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JÜRGEN HABERMAS E A DEMOCRACIA DELIBERATIVA

Jürgen Habermas é um filósofo e sociólogo alemão vinculado à teoria crítica, corrente de


pensamento desenvolvida pela Escola de Frankfurt, e ao pragmatismo contemporâneo.
Habermas trabalhou como assistente de ensino do professor Theodor Adorno no Instituto
de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, o que o colocou como um representante
da chamada “segunda geração” da Escola de Frankfurt. Os estudos de Habermas centram-
se na ação comunicativa como forma de entender-se a ética e a política.

Habermas nasceu na cidade de Düsseldorf, Alemanha, em 18 de junho de 1929. Em 1954,


aos 25 anos de idade, doutorou-se em filosofia pela Universidade de Bonn, defendendo
uma tese intitulada O absoluto na história, sobre o filósofo alemão Friedrich Schelling.
Aos 27 anos, tornou-se assistente de ensino de Theodor Adorno, um dos principais
pensadores do século XX e um dos fundadores da Escola de Frankfurt. No Instituto de
Pesquisa Social da Escola de Frankfurt, Habermas filiou-se intelectualmente à teoria
crítica, linha teórica desenvolvida pelos pensadores frankfurtianos.

Seu trabalho na Universidade de Frankfurt perdurou até 1960. No início dessa década,
Habermas realizou uma pesquisa sobre o engajamento político dos estudantes. O filósofo
realizou várias pesquisas empíricas sobre temas políticos nessa época, o que o aproximou
das novas interpretações sobre o marxismo do século XX.
Também é considerado um filósofo pragmatista por suas teorias acerca da linguagem e
da necessidade de aplicação e aceitação prática de uma teoria. Em 1962, ele publicou o
seu primeiro livro, Mudança estrutural na esfera pública, e, em 1963, vem sua segunda
publicação, Teoria e prática.
No ano de 1968, Habermas vai para Nova Iorque lecionar na New School for Social
Research, tradicional instituição novaiorquina que teve ilustres personalidades no seu
quadro docente, como a filósofa judia alemã Hannah Arendt, o economista inglês John
Maynard Keynes e o antropólogo belga Claude-Lévi Strauss.
Em 1971, ele se transferiu para o Instituto Max Planck, na Alemanha, instituição na qual
foi diretor. Em 1983, passou a lecionar na Universidade Johann Wolfgang von Goethe,
em Frankfurt. Nessa instituição ele se aposentou em 1994. Apesar de sua aposentadoria,
o intelectual não parou de pesquisar, escrever e promover palestras. Com mais de 90 anos
de idade, ele continua ativo.
Ideias de Jürgen Habermas
A vasta obra do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas deixou um extenso legado
de ideias e teorias para a compreensão da política, da ética e da comunicação. A seguir,
listamos os principais conceitos, teorias e contribuições intelectuais do teórico:
Teoria da ação comunicativa
É embasada por duas perspectivas diferentes, o materialismo histórico dialético de Marx
e o funcionalismo de Max Weber, além da filosofia da linguagem e da teoria crítica da
Escola de Frankfurt. A ação comunicativa é uma complexa teoria de interpretação do
mundo e da socialização. A socialização é complexa, pois é um resultado dos processos
individuais que se colocam em conjunto.
Assim, começa-se um processo de fundamentação da ética que resulta das ações
individuais e do convencimento das pessoas com base na comunicação. A comunicação
é o mais fundamental processo humano na ótica de Habermas, pois é ela que permite a
interação e a instauração de processos éticos e de socialização. A ação comunicativa é um
processo de comunicação livre e racional, de extrema importância para a consolidação da
democracia.
Razão comunicativa
É a razão, ou a racionalidade, por trás da ação comunicativa. Ela surge como
uma proposta de emancipação do ser humano (influência da Escola de Frankfurt) em
oposição à razão instrumental, descrita por Adorno e Horkheimer (filósofos da Escola de
Frankfurt) como a lógica capitalista brutal que apenas utiliza a racionalidade como meio
para algo e não reflete sobre si mesma. Essa razão instrumental foi o tipo de processo
racional que desencadeou o holocausto judeu, e é descrita também como uma espécie de
lógica da barbárie pelos filósofos frankfurtianos.
Esfera pública
A esfera pública vai muito além do âmbito público estatal. Para Habermas, ela é
constituída por qualquer espaço de interação e discussão.
Sociedade
O conceito de sociedade de Habermas é uma teoria complexa que une a teoria dos
sistemas (uma teoria pragmática que defende a criação de múltiplas teorias com
aplicabilidade prática) confluindo com a ação comunicativa. Como já foi dito, a
comunicação é o primeiro e mais importante elemento da sociedade, por ser ela que
permite a sociabilidade e a racionalização.
DEMOCRACIA DELIBERATIVA

Jürgen Habermas, autor vinculado à tradição de pensamento da teoria crítica, pretendeu


reconstruir a gênese democrática das instituições políticas também a partir do núcleo
procedimental que as constitui. Contudo, para que o procedimento democrático pudesse
ser qualificado como fonte normativa da legitimidade democrática, sua interpretação não
poderia contar apenas com determinados traços institucionais. Habermas acredita que o
modelo dahlsiano acaba caracterizando o procedimento segundo elementos que compõem
o sistema político e que precisam assegurar as condições mínimas de igualdade política,
desde o debate público, passando pelas condições de um pluralismo cultural e de
condições econômicas e sociais favoráveis, até a análise das constituições e dos sistemas
eleitorais. E estes envolvem práticas, procedimentos, instituições e processos que são
operacionalizados em níveis diferentes do que aquele entendido por Habermas como o
núcleo procedimental da Democracia. A justificação da validade da Democracia depende,
antes, das condições de aceitabilidade racional que tal institucionalização torna possível.
Entende-se, assim, o processo de tomada de decisão coletiva como um arranjo
democraticamente justificável apenas se condiz com determinados princípios
normativamente exigentes baseados em liberdades políticas de expressão, associação,
direito de voz, formação da opinião e da vontade, entre outras coisas que os
procedimentos eleitorais e legislativos da Democracia requerem. O exercício da cidadania
ativa, em que o cidadão realiza amplamente sua autonomia, traça os contornos desse
processo de institucionalização e explicita o núcleo normativo da autodeterminação
política em que se apoia a aceitação do jogo democrático. A medida de legitimidade das
instituições do Estado democrático de direito reside na radicalização da própria
Democracia.
Entre as teorias democráticas contemporâneas, tornou-se conhecida a corrente chamada
de Democracia deliberativa, a qual, em contraste com a concepção pluralista dos grupos
de interesse e com o elitismo democrático, entende que a legitimidade das decisões e
acordos políticos se fundamenta nos processos de deliberação pública (MELO; WERLE,
2007). O modelo procedimental apresentado pela teoria de Habermas está vinculado a tal
concepção deliberativa da política. Se afirmarmos que uma instituição ou decisão política
é legítima, isso significa que é aceitável ou justificável e precisa ser avaliada segundo sua
validade. Para a concepção deliberativa, legitimidade democrática requer legitimidade
deliberativa, ou seja, determinados procedimentos democráticos ou determinadas formas
de deliberação pública constituem uma condição necessária de legitimidade de um
sistema político: a legitimidade de uma ordem política é produzida a partir da realização
dos processos deliberativos da formação política da opinião e da vontade (HABERMAS,
1997). A legitimidade do poder e dos princípios e normas que regulam a vida coletiva
depende da aceitação ou da recusa das razões que são oferecidas para justificá-la: todos
os concernidos devem poder oferecer razões que possam20 ser publicamente
reconhecidas por cidadãos livres e iguais. Por representar uma interpretação normativa


Texto extraído de: RAMOS, F. C.; MELO, R.; FRATESCHI, Y. Manual de Filosofia Política. São
Paulo: Editora Saraiva, 2017. 3ª edição.
de legitimidade, o modelo deliberativo evoca os ideais de uma legislação racional, da
participação política e da autonomia pública baseados no uso público da razão de seus
cidadãos (MELO, 2011). Mas, antes de apresentar as particularidades do modelo
procedimental habermasiano diante de outras concepções normativas, é preciso ressaltar
algumas diferenças fundamentais em relação às concepções realistas anteriormente
discutidas no que diz respeito a seus pressupostos metodológicos.
O derrotismo normativo, no qual desembocam as várias versões de uma sociologia
política, parece ser menos fruto de evidências concretas do que do “uso de estratégias
conceituais falsas” (HABERMAS, 1997, p. 58). O pretenso realismo normativamente
neutro sugere, por um lado, que somente podem ser descritos racionalmente os
comportamentos de indivíduos e grupos que agem estrategicamente; por outro lado, os
realistas parecem selecionar de antemão o campo dos processos passíveis de serem
descritos racionalmente, criando a falsa correlação necessária entre realidade política e
ações estratégicas. Importantes estudos mostraram que escolhas racionalmente
ponderadas em vista do sucesso podem se mostrar equivocadas em relação àquilo que os
indivíduos pensaram obter. Consequentemente, o que os indivíduos preferem e procuram
otimizar em suas ações termina sendo um fundamento frágil para que o padrão utilitarista
da escolha racional possa se constituir como modelo mais adequado da racionalidade
política. Diferentemente do consumidor que faz sua escolha na esfera do mercado e
procura retirar vantagens imediatas e em curto prazo de suas ações, na esfera da política
os efeitos são difusos e dispersos. A política real envolve, assim, um tipo de atividade
pública que não se reduz às escolhas privadas dos consumidores no mercado (ELSTER,
2007). Os cidadãos devem ser persuadidos a adotar determinada política porque não
podem simplesmente escolher de acordo com os efeitos imediatos que perseguem. Ao
abarcarmos os processos em sua dinâmica complexa, as escolhas e preferências não
seriam, em grande medida, transformadas no processo político?
Ao lado de uma ação estratégica, dirigida pelas preferências e voltada ao sucesso,
teríamos de pressupor também uma ação regulada por normas, já que ninguém
conseguiria utilizar estrategicamente normas sem supor o reconhecimento intersubjetivo
delas. E tal pressuposição precederia os próprios comportamentos estratégicos tanto de
um ponto de vista lógico como sociológico: as condições intersubjetivas de aceitabilidade
de normas nos processos políticos seriam anteriores às (e determinantes das) orientações
maximizadoras e egoístas. Nesse sentido, os critérios de validade com que se opera o jogo
político acabam introduzindo, na visão de Habermas, uma nova concepção normativa
pressuposta para a coordenação das ações. Os partidos poderiam aderir a um acordo
negociado com vistas à obtenção de seus interesses específicos; porém, todo acordo
produzido argumentativamente – em ações estratégicas que se entrecruzam nas barganhas
– tem de apoiar-se em argumentos capazes de convencer os partidos. Segundo o autor, as
estratégias de negociação e barganha estão atreladas aos mecanismos equitativos de
formação da opinião e de tomada de decisão, e o que assegura a formação do acordo seria
o procedimento democrático em que as negociações se realizam.
Os próprios modelos realistas permitem a localização de pretensões normativas que
perpassam suas descrições empiricamente fundamentadas. No entanto, tais pretensões
normativas precisam ser reconstruídas por um modelo mais abrangente que seja capaz de
apontar a parcialidade do realismo político, bem como seus pressupostos não
explicitados. Habermas não precisa excluir da compreensão dos processos políticos
estudados a dimensão estratégica que os constitui, porquanto as ações voltadas ao sucesso
descrevem uma parte bem considerável do jogo político. Mas, além disso, a concepção
deliberativa de política permite reconhecer que as idealizações de equidade do jogo e de
legitimidade das decisões estão presentes nas disputas estratégicas guiadas por interesses.
“Não pretendo desdobrar essa questão”, comenta Habermas,
“[...] seguindo o modelo de uma contraposição entre ideal e
realidade, pois o conteúdo normativo [...] está¡ inserido
parcialmente na facticidade social dos próprios processos
políticos observáveis” (HABERMAS, 1997, p. 9).
A separação entre ser e dever-ser é reposta nos termos de uma tensão entre facticidade e
validade, pois de um ponto de vista apenas empírico não seria possível reconstruir as
razões que os cidadãos poderiam assumir para a manutenção das regras do jogo
democrático. Por haver, assim, um sentido normativo presente em todas as práticas e
compreensões intuitivas de Democracia, mesmo naquelas privilegiadas pelas abordagens
realistas, o jogo político, quando pretende ser descrito empiricamente, não poderia ser
compreendido de modo adequado sem a consideração do ponto de vista da legitimidade.
A delineação normativa de uma teoria da Democracia não significa então que se tenha de
descartar a perspectiva empirista. Pretende-se mostrar que as práticas existentes nas
Democracias, na verdade, podem ser legitimadas por uma visão empirista que leva em
consideração as pretensões normativas dos próprios participantes no jogo democrático.
Habermas distingue, assim, teorias empiristas que assumem apenas a perspectiva do
observador daquelas normativas que consideram ainda a perspectiva dos participantes: no
primeiro caso, é desconsiderada a necessidade de legitimação a ser preenchida pelas
condições de aceitabilidade racional; no segundo caso, trata-se de reconstruir os processos
de justificação pública por parte dos cidadãos e de seus representantes. Nesse sentido, se
as próprias abordagens empiristas não conseguem evitar as pretensões de justificação das
regras do jogo democrático, e se ainda o problema da relação entre ideal e realidade, ou
melhor, entre norma e facticidade não foi solucionado pelas descrições sociológicas,
então nos resta somente adotar metodologicamente a perspectiva dos participantes e
retornar às concepções normativas de Democracia para reconstruirmos os processos
responsáveis por produzirem a força legitimadora da gênese democrática do sistema
político.
Habermas distingue seu modelo procedimental de política deliberativa de outras duas
concepções normativas amplamente difundidas em nossa cultura política, a saber, as
concepções liberal e republicana de Democracia (HABERMAS, 2002). A diferença
fundamental entre tais modelos reside na compreensão implícita que cada um deles tem
sobre o papel do processo democrático. Na concepção liberal, a Democracia cumpre a
função de programar o Estado para a realização dos interesses individuais dos cidadãos.
Privilegia-se aqui o autointeresse, a linguagem dos direitos subjetivos e a defesa da
autonomia privada. O primado da participação ativa dos membros da sociedade na vida
política, por outro lado, constitui um dos principais aspectos do modelo republicano. A
condição da cidadania não é determinada por liberdades negativas que podem ser
reivindicadas pelos cidadãos como pessoas privadas. Concebe-se a política antes como
uma forma privilegiada para a realização do bem comum e para o reconhecimento mútuo
entre cidadãos que, ao assumirem o papel de membros de uma mesma comunidade
política, realizam coletivamente seus objetivos atrelados a um contexto de vida ético.
Habermas acredita poder assimilar com sua teoria do discurso aspectos comuns dos outros
modelos normativos e integrá-los no conceito de um procedimento de deliberação e de
tomada de decisão. Ou seja, liberais e republicanos, cada qual a seu modo, explicam por
que princípios e normas considerados democráticos são aqueles que poderiam merecer o
assentimento de todos os cidadãos. Habermas atribui ao processo democrático conotações
normativas mais fortes do que aquelas assumidas pelo modelo liberal; contudo, tais
conotações seriam mais fracas do que o modelo republicano pressuporia. O procedimento
democrático carrega o fardo da legitimação porque diz respeito à institucionalização das
práticas de aceitabilidade racional condensadas nos processos de deliberação pública, isto
é, as instituições precisam estar estruturadas de modo que o poder político retire sua
legitimidade dos processos de deliberação coletiva conduzidos de modo racional e
equitativo entre cidadãos livres e iguais. E tais processos, reconstruídos por Habermas
com o auxílio de uma teoria do discurso, passam a ser compreendidos como a
institucionalização de discursos e negociações capazes de fundamentar a suposição de
racionalidade para todas as tomadas de decisão realizadas conforme o procedimento. “A
política deliberativa”, afirma o autor,

“[...] obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva de uma


formação da opinião e da vontade, a qual preenche sua função
social e integradora graças à expectativa de uma qualidade
racional de seus resultados. Por isso, o nível discursivo do debate
público constitui a variável mais importante” (HABERMAS,
1997, p. 28).

Para reconstruir os procedimentos deliberativos de legitimidade, diz Habermas, é preciso


lançar mão da razão prática em toda a sua extensão. As formas de comunicação que
garantem o caráter discursivo da prática de autodeterminação podem ser elaboradas a
partir dos diferentes questionamentos que surgem no processo de deliberação e que
estabelecem um nexo entre discursos pragmáticos, éticos e morais. Discursos pragmáticos
surgem quando temos de procurar os meios mais apropriados para realizarmos
preferências e fins já previamente estabelecidos. Eles representam aquele tipo de
racionalidade utilitária predominante no modelo downsiano. Discursos éticos surgem
quando uma comunidade política coloca em primeiro plano questões que envolvem os
ideais e valores que orientam seus projetos comuns de vida. Discursos morais, por fim,
surgem quando examinamos a possibilidade de regular nossa convivência no interesse
simétrico de todos. Nota-se, assim, a preocupação do modelo deliberativo em ser mais
inclusivo na sua compreensão dos processos políticos de formação da vontade do que
deixam ver os modelos anteriormente descritos. Os discursos práticos incluem diferentes
formas de justificação na medida em que não anulam nem a dimensão da ação estratégica
nem questões de valores em que a argumentação racional se volta à produção de um
acordo acerca do bem comum. A legitimidade dos acordos e compromissos políticos, no
entanto, fica subordinada necessariamente às condições e aos procedimentos de formação
da opinião e da vontade política, cuja reconstrução é condensada na formulação do
princípio do discurso: “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos
poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”
(HABERMAS, 1997, p. 142).
Há ainda outro problema crucial que o modelo deliberativo pretende enfrentar. Diante do
fato do pluralismo, a legitimidade das instituições democráticas precisa encontrar um
fundamento que assegure a imparcialidade das justificações normativas, caso contrário as
decisões coletivas não seriam igualitárias em relação aos valores e interesses de todos os
cidadãos. Esse pressuposto de imparcialidade somente pode ser preenchido se tais
decisões, em princípio, forem abertas a todos em processos de deliberação pública. A
compreensão procedimental da política deliberativa busca reconstruir as condições justas
e equitativas implícitas no processo de deliberação, e o princípio do discurso especifica
um procedimento de aceitabilidade racional de acordo com o qual o reconhecimento
intersubjetivo das normas possa valer como uma forte exigência normativa de sua
respectiva validade. A formação de um acordo política entre cidadãos que endossam
visões de mundo, concepções de bem e interesses tão diferentes pressupõe as condições
imparciais para que se possa levar a cabo o processo de deliberação. Segundo Seyla
Benhabib, um dos mais importantes nomes entre os democratas deliberativos, o processo
de deliberação sustenta a pretensão de validade do acordo alcançado com as seguintes
características:

“1) a participação na deliberação é regulada por normas de


igualdade e simetria; todos têm a mesma chance para iniciar atos
de fala, questionar, interrogar, e abrir o debate; 2) todos têm o
direito de questionar os tópicos fixados no diálogo; 3) e todos têm
o direito de introduzir argumentos reflexivos sobre as regras do
procedimento discursivo e o modo pelo qual são aplicadas ou
conduzidas” (BENHABIB, 2007, p. 51).

É necessário assegurar relações intersubjetivas não baseadas na coerção, uma vez que só
serão consideradas válidas aquelas normas que puderam ser aceitas por todos os
concernidos enquanto participam da deliberação. Não há regras priorizando a matéria a
ser considerada ou limitando o campo de questões, muito menos uma especificação de
quem deve poder participar (seja a identidade do indivíduo ou do grupo), e por isso
funcionam como constrições para a preservação da igualdade de condições e de inclusão.
O procedimento explicita também a necessidade de os indivíduos poderem rever suas
posições e aprender com as posições defendidas pelos outros. Nesse sentido, o modelo
deliberativo é compreendido como um processo de aprendizado para a formação da
opinião e da vontade, sublinhando não a determinação da vontade, mas sim a forma
reflexiva de construção intersubjetiva de um juízo político. Por essa razão, os processos
deliberativos seriam tão importantes para a racionalidade dos processos de tomada de
decisão coletiva: por um lado, não pressupomos que o indivíduo já possui uma ordem
coerente de preferências ao adentrar a arena política; por outro lado, entendemos que a
racionalidade que confere legitimidade à formação da vontade perpassa essencialmente
processos deliberativos que comunicam informação. Novamente segundo Benhabib, “a
informação nova é comunicada porque:

“1) nenhum indivíduo singular pode antecipar e prever toda a


variedade de perspectivas por meio das quais questões de ética e
de política serão percebidas pelos diferentes indivíduos; e 2)
nenhum indivíduo singular pode ter toda a informação
considerada relevante para uma certa decisão que afeta a todos. A
deliberação é um procedimento para ser informado”
(BENHABIB, 2007, p. 53).

Uma proposição (que estaria ligada a uma perspectiva ou informação) pode ser aceita
pelo público a que está¡ sendo endereçada em determinado momento. Claro que se caso
alguém não compartilhar dessa perspectiva, então não será convencido pelos argumentos
propostos. Mesmo assim, quando as perspectivas de cada um dos indivíduos se tornam
públicas, eles podem modificar suas opiniões de maneira mais reflexiva. A aceitabilidade
racional é condicionada pelo processo de troca de informações e argumentos e na
articulação das razões no espaço público. Por isso, durante a deliberação, os indivíduos
adquirem novas perspectivas não apenas com respeito às soluções posáveis, mas,
também, com respeito a suas próprias preferências. A deliberação que se passa
publicamente possibilita a cada um pesar seus próprios argumentos, bem como os
argumentos dos outros, ampliando a informação dos participantes e capacitando-os, no
final das contas, a descobrir suas próprias preferências. Se a legitimidade política requer
uma multiplicidade de pontos de vista e/ou argumentos, a deliberação tenderá¡ a aumentar
a informação e a localizar as preferências dos indivíduos. E na medida em que o indivíduo
escuta os argumentos formulados pelos outros, pode também alargar seu próprio ponto
de vista e se tornar ciente de coisas que não havia percebido no início. Os argumentos não
são verdadeiros ou falsos em si mesmos, mas apenas mais fortes ou mais fracos para
convencer os envolvidos pela força da argumentação (MANIN, 2007).
A Democracia deliberativa afirma, assim, que a racionalidade da deliberação é a base da
legitimação dos processos democráticos. Seu propósito consiste na formação ampla da
vontade política, do juízo sobre questões políticas fundamentais e da realização do ideal
de autodeterminação pública dos cidadãos. A compreensão procedimental da deliberação
não pode ser restringida nem à persecução individual de interesses ou aos discursos ético-
políticos, nem ao sistema político-estatal e ao seu modo de operacionalização, mas sim
está ligada aos procedimentos imparciais e pressupostos comunicativos da formação
democrática da opinião e da vontade. Por essa razão, o princípio de legitimidade
democrática consiste na institucionalização de discursos e negociações que, com o auxílio
de formas de comunicação, devem poder fundamentar a suposição de racionalidade para
que os cidadãos aceitem ou recusem as regras do jogo democrático.
Bibliografia

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