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A importância de uma perspectiva transcultural no ensino de línguas estrangeiras

O final do século XX é caracterizado como um período de mudanças impactantes e


significativas como a transição da modernidade para a pós-modernidade e, com ela, o
crescimento da globalização e das crises de identidade cultural (HALL, 2000). A pós-
modernidade se refere à perda de certezas sustentadas pela crença na racionalidade
moderna (GIDDENS, 1996), período marcado por verdades absolutas, forte apelo à
ciência e relacionado à Revolução Industrial e aos ideais do Iluminismo e de
progresso. No período moderno, acreditava-se que o uso da razão e do conhecimento
científico seria a única maneira de viver os ideais sustentados pela Revolução
Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. No entanto, episódios históricos como
os campos de concentração nazistas, a bomba em Hiroshima e a queda do muro de
Berlim, representando o fim da União Soviética, são exemplos de como as ideologias
de progresso e de uso da razão para se ter uma sociedade melhor falharam. Dessa
forma, o sujeito pós-moderno se afasta das instituições, de ideologias fortes e de
pensamentos totalizantes presentes na modernidade em direção a um novo tipo de
ordem social que compreende o conhecimento de forma plural e heterogênea de
forma que a ciência não possui necessariamente status diante de outras formas de
conhecimento (GIDDENS, 1996).

Uma das razões que permitem essa noção de conhecimento plural e heterogêneo é o
fato de que diferentes áreas do globo estão interconectadas, ou seja, o processo
compreendido como globalização, no qual “diferentes contextos sociais ou regiões se
tornam interconectadas em toda a superfície da terra. A globalização pode, assim, ser
definida como a intensificação das relações sociais mundiais que ligam localidades
distantes de tal forma que os acontecimentos locais sejam moldados por eventos que
ocorreram muitas milhas de distância e vice-versa” (GIDDENS, 1996:64 tradução
nossa).“

Embora a globalização não seja um fenômeno recente (GIDDENS, 1996), é por volta
dos anos 70 que a integração global aumenta, “acelerando os fluxos e os laços entre
as nações” (HALL, 2000:69). A difusão de recortes e imagens de diversas culturas,
principalmente a norte-americana, se expandiu de forma que em um mesmo lugar é
possível encontrar restaurantes “característicos” de diferentes países e entrar em
contato com produtos culturais, como filmes, livros e músicas, de diversas
nacionalidades.
Ainda que esse contato com outras culturas seja limitado por recortes e, muitas vezes,
transformado em mercadoria cultural, para Hall (2000:87), a globalização “tem um
efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e
novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais
políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas”. Isto é, a
globalização pode influenciar o processo de constituição da identidade já que ela
“surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos,
mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior” (HALL,
2000:39 destaque do autor). Eu sei quem eu sou em relação ao outro.

Essas mudanças afetam também a forma de ensinar e aprender visto que os


educandos já nasceram em uma condição sócio-cultural diversa daquela na qual se
baseia o modelo de educação tradicional criado na modernidade. Um ensino que
apresenta perspectivas totalizantes e não incentiva o questionamento e uma visão
plural dos assuntos não dialoga com a realidade de grande parte dos alunos.

Especificamente no ensino de línguas estrangeiras, o diálogo da língua com a cultura


é extremamente importante uma vez que a língua é um sistema social. No entanto,
quando se considera o ensino de inglês, por exemplo, qual seria a cultura com a qual
trabalhar? Transpondo as discussões sobre qual inglês ensinar, o americano ou o
britânico, muitos hoje defendem uma abordagem multicultural, que inclua os diferentes
países falantes do idioma, em direção a uma perspectiva plural e seguindo as
orientações de documentos norteadores, como os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN), que defendem a pluralidade cultural.

No entanto, Rocha (2010) explica que o termo multiculturalismo tem sido usado para
significar coisas muito distintas e, em muitos casos, acaba sendo utilizado para limitar
e estereotipar a cultura do estrangeiro tida como una, ou ainda representar situações
em que culturas minoritárias coexistindo com tradições dominantes têm que se
adequar a elas ou ser assimiladas por elas. O termo ainda não especifica se as
culturas tratadas se misturam ou não, no geral, refletindo culturas que coexistem, mas
que não se influenciam.

No lugar desse termo, muitos autores têm defendido o uso de interculturalidade


indicando a possibilidade de hibridação das culturas como parte de um processo
dinâmico e conflituoso de transformação. Para Rocha, entretanto, o termo
transculturalidade, no lugar de multiculturalismo ou interculturalidade, reforça, por
causa de seu prefixo, “as ideias de transitar por entre espaços, transgredir fronteiras e
promover transformações”, reafirmando o “’caráter fluído das culturas’, bem como seu
caráter histórico e sua natureza processual, conflituosa e heterogênea” (2010:113).

De forma semelhante, Hall defende que o “’hibridismo’ e o sincretismo – a fusão entre


diferentes tradições culturais – são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas
formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia que às velhas e contestadas
identidades do passado” (HALL, 2000:91). Dessa forma, o contato com a cultura do
outro pode permitir que os educandos ampliem seus horizontes para as diferentes
formas de se compreender o mundo e, com esse repertório, possam agir de maneiras
variadas e criativas no mundo.

Nesse sentido, o ensino de línguas estrangeiras que dialogue com o período atual e
forneça uma multiplicidade de perspectivas pode favorecer o contato dos alunos com a
cultura do outro, não se limitando a apresentar apenas a cultura dos países falantes da
língua que se ensina. já que, num mundo interconectado e com fronteiras difusas,
diferentes culturas e identidades podem coexistir num mesmo espaço.

É importante enfatizar que uma perspectiva transcultural envolve considerar a cultura


do aluno e como ela se relaciona com as culturas com as quais convive ou entra em
contato e também como elas se modificam. Nesse sentido, é importante, sempre que
se trabalha com cultura, incentivar os educandos a estabelecer conexões entre o que
lhe foi apresentado e a sua realidade, ou ainda, considerar as diferentes culturas dos
alunos, já que a cultura de um povo ou país nunca é única, e discutir as diferenças
dentro de um mesmo território com relação ao assunto que foi apresentado. Por
exemplo, o professor, ao falar sobre diferentes formas de se alimentar no mundo, pode
partir de um costume comum no Japão que é preparar marmitas individuais que sejam
atraentes (os bentôs), explicar o que culturalmente é considerado atraente para essa
cultura, e perguntar aos alunos de que maneiras a cultura deles se relaciona com a
aparência da comida, quais são as características de um prato atraente e até de que
maneiras o contato com esse costume pode ter influenciado sua maneira de lidar ou
preparar os alimentos.

Outro exemplo, no caso dos países falantes de espanhol pode ser comparar as
diferentes maneiras de se dizer XXXXXX, ou propor que os alunos façam uma
pesquisa sobre os países em que há predominância de uso da palavra cookie ou
biscuit e, então, analisar os possíveis motivos dessa predominância (maior influência
norte-americana, colonização inglesa) e ainda verificar se existem palavras
alternativas para o mesmo alimento. Em seguida, pode-se trazer a discussão para a
realidade brasileira e pesquisar os locais em que é mais comum se utilizar bolacha ou
biscoito.

Para Rocha (2010:92), “perspectivas dialógicas e plurais de ver a linguagem e o


mundo, dentro das limitações impostas pela sala de aula e pela esfera escolar,
possibilita-nos respeitar os propósitos e modos de funcionamento da linguagem na
sociedade, bem como promover práticas que extrapolem ao trabalho pautado
estritamente por conhecimentos e valores institucionalmente validados”. Isto é, um
trabalho de sala de aula que inclui diversas perspectivas se torna significativo para os
alunos por incluir saberes e práticas individuais ou da coletividade da qual fazem parte
que não estariam presentes no ensino tradicional.

O acesso à internet, quando possível1, permite o contato com múltiplas perspectivas


sobre um determinado assunto e essas perspectivas podem gerar debates
enriquecedores e provocadores em sala de aula se exploradas pelo professor.

Ainda, o conhecimento da diferença e do outro pode ser usado pelo professor em sala
para que os alunos estabeleçam conexões entre seu contexto e aqueles apresentados
durante a aula. Para Read (2015), estabelecer conexões é uma das condições para
que os educandos desenvolvam o pensamento criativo.

Para o contexto dos anos iniciais da Educação Básica, isso parece importante, pois permite que
extrapolemos visões mais restritas de língua/linguagem e práticas educacionais que distanciam
a escola da vida e busquemos encaminhamentos que reforcem esse vínculo, ao mesmo tempo
em que fortalecem o potencial agentivo e crítico da criança.

“Também na área da Educação, creio que as fronteiras devam e possam passar a ser vistas
como o lugar a partir do qual algo começa a ser fazer presente, já que as diferenças são, ao
mesmo tempo, “uma visão e uma construção – que leva alguém para além de si para poder
retornar, com espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente”
(BHABHA, 2005, p. 22), sempre em devir.” (p. 114)

Referências Bibliográficas

1
A pesquisa publicada em 2016 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade
da Informação (Cetic.br) e pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) mostrou que
apenas 58% dos brasileiros tem acesso à internet. Informações disponíveis em
http://agenciabrasil.ebc.com.br/pesquisa-e-inovacao/noticia/2016-09/pesquisa-mostra-que-58-da-
populacao-brasileira-usam-internet. Acesso em 21 de maio de 2017.
BRASIL, Parâmetros Currículares Nacionais, 1998.
GIDDENS, A. The Consequences of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1996.
HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
READ, C. Seven Pillars of Creativity in Primary ELT. In: MALEY, Alan; PEACHEY, Nik
(orgs.). Creativity in the English Classroom. London: British Council, 2015.
ROCHA, C. H. Propostas para o Inglês no Ensino Fundamental I Público:
Plurilinguismo, Transculturalidade e Multiletramentos. Tese de doutorado. Campinas:
UNICAMP, 2010.

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