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Ética e pesquisa: o compromisso com o discurso do outro

Ethics and Research: the commitment with the other’s discourse


Investigación y ética: el compromiso con el otro

Solange Jobim e Souza


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Cíntia de Sousa Carvalho
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Resumo
O objetivo deste artigo é discutir o ato de pesquisar em ciências humanas, tendo como foco a
produção escrita. Assim sendo, buscamos definir o que entendemos por escrever com o outro,
a partir do pesquisar com. O que está em pauta é uma postura metodológica, que tem como
referência a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin, cujo fundamento é assumir o
interlocutor da pesquisa como parceiro e coautor. O compromisso ético com o discurso do
outro tem como premissa os conceitos de dialogismo e alteridade para iluminar o encontro
com o outro no campo e, posteriormente, na escrita do texto. Esse modo de atuar instaura
alguns questionamentos éticos, tal como a exigência do anonimato, e problematiza a forma
como o consentimento livre e esclarecido é tratado na pesquisa. Em síntese, narrar uma
pesquisa não é só registrar os acontecimentos, mas consiste em um trabalho político de
afirmação de algumas verdades em detrimento de outras.
Palavras-chave: Ética; Dialogismo; Alteridade; Escrever com; Pesquisar com.

Abstract
This article discusses the act of research in Human Sciences which focuses on the production
of writing. Thus, starting from the conceptual foundation of researching with, we seek to
define what we mean by writing with the other. What is at stake is a methodological approach
which accepts the interlocutor of research as partner and co-author, an approach based on
Mikhail Bakhtin’s philosophy of language. The ethical commitment to the other’s discourse is
premised on the concepts of dialogism and alterity to illuminate the encounter with the other
in the field and, subsequently, in the written text. This way of working poses ethical
questions—such as conditions of anonymity—and problematizes the way in which consent is
accorded and treated in the research. In short, relating research findings is not just about

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recording events. It consists in the affirmation of certain truths at the expense of others as
political activity.
Keywords: Ethics; Dialogism; Alterity; Writing with, Researching with.

Resumen
El propósito de este artículo es discutir el acto de investigar en Humanidades, enfocándose en
la producción escrita. Por lo tanto, tratamos de definir qué entendemos por escribir con el
otro, a partir del investigar con el. Lo que está en juego es una postura metodológica, que
tiene referencia a la filosofía del lenguaje de Mikhail Bakhtin, que se fundamenta en asumir el
interlocutor de la investigación como socio y coautor. El compromiso ético con el discurso
del otro tiene como premisa los conceptos de dialogismo y de otredad para iluminar el
encuentro con el otro en el campo y, posteriormente, en la escritura del texto. Este modo de
actuar introduce algunas cuestiones éticas, tales como el requisito del anonimato, y discute la
manera cómo se trata el consentimiento libre e informado en la encuesta. Así, narrar una
búsqueda no es tan sólo el registro los acontecimientos, pero consiste en un trabajo político de
la afirmación de algunas verdades, a costa de comprometer otras.
Palabras clave: Ética; Dialogismo; Otredad; Escribir con; Investigar con.

Introdução voltado para si. Nesta duplicidade está a


origem da especificidade das ciências
Nos domínios de que tratamos aqui, o humanas e, portanto, da sua difícil tarefa
conhecimento existe apenas em de construir seus métodos próprios de
lampejos. O texto é o trovão que segue investigação. Dar conta desta singularidade
ressoando por muito tempo. científica causa um impacto direto no
Walter Benjamin modo como se dá a relação eu-outro no
âmbito da pesquisa em psicologia. Isto
Quando o pesquisador das ciências significa dizer que, nesta perspectiva, o
humanas se propõe a conhecer outro psicólogo-pesquisador se insere no campo
indivíduo, ele se depara, de imediato, com de investigação ocupando a posição de
a duplicidade de sua tarefa – ser sujeito do estar “dentro da cena sem possibilidade de
conhecimento e, ao mesmo tempo, estar fora”, ou seja, qualquer neutralidade
“matéria” de conhecimento. Abrir-se para que o pesquisador-psicólogo almeje
o outro, neste caso, é permanecer também atingir, buscando um distanciamento de

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seu interlocutor, é absolutamente artificial. Tudo o que me diz respeito, a começar
pelo meu nome, chega do mundo exterior
A categoria básica que define a produção
à minha consciência pela boca dos outros
de conhecimento em nossa área de
(da minha mãe, etc), com sua entonação,
investigação é o seu caráter dialógico. O em sua tonalidade valorativa emocional. A
texto é o ponto de partida de qualquer princípio eu tomo consciência de mim
produção de conhecimento. Onde não há através dos outros: deles eu recebo as
palavras, as formas e a tonalidade para a
texto, não há objeto de pesquisa. (Bakhtin,
formação da primeira noção de mim
2003).
mesmo. (Bakhtin, 2003:373-374)
Com estes argumentos, que têm
como referência a filosofia da linguagem
Assim, como o conhecimento de si
de Mikhail Bakhtin, é que nos propomos a
próprio acontece no cotidiano das relações
definir a base teórico-metodológica do que
que se estabelecem entre pessoas, também
significa pesquisar com, para, então,
o ato de pesquisar configura-se como um
explicitar como se estrutura o escrever com
acontecimento na vida, que se efetiva entre
no âmbito das pesquisas em Psicologia, ou,
o pesquisador e seus interlocutores. O
melhor dizendo, como definir o que
conhecimento construído no ato de
entendemos por escrever com a partir do
pesquisar, mais do que uma reflexão sobre
pesquisar com?
a realidade investigada, remete a uma
reflexão situada no contexto em que o
Discurso na vida e discurso na teoria
pesquisador está inserido, e no qual
participam diversas vozes. Portanto,
Na vida cotidiana, a palavra é, sem
produzir conhecimento com base nesta
dúvida, o material privilegiado da
abordagem implica em negociar com os
interação entre pessoas. Segundo Mikhail
interlocutores todo o processo de
Bakhtin, não há um único ser humano cuja
investigação, de modo que o resultado da
condição de humanidade não advenha de
pesquisa seja produzido e alcançado no
sua interlocução com os demais, dado que
diálogo entre uns e outros.
seu nascimento é dotado de significados
Assim, deixando-se afetar pelas
antecipadamente atribuídos e que toda a
circunstâncias e pelo contexto em que a
sua existência será marcada pelo modo
cena da pesquisa se desenrola é que o
como dará continuidade a essa
pesquisador rompe com a pretensa
interlocução.
neutralidade na produção do conhecimento
em ciências humanas. Na medida em que

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este fato é inevitável, a questão para o de análise se, ao mesmo tempo, sustenta a
pesquisador não é mais controlar o seu condição de inacabamento do
desempenho para minimizar ao máximo as conhecimento, também acaba por
consequências de suas atitudes no campo. denunciar a precária condição de certas
Ao contrário, trata-se aqui de tornar teorias que têm a pretensão de representar,
explícito, reconhecendo no ato de de forma abstrata, a totalidade da
pesquisar e, posteriormente, na escrita do experiência do homem no mundo. Ora, o
texto, o modo como as circunstâncias mundo conhecido teoricamente não é o
afetaram tanto o pesquisador como os mundo inteiro, mas apenas um fragmento
sujeitos da pesquisa. Em outras palavras, provisório da realidade que se pretende
pesquisar com implica, necessariamente, conhecer (Bakhtin, 2010).
na revelação da atitude do pesquisador que O discurso na vida é atravessado
se indaga sobre a especificidade do por julgamentos de valor e a compreensão
conhecimento que é produzido de forma de qualquer ato de fala não pode descartar
compartilhada, por meio de uma as avaliações que inevitavelmente estão
cumplicidade consentida entre ele e seus presentes nas interações sociais. Ora,
interlocutores. pensar a pesquisa em ciências humanas
Nesta abordagem, vale sublinhar como um modo especial de acontecimento
que dialogismo e alteridade são conceitos na vida implica levar em consideração que
que não podem ser pensados a compreensão dos temas que se quer
separadamente. Alteridade, no contexto de investigar se dá a partir de confrontos de
uma pesquisa de campo ou no momento da ideias e negociação de sentidos possíveis,
escrita do texto científico, não se limita à atravessados por julgamentos de valor,
consciência da existência do interlocutor, entre o pesquisador e os sujeitos da
nem tampouco se reduz ao que é pesquisa. Deste modo, se o pesquisador
simplesmente diferente, mas comporta busca compreender uma dada realidade,
também o estranhamento e o seu modo de compreender não se separa do
pertencimento mútuos. Isto significa dizer seu modo de avaliar, pois ambos,
que o interlocutor, que se revela em compreensão e avaliação, se constituem
confronto com o pesquisador, provoca a como momentos simultâneos de um ato
busca pela compreensão, mas também, integral único. Assim sendo, como o
simultaneamente, instaura o lugar da pesquisador não esta só na cena da
incompletude e da provisoriedade de pesquisa, o grande desafio diz respeito à
qualquer conhecimento. Esta perspectiva sua disponibilidade de se deixar

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surpreender pelo encontro/confronto que diálogos da vida. Essas vozes formam o
acontece no campo com os sujeitos da cenário onde contracenam a ambiguidade e
pesquisa. a contradição, certezas e incertezas,
Os discursos na vida se apresentam verdades e mentiras. Somente a tensão
em sua forma ordinária, ininterrupta e entre as múltiplas vozes que participam do
única. Os discursos nas teorias promovem diálogo da vida pode dar conta da
pausas e ganham mais estabilidade com a integridade e da complexidade das
manifesta pretensão de alcançar questões humanas.
generalizações e elaborar “verdades Assim, entendemos, com base nesta
universais” (teorias filosóficas, teorias abordagem, que qualquer pesquisa que
estéticas ou teorias no âmbito das ciências envolve um encontro entre pessoas se dá
humanas), ainda que estas sejam sempre em um contexto marcado por um processo
provisórias. Portanto, o lugar ocupado de alteridade mútua, em que o pesquisador
pelo pesquisador é marcado pela e seus outros negociam modos como cada
experiência singular e única do encontro um define, por assim dizer, suas
do pesquisador e seu outro, na busca de experiências, para dar sentido às suas
produzir textos (falados ou escritos) que existências.
revelem compreensões, ainda que
provisórias, para dar sentido aos Considerações sobre a ética na pesquisa
acontecimentos na vida.
Em termos metodológicos, vale Nesta abordagem metodológica, o
sublinhar que o foco da pesquisa não está que normalmente se considera os
na fala do interlocutor tomada bastidores da pesquisa são incorporados
isoladamente, mas na cena dialógica que se como elementos importantes para o relato,
estabelece entre o pesquisador e seu outro, ou seja, narrar estranhamentos,
produzindo sentidos, acordos e desencontros e afetos que acontecem entre
negociações sobre o que pensam sobre um o pesquisador e seu outro fazem parte do
determinado assunto, em um contexto roteiro de uma investigação que se
definido por atos de falas recíprocas. A pretende compartilhada. Mesmo porque
busca da verdade não se encontra no aquilo que de imediato não faz parte da
interior de uma única pessoa, mas está na cena em si, na verdade pertence ao cenário
interação dialógica entre pessoas que a que cria as condições de possibilidade da
procuram coletivamente. O mundo em que pesquisa. Melhor dizendo, o que muitas
vivemos se revela de diversas maneiras nos vezes é descartado, ou considerado

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“sobra”, é aqui percebido, como elemento individualidade da responsabilidade mútua
que compõe a cena da pesquisa, ainda que e do compromisso ético, tanto do
a compreensão mais ampla acerca da pesquisador como dos sujeitos da pesquisa,
contribuição desse elemento possa se dar com o conhecimento gerado a partir deste
apenas posteriormente. Walter Benjamin, encontro específico. Esta postura
em uma breve citação no livro Passagens, metodológica nos permite avançar na
sintetiza o que acabamos de dizer da discussão da ética na pesquisa. Tomando
seguinte maneira: “O que são desvios para como exemplo a questão do anonimato dos
os outros, são para mim os dados que sujeitos da pesquisa, como problematizar
determinam minha rota. - Construo meus esta exigência institucional dos comitês de
cálculos sobre os diferenciais de tempo – ética?
que, para outros, perturbam as ‘grandes Compreendemos que não exista
linhas’ da pesquisa.” (Walter Benjamin, uma ética universal, que caiba a todos os
2006, p. 499). contextos e relações de pesquisa. Neste
Contudo, este tipo de atitude, que sentido é que a criação de nomes fictícios
coloca em destaque a responsabilidade do ou omissão de dados que possam servir de
pesquisador frente aos sujeitos que reconhecimento das identidades são
compartilham da cena da pesquisa, requer questões que devem ser negociadas com os
um modo desinteressado de estar no interlocutores. Nossa intenção, quando
campo. O que isto significa? assim procedemos, é evitar omitir
De acordo com Mikhail Bakhtin, o visibilidades que podem ser bem vindas. O
conceito de des-interesse coloca o anonimato, com a intenção de proteger o
pesquisador em uma situação de sujeito da pesquisa, pode também sugerir
compromisso ilimitado, de uma desautorização do discurso alheio,
responsabilidade absoluta como indivíduo. desprestigiando o singular de cada história,
Isto significa dizer que o pesquisador, tornando nosso interlocutor invisível.
assim como os sujeitos da pesquisa, não Sobre este aspecto, Vinciane Despret
pode ser substituído por outra pessoa em (2011) afirma que estaríamos produzindo
sua responsabilidade, entendida como uma espécie de “efeito sem nome”, que,
absoluta, como “sem álibis”. O que pela via do segredo, despotencializa
organiza o conhecimento gerado no determinadas narrativas. Garantir o
contexto da pesquisa em ciências humanas anonimato dos sujeitos da pesquisa pode,
não se encontra na relação instrumental e por vezes, ferir este sujeito naquilo que diz
mecânica entre sujeito-objeto, mas na respeito à sua singularidade. Portanto, a

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questão da pertinência do anonimato deve análise dos discursos de nossos
ser discutida com o interlocutor da interlocutores que, ainda que seja apoiado
pesquisa, partindo da premissa de que é no compromisso e na ética do pesquisador,
uma decisão negociada que, se por um será escrito à revelia do interlocutor da
lado, deve ser tomada tendo em pesquisa? Vejamos como temos enfrentado
consideração a proteção do sujeito, por este desafio.
outro, não deve servir a uma postura
paternalista. No texto o compromisso com o discurso
A mesma reflexão se estende ao do outro
consentimento dos interlocutores na
participação das pesquisas. Não Encerrada a atividade de campo
deveríamos tratar do consentimento como propriamente dita, ainda há um extenso
uma questão que atravessa toda a relação exercício a ser feito, pois um bom trabalho
da pesquisa? O que observamos é que o de campo não se resume a seguir as pistas
consentimento é tratado apenas como um e as conexões que entremeiam as práticas,
documento que deve ser assinado, muitas mas refere-se também ao modo como estas
vezes, antes mesmo das pesquisas conexões são posteriormente apresentadas
acontecerem. Além disso, a assinatura na escrita do texto, relatando os percursos
destes termos se dá, em alguns casos, para da pesquisa realizada.
cumprirmos protocolos de comitês de ética A escrita requer um tempo de
e exigências de revistas científicas. Isso se reflexão e de investimento laborioso para
apresenta como um paradoxo: como dar conta do registro, em forma de texto,
consentir sobre algo ainda não dito, ainda daquilo que revela a intensidade da
por ocorrer? Apostamos que fazer pesquisa experiência vivida no campo pelo
com o outro implica em verificarmos a pesquisador e seus outros. Como
disponibilidade de nosso interlocutor em caracterizar a especificidade deste
participar efetivamente de nossa pesquisa, momento em que o pesquisador se retira
discutindo os impactos de seu discurso, de do campo, onde se deu o diálogo vivo com
modo que o consentimento não se torne o sujeito da pesquisa, para o momento do
meramente uma questão burocrática. A relato escrito deste acontecimento? Em
questão do consentimento da pesquisa outras palavras, estamos nos interrogando
desemboca também no que diz respeito à sobre as consequências epistemológicas da
escrita. Como consentir a produção de um pesquisa em ciências humanas, em seus
texto acadêmico que será gerado a partir da dois momentos constitutivos: o encontro

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do pesquisador e seu outro no campo, e o silêncios. Para Amorim (2002), a teoria
posterior encontro do pesquisador com a das vozes de Bakhtin nos emancipa de um
tarefa de produzir o texto escrito que dará dos principais problemas na escrita da
forma e conteúdo ao acontecimento vivido pesquisa: como recuperar a polifonia do
no campo. Em cada um destes momentos o ocorrido no campo? Para a autora, a
que se coloca em destaque é o questão da restituição ou da citação literal
compromisso ético de construir o sólido do sentido do que foi dito no campo para o
entendimento humano da experiência texto é um falso problema, devido ao fato
vivida. de que todo o texto torna-se outro em outro
Não é simples a tarefa de escrever (con)texto, afinal “na escrita, o diálogo,
um texto que dê conta dos acontecimentos, enquanto interlocução real e vivida em
visto que as exigências dos crivos campo, não poderá nunca ser restituído.”
científicos podem se tornar um espartilho. (2001, p. 202). O texto seria então o lugar
No texto acadêmico, o referente do de apresentação do vivido, mas também de
acontecimento vivido é o manancial de descoberta e invenção.
onde brota nossas palavras, um De que modo é possível investir, na
acontecimento que nos teve escrita do texto, em aspectos que revelem a
simultaneamente como espectador e como descoberta e a invenção? De acordo com a
ator e que, agora, nos requer uma autora nossa atenção deve se voltar para o
determinada autoria. Como enfrentar o movimento que o pesquisador faz ao
desafio de transpor para a escrita do texto realizar a seleção do que deve ser
acadêmico a experiência do que foi vivido apresentado no texto. Nas ciências
na pesquisa de campo? humanas o registro escrito deve evidenciar
Marília Amorim (2002), amparada o aspecto polifônico do campo, bem como
na obra de Mikhail Bakhtin, possui um trazer a alteridade como seu fundamento,
interesse epistemológico no texto, uma vez apresentando conflitos e desencaixes. É
que o compreende como lugar de através da alteridade que é possível fazer
circulação de conhecimentos e que, por falar o interlocutor da pesquisa no texto –
isso, merece ser problematizado. A autora, o que não corresponde a dar a voz, mas a
então, não busca valorar a qualidade do dar espaço para a voz –, naquilo que ele
texto propriamente dita, mas, ao tratar do enuncia a partir do seu lugar. Amorim
registro escrito da pesquisa, se empenha (2001) enfatiza a tensão que se apresenta
em compreender como a alteridade é quando o pesquisador busca inscrever o
materializada e desemboca em vozes e outro em seu universo de questões,

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buscando garantir a presença de sua voz no Acredito que, na etnografia, são essas
interferências que podem suavizar a
texto.
objetividade do texto narrativo e, portanto,
No entanto, qual seria o caminho
a autoridade do etnógrafo. É assim que se
para apresentar a polifonia vivida no conseguiria fazer passar a multiplicidade, a
campo? Como fazer as diversas vozes se escritura. Os agenciamentos de campo
agenciarem na forma escrita? De acordo deveriam se expressar também num
agenciamento de vozes no texto
com Janice Caiafa (2007), a simples
etnográfico, em agenciamentos coletivos
utilização e aproximação das vozes não
de enunciação. Seria preciso lançar mão
garante que a polifonia se inscreva no das variantes mais flexíveis do discurso
texto, pois: “Parece que o uso do discurso direto, mas também do discurso indireto.
direto, embora seja um ingrediente O importante é a despreocupação com as
fronteiras entre o discurso citado e o
importante na escrita etnográfica, não basta
narrativo – mesmo que elas em alguma
para garantir a polifonia, o relato da
medida e inevitavelmente permaneçam, o
enunciação coletiva que poderia ressoar a que inclusive pode ser desejável e
experiência de campo.” (p. 163). necessário em alguns momentos. (Caiafa,
Trocando em miúdos, a 2007, p. 165)

justaposição ou o paralelismo entre as


vozes não instauraria, em si, o aspecto Mas, se a voz do narrador deve

polifônico. A autora entende que é preciso, estar ao lado e não acima da do

em primeiro lugar, atentar para o modo interlocutor, é também importante que suas

como a voz do pesquisador interage com vozes se distingam entre si, pois a lógica

as vozes dos seus interlocutores na não é a da fusão, mas a da aproximação:

escritura. Aquele que narra não deve “Chegar perto, expor-se, falar junto e não

eclipsar-se do texto buscando uma acima são práticas que se distinguem da

neutralidade absoluta, mas também não mistura.” (Caiafa, 2007, p. 168). Neste

deve ficar num lugar de autoridade que caso, tanto o discurso citado (de outrem),

analisa, prescreve, moraliza à distância. quanto o discurso narrativo (do

Antes, a voz do pesquisador deve ser pesquisador) andam juntos, de modo que a

companheira da voz dos outros singularidade dos discursos não seja

personagens, se colocar ao lado e se perdida e a alteridade se presentifique na

comunicar com eles, estar aberto a escrita.

interferir e ser por eles interferido, trocar Quando o discurso narrativo se

entoações: despe do lugar de autoridade para


acompanhar o discurso citado, temos uma

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inversão onde a autoria clássica cede abordagem teórica e metodológica,
espaço para um tipo de coautoria ou construída tendo como base o pensamento
autoria compartilhada, que é provocada de Mikhail Bakhtin, respalda o abandono
pelo pesquisador no momento em que faz das formas instituídas de apresentação de
dialogar as vozes no texto. O outro se torna saber, possibilitando a produção de uma
coautor porque efetivamente fala, visto que escrita transgressora e que, portanto,
os efeitos do encontro foram assumidos na elabora a apresentação do acontecimento
escrita – ainda que o pesquisador seja vivido no campo se permitindo dar forma
aquele que incontestavelmente se às suas afetações, sentimentos e razões.
responsabiliza pelo acabamento da Daí Amorim (2003) considerar que o texto
produção escrita. Deste modo, o texto não em ciências humanas deve priorizar “uma
fala para o outro ou sobre ele, mas dialoga escrita que presentifique e não apenas que
com ele, e esta conversa se faz ouvir pelo represente” (Amorim, 2003 , p. 78).
leitor em potencial. Além da coautoria do Apresentar o acontecimento vivido
interlocutor no texto, também o leitor em significa elaborar um trabalho de registro
potencial a quem se destina a escrita que contempla na forma da escrita a
participa de dentro da produção da dimensão própria do encontro, daquilo que
narrativa, como uma força que interfere no se revela especificamente por considerar o
quê e no modo como os conteúdos são que está entre uns e outros. O que se
tramados. Assim, podemos pensar numa pretende é revelar uma forma de escrita
coautoria tripla que inclui o narrador, seu que faça justiça ao acontecimento vivido,
interlocutor e o leitor. porém consciente de que todo texto se
No que diz respeito à forma, torna outro em outro contexto.
Amorim (2002) convida-nos ainda a A ética neste tipo de relação se
pensar em modos de compartilhar o vivido explicita na consciência do fato de que, se
que transgridam os códigos de uma escrita o pesquisador oferece contorno à
acadêmica já estabelecidos. Ou seja, na experiência do seu interlocutor e vice-
academia, desde muito cedo aprendemos versa, o diálogo neste contexto é um modo
uma forma considerada legítima de de ambos se deixarem surpreender, sem
apresentação de nossos textos científicos. criar estereótipos ou aprisionamentos em
Entretanto, para recuperar a dimensão de expectativas que não lhes dizem respeito.
autoria no texto científico, o pesquisador Falar do outro na pesquisa é também
se vê frente ao desafio de aliar forma e convidá-lo a se olhar por outra lente, a da
conteúdo. Podemos afirmar que esta investigação, para com ele negociar o que

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foi apresentado. Deste modo, na de vista sobre o campo. Mas, se a
perspectiva do pesquisar com, percepção de nosso interlocutor não
compreendemos que cada campo de corresponde à nossa, compreendemos que
pesquisa pode oferecer um modo de incluir tal dissonância no texto enriquece
responder esta questão. Entretanto, nossas reflexões. Portanto, escrever com o
entendemos que seja importante considerar outro, nasce da tensão entre a restrição
como possibilidade nossos interlocutores imposta por tal leitura e a responsabilidade
serem convidados a ter contato com nossas do pesquisador de narrar os
produções escritas e sobre elas opinar. acontecimentos a partir do seu ponto de
Mesmo porque, se o interlocutor é aquele a vista.
quem imediatamente a pesquisa se refere, Em suma, entendemos que narrar
partimos da ideia de que faz parte da ética uma pesquisa não é só registrar os
do pesquisador incluí-lo como leitor acontecimentos, mas consiste em um
privilegiado, visto que é dele que se fala, trabalho político de afirmação de algumas
melhor dizendo, é com ele que se fala. verdades em detrimento de outras. A
Aqui, a autoria de nosso interlocutor política da escrita de que lançamos mão
desdobra-se: ele é incluído como aposta no dialogismo e na alteridade
personagem que efetivamente fala no texto (Bakhtin, 2003) como marcas que devem
e como leitor que interfere e constrange o iluminar o texto, marcas que se traduzem
texto que é escrito. através dos seguintes movimentos:
Deste modo, se imporá um duplo • Apresentar ao invés de representar
exercício: da parte do pesquisador, o de as múltiplas vozes;
produzir um texto que seja legível para seu • Dar espaço para a presentificação
interlocutor (tanto do ponto de vista da dos dissensos produzidos no
linguagem utilizada, mas também da forma encontro entre essas vozes;
como questões delicadas são apresentadas, • Narrar as condições de
como, por exemplo, no levantamento de possibilidade das cenas, ou seja, as
determinadas críticas); e, após a leitura e a cenas da pesquisa de campo não são
apresentação das possíveis sugestões de bastidores, mas fazem parte da
nosso interlocutor, buscar um modo de pesquisa em si;
incorporá-las ao texto1. É necessário ainda • Permitir que a voz do narrador
afirmar que fazer nosso texto incluindo o esteja ao lado da voz do interlocutor
outro não nos desautoriza enquanto e que os discursos tenham espaço
pesquisadores de expormos nossos pontos para se interferirem mutuamente;

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• Consentir que o interlocutor entre qualquer ação e é simplesmente por isso
que a ação se concretiza – ela escapa às
em contato com o texto e dialogue
previsões. É um risco. E agora
com ele, sendo incorporados seus
acrescentaria que esse risco só é possível
posicionamentos e sugestões, se confiarmos nos homens, isto é, se lhe
contudo o pesquisador não deve dermos nossa confiança – isto é o mais
abrir mão da responsabilidade por difícil de entender – no que há de mais
humano no homem; de outro modo seria
aquilo que pensa em um dado
impossível. (Arendt, 1993, p. 143)
momento, ou seja, a autoria do seu
ato de pensar.
O que se coloca em destaque nas
Sobre a responsabilidade, o
palavras de Arendt é a imprevisibilidade
pensamento de Hannah Arendt converge
das ações, a singularidade de cada
com as ideias de Mikhail Bakhtin, pois
existência e a confiança dos homens entre
ambos advogam que não há álibi para a
si. A pluralidade do agir no mundo está no
ação dos homens no mundo, ou seja, cada
cerne da condição humana. No ato de
qual é responsável pelo modo como
pesquisar também enfrentamos as mesmas
transforma seu pensamento em ação.
questões. O discurso é a efetivação da
Arendt afirma que a ação e o nascimento
pluralidade, do viver como ser singular
estão estreitamente ligados. Para cada
entre iguais, posto que: “A pluralidade é a
nascimento uma nova história se projeta
condição da ação humana pelo fato de
para o futuro. Cada pessoa é artífice da
sermos todos os mesmos, isto é, humanos,
materialidade e da cultura, expressão de
sem que ninguém seja exatamente igual a
sua existência na construção do futuro.
qualquer pessoa que tenha existido, exista
Viver é um permanente risco, mas a
ou venha a existir.” (Arendt, 2004 / 1958,
confiança no que há de mais humano nos
p. 16).
homens é fundamental para o
Assim, de acordo com estes
enfrentamento dos riscos.
argumentos, pode-se afirmar que é na ação
e no discurso que os homens mostram
Em toda ação a pessoa se exprime de uma
maneira que não existe em outra atividade.
quem são, revelam suas identidades
Daí a palavra é também uma forma de pessoais e singulares, e assim apresentam-
ação. Eis então o primeiro risco. O se ao mundo, respondendo a pergunta que
segundo é o seguinte: nós começamos
recebem ao nascer: “Quem és?”
alguma coisa, jogamos nossas redes em
Por este viés retomamos a questão
uma trama de relações, e nunca sabemos
qual será o resultado... Isso vale para da ética na pesquisa ao indagar sobre a

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atitude do pesquisador em relação à sua mundo da vida para o mundo da cultura.
tarefa. Quais são os efeitos do seu No diálogo com outros textos ele penetra o
pensamento nas práticas sociais? Suas fluxo infinito dos discursos e torna-se
pesquisas estariam enclausurando as responsável por aquilo que o seu texto
diferenças e fortalecendo as técnicas de acaba por fazer existir no mundo da vida.
controle, ou incentivando a produção de As performances textuais, sejam na vida
um conhecimento que faça justiça à ou na teoria, alimentam a cadeia dos
liberdade de expressão e criação? Estas discursos na grande temporalidade, ora se
perguntas são essenciais quando se omitindo através do silêncio, ora
pretende superar as metodologias que permitindo que determinadas questões
prestam contas apenas às reproduções da ganhem expressividade no texto. O texto é
eficácia dos métodos, impedindo, deste o lugar onde se materializam as vozes e o
modo, o surgimento de alternativas mais silêncio, revelando os modos como os
criativas de invenção do cotidiano. homens participam da criação de si mesmo
Ao problematizar o modelo e dos rumos da história. Não existe a
hegemônico de razão absoluta e atemporal, primeira nem a última palavra e não há
estes autores colocam em cheque os limites para a criação discursiva no grande
discursos teóricos que desconsideram a tempo. O texto é o ponto de partida. Onde
densidade das experiências singulares para não há texto, não há objeto de pesquisa.
a produção do conhecimento no campo da
psicologia. Neste debate se explicita o Notas
compromisso ético do pesquisador com a
1
sua tarefa, na qual pensar se transforma A pesquisa com pessoas que possuem
numa extraordinária atenção para si limitações para ler e interagir com textos
mesmo, para o outro e para o mundo. (que não sabem ler ou que possuem
Também requer despojamento, alguma necessidade especial) requer
disponibilidade, além da recusa a inventar outros modos de incluir os
esquemas interpretativos preparados a interlocutores na feitura do texto, como por
priori. Em síntese, o compromisso do exemplo, pela via da oralidade.
pesquisador é com a densidade e a
profundidade do que é possível ser
revelado com o ato de pesquisar.
Ao escrever seu texto, o
pesquisador concretiza a passagem do

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Jobim e Souza, S.; Carvalho, C.
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Solange Jobim e Souza: Doutora em
Benjamin. Belo Horizonte, MG;
Educação. Professora Associada do
São Paulo, SP: Editora UFMG /
Departamento de Psicologia da PUC-Rio.

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Jobim e Souza, S.; Carvalho, C.
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Coordenadora do Grupo de Pesquisa da
Subjetividade (GIPS) e do Núcleo
Interdisciplinar de Memória, Subjetividade
e Cultura. Pesquisadora do CNPq.
E-mail: soljobim@puc-rio.br

Cíntia de Sousa Carvalho: Psicóloga.


Doutora em Psicologia pela PUC-Rio.
Professora do Centro Universitário de
Barra Mansa.
E-mail: cintiapsicologia_51@hotmail.com

Enviado em: 30/07/2015 – Aceito em: 15/09/2015

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