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Magee
por Leonildo Trombela Júnior / Filosofia, revista / mai 2014
Hegel não é um filósofo. Ele não é amante ou buscador da verdade, pois ele acredita que
já a encontrou. Hegel escreve no prefácio da Fenomenologia do Espírito: “Colaborar
para que a filosofia se aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de chamar-
se amor ao saber para ser saber efetivo – é isto o que me proponho”. No fim da
Fenomenologia Hegel diz ter chegado ao Conhecimento Absoluto, que ele identifica
como sabedoria.
Há, além disso, numerosos elementos herméticos nos escritos de Hegel. Eles incluem,
de modo geral, um subtexto maçônico de “iniciação mística” na Fenomenologia do
Espírito; um subtexto “böhmiano” no famoso prefácio da Fenomenologia; uma
influência cabalística böhmiana - lulliana na Lógica; elementos alquímicos-
paracelsianos na Filosofia da Natureza; uma influência do milenarismo cabalístico e
joaquimita na doutrina do Espírito Objetivo e da teoria da história do mundo hegelianas;
imagens alquímicas e rosacrucianas na Filosofia do Direto; uma influência da tradição
hermética da pansofia no sistema hegeliano como um todo; um endosso da crença
hermética na philosophia perennis; e o uso de formas simbólicas herméticas perenes
(como o triângulo, o círculo e o quadrado) como recursos estruturais e arquitetônicos.
Há quatro grandes períodos durante a vida de Hegel aos quais ele parece ter estado sob
forte influência do hermetismo, ou pelo menos buscado ativamente esse hermetismo.
Primeiro na sua juventude em Stuttgart, que foi de 1770 a 1788. Conforme discutirei
mais detalhadamente no capítulo 2, durante esse período, Württemberg era um grande
centro de interesse hermético, dado que muitos dos movimentos pietistas influenciados
pelo böhmianismo e rosacrucianismo (Württemberg foi o centro espiritual do
movimento Rosa-cruz). Os principais expoentes do pietismo – J. A. Bengel e em
particular F. C. Oetinger – foram fortemente influenciados pelo misticismo alemão, pela
teosofia böhmiana e pela cabala.
Hegel tem de ser entendido nos termos da tradição teosófica pietista de Württemberg –
ele não pode ser simplesmente visto como crítico de Kant. Com efeito, Hegel, conforme
argumentarei, sempre foi um crítico de Kant e nunca um admirador sincero,
precisamente por que ele foi logo cedo “marcado” pela tradição da pansofia, que estava
muito viva em Württemberg e pelo ideal de Oetinger da verdade como um Todo (v.
capítulo 2). Ele não pôde aceitar o ceticismo de Kant, tampouco pôde Schelling– e por
razões idênticas. Ainda assim, ambos reconheceram a força do pensamento de Kant e
trabalharam duro para partirem das premissas do pensador de Konigsberg até chegarem
às suas próprias conclusões com o objetivo de conseguirem fugir do ceticismo a
qualquer custo.Tudo em nome do ideal especulativo de suas juventudes.
De 1793 até 1801, Hegel trabalhou como tutor privado: primeiro em Berne e depois em
Frankfurt. Conforme discutirei no capítulo 3, o biógrafo de Hegel, Karl Rosenkranz,
referiu-se a essa época como a “fase teosófica” do desenvolvimento de Hegel. Nessa
época, Hegel parece ter se tornado familiarizado com as obras de Böhme, assim como
as de Eckhart e Johannes Tauler. Também durante esse período, Hegel se envolveu com
círculos maçônicos.
Em Jena (1801-1807), o interesse de Hegel pela teosofia continuou. Ele realizou longas
conferências de tom aprobatório sobre Böhme e Bruno. Ele compôs vários textos – que
só chegaram a nós de maneira fragmentada – empregando linguagem e simbolismo
herméticos (v. capítulos 3 e 4). Suas conferências sobre filosofia da natureza nessa
época refletem um duradouro interesse em alquimia. É provável que Schelling, que fora
à Jena pouco antes, tenha introduzido Hegel ao seu círculo de amigos, que incluía uma
porção de românticos fortemente interessados no hermetismo. O próprio Schelling era
um ávido leitor de Böhme e Oetinger e provavelmente encorajou esse interesse de
Hegel.
O último período “hermético” da vida de Hegel foi em Berlim, indo de 1818 até a sua
morte em 14 de novembro de 1831. Isso vai contra o que se espera. Pode-se supor que o
hermetismo de Hegel tenha sido uma mera aberração de juventude superada pelo
“arquirracionalista” conforme ele foi amadurecendo. Supreendentemente, parece que é
precisamente o contrário. Em Berlim, Hegel formou uma amizade com Franz von
Baader, o principal místico e ocultista da época. Juntos eles estudaram Meister Eckhart.
O prefácio à edição de 1827 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio
cita proeminentemente Böhme e Baader. Sua edição revisada de 1832 de A Ciência da
Lógica corrige uma passagem para poder incluir uma referência a Böhme. Seu prefácio
à edição de 1821 da Filosofia do Direito inclui imagens alquímicas e rosacrucianas. Em
suas Conferências sobre a Filosofia da Religião de 1831 vê-se a influência do místico
Joaquim de Fiore, assim como certas estruturas correspondentes ao pensamento de
Böhme. Em suma, todas as evidências indicam que, no último período da sua vida, o
interesse de Hegel pelas tradições mística e hermética se intensificou, além de ele ter se
tornado mais ousado ao se alinhar publicamente a movimentos e pensadores herméticos.
Outras obras de autores alemães que lidam com a relação do misticismo ou hermetismo
com o idealismo alemão e Hegel são Meister Eckhart der Vater der Deutschen
Spekulation. Ein Beitrag zu einer Geschichte der deutschen Theologie und Philosophie
der mittleren Zeit (1864) de Josef Back; Geschichte der Entdeckung der deutschen
Mystiker, Eckhart, Tauler u. Seuseim 19. Jahrhundert (1931) de Gottfried Fischer; Die
idealistische Philosophie und das Christentum (1926) de Emanuel Hirsch; Philosophie
und Theologie im Spätidealismus, Forschungen zur Auseinandersetzung von
Christentum und idealistischer Philosophie im 19.Jahrhundert (1919) e Von Jakob
Boehme zu Schelling. Zur Metaphysik des Gottesproblems (1927) de Fritz Leese; Die
Religion des Deutschen Idealismus und ihr Ende (1923) de Wilhelm Lütgert e Die
Anfange der Philosophie des deutschen Idealismus (1930) de Heinrich Maier. Há
também um considerável número de obras holandesas tratando do assunto: Schelling,
Hegel, Fechner en de nieuwere theosophic (1910) de G. J. R J. Bolland; Het mystieke
karakter van Hegel’s logica de J. d’Aulnis de Bourrouill’s e Hegeliaansch-theosofische
opstellen (1913) de H. W. Mook.
As afirmações de Voegelin são ímpares, na medida em que ele não diz simplesmente
que Hegel foi influenciado pela tradição hermética. Ele afirma que Hegel era parte da
tradição hermética e não pode ser bem compreendido como alguém fora dela.
Infelizmente Voegelin nunca desenvolveu adequadamente sua tese. Ele nunca
pronunciou em detalhes de que forma Hegel era um pensador hermético. Voegelin,
contudo, encorajou outros estudiosos a desenvolver sua tese de maneira mais
sistemática (e sóbria). David Walsh, por exemplo, escreveu uma importante tese de
doutorado intitulada The Esoteric Origins of Modern Ideological Thought: Boehme and
Hegel (1978) onde ele faz fortes colocações acerta da dívida que Hegel tem com
Böhme10. Gerald Hanratty também publicou um extenso ensaio divido em duas partes
intitulado “Hegel and the Gnostic Tradition” [Hegel e a tradição gnóstica](1984-87).
Até a presente obra, apesar de toda essa atividade acadêmica, ainda não houve um
escrito sistematizado, do tamanho de um livro, sobre Hegel como pensador hermético
que levasse em conta não apenas sua evolução intelectual, mas também todo o seu
sistema já amadurecido.11
Considero esta obra não apenas uma continuação da tradição de estudos que citei acima,
mas também uma contribuição para o contínuo projeto da história das ideias cujos
pioneiros foram Eric Voegelin, Frances Yates, Antoine Faivre, Richard Popkin, Allan
Debus, Betty Jo Teeter Dobbs, Paul Oskar Kristeller, D. P. Walker, Stephen McKnight
e Alison Coudert (v. bibliografia). Esses estudiosos argumentam que o hermetismo
influenciou vários dos principais pensadores racionalistas, tais como Bacon, Descartes,
Spinoza, Leibniz e Newton, e desempenhou até então um papel pouco apreciado na
formação das ideias centrais e ambições da filosofia moderna e das ciências,
particularmente o projeto de investigação científica progressiva e do domínio
tecnológico da natureza.12
É certamente uma das grandes ironias da história que o ideal hermético do homem como
mago – que atinge o conhecimento total e empunha poderes divinos a fim de trazer a
perfeição ao mundo – tenha sido o protótipo do cientista moderno. Ainda, conforme
escreveu Gerald Hanratty, “a disseminação do apelo às técnicas mágicas e alquímicas
inspiraram uma nova confiança nos poderes operacionais do homem. Em contraste com
as atitudes passivas e contemplativas que geralmente prevaleciam durante os primeiros
séculos, os alquimistas e magos da Renascença afirmaram seus domínios sobre todos os
níveis do ser”. O hermetismo substitui o amor à sabedoria pelo desejo de poder.
Conforme veremos, o sistema hegeliano é a derradeira expressão dessa busca pelo
controle.
O que é o hermetismo?
Se Hegel pode ou não ser entendido como “hermético” depende de como é definido o
hermetismo. Na verdade, o hermetismo é difícil de se definir rigorosamente. Seus
adeptos tendem a compartilhar certos interesses – frequentemente classificados como
“ocultos” ou “esotéricos” – que são mantidos juntos apenas por familiaridade. Em parte,
meu argumento para o hermetismo de Hegel reside em demonstrar que os interesses de
Hegel coincidem com a curiosa mistura de interesses típicas dos herméticos. Dentre
esses interesses podemos incluir alquimia, cabala, mesmerismo, percepção extra-
sensorial, espiritualismo, radiestesia, escatologia, prisca teologia, philosophia perennis,
lullismo, paracelsimo, joaquinismo, rosacrucianismo, maçonaria, misticismo
eckhartiano, sistemas secretos de simbolismo de “correspondências”, vitalismo e
“simpatias cósmicas”.13
Há, entretanto, um aspecto essencial que tomarei como definitivo do hermetismo. Ernest
Lee Tuveson, na obra The Avatars of Thrice Greatest Hermes: An Approach to
Romanticism sugere que o hermetismo constitui uma posição intermediária entre as
concepções do deus panteísta e do Deus judaico-cristão. De acordo com a tradição de
pensamento judaico-cristã, Deus transcende completamente a criação e está distante
dela14. Além disso, Deus é totalmente autossuficiente e, portanto, não precisava ter
criado o mundo, de modo que Ele não teria perdido nada se não o houvesse criado.
Desta maneira, o ato da criação é essencialmente gratuito e livre de qualquer interesse
próprio. Deus cria da pura abundância, não da necessidade. Essa doutrina se mostrou
insatisfatória – ou até mesmo perturbadora – para muitos, pois segundo esses que se
perturbam, isso torna a criação arbitrária e absurda. O panteísmo, ao contrário, envolve
totalmente o divino no mundo, de modo que tudo se torna Deus, até mesmo a lama, os
pelos e o pó, de maneira que o divino é abstraído da sua exaltação e sublimidade. Sendo
assim, o panteísmo é igualmente insatisfatório.
Mas não para por aí: os herméticos não só defendem que Deus requer uma criação,
como também tornam uma criatura específica, o homem, um agente crucial na auto-
atualização de Deus. O hermetismo defende que o homem pode conhecer Deus, e que o
conhecimento do homem sobre Deus é necessário para a completude deste mesmo
Deus. Considere as palavras do Corpus Hermeticum X: “Deus, pois, não ignora a
humanidade; ao contrário, ele reconhece-se nela completamente e deseja ser
reconhecido. Para a humanidade, essa é a única libertação: o conhecimento de Deus. É a
ascensão ao Olimpo”19. No Corpus Hermeticum XI pergunta-se “Quem é mais visível
que Deus? Eis por que ele fez todas as coisas: para que por meio de todas elas você
possa olhar para ele”20. Como observa Garth Fowden, o que Deus ganha da criação é o
reconhecimento: “A contemplação humana de Deus é de alguma maneira um processo
de mão dupla. Não apenas o Homem deseja conhecer Deus, mas Deus também deseja
ser conhecido pela mais gloriosa das Suas criações: o Homem”21. Resumidamente, é o
objetivo do homem conquistar o conhecimento de Deus (ou “a sabedoria de Deus”,
teosofia). Ao fazer isso, o homem atende à própria necessidade de Deus de ser
reconhecido. A sabedoria humana de Deus se torna o conhecimento de Deus de si
mesmo. Desta maneira, a necessidade pela qual o cosmo é criado é a necessidade do
autoconhecimento, atingido por meio do reconhecimento. Variações dessa doutrina
podem ser encontradas ao longo da tradição hermética.
Com efeito, ele é frequentemente descrito como um místico; de fato, até ele mesmo se
descrevia como um (v. capítulo 4). Mas o misticismo é um conceito elástico que se
insere em várias ideias radicalmente diferentes; Todas as formas de misticismo buscam
de alguma maneira o conhecimento, a experiência ou a unidade com o divino. Se nos
perguntarmos que tipo de místico Hegel é, a resposta será: um hermético. O hermetismo
é frequentemente confundido com outra forma de misticismo: o gnosticismo
(especialmente nos recentes estudos sobre Hegel)23. Tanto o gnosticismo quanto o
hermetismo acreditam que uma “centelha” divina está presente no homem, e que ele
pode vir a conhecer Deus. Entretanto, o gnosticismo dá uma abordagem absolutamente
negativa da criação. Ele não considera a criação parte do ser de Deus ou como algo que
dá a “completude” a Deus, tampouco considera que Deus de alguma forma precise do
homem para conhecê-Lo. O hermetismo também é frequentemente confundido com o
neoplatonismo. Como os herméticos, Plotino considera que o cosmos é um processo
circular em que o Um emana e tudo a Ele retorna. Diferente dos herméticos, Plotino não
considera que o Um é completo pela contemplação que o homem faz Dele. (Séculos
depois, porém, o neoplatonismo de Proclo e da Renascença foi influenciado pelo
hermetismo.)
Outro paralelo entre o hermetismo e Hegel é o processo de iniciação pelo qual a porção
intuitiva do intelecto é treinada para ver a Razão inerente ao mundo. Como observa
Fowden, a iniciação hermética parece dividir-se em duas partes: uma lida com o
autoconhecimento e a outra com o conhecimento de Deus24. Pode ser facilmente
mostrado no simples nível teórico que essas duas estão intimamente ligadas, segundo os
herméticos. Conhecer verdadeiramente a si é estar apto a fazer um discurso completo
sobre as condições do próprio ser, e isso envolve falar sobre Deus e todo o Seu cosmos.
Como coloca Pico della Mirandola, “aquele que se conhece, conhece todas as coisas em
si”25. Além disso, no Oriente Próximo era comum retratar Deus como um ser pairando
estranhamente entre a transcendência e a imanência. Nesses termos, a conquista da
iluminação envolvia de alguma maneira ver o divino em si mesmo, tornando-se também
o conhecedor neste mesmo ato [um ser] divino.
Nós realmente não sabemos se o culto de Hermes empregou os textos herméticos como
escritos sagrados. Sabemos pouco ou quase nada dos seus ritos de iniciação e de como
eles viveram. Contudo, podemos dizer, por exemplo, que a iniciação hermética se difere
da iniciação aos mistérios eleusinos da Grécia Clássica. É fato também que pouco
sabemos sobre o que acontecia em Elêusis, mas parece ser o caso que a iluminação lá
consistia na participação em algum tipo de experiência arrebatadora cuja intenção era
mudar permanentemente o iniciado26. Não sabemos qual era essa experiência, mas
sabemos que ela podia acontecer com jovens e velhos, ricos e pobres, educados e
analfabetos. Não é esse o caso quando falamos da tradição hermética. A salvação para
os herméticos se dá, conforme vimos, por meio da gnosis, ou seja, pelo conhecimento.
Isso pode ser atingido somente por meio do trabalho duro e, portanto, só alguns
conseguem. Hermes é citado no Corpus Hermeticum XVI afirmando que seus
ensinamentos “mantêm oculto o significado das palavras”, escondido do discernimento
daqueles que não merecem.
Seria um erro, contudo, tratar a iniciação hermética como algo puramente intelectual. A
iluminação não ocorre ao simplesmente aprender um conjunto de doutrinas. O iniciado
não deve apenas conhecer a doutrina, mas também deve ter a experiência real da
verdade da doutrina. Ele deve ser cuidadosamente guiado à iluminação; com efeito, ele
deve explorar os becos escuros que prometem a iluminação, mas não a dão. Apenas
dessa maneira, irá a verdadeira doutrina significar algo; apenas dessa maneira mudará
de fato a vida do iniciado. Fowden afirma que a iniciação hermética é encarada como
“uma experiência verdadeira que expande todas as capacidades daqueles que embarcam
nela” e cita o Corpus Hermeticum IV, que diz que “é um caminho extremamente
tortuoso abandonar aquilo a que se está acostumado e se possui agora para e retraçar os
próprios passos rumo às antigas coisas primordiais”27. Veremos no capítulo 4 que Hegel
preserva tanto a importância intelectual quanto a emocional dessa concepção hermética
de iniciação.
A iluminação, tanto para os autores da Hermetica quanto para Hegel, não é apenas um
evento intelectual: espera-se que ela mude a vida do iluminado. A filosofia, para Hegel,
trata-se de ser vivenciada28. Em suma, o homem que atinge a Selbstbewusstsein é o
homem que se torna selbstbewusst: confiante, auto-atualizado e não mais um ser
humano ordinário. Klaus Vondung escreve que “O hermético não precisa escapar do
mundo para se salvar. Ele quer adquirir conhecimento do mundo para poder expandir a
si mesmo e utilizar esse conhecimento para penetrar no eu divino. O hermetismo é uma
gnosis positiva, por assim dizer, devota ao mundo29. Saber tudo é de alguma maneira ter
controle sobre tudo. É isso que eu chamo do ideal do homem como mago, concepção
única da Hermetica. Veja, por exemplo, o Corpus Hermeticum IV: “Todos aqueles que
ouviram a proclamação e se imergiram no espírito [nous] participaram do conhecimento
e se tornaram perfeitos [ou “completos”, teleioi], pois receberam espírito. Mas aqueles
que perderam o ponto de proclamação são pessoas de razão [ou “discurso”, logikon]
porque não receberam o [dom do] espírito e também não conhecem o propósito ou os
agentes da sua ida ao nous”30. Em outras palavras, os homens de completo
autoconhecimento que conhecem até mesmo o “propósito ou os agentes do seu devir”
são seres humanos perfeitos. Se Hegel não acreditava que o homem podia literalmente
se tornar Deus, ele certamente acreditava que o homem sábio era daimônico: um
participante muito mais do que meramente humano na vida divina.
No Corpus Hermeticum, encontramos uma “posição de ligação” entre o ocultismo
egípcio e o hermetismo moderno de Hegel e outros. Em vez de conceber as palavras
como portadoras de poderes ocultos, elas passaram a ser vistas como portadoras de um
tipo de capacitação existencial. O ideal da teosofia hermética se torna a formulação de
um “discurso completo” (teleeis logos, “discurso perfeito” ou talvez “discurso
enciclopédico”, que significa, evidentemente, discurso “circular”). Quando adquirido, o
discurso completo que trata do todo da realidade, transformará e capacitará a vida do
iluminado. Assim escreve Hegel em um fragmento preservado por Rosenkranz:
Outro paralelo entre o hermetismo e Hegel é a doutrina das relações internas. Para os
herméticos, o cosmos não está frouxamente conectado ou, para usar uma linguagem
hegeliana, disposto em um conjunto externamente relacionado de particulares. Ao
contrário, segundo essa doutrina, tudo está internamente conectado, uma coisa
entrelaçada com a outra. Mesmo que o cosmos possa vir a estar hierarquicamente
disposto, há forças que se sobrepõe a isso e unificam todos os níveis. Forças divinas
conhecidas ora por “energia” e ora por “luz” percorrem o todo32. Este princípio está
expresso mais claramente na Tábua Esmeraldina de Hermes Trimegistus, que logo na
segunda linha tem a frase “O que está embaixo é como o que está em cima”. Essa
máxima se tornou o dogma central do ocultismo ocidental, dado que ele formou a base
para uma doutrina da unidade do cosmos por meio de simpatias e correspondências
entre seus vários níveis. A implicação mais importante dessa doutrina é a ideia de que o
homem é o microcosmo onde o todo do macrocosmo é refletido. O autoconhecimento,
portanto, leva necessariamente ao conhecimento do todo.
4. O homem pode se aperfeiçoar através da gnosis: ele ganha poder por meio da posse
do discurso completo.
Para deixar claro os paralelos entre essas doutrinas e a de Hegel, eis uma antecipação do
que se verá no restante do livro:
1. Hegel afirma que o ser de Deus envolve a “criação”: é esse o assunto da sua Filosofia
da Natureza. A natureza é um momento do ser de Deus.
4. Hegel acredita que nós nos elevamos acima da natureza e tornamo-nos mestres de
nossos próprios destinos por meio da profunda gnosis provida por esse sistema.
7. A abordagem da natureza feita por Hegel rejeita a filosofia mecanicista. Ele sustenta
o que os seguidores de Bradley mais tarde chamariam de doutrina de “relações
internas”, contra o entendimento tipicamente moderno mecanicista das coisas, que são
tratadas em termos de “relações externas”.
A frase “leitura não-metafísica” parece ter sua origem em Klaus Hartmann, que em seu
influente artigo de 1972, “Hegel: Uma leitura não-metafísica”, identificou o sistema de
Hegel como uma “hermenêutica de categorias”35. Dentre outros conhecidos propositores
dessa abordagem que Hartmann dá, há também Kenley Royce Dove, William Maker,
Terry Pinkard e Richard Dien Winfield.
Não vejo razão para não levar a sério as palavras de Hegel em qualquer desses assuntos.
Mesmo porque estou interessado apenas no que Hegel pensou, não em que Hegel deve
ter pensado. Indubitavelmente, o sentido que Hegel dá à metafísica clássica e ao
cristianismo é transformador, pois ele não foi um mero fiel. Contudo, seus
comprometimentos metafísicos e religiosos não eram exotéricos. Ele acredita que o
Absoluto e o Espírito do Mundo, etc. são seres reais; eles só não são reais no sentido
em que as concepções tradicionais, devotas e “representativas” têm deles41. Se Hegel se
aparta da tradição metafísica em qualquer momento, é para tirar o seu ar de falsa
modéstia. Hegel não afirma ser um mero buscador da verdade. Ele afirma que já a
encontrou.
O autor
Notas