Você está na página 1de 14

34

principles of freedom and equality in the


perspective of the construction of Hans
Kelsen's democratic theory, having as its
basic reference his essay Essence and
A LIBERDADE E A IGUALDADE NA Value of Democracy (in German Von
TEORIA DEMOCRÁTICA DE HANS Wesen und Wert der Demokratie),
published in 1929 in the Italian magazine
KELSEN Nuovi studi di diritto, economia e politica.
At first, it is intended to define the
concepts of freedom and equality present
Ricardo Moreira Lacerda in this work of Hans Kelsen. In the second
Graduado em Ciências Políticas part, it will be presented how these two
Universidade de Brasília concepts are justified as foundations of
democracy and how they are jointly related
to the doctrine of the author. In the last
section of this paper, the problem of how
RESUMO these principles clarify the conception of
Wesen and Wert in Hans Kelsen's
O presente ensaio possui como objetivo democratic theory will be addressed.
analisar a relação entre os princípios
filosóficos da liberdade e da igualdade na Keywords: Democracy; Freedom;
perspectiva da construção da teoria Equality.
democrática de Hans Kelsen, tendo como
referência básica o seu ensaio Essência e
Valor da Democracia (em alemão Von
Wesen und Wert der Demokratie), Introdução
publicado em 1929 na revista italiana
Nuovi studi di diritto, economia e politica.
Em um primeiro momento, pretende-se
definir os conceitos de liberdade e Além de ser amplamente
igualdade presentes nesta obra de Hans
Kelsen. Na segunda parte, será apresentada reconhecido como um dos maiores juristas
como esses dois conceitos são justificados do século passado e sua obra ter
como fundamentos da democracia e como
eles são relacionados conjuntamente da influenciado fortemente o pensamento
doutrina do autor. Na última seção deste jurídico positivista daquele século, Hans
trabalho, será abordado o problema de
como esses princípios esclarecem a Kelsen também foi um filósofo da política
concepção do Wesen (essência) e do Wert e contribuiu efetivamente com seu
(valor) na teoria democrática de Hans
Kelsen. pensamento para elaboração de uma teoria
da democracia. Durante a década de 1920
Palavras-Chave: Democracia; Liberdade;
Igualdade. o pensamento do jurista austríaco é
marcado pela profunda preocupação com a
ABSTRACT
defesa das liberdades do regime
The present essay aims to analyze the democrático, neste contexto identificam-se
relationship between the philosophical
diversas publicações do autor de cunho

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


35

filosófico cujo objetivo era o identifica o Estado e o Direito como duas


desenvolvimento dos conceitos centrais e realidades indistinguíveis e a busca
análise dos problemas enfrentados pelas incessante pela elaboração de uma teoria
democracias parlamentares europeias. científica do Direito caracteriza pela
O jurista austríaco teve uma vida ausência de juízos de valor, sobretudo em
longeva, falecendo aos 92 anos nos relação à justificação racional do regime
Estados Unidos e, portanto, vivenciou democrático, e também pela forte
atmosferas políticas e culturais distintas ao normatização do Estado.
longo do turbulento século XX. Foi Desta forma destaca-se inclusive
perseguido pelo regime nazista, observou a que Hans Kelsen foi um profundo defensor
queda de democracias parlamentares e a das liberdades democráticas, expressas,
ascensão de regimes totalitários na Europa sobretudo pela salvaguarda dos direitos das
e, por fim, buscou refúgio na América minorias, em favor do regime parlamentar
onde pudesse expressar livremente o e, principalmente, na sua interpretação de
desenvolvimento de suas ideias e de sua que apenas o relativismo filosófico,
defesa da democracia. Tendo em vista este entendido tanto como pressuposto
contexto, é preciso ressaltar que ao longo epistemológico, quanto atitude em relação
do período em que desenvolveu suas obras à realidade, como condição racional para a
mais importantes identifica-se uma manutenção do regime democrático.
distinção entre um enfoque mais filosófico Após as revoluções burguesas
característico da década de 1920, e o ocorridas nos séculos XVIII na Europa
enfoque mais estrito do positivismo Ocidental e nos Estados Unidos, e a
jurídico caracterizado pela excessiva experiência das lutas operárias do século
normatização do Estado. Geralmente ao se XIX, a democracia tornou-se um lugar
estudar o pensamento de Hans Kelsen, comum no pensamento político e nas
ignora-se o fato de que sua teoria jurídica discussões cotidianas no mundo
encontra forte eco em sua filosofia política. contemporâneo. Seus pressupostos e
Tal perspectiva pode ter como justificativa fundamentos tornaram-se elementares para
a estrita identificação da doutrina a compreensão das formas de governo
Kelseniana com os pressupostos existentes no mundo moderno e, uma
epistemológicos do positivismo jurídico, teoria política que se dedique a analisar a
sobretudo após a publicação da importante questão dos fundamentos desse regime
obra Teoria Pura do Direito (1934), que político, sempre aborda a questão dos

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


36

valores da liberdade e igualdade, que se o Essência e Valor da Democracia (em


compõem o cerne de um sistema alemão Von Wesen und Wert der
democrático. Não obstante ao horizonte de Demokratie), publicado em sua segunda
grandes avanços no processo de edição na mesma revista. Contudo,
racionalização e justificação do poder ressalta-se que o trabalho já havia sido
político, percebe-se atualmente que os publicado anteriormente em 1920 em
valores políticos e filosóficos encontram Tübingen.
na epistemologia e na teoria política uma É consenso que a liberdade e a
série de ambiguidades e divergências igualdade constituem-se os principais
quanto a seus significados e princípios elementos que justificam o sistema
elementares. Neste sentido, os ensaios democrático. Na obra de Hans Kelsen,
elaborados durante um período de agitação esses dois princípios possuem papel
na Europa, e, consequentemente, a teoria fundamental para compreensão do sistema
democrática de Hans Kelsen, surge como democrático moderno.
significativos exemplos de como um autor De um ponto de vista psicológico,
contemporâneo ainda pode abordar a a síntese de liberdade e igualdade,
característica essencial da
questão da relação entre liberdade e democracia, significa que o
indivíduo, o ego, deseja liberdade
igualdade de maneira original. não apenas para si mesmo, mas
A preocupação de Hans Kelsen também para os outros, para o tu.
E isso, somente é possível se o
com a construção de sistemas políticos que ego deixa de se perceber como
sejam mais justos, igualitários e que, algo único, incomparável e
irreprodutível, mas, ao menos em
sobretudo, proporcionem maior liberdade princípio, como igual ao tu. O ego
só poderá honrar a pretensão do tu
aos indivíduos, podem ser observados ao a ser também um ego se o
longo de suas obras de cunho mais indivíduo, não considerar como
essenciais as inegáveis diferenças
filosóficos, como O que é Justiça (1957) e existentes entre ele e os outros e
se o ego, ou autoconsciência,
Teoria Geral das Normas (1960). sofrer uma redução parcial pelo
Contudo, foi em seus ensaios publicados sentimento de igualdade com os
outros. É essa, exatamente, a
entre 1929 e 1930 na Itália, na revista situação intelectual de uma
filosofia relativista. A
Nuovi studi di diritto, economia e politica,
personalidade cujo desejo de
que a sua preocupação com a questão da liberdade é modificado por seu
sentimento de igualdade
democracia e dos valores que compunham reconhece a si mesma no outro.
sua essência, se sobressaiu de forma mais (KELSEN, 2000, p. 180)

clara. Entre os ensaios publicados, destaca-

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


37

A partir dessa afirmação, pode-se refere à ideia e quando ele se refere à


identificar claramente na vertente realidade. Para o autor, essa distinção é
filosófica de Kelsen, como os princípios da necessária, pois tanto a ideologia quanto a
liberdade e da igualdade são fundamentais realidade só podem ser compreendidos na
para a construção da teoria democrática. É medida em que são justapostos e
recorrente na obra do autor que as relações comparados em sua análise. A essência da
entre o indivíduo e a sociedade, entre a democracia, segundo ele, só pode ser
liberdade e a autoridade, entre liberdade e compreendida levando em consideração a
igualdade, são relações que constituem o antítese entre ideologia e a realidade. (ibid.
núcleo do pensamento do autor. p. 34). Nota-se que a fonte recorrente das
Veremos ao decorrer deste discordâncias e interpretações distorcidas
trabalho, como Kelsen fundamenta sua ocorre, sobretudo a partir da confusão
teoria da democracia, no sentido de buscar estabelecida entre aquilo que é ideologia e
uma caracterização racional-científica aquilo do que é realidade empírica, ou seja,
desta forma de governo. Será abordado, o que ocorre de fato na experiência dos
sobretudo, a questão dos princípios da povos.
liberdade e da igualdade, como eles são Na concepção da ideologia
definidos e como se inter-relacionam no democrática kelseniana, a relação entre
regime democrático. Cabe destacar, que indivíduo e a ordem social ocorre por meio
Kelsen sempre buscou uma objetividade de um problema básico: o fato de que
nas abordagens jurídicas e filosóficas. Para qualquer vínculo social torna o indivíduo
isso, o autor pretende analisar esses menos livre ou subordinado. Por outro
fundamentos, afastando-se de concepções lado, em sua essência humana, o homem
morais, metafísicas e sociológicas que sempre apresenta um impulso natural para
podem afetar sua caracterização. liberdade. Esse conflito que Kelsen
apresenta, é essencial para compreender
como a liberdade individual é entendida
Os Conceitos de Liberdade e Igualdade em em um sistema político. O problema
Kelsen elementar apresentado por ele sugere a
impossibilidade do ser humano ser
totalmente livre em um estado social. A
Ao analisar o pensamento de liberdade em seu sentido essencial é uma
Kelsen é preciso distinguir quando ele se abstração, uma vontade irrealizável no

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


38

plano empírico. Hans Kelsen pressupõe do estado de natureza. Para compreender


uma visão de homem que possui um como Kelsen define a liberdade nos
sentimento primitivo antissocial, que é sistemas democráticos é necessário
capaz de encontrar sua plena liberdade primeiramente entender como o autor
apenas em um estado natural anterior a define esses dois conceitos. A liberdade
sociedade, visto que o estado de sociedade natural, neste ponto Kelsen segue a linha
conduz necessariamente a um poder de raciocínio dos autores contratualistas,
coercitivo que limita a liberdade do seria a condição do homem que está fora
indivíduo. “É a própria natureza que, de qualquer vínculo social, onde haveria
exigindo liberdade, se rebela contra a um espaço para uma liberdade individual
sociedade” (KELSEN, 2000, p. 27). absoluta. Esse estado de liberdade plena

A liberdade é o princípio seria a realização da essência humana no

fundamental da ideologia do sistema pensamento de Kelsen. Mas, se por sua

democrático. Todo problema político de própria natureza o homem possui

alguma forma está relacionado à questão necessidade de conviver coletivamente por

da liberdade, como a liberdade política ser um zoon politikon, como já afirmava

deve ser construída por meio das Aristóteles em IV a.C, e, portanto, se deve

instituições sociais. O primeiro problema a haver uma sociedade, é preciso que haja

ser compreendido é como o indivíduo pode normas. Se houver normas, deve haver um

ser livre em uma sociedade, se é inevitável poder que seja capaz de editá-las. Neste

que na própria ordem social haja sempre o ponto, Kelsen põe em relevo que qualquer

peso do poder político a ser exercido sobre relação de poder é uma relação que

os homens? Para resolver este problema, consequentemente tende a diminuir a

Hans Kelsen retorna aos clássicos dos liberdade do indivíduo. Desta forma, o

autores contratualistas, citando diretamente conceito de liberdade natural não pode

Jean-Jacques Rousseau, e destaca que para mais se sustentar em uma ordem social,

que a liberdade seja compreendida como visto que essa ordem necessariamente

elemento da vida social, é imprescindível pressupõe vínculos sociais de dominação e

que haja uma mudança de significado nas que deve valer objetivamente, ou seja,

concepções de “liberdade natural” e a deve independer da vontade daqueles que

“liberdade política”. Há um resgate nesse lhe estão submetidos. Bobbio (1988)

ponto do pensamento kelseniano das confirma essa tese ao afirmar que liberdade

teorias do contrato social e de certa forma e autoridade são dois termos antitéticos,

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


39

onde um aumenta e o outro passa a ser considerada como a


necessariamente diminui. Assim, a autodeterminação do indivíduo na
liberdade que antes era natural e absoluta, sociedade, como participação do indivíduo
transforma-se em liberdade política. na formação da vontade do Estado. Esta é

Deve-se haver sociedade e, mais essencialmente a forma da liberdade


ainda, Estado, deve haver um democrática, onde os indivíduos não
regulamento obrigatório das
relações do homem entre si, deve apenas possuem uma esfera de ação livre
haver um poder. Mas, se devemos
da vontade estatal, mas sim que participam
ser comandados, queremos sê-lo
por nós mesmos. A liberdade diretamente da formação da vontade
natural transforma-se em
liberdade social ou política. É coletiva a que estão submetidos.
politicamente livre aquele que A ordem estatal é criada pelos
está submetido, sim, mas à
vontade própria e não alheia. Com próprios indivíduos. A abordagem mais
isso apresenta-se a síntede de
princípio das formas políticas e marcante desta análise da liberdade, é
sociais. (KELSEN, 2000, p. 28) afirmação que em qualquer organização
Neste sentido, Kelsen não se afasta social, necessariamente haverá sempre
dos autores contratualistas, onde a uma relação dialética entre a força da
liberdade natural (o estado de natureza) e a vontade individual (autonomia) e a força
liberdade política/civil são conceitos que do normativismo social (heteronomia),
estão em esferas difusas, e para que uma que, segundo ele, pesa sobre a vontade
forma de liberdade seja possível é individual como um tormento (KELSEN,
necessário que a outra seja renunciada. 2000, p. 27-28). Em última análise, a
A importância da ideia de liberdade liberdade do indivíduo é irrealizável, e o
é explicada por ser originada na própria indivíduo encontra-se “preso” na liberdade
“alma humana” do indivíduo. Para Kelsen, democrática ou da coletividade, na medida
apenas duas formas de organização política em que se ele não pode subtrair-se a ordem
é possível na modernidade: a democracia e social, ele somente pode participar na
a autocracia. Somente a democracia é produção do aperfeiçoamento dessa ordem.
capaz de garantir certo grau de liberdade Mesmo assim, o autor afirma que é
aos indivíduos, na medida em que produz impossível que o indivíduo seja capaz de
uma metamorfose na ideia de liberdade subtrair-se dessa ordem quando ela não
contra o domínio estatal (liberdade natural) está de acordo com sua vontade. Portanto,
para liberdade na produção da ordem o sistema democrático mesmo que seja o
estatal. Desta forma a liberdade política, mais eficiente para produzir um amplo

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


40

estado de liberdade, ainda assim exige que perante o Estado, para que haja uma ordem
haja indivíduos não livres. justa. É necessário que haja uma igualdade
A ideia de igualdade não é central de direitos e perante a lei. Desta forma, a
para a construção doutrinária de Kelsen. igualdade torna-se um princípio importante
Distanciando-se das concepções mais para que a democracia seja construída,
clássicas da democracia, onde o princípio permitindo que os indivíduos sendo
da igualdade estava na base do fundamento juridicamente considerados como iguais,
democrático, o austríaco não dedica muito sejam todos livres na ordem social. Sem a
espaço em sua reflexão para esse princípio. igualdade, Kelsen não concebe
A igualdade apresenta-se a partir da democracia, na medida em que todos
concepção de que nenhum homem deve devem ser considerados como sujeitos
estar submetido a outro homem. Esta capazes de aperfeiçoar a ordem estatal.
noção também se encontra no sentido A igualdade funciona como
primitivo do homem, na medida em que princípio complementar ao princípio da
este rejeita o peso da vontade alheia. A liberdade. Da pressuposição de que se nem
ideia básica é que nenhum indivíduo todos os indivíduos são livres em uma
possui maior valor que outro no estado ordem social, é preciso que pelo menos a
social. Na verdade, para Kelsen os maior parte deles seja. O Estado dessa
indivíduos são iguais apenas formalmente forma deve produzir as normas sociais
e no estado democrático de direito. Fora observando a liberdade, se não de todos,
dessa realidade política, os homens são pelo menos da maioria dos indivíduos. A
completamente diferentes e possuem democracia é capaz de coexistir ao lado de
vontades distintas. A desigualdade é um frustrações e insatisfações de grupos de
fato social, que se apresenta claramente na indivíduos. Não é possível que todos os
natureza. O que se pode entender é que indivíduos sejam livres na ordem social. Se
essa desigualdade natural, não deve ser isso fosse possível, Kelsen salienta que não
considerada na construção de um sistema haveria a necessidade de normas sociais. O
democrático. Apesar de a ideologia valor da liberdade não é absoluto, apesar
sistema-democrática exigir que a liberdade de todos os indivíduos serem considerados
seja o valor fundamental, para que este como iguais no processo de construção da
sistema seja possível, será necessário que ordem social.
todas as desigualdades intrínsecas no
estado natural do homem, sejam abolidas

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


41

Liberdade e Igualdade na Democracia e remonta a experiência política


democrática ateniense do século IV a.C.
A base para compreensão do O sistema democrático, enquanto
fundamento filosófico da democracia, sistema social, apesar de representar uma
segundo a doutrina kelseniana, está na restrição à liberdade natural do indivíduo,
síntese entre os princípios da liberdade e ainda assim é o regime político que
igualdade. São esses os dois postulados permite um maior grau de liberdade aos
básicos que compõem e justificam indivíduos. Como para Kelsen todo estado
qualquer sistema político que possa ser de sociedade é inevitavelmente um estado
considerado como democrático. Para onde existirão indivíduos não livres, onde
Kelsen, o conceito de liberdade é essencial o peso da vontade alheia ou da ordem
e constitui o fundamento básico. A ideia de social mesmo não estando de acordo com a
igualdade é secundária, e serve apenas para vontade individual deve valer
reforçar a noção de liberdade presente no objetivamente e, portanto, ser obedecida
sistema político (KELSEN, 2000, p. 99). por todos. O sistema democrático
O indivíduo politicamente livre é apresenta-se como o melhor meio para
aquele que pode participar da criação da garantir pelo menos um grau de liberdade a
ordem estatal. Se todos querem ser livres, um número maior de indivíduos. O
mas por outro lado se deve existir um princípio da maioria, que é adotado em
poder para regular a vida social, então é todas as democracias contemporâneas,
necessário que todos os indivíduos devam significa a efetivação dessa noção de que a
participar na formação da ordem maior parte dos indivíduos deve ser livre.
democrática. A liberdade é concebida na Essa posição aproxima-se da filosofia
democracia como a autodeterminação utilitarista de Bentham e Mill, que
política do indivíduo. Os indivíduos ao considera que o governo tem a função de
perceberem que são iguais, não admitem garantir a felicidade ou bem-estar ao maior
que sejam comandados pela vontade de número possível de cidadãos.
outro indivíduo semelhante (ibid. p. 25). Como na ordem social haverá
Desta forma, a igualdade na natureza sempre aqueles que estarão em desacordo
humana traz a necessidade de liberdade e com as decisões do Estado e sendo
de construção de uma ordem social onde impossível uma coincidência absoluta
nenhum homem seja escravo de outro. entre o ser e o dever-ser, Kelsen ressalta
Essa ideia apresentada por Kelsen é antiga que é preciso reduzir ao máximo o número

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


42

daqueles indivíduos que se sintam que o número, a quantidade, nunca foi


inconformados com a ordem estatal. Em considerado como um elemento de força
toda sua doutrina democrática, percebe-se que deve se sobrepor aos outros, segundo
uma preocupação por vezes explícita, por Kelsen. “Por isso, o princípio democrático
vezes tácita, de preservar os direitos das de liberdade parece exigir que a
minorias. possibilidade de uma decisão imposta à
Para entender a doutrina de Kelsen, minoria se reduza ao mínimo; maiorias
é preciso ressaltar que o estado social deve qualificadas, possivelmente unanimidade,
sempre considerar as posições são consideradas garantias de liberdade
minoritárias, mesmo que seja construído individual” (KELSEN, 1988, p.29).
com base na vontade da maioria. Apesar de O indivíduo no sistema
ser a vontade da maioria a fonte absoluta democrático é considerado livre apenas na
para a criação da ordem social, a medida em que vota com a maioria e,
democracia somente é possível a partir da assim, consegue ter força para transformar
proteção dos direitos das minorias políticas sua vontade na ordem social. Se por outro
(KELSEN, 2000, p 70). É preciso que o lado ele vota de acordo com a minoria, ou
sistema democrático permita um grau de muda de ideia com o passar do tempo e já
liberdade onde se em um dado momento a não concorda com a maioria, ele torna-se
minoria seja vencida em seus anseios, por não livre. Segundo Kelsen, mesmo com
outro lado é possíve que uma eventual seus defeitos, essa é a única forma de
minoria possa tornar-se uma maioria. Isso democracia que pode ser realizada na
é o que Kelsen denomina de política de prática. Sempre haverá pessoas que se
compromisso. Para atingir esse objetivo, sentem oprimidas pela ordem estatal. O
Kelsen ressalta a centralidade do papel do que a democracia pode fazer é reduzir esse
parlamento. A democracia, neste sentido, número de pessoas ao mínimo possível
pode ser vista como uma política de para que a ordem seja considerada como
compromisso, onde os representantes justa. “O fato de se continuar falando de
devem sempre considerar o acordo e os autonomia e considerando cada um como
compromissos feitos com a minoria. Se submisso à sua própria vontade, enquanto
houvesse aniquilação dos anseios da o que vale é a lei da maioria, é um novo
minoria, já não seria mais possível haver progresso da metamorfose da ideia de
democracia, visto que só existiria a partir liberdade” (KELSEN, 1988, p. 30).
daí um governo dos mais fortes. O fato é

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


43

O princípio da maioria é o único que a ordem seja estabelecida pela vontade


capaz de estabelecer uma ordem onde o majoritária.
maior número de indivíduos possa ser Comparando a ideologia com a
livre, aproximando-se ao máximo da ideia realidade, que é a principal preocupação de
de liberdade natural. Ou seja, seria apenas Kelsen, percebe-se que a ideia de
um instrumento aproximativo da ideia de democracia sofre bastante transmutação,
liberdade, já que está em sua essência é mas que nem por isso afeta a sua natureza
impossível na prática social. Além disso, o de ser o regime que permite a maior
princípio majoritário pressupõe que as liberdade. O povo ainda é considerado
vontades dos indivíduos sejam iguais, e como a origem da criação da ordem estatal,
que todos devam ser considerados mesmo que o povo seja o maior número. A
igualmente no processo de formação da liberdade com sua transformação, ainda
vontade majoritária. O princípio da continua sendo o valor central para a
igualdade não suporta a ideia de que um democracia. O fundamento da liberdade na
homem seja comandado por outro, visto democracia une o princípio da maioria e a
que todos são iguais. Por isso, Kelsen vontade parlamentar. Não sendo possível a
ressalta que o sujeito de poder se desloca criação de a ordem social ser realizada
do indivíduo-igual para a entidade através do voto direto de todos os
anônima do Estado. Esta entidade é cidadãos, devido a fatores como a
formada pela vontade coletiva e torna-se o imensidão dos territórios e da população
sujeito de poder, diferentemente da dos Estados modernos, a ordem social é
personificação que há em sistemas criada de forma indireta pelo parlamento, e
autoritários, onde um homem exerce o não mais de forma direta como ocorria na
poder. A liberdade encontra-se apoiada no Grécia Antiga. O parlamentarismo
maior número, mas para ser considerada apresenta-se, então, como uma conciliação
como democrática é preciso que seja entre a exigência democrática de
observada a vontade da minoria. Somente deliberdade e o princípio da distribuição do
em autocracias é que há uma tentativa de trabalho - causa da diferenciação e
eliminação do menor número discordante, condicionante de qualquer progresso
das opiniões e visões de mundo contrárias. técnico-social. (KELSEN, 2000, p. 47).
Em um sistema que pretende garantir a Apesar disso, percebe-se uma
maior liberdade aos indivíduos, a vontade insatisfação com a democracia
de todos é levada em consideração, mesmo parlamentarista moderna. Kelsen afirma

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


44

que tanto pela extrema direita, quanto pela homens com os mesmos interesses e visões
extrema esquerda é possível identificar um de mundo e que agem no sentido de
desprezo pelos princípios do regime alcançar o poder do Estado para fazer valer
parlamentarista. O que é interessante notar seus objetivos. Sem esses grupos
é que para Kelsen apenas o parlamento é organizados, Kelsen afirma que não é
capaz de realizar a democracia, portanto possível haver o princípio parlamentar e,
qualquer forma de aversão ao desta forma, a liberdade política estaria
parlamentarismo também é uma aversão à comprometida.
própria democracia. A luta contra a Todos os instrumentos que Kelsen
autocracia dos XVIII e XIX foi defende para a realização da democracia
essencialmente uma luta a favor do moderna estão relacionados com o fato
parlamentarismo. Para o autor é básico de que a liberdade não pode ser
impensável haver um regime que se realizada em seu estado puro na esfera
proponha a defender a liberdade e a social, mas deve admitir certos princípios
igualdade dos indivíduos se esse regime que não estão em sua essência, como os
não se guiar pelo sistema parlamentar. Os partidos políticos e parlamentarismo.
Estados contemporâneos são bastante
amplos e complexos, impossibilitando que
a liberdade dos ndivíduos seja realizada de O Wesen e o Wert da Democracia
forma direta, a partir da participação de
todos os indivíduos no debate público.
Apenas o princípio parlamentar que cria A elaboração teórica de Kelsen
uma classe de representantes políticos que desde o início considera o fato básico da
se dedicam exclusivamente a deliberar diferenciação entre a ideologia e a
pelo interesse público, que pode realizar o realidade, conforme citado anteriormente.
método democrático. A democracia é Essas duas esferas de análise são distintas
indireta e os cidadãos se limitam a criar e a pelo autor, na tentativa de excluir
controlar os indivíduos eleitos para determinados equívocos que possam
representação no parlamento. Além disso, permitir uma má interpretação do sistema
Kelsen ressalta a importância dos partidos democrático. Contudo, não é possível
políticos no processo de formação da entender a ideologia e a realidade, ou a
vontade diretiva do Estado. Os partidos essência (wesen) e o valor (wert) da
políticos são grupos que agregam os democracia separadamente.

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


45

Ao tratar do ser ou Wert, Kelsen contemporâneas capaz de ajustar-se à


centra-se, sobretudo na análise do valor da divisão social do trabalho, na medida em
liberdade enquanto princípio filosófico que haveria um corpo profissional de
desse sistema. O tema deste trabalho políticos dedicados aos processos de
também está relacionado ao dever ser da tomada de decisão, e por outro lado
democracia, ou seja, é mais importante garantiria o máximo possível de liberdade
entender o valor ou Wert da democracia e política, na medida em que aos cidadãos
como a liberdade e a igualdade são caberia a prerrogativa de controle e criação
justificadas como base filosófica desse do corpo parlamentar.
sistema. Contudo, é preciso apontar certos
esclarecimentos do wesen da democracia,
para que se possa entender como esses Conclusão
princípios são realizados empiricamente no
mundo contemporâneo.
Após a complexificação da A base para compreensão do
sociedade moderna, com o surgimento dos fundamento filosófico da democracia,
Estados modernos, dos processos de segundo a doutrina kelseniana, está na
industrialização e, sobretudo, do síntese entre os princípios da liberdade e
surgimento da divisão social do trabalho, igualdade. São esses os dois postulados
tornou-se impossível que os ideais básicos que compõem e justificam
democráticos de participação direta do qualquer sistema político que possa ser
povo na formação da vontade do Estado considerado como democrático. Para
fossem realizados. O ideal da democracia Kelsen, o conceito de liberdade é essencial
direta, que estava presente na doutrina dos e constitui o fundamento básico. A ideia de
republicanos durante o período da igualdade é secundária, e serve apenas para
Revolução Francesa, não pode mais ser reforçar a noção de liberdade presente no
sustentado diante da complexidade dos sistema político. O indivíduo politicamente
sistemas estatais contemporâneos. Kelsen livre é aquele que pode participar da
percebe esse fato e afirma que o único criação da ordem estatal. Se todos querem
meio possível de realização da democracia ser livres, mas por outro lado se deve
nas sociedades contemporâneas seria a existir um poder para regular a vida social,
partir do parlamento. O parlamento seria o então é necessário que todos os indivíduos
único órgão nas democracias devam participar na formação da ordem

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


46

democrática. A liberdade é concebida na Com este trabalho foi possível


democracia como a autodeterminação conhecer o pensamento político de um dos
política do indivíduo. Os indivíduos ao maiores juristas do século passado. Hans
perceberem que são iguais, não admitem Kelsen partindo da influência de autores
que sejam comandados pela vontade de contratualistas, elabora uma doutrina
outro indivíduo semelhante. Desta forma, a democrática que compreende a liberdade
igualdade na natureza humana traz a como elemento essencial nos sistemas
necessidade de liberdade e de construção políticos onde há justiça. A liberdade
de uma ordem social onde nenhum homem social é o meio que a democracia deve
seja escravo de outro. Essa ideia seguir para que permita uma aproximação
apresentada por Kelsen é antiga e remonta da liberdade natural dos indivíduos. O que
a experiência política democrática diferencia o pensamento de Kelsen de
ateniense do século IV a.C. doutrinas políticas anteriores é a
O sistema democrático, enquanto conjugação dos princípios filosóficos da
sistema social, apesar de representar uma liberdade e da igualdade com a realidade
restrição à liberdade natural do indivíduo, possível nos Estados contemporâneos. A
ainda assim é o regime político que realidade possível, para o autor, é a
permite um maior grau de liberdade aos existência de um órgão colegiado criador
indivíduos. Como para Kelsen todo estado das normas sociais, que é criado e
de sociedade é inevitavelmente um estado controlado por indivíduos. Por outro lado,
onde existirá indivíduos não-livres, onde o a igualdade é para o autor a igualdade de
peso da vontade alheia ou da ordem social direitos, ou igualdade na liberdade, onde
mesmo não estando de acordo com a todos indivíduos devem possuir direitos e
vontade individual, deve valer liberdades públicas que o permitam
objetivamente e, portanto, ser obedecida participar na criação da ordem pública
por todos. O sistema democrático indiretamente.
apresenta-se como o melhor meio para
garantir pelo menos um grau de liberdade a
um número maior de indivíduos. O Referências Bibliográficas
princípio da maioria, que é adotado em
todas as democracias contemporâneas,
significa a efetivação dessa noção de que a
maior parte dos indivíduos deve ser livre.

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017


47

ARISTÓTELES. Política. 3. ed.


Brasília:Editora Universidade de Brasília,
1997.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e
democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988.
______. Norberto Bobbio: o
filósofo e a política: antologia. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2003.
KELSEN, Hans. A democracia.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______. O que é justiça? A justiça,
o direito e a política no espelho da ciência.
3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_______. O problema da justiça. 4.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_______. Teoria geral do direito e
do estado. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1990.

POLÉMOS | vol. 6, nº 12, 2017

Você também pode gostar