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ESBOÇO:
- ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Somos chamados mediante o contraste de Trevas e Luz
- DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO-EXEGÉTICO
A Noite Escura de Abraão e a Luz do Cristo transfigurado
- COMPOSTO TEOLÓGICO-CATEQUÉTICO
A Teologia do Hiato de Deus em Hans Urs von Balthasar. Pt I
- CONCLUSÃO
Sem a escuridão da noite não é possível compreender a importância da Luz.
Há um pensamento que diz: “Quem vive nas trevas não consegue ser visto, nem vê nada”.
Na primeira leitura, Abraão nos é apresentado numa profunda crise que se aproxima e muito dessa frase; Deus
o tinha prometido uma descendência e uma terra e, quase vinte e cinco anos após sua saída de sua pátria e de
sua família, o Senhor ainda não lhe dera nada, absolutamente nada! Numa noite escura, noite da alma, Abraão,
não mais se conteve e perguntou: “Meu Senhor Deus, que me darás?” (Gn 15,2) Deus, então, “conduziu Abrão
para fora e disse-lhe: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz! Assim será a tua descendência!”
Deus tira Abraão do seu mundinho, de seu modo de ver estreito, da sua angústia, e convida-o a ver e sentir
com os olhos e o coração do próprio Deus. “Abrão teve fé no Senhor”. Abraão esperou contra toda esperança,
creu contra toda probabilidade, apostando tudo no Senhor, apoiando nele todo seu futuro, todo o sentido de
sua existência! Abraão creu! Por isso Deus o considerou seu amigo, “considerou isso como justiça!” E, como
recompensa Deus selou uma aliança com nosso Pai na fé: “’Traze-me uma novilha, uma cabra, um carneiro,
além de uma rola e uma pombinha’. Abrão trouxe tudo e dividiu os animais ao meio. Aves de rapina se
precipitaram sobre os cadáveres, mas Abrão as enxotou. Quando o sol ia se pondo, caiu um sono profundo
sobre Abrão e ele foi tomado de grande e misterioso terror”.
Abrão entra em crise: no meio da noite – noite cronológica, atmosférica; noite no coração de Abrão – no meio
da noite, as aves de rapina ameaçam, e o sono provocado pelo desânimo e a tristeza, rondam nosso Pai na fé…
Deus demora, Deus parece ausente, Deus parece brincar com Abraão! Essa ausência, esse silêncio de Deus
retornarão no Novo Testamento de uma forma ainda mais pungente. Tudo é noite, como muitas vezes na nossa
vida e na vida do mundo! Mas, ele persevera, vigia, luta contra as aves rapineiras e o torpor… E, no meio da
noite e da desolação, Deus passa, como uma tocha luminosa: “quando o sol se pôs e escureceu, apareceu um
braseiro fumegante e uma tocha de fogo… Naquele dia, o Senhor fez aliança com Abrão”. Observemos o
mistério: Deus passou, iluminou a noite; a noite fez-se dia: “Naquele dia, Deus fez aliança com Abrão!”
Abraão, nosso Pai, esperou, creu, combateu, vigiou e a escuridão fez-se luz, profecia da luz que é Cristo,
cumprimento da aliança prometido pelo Senhor! “O Senhor é minha luz e salvação; de quem eu terei medo?
O Senhor é a proteção da minha vida; perante quem tremerei?” Eis o cumprimento da Aliança com Abraão:
Cristo, que é luz, Cristo que hoje aparece transfigurado sobre o Tabor!
Contudo, o Evangelho permanece na mesma esteira: Jesus estava rezando – “subiu à montanha para rezar” –
e, portanto, aberto para o Pai, disponível, todo orientado para o Senhor Deus: Cristo subiu para encontrar seu
Deus e Pai! E o Pai o transfigura. Sim, o Pai! Recordemos que é a voz do Pai que sai da nuvem e apresenta
Aquele que brilha em luz puríssima: “Este é o meu Filho, o Escolhido!” E a Nuvem que o envolve é sinal do
Espírito de Deus, aquela mesma glória de Deus que desceu sobre a Montanha do Sinai (cf. Ex 19,16), sobre a
Tenda de Reunião no deserto (cf. Ex 40,34-38), sobre o Templo, quando foi consagrado (cf. 1Rs 8,10-13) e
sobre Maria, a Virgem (cf. Lc 1,35). É no Espírito Santo que o Pai transfigura o Filho! Na voz, temos o Pai;
no Transfigurado, o Filho; na Nuvem luminosa, o Espírito! E aparecem Moisés e Elias, simbolizando a Lei e
os Profetas. Trata-se, aqui, de uma visão sobrenatural, não de uma aparição fantasmagórica e natural! Moisés
e Elias, que “estavam conversando com Jesus… sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém”. Aqui é
preciso compreender! Um pouco antes – Lucas diz que oito dias antes (cf. 9,28) – Jesus tinha avisado que iria
sofrer muito e morrer; os discípulos não compreendiam tal linguagem! Agora, sobre o monte, eles veem que
a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias) davam testemunho da morte de Jesus, de sua Páscoa! Sua paixão e morte
vão conduzi-lo à glória da Ressurreição, glória que Jesus revela agora, de modo maravilhoso! Assim, a fé dos
discípulos, que dormiam como Abraão, é fortalecida, como o foi a de Abraão, ao passar a glória do Senhor na
tocha de fogo! A verdadeira tocha, a verdadeira luz que ilumina nossas noites sombrias e nossas dúvidas tão
persistentes é Jesus!
Porém, ainda uma pergunta se faz necessária: por que, em meio a quaresma, se coloca o Evangelho da
Transfiguração?
Certa vez, quase que respondendo à essa pergunta, disse Olavo Bilac: “O amor que a teu lado levas, a que
lugar te conduz, que entras coberto de trevas e sais coberto de luz?
Francis Bacon também, quase que beirando a perfeição intelectual, disse: “Os homens receiam a morte
pela mesma razão por que as crianças têm medo das trevas: porque não sabem do que se trata”.
Assim compreende-se que precisamos da Transfiguração porque estamos caminhando para a Páscoa: a de
2022 e a da Eternidade. Atravessando a noite desta vida e o combate quaresmal, estamos em tempo de oração,
vigilância e penitência! A Igreja, como Mãe, carinhosa e sábia, nos anima, revelando-nos qual o nosso
objetivo, qual a nossa meta, o nosso destino: trazer em nós a imagem viva do Cristo ressuscitado, transfigurado
pelo Espírito Santo do Pai. Escutemos São Paulo: “Nós somos cidadãos do céu. De lá esperamos o nosso
Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu
corpo glorioso. Assim, meus irmãos, continuai firmes no Senhor!” Compreendem? Se mantivermos o olhar
firme naquilo que nos aguarda – a glória de Cristo –, teremos força para atravessar a noite desta vida e o
combate da Quaresma.
Precisamos da Transfiguração porque, assim como São Pedro, ainda não compreendemos o valor salvífico da
morte de Jesus na Cruz. Ela não é um mero acontecimento causal e biológico: conceber a Cruz dessa forma
ou então imensa em uma piedade puramente soteriológica beira a pura insanidade! Perde-se assim o sentido e
a natureza da própria Quaresma quando a vive tendo os olhos somente na Ressurreição de Jesus.
Vejamos: a Ressurreição é crucial pois é a assinatura, mas não é a obra, a obra redentora é a morte de Deus na
Cruz, a morte de Jesus na Cruz!
Se ninguém pode ver o Pai sem o Filho (Jo 1,18), se ninguém pode vir ao Pai (Jo 14,6) e se o Pai não pode se
manifestar a ninguém sem o Filho (Mt 11,27), então, quando o Filho, a Palavra do Pai morresse, ninguém
veria a Deus, ninguém o ouviria falar, nem chegaria até Ele. E ouve esse dia em que o Filho esteve morto e,
consequentemente, Deus se tornou inacessível. Sim, por causa desse dia é que Deus se fez homem. Podemos
muito bem dizer que Ele veio para carregar os nossos pecados sobre a Cruz e rasgar nosso título de dívida e
então triunfar sobre os principados e potestades, como está escrito em Col 2, 14ss; contudo, esse triunfo foi
conseguido com o brado do abandono divino em meio as trevas (Mt 10, 38) na morte e no inferno. Então, o
silencio se fechou assim como se fecha um túmulo que foi selado. Ao término da Paixão, quando a Palavra de
Deus estava morta a Igreja já não tinha uma palavra. Enquanto a semente do trigo estava morrendo, nada se
podia colher. Esta morte da Palavra encarnada não era , na vida de Jesus, uma situação entre as demais, como
se a vida interrompida por um leve espaço de tempo tivesse retomado o seu curso no dia da Páscoa de modo
que a Ressurreição não fuja de seu real objetivo e venha a ocultar a pungente potencialidade que o momento
da morte de Jesus representa: que devemos encarar com a devida maturidade e seriedade que assim como o
homem que morre e é sepultado silencia e nada mais pode revelar e comunicar, assim também aconteceu com
Jesus Cristo, que era a Palavra, a Revelação Divina e a mediação de Deus: Ele morre, e aquilo que era
manifestação de Deus de Deus em sua vida, se interrompe, morre junto.
A isso, chamamos de o “hiato de Deus”. Contudo esse mesmo hiato, de alguma forma, continua a se manifestar
nas nossas vidas, principalmente por meio do sofrimento. Ora, no Evangelho que escutamos Jesus Cristo é
tentado! Jesus Cristo sofre!
Assim, fica ainda mais evidente que a experiência da vida humana se dá mediante a Cruz de Jesus Cristo, pois
o homem desenrola sempre a sua humanidade em relação com a divindade de seu Deus. Experimenta sua
existência na relação com aquele que parece evidentemente o ser supremo. Encaixa a sua vida ante o valor
definitivo. Se decide, fundamentalmente conforme aquele que o interessa de modo incondicional. De sorte
que o divino é a situação que o homem experimenta, desenvolve e configura. Por esse motivo, a Teologia da
Cruz – Estaurologia se encaminha igualmente ante uma antropologia.
De igual modo, compreendemos quando o teólogo jesuíta von Balthasar diz que:
“Sem a Cruz, sua palavra não seria verdadeira, não seria esse testemunho sobre o Pai que contém em si o
co-testemunho do Pai que é a palavra cristológica dupla e uma, a revelação da vida Trinitária, e que traz
em si a exigência soberana do ser crido e seguido”.
E claro, a mais importante de todas: sem a escuridão da noite, Moisés não conseguiria compreender a
importância da confiança naquele que lhe prometeu tudo. Sem a purificação da Fé dos Apóstolos mediante o
sacrifício, eles não estariam aptos para a teleologia de Jesus, porém, como esta era de pungente radicalidade,
era necessário que os Apóstolos vissem a luz radiosa do Cristo Transfigurado para compreenderem que é na
Cruz que Deus é plenamente glorificado e que Cristo torna-se a Verdade.
“Por isso o Pai me ama, porque dou minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a
dou livremente. Tenho o poder de entrega-la e poder de retomá-la; esse é o mandamento que recebi de meu
pai” cf Jo 10, 17-18