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Crédito: Simone Massoni

CURTA NOSSA
PÁGINA

VOL. 19 | N. 32 | 2014

P.01 P.08 P.52


Sociologia, política e Júlio Bressane e os A ubiquidade das câmeras
arcaísmo: entrevista jogos de designação e a irrupção do real
com Michel Maffesoli Alexandre Rocha da Silva e Felipe da Silva Polydoro
Iuri Furukita Baptista , Cássio de Borba Luca
Janaina Gamba e Karina Weber
Recebido em 30 de agosto de 2014. Aceito em 23 de março de 2015.

Diálogos narrativos: Resumo Abstract


Pretendemos analisar as zonas de in- We intend to analyze the parallels be-
as linhas de aproximação tersecção entre a linguagem audio- tween the audiovisual language, spe-
visual, sobretudo a cinematográfica, cifically the film language, and the
entre o audiovisual e os e a dos video games. Para tanto, exa- video games. To do so, we will dis-
minamos o percurso desse processo cuss the dialogic relationships built
video games observando as relações dialógicas among these two discursive fields,
estabelecidas entre esses dois cam- using as starting points the franchi-
Narrative dialogues: parallels between pos discursivos a partir das franquias,
adaptações e influências mútuas re-
ses, the adaptations and the mutual
influences that can be perceived in
the audiovisual and video games gistradas em suas narrativas. Utiliza- these medias. As theoretical bases,
remos estudos sobre o dialogismo we will use the dialogical principles
bakhtiniano a partir de Robert Stam of Mikhail Bakhtin, Robert Stam’s stu-
e do próprio Mikhail Bakhtin, além de dies about those principles, and Lin-
pesquisas sobre teoria da adaptação da Hutcheon’s researches on theories
propostas por Linda Hutcheon. Como of adaptation. As a product of these
Afonso Barbosa1 , Allana Miranda2
objeto central e produto dessas trocas esthetical exchanges, we will analy-
entre dispositivos estéticos, traremos ze the game Red Dead Redemption
uma análise mais detalhada do jogo (2009, Rockstar Games), discussing
Red Dead Redemption (2009, Rockstar about the use of mise-en-scene. In
games), assinalando questões relacio- order to do so, we will apply David
nadas à mise-en-scène do video game, Bordwell and Kristin Thompson’s the-
utilizando os preceitos teóricos de Da- ories about the subject.
vid Bordwell e Kristin Thompson.

Palavras-chave Keywords
Cinema; video games; dialogismo; Film studies; video games; dialogism;
mise-en-scène; adaptação. mise-en-scène; adaptation.
Diálogos narrativos: as linhas de aproximação entre o audiovisual e os video games

“Êxodo na América” – Elementos sedimentadas e que, assim como o cinema, retrabalhou as pessoas por meio de um prazer que “advém simples-
introdutórios3 as inúmeras influências provenientes de campos artísti- mente da repetição com variação, do conforto do ritual
Neste trabalho pretendemos analisar as zonas de cos, como quadrinhos e literatura, para fundar uma lin- combinado à atração da surpresa. O reconhecimento e
intersecção entre a linguagem audiovisual, sobretudo guagem própria como meio de produção que também a lembrança são parte do prazer (e do risco) de expe-
a cinematográfica, e a dos video games. Para tanto, de- se relaciona estreitamente com a tecnologia. No cami- rienciar uma adaptação” (Hutcheon, 2011, p. 25).
vemos examinar o percurso desse processo observan- nho de volta, as influências também podem ser destaca- A influência do cinema atua de outras maneiras,
do as relações dialógicas estabelecidas entre esses dois das quando observamos como os video games realizam contribuindo para a elaboração de jogos como Pink
campos discursivos a partir adaptações e influências essa contrapartida em outras linguagens artísticas. panther goes to Hollywood, de 1993. Baseado no dese-
mútuas registradas em suas narrativas. nho animado, o game tem sua narrativa desdobrada
Nesse sentido, utilizaremos estudos sobre o dialo- Diálogos anteriores: nos cenários de filmes de narrativa clássica norte-ame-
gismo bakhtiniano a partir de Robert Stam, além de o cinema no video game ricana. O jogo é subdividido em fases que tem como
pesquisas sobre teoria da adaptação propostas por Quando voltamos um pouco no tempo para exami- pano de fundo, entre outras ambiências, o faroeste, a
Linda Hutcheon. Como objeto central e produto des- narmos o desenvolvimento das adaptações de longas- casa mal assombrada, além do backstage de gravação,
sas trocas entre dispositivos estéticos, traremos uma -metragens para os video games, é possível certamente onde a pantera cor-de-rosa tem que se esquivar de ho-
análise mais detalhada do jogo Red Dead Redemption assinalar aqui, dentre outras possibilidades, o jogo Mi- lofotes e câmeras que tentam atacá-la.
(Rockstar games, 2009), assinalando questões relacio- chael Jackson’s Moonwalker, de 1990, baseado no filme O registro desse jogo se deve à necessidade de ob-
nadas à mise-en-scène do video game. Para tal, utiliza- Moonwalker (Moonwalker, Jerry Kramer, Jim Blashfield, servarmos como, aos poucos, numa trajetória inversa,
remos os preceitos teóricos de David Bordwell e Kristin Colin Chilvers, 1988). Trata-se de um caso bastante co- o cinema e o audiovisual foram também incorporando
Thompson aplicados ao game. mum até os dias de hoje, no qual o jogo reutiliza e, por os video games em suas narrativas. Por vezes, para en-
O estudo se propõe a examinar a composição de vezes, ressignifica referências da história da produção fatizar certa caracterização de personagens a partir de
cena a partir de diversos aspectos como cenários, figu- cinematográfica, fazendo com que o jogador vivencie uma utilização bastante coadjuvante e, em outros mo-
rino, iluminação, tempo e espaço. Essa escolha se deu e interaja a partir de comandos de ação sobre a(s) per- mentos, na inserção de elementos característicos da
pelo valor simbólico que a mise-en-scène adquire no sonagem(s) protagonista(s) do filme. linguagem dos games eletrônicos em suas narrativas,
andamento do game Red Dead Redemption, que, além É importante destacar que a relação estabelecida como veremos mais à frente.
de situar determinado momento histórico, pode ter por parte daquele que tem contato com esses produ-
influência na experiência de jogo. tos, seja com o filme, seja com o jogo (ou mesmo com Diálogos contemporâneos:
Uma prerrogativa de difícil manejo quando discuti- ambos), não respeita a sequência cronológica de lança- uma via de mão dupla
mos essa temática é delimitar o objeto de estudo. Tere- mentos de cada produção. Em outras palavras, muitas O trajeto das influências múltiplas foi aos poucos se
mos o cuidado de não exceder o recorte aqui realizado, vezes o jogador não experienciou a obra cinematográ- aproximando de uma via de mão dupla, onde percebe-
procurando fazer com que as informações se consubstan- fica, assim como é bastante lógica a ideia de que mui- mos que as contribuições desses dois campos discur-
ciem em conhecimento. Além disso, reconhecemos ainda tos espectadores não tiveram contato com o game. sivos acabam, por vezes, relacionando-se simbiotica-
a ampla extensão de propostas que, obviamente, não se Por um lado, o caminho mais comum por parte do mente. Se antes a contrapartida dos video games frente
esgotam naquilo que apontaremos nesse trabalho. interlocutor é realizar o elo estabelecido entre ambas. à forte presença do cinema e do audiovisual deixava
Nesta análise, partimos da noção do video game en- Como sugere Hutcheon, o consumo de adaptações se um rastro quase indetectável, hoje podemos enumerar
quanto discurso específico, com características bastante estabelece a partir de uma demanda perene que atrai sem maiores dificuldades alterações nesse processo.

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É possível, dessa forma, rastrear elementos estéticos outros campos discursivos ou até mesmo na influência também às nuances acinzentadas de valoração pessi-
da linguagem dos games em produções para séries de de jogos de outrora. Podem ser facilmente assinaladas mista utilizadas frequentemente em The walking dead.
TV, em vídeos para internet e filmes das mais variadas nas propostas de adaptações declaradas, como o Mi- O game adere ainda a uma asserção que se dedica não
metragens. A contribuição não se aplica tão somente chael Jackson’s Moonwalker. somente ao ambiente de terror por conta da ameaça
à materialização dos consoles na diégese desses veícu- No entanto, os intertextos podem se revelar, sobre- dos mortos-vivos, assim como a série. Por isso, acaba
los discursivos. Em outras palavras, a representação vai tudo, nas sutilezas de certos encadeamentos estéticos trazendo uma perspectiva mais profunda do ser hu-
além da mera imagem de uma pessoa jogando video e narrativos, a exemplo do jogo The last of us (2013), da mano em situações-limite, como as relações fraternas
game. Ela se desdobra no uso de códigos bastante pe- produtora Naughty dog. O video game conta a história e amorosas dos sobreviventes num ambiente adverso,
culiares da linguagem desenvolvida nos consoles para de pessoas que lutam para sobreviver a um apocalip- além, claro, da problemática matricial do indivíduo: a
gerar significados e efeitos de sentido nessas produ- se zumbi. O contexto dialógico contribui para que in- dificuldade de lidar com a morte.
ções com características matizadas. divíduo que cria atue como “um agente que dinamica- O vínculo entre o audiovisual e os video games
Para pensarmos a respeito desses imbricamentos, mente orquestra textos e discursos preexistentes. (...) não se detêm tão somente às adaptações, mas tam-
baseamo-nos em estudos do pesquisador Robert Stam, A intertextualidade não se limita a um único meio; ela bém estão presentes num tipo de influência que con-
que pode ser visto como o elo entre o pensador rus- autoriza relações dialógicas com outros meios e artes” tribuiu esteticamente e diegeticamente na arquitetu-
so Mikhail Bakhtin e o cinema. Os estudos do pensa- (Stam, 2003, p.227). ra de algumas histórias contadas a partir dos games.
dor norte-americano estabelecem essa ponte, através Justamente por isso, podemos elencar outras refe- Para ilustrar um caso em que a elaboração de um
da qual são debatidos conceitos como o dialogismo, rências contemporâneas do gênero, a exemplo do filme texto audiovisual foi arquitetado a partir de códigos
que “sugere que todo e qualquer texto constitui uma Zumbilândia (Zombieland, Ruben Fleischer, 2009); e The provenientes da linguagem utilizada nos video ga-
interseção de superfícies textuais” (Stam, 2003, p.225- walking dead, série americana adaptada de uma história mes, podemos citar o episódio Digital Estate Planning,
226). Desdobrando um pouco mais a análise do termo, em quadrinhos homônima, ambas ainda em produção. da série americana Community.
é possível constatar que esse diálogo é estabelecido in- No primeiro caso, o longa ajuda a desconstruir a ver- O programa de TV conta a história de Jeff Winger
tertextualmente e se refere são estritamente trágica da mortandade ao utilizar uma (Joel Mchale), um advogado que tem sua licença sus-
narrativa cômica para representar o entorno apocalíp- pensa porque seu diploma é falso. Por conta disso, Jeff
tico dos sobreviventes. A série também complexifica o acaba se matriculando em uma universidade comuni-
às possibilidades infinitas e abertas produzidas
universo zumbi, colocando em choque a alteridade dos tária onde ele tem contato com alunos e professores
pelo conjunto das práticas discursivas de uma cul-
indivíduos na agrura de se lidar com outros seres hu- bastante inusitados. Em Digital Estate Planning, Jeff e
tura, a matriz inteira de enunciados comunicativos
manos, por vezes, mais perigosos que os próprios mor- alguns colegas de turma tem que ajudar Pierce Haw-
no interior da qual se localiza o texto artístico, e
tos-vivos. thorne (Chevy Chase) a reivindicar a herança de seu pai,
que alcançam o texto não apenas por meio de in-
Apesar de coabitar uma atmosfera de produções Cornelius Hawthorne. Para isso, eles têm que vencer
fluências identificáveis, mas também por um sutil
(narrativas lineares) mais voltadas para a violência ex- num jogo de video game. No episódio, os personagens
processo de disseminação (Stam, 2003, p.226).
plícita e até mesmo gratuita, o jogo emprega um viés se transmutam em seus avatares de jogo, ganhando
de produção mais complexo. The last of us possui seus vida e voz na narrativa do video game.
Processos como esses também podem ser identifi- alívios cômicos e por vezes tonalidades de um colorido Dentre os recursos que materializam essa particu-
cados na construção das narrativas dos games, nas re- mais vibrante, com ares de esperança, aproximando- larização estética, podemos citar a trilha sonora, que,
ferências implícitas e explícitas a obras provenientes de -se de Zumbilândia, numa dinâmica que deixa espaço seja no tema de abertura da série ou no próprio de-

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senvolvimento do episódio, distancia-se da usada ha- personagem a diversos lugares diferentes. Quando ele interage diretamente, podendo escolher entre diver-
bitualmente no programa e passa a ser marcada pela termina a tarefa, reúne-se de volta com sua família, até sos cursos de ação, proporcionando, assim, a ilusão de
performance de sintetizadores tipicamente utilizados o dia em que os mesmos agentes que o abordaram no escolha ao jogador – o final já está escrito indepen-
em jogos da década de 1980. A computação gráfica início do jogo retornam para matá-lo, pois, não pode- dente de suas ações. Além disso, ele tem um fio narra-
empregada na composição dos cenários e dos per- riam deixar um criminoso solto após tantos prejuízos tivo que conduz o jogador por meio de investigações,
sonagens dentro do game também remete à mesma causados. Anos depois, seu filho Jack reaparece, ago- e é permeado de pequenos outros jogos característi-
época, na qual ficaram bastante conhecidos os jogos ra crescido e mais velho, e toma vingança em cima do cos do gênero de aventura.
da série Super Mario Bros, da Nintendo. A imagem pixe- mesmo agente que assassinou seu pai. Já que a presente pesquisa se propõe a apresentar
lizada é outro elemento que dá ênfase à estética dos Escolhemos a categoria da mise-en-scène pelo va- os paralelos de semelhança entre duas diferentes mí-
jogos de video game, além de dados narrativos bas- lor simbólico que a composição de cenas ganha na dias, tomaremos emprestado os conceitos acerca do
tante peculiares, como os fogos de artifício que carac- narrativa do game Red Dead Redemption, característica termo mise-en-scène da teoria do cinema, ressaltando
terizam a vitória do(s) jogador(es) ao final do game. que aproxima o objeto em análise da linguagem cine- uma questão de terminologia em comum entre os dois
Numa análise voltada para o estudo da Pós-mo- matográfica. Os aspectos da mise-en-scène, conforme campos aqui estudados: tanto na crítica fílmica quanto
dernidade presente no cinema, Renato Pucci assinala os dizeres de Bordwell e Thompson (1997), serão ex- na de games, termos como cenário, fotografia e figurino
a recorrência da “impureza em relação a outras artes e plicitados separadamente a seguir, e conforme avan- são utilizados. Há, contudo, termos específicos à área
mídias”, o que faz com que o “hibridismo transtextual çamos na análise, paralelos com as mecânicas internas dos video games, como cut-scene, para se referir às ani-
[transforme-se] em valor positivo” (Pucci, 2008, p.199). ao jogo serão estabelecidos. Esperamos, assim, que o mações durante as quais o jogador não interage com a
Fazemos aqui uma ponte com o audiovisual para com- leitor tenha um quadro amplo dos diálogos linguísti- mídia; gameplay, para se referir à experiência de jogo; e
preendermos justamente que esses valores provenien- cos entre o cinema e o video game. episódio ou capítulo, para tratar de jogos que dividem
tes da intersecção e impregnação de outros campos Antes de nos deter na análise, porém, cabe-nos le- suas narrativas em capítulos, como os de um romance.
discursivos acabam produzindo textos mais abertos a vantar um ponto de distinção importante entre as duas De acordo com Bordwell e Thompson, o termo mi-
novas propostas narrativas gerando formas transversais mídias aqui estudadas, no tocante à classificação de gê- se-en-scène é utilizado para se referir
de representação, como veremos na análise a seguir. nero. Nos filmes, essa distinção costuma se dar por con-
venções narrativas – filmes de terror, romance, comé- ao controle do diretor sobre o que aparece no en-
A redenção pela morte dia. Nos games, contudo, essa distinção se baseia não quadramento do filme. Como seria de se esperar
rubra e a mise-en-scène em convenções de narrativas – muitos jogos sequer tra- pelas origens teatrais do termo, inclui aqueles as-
Red Dead Redemption conta a história de John Mars- zem histórias a serem narradas – mas sim pelas experi- pectos que se justapõem à arte do teatro: o cená-
ton, um fora-da-lei que tentou abandonar a vida de ências de interação do jogador com a mídia. Jogos de rio, a iluminação, o figurino e o comportamento dos
crimes e viver com sua família, esposa e filho, em um ação, por exemplo, têm em si mecânicas de gameplay personagens. Ao controlar a mise-en-scène, o diretor
rancho afastado dos olhos da polícia. No entanto, seus comuns a outros de seu gênero, como combates. prepara a encenação para a câmera”4 (1997, p. 169).
parentes foram sequestrados por agentes federais, e, No que diz respeito ao objeto em análise, Red Dead
para libertá-los, ele é coagido a perseguir seus antigos Redemption se trata de um jogo de ação-aventura com Um ponto importante a ser considerado quando
parceiros. O jogo começa quando John Marston chega cenário aberto, trazendo embutidas mecânicas de analisando a composição de cena de qualquer texto que
à cidade de Armadillo, onde um de seus comparsas es- combate, gerenciamento de recursos (munição, comi- faça uso da categoria não é seu suposto realismo, mas
tava atuando. Uma longa jornada tem início, levando a da, dinheiro etc.), e um cenário com o qual o jogador sim sua função narrativa, o papel que ela desempenha

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na construção de sentido. E, uma vez que este trabalho

reprodução/Rockstar Games

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se propõe a analisar uma mídia baseada em computação
gráfica – e, portanto, nem sempre com aspecto realista
– teremos por norte esse princípio.

“Lugar esquisito prum sujeito decente


visitar, se o senhor num se importar
que eu fale” - Cenário
Na narrativa cinematográfica, o cenário pode ga-
nhar grande importância dentro do desenvolver da
narrativa. De acordo com Bordwell e Thompson, “ele Figura 1: Cenário de Red Dead Redemption Figura 2: Cenário de Red Dead Redemption
não precisa ser apenas um contêiner para os eventos
humanos, mas também entrar na ação narrativa dina-

reprodução/Rockstar Games
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micamente5” (1997, p. 172).
Em Red Dead Redemption, os cenários são bem desen-
volvidos visualmente, tomando por referências cenários
reais. Produzidos de maneira digital, eles remetem de ma-
neira clara aos cenários dos filmes de western hollywoo-
dianos, como podemos ver nas figuras 1, 2, 3 e 4.
Apesar das possiblidades de variação oferecida
pelo meio digital, a “montagem” do jogo se inspira na
decupagem clássica. No campo visual, a ilusão dificil-
mente é quebrada, com exceção dos momentos em
Figura 3: Cenário de Red Dead Redemption Figura 4: Cenário de Red Dead Redemption
que o gameplay precisa se sobrepor ao ilusionismo: os
locais de aquisição de itens sempre são conveniente-
mente próximos uns dos outros; as ações de compra
têm janelas próprias, embora elas tenham um visual Um outro diálogo interessante entre o gênero wes- A vastidão das paisagens, as cidades decadentes
inspirado pela temática do jogo. Diferente do efeito tern e o jogo em estudo está nos momentos de duelos. em uma terra onde as leis são aplicáveis com tons duvi-
que a adoção de tal estética teria sobre uma mídia au- Não é incomum que, durante o jogo, um desconheci- dosos de moralidade, remetem à narrativa do protago-
diovisual – como o exemplo citado anteriormente da do aleatório solte provocações, incitando o jogador a nista John Marston: sua jornada em busca da redenção
série de TV Community – nos games essa “quebra de duelar. Se o jogador escolher seguir por esse curso, o por erros do passado é longa e solitária. Na maior parte
ilusão”6 não é incomum. Habituado à interface e às ne- ângulo de visão muda, bem como a jogabilidade e o do jogo, porém, os cenários não ganham aspecto de re-
cessidades individuais dos jogos eletrônicos, o jogador andamento narrativo: adota-se uma câmera lenta en- presentação psicológica ou semelhante, limitando-se a
geralmente não vê problemas em passear entre dife- quanto os dois lados se armam, até que um dos lados um efeito simulacionista de conter a ação narrativa no
rentes formas de interação com a mídia. dê seus tiros e atinja o alvo (figuras 5 e 6). ambiente retratado do interior dos Estados Unidos em

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Figura 5: Imagem de Red Dead Redemption Figura 6: Cenário de Red Dead Redemption

tempos de tentativas de expansão para o Oeste. Não há psicológicos (em momentos sombrios, uma persona- mens da lei, eles serão mais hostis, podendo atacar a
algum uso, por exemplo, de representação do cenário gem aparecer vestindo roupas escuras, por exemplo). personagem sem aviso prévio.
ou espaço como reflexo psicológico das emoções das Em Red Dead Redemption, o trabalho de figurino Um outro uso do figurino é o de demonstrar as fun-
personagens, o que seria um uso possível dentro das tem como objetivo principal caracterizar o ambiente, ções narrativas de algumas personagens. Os agentes
possibilidades da manipulação digital. de maneira análoga à do cenário. Uma mecânica de federais encontrados por Marston no início e nos mo-
jogo que chama a atenção, porém, são as várias possi- mentos finais do jogo estão sempre vestidos de terno e
“Nunca confiei em um homem bilidades de roupas que a personagem pode vestir no gravata, indicando sua posição social e também cons-
de gravata” – Figurino decorrer da história, e os efeitos que isso pode acarretar truindo os antagonistas em relação à personagem. Há
De acordo com Bordwell e Thompson, assim como dentro da experiência de jogo. Ao usar o “figurino de também o Marshal Johnson, o agente da lei da peque-
o cenário, “o figurino pode ter funções específicas no cavalheiro” (gentleman’s outfit, no original), é permitido na cidade de Armadillo: seu figurino no geral é simples
todo do filme, e o alcance de possibilidades é amplo” trapacear em jogos de cartas, como pôquer. Ao vestir e prático, com exceção da estrela prateada que exibe
(1997, p. 176)7. As vestimentas e a maquiagem de deter- as roupas características das gangues de foras-da-lei no peito, indicando sua função. Isso serve não apenas
minada personagem podem carregar grande valor sim- encontradas no cenário, o jogo se modifica; eles não para o jogador, que é capaz de fazer a conexão com
bólico, falando de maneira não verbal sobre diversos são impelidos a ver John Marston como um estranho diversos outros filmes do gênero western, mas também
aspectos das personagens, desde sociais, como a posi- no primeiro contato, o que pode dar alguma vantagem para sua construção dentro da narrativa, como pode-
ção que ocupam, indicações de profissão, ou aspectos estratégica ao gameplay, mas, quando lidando com ho- mos atestar nas figuras 7 e 8.

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uso dramático da iluminação, quando ela chama a aten-

elaboração da autora sobre imagens de reprodução do jogo da Rockstar Games

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ção para algum objeto ou ponto no espaço.
Em momentos de jogo, porém, a iluminação adota
um caráter mais prático, facilitando a jogabilidade. In-
dependentemente de ser dia ou noite, por exemplo, o
gameplay não se modifica – os encontros aleatórios são
os mesmos, e a iluminação não afeta o campo de visão
do jogador, que pode enxergar os inimigos à mesma
distância (vide figura 4). Tal uso não é uma regra dentro
da mídia dos video games, porém há aqueles em que a
iluminação – e a falta dela – influi diretamente na ex-
periência de jogo, acrescentando mais dificuldades, ou
impossibilitando a visão clara de algumas áreas.

“Você realmente é uma personagem,


Figura 7: Personagens de Red Dead Redemption senhor Marston” – Expressões e atuação
De maneira semelhante a uma animação, a atuação
em jogos de video games depende do trabalho em con-
junto entre o aspecto visual e o sonoro: as personagens
Figura 8: Personagens de Red Dead Redemption são dubladas, seus gestos e expressões são deliberada-
mente construídos e escolhidos pela equipe de produ-
ção. E, assim como os outros aspectos da mise-en-scène,
a atuação não deverá ser avaliada em níveis de realis-
“Você lamenta? Por quê? Assim mas permite aos cineastas criar composições claras mo, mas sim dos propósitos narrativos que segue. Afi-
caminha a humanidade, uma luta para cada tomada” (1997, p. 181). nal, como medir o realismo do comportamento de uma
entre duas forças” – Iluminação Um ponto importante a destacar aqui é que, duran- personagem sobrenatural, por exemplo?
Em relação à apresentação da narrativa, fizemos an- te o jogo, há variações na maneira de distribuir a luz a David Bordwell e Kristin Thompson dirão que
teriormente o paralelo entre o tipo de montagem cha- depender do momento. Durante as cut-scenes, a ilumi-
mada de decupagem clássica por Ismail Xavier (2008), nação adotada não chega a ser realista (como é possível de maneira mais ou menos típica, a performance
que caracterizaria a montagem do filme como a manu- verificar nas cenas realizadas à noite, que são bem mais pode também ser situada em um contínuo de esti-
tenção da imersão do espectador e a ilusão deste dian- claras e visíveis do que uma demanda realista exigiria, lização. Uma longa tradição de atuação fílmica de-
te da narrativa, característica principalmente de um ci- o que apenas fortalece o propósito narrativo da ilumi- seja alcançar a semelhança do que se toma por um
nema hollywoodiano. E, de acordo com nossos autores nação, e não sua submissão a um suposto conceito de comportamento realista. Esse senso de realismo
de referência, Bordwell e Thompson, Hollywood adota, realismo), mas é verossímil. Vê-se a chama de uma vela pode ser criado ao dar aos atores pequenos traços
habitualmente, “três fontes de luz: luz principal, luz se- tremulando sobre o rosto de alguma personagem em de performance para que eles façam enquanto di-
cundária e luz traseira. Essa iluminação não é realista, um ambiente escuro, por exemplo, assim como algum zem suas falas (1997, p. 137)8.

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Os padrões de atuação em Red Dead Redemption são amarelo do deserto, o marrom do couro curtido, o ne-

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naturalistas, mantendo-se no limiar da decupagem clás- gro da noite – o vermelho se destaca, ganhando tons
sica. As personagens estrangeiras são construídas geral- saturados e aparecendo como um filtro que toma toda
mente seguindo estereótipos, mais especificamente um a tela. A estética que permeia o jogo também aparece
chinês, que figura em uma pequena narrativa sobre o ví- na própria imagem de capa, que traz, numa tipografia
cio em ópio, e um irlandês conhecido apenas por Irish, um estilizada e adequada ao tema western, quando John
fora-da-lei bêbado e de moralidade duvidosa. Marston encara o jogador em um leve contra-plongée,
Parte do jogo se passa em território mexicano, o que sua arma em primeiríssimo plano, desafiador.
conduz Red Dead Redemption a uma variação espacial, e As telas de pause, os menus do jogo, bem como as
também de personagens apresentadas. Não raramente os aberturas de capítulos seguem padrões semelhantes:
mexicanos falam entre si em espanhol – idioma que o pro- baseando-se no forte contraste entre preto e esse ver-
tagonista não conhece, mas os dizeres são traduzidos em melho saturado, as imagens apresentam-se ao jogador
legendas em inglês – e quando o fazem em inglês, trazem antecipando o final de John Marston, que não poderia
um sotaque típico encontrado em filmes hollywoodianos. ser diferente pela vida que levou. Seus atos não pode-
A construção dos tipos também variam conforme o riam passar impunes, e em uma terra onde mesmo os
local onde eles se apresentam. Ambientes campestres agentes da lei não têm escrúpulos, não é possível en-
trazem personagens com um sotaque informal, cheio xergar uma redenção diferente de uma que não seja
de contrações e gírias; enquanto nos cenários urbaniza- pelo sangue. Sabendo ser o verdadeiro alvo de seus
dos temos personagens que falam de maneira mais cla- algozes, Marston se sacrifica para salvar sua família, re-
ra, e cujos gestos e figurinos se adaptam ao ambiente. dimindo-se (confira as figuras 9 e 10).
Sua morte, porém, não traz o final do jogo. Jack Mars-
“Ninguém esquece nada. Ninguém ton, seu filho, agora adulto, busca informações sobre o Figura 9: Tela inicial de Red Dead Redemption
perdoa nada” – Sangue e redenção oficial Edgar, agora aposentado, o responsável pelo se-
Um aspecto importante na composição de cena no questro da sua família e pela morte do seu pai. O jovem
jogo Red Dead Redemption é a presença constante da segue os rastros do sujeito e o desafia para um último

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cor vermelha, remetendo ao sangue e ao propósito da duelo, matando-o. Então, também em sangue, termina a
personagem em sua jornada: chegar aos lugares onde narrativa de Jack, deixando seu final completamente em
a lei não alcança e pôr um fim às atividades criminosas aberto. Não sabemos sobre seu destino, ou sobre suas
dos seus antigos parceiros de crime. John Marston é um possíveis intenções após ser realizada a vingança.
criminoso que busca redenção, mas que, para isso, terá
que usar as mesmas armas das quais tentou se afastar “O último inimigo que deve
quando abandonou sua vida de crimes. ser destruído” – Conclusões
O sangue e a morte estão presentes desde a alite- A discussão acerca da idiossincrasia do discurso pro-
ração no título do jogo, e são constantes na jornada de duzido nos video games nos mostra que o processo co-
Marston. Em um ambiente de tons pastéis e crus – o municativo e artístico está em constante movimento. Em Figura 10: Imagem de Red Dead Redemption

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Diálogos narrativos: as linhas de aproximação entre o audiovisual e os video games

tempos de leituras de romances e quadrinhos a partir de XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacida- Humanístico – Bloco IV, Cidade Universitária, CEP:
tablets e smartphones, a tecnologia contribuiu também de e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 58059-900, João Pessoa/PB, Brasil). E-mail: allana.
para o imbricamento das gramáticas específicas de cada dilene@gmail.com.
meio. As influências passaram a atuar de maneira plural, Referências audiovisuais
onde diferentes dispositivos discursivos ressignificam có- DARABONT, Frank. The walking dead. [Filme-vídeo]. 3 Alguns intertítulos deste artigo foram nomeados com
digos provenientes de meios difusores distintos. Criação de Frank Darabont, produção de David Alpert, base em falas ou títulos de capítulos do game analisado.
Sobretudo por esses fatores, consideramos impor- Gale Anne Hurd, Denise M. Huth, Robert Kirkman, Tom
tante a análise dessa zona de fronteira, no âmbito da Luse e Greg Nicotero. EUA, 2010. color. son. 4 “to signify the director’s control over what appears in
intersecção entre o audiovisual e os games. Trata-se de the film frame. As you would expect from the term’s
um campo de estudo que nos permite investigar, dentre FLEISCHER, Ruben. Zumbilândia. [Filme-vídeo]. Pro- theatrical origins, mise-en-scéne includes those as-
outras coisas, formas diversas de construção identitária, dução de Gavin Polone. Estados Unidos, 2009. 88 min. pects of film that overlap with the art of theater:
a exemplo do modo como os gêneros são retratados color. son. setting, lighting, costume, and the behavior of the fi-
nos jogos. Por isso, o horizonte que se descortina, nos faz gures. In controlling the mise-en-scéne, the director
observar com atenção a maneira como são construídos HARMON, Dan. Community. [Filme-vídeo]. Criação De stages the event for the camera”.
estereótipos e rompimentos, as representações que eles Dan Harmon, produção de Jake Aust e Dan Harmon.
geram e os efeitos de sentido que produzem. EUA, 2009. color. son. 5 “it need not be only a container for human events
but can dynamically enter the narrative action”.
RAMER, Jerry; BLASHFIELD, Jim; CHILVERS, Colin.
Referências Moonwalker. [Filme-vídeo]. Produção de Paul Diener, 6 Utilizamos o termo “quebra de ilusão” neste trabalho
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. Film Art: an in- Dennis E. Jones, Jerry Kramer e direção de Jerry Kramer. no sentido de se referir a uma suposta falta de ve-
troduction. New York: Mc-Graw Hill, 1997, 8th edition. EUA, 1988. 93 min. color. son. rossimilhança. No exemplo citado, normalmente em
conglomerados urbanos as distâncias são maiores,
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradu- Red Dead Redemption. Playstation 3. Rockstar Games, e as localizações comerciais não ficam tão próximas
ção André Cechinel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. 2009. 01 disco blu-ray. entre si. O game prefere encurtar essas distâncias,
para conveniência do jogador.
PUCCI, Renato. Cinema brasileiro pós-moderno: o Notas
Neon-realismo. Porto Alegre (RS): Editora Sulina, 2008. 1 Doutorando em Letras pela Universidade 7 “Like setting, costume can have specific functions in
Federal da Paraíba. Bolsista da Coordenação de the total film, and the range of possibilities is huge”.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campi- Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
nas: Papirus, 2003. (Capes). (UFPB - Campus I, Conjunto Humanístico – 8 “Whether more or less typed, the performance can
Bloco IV, Cidade Universitária, CEP: 58059-900, João also be located on a continuum of stylization. A long
_____. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à Pessoa/PB, Brasil). E-mail: afonso780@yahoo.com.br. tradition of film acting strives for a resemblance to
intertextualidade. In: CORSEUIL, A. R. (ed.). Ilha do des- what is thought of as realistic behavior. This sense of
terro: Film Beyond Boundaries. Florianópolis, UFSC, nº 2 Doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade realism may be created by giving the actors small bits
51, Jul/Dez 2006. Federal da Paraíba (UFPB - Campus I, Conjunto of business to perform while they speak their lines”.

69 PORTO ALEGRE | v. 19 | n. 32 | 2014 | pp. 61-69


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