algo que possibilita experiências e sujeitos.
É a alegria, singular e concreta (e não um abstrato am or universal) que
norteia a prática litúrgica da Arkhé negra. A legria é algo paradoxalm ente
sério - pode m odular-se em sensualidade e contenção - por ser a condição
de possibilidade da com unicação, do proferim ento da palavra. E esta não se
descola jam ais da ação, ou seja, o indivíduo não é conduzido por abstra­
ções, m as por signos ou palavras que induzem à ação. E im prescindível o
concurso do poder-fazer, da potência de realização em que consiste o axé.
A alegria não resulta de m oções internas passivas, do arrebatam ento cego
do desejo, e sim do que se faz lucidam ente para corresponder a um desejo.
U m a vez convicto de ter agido ao encontro de um desejo sem o ressenti­
m ento da incom pletude ou da falta, o indivíduo sente-se pleno e uno com o
objeto ou com o real, liberando-se m om entaneam ente de qualquer álibi in­
telectual e assim vivenciando a alacridade.
N a concretude da liturgia, a palavra é sem pre som , isto é, um a presença
física singular, que se expressa na intenção do O utro, para desaparecer logo
em seguida e renascer, renovada, na repetição em que im plica o ritual. A
potência de m ovim entação e transform ação característica do axé aciona a
palavra-som e em erge grupalm ente com o alegria, onde a m úsica está virtu­
alm ente im plicada (m esm o quando não se faça m aterialm ente presente),
por partilhar com o ritual a característica de um a direta intensidade sensível
na celebração do real.
A m úsica, assim , pode apresentar-se como real ou com o virtual, nos
term os de Ledrut: “Por m úsica virtual é preciso entender todas as prim ícias
físicas, corporais, de um canto. Ora, descendo para dentro de nós mesm os,
são os grandes movim entos cósm icos que nós encontram os e que nós espo­
sam os”244. A m úsica perm ite-nos descortinar, pela pura sensibilidade, um
cósm ico e um biológico que carregam os em cam adas profundas, inapreen-
síveis pela racionalidade instrum ental. A sua visceral afinidade com a ale-

2 4 4 . Le d r u t , Ray m o n d . La r év o l u t i o n c a ch é e . C a st e r m a n , 1 9 7 9 , p . 6 4 .

219
gria está precisam ente nessa partilha do sensível e da condição de u m a re a ­
lização que se auto-engendra.
É verdade que a m úsica é expressiva, m as não representativa, isto é,
não duplica, nem copia ou im ita um a referência q u alq u er situada n a realid a­
de im ediata, ainda que se dê com o “pro g ram ática” e ten h a suas linhas m eló ­
dicas sem antizadas verbalm ente pelos com positores. P or isso, tende ao ab-
solutismo. Ela “é, assim , criação de real em estado selvagem , sem co m en tá­
rio nem réplica; e o único objeto de arte a ap resen tar u m real com o tal. Isto
p o r um a razão m uito sim ples: a m úsica não im ita, esg o ta a sua realidade só
em sua produção, tal com o o ens realissimum - realidade suprem a - pelo
qual os m etafísicos caracterizam a essência, p o r ser m odelo po ssív el para
toda coisa, m as não ser ela m esm a m o delada p o r n ad a”245.
Entretanto, nessa potência de autom odelagem , a m úsica faz-se de al­
gum m odo mimese - não na acepção platô n ica de “có p ia” , e sim no e n ten d i­
m ento aristotélico de “jo g o ” - da alegria. A m elo d ia p o d e certam ente co m ­
portar afecções de tristeza ou de desalento, m as é a tem p oralidade rítm ica
em sua fluidez instantânea, assim com o o aqui e agora da palav ra cantada,
que se com unica aos corpos, liberando-os das referên cias que os encadeiam
à gravidade da terra ( acer , ager) e p ro piciando-lhes a asa {ala) da flutuação,
da leveza. Alacer , alegre (um a regência lúcida, ja m a is u m descontrole em o ­
tivo), é a realidade dessa experiência m usical. N este jo g o , mais do que uma
“aprovação irrestrita do real ” (a p alav ra aprovação ainda guarda traços de
um exam e intelectual ou de um ju ízo ), a alegria aparece como uma afina­
ção perfeita com o mundo. O contrário dela não é exatam ente a tristeza 246
(ressalvando-se, entretanto, que a p redom inância da tristeza im plica um a
dim inuição da potência de agir), nem o choro (pode-se chorar de alegria),
m as o ressentim ento ou o rancor.

O p op ular e o sen sível

A acessibilidade direta ou instantânea desse tipo de experiência tem


permitido às diferentes organizações sim bólicas no in terior da diáspora es­

2 4 5 . Ro sset , C l é m e n t . L ' O b j e t si n g u l i er . M in u it , 1 9 7 9 , p . 6 3 .
2 4 6 . N a m ú sic a n e g r a d a d iá sp o r a , p o d e - se o b s e r v a r á s v e z e s a p r e se n ç a d e u m a c e r t a t r ist e ­
za n o t r an sb o r d a m e n t o d a a l e g r i a . A c o n t e c e n o b / u es, m a s t a m b é m , d e m a n e i r a m a is " c i f r a ­
d a " , n o sa m b a . O p o e t a V i n íc iu s d e M o r a i s r e f le t e so b r e ist o n u m d o s v e r so s d a c a n ç ã o " Sa m b a
d a Bê n ç ão " a o in d ic a r p r i m e ir a m e n t e a p r e se n ç a l a t e n t e d e u m sa g r a d o (" O b o m sa m b a é
u m a fo r m a d e o r a ç ã o " ) e d e p o is, a o d iz e r q u e " a l e g r i a é a m e l h o r co isa q u e e x i st e / é a ssi m
co m o a lu z n o c o r a ç ã o " , m a s su st e n t a n d o : " Pr a f a z e r u m sa m b a co m b e l e z a é p r e c iso u m b o ­
cad o d e t r ist e za " . O sa m b a , c a n t a e l e , " é a t r ist e za q u e b a l a n ç a " .

220
«t f ♦t t f f « f f f f f f f I V' t
crava construírem p rogressivam ente fortes iden tificaçõ es étnicas, capazes
de constituir com unidades (litúrgicas, m u sicais, etc.) atu antes n a paisag em
sul e centro-am ericanas. D elas tem partid o a afetação do cam po social por
aparências sensíveis, não instaladas apenas n a ord em do real-h istó rico , m as
tam bém n a do possível e do im aginário.
Som os de fato afetados o tem po todo p o r vo lu m es, cores, im agens e
sons, assim com o p o r narrativas e aforism os. O sensível é esse ru m o r de
fundo persistente que nos com pele a alg u m a co isa sem que nele p o ssam os
separar real de im aginário, sem que p ossam o s, po rtan to , reco rrer a e stru tu ­
ras e leis p ara d efinir a unidade do m undo, po rq u e aí o que p red o m in a é a
deriva contínua de um a form a, m elh o r dito, de u m a m aneira. O sensível das
form ações sim bólicas que celebram o rig em e destino - Arkhé , po rtan to -
ancora-se p rim ordialm ente n a cultura dita “p o p u lar” , onde, nas p alav ras de
Sansot, “v iviam hom ens que, p o r seu trabalho, não se d esco lav am n u n ca do
real e p ara os quais o p razer nascia de u m a exaltação ou de u m a q u ietude
dos sentidos e não de suspiros m etafísicos ou de sen tim entos d istin to s”247.
S ansot coloca o verbo no passado. E co m u m b o m m otivo, u m a v ez que
a sua argum entação está atrelada à idéia de “cu ltu ra p o p u lar” , entidade de
existência decididam ente problem ática. C om o b em se sabe, esta expressão
(Kultur des Volkes) inventada p o r H erd er no século X V III, no in terio r de
u m m ovim ento de rom antização do “p o v o ” , passo u a d esig n ar m o d em a-

&t
m ente os estilos de vida, os costum es, os cânticos, as festas, os artesanatos
produzidos e circulantes no espaço das classes econo m icam en te su b alter­
nas ou então nas regiões culturalm ente periféricas.
N unca de fato se sustentou an tropologicam ente o “p o p u lar” com o u m a
“outra” cultura, radicalm ente diversa em seus conteúdos d a cu ltura oficial e
hegem ônica. A diversidade sem pre transpareceu, p o r um lado, na tensão de
realização das form as sim bólicas existente entre a sabedoria dos estratos
subalternos da população e o m onopólio oficial de idéias p o r parte das ca­
m adas dirigentes. P or outro lado, diversa sem pre foi a afirm ação de u m a
singularidade do com um nas expressões culturais apoiadas no corpo com o
potência de agir e de ser. O que se veio a cham ar de “cu ltura p o p u lar” , na
verdade são os gestos ritualísticos de produção de subjetividade autônom a
t* t« «

p or parte dos pobres, que, pelo escândalo das form as, da negação do trab a­
lho, da recusa dos lim ites, da prim azia da tem poralidade rítm ica e da d es­

2 4 7 . Sa n so t , Pie r r e . Le s f o r m es se n si b l e s d e Ia v i e so c i a l e . PU F, 1 9 8 6 , p . 2 0 .

221
m ed id a, p ela fe sta , em sum a, ex ib iam a ten são in stan tân ea da resistên cia à
rep ressão do d esejo e da p o tên cia co rp o ral, p o rtan to se co n fro n tav am com
o utros m o d o s de ab o rd ag em do real. A festa p o p u la r a u feria sen tid o de sua
d em arcação p ro fan a frente ao sagrado, p o rtan to de m o m en to s e do m ín io s
claram en te d elim itados, que su sp en d iam p ro v iso riam en te a tem p o ralid ad e
oficial. A s form as aparen tem en te d eso rd en ad as o u co n testad o ras não eram
ja m a is figuras de u m “ an tip o d er” , e sim de sua in v ersão p aró d ica ou da ex i­
b ição das po ssib ilid ad es de novas reg ras sociais.
Sob o ângulo de seus conteúdos, essas culturas, tam b ém ditas “rústi-
co-plebéias” , parecem tender hoje à assim ilação ou à hibridização com a cul­
tura m assiva, tecnologicam ente produzida, sem referên cia ao sagrado, sem
intervalos dem arcados, nem lugares sociais sim bolicam ente m arcados. A in­
dústria do espetáculo (das produções fonográficas à televisão) vem penetran­
do irreversivelm ente, seja para tom ar o lugar, seja p ara reproduzir os seus
conteúdos, no que se costum ava cham ar de “ festas do p o v o ” . P o r outro lado,
o próprio conceito do fenôm eno - dependente da concepção de cultura com o
organização grupai (étnica, regional, nacional, etc.) de identidade e, assim ,
atinente a u m território específico - é fortem ente abalado pela globalização
com unicacional, que prom ove um entrecruzam ento contínuo de diferentes
repertórios culturais. O antigo “popular” cede espaço à dinâm ica da h ibridi­
zação de conteúdos e form as diversificadas de apropriação do sensível.
D esta m aneira, se do ponto de vista de seus m odos de realização as m a­
n ifestações tensas de u m a d iversidade sim bólica (m ais fortes em determ i­
n ados territó rio s nacionais do que em outros) ainda p o d em fazer-se presen ­
tes n a atualidade, a designação “cu ltura p o p u lar” to m a-se rigorosam ente
inútil. O que existe m esm o é o pluralism o dos m odos de organização sim ­
b ó lica v o ltados p ara a produção do com um , a exem plo d as com unidades li-
túrgicas afro-brasileiras (onde, aliás, não encontra lu g ar o conceito de “cu l­
tura p o p u la r”), dos quais em erge a tensão da d iferen ça frente ao p arad ig ­
m a civ ilizató rio oficial. E a alegria é o grande diferencial dessas expressões
constituintes de um com um . N a tensão que se rev ela corporalm ente, pode
ainda se au topotenciar a alegria, grande v eto r de singularização. N a cultura
m idiática, tecnologicam ente produzida, dependente de causas e finalidades
com andadas pelo m ercado, há sensação, em oção, vertigem e prom essas de
felicidade - jam ais alegria.
A alegria reserva-se à disposição que p rioriza afetivam ente - logo, p or
m eio do corpo em sua concretude pulsional - o real h um ano em seus aspec­

222
tos fam iliares, m as tam b ém o im aginário d ireta ou indiretam ente articulado
ao ultra-hum ano ou ao sagrado. E la acontece onde a v id a po ssa afinar-se lu-
cidam ente com o m undo em suas m an ifestaçõ es espontâneas, em suas afe­
tações im ediatas dos sentidos, sem o retardam ento das abstrações da lin­
guagem ou sem o recalcam ento do corpo. E m erge, então, com o a p o nta ex ­
trem a d essa celebração de um real que tran sb o rd a e não se p au ta pelo resg a­
te religioso de u m a grande falta m etafísica originária, nem pela revelação
do d esejo divino de que o com um dos ho m en s se su b m eta a um A bsoluto.
A alegria é sem pecado, sem p erdão e sem subm issão.

223
# «i t « « 1 1 1 f f» 0 0 # # f’
B ib l io g r a f ia

A b ram o , P erseu. Padrões de manipulação na grande im prensa. F un d . P er-


seu A b ram o , 2003.
A b ru zzese, A lb erto . Lo splendore de la T V - Origini e destino dei linguag-
gio audiovisivo. C o sta & N o lan , 1995.
A g am b en , G io rg io . O poder soberano e a vida nua - H omo sacer. P re s e n ­
ça, 1998.
A lq u ié, F erd in an d . Le désir d ’éternité. Q u a d rig e /P U F , 1990.
A q u in o , R o m élio . Parlamento , corrupção e centro, A P U B - S eção S in d i­

m 0 ê m
cal d a A n d es - SN , 1995.
A ren d t, H an n ah . La vie de Vesprit , I, P U F , 1981.
— Qu yest-ce que la politique? Seuil, 1995.
B ach elard , G aston. L yeau et les rêves —Essai sur l yimagination de la matiè-
re. L ib rairie Jo sé C orti, 1942.

# t #> 0)
B adiou, A lain. Política: partido, representação e sufrágio. P ro jeto , 1995.
B ataille, G eorges. L yexpérience intérieure. G allim ard , 1992.
B au d rillard , Jean. Pour une critique de l yéconomie politique du signe. G a l­
lim ard, 1972.
— L yéchange symbolique et la mort. G allim ard , 1976.
— L eparoxiste indifférent- Entretiens avec P hilippePetit. G rasset, 1997.
— Télémorphose. S ens & T onka, 2001.
— Le pacte de lucidité ou Vintelligence du mal. G alilée, 2004.
B au m g arten , A lex an d er G ottlieb. Esthétique. L ’H e m e , 1998.
B enjam in, W alter. Origine du drame baroque allemand. F lam m ario n , 1985.
— Paris , capitale du XIXe. siecle. A llia, 2003.
B enveniste, É m ile. Problèmes de linguistique génerale. PU F.

22 5
r
B ergson, H enri. duas fontes da moral e da religião. Z ah ar, 1976.
i
% B obbio, N o rb erto . A teoria das form as de governo. U n B , 1997.

r — Direito e Estado no pensamento de Em anuel Kant. M an d arim , 2000.


Boltanski, Luc & Chiapello, Éve. Elnuevo espírito dei capitalismo. Akal, 2002.
i
B o urdieu, Pierre. O poder simbólico. B ertran d , 1998.
i
C anfora, L uciano. La démocratie comme violence. D esjo n q u ères, 1989.
i
C astells, M anuel. A galáxia da internet - Reflexões sobre a Internet , os ne­
i gócios e a sociedade. Z ah ar, 2003, p. 165.
i C om te-S p o n v ille, A ndré. D e Vautre cote du desespoir - Introduction à la
I» pensée de Svâmi Prajnânpad. A c c a ria s/L ’O rig in ei, 1997.
C outinho, C arlos N elson. Contra a corrente - Ensaios sobre democracia e
*
socialismo. C ortez, 2000.
b
C outinho, C arlos N elso n & T eix eira, A n d réa de P au la (orgs.). L er Grams-
D ci, entender a realidade. C iv ilização B rasileira, 2003.
D C rosby, A .W . The measure o f reality - Quantification and western society ,
1250-1600. C am b rid g e U n iv ersity Press, 1997.
T>
D am ásio, A n tô n io R. O erro de Descartes - Emoção, razão e o cérebro hu­
»
mano. C o m p an h ia das L etras, 2001.
»
D ebord, G uy. A sociedade do espetáculo. C o n trap o n to , 1997.
i D eleuze, G illes. Spinoza et leproblèm e de Vexpression. M in u it, 1968.
ft — Pourparlers. M inuit, 1990.
— Espinosa: filosofia prática. E scuta, 2002.
D eleuze, G illes & G uattari, Félix. Q u ’est-ce que la philosophie ? , 1991.
D ew ey, John. A rt as experience , 1934.
D om enach, Jean-M arie. La propagande politique. P U F , 1965 [Col. Que
sais-jel , n. 448].
D orfles, G illo. Mythes et rites d ’aujourd’hui. K lin ck sieck , 1975.
D urkheim , É m ile. Les form es elementaires de la vie religieuse. PU F.
E agleton, T erry. A ideologia da estética. Z ahar, 1990.
E aston, D avid. The political system : An inquiry into the State o f political
Science. K nopf, 1953.
E co, U m berto. Viagem na irrealidade cotidiana. N o v a F ronteira, 1984.
E isler, R udolf. Kant-Lexikon. G allim ard, 1994.

22 6
E lias, N orbert. La civilisation des moeurs. C alm an-L évy, 1973.
E sposito, R oberto. Communitas — Origine et destin de la communauté.
PU F, 2000.
F ou cau lt, M . Vigiar e punir. V ozes.
F reire, P aulo & G uim arães, Sérgio. Sobre educação. P az e T erra, 1984
[D iálogos, vol. 2).
Freud, Sigm und. O ego e o id. Im ago, 1997.
F reund, Julien. L 'essence dupolitique. Paris, 1965.
G iddens, A n th o n y et al. Modernização reflexiva. U nesp, 1997.
G inzburg, C ario. M itos, emblemas, índices: morfologia e história. G edisa,
1994.
G offm an, E rving. Frame analysis. N o rth eastem U niversity Press, 1986.
G om es, W ilson. Transformações da política na era da comunicação de
massa. P aulus, 2004.
G orz, A ndré. O imaterial: conhecimento, valor e capital. A nnablum e, 2005.
G ram sci, A ntonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. C ivilização
B rasileira, 1988.
G reen, A ndré. O discurso vivo - Uma teoria psicanalítica do afeto. F ran ­
cisco A lves, 1982.
G reim as, A lgirdas Julien. Da imperfeição. H acker, 2002.
G utierrez, A n tonio G arcia. Outra memória es posible - Estratégias desco-
lonizadoras dei archivo mundial. L a C rujia, 2004.
H am eck er, M artha. Los conceptos elementales dei materialismo histórico.
Siglo V eintiuno, 1971.
H egel, G .W .F. Grundlinien der Philosophie des Rechts. N icolai, 1821.
H eidegger, M . Ser e tempo. V ozes, 1989.
H erm et, G uy. Culture et democratie. U nesco/A lbin M ichel, 1993.
H obbes, T hom as. D e Cive. In: Operaphilosophica. A alen, 1961, vol. II.
Ianni, O ctavio. Enigmas da modernidade-mundo. C ivilização B rasileira,
2003.
Ja u ss, H a n s R o b e rt. E xperiência estética y herm enêutica literaria -
E nsayos en el campo de la experiencia estética. T aurus, 1992.
Jeudy, H enri-P ierre. O corpo como objeto de arte. Estação Liberdade,
2002.

227
Jonas, H ans. P our une éthique du futur. P ay o t & R iv ag es, 1998.
K ainz, Friedrich. Estética. F o n d o d e C u ltu ra E co n ô m ica, 1952.
K erckhove, D errick de. A p ele da cultura. R eló g io D ’Á g u a, 1997.
K ierkegaard, Soren. Concluding unscientific postscript. P rin c e to n , 1941.
L alande, A ndré. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. M a rtin s F o n tes,
1999.
L anger, W alter C. A mente d e A d o lfH itle r - O relatório secreto da I I G uer­
ra Mundial. A rten o v a, 1973.
L azarsfeld, P., B erelso n , B . & G o u d et. T hepeople ’s choice: how the voter
makes up his m ind in a presidential campaign. C o lu fn b ia U n iv e rsity
Press, 1968.
L edrut, R aym ond. La révolution cachée. C asterm an , 1979.
L ow en, A lex an d er. Alegria - A entrega ao corpo e à vida. S u m m u s, 1997.
M achado, A rlindo. M áquina e imaginário. E d u sp , 1993.
M affesoli, M ichel. La connaissance ordinaire. M é rid ie n s, 1985.
— A transfiguração do político - A tribalização do mundo. S u lin a, 1997.
— O mistério da conjunção —Ensaios sobre comunicação , corpo e sociali-
dade. Sulina, 2005.
M arshall, T.H . Cidadania , classe e status. Z ah ar, 1967.
M arx, K arl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. A b ril, 1978 [C ol. Os Pensa­
dor es\.
M attelart, A rm and. La invención de la comunicación. B o sch , 1995.
M aturana, H . & V arela, F. A árvore do conhecimento. P sy II, 1995.
M cG uinness, B rian F. T he m y sticism o f the tractatu s. In: The Philosophi-
cal Review , 75, 1966.
M ondzain, M arie José. L Hmage peut-elle tuer? B ay ard , 20 0 2 .
M oran, John. Toward the world and wisdom o f Wittgenstein ’s Tractatus.
M outon the H ague, 1973.
M ukarovsky, Jan. II significato delVestetica. S. C o rd u as, 1973.
N egri, A ntonio. Exílio seguido de valor e afeto. Ilu m in u ras, 2001.
— Kairós, alma venus, multitudo - Nove lições ensinadas a mim mesmo.
D P& A , 2003
N egri & H ardt M ichael. Império. R ecord, 2000.

228
N ietzsch e, F. O crepúsculo dos ídolos. G u im a rã e s, 1985.
— O Caso Wagner: um problem a p ara músicos. C ia. d a s L e tra s, 2 0 0 2 .
P arey so n , L uigi. Estética - Teoria delia form atività. B o m p ia n i, 1988.
P arret, H erm an. A estética da com unicação - Além da pragm ática. U n i-
cam p , 1997.
P eirce, C h arles S anders. La ciência de la semiótica. N u e v a V isio n , 1974
[C ol. de S em io lo g ía y E p istem o lo g ía],
P em io la, M ario. Do sentir. P resen ça, 1993.
— L 'Estética dei Novecento. II M u lin o , 1997.
P latz, H .P. Vom Wesen der politischen M acht. B o n n , 1971.
R an cière, Jacques. Le partage du sensible -E s th é tiq u e e tpolitique. L a F a ­
b riq u e, 2000.
R o rty , R ich ard . Contingência, ironia e solidariedade. P re se n ç a , 1992.
— Pragmatismo - A filosofia da criação e da mudança. U F M G , 2 0 0 0 .
R o sset, C lé m e n t . L ’Objet singulier. M in u it, 1979.
— Alegria: a fo rça maior. R elu m e -D u m a rá , 2000.
R o u m an o ff, D aniel. Svâm i Prajnânpad - Tome 1: M anque etplénitude. L a
T ab le R onde, 1989.
R o u sseau , Jean -Jacq u es. Essai sur l 'origine des langues. G a llim a rd , 1990.
R ubim , A n to n io A lb in o C an n elas (org.). Comunicação e política: concei­
tos e abordagens. E d u fb a/U n esp , 2 0 0 4 .
S afranski, R üdiger. Heidegger: um m estre da Alem anha entre o bem e o
mal. G eração, 2000.
S alles, Iza. Um cadáver ao sol. E d io u ro , 2005.
S ansot, P ierre. Les form es sensibles de la vie sociale. P U F , 1986.
Santaella, L úcia & N õth, W infried. Comunicação e semiótica. H ack er, 2004.
S antos, Ju an a E lb ein dos. Os nàgô e a morte. V o zes, 1976.
Saperas, Enric. Os efeitos cognitivos da comunicação de massas. A SA , 2000.
S cheler, M ax. É tica - N u ev o en say o d e fim d am en tació n dei p e n sa m ie n to
ético. Revista de Occidente, 1948.
Schm itt, C arl. E l Leviathan en la teoria dei Estado de Tomás Hobbes. S tu-
hart, 1990.
— O conceito do político. V ozes, 1992.

229
Schopenhauer, A. Le monde comme volonte et comme representation.
PU F , 1966.
Sennett, R ichard. Respeito - A form ação do caráter em um mundo desi­
gual. R ecord, 2004.
Serres, M ichel. La traduction. M inuit, 1974.
Sim m el, G eorg. Soziologie - Untersuchungen über die Formen der Verge-
sellschaftung. D u n ck er & H um blot, 1968.
S loterdijk, Peter. O desprezo das massas - Ensaio sobre lutas culturais na
sociedade moderna. E stação L iberdade, 2002.
Sodré, M uniz. Antropológica do espelho - Uma teoria da comunicação li­
near em rede. V ozes, 2002.
— O terreiro e a cidade. V ozes, 1988 [Im ago, 2002].
— Claros e escuros - Identidade , povo e mídia no Brasil. V ozes, 1999 [2a
ed., 2002].
Sortais, G. Traité de philosophie. V ol. I. L ethielleux, 1921.
Spinoza, B . Ethique - Démontrée suivant l ’ordre géométrique et divisée en
cinq parties. T om e P rem ier. G am ier.
Stokes, M artin. Ethnicity, identity and music: The musical construction o f
place. B erg, 1994.
T avares, Flávio. O dia em que Getúlio matou AUende e outras novelas do
poder. R ecord, 2004.
T chakhotine, Serge. Le viol des foides pa r la propagandepolitique. G alli-
m ard, 1963.
V attim o, G ianni. Introdução a Heidegger. Ed. 70, 1971.
V erón, E liseo. El cuerpo de las imagenes. N orm a, 2002 [Col. E n ciclopédia
L atinoam ericana de Sociocultura y C om unicación].
V erón, E liseo & N eto, A ntonio Fausto. Lula presidente: televisão epolítica
na campanha eleitoral. H acker, 2003.
W eber, M ax. L Ethique protestante etV esprit du capitalisme. Plon, 1964.
W innicott, D .W . Natureza humana. Im ago, 1990, p. 144.
W ittgenstein, L. De la certitude. G allim ard, 1976.

230

Você também pode gostar