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au t oTradução:
r con v i da
Bernardo dO
Maranhão
A psicanálise:
impacto da realidade social
Psychoanalysis:
the impact of social reality
Juan Flores
Tradução: Bernardo Maranhão
Resumo
O questionamento da “objetividade” supõe presumir que toda teoria é abordada a partir de
um lugar e que isso supõe aceitar a existência de um “viés”. Por isso, é preciso admitir que o
panorama observável depende do ponto de vista do observador, e renunciar então às preten-
sões de totalidade de “universalidade” do observado. A assunção dessa perspectiva pode levar
a reconhecer a implicação do lugar a partir do qual se trabalha e se pensa. No entanto, essa
tomada de partido supõe uma ótica que leve em conta o atravessamento inevitável do conflito
social e a contradição histórica em toda empreitada de conhecimento. A única “objetividade”
esperável seria aquela que não esconde seus valores, mas assume consciente e explicitamente
os pressupostos que a sustentam.
Essa tarefa exige uma análise profunda [...] a primeira objetividade, o contrato es-
das relações e implicações entre sujeito (pes- pontâneo e imediato que o espírito estabelece
quisador, analista) e objeto (fenômeno, pa- com o objeto, numa palavra, o conhecimen-
ciente), e de ambos com o marco de referên- to sensível, é uma aproximação carregada de
cias imediato da observação (teoria, enqua- projeções individuais. O papel da psicanálise
dre, etc.) e, ainda mais além, com o contexto é nos fazer tomar consciência desse fato.
histórico-social, determinante último das
condições de existência e desenvolvimento A rigor, é necessário assinalar que tam-
de cada um desses elementos. pouco a própria psicanálise está isenta dessa
Em outras palavras, requer um trabalho “contaminação”: no máximo, tem consciên-
detalhado sobre a transferência e a contra- cia disso e pode assim se manter atenta a seus
transferência, capaz de penetrar na comple- efeitos, eludindo as armadilhas que o mani-
xidade de implicações recíprocas e filtrar as festa semeia no caminho do conhecimento.
interferências, que não são “impurezas” mas De fato, para Bourdieu citado por Baran-
o próprio material que a análise permite para ger (2004, p. 167),
gerar o processo de conhecimento.
Nesse sentido, assinala Bachelard citado [...] quanto mais ‘realista’ for a descrição da
por Baranger (2004, p. 177) que, prática científica, menos acessível será a con-
secução da objetividade.
[...] se o conhecimento consiste na implan-
tação de relações entre o sujeito e o objeto A chamada “interferência do observador
e se a objetividade é uma conquista sobre a na observação” já é um tópico nas ciências, e
subjetividade original, toda ciência em estado não só nas “sociais”. E sequer as ciências “du-
nascente e todo espírito em vias de formação ras”, aparentemente blindadas em seu méto-
encontrarão obstáculos em sua marcha para a do, ignoram hoje que a observação contém o
objetividade. dispositivo e o instrumento, mas também o
próprio observador, sua localização no mun-
É necessário matizar o significado essen- do, e que as teorias em que ele se apoia alte-
cial e talvez o caráter de “conquista” atribuí- ram a cena e perturbam o objeto de estudo.
do à objetividade, já que ela só pode ser um Nas “ciências humanas” – e na psicanálise
horizonte possível na medida em que saiba- isso assume inclusive um papel de destaque
mos quais são os obstáculos que dificultam – essa comprovação é ainda mais óbvia.
o caminho para o conhecimento, no qual Bourdieu citado por Baranger (2004, p.
habitam o mais significativo das relações en- 181) declara que
tre sujeito e objeto, e já que, portanto, não se
trata de evitá-los e sim de fazê-los falar, de [...] o sociólogo [em nosso caso diríamos “o
estar atentos ao que os levou a adotar essas psicanalista”] deve esclarecer o que sua prá-
tica deve à sua posição social, com relação ao devolve ao campo da subjetividade, da ideo-
que vê e não vê, o que faz e o que não faz [...] logia e do inconsciente.
Nesse sentido, Loureau (2001) assinala ao paciente, o qual de alguma maneira mani-
que toda epistemologia, toda ética nas ciên- festa-o em seus sintomas. De fato, o “princí-
cias da matéria, da vida, do homem estão, pio de realidade”, ao qual a psicanálise atribui
agora ainda mais, cobertas pelo guarda-chu- um papel de primeira importância na econo-
vas do comércio mundial ao modo de “gran- mia psíquica, conta-se entre seus postulados
de novela”. No fim das contas, é a ideologia teóricos fundamentais. Desse modo, tudo, a
dominante, hegemônica, em nossa atualida- “realidade”, o que esta representa e implica, é
de, a do mercado, a que se impõe no labora- objeto de debate, dentro e fora da psicanálise.
tório ou na academia e nas novas cenografias Zizek (2003, p. 76), citando Lacan, afirma
do comércio eletrônico. Os paradigmas ou os que
projetos políticos, os programas de pesquisa
ou de ação a favor disto e contra aquilo, estão [...] a ‘realidade’ é uma construção da fanta-
ajustados ao mesmo referente, ao mesmo in- sia que nos permite mascarar o Real de nosso
terpretante último: a democracia já não é um desejo.
fim a alcançar, a liberdade não é mais uma
causa vital; são as condições de instalação e De fato, na fantasia, o mundo histórico-
manutenção de uma livre circulação do capi- social se desmaterializa, e só aparece nas
tal, da mercadoria. (Loureau, 2001). marcas que deixou no inconsciente do sujei-
Basicamente descrito, é esse o marco con- to.
textual dentro do qual se inscreve toda prá- Contudo,
tica, todo conhecimento. Marco conflitivo,
opaco, em que as causas e os mecanismos [...] a partir de uma perspectiva materialis-
responsáveis pelo conflito histórico e pelo ta (histórica), o real (tomado agora em um
sofrimento social se encontram reprimidos sentido amplo, embora sempre distinto da
e se manifestam sob as diversas formas de ‘realidade’), continua existindo além e aquém
“mal-estar social”, as quais podem chegar até de sua percepção ou de sua constituição pelo
à explosão coletiva, por um lado, e ao trauma discurso. (Grüner, 2002, p. 102).
psíquico, por outro. (Dejours, 2006).
Quanto a isso, Zizek (2003, p. 67) sustenta Robert Castel assinala que “o núcleo pro-
que saico” que organiza a existência humana,
“o corpo (biologia), as necessidades (eco-
[...] o que se ‘reprime’ não é uma origem obs- nomia), a violência social (política)”, exis-
cura da Lei, mas o faro mesmo de que não há te sempre ainda que se nos apresente sob a
que aceitar a Lei como verdade, mas unica- forma de um discurso, e atua a partir de sua
mente como necessária. ineludível materialidade.
É nesse sentido que Caruso (1966, p. 209)
Assim, o que se naturaliza das relações indica que
sociais seria sobretudo seu aspecto mutável,
convertendo a Lei em “essência”, reprimindo [...] os fatores sociais, econômicos, políticos
a história como marco geral e não somente e ideológicos não podem se reduzir simples-
como genealogia específica. A psicanálise, mente a fatores psicológicos. Um “tratamen-
como teoria e prática, não pode se manter to psicológico” de uma ideologia social seria
indiferente, não ser impactada ante os efeitos uma ilusão perigosa, seria um totalitarismo
das implicações que a realidade produz sobre disfarçado.
o sujeito, tanto no que diz respeito ao analis-
ta – como sujeito, mas também (e sobretudo) Circunscrever o real à realidade psíquica
como terapeuta –, quanto no que concerne e ao desejo inconsciente só pode nos impedir
o caminho de seu conhecimento e desembo- do objeto daquela e exige, portanto, sua aten-
car na repressão de uma parte fundamental ção. Nesse sentido, a psicanálise deve enfren-
do que nos constitui. tar o obstáculo de sua própria implicação.
Por isso, Zizek (2003, p. 61) afirma que Isso é assinalado pelos Baranger quando
afirmam que
[...] o nível fundamental da ideologia [...] não
é o de uma ilusão que mascare o estado real [...] a psicanálise é uma ideologia no sentido
das coisas, mas o de uma fantasia (incons- estrito e no sentido amplo da palavra. (Ba-
ciente) que estrutura nossa própria realidade ranger; Baranger, 1969, p. 104).
social.
A psicanálise consiste, por um lado, em
Ao fazer isso, o autor reafirma a noção de um conjunto sistematizado de represen-
que não é a ideologia, e muito menos se con- tações e, por outro, representa uma visão
cebida como ilusão ou fantasia inconsciente, determinada sobre o mundo, uma pers-
o que estrutura nossa realidade social, e sim pectiva de ação, um conjunto de valores
o inverso. que podem reger a conduta. Explicitar essa
Em todo caso, é a maneira como essa perspectiva, esses valores, permite cons-
realidade social se inscreve em nosso corpo truir um discurso no qual o mundo não
(isto é, em nossa mente) – no modo como se está alheio: a psicanálise e o psicanalista se
organiza sua forma subjetiva – o que põe em verão confrontados com a necessidade de
jogo os mecanismos inconscientes e se estru- tomar posição, de “eleger seu bando” em
tura em forma de ideologia, de fantasia, de face das questões que afetam seu objeto de
discurso. conhecimento.
Reduzir a ideologia a uma pura fantasia Dito de outro modo, “há uma ética psi-
inconsciente, a uma “relação imaginária” canalítica” a ser assumida e declarada (Ba-
com as condições reais de existência, priva- ranger; Baranger, 1969, p. 104). Essa “in-
nos novamente – ao reprimi-lo – de tudo corporação da psicanálise” no mundo e sua
o que o conceito carrega em termos de ex- assunção como produto histórico fazem com
pressão consciente, de “eleição de um bando” que Castel (1980, p. 15) denuncie
como expressão de uma vontade livre, de re-
conhecimento do que isso significa na defi- [...] o lugar privilegiado que a psicanálise ocu-
nição do lugar que cada um ocupa no campo pa hoje entre as ideologias dominantes e as
da luta social (e ideológica, no sentido clás- instituições de controle social.)
sico) como condição essencial parra não cair
em equívocos universalistas que mascaram Com isso, Castel faz eco de uma polêmica
posições e atitudes concretas tendentes a cuja mera existência poderia também servir
preservar – ao retirar-lhes sua historicidade de testemunho acerca da preocupação (do
– as condições sociais e ideológicas existen- “mal-estar) que existe em seu próprio seio (a
tes. A ideologia é um elemento fundamental instituição psicanalítica) e da atenção que es-
na relação do homem com o mundo e com ses problemas suscitam entre os psicanalistas.
seus semelhantes, subjaz, de maneira aberta De fato, a chamada “vocação revolucionária”
ou velada, a qualquer ato humano e constitui da psicanálise, tão invocada em alguns seto-
parte essencial de toda teoria. res, não obrigatoriamente leva ao reconheci-
mento de sua implicação na esfera dos confli-
Psicanálise e ideologia tos sócio-históricos – no plano da revolução
A psicanálise não é um instrumento específi- social ou, ao menos, no da participação ativa
co de análise da ideologia, mas esta faz parte nos conflitos que atravessam a sociedade – e
pode muito bem ficar limitada, em suma, à incompatibilidade ideológica entre analista e
esfera da análise do inconsciente individual. analisando. (Baranger; Baranger, 1969, p.
A psicanálise pode se reconhecer revo- 106).
lucionária, de todo modo, e sem dúvida, na
medida em que derruba o “essencialismo do De fato, mesmo em condições de relativa
Sujeito moderno” a que se referia Grüner “paz” social, a análise pode enfrentar (por ig-
(2002), mas de uma “revolução” que deixa norar ou reprimir aquilo que o contexto his-
mais ou menos intactas as estruturas sociais, tórico impõe a todo sujeito e a todo vínculo
que não questiona e talvez sequer nem roce social) um fracasso (uma impossibilidade)
a repressão – inclusive aquela que se leva a ou converter-se diretamente em uma prática
cabo no inconsciente – naquilo que ela tem iatrogênica, expondo o analista ou o paciente
de instrumento de controle social. De fato, (ou ambos ao mesmo tempo) a riscos impor-
a corrente mais tradicional da psicanálise – tantes.
a qual envolve grande parte do movimen-
to psicanalítico internacional – fecha seus A psicanálise, a política e o social
olhos para essas temáticas e escamoteia a Em realidade, desde Freud mesmo, a psica-
discussão conceitual sobre esses tópicos. A nálise tem reivindicado a dimensão social do
negação dessas vicissitudes não muda o fato sujeito, como fica claro em seu postulado de
de que a psicanálise, pelo simples fato de ser que a psicologia individual é simultaneamen-
um produto sócio-histórico, está atravessada te social (Freud, [1921] 1994). Ainda mais,
ideologicamente e circunscrita pelo mundo longe de se ensimesmar no abismo da mente
extra-analítico. Os dispositivos cuidadosa- humana, Freud se sentiu obrigado a estender
mente instalados pelo enquadre, por exem- suas indagações para além do psiquismo e
plo, procuram construir um marco que (ao do inconsciente individual para dar conta do
menos idealmente) deveria permitir à aná- “mal-estar na cultura”, assomar à “psicologia
lise concentrar seu trabalho no inconsciente das massas”, abordar as “ilusõe s” religiosas,
do analisando, mas ainda assim não se pode dar a palavra aos mitos, interrogar a arte e a
ignorar o fato de que a literatura de seu próprio tempo e de épocas
passadas. Tampouco foi indiferente à política,
[...] relação analisando-analista é, entre ou- ao menos em suas manifestações mais gerais
tras coisas, uma relação ideológica, e a regra ou mais extremas, e, apesar de seu ceticismo
de abstinência é contraditória com a essência a respeito da possibilidade de eliminar o so-
mesma da relação interpretativa. (Baranger; frimento humano pela via da mudança so-
Baranger, 1969, p. 105). cial (a qual não deixava de considerar positi-
va), dedicou profundas reflexões ao tema da
Com efeito: onde reina a abstenção, não guerra. Nelas, fica clara sua atitude cética ante
há análise. Não existe, tampouco, interpreta- a natureza da alma humana, de maneira que
ção que seja “neutra”, desideologizada, ain-
da que alguns psicanalistas se empenhem [...] seu progressismo sem ilusões não deve-
em sustentar um critério de “prescindência”, ria sonhar com a erradicação das pulsões de
como se isso pudesse “colocar entre parênte- crueldade e de poder, tanto as que dependem
ses” (tal é a fórmula empregada) o real extra do cotidiano quanto as que desgraçadamente
-analítico. Sem sequer entrar na análise das abundam na história. (Major; Tallagrand,
situações mais óbvias, podem ocorrer 2007, p. 196).
Assinala Perrés (1998, p. 5) que Freud, em [...] o vínculo social, longe de ser explicável
especial, pela existência de uma única ‘grande família’,
isomorfa ou similar à célula familiar propria-
[...] e também seus primeiros discípulos, con- mente dita, se manteria como uma cadeia
frontaram criticamente a sociedade, a cultura, interminável de ‘vínculos libidinais’ que vão
para fazer sobre ela uma leitura psicanalítica, se especificando ao se distanciarem da célula
a partir do estudo dos efeitos do inconscien- familiar, conservando com esta uma relação
te. A preocupação com a relação indivíduo- constante. (Loureau, 2001, p. 157).
-sociedade (exigência impostas pela cultura
à vida pulsional, submetimento às normas Desse modo, fica evidente que esse vín-
da vida em sociedade, etc.) existiu sempre no culo não corresponde a uma homologia de
jovem Freud, e pode ser encontrada em seus formas, produto de uma “essência” única
intercâmbios epistolares. imanente (o que permitiria afirmar o vínculo
como um fato “natural” e a-histórico), e sim
Esse interesse sempre crítico de Freud depende das condições de tempo e lugar que
pela “coisa social”, que o levava a tentar abor- lhe são próprias. Nesse sentido,
dar as implicações do inconsciente na socie-
dade, esteve sempre presente no movimento [...] o que está estruturado libidinalmente não
psicanalítico, inclusive depois da institucio- é a “sociedade” como vasta organização dos
nalização deste e da legitimação das corren- possíveis, e sim cada elo constitutivo do vín-
tes que buscavam (com êxito, em muitos ca- culo social. (Loureau, 2001, p. 157).
sos) desviar seu rumo em direção a um canal
de “adaptação” social. Apesar disso, o espí- Não é pertinente, então, buscar uma “libi-
rito original, o sopro vital renovador (e cer- do social”, e sim determinar os canais pelos
tamente contestatório) insuflado por Freud quais a libido circula entre os distintos sujei-
nunca deixou de se fazer sentir. tos, as mediações e os atravessamentos que a
Como explica Rozitchner (2003, p. 19), marcam e as modalidades que ela vai assu-
mindo, a fim de entender as maneiras como
Freud [...] mostrará que dentro do campo tudo isso vai deixando suas marcas, dando
chamado ‘subjetivo’ persistem, como catego- forma particular ao vínculo social.
rias descritivas de sua compreensão e de seu Rozitchner (2003, p. 19) afirma que
funcionamento, as categorias presentes na or-
dem repressiva social. [...] em Freud se trataria de explicar a estru-
tura subjetiva como uma organização racio-
Essa persistência remete a uma circula- nal do corpo pulsional por império da forma
ção. Entre sujeito e sociedade se enodam social.
é, orientadas para o controle social e a sub- É certo que em grande parte das institui-
missão de dissidências. Ainda que ambas as ções psicanalíticas tornou-se hegemônica a
alternativas sejam ideológica e praticamente tendência de não considerar esses elementos
possíveis (e, de fato, ambas encontram seus atuando na relação terapêutica, limitando as
defensores), não são em absoluto equivalen- intervenções “sociais” da psicanálise quase
tes do ponto de vista da psicanálise. Con- exclusivamente às improvisações midiáticas
verter a psicanálise em um instrumento de de alguns de seus membros, sem aprofundar
promoção das posições sociais e políticas do seriamente a investigação nem fazer nenhum
analista –sejam elas quais forem – representa intento de redirigir a escuta para o “discurso
um avassalamento da intimidade do sujeito, social”.
imperdoável eticamente e incompatível com Como relata Emilio Rodrigué (1996),
os postulados essenciais que tornam possível o intento de dar um maior sentido social à
a psicanálise. Mas a negação do social e do psicanálise serviu para socializá-la (isso era e
político ou sua inclusão na análise marcam continua sendo importante). Mas socializar
também um divisor de águas. não quer dizer entender o social. Aí, segundo
As incompatibilidades ideológicas en- Rodrigué, estava o erro, o social continuava
tre analista e paciente podem, sem dúvida, basicamente impenetrável à psicanálise. Mas
complicar a análise da relação transferencial ao menos se trouxera o social à superfície,
e, inclusive, impossibilitar a tarefa analítica, voltava-se a fazê-lo visível.
na medida em que o terapeuta perca a pos- Alguns adotaram uma posição de franco
sibilidade de manejar seu próprio desejo in- ceticismo com respeito à possibilidade de
consciente de modificar o paciente em uma avançar na tarefa. Castel, que não faz uma
determinada direção ou não queira “fazer-se oposição cerrada e sistemática à psicanálise,
cúmplice” do que seu paciente representa, ou, e sim delineia com seriedade e respeito uma
inversamente, quando o paciente não se sinta série de objeções, tanto no nível da teoria
em condições de falar e associar livremente quanto no da prática, sustenta, em particu-
diante de seu analista. De todo modo, é pou- lar, que “como tal, a psicanálise oculta sem-
co frequente chegar a semelhantes extremos. pre os problemas sociopolíticos” (Castel,
Tanto paciente quanto analisando costumam 1980, p. 11).
fazer uma seleção prévia e, em geral, as di- A fórmula é taxativa: para Castel, a ocul-
ferenças que poderiam surgir não chegam a tação não é ocasional nem depende de uma
ser tão conflitivas. Ainda assim, a negação da aplicação defeituosa da teoria: ocorre “sem-
dimensão coletiva do sujeito não é neutra. pre”. De maneira que, na medida em que re-
A tarefa de Freud como pioneiro para sulta impossível (a partir da psicanálise) per-
“abrir o caminho” nessa direção nunca foi ceber com suficiente nitidez os problemas
abandonada pela psicanálise. A presença do sociopolíticos, só cabe deduzir que
coletivo a cada passo da análise era muito
óbvia, e era necessário um esforço consciente [...] os defensores de uma revolução pela psi-
e contínuo de negação para apartá-lo. canálise têm realmente uma concepção idea-
Ainda no mais íntimo da consulta, lista da revolução, da história e da sociedade.
(Castel, 1980, p. 95).
[...] dos problemas que cotidianamente nos
apresentam nossos doentes, vamos entrando, A “revolução pela psicanálise” tem sido,
insensivelmente, quer o queiramos, quer não, com efeito, uma aspiração (e mesmo uma
nos da família, da comunidade, do país e do inspiração) para muitos psicanalistas que
mundo em que estamos imersos. (Bermann, sentiram a necessidade de comprometer-se
1964, p. 241-242). com as lutas e os conflitos sociais e históricos
que atravessavam suas vidas. Aspiração utó- trumento terapêutica de investigação do in-
pica, sem dúvida (onipotente, talvez), mas consciente), a psicanálise
que colocou em destaque a necessidade de
novos desenvolvimentos teóricos, de explo- [...] é capaz, de certa maneira e em certas cir-
rar, com o instrumento conceitual desenvol- cunstâncias bem precisas, de liberar o indiví-
vido pela psicanálise, regiões novas, tanto no duo de certas restrições sociais (pela via dos
interior do inconsciente quanto fora dele. novos investimentos que expressariam mais a
Não é que a psicanálise tenha sido com- lógica de seu desejo do que o peso dos deter-
pletamente estéril do ponto de vista social, minismos políticos e sociais). (Castel, 1980,
apesar das limitações mostradas por Castel p. 95).
quanto aos seus reais efeitos sobre as relações
sociais, os modos de vida concretos e as prá- Assim, pelo menos se alcançariam cer-
ticas da vida cotidiana dos sujeitos. tos resultados (da ordem a que se referia
Baremblitt) no nível das relações entre o
Para Gregorio Baremblitt (citado por Ber- indivíduo e a sociedade, um relativo “des-
mann, 1964, p. 241-242), locamento dos limites” entre eles, um re-
manejamento em benefício de uma maior
[...] aqueles atributos definidores do homem, liberdade do sujeito.
aqueles que fazem dele o que é, adquirem-se Na realidade, a “vinculação” social da psi-
no processo de socialização, portanto o tera- canálise conta hoje com instrumentos mais
peuta encarregado de curar o homem enfer- diversificados. Por um lado, pelo desenvol-
mo cura a parte da sociedade que está incluí- vimento de uma série de práticas terapêuti-
da na essência do próprio homem. cas (terapias de grupo, de casal, de família,
psicodrama etc.) nas quais se aplica a teoria
Cura parcial, limitada, pontual, mas “te- psicanalítica, mas que levam a posiciona-
rapia social” enfim, ainda que seja em escala mentos técnicos distintos, e, por outro, pela
“micro”. participação (escassa) de psicanalistas em
Nessas condições, decerto, alcançar al- instituições assistenciais – públicas ou priva-
gum efeito na proporção da sociedade se das – que apresentam condições distintas e
apresenta como um trabalho de formiga, apontam para um público muito mais diver-
inacabável, interminável, talvez irrealizável. sificado que aquele que tem acesso ao con-
E (ademais e sobretudo) limitado pela falta sultório privado.
de sistematização das condições necessárias Nessas instituições, o psicanalista se vê
da escuta, de elaboração dos conceitos capa- obrigado (nem sempre de bom grado) – e em
zes de dar conta do observado nessa escuta um contexto frequentemente desfavorável, é
e de sua estruturação em um corpo teórico certo, com efeitos potencialmente benéficos
organizado. Ora, sem avançar nessas tarefas quanto à flexibilização do dispositivo de es-
é difícil ampliar a visada da psicanálise e de- cuta – a levar adiante a tarefa terapêutica por
senvolver o alcance de seus conhecimentos fora das regras de enquadre convencionais,
e efeitos sociais. É difícil ver para além da ainda que mantenha a abordagem da situa-
“luz indireta” que a sociedade projeta sobre ção a partir da teoria psicanalítica. Em todos
o inconsciente, iluminar a realidade social esses âmbitos, o psicanalista tem a ocasião
e política de frente, em lugar de percebê-la de entrar em contato com realidades dis-
apenas “através de seu reverso”. tintas, de ampliar sua escuta, de investigar
De todo modo (e mesmo para Castel, para além do dispositivo clássico de enqua-
cujas críticas não lhe impedem reconhecer dre. Nessa tarefa, o psicanalista com vocação
na psicanálise um valioso e renovador ins- social se vê confrontado com os adversários
De fato, para Castel (1980, p. 41), “tudo” sobre essas relações (apreendê-las)
como alguns pretendem (tanto nas chama-
[...] as dificuldades com as quais a psicanáli- das “esquerdas” quanto nas “direitas” lhe
se tropeçou para sair do marco que a origi- reclamar. Por outro lado, está claro que sua
nou, o do tratamento da neurose, e especial- especificidade quanto ao psíquico serviu de
mente, sobretudo em Freud, o das neuroses couraça para aqueles que consideram o so-
chamadas de transferência, são na realidade frimento íntimo de um paciente como alheio
dificuldades postas pelo deslocamento desse às determinações materiais dentro das quais
dispositivo. se dão as condições de desdobramento da
subjetividade e minimizam o fato de que essa
Particularmente, porque esse dispositivo subjetividade é constituída a partir da inser-
se baseava, para a observação do inconscien- ção social do sujeito, em permanente relação
te, justamente em “colocar entre parênteses” dialética com sua história individual e sua
os aspectos não psíquicos da realidade. contextualização social
Mas a capacidade da psicanálise para Dessa maneira,
compreender os fatos sociais se encontraria
também travada – além de pelo dispositivo [...] a distinção absoluta entre uma ordem do
analítico – por certos aspectos de sua teoria, inconsciente e uma ordem das relações de
aspectos que Castel (1980, p. 217) destaca ao produção e de dominação (ainda que logo se
assinalar que “articule” um aspecto ao outro) estabelece um
cordão sanitário em torno da ortodoxia psi-
[...] uma doutrina que percebe a exteriori- canalítica. (Castel, 1980, p. 33).
dade sob a forma do ‘princípio de realidade’,
ou seja, segundo a dialética do investimento, Essa ortodoxia pode se instalar conforta-
da retirada de investimento, do contrainves- velmente na ordem do inconsciente e confiar
timento etc. (renúncia, derivação, desloca- que o dispositivo analítico montado absor-
mento...), não pode proporcionar nunca um verá todos os embates que poderiam se dar
enfoque direto sobre o que é propriamente a partir de fora. Essa oposição, que constrói
social no social. Somente lança sobre ele uma a cena psicanalítico dando passagem ao es-
luz derivada, a partir dos interesses libidinais paço do inconsciente com base no desaloja-
dos indivíduos, unicamente. mento do espaço social (desalojamento que
só pode ser passageiro e ilusório) representa,
Saltar da libido individual para a socieda- assim, ao mesmo tempo, um requisito para a
de, como vimos, implica seguir uma longa e manifestação do inconsciente e uma barreira
complexa cadeia de enodamentos subjetivos para a expressão do social.
e, ainda assim, nos levaria, segundo Castel A implicação do “núcleo prosaico” na aná-
(1980), a perceber apenas uma imagem refra- lise deve então ser rastreada ou a partir das
tada (um reflexo), de algum modo incomple- marcas que o inconsciente produz ou com
ta e em muitos aspectos enganosa: “nunca”, base na abertura do dispositivo e na elabora-
enfatiza Castel (1980), poderá aprender todo ção de uma teoria e uma técnica específicas.
o social. Uma luz que só ilumina, um discur- Seja como for, o psicanalista como instru-
so que só fala dos aspectos da realidade ex- mento terapêutico não pode abrir mão da di-
terior vinculados ao desejo inconsciente não mensão social e política do sujeito. Deixá-la
podem dar uma imagem acabada do mundo de lado ou apartá-la significaria diminuir o
material, da “exterioridade” social e política. sujeito, podá-lo, aceitar que seria possível (e
De fato, a psicanálise não é uma teoria desejável) desenraizá-lo, privá-lo do substra-
das relações sociais e não teria por que dizer to de que se alimenta e vive: a subjetividade.
Abstract Referências
The questioning of “objectivity” presupposes
that all theory is approached from a place and
that this presupposes accepting the existence BARANGER, D. Epistemología y metodología en la
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