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Juan Flores

au t oTradução:
r con v i da
Bernardo dO
Maranhão

A psicanálise:
impacto da realidade social
Psychoanalysis:
the impact of social reality
Juan Flores
Tradução: Bernardo Maranhão

Resumo
O questionamento da “objetividade” supõe presumir que toda teoria é abordada a partir de
um lugar e que isso supõe aceitar a existência de um “viés”. Por isso, é preciso admitir que o
panorama observável depende do ponto de vista do observador, e renunciar então às preten-
sões de totalidade de “universalidade” do observado. A assunção dessa perspectiva pode levar
a reconhecer a implicação do lugar a partir do qual se trabalha e se pensa. No entanto, essa
tomada de partido supõe uma ótica que leve em conta o atravessamento inevitável do conflito
social e a contradição histórica em toda empreitada de conhecimento. A única “objetividade”
esperável seria aquela que não esconde seus valores, mas assume consciente e explicitamente
os pressupostos que a sustentam.

Palavras-chave: Psicanálise, Objetividade, Ideologia, Contratransferência, Conflito social.

O pesquisador, o analista ximado quanto mais se acerque a amostra ao


Crítico da psicanálise e de seu método, Karl que é pedido pelo enunciado dos “grandes
Popper, sustenta que números”), abre as portas para o debate da
atribuição de “objetividade” à sociedade e à
[...] a objetividade se encontra intimamente história.
ligada ao aspecto social do método científico, Sob essa ótica já não se busca manter afas-
ao fato de que a ciência e a objetividade cien- tada a subjetividade do pesquisador – pre-
tífica não resultam (nem podem resultar) dos tensão ilusória e inútil – mas incorporar ou-
esforços de um homem de ciência individual tras subjetividades equivalentes. Sociedade e
por ser ‘objetivo’, mas da cooperação de mui- história constroem, assim, uma “objetivida-
tos homens de ciência. (Popper citado por de” que deve incluir os conflitos e questio-
Baranger, 2004, p. 172). na uma pretensa “imparcialidade” por uma
“parcialidade múltipla” que daria conta exata
Esse critério, que separa a objetividade das relações de força em cada momento.
das pretensões de “imparcialidade” (aspira- Sobre o tema da objetividade, coloca-se
ção que implicaria desumanizar o observa- para a psicanálise um problema relevante:
dor ou concebê-lo como “dessocializado”) não pode contentar-se com uma mera repe-
para aproximá-la de uma sorte de resultado tição dos slogans genéricos que se aplicam
estatístico surgido da integração de muitos em outras ciências, por “duras” que sejam e
pontos de vista diferentes (e tão mais apro- por mais que ostentem prestígio. A neces-

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A psicanálise: impacto da realidade social

sidade de circunscrever o objeto, afastando formas, de averiguar por que se organizaram


tanto quanto possível as perturbações que as dessa e não de outra maneira.
“projeções individuais” produzem, de Desde o início, todo conhecimento está
atravessado (“contaminado”) pelo próprio
saber como objetivar a relação com o objeto observador, com tudo o que este inclui em
de modo tal que o discurso sobre o objeto não termos de implicações sociais, políticas e
seja uma simples projeção de uma relação in- culturais.
consciente com o objeto. (Bourdieu citado Para Bachelard citado por Baranger
por Baranger, 2004, p. 181). (2004, p. 177),

Essa tarefa exige uma análise profunda [...] a primeira objetividade, o contrato es-
das relações e implicações entre sujeito (pes- pontâneo e imediato que o espírito estabelece
quisador, analista) e objeto (fenômeno, pa- com o objeto, numa palavra, o conhecimen-
ciente), e de ambos com o marco de referên- to sensível, é uma aproximação carregada de
cias imediato da observação (teoria, enqua- projeções individuais. O papel da psicanálise
dre, etc.) e, ainda mais além, com o contexto é nos fazer tomar consciência desse fato.
histórico-social, determinante último das
condições de existência e desenvolvimento A rigor, é necessário assinalar que tam-
de cada um desses elementos. pouco a própria psicanálise está isenta dessa
Em outras palavras, requer um trabalho “contaminação”: no máximo, tem consciên-
detalhado sobre a transferência e a contra- cia disso e pode assim se manter atenta a seus
transferência, capaz de penetrar na comple- efeitos, eludindo as armadilhas que o mani-
xidade de implicações recíprocas e filtrar as festa semeia no caminho do conhecimento.
interferências, que não são “impurezas” mas De fato, para Bourdieu citado por Baran-
o próprio material que a análise permite para ger (2004, p. 167),
gerar o processo de conhecimento.
Nesse sentido, assinala Bachelard citado [...] quanto mais ‘realista’ for a descrição da
por Baranger (2004, p. 177) que, prática científica, menos acessível será a con-
secução da objetividade.
[...] se o conhecimento consiste na implan-
tação de relações entre o sujeito e o objeto A chamada “interferência do observador
e se a objetividade é uma conquista sobre a na observação” já é um tópico nas ciências, e
subjetividade original, toda ciência em estado não só nas “sociais”. E sequer as ciências “du-
nascente e todo espírito em vias de formação ras”, aparentemente blindadas em seu méto-
encontrarão obstáculos em sua marcha para a do, ignoram hoje que a observação contém o
objetividade. dispositivo e o instrumento, mas também o
próprio observador, sua localização no mun-
É necessário matizar o significado essen- do, e que as teorias em que ele se apoia alte-
cial e talvez o caráter de “conquista” atribuí- ram a cena e perturbam o objeto de estudo.
do à objetividade, já que ela só pode ser um Nas “ciências humanas” – e na psicanálise
horizonte possível na medida em que saiba- isso assume inclusive um papel de destaque
mos quais são os obstáculos que dificultam – essa comprovação é ainda mais óbvia.
o caminho para o conhecimento, no qual Bourdieu citado por Baranger (2004, p.
habitam o mais significativo das relações en- 181) declara que
tre sujeito e objeto, e já que, portanto, não se
trata de evitá-los e sim de fazê-los falar, de [...] o sociólogo [em nosso caso diríamos “o
estar atentos ao que os levou a adotar essas psicanalista”] deve esclarecer o que sua prá-

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tica deve à sua posição social, com relação ao devolve ao campo da subjetividade, da ideo-
que vê e não vê, o que faz e o que não faz [...] logia e do inconsciente.

Seu “ser social” (usando uma terminolo- A ideologia: dependência ou liberação?


gia marxiana) é, com efeito, o que determi- O primeiro dos obstáculos que se erguem
na sua capacidade de ver e atuar, engendra tradicionalmente em face da “objetividade”
os instrumentos e conhecimentos de que se científica, o primeiro agente “contaminante”
vale, alimenta os propósitos que o alentam, para toda teoria é o da ideologia, na medi-
define os critérios de verdade que guiam da em que sua existência representa aceitar
seus passos e fixa os valores e normas com os o viés, admitir que o panorama observável
quais avaliará os resultados obtidos. depende do ponto de vista do observador e
Essa exigência implica a maneira particu- renunciar, então, às pretensões de totalidade
lar de relacionar-se com o objeto de conhe- e “universalidade” do observado. A assun-
cimento que é característica da psicanálise, ção dessa perspectiva pode dar lugar ao re-
maneira que se apoia justamente, pela via da conhecimento da necessidade “objetiva” de
análise da transferência e da contratransfe- assumir o lugar a partir do qual se trabalha
rência, no papel assumidos pelos vínculos e se pensa. De todo modo, essa tomada de
sujeito-objeto e analista-paciente, na produ- partido supõe uma ótica que leve em conta o
ção de conhecimento e na transformação da atravessamento inevitável do conflito social
realidade subjetiva. e a contradição histórica em toda empreita-
Quanto à implicação do contexto histó- da de conhecimento. A única “objetividade”
rico-social na produção do conhecimento, esperável seria aquela que não esconde seus
quer provenha das condições “objetivas” da valores, mas assume consciente e explicita-
investigação, quer das que nesta se implicam mente os pressupostos que a sustentam.
por intermédio dos agentes, é constitutiva A sociedade, a partir de uma hegemonia
de toda prática social e extensiva a qualquer gerada, tenta dissimular sua ideologia detrás
produto ou conhecimento, além de repre- de uma aparente prescindência que se apoia
sentar, em última instância, nada mais, nada na naturalização ilusória das relações sociais
menos, que o meio pelo qual estes resultam existentes para ocultar suas origens e seus
incluídos na história. Mantém-se de pé o fato propósitos, propondo como modelo uma
de que “ao controle objetivo só se chega pela ciência com om conhecimento “não con-
via do controle social” (Bachelard citado taminado” pela realidade histórico-social,
por Baranger, 2004, p. 71). na qual tudo o que se refere aos conflitos e
Esse controle (que não tem por que coin- tensões que atuam nessa realidade fica repri-
cidir necessariamente com a espécie de “mé- mido. Isso não significa evidentemente que
dia estatística” que propunha Popper) é o esses conflitos desaparecem ou deixam de
que passa ao objeto de investigação pelo fil- atuar; na verdade, pesam, carregam, marcam
tro social. toda prática e todo pensamento. A diferen-
Tudo isso não impede constatar com Bour- ça consiste nas possibilidades oferecidas por
dieu citado por Baranger (2004, p. 174) que sabê-lo, tornar explícita a posição que ante
tais conflitos e assumir as consequências que
[...] a ciência funciona, em grande medida, derivam disso, tanto no nível social quanto
porque se consegue fazer crer que funciona no da produção do conhecimento. A “pres-
como se diz que funciona. cindência” – como em tudo – não é neutra
como se pretende, e sim mera submissão à
A “objetividade” proclamada termina por ideologia dominante, aceitação acrítica das
ceder passagem em favor da crença. Isso nos condições existentes.

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Nesse sentido, Loureau (2001) assinala ao paciente, o qual de alguma maneira mani-
que toda epistemologia, toda ética nas ciên- festa-o em seus sintomas. De fato, o “princí-
cias da matéria, da vida, do homem estão, pio de realidade”, ao qual a psicanálise atribui
agora ainda mais, cobertas pelo guarda-chu- um papel de primeira importância na econo-
vas do comércio mundial ao modo de “gran- mia psíquica, conta-se entre seus postulados
de novela”. No fim das contas, é a ideologia teóricos fundamentais. Desse modo, tudo, a
dominante, hegemônica, em nossa atualida- “realidade”, o que esta representa e implica, é
de, a do mercado, a que se impõe no labora- objeto de debate, dentro e fora da psicanálise.
tório ou na academia e nas novas cenografias Zizek (2003, p. 76), citando Lacan, afirma
do comércio eletrônico. Os paradigmas ou os que
projetos políticos, os programas de pesquisa
ou de ação a favor disto e contra aquilo, estão [...] a ‘realidade’ é uma construção da fanta-
ajustados ao mesmo referente, ao mesmo in- sia que nos permite mascarar o Real de nosso
terpretante último: a democracia já não é um desejo.
fim a alcançar, a liberdade não é mais uma
causa vital; são as condições de instalação e De fato, na fantasia, o mundo histórico-
manutenção de uma livre circulação do capi- social se desmaterializa, e só aparece nas
tal, da mercadoria. (Loureau, 2001). marcas que deixou no inconsciente do sujei-
Basicamente descrito, é esse o marco con- to.
textual dentro do qual se inscreve toda prá- Contudo,
tica, todo conhecimento. Marco conflitivo,
opaco, em que as causas e os mecanismos [...] a partir de uma perspectiva materialis-
responsáveis pelo conflito histórico e pelo ta (histórica), o real (tomado agora em um
sofrimento social se encontram reprimidos sentido amplo, embora sempre distinto da
e se manifestam sob as diversas formas de ‘realidade’), continua existindo além e aquém
“mal-estar social”, as quais podem chegar até de sua percepção ou de sua constituição pelo
à explosão coletiva, por um lado, e ao trauma discurso. (Grüner, 2002, p. 102).
psíquico, por outro. (Dejours, 2006).
Quanto a isso, Zizek (2003, p. 67) sustenta Robert Castel assinala que “o núcleo pro-
que saico” que organiza a existência humana,
“o corpo (biologia), as necessidades (eco-
[...] o que se ‘reprime’ não é uma origem obs- nomia), a violência social (política)”, exis-
cura da Lei, mas o faro mesmo de que não há te sempre ainda que se nos apresente sob a
que aceitar a Lei como verdade, mas unica- forma de um discurso, e atua a partir de sua
mente como necessária. ineludível materialidade.
É nesse sentido que Caruso (1966, p. 209)
Assim, o que se naturaliza das relações indica que
sociais seria sobretudo seu aspecto mutável,
convertendo a Lei em “essência”, reprimindo [...] os fatores sociais, econômicos, políticos
a história como marco geral e não somente e ideológicos não podem se reduzir simples-
como genealogia específica. A psicanálise, mente a fatores psicológicos. Um “tratamen-
como teoria e prática, não pode se manter to psicológico” de uma ideologia social seria
indiferente, não ser impactada ante os efeitos uma ilusão perigosa, seria um totalitarismo
das implicações que a realidade produz sobre disfarçado.
o sujeito, tanto no que diz respeito ao analis-
ta – como sujeito, mas também (e sobretudo) Circunscrever o real à realidade psíquica
como terapeuta –, quanto no que concerne e ao desejo inconsciente só pode nos impedir

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o caminho de seu conhecimento e desembo- do objeto daquela e exige, portanto, sua aten-
car na repressão de uma parte fundamental ção. Nesse sentido, a psicanálise deve enfren-
do que nos constitui. tar o obstáculo de sua própria implicação.
Por isso, Zizek (2003, p. 61) afirma que Isso é assinalado pelos Baranger quando
afirmam que
[...] o nível fundamental da ideologia [...] não
é o de uma ilusão que mascare o estado real [...] a psicanálise é uma ideologia no sentido
das coisas, mas o de uma fantasia (incons- estrito e no sentido amplo da palavra. (Ba-
ciente) que estrutura nossa própria realidade ranger; Baranger, 1969, p. 104).
social.
A psicanálise consiste, por um lado, em
Ao fazer isso, o autor reafirma a noção de um conjunto sistematizado de represen-
que não é a ideologia, e muito menos se con- tações e, por outro, representa uma visão
cebida como ilusão ou fantasia inconsciente, determinada sobre o mundo, uma pers-
o que estrutura nossa realidade social, e sim pectiva de ação, um conjunto de valores
o inverso. que podem reger a conduta. Explicitar essa
Em todo caso, é a maneira como essa perspectiva, esses valores, permite cons-
realidade social se inscreve em nosso corpo truir um discurso no qual o mundo não
(isto é, em nossa mente) – no modo como se está alheio: a psicanálise e o psicanalista se
organiza sua forma subjetiva – o que põe em verão confrontados com a necessidade de
jogo os mecanismos inconscientes e se estru- tomar posição, de “eleger seu bando” em
tura em forma de ideologia, de fantasia, de face das questões que afetam seu objeto de
discurso. conhecimento.
Reduzir a ideologia a uma pura fantasia Dito de outro modo, “há uma ética psi-
inconsciente, a uma “relação imaginária” canalítica” a ser assumida e declarada (Ba-
com as condições reais de existência, priva- ranger; Baranger, 1969, p. 104). Essa “in-
nos novamente – ao reprimi-lo – de tudo corporação da psicanálise” no mundo e sua
o que o conceito carrega em termos de ex- assunção como produto histórico fazem com
pressão consciente, de “eleição de um bando” que Castel (1980, p. 15) denuncie
como expressão de uma vontade livre, de re-
conhecimento do que isso significa na defi- [...] o lugar privilegiado que a psicanálise ocu-
nição do lugar que cada um ocupa no campo pa hoje entre as ideologias dominantes e as
da luta social (e ideológica, no sentido clás- instituições de controle social.)
sico) como condição essencial parra não cair
em equívocos universalistas que mascaram Com isso, Castel faz eco de uma polêmica
posições e atitudes concretas tendentes a cuja mera existência poderia também servir
preservar – ao retirar-lhes sua historicidade de testemunho acerca da preocupação (do
– as condições sociais e ideológicas existen- “mal-estar) que existe em seu próprio seio (a
tes. A ideologia é um elemento fundamental instituição psicanalítica) e da atenção que es-
na relação do homem com o mundo e com ses problemas suscitam entre os psicanalistas.
seus semelhantes, subjaz, de maneira aberta De fato, a chamada “vocação revolucionária”
ou velada, a qualquer ato humano e constitui da psicanálise, tão invocada em alguns seto-
parte essencial de toda teoria. res, não obrigatoriamente leva ao reconheci-
mento de sua implicação na esfera dos confli-
Psicanálise e ideologia tos sócio-históricos – no plano da revolução
A psicanálise não é um instrumento específi- social ou, ao menos, no da participação ativa
co de análise da ideologia, mas esta faz parte nos conflitos que atravessam a sociedade – e

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pode muito bem ficar limitada, em suma, à incompatibilidade ideológica entre analista e
esfera da análise do inconsciente individual. analisando. (Baranger; Baranger, 1969, p.
A psicanálise pode se reconhecer revo- 106).
lucionária, de todo modo, e sem dúvida, na
medida em que derruba o “essencialismo do De fato, mesmo em condições de relativa
Sujeito moderno” a que se referia Grüner “paz” social, a análise pode enfrentar (por ig-
(2002), mas de uma “revolução” que deixa norar ou reprimir aquilo que o contexto his-
mais ou menos intactas as estruturas sociais, tórico impõe a todo sujeito e a todo vínculo
que não questiona e talvez sequer nem roce social) um fracasso (uma impossibilidade)
a repressão – inclusive aquela que se leva a ou converter-se diretamente em uma prática
cabo no inconsciente – naquilo que ela tem iatrogênica, expondo o analista ou o paciente
de instrumento de controle social. De fato, (ou ambos ao mesmo tempo) a riscos impor-
a corrente mais tradicional da psicanálise – tantes.
a qual envolve grande parte do movimen-
to psicanalítico internacional – fecha seus A psicanálise, a política e o social
olhos para essas temáticas e escamoteia a Em realidade, desde Freud mesmo, a psica-
discussão conceitual sobre esses tópicos. A nálise tem reivindicado a dimensão social do
negação dessas vicissitudes não muda o fato sujeito, como fica claro em seu postulado de
de que a psicanálise, pelo simples fato de ser que a psicologia individual é simultaneamen-
um produto sócio-histórico, está atravessada te social (Freud, [1921] 1994). Ainda mais,
ideologicamente e circunscrita pelo mundo longe de se ensimesmar no abismo da mente
extra-analítico. Os dispositivos cuidadosa- humana, Freud se sentiu obrigado a estender
mente instalados pelo enquadre, por exem- suas indagações para além do psiquismo e
plo, procuram construir um marco que (ao do inconsciente individual para dar conta do
menos idealmente) deveria permitir à aná- “mal-estar na cultura”, assomar à “psicologia
lise concentrar seu trabalho no inconsciente das massas”, abordar as “ilusõe s” religiosas,
do analisando, mas ainda assim não se pode dar a palavra aos mitos, interrogar a arte e a
ignorar o fato de que a literatura de seu próprio tempo e de épocas
passadas. Tampouco foi indiferente à política,
[...] relação analisando-analista é, entre ou- ao menos em suas manifestações mais gerais
tras coisas, uma relação ideológica, e a regra ou mais extremas, e, apesar de seu ceticismo
de abstinência é contraditória com a essência a respeito da possibilidade de eliminar o so-
mesma da relação interpretativa. (Baranger; frimento humano pela via da mudança so-
Baranger, 1969, p. 105). cial (a qual não deixava de considerar positi-
va), dedicou profundas reflexões ao tema da
Com efeito: onde reina a abstenção, não guerra. Nelas, fica clara sua atitude cética ante
há análise. Não existe, tampouco, interpreta- a natureza da alma humana, de maneira que
ção que seja “neutra”, desideologizada, ain-
da que alguns psicanalistas se empenhem [...] seu progressismo sem ilusões não deve-
em sustentar um critério de “prescindência”, ria sonhar com a erradicação das pulsões de
como se isso pudesse “colocar entre parênte- crueldade e de poder, tanto as que dependem
ses” (tal é a fórmula empregada) o real extra do cotidiano quanto as que desgraçadamente
-analítico. Sem sequer entrar na análise das abundam na história. (Major; Tallagrand,
situações mais óbvias, podem ocorrer 2007, p. 196).

[...] situações transferenciais e contratransfe- Tampouco desdenhou elaborar (com a


renciais muito complexas no caso de existir colaboração de William Bullit) um estudo

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biográfico sobre o presidente estaduniden- laços e se estabelecem vasos comunicantes,


se Thomas Woodrow Wilson (“pai” da Liga correias de transmissão, canais pelos quais
das Nações, cuja figura despertava nele uma circula a ordem social tal como esta se ins-
forte antipatia), trabalho no qual eludiu as creve nos sujeitos. Os modos de circulação
tentações de uma psicobiografia para expor dessa ordem se apoiam e se modelam no
primeiro núcleo de inclusão social a que o
[...] a continuidade entre os sonhos messiâni- homem se incorpora: a família. É a família o
cos de um homem chegado ao poder e a fan- instrumento fundamental de transmissão do
tasia de desejo de um povo. (Major; Talla- vínculo social.
grand, 2007, p. 192). Ora, para Freud,

Assinala Perrés (1998, p. 5) que Freud, em [...] o vínculo social, longe de ser explicável
especial, pela existência de uma única ‘grande família’,
isomorfa ou similar à célula familiar propria-
[...] e também seus primeiros discípulos, con- mente dita, se manteria como uma cadeia
frontaram criticamente a sociedade, a cultura, interminável de ‘vínculos libidinais’ que vão
para fazer sobre ela uma leitura psicanalítica, se especificando ao se distanciarem da célula
a partir do estudo dos efeitos do inconscien- familiar, conservando com esta uma relação
te. A preocupação com a relação indivíduo- constante. (Loureau, 2001, p. 157).
-sociedade (exigência impostas pela cultura
à vida pulsional, submetimento às normas Desse modo, fica evidente que esse vín-
da vida em sociedade, etc.) existiu sempre no culo não corresponde a uma homologia de
jovem Freud, e pode ser encontrada em seus formas, produto de uma “essência” única
intercâmbios epistolares. imanente (o que permitiria afirmar o vínculo
como um fato “natural” e a-histórico), e sim
Esse interesse sempre crítico de Freud depende das condições de tempo e lugar que
pela “coisa social”, que o levava a tentar abor- lhe são próprias. Nesse sentido,
dar as implicações do inconsciente na socie-
dade, esteve sempre presente no movimento [...] o que está estruturado libidinalmente não
psicanalítico, inclusive depois da institucio- é a “sociedade” como vasta organização dos
nalização deste e da legitimação das corren- possíveis, e sim cada elo constitutivo do vín-
tes que buscavam (com êxito, em muitos ca- culo social. (Loureau, 2001, p. 157).
sos) desviar seu rumo em direção a um canal
de “adaptação” social. Apesar disso, o espí- Não é pertinente, então, buscar uma “libi-
rito original, o sopro vital renovador (e cer- do social”, e sim determinar os canais pelos
tamente contestatório) insuflado por Freud quais a libido circula entre os distintos sujei-
nunca deixou de se fazer sentir. tos, as mediações e os atravessamentos que a
Como explica Rozitchner (2003, p. 19), marcam e as modalidades que ela vai assu-
mindo, a fim de entender as maneiras como
Freud [...] mostrará que dentro do campo tudo isso vai deixando suas marcas, dando
chamado ‘subjetivo’ persistem, como catego- forma particular ao vínculo social.
rias descritivas de sua compreensão e de seu Rozitchner (2003, p. 19) afirma que
funcionamento, as categorias presentes na or-
dem repressiva social. [...] em Freud se trataria de explicar a estru-
tura subjetiva como uma organização racio-
Essa persistência remete a uma circula- nal do corpo pulsional por império da forma
ção. Entre sujeito e sociedade se enodam social.

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Ora, essa forma social, organizadora da reu em um produto autônomo, em uma “es-
estrutura subjetiva, obviamente não pode ser sência” eterna da “alma” humana, inalterável
ignorada na análise. Para que possa ter lugar e imóvel. No ato analítico, como vemos, en-
e para que esse lugar não seja ocupado por trecruzam-se as implicações. Os “pontos de
um simulacro, continuidade e de ruptura” entre o conflito
psíquico e o conflito social, as implicações
[...] faz-se necessário articular os pontos de políticas e sociais de analista e paciente, atra-
continuidade e de ruptura entre o conflito vessam tanto a transferência como a contra-
psíquico e o conflito social, os umbrais onde transferência, com a dificuldade adicional
se marcam a entrada e a retração do políti- indicada por Waisbrot (seguindo Aulaigner):
co, onde se neutralizam as relações do sujeito
com a lei e as relações da lei com a legitimida- [...] o discurso social cumpre uma função
de do desejo. (Major, 1984, p. 6). identificadora, que é a essência do ‘contrato
narcisista’ postulado por Aulagnier como o
Nesse sentido, se o que está reprimido na fenômeno mais difícil de analisar, na medida
sociedade e no indivíduo (e pela sociedade em que implica ambos os membros da cena
no indivíduo) é que não é preciso aceitar a analítica. (Waisbrot, 2002, p. 100).
Lei como verdade, senão unicamente como
necessária e, para que a análise seja digna A necessidade simultânea de manter-se
desse nome, essa questão não pode ser omi- atento (proximidade) e de tomar perspectiva
tida, não pode ser ignorada (Zizek, 2003). (distância) das condicionantes sócio-histó-
De fato, ricas implicadas no ato analítico, eludindo
as propostas (os engodos) identificatórias
[...] para chegar a esse ponto a psicanálise que surgem tanto do meio social e históri-
deve romper com a ilusão de estar dissociada co como do próprio paciente (e também
do jurídico. (Major, 1984, p. 6). do analista), para concentrar-se no desejo
inconsciente daquele sem cair em um re-
Com efeito, essas ilusões, se mantidas, po- ducionismo negador daquilo que o mundo
dem ofuscar o psicanalista, nublar sua visão, material põe no caminho da análise, obriga o
obnubilá-lo. A Lei sempre se faz presente na analista a reforçar suas precauções, e o man-
cena analítica, haja o que houver e pense o damento de manter na escuta analítica uma
que pensar qualquer dos membros do par “atenção flutuante”, necessária para dar lugar
analítico. Está presente na maneira como se a um diálogo que não caia na prédica, pode
fez carne no psicanalista e no paciente, na se mostrar insuficiente para tanto.
forma como está implicada na teoria e na
técnica psicanalíticas. Esquecer esse dado Dos “deveres sociais
implica fechar os olhos para nada menos que e políticos” da psicanálise
o instrumento de repressão por excelência. Se a psicanálise está implicada em sua rela-
Nesse sentido, tem sido assinalado que ção com a realidade e o mundo, é lógico que
se requeiram dela atitudes coerentes com
[...] a responsabilidade individual frente ao isso, ou seja, que lhe sejam reconhecidos cer-
Supereu pode ser inteiramente ‘falsa’[...] o su- tos “deveres”. Haverá aqueles que, a partir de
pereu é uma ‘instância’ socialmente talhada. sua própria visão ideológica pedem da psi-
(Caruso, 1966, p. 31). canálise (e do psicanalista) um compromisso
ativo com as lutas sociais de liberação. Have-
Esse “entalhe social” não pode ser ignora- rá outros que, a partir do outro extremo, atri-
do na análise, sob pena de converter o supe- buirão à psicanálise funções adaptativas, isto
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é, orientadas para o controle social e a sub- É certo que em grande parte das institui-
missão de dissidências. Ainda que ambas as ções psicanalíticas tornou-se hegemônica a
alternativas sejam ideológica e praticamente tendência de não considerar esses elementos
possíveis (e, de fato, ambas encontram seus atuando na relação terapêutica, limitando as
defensores), não são em absoluto equivalen- intervenções “sociais” da psicanálise quase
tes do ponto de vista da psicanálise. Con- exclusivamente às improvisações midiáticas
verter a psicanálise em um instrumento de de alguns de seus membros, sem aprofundar
promoção das posições sociais e políticas do seriamente a investigação nem fazer nenhum
analista –sejam elas quais forem – representa intento de redirigir a escuta para o “discurso
um avassalamento da intimidade do sujeito, social”.
imperdoável eticamente e incompatível com Como relata Emilio Rodrigué (1996),
os postulados essenciais que tornam possível o intento de dar um maior sentido social à
a psicanálise. Mas a negação do social e do psicanálise serviu para socializá-la (isso era e
político ou sua inclusão na análise marcam continua sendo importante). Mas socializar
também um divisor de águas. não quer dizer entender o social. Aí, segundo
As incompatibilidades ideológicas en- Rodrigué, estava o erro, o social continuava
tre analista e paciente podem, sem dúvida, basicamente impenetrável à psicanálise. Mas
complicar a análise da relação transferencial ao menos se trouxera o social à superfície,
e, inclusive, impossibilitar a tarefa analítica, voltava-se a fazê-lo visível.
na medida em que o terapeuta perca a pos- Alguns adotaram uma posição de franco
sibilidade de manejar seu próprio desejo in- ceticismo com respeito à possibilidade de
consciente de modificar o paciente em uma avançar na tarefa. Castel, que não faz uma
determinada direção ou não queira “fazer-se oposição cerrada e sistemática à psicanálise,
cúmplice” do que seu paciente representa, ou, e sim delineia com seriedade e respeito uma
inversamente, quando o paciente não se sinta série de objeções, tanto no nível da teoria
em condições de falar e associar livremente quanto no da prática, sustenta, em particu-
diante de seu analista. De todo modo, é pou- lar, que “como tal, a psicanálise oculta sem-
co frequente chegar a semelhantes extremos. pre os problemas sociopolíticos” (Castel,
Tanto paciente quanto analisando costumam 1980, p. 11).
fazer uma seleção prévia e, em geral, as di- A fórmula é taxativa: para Castel, a ocul-
ferenças que poderiam surgir não chegam a tação não é ocasional nem depende de uma
ser tão conflitivas. Ainda assim, a negação da aplicação defeituosa da teoria: ocorre “sem-
dimensão coletiva do sujeito não é neutra. pre”. De maneira que, na medida em que re-
A tarefa de Freud como pioneiro para sulta impossível (a partir da psicanálise) per-
“abrir o caminho” nessa direção nunca foi ceber com suficiente nitidez os problemas
abandonada pela psicanálise. A presença do sociopolíticos, só cabe deduzir que
coletivo a cada passo da análise era muito
óbvia, e era necessário um esforço consciente [...] os defensores de uma revolução pela psi-
e contínuo de negação para apartá-lo. canálise têm realmente uma concepção idea-
Ainda no mais íntimo da consulta, lista da revolução, da história e da sociedade.
(Castel, 1980, p. 95).
[...] dos problemas que cotidianamente nos
apresentam nossos doentes, vamos entrando, A “revolução pela psicanálise” tem sido,
insensivelmente, quer o queiramos, quer não, com efeito, uma aspiração (e mesmo uma
nos da família, da comunidade, do país e do inspiração) para muitos psicanalistas que
mundo em que estamos imersos. (Bermann, sentiram a necessidade de comprometer-se
1964, p. 241-242). com as lutas e os conflitos sociais e históricos

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A psicanálise: impacto da realidade social

que atravessavam suas vidas. Aspiração utó- trumento terapêutica de investigação do in-
pica, sem dúvida (onipotente, talvez), mas consciente), a psicanálise
que colocou em destaque a necessidade de
novos desenvolvimentos teóricos, de explo- [...] é capaz, de certa maneira e em certas cir-
rar, com o instrumento conceitual desenvol- cunstâncias bem precisas, de liberar o indiví-
vido pela psicanálise, regiões novas, tanto no duo de certas restrições sociais (pela via dos
interior do inconsciente quanto fora dele. novos investimentos que expressariam mais a
Não é que a psicanálise tenha sido com- lógica de seu desejo do que o peso dos deter-
pletamente estéril do ponto de vista social, minismos políticos e sociais). (Castel, 1980,
apesar das limitações mostradas por Castel p. 95).
quanto aos seus reais efeitos sobre as relações
sociais, os modos de vida concretos e as prá- Assim, pelo menos se alcançariam cer-
ticas da vida cotidiana dos sujeitos. tos resultados (da ordem a que se referia
Baremblitt) no nível das relações entre o
Para Gregorio Baremblitt (citado por Ber- indivíduo e a sociedade, um relativo “des-
mann, 1964, p. 241-242), locamento dos limites” entre eles, um re-
manejamento em benefício de uma maior
[...] aqueles atributos definidores do homem, liberdade do sujeito.
aqueles que fazem dele o que é, adquirem-se Na realidade, a “vinculação” social da psi-
no processo de socialização, portanto o tera- canálise conta hoje com instrumentos mais
peuta encarregado de curar o homem enfer- diversificados. Por um lado, pelo desenvol-
mo cura a parte da sociedade que está incluí- vimento de uma série de práticas terapêuti-
da na essência do próprio homem. cas (terapias de grupo, de casal, de família,
psicodrama etc.) nas quais se aplica a teoria
Cura parcial, limitada, pontual, mas “te- psicanalítica, mas que levam a posiciona-
rapia social” enfim, ainda que seja em escala mentos técnicos distintos, e, por outro, pela
“micro”. participação (escassa) de psicanalistas em
Nessas condições, decerto, alcançar al- instituições assistenciais – públicas ou priva-
gum efeito na proporção da sociedade se das – que apresentam condições distintas e
apresenta como um trabalho de formiga, apontam para um público muito mais diver-
inacabável, interminável, talvez irrealizável. sificado que aquele que tem acesso ao con-
E (ademais e sobretudo) limitado pela falta sultório privado.
de sistematização das condições necessárias Nessas instituições, o psicanalista se vê
da escuta, de elaboração dos conceitos capa- obrigado (nem sempre de bom grado) – e em
zes de dar conta do observado nessa escuta um contexto frequentemente desfavorável, é
e de sua estruturação em um corpo teórico certo, com efeitos potencialmente benéficos
organizado. Ora, sem avançar nessas tarefas quanto à flexibilização do dispositivo de es-
é difícil ampliar a visada da psicanálise e de- cuta – a levar adiante a tarefa terapêutica por
senvolver o alcance de seus conhecimentos fora das regras de enquadre convencionais,
e efeitos sociais. É difícil ver para além da ainda que mantenha a abordagem da situa-
“luz indireta” que a sociedade projeta sobre ção a partir da teoria psicanalítica. Em todos
o inconsciente, iluminar a realidade social esses âmbitos, o psicanalista tem a ocasião
e política de frente, em lugar de percebê-la de entrar em contato com realidades dis-
apenas “através de seu reverso”. tintas, de ampliar sua escuta, de investigar
De todo modo (e mesmo para Castel, para além do dispositivo clássico de enqua-
cujas críticas não lhe impedem reconhecer dre. Nessa tarefa, o psicanalista com vocação
na psicanálise um valioso e renovador ins- social se vê confrontado com os adversários

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Juan Flores
Tradução: Bernardo Maranhão

que a psicanálise foi acumulando em sua his- Aprender a realidade


tória. A psicanálise encontra um problema quan-
Juan Carlos Volnovich (2003) assinala o do quer abordar a realidade extrapsíquica, já
triplo embate dos psicanalistas vinculados que, como assinala Castel (1980, p. 201),
aos programas sociais: com o Estado e os
aparatos de poder societal políticos, econô- [...] não dispõe em si mesma de categorias
micos e subjetivos; com a própria corporação para apreender o poder, o social o político etc.
psicanalítica; finalmente, com a inscrição da em sua objetividade não psíquica.
psicanálise no imaginário social como um
tratamento para uma elite de pessoas inteli- Isso resultaria, assim, “inanalisável”. Na
gentes, isto é, burguesas. realidade – e Freud sempre se encarregou de
Nesse contexto, os psicanalistas, em seu destacar isto –
devir político-social percebem claramente
a mudança que sofrem em sua implicação: [...] a psicanálise não é a psicoterapia, sequer
são psicanalistas e militantes de uma causa. a psicoterapia psicanalítica. (Castel, 1980, p.
(Volnovich, 2003). 40).
Se a implicação social da psicanálise se
revela ao mesmo tempo necessária e proble- É – sempre quis ser – antes de mais nada
mática, a atuação política tampouco lhe tem uma teoria do funcionamento da psique e
sido alheia, ainda que sempre se tenha tra- um instrumento de investigação.
tado mais propriamente de atender à polí- As funções terapêuticas (unidas e con-
tica interna, aos conflitos que tinham lugar substanciais ao método analítico, a ponto
dentro das instituições ou às disputas entre de haverem terminado por ocupar o centro
elas. da cena e deslocado os outros aspectos) re-
A presença da psicanálise na política ci- sultavam ser, se não acessórias ou secun-
dadã tem sido sempre manejada a partir das dárias, mais propriamente uma derivação,
instituições e tem sido caracterizada por seu uma consequência de sua aplicação. A aná-
caráter episódico e (no mais das vezes, in- lise não apontava diretamente para uma
clusive com Freud) e por estar carregada de meta terapêutica, e nem podia fazê-lo, na
oportunismo. Em contrapartida, no campo medida em que não havia um lugar defini-
teórico, a discussão política da psicanálise do ao qual se encaminhar: a meta terapêu-
(e dentro dela) tem sido contínua. A partir tica se encontrava no caminho. De fato, a
de alguns setores se reclamou da psicanáli- “cura” não consiste na volta a um estado
se uma participação ativa (em consonância original alterado por obra da neurose, mas
com sua “vocação revolucionária”) nos con- na construção de um novo equilíbrio psí-
flitos sociais ou pelo contrário, acusou-se a quico.
psicanálise de cumprir uma função essen- Como teoria – como instrumento de
cial na reprodução do sistema de domina- conhecimento do inconsciente – a psica-
ção. nálise aporta algumas particularidades e
A “disputa pelo sentido” foi, de fato, par- inovações radicais. No que diz respeito às
ticularmente visível na psicanálise, e seu tentativas realizadas no sentido de utili-
enfrentamento ou aliança (a partir da teo- zá-la para “apreender o poder, o social, o
ria e da prática) com as políticas orientadas político em sua objetividade não psíquica”
para a “liberação” do homem ou para pro- ela teve, no entanto, que enfrentar os obs-
duzir uma revolução social tem sido objeto táculos que sua própria estrutura – orien-
de conflitos e polêmicas, em particular com tada para o interior mais íntimo do sujeito
o marxismo. – levantava.

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A psicanálise: impacto da realidade social

De fato, para Castel (1980, p. 41), “tudo” sobre essas relações (apreendê-las)
como alguns pretendem (tanto nas chama-
[...] as dificuldades com as quais a psicanáli- das “esquerdas” quanto nas “direitas” lhe
se tropeçou para sair do marco que a origi- reclamar. Por outro lado, está claro que sua
nou, o do tratamento da neurose, e especial- especificidade quanto ao psíquico serviu de
mente, sobretudo em Freud, o das neuroses couraça para aqueles que consideram o so-
chamadas de transferência, são na realidade frimento íntimo de um paciente como alheio
dificuldades postas pelo deslocamento desse às determinações materiais dentro das quais
dispositivo. se dão as condições de desdobramento da
subjetividade e minimizam o fato de que essa
Particularmente, porque esse dispositivo subjetividade é constituída a partir da inser-
se baseava, para a observação do inconscien- ção social do sujeito, em permanente relação
te, justamente em “colocar entre parênteses” dialética com sua história individual e sua
os aspectos não psíquicos da realidade. contextualização social
Mas a capacidade da psicanálise para Dessa maneira,
compreender os fatos sociais se encontraria
também travada – além de pelo dispositivo [...] a distinção absoluta entre uma ordem do
analítico – por certos aspectos de sua teoria, inconsciente e uma ordem das relações de
aspectos que Castel (1980, p. 217) destaca ao produção e de dominação (ainda que logo se
assinalar que “articule” um aspecto ao outro) estabelece um
cordão sanitário em torno da ortodoxia psi-
[...] uma doutrina que percebe a exteriori- canalítica. (Castel, 1980, p. 33).
dade sob a forma do ‘princípio de realidade’,
ou seja, segundo a dialética do investimento, Essa ortodoxia pode se instalar conforta-
da retirada de investimento, do contrainves- velmente na ordem do inconsciente e confiar
timento etc. (renúncia, derivação, desloca- que o dispositivo analítico montado absor-
mento...), não pode proporcionar nunca um verá todos os embates que poderiam se dar
enfoque direto sobre o que é propriamente a partir de fora. Essa oposição, que constrói
social no social. Somente lança sobre ele uma a cena psicanalítico dando passagem ao es-
luz derivada, a partir dos interesses libidinais paço do inconsciente com base no desaloja-
dos indivíduos, unicamente. mento do espaço social (desalojamento que
só pode ser passageiro e ilusório) representa,
Saltar da libido individual para a socieda- assim, ao mesmo tempo, um requisito para a
de, como vimos, implica seguir uma longa e manifestação do inconsciente e uma barreira
complexa cadeia de enodamentos subjetivos para a expressão do social.
e, ainda assim, nos levaria, segundo Castel A implicação do “núcleo prosaico” na aná-
(1980), a perceber apenas uma imagem refra- lise deve então ser rastreada ou a partir das
tada (um reflexo), de algum modo incomple- marcas que o inconsciente produz ou com
ta e em muitos aspectos enganosa: “nunca”, base na abertura do dispositivo e na elabora-
enfatiza Castel (1980), poderá aprender todo ção de uma teoria e uma técnica específicas.
o social. Uma luz que só ilumina, um discur- Seja como for, o psicanalista como instru-
so que só fala dos aspectos da realidade ex- mento terapêutico não pode abrir mão da di-
terior vinculados ao desejo inconsciente não mensão social e política do sujeito. Deixá-la
podem dar uma imagem acabada do mundo de lado ou apartá-la significaria diminuir o
material, da “exterioridade” social e política. sujeito, podá-lo, aceitar que seria possível (e
De fato, a psicanálise não é uma teoria desejável) desenraizá-lo, privá-lo do substra-
das relações sociais e não teria por que dizer to de que se alimenta e vive: a subjetividade.

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Tradução: Bernardo Maranhão

Isso é, no mínimo, uma manipulação in- A implicação do social e do político resul-


direta que seguramente desembocará em um ta, assim, inseparável da cena analítica, por
distanciamento progressivo e paulatino de eles povoada a partir das posições subjetivas
todo compromisso político e na irrupção so- dos participantes e a partir da maneira como
terrada mas permanente da resignação e do essas posições estão incluídas (implicadas)
conformismo: trata-se, em outras palavras, na psicanálise. Isso se dá dessa maneira em
de um empobrecimento do sujeito. função de que
Ora, a relação terapêutica que se estabe-
lece na psicanálise contém elementos muito [...] a ideologia ‘científica’ do analista (os prin-
particulares. Nessa relação, tem lugar um cípios e conceitos psicológicos que utiliza na
trabalho conjunto entre os dois membros do interpretação) não é independente de suas
par analítico, no qual a participação do pa- outras concepções ideológicas. (Baranger;
ciente é chave. Mas na relação analítica, de Baranger, 1969, p. 104).
fato, não só está envolvido o inconsciente do
analisando. A ideologia subjacente do analista se en-
Os Baranger assinalam que carrega de dirigir a cena, lançando nela suas
próprias concepções. A própria teoria psi-
[...] o que estrutura o campo bipessoal da si- canalítica é protagonista nesse processo, na
tuação analítica é essencialmente uma fanta- medida que que é o ponto referência princi-
sia inconsciente. Mas seria equivocado enten- pal, mais direto, mais imediato, de sua prá-
de-lo como uma fantasia inconsciente só do tica. Como é óbvio, “a teoria psicanalítica
analisando. (Baranger; Baranger, 1969, p. pode moldar os juízos de um analista” (Re-
140). nik, 2002), mas, na medida em que percam
de vista sua origem, seus laços de dependên-
O analista também se encontra envolvido cia, esses juízos se ‘naturalizam” e funcionam
na cena analítica, e no mesmo nível que seu como telas que ocultam as implicações do
paciente: só o seu conhecimento da teoria e o analista. Implicações que todo psicanalista
seu domínio da técnica poderiam lhe permi- leva em si e que – inevitavelmente – se ex-
tir (pela via da análise da transferência e da pressam em seu trabalho clínico e permeiam
contratransferência) separar o joio do trigo a teoria de que se vale.
e reconhecer as modalidades de circulação A tarefa não é simples e, como em toda
e emergência do desejo inconsciente nessa análise, nada está dado. É preciso, em pri-
cena. meiro lugar, um trabalho sobre o próprio
A própria interpretação, o ato de interpre- analista, que, para ampliar o dispositivo de
tar, sua forma e seu conteúdo, que trabalha escuta, dispositivo marcado pelos nume-
sobre a transferência cuidando de filtrar tudo rosos atravessamentos das instituições que
o que possa aparecer como interferência do constituíram o psicanalista, deve procurar,
meio exterior e inclusive toma precauções por meio de sua própria análise, dos ajustes
para que a relação contratransferencial não teóricos necessários e de suas relações trans-
domine a cena, está contaminada. ferenciais, reconhecer os caminhos de sua
De fato, própria implicação política e social e seus
efeitos sobre a cena analítica.
[...] o interpretar por mais neutro que seja em
sua forma, implica a participação dos setores
ideológicos (muito carregados efetivamente)
do analista. (Baranger; Baranger, 1969, p.
104).

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A psicanálise: impacto da realidade social

Abstract Referências
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Juan Flores
Tradução: Bernardo Maranhão

org/articulo.php?articulo=0000188. Acesso: marzo Sobre o autor


2002.
Juan Flores
RODRIGUÉ, E. Sigmund Freud: el siglo del Psicólogo pela Universidad Católica do Chile.
Psicoanálisis. Buenos Aires: Sudamericana, 1996. Doutor en Psicología pela Universidade do Chile.
Psicanalista da Sociedade Chilena de Psicanálise
ROZITCHNER, L. Freud y el problema del poder. (ICHPA).
Buenos Aires: Losada, 2003. Diretor do Programa de Mestrado em Psicanálise
(Director del Magíster en Psicoanalisis) da
VOLNOVICH, J. C. “¡El psicoanálisis será autogestivo Universidade Adolfo Ibáñez.
o no será!”. Estados Generales del Psicoanálisis: Professor do Instituto de Formação de Psicanalistas
Segundo Encontro Mundial. Disponible en: www. de ICHPA.
e st a d o s ge r ais . org / mu nd i a l _ r j / d ow n l o a d / 1 _ Presidente da Federación Latinoamericana de
Volnovich_101141003_esp.pdf. Rio de Janeiro, 2003. Asociaciones de Psicoterapia Psicoanalítica y
Psicoanálisis (2003-2005).
WAISBROT, D. La alienación del analista. Efectos Presidente da Sociedade Chilena de Psicanálise
de la institución del psicoanálisis en su subjetividad. (ICHPA) (2004-2006)(2008-2010).
Buenos Aires: Paidós, 2002. Preside (Secretário Geral) pela terceira vez uma das
Federações Mundiais de Psicanálise: a International
ZIZEK, S. Sublime objeto de la ideología. Buenos Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS),
Aires: Siglo XXI, 2003. no período de 2020-2024..

Endereço para correspondência


Recebido em: 06/04/2021 E-mail: juanfloresr@yahoo.com
Aprovado em: 15/05/2021

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