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O OLHAR NO ESPELHO

“CONVERSAS” SOBRE A PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

2. ed. revista
Editora da Universidade Estadual de Maringá

Reitor: Prof. Dr. Gilberto Cezar Pavanelli


Vice-Reitor: Prof. Dr. Angelo Priori
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Profa Dra Alice Eiko Murakami
Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Keshiyu Nakatani
Coordenador Editorial: Prof. Dr. André Porto Ancona Lopez

CONSELHO EDITORIAL
Profa Dra Clarice Zamonaro Cortez, Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik, Prof. Dr. Erico Sengik,
Prof. Dr. José Carlos de Sousa, Prof. Dr. José Luiz Lopes Vieira, Prof. Dr. Luiz Antonio de Souza, Prof.
Dr. Lupércio Antonio Pereira, Profa Dra Maria Iolanda Sachuk, Prof. Dr. Mauro Antonio da Silva Sá
Ravaganani, Prof. Dr. Osvaldo Ferrarese Filho, Profa Dra Ruth Izumi Setoguti e Prof. Dr. Sezinando
Luiz Menezes. Secretária: Maria José de Melo Vandresen.
EDUARDO AUGUSTO TOMANIK

O OLHAR NO ESPELHO
“CONVERSAS” SOBRE A PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

2. ed. revista

Maringá
2004

Divisão de Editoração Marcos Kazuyoshi Sassaka


Marcos Cipriano da Silva
Paulo Bento da Silva
Maringá
2004

Divisão de Editoração Marcos Kazuyoshi Sassaka


Marcos Cipriano da Silva
Paulo Bento da Silva
Cristina Akemi Kamikoga
Luciano Wilian da Silva
Solange Marli Oshima
Revisão de Língua Portuguesa Raul Pimenta
Capa – arte final Luciano Wilian da Silva
Marcos
Cristina Kazuyoshi Sassaka
Akemi Kamikoga
Revisão geral LucianoPorto
André Wilian da Silva
Ancona Lopez
Projeto gráfico e Editoração Solange Marli Oshima
Marcos Cipriano da Silva
Revisão de Língua Portuguesa
Normalização Raul Pimenta
Biblioteca Central - UEM
Capa – arteFonte
final Luciano
Bodoni Wilian da Silva
Marcos Kazuyoshi Sassaka
Tiragem
Revisão geral 500 exemplares
André Porto Ancona Lopez
Projeto gráfico e Editoração Marcos Cipriano da Silva
Normalização Biblioteca Central - UEM
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Fonte –Bodoni
Biblioteca Central UEM, Maringá
Tiragem 500 exemplares
Tomanik, Eduardo Augusto
T655o O olhar no espelho: “conversas” sobre a pesquisa em Ciências Sociais /Eduardo
Augusto Tomanik. -- 2. ed. rev. -- Maringá : Eduem, 2004.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
239 p. Biblioteca Central – UEM, Maringá
Livro indexado em Geodados.
http://www.geodados.uem.br
Tomanik, Eduardo Augusto
T655o O olhar
ISBN no espelho: “conversas” sobre a pesquisa em Ciências Sociais /Eduardo
85-85545-84-4
Augusto Tomanik. -- 2. ed. rev. -- Maringá : Eduem, 2004.
1. Ciências
239 p. Sociais - Metodologia de pesquisa. 2. Pesquisa participante. 3. Pesquisa
social - Alternativas.I. Título
Livro indexado em Geodados.
http://www.geodados.uem.br CDD 21. ed. Cd. 300.72
ISBN 85-85545-84-4 Zenaide Soares da Silva CRB 9/1307

1. CiênciasCopyright
Sociais - 
Metodologia de pesquisa.
1994 para Eduardo 2. Pesquisa
Augusto Tomanik participante. 3. Pesquisa
social
Todos os -direitos
Alternativas.I. Título
reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer
processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a
autorização, por escrito, do autor. CDD 21. ed. Cd. 300.72
Todos os direitos reservados desta edição 2004 para Eduem.
Zenaide Soares da Silva CRB 9/1307

Endereço para correspondência:


Copyright 1994 para Eduardo Augusto Tomanik
Eduem - Editora
Todosda
os Universidade Estadual
direitos reservados. de Maringá
Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer
Av. Colombo, 5790 - Campusprocesso mecânico, eletrônico,
Universitário, 87020-900 reprográfico etc., sem a
- Maringá-Paraná-Brasil
Fone: (0XX44) 261-4527/261-4394 autorização,
Fax: (0XX44) por263-5116
escrito, do autor.
Site: http://www.eduem.uem.br - E-mail:reservados
Todos os direitos eduem@uem.br
desta edição 2004 para Eduem.
Endereço para correspondência:
Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringá
Av. Colombo, 5790 - Campus Universitário, 87020-900 - Maringá-Paraná-Brasil
Fone: (0XX44) 261-4527/261-4394 Fax: (0XX44) 263-5116
Site: http://www.eduem.uem.br - E-mail: eduem@uem.br
Aos meus alunos
(com eles aprendo)
A Geni e Marcela
(com elas cresço)
Eu sustento que a única finalidade da ciência está em
aliviar a miséria da existência humana (Brecht apud
Brandão, 1982)
UMÁRIO

OLHAR NO ESPELHO: UM BREVE COMENTÁRIO ............................................................. 11

ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA: POR QUE PESQUISAR? ................. 13

ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE METODOLOGIA E CIÊNCIA: A CIÊNCIA


NO DISCURSO LEIGO ............................................................................................................... 29

O QUE É CIÊNCIA?: A CIÊNCIA NO DISCURSO DOS CIENTISTAS ........................................ 51

SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA: O DISCURSO DAS CIÊNCIAS......................................... 109

A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS ...................................................... 127


A PESQUISA PARA A TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL........................................ 161

AAPESQUISA
PESQUISAPARA
PARAA ATRANSFORMAÇÃO
TRANSFORMAÇÃODA
DAREALIDADE
REALIDADESOCIAL
SOCIAL........................................
........................................ 161
161

SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE PESQUISA: CRÍTICA À PESQUISA CRÍTICA .......... 209

SAOBRE
SOBRE
PESQUISA
ASASFORMAS
FORMAS
EFERÊNCIAS AALTERNATIVAS
TRANSFORMAÇÃO
ALTERNATIVAS DE DA REALIDADE
DEPESQUISA
PESQUISA : CRÍTICA
: CRÍTICA SOCIAL
ÀÀPESQUISA........................................
PESQUISA CRÍTICA..........
CRÍTICA .......... 209
.........................................................................................................................
PARA 161
209
241

EFERÊNCIAS
EFERÊNCIAS.........................................................................................................................
......................................................................................................................... 241
241

SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE PESQUISA: CRÍTICA À PESQUISA CRÍTICA .......... 209

EFERÊNCIAS......................................................................................................................... 241

  
LHAR NO ESPELHO

UM BREVE COMENTÁRIO

Ao estudar um aspecto qualquer da vida humana −seja este aspecto uma ca-
racterística particular de uma pessoa ou um amplo processo coletivo −o cientista
social estará também, inevitavelmente, refletindo sobre sí mesmo. Para ele, não há
como não ser, ao mesmo tempo, pesquisador e pesquisado.
Mais ainda; ao realizar seus estudos, o cientista social sofre sempre
múltiplas influências: das idéias próprias de sua época, das crenças e inte-
resses de seu grupo e mesmo de suas disposições pessoais mais ou menos
duradouras. O que, afinal, consegue ver, é sempre uma imagem, por vezes
bastante fiel, mas nunca idêntica à realidade.
Tal como ao olhar-se ao espelho, o que um ser humano vê é algo pare-
cido consigo, mas que não é ele. Bidimensional, invertida, a imagem jamais
se igualará a ele, embora o reproduza.
Por outro lado, a imagem percebida não é necessariamente a que o es-
pelho mostra; é uma outra, parecida, mas que inclui também tudo em que
aquele ser pensa, crê, o que pretende e sente sobre sí mesmo.
Ao olhar no espelho, o ser humano é, ao mesmo tempo, o que vê e o
que é visto.
Daí o título...
Daí o texto...
APÍTULO 1

ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE


A CIÊNCIA: POR QUE PESQUISAR?

Desde Descartes, no século XVII, a ciência vem ensinando-nos a


dominar a natureza. Parece ter conseguido seu intento com
muito êxito, pois já trata de dominar o próprio homem.
Todavia, ainda não conseguiu ensinar-nos como dominar a
dominação (Japiassu, 1981, p. 46).

Você está entrando pela primeira vez em um curso sobre ciência e pes-
quisa, ou tendo contato pela primeira vez com um texto específico sobre o
assunto?
Seja bem-vindo.
Eu poderia acrescentar a esta saudação a fórmula usual do “sinta-se
como se estivesse em sua casa”, mas esta frase, com certeza, exprimiria
muito mais um desejo meu que uma sensação sua.
Provavelmente, a sua impressão em relação à ciência é de estranheza ou
até de um certo temor. No mínimo de falta de familiaridade com o assunto.
Se for feita, agora, uma pergunta sobre o que você sabe sobre ciência,
provavelmente, sua primeira tendência será a de responder que não sabe
nada, e que nos lugares onde estudou até agora não se falou, ou se falou
muito pouco sobre isso. Se for assim, permita-me discordar.
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

Tenho a impressão que você sabe muito mais sobre ciência do que po-
de parecer à primeira vista. Todos nós temos entrado em contato com a
ciência há muito tempo e com grande frequência, participando dos progres-
sos e contradições que ela produz e até conversando, ainda que de forma
indireta, sobre o que venha a ser ciência e para o que ela serve.
Pois é sobre isso que conversaremos logo a seguir (até onde for possí-
vel “conversar” através de um texto escrito).
Por outro lado, pode ser que este não seja o seu primeiro curso ou tex-
to sobre estes temas.
Seja bem-vindo da mesma forma, e vamos ao assunto.

A CIÊNCIA
Antes de falarmos sobre a ciência, é conveniente tentarmos entender,
mesmo que de forma superficial, o que é a ciência.
Fazendo isto, estaremos começando, talvez, pelo ponto mais difícil;

[...] por incrível que pareça, não há coisa mais controversa em ciência
que sua própria definição. Partimos, pois, do ponto de vista de que se
trata de uma discussão insolúvel, pelo menos no sentido de que não se
pode atribuir em momento algum a ela uma posição definitiva (Demo,
1980, p. 13).

Essa controvérsia e esta impossibilidade de que seja adotada uma defi-


nição única e permanente de ciência não se deve à incapacidade dos cientis-
tas de chegarem a um acordo, nem à paixão deles pela polêmica e discussão,
mas ao caráter dinâmico que a ciência deve ter para que se possa constituir
num corpo de conhecimentos efetivo e útil. Talvez seja conveniente explicar
isto.
A ciência não deve ser um agrupamento estático de teorias ou leis por
uma série de razões. Dentre estas, podemos destacar quatro, apenas como
ilustração.
Primeira. As ciências pretendem ser uma forma de conhecimento da re-
alidade. Ora, tanto o mundo físico (o mundo dos organismos e dos fenôme-
nos naturais; das rochas, metais e gases; dos planetas e dos átomos, dos
sistemas estrelares e dos microorganismos) quanto o mundo social (das

14 
O OLHAR NO ESPELHO 

organizações coletivas e processos humanos, das culturas e dos desejos


individuais, do trabalho e das revoluções) estão em contínuo processo de
transformação. A realidade não é estática, e, por isto, os conhecimentos
sobre ela devem ser capazes de acompanhar, de refletir estas mudanças.
Segunda. O próprio avanço das ciências e das tecnologias contribui pa-
ra abrir novos campos e formas de pesquisa. Aparelhos submarinos e espa-
ciais, microscópios e radiotelescópios são apenas exemplos de
equipamentos que alargaram os horizontes das pesquisas científicas e per-
mitiram ao homem obter informações novas, capazes, por sua vez, de exigir
que os conhecimentos desenvolvidos e acumulados anteriormente fossem
alterados.
Mesmo o uso de equipamentos simples, como os gravadores portáteis,
contribuiu, por exemplo, para que os cientistas sociais pudessem realizar
análises mais minuciosas e precisas de discursos bastante longos, e com isso
abriu novas possibilidades de estudo. Conseqüentemente, contribuiu para
alterar os corpos de conhecimentos já existentes.
Nas ciências sociais, muito mais do que o uso de equipamentos, novas
formas de pesquisa, envolvendo a participação direta do pesquisador na
situação pesquisada, têm possibilitado avanços importantes na discussão dos
processos sociais e humanos. Esses avanços, embora não recebam, via de
regra, a mesma divulgação dada às conquistas tecnológicas, são importantes
o suficiente para determinarem novos rumos para os estudos que envolvem
o homem.
Terceira. Os conhecimentos científicos não são aceitos unanimemente
dentro da própria ciência. É bastante comum que afirmações feitas por um
cientista, e baseadas em suas pesquisas e reflexões, sejam questionadas por
outros cientistas. Estes questionamentos podem colocar em dúvida tanto a
adequação da pesquisa para se chegar àquelas afirmações, quanto a veraci-
dade das afirmações, mesmo quando baseadas numa boa pesquisa. Às vezes
podem servir, também, para que um cientista revele, de forma “acadêmica”,
suas desavenças pessoais com outro.
De qualquer forma, a crítica é importante dentro da ciência, já que os pro-
cessos de verificação que se originam dela podem servir tanto para refutar afir-
mações que se mostrem inadequadas, quanto para reforçar o valor daquelas que
puderem ser confirmadas. Mesmo estas, porém, estão sujeitas a novas críticas e a
novas verificações, que podem chegar a reformulá-las.

15 
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

Quarta. Os conhecimentos reunidos sob o título de ciência são recursos


desenvolvidos pelo homem, através da história, para suprir suas necessida-
des e aspirações. Na medida em que estas se alteram, os objetivos específi-
cos da ciência também podem sofrer alterações, o que faz com que os
procedimentos aceitos como adequados e os critérios de definição do co-
nhecimento científico, tidos como válidos num período histórico, possam ser
modificados em outro.
Por razões como estas é que os limites das ciências estão sempre sendo
discutidos e avaliados, o que torna impossível se ter uma definição única e
permanente, e faz com que grupos diferentes de cientistas adotem e procu-
rem demonstrar como adequadas definições diferentes, e às vezes até confli-
tantes, sobre os limites da ciência e as formas adequadas para a obtenção
ou o desenvolvimento de conhecimentos científicos.
Assim, adotar de início e sem uma reflexão mais aprofundada uma de-
finição qualquer, pode fazer com que alguém, que esteja se iniciando no
mundo das ciências, deixe de perceber toda a complexidade e o dinamismo
desse mundo e passe a acreditar que a única ciência possível (ou válida) é
aquela contida na definição adotada.
É preferível que você procure ler e analisar algumas definições diferen-
tes, que tente descobrir em quê elas diferem e as razões que podem levar
os cientistas a adotar esta ou aquela definição. Embora esta não seja uma
tarefa fácil, especialmente para um iniciante, realizá-la pode determinar a
diferença entre simplesmente ter alguns conhecimentos sobre a ciência e
compreender o processo científico.
De qualquer forma, quer você queira se dedicar a esta tarefa ou não,
algumas informações básicas podem lhe ser úteis, até para entender o con-
teúdo dos textos que falam sobre a ciência. Em cada um desses textos você
poderá ver referências aos objetos, métodos e objetivos das ciências em
geral, ou de uma ciência específica. Vamos tentar entender cada um destes
termos.

O OLHAR NO ESPELHO 
O OBJETO
O objeto de uma ciência é aquilo a que ela se propõe a conhecer; é a
parte da realidade sobre a qual ela pretende realizar seus estudos.
O universo em que vivemos, a realidade que construímos e os seres em
que nos transformamos são entidades complexas demais para serem conhe-
16 
cidas e compreendidas por uma mesma pessoa, ou para serem estudadas
em sua totalidade. Frente a estas dificuldades, o caminho adotado pela ciên-
cia tem sido o de dividir a realidade em partes, e desenvolver áreas de estu-
O OLHAR NO ESPELHO 

O OLHAR NO ESPELHO 
O objeto de uma ciência é aquilo a que ela se propõe a conhecer; é a
parte da realidade sobre a qual ela pretende realizar seus estudos.
O objeto deem
O universo umaqueciência
vivemos, é aquilo a que que
a realidade ela construímos
se propõe a econhecer;
os seres éema
parte da realidade sobre a qual ela pretende realizar
que nos transformamos são entidades complexas demais para serem conhe- seus estudos.
cidasOeuniverso em que por
compreendidas vivemos,
uma amesma
realidade que construímos
pessoa, ou para serem e osestudadas
seres em
em sua totalidade. Frente a estas dificuldades, o caminho adotado pelaconhe-
que nos transformamos são entidades complexas demais para serem ciên-
cidasteme sido
cia compreendidas
o de dividirpor uma mesma
a realidade pessoa,e desenvolver
em partes, ou para serem áreasestudadas
de estu-
em sua
dos totalidade. em
especializadas Frente
cadaa uma
estasdelas,
dificuldades,
originandoo caminho
assim asadotado
diversaspela ciên-
ciências.
cia tem sido o de dividir a realidade em partes,
Freqüentemente acontece que uma destas ciências chega a desenvolvere desenvolver áreas de estu-
dos especializadas
conhecimentos tãoem cada umasobre
complexos delas,sua
originando
área, ou assim as diversas
a descobrir ciências.
variações tão
Freqüentemente acontece que uma destas ciências
importantes dentro desta, que se subdivide, dando origem a novas ciências. chega a desenvolver
conhecimentos
Outras vezes é tão complexos de
a combinação sobre
duassua área,
áreas de ou a descobrir
estudo variações
que permite tão
o surgi-
importantes dentro
mento de uma terceira. desta, que se subdivide, dando origem a novas ciências.
Outras vezes
Neste é a combinação
processo de divisõesdesucessivas,
duas áreascadade estudo
ciênciaquevai permite o surgi-
delimitando sua
mento de uma terceira.
área específica de estudo, ou seja, vai-se dedicando a conhecer, cada vez
maisNeste
a fundo,processo de divisões
determinada partesucessivas, cada ciência
da realidade. vai delimitando
Vai definindo (e às vezessua
área específica
redefinindo) seudeobjeto.
estudo, ou seja, vai-se dedicando a conhecer, cada vez
maisÉ apreciso
fundo,não determinada
confundir osparte objetosdaderealidade.
estudo dasVai definindo
ciências (e às
(divisões vezes
artificiais
redefinindo) seu objeto.
da realidade) com os fenômenos e processos naturais ou sociais.
ÉUmpreciso
mesmo nãofenômeno
confundir os objetos
pode de estudo
ser objeto de das ciências
várias (divisões
ciências. Um artificiais
furacão,
da realidade) com os fenômenos e processos naturais ou
por exemplo, pode estar presente nos estudos da meteorologia (interessada sociais.
Um mesmosua
em determinar fenômeno
origem, pode ser objeto dee várias
seu deslocamento em medirciências. Um furacão,
sua intensidade),
poreconomia
da exemplo, (preocupada
pode estar presentecom os nos estudos
prejuízos da meteorologia
causados por ele), da (interessada
engenha-
em determinar sua origem, seu deslocamento e em
ria (tentando desenvolver edificações que resistam à sua passagem) e até medir sua intensidade),
da economia
das (preocupada
ciências sociais como acom os prejuízos
antropologia, causados ou
a sociologia pora ele), da engenha-
psicologia (preo-
ria (tentando
cupadas, desenvolver
por exemplo, comedificações
as formasque queresistam
ele assumeà suanopassagem)
imaginárioe dasaté
das ciências sociais como a antropologia, a sociologia
populações por onde passa ou o papel que representa na organização dessas ou a psicologia (preo-
cupadas, por exemplo, com as formas que ele assume no imaginário das
populações).
populações
Se tomarmospor onde como passa ou o papel
exemplo que representa
o homem, veremos na queorganização dessas
ele é um objeto
populações).
presente nos estudos de praticamente todas as ciências, mesmo que de
forma Seindireta.
tomarmos como exemplo o homem, veremos que ele é um objeto
presente nos lado,
Por outro estudos de da
dentro praticamente
definição dotodas
objetoasde ciências,
uma ciência,mesmopodem queestar
de
forma indireta.
presentes fenômenos e processos que seriam considerados como totalmente
Por outro
diferentes por outralado, dentro da definição
classificação. A mesmado objeto
física de
queuma ciência,
permite podem estar
a fabricação de
presentes fenômenos e processos que seriam considerados
bombas de fissão ou de fusão nuclear pode estar presente na produção como totalmentede
diferentes por
alimentos. Umaoutra classificação.
brincadeira A mesma
de crianças física guerra
ou uma que permite
mundiala fabricação
podem estar de
bombas de fissão ou de fusão nuclear pode estar presente na produção de
alimentos. Uma brincadeira de crianças ou uma guerra mundial podem estar
17 

17 
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

sendo estudadas ao mesmo tempo pela psicologia. Estas duas ciências, assim
como a química, a biologia, a sociologia ou a história (entre outras) podem ter
partes de suas atenções voltadas, por exemplo, para as viagens espaciais e as
olimpíadas, simultaneamente.
Podemos dizer, então, que, ao definir seu objeto de estudo, uma ciência não
está selecionando quais processos ou fenômenos vai estudar, mas quais os aspec-
tos destes ou de outros processos e fenômenos vão ser enfocados por ela.
Tome como exemplo de um processo a vida em sociedade. Diferentes as-
pectos desta podem ser estudados pela antropologia, sociologia, psicologia,
história, economia etc. Cada uma delas vai enfocar o mesmo processo de forma
diferente, centrando suas atenções naqueles aspectos que se relacionem mais
diretamente com seu interesse específico.
Convém sempre lembrar que estes cortes, realizados pelas ciências, ao
definir seus objetos, são artificiais, e que um fenômeno qualquer só pode
ser compreendido adequadamente quando os conhecimentos desenvolvidos
sobre ele pelas várias ciências são adequadamente reunidos e combinados.
Isto não é uma tarefa fácil, já que, por vezes, estudos desenvolvidos por
ciências diferentes apontam para conclusões distintas sobre um mesmo
fenômeno. A controvérsia gerada por esse tipo de fato pode levar décadas
para ser superada. De qualquer forma, a frase inicial deste parágrafo deve
ficar como um alerta contra o risco de que o cientista se feche em sua área
de estudo, tornando-se um superespecialista, e esquecendo que a realidade é
algo muito maior do que aquilo que a sua ciência permite conhecer.
Por outro lado, a definição de seu objeto de estudo é um processo fun-
damental para o desenvolvimento de uma ciência, já que é esta delimitação
que permite aos cientistas compararem seus estudos e checarem suas conclu-
sões. É preciso que fique claro o que está sendo estudado, e qual o enfoque
adotado, para que se possa saber se duas pesquisas ou teorias se referem ao
mesmo aspecto da realidade e podem, portanto, ser comparadas, para se so-
marem, ou para divergirem entre sí. O próprio desenvolvimento de uma ciên-
cia depende, então, de uma definição clara, ainda que provisória, de seu objeto
de estudo.

O OLHAR NO ESPELHO 
O MÉTODO
No momento em que adota determinado aspecto da realidade como seu
objeto de estudo, cada ciência procura, paralelamente, desenvolver procedi-
mentos capazes de lhe permitir conhecer aquele objeto. Esses procedimen-
tos são os métodos. 18 
Se dissemos que o objeto de cada ciência é o que ela se propõe a co-
nhecer, podemos dizer que os métodos indicam como ela se propõe a fazê-
lo.
O OLHAR NO ESPELHO 

O OLHAR NO ESPELHO 
No momento em que adota determinado aspecto da realidade como seu
objeto de estudo, cada ciência procura, paralelamente, desenvolver procedi-
No momento
mentos capazes deemlheque adota determinado
permitir aspecto
conhecer aquele da realidade
objeto. como seu
Esses procedimen-
objeto de estudo,
tos são os métodos. cada ciência procura, paralelamente, desenvolver procedi-
mentos capazes de
Se dissemos quelheo permitir
objeto deconhecer aquele
cada ciência é oobjeto.
que elaEsses procedimen-
se propõe a co-
tos são os
nhecer, métodos.
podemos dizer que os métodos indicam como ela se propõe a fazê-
lo. Se dissemos que o objeto de cada ciência é o que ela se propõe a co-
nhecer,
Um podemos
método, nodizer que osnão
entanto, métodos indicam
é apenas como elade
um conjunto se regras
propõedea ação,
fazê-
lo.
na medida em que reflete tudo aquilo que os seus elaboradores, ou os que o
Um acreditam
adotam, método, noouentanto,
pensamnão é apenas
saber sobre oumobjeto,
conjunto
antesdemesmo
regras de estu-
ação,
na
dá-lo. Se me proponho a estudar um objeto qualquer através da observação,o
medida em que reflete tudo aquilo que os seus elaboradores, ou os que
adotam,
estou nãoacreditam ou pensam
apenas adotando saber sobrecomo
a observação o objeto,
método,antes
masmesmo de estu-
deixando claro
dá-lo.naSeminha
que, me proponho
definiçãoa prévia
estudarsobre
um objeto qualquer
o objeto, estou através
aceitando da aobservação,
suposição
estou
de quenãoele apenas adotando a observação
tem características como método,
que são observáveis, e quemas deixando
estas claro
característi-
que, na minha definição prévia sobre o objeto, estou aceitando
cas são importantes a ponto de que ele possa ser conhecido através delas. a suposição
de que ele tem características que são observáveis, e que estas característi-
cas são importantes
O método acientífico
ponto deé um
que conjunto
ele possadeserconcepções
conhecidosobre
através delas. a
o homem,
natureza e o próprio conhecimento, que sustentam um conjunto de
regras
O métodode científico
ação, deé um procedimentos,
conjunto de prescritos
concepções para
sobre seo homem,
construira
conhecimento científico (Andery et al., 1988, p. 16).
natureza e o próprio conhecimento, que sustentam um conjunto de
regras de ação, de procedimentos, prescritos para se construir
Assim,conhecimento
todos os fatores que possibilitam
científico (Andery et al.,ou exigem
1988, p. 16).transformações nas
definições das ciências e de seus objetos, atuam de forma semelhante sobre
Assim, todos os fatores que possibilitam ou exigem transformações nas
os métodos.
definições
Da mesmadas ciências
forma quee dea seus objetos,
definição atuam de
do objeto, forma semelhante
a discussão sobre
sobre os méto-
os métodos.
dos é de extrema importância para o desenvolvimento dos conhecimentos, já
que Da
é elamesma forma que
que permite a definição
avaliar do objeto,
a adequação a discussão
de cada afirmação,sobre os méto-
de cada nova
dos é ou
frase de fórmula
extrema que
importância para ao ser
se proponha desenvolvimento
uma descriçãodos de conhecimentos,
um fenômeno ou já
que é ela que permite avaliar a adequação
processo, sejam eles naturais ou sociais. de cada afirmação, de cada nova
fraseLançar
ou fórmula que se proponha
uma afirmação qualquera éseralgo
umamuito
descrição
fácil. de umafirmar
Posso fenômeno ou
o que
processo,a respeito
quiser, sejam elesdenaturais
qualquerou coisa.
sociais.Difícil é elaborar uma afirmação capaz
Lançar com
de refletir, uma algum
afirmação
grauqualquer é algo muito
de fidelidade, fácil. do
uma parte Posso afirmar
objeto que oestou
que
quiser, a respeito
estudando, de qualquer
uma afirmação quecoisa. Difícil écompreender
me permita elaborar umamelhor
afirmação capaz
a estrutu-
de refletir,
ra, com algum
o funcionamento ou grau de fidelidade,
as relações deste meu umaobjeto
partecomdo objeto que estou
a realidade onde
estudando,
ele uma afirmação
se encontra. Igualmentequedifícil
me permita
é verificarcompreender melhor aqualquer
se uma afirmação estrutu-
ra, o funcionamento
possui essas qualidades.ou as relações deste meu objeto com a realidade onde
ele se encontra. Igualmente difícil é verificar se uma afirmação qualquer
possui essas qualidades.
19 

19 
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

O caminho para superar estas dificuldades passa pelo estudo dos méto-
dos.
Isoladamente, qualquer afirmação, feita por qualquer pessoa, pode ter o
mesmo valor. As diferenças começam a se tornar claras quando são avaliadas
as bases de cada afirmação. O conhecimento dos passos que foram dados, das
informações que foram colhidas e das formas como o foram, dos raciocínios
realizados e das bases sobre as quais eles foram elaborados, do momento e do
local, da situação concreta na qual a afirmação foi elaborada, e (se possível)
das intenções do seu autor, me permitem ter uma visão bem mais clara sobre
o valor de cada afirmação.
Este procedimento de avaliação dos métodos de elaboração de uma a-
firmação nos permite distinguir facilmente as afirmações bem fundamenta-
das, daquelas que representam meros palpites do seu autor.
Outra forma de se avaliar uma afirmação é colocá-la em confronto com
a realidade que ela pretende refletir. Via de regra, quanto melhores forem
os processos utilizados para a elaboração de um conhecimento, maiores
serão as chances de que ele consiga refletir corretamente o aspecto estuda-
do. “É comum dizer-se que os resultados de uma pesquisa não podem ser
melhores que os métodos empregados para sua obtenção” (Newcomb, 1974,
p. 1).
Como você pode ver, os métodos não são apenas formas de avaliar
afirmações, mas são também caminhos para se chegar a estas afirmações.
Este é um ponto que merece ser pensado com cuidado: grande parte da ati-
vidade dos cientistas (daqueles que exercem uma profissão baseada em conhe-
cimentos científicos) consiste em procurar a afirmação que tenha maiores
chances de refletir corretamente uma situação problemática, de descrever com
maior fidelidade um determinado acontecimento. Isto é válido tanto para aqueles
que se dedicam à pesquisa (a fase da ciência normalmente destinada à descober-
ta ou à elaboração de novos conhecimentos) quanto para os que procuram
aplicar a situações práticas os conhecimentos obtidos através da pesquisa.
Se nos detivermos um pouco sobre esta questão, veremos que procurar e-
laborar boas descrições de situações é uma necessidade não só para o cientista,
mas para qualquer cidadão, preocupado com problemas cotidianos. Qualquer
situação para ser compreendida (ou alterada) precisa ser descrita de uma forma
tal que permita aos interessados nela ter ao menos uma idéia aproximada de
sua dinâmica, de seus componentes e das relações entre eles. Tentar elaborar

20 
O OLHAR NO ESPELHO 

descrições coerentes e rigorosas de realidades específicas não é tarefa exclusiva


dos cientistas: “[...] rigor e lógica não demarcam ou caracterizam o pensamento
científico, já que são condições necessárias em qualquer discurso inteligente”
(Castro, 1978, p. 1).
Ora, se o conhecimento dos diferentes métodos pode nos auxiliar a ela-
borar melhores descrições, a desenvolver afirmações com maior grau de
fidelidade à situação a que se referem, o estudo da metodologia (a parte das
ciências que se ocupa da descrição, análise e avaliação dos métodos) pode
ser de grande utilidade para qualquer pessoa. Para as pessoas-cientistas, ele
é mais do que útil; é indispensável.
A ciência não pode ser feita apenas com a metodologia, mas também
não pode passar sem ela já que, como vimos, são os métodos que favorecem
o desenvolvimento de afirmações e possibilitam sua avaliação. Além disso,

embora a Metodologia não deva ser supervalorizada, por ser apenas


uma disciplina instrumental, desempenha papel decisivo na formação do
cientista, à medida que o faz consciente de seus limites e de suas
possibilidades. Pode-se mesmo dizer que a mediocridade e a falta de
preocupação metodológica coincidem (Demo, 1980, p. 13).

OS OBJETIVOS
O estudo dos objetos, através da aplicação dos métodos, visa atingir de-
terminados fins. Estes fins são os objetivos da ciência.
É ingênuo pensar que as ciências visam apenas ao conhecimento em sí,
ou a satisfazer uma ânsia natural do homem pela aquisição do saber. Idéias
como estas podem colocar as ciências e os cientistas num altar de “pureza”,
numa situação de distanciamento da realidade social e humana que eles não
devem e não podem ter. A busca de conhecimentos científicos não se fecha
sobre sí mesma, é uma atividade realizada sempre como forma, como meio
para se atingir outros fins exteriores a ela. A ciência não é algo diferente
daquilo que os cientistas fazem, e os cientistas não são seres diferentes dos
demais. Mesmo o cientista que se coloque como alguém que trabalha “pelo
bem da humanidade” vai estar, inevitavelmente, adotando uma definição
sobre o que seja este “bem”, e colocando seu trabalho a favor deste objetivo.

21 
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

Além disso, nem sempre os objetivos da ciência (quer dizer, dos cientis-
tas) são tão genéricos ou altruístas assim. Nem sempre são louváveis. Fabri-
car bombas atômicas ou desenvolver pesquisas sobre armas bacteriológicas
(entre outras) são atividades que dificilmente poderão ser classificadas como
benéficas à humanidade como um todo. São muito mais ligadas ao desejo de
determinado grupo humano de se impor aos demais.
Aliás, a existência de situações diferenciadas de poder e de dominação
entre grupos humanos se reflete claramente na determinação dos objetivos
da ciência em cada período da história. Já tivemos conjuntos de conheci-
mentos denominados como “ciência” tendo como objetivos a adequada ado-
ração de Deus − no período em que a Igreja Católica dominava
praticamente todo o mundo ocidental−, o extermínio de raças consideradas
“inferiores” e o aprimoramento da raça “superior” − na Alemanha Nazista e
em uma série de outros regimes racistas mais disfarçados−, e o domínio
econômico, baseado no avanço tecnológico − em praticamente todo o mundo
de hoje.
Talvez, o panorama que estou traçando possa dar uma visão pessimista
sobre a ciência e seu papel. Minha intenção, contudo, não é desmerecer a
ciência, mas apresentá-la como o que ela é: uma atividade humana, elabora-
da por seres humanos e passível de ser influenciada e transformada por
eles. Os objetivos das ciências são os objetivos do homem. Cabe a ele (cien-
tista ou não) lutar para que estes objetivos sejam melhores, ou menos ego-
ístas.
O fato de que a ciência é um auxiliar eficaz na luta para se atingir estes
objetivos, já é uma das razões para estudar, entender e praticar a ciência.
Mas há outras razões para isto.

ALGUMAS RAZÕES PARA COMPREENDER (E


PRATICAR) CIÊNCIA

Vivemos num mundo científico. A participação da ciência em pratica-


mente todas as nossas ações é tão grande que tende a passar despercebida,
mas tente olhar ao seu redor, ou a rememorar as ações que você realiza
diariamente, e procure eliminar aqueles objetos nos quais há a participação

22 
O OLHAR NO ESPELHO 

de conhecimentos obtidos ou reformulados através das ciências. Restou


pouca coisa, se é que restou algo, não é mesmo?
Claro, a ciência, tal como a definimos hoje, é um processo relativamente
novo na história, e ao seu redor existem, provavelmente, objetos cujas for-
mas e funções básicas foram desenvolvidas muito antes da existência da
ciência moderna. Cadeiras, mesas e papel são artefatos que vêm se manten-
do presentes na vida do homem há muito tempo. Além disso, a história das
civilizações humanas nos mostra sempre o homem cercado de artefatos e
conhecimentos sobre a natureza. Nada mudou, então?
O que diferencia nossa época das anteriores não é só a quantidade, a
diversidade e a complexidade dos conhecimentos acumulados, mas a forma
deliberada e sistemática como eles vêm sendo produzidos e organizados e,
mais ainda, a intenção contida nesta produção. Nunca houve uma parcela
tão grande da população envolvida exclusivamente com a produção e a
difusão de conhecimentos, nem parte tão substancial das riquezas produzi-
das foi investida nestas tarefas. Paralelamente, nunca a busca de novos co-
nhecimentos esteve tão comprometida com a obtenção de lucros ou outras
formas de dividendos quanto está a ciência de hoje, vinculada às diferentes
formas capitalistas de atuação sobre a realidade.
Como conseqüência disso, qualquer ação do homem de hoje é mediada
por objetos ou técnicas desenvolvidos através da ciência. Mesmo objetos e
técnicas antigas têm passado por estudos e reelaborações que os adaptam às
exigências (e conveniências) de hoje.
A ciência, contudo, não é só tecnologia, não se limita a produzir má-
quinas e objetos. Na medida em que estuda assuntos tão diversificados
quanto a previsão do tempo e a organização social, os efeitos do desmata-
mento, a energia atômica e o comportamento humano, além de inúmeros
outros, a comunidade científica tem-se constituido num participante desta-
cado na elaboração e aplicação de políticas sociais, ambientais, militares, de
produção industrial ou agrícola, enfim, tem papel destacado na estrutura de
poder da sociedade.
Através da história, tivemos sociedades aristocráticas, teocráticas e al-
gumas até democráticas. Hoje, sem deixar de obedecer a algumas dessas
formas de poder, nossa sociedade caminha a passos largos para se constituir
no que poderíamos chamar de uma “sofocracia”, tal a importância atribuída
aos cientistas e seus conhecimentos, e o grau de utilização destes últimos.

23 
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

Se é desejável a adoção desta forma de poder baseada no conhecimento


científico ou se a “ditadura do saber” pode representar a maior ameaça
possível à dignidade e aos direitos do ser humano é algo discutível, e que,
aliás, precisa ser discutido com urgência.
O que não se pode negar é que nossa sociedade não só é dependente
da ciência, como assimilou o modo científico de pensar como o modo de
pensar. A lógica da ciência, que existe juntamente com outras lógicas (reli-
giosas, populares, filosóficas, artísticas etc.) tem ofuscado as demais, a ponto
de ser tida como inegável. Isto pode ser percebido na forma como argumen-
tos do tipo “pesquisas demonstraram que...” ou “a ciência afirma...” são
usados para encerrar discussões (ou para impedir que elas surjam). Quantos
se atreverão, hoje, a constestar um argumento que comece pela frase “fula-
no de tal diz que...”, quando este tal de fulano é um cientista reconhecido
como competente?
A quantidade de vezes que usamos, em nossas falas cotidianas, palavras
como realmente, objetivamente, concretamente e outras, de uso típico nos
jargões científicos, demonstra também a influência do modo científico de
pensar e o valor que atribuímos a ele mesmo em nossas atividades não
ligadas diretamente à ciência
Todos estes dados apontam para a necessidade de se conhecer ciên-
cia.
Nossa vida está de tal forma influenciada pela ciência que esta talvez
seja a melhor razão para estudá-la. Mesmo que não tenhamos intenção de
conhecer a fundo a ciência, entendê-la é um requisito indispensável, hoje,
para quem pretenda entender o mundo em que vivemos. Se a ambição for
maior, e se pretendermos participar desse mundo, então apenas entender a
ciência pode não bastar.
Mesmo que não mereçam uma confiança tão grande e irrestrita
quanto aquela que a sociedade tem depositado neles, os conhecimentos
acumulados pela ciência e as formas de investigação desenvolvidas por
ela têm-se constituido em recursos bastante eficazes para a resolução de
problemas. Aliás, descobrir soluções para problemas é a função da ciên-
cia, e nisto ela tem se mostrado extremamente competente.
Esta é mais uma das razões pelas quais conhecer a ciência é uma
atividade importante, mesmo para o público leigo, aquele não envolvi-
do diretamente com a produção e difusão dos conhecimentos científi-

24 
O OLHAR NO ESPELHO 

cos. Para quem pretende realizar, seriamente, um curso universitário, e


com isso se tornar um profissional de “nível superior” (veja de novo,
aí, a importância atribuída à ciência) o conhecimento profundo da
ciência é um requisito básico. A própria existência dos cursos universi-
tários só alcança seu sentido primordial se relacionada à realização de
pesquisas e à elaboração de novos conhecimentos:

só tem algo a ensinar aquele que, por meio da pesquisa, construir uma
personalidade própria científica, aquele que tem uma contribuição
original; caso contrário, não vai além de narrar aos estudantes o que leu
por aí. E se atribuirmos à universidade um compromisso com a
comunidade em que está inserida, para que não fique apenas na teoria,
mas consiga descer à prática, isto se consegue da melhor maneira
possível, se a intervenção na realidade estiver baseada em pesquisa
prévia, porque não se pode influenciar o que não se conhece (Demo,
1980, p. 7).

Mesmo para os universitários que não pretendam seguir a carreira aca-


dêmica (e que são a maioria), o conhecimento das teorias e das formas de
investigação próprias de sua área são tão importantes quanto, ou até mais
do que, a aprendizagem de técnicas de atuação. Entre outras razões porque
para ter uma atuação coerente e eficaz frente a uma situação específica, o
profissional precisa basear todas as suas ações num conhecimento profundo
da realidade onde ocorreu aquela situação. E a forma mais segura para se
obter esse conhecimento ainda é a pesquisa científica.

Uma pesquisa sistemática é necessária no sentido de prover um acervo


de conhecimentos para melhor aplicá-los, especialmente aqueles que são
provenientes da ciência social (Likert; Lippit, 1974, p. 618).

Infelizmente, uma parte muito grande dos cursos universitários têm a-


presentado falhas nestas duas atividades: a elaboração de conhecimentos e a
formação de profissionais capazes de realizar, autonomamente, novas elabo-
rações. Um ensino que se limita a reproduzir fórmulas já existentes tem
uma alta probabilidade de gerar profissionais capazes apenas de serem
novos repetidores.

25 
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

Há um ditado popular que, a meu ver, serve bem para ilustrar esta si-
tuação: se a única ferramenta que você conhece é o martelo, tudo o que cair
na sua mão vira prego, ou seja, se o seu conhecimento teórico e metodoló-
gico é limitado, você não só terá dificuldade em distinguir entre duas situa-
ções semelhantes mas não iguais, como, se conseguir distinguí-las não
conseguirá elaborar formas de ação adequadas a cada uma. Talvez o martelo
seja uma boa ferramenta para alguns trabalhos com madeira ou ferro, mas
para vidro...
Pense nisto antes de tentar fazer seu curso e, especialmente, as discipli-
nas ligadas à metodologia de pesquisa, da forma mais fácil...

ALGUMAS DIFICULDADES PARA FAZER


CIÊNCIA

Não há dúvida que a atividade científica, se levada a sério, representa


sempre um caminho árduo, semelhante ao de outras atividades profissionais
exercidas com seriedade; e com frequência apresenta dificuldades bem mai-
ores do que as apresentadas por estas últimas. O tempo mínimo para a
formação básica de um cientista costuma ser bastante longo. Do momento
desta formação até que ele venha a desenvolver uma produção própria pode
decorrer um período ainda maior. Isto já é uma dificuldade considerável.
Outra, não tão grave, mas bastante desagradável, é a convivência com a
burocracia. Via de regra, o cientista dedicado à pesquisa não é um trabalha-
dor autônomo, mas contratado por instituições públicas ou particulares. Em
todas elas os procedimentos administrativos (nem sempre eficazes) costu-
mam tomar um tempo enorme de quem preferiria dedicar este tempo às
atividades propriamente científicas. Especialmente no caso das universidades
públicas, você não imagina a quantidade de folhas de papel que têm que ser
gastas e a variedade de relatórios que têm que ser preenchidos antes que se
consiga obter as folhas de papel necessárias para a elaboração do relatório
final. Em todo caso, há até cientistas que gostam dessas atividades...
Um outro fator que torna árdua a atividade científica é o fato de que
ela não pode, em hipótese alguma, ser uma tarefa individual. A idéia do
“gênio”, “pai” de uma descoberta ou teoria, esconde muito o fato de que
qualquer avanço da ciência representa sempre a soma de muitos esforços,

26 
O OLHAR NO ESPELHO 

de inúmeros pequenos progressos, obtidos cada um deles, a partir de um


sem-número de tentativas fracassadas e de umas poucas bem sucedidas.
Com esta afirmação, em primeiro lugar, estou procurando dizer que

[...] as Histórias Gerais e as Histórias da Ciência, seja por problemas de


espaço ou superabundância de outros dados informativos, noticiam apenas
os êxitos científicos, deixando de conscientizar os leitores de que quase
todos os sucessos da ciência foram precedidos de inúmeros fracassos
(Régis de Morais, 1983, p. 21).

Além disso, embora seja relativamente comum que os cientistas procu-


rem descobrir as causas que levaram ao fracasso ou ao abandono momentâ-
neo de determinada linha de pesquisa, é muito raro que algum deles se
disponha a publicar relatos e análises de tentativas frustradas. Esta atitude,
embora humanamente compreensível, favorece a que outros cometam os
mesmos erros, por desconhecerem os antecedentes; ao mesmo tempo, serve
para reforçar a idéia de uma ciência constituída apenas por sucessos.
Em segundo lugar, quero alertar para o fato de que o conhecimento,
especialmente o científico, não se desenvolve a partir do nada, da pura ins-
piração. Embora a criatividade seja uma característica quase imprescindível
para o desenvolvimento da ciência, este não se dá apenas a partir dela.
Tem havido uma ênfase excessíva, a meu ver, na divulgação de lendas
como as que envolvem as descobertas de Arquimedes, realizada durante um
banho, ou de Newton, quando uma maçã lhe caiu na cabeça. Não acho im-
portante saber se tais fatos realmente ocorreram. Importante é perceber
que, se nos concentramos no momento da descoberta, corremos o risco de
ignorar, por exemplo, que: a) antes desse momento já havia, por parte do
“descobridor”, uma preocupação com um problema, e uma disposição em
resolvê-lo; b) mais que isso, havia também todo um corpo de conhecimen-
tos sobre o assunto, desenvolvido através de anos e anos de estudos e refle-
xões por outros pesquisadores, e que provavelmente se tornou conhecido
pelo “descobridor” às custas de outros anos de leituras e de mais reflexões;
c) foram estes antecedentes que permitiram ao cientista ter preocupações
com o problema, e perceber, num acontecimento corriqueiro, a chance para
a sua solução; quantas pessoas haviam tomado banho antes, ou levado pan-
cadas na cabeça, sem que a ciência tivesse evoluído um passo por isto?; d)
além disso, não se pode deixar de lado o esforço desenvolvido após o mo-

27 
ALGUMAS NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A CIÊNCIA

mento da inspiração, para traduzir aquela descoberta num enunciado, numa


afirmação clara e correta, e na verificação do valor dessa afirmação.
Não estou querendo, com isto, ignorar ou menosprezar o valor da ca-
pacidade criativa, mas destacar o papel do esforço sistemático, da atividade
disciplinada e contínua para o desenvolvimento da ciência. Alguém até já
disse que a pesquisa científica é uma atividade composta por 10% de inspi-
ração e 90% de transpiração.
Como já vimos, o esforço do cientista não se resume ao momento da
realização da pesquisa. Ele começa muito antes, na aquisição e desenvolvi-
mento das condições mínimas para se chegar a este momento. Um bom
preparo teórico e domínio metodológico são requisitos indispensáveis e não
são conseguidos facilmente. Além desses requisitos, penso que é conveniente
ao cientista ter uma grande disposição para mudanças e um grau relativa-
mente alto de resistência à frustração.
Apesar dessas dificuldades todas (ou talvez justamente por elas) o
mundo da ciência é fascinante. A atividade de pesquisa, quer para a cons-
trução de teorias, quer para a resolução de problemas, tem sempre algo de
aventura, de um salto ao desconhecido.

Tem sentido pesquisar apenas aquilo que ignoramos, aquilo sobre o


que temos dúvidas. O maior problema da ciência é a realidade, tanto
no sentido de que ela tem como questão central atingir a realidade da
melhor maneira possível, como no sentido de que este atingimento é
sempre apenas parcial e imperfeito. Por isto estudamos, porque a
realidade nunca estará suficientemente estudada (Demo, 1980, p. 13).

Aí se unem as razões práticas, coletivas, às pessoais, emocionais para o


aprendizado da ciência, e para a aplicação desse aprendizado.
Além disso, num mundo em que os conhecimentos científicos estão
tão intimamente relacionados às questões políticas, conhecer a ciência e
torná-la conhecida é, sem dúvida, uma forma de favorecer a participação.
Temos aí uma série de razões para que você se disponha a ingressar no
mundo das ciências. Há muitas outras. Pense nelas.

28 
APÍTULO 2

ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS


SOBRE METODOLOGIA E CIÊNCIA:
A CIÊNCIA NO DISCURSO LEIGO

[...] Embora a ciência houvesse, de certa forma desmistificado a


religião, a humanidade passava a se curvar ante nova deusa: a
própria CIÊNCIA (Régis de Morais, 1983, p. 23).

Tenho trabalhado como professor de disciplinas sobre metodologia


e pesquisa já há alguns anos. Durante este tempo, percebi que algumas
noções pouco exatas sobre metodologia de pesquisa tendem a se repe-
tir entre os estudantes. Despertado para o assunto, passei a notar
também que uma série de impressões, a meu ver equivocadas, sobre
ciência e pesquisa tendem a aparecer repetidamente, tanto nos meios
universitários quanto entre o público não acadêmico.
Estas impressões transparecem claramente no contato com os alunos
e em conversas mais informais com pessoas pertencentes ou não ao meio
universitário. Aparecem ainda, embora de modo mais sutíl, diluidas entre
comentários, opiniões e atitudes estampadas nos veículos de imprensa.
Não procurei realizar um levantamento mais sistemático sobre a fre-
qüência com que cada uma destas impressões aparece, nem me preocupei
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

em registrar as fontes onde deparei com cada uma delas, mas creio que
você poderá reconhecê-las, uma vez que já deve ter entrado em contato ou
talvez até adotado algumas.
Não tenho a intenção, aqui, de levantar todas as idéias equivocadas que
possam estar existindo sobre ciência e metodologia de pesquisa, como não
tenho a pretensão de esgotar a discussão sobre as idéias (falsas ou não) que
vou apresentar. Pretendo apenas me servir das informações que recolhi, dos
enganos que observei, para tentar levantar algumas discussões prévias ao
ato de pesquisar.
Antes de pretender realizar uma pesquisa científica, é necessário se ter,
no mínimo, algumas noções sobre o que venha a ser a ciência e a pesquisa,
quais suas funções e limites. Não basta, no entanto, ter qualquer noção; é
preciso conhecer de perto o que a ciência pensa a respeito de si própria, e
quais os limites que ela impõe para que um conhecimento seja considerado
científico.
Uma das funções da ciência é justamente esta: a de discutir os requisi-
tos necessários para que uma determinada afirmação possa vir a ser aceita
como válida pela própria ciência. Para isso ela cria uma área especializada
para a realização destas discussões: a metodologia, ou seja, o estudo dos
métodos.
Para aprofundar mais estas noções sobre ciência e metodologia, é
que pretendo partir das idéias equivocadas que tenho encontrado, ten-
tanto levantar críticas a elas, de forma a tentar superá-las e chegar assim
a conceitos mais aceitáveis, embora também sujeitos à discussão.
Começarei por descrever os equívocos referentes à metodologia, não
porque eles sejam mais ou menos importantes que as idéias equivocadas sobre
ciência, mas apenas porque são mais simples. De uma forma ou de outra,
essas idéias equivocadas se interrelacionam e influenciam. Talvez pelo fato de
não serem muito elaboradas − há exceções − elas podem aparecer ora de
forma complementar, ora de forma excludente em relação à outra ou ou-
tras.

30 
O OLHAR NO ESPELHO 

METODOLOGIA COMO CONJUNTO DE REGRAS


SOBRE A APRESENTAÇÃO
DO TRABALHO CIENTÍFICO

Quando se começa a falar sobre metodologia de pesquisa, duas idéias


tendem a aparecer.
A primeira delas, a mais divulgada, é a de metodologia como um con-
junto de regras sobre a apresentação do trabalho científico. Segundo essa
versão, uma vez realizada (de alguma maneira) a pesquisa, uma vez elabo-
rado o conteúdo do relatório, a disciplina de metodologia seria a encarrega-
da de transmitir as normas sobre quantos capítulos deve ter um trabalho, de
que tamanho eles devem ser, em que ordem devem aparecer etc. Além disso,
a forma das citações e as regras para a digitação apareceriam como itens
importantes dentro da disciplina.
Não é raro que professores de metodologia ou não, ao exigirem a reali-
zação de trabalhos escritos deparem com perguntas do tipo: “com quantas
páginas, no mínimo?” ou “tem que ser digitado direitinho?”. Normalmente,
estes mesmos alunos reclamam do fato de que alguns professores exigem
que seus trabalhos sejam feitos “com metodologia” e outros não. “Metodolo-
gia”, neste caso, significa apenas a forma de apresentar o trabalho.
A existência deste tipo de perguntas e o uso do termo “metodologia” com
este significado ilustram bem o que venha a ser esta noção equivocada de
que estamos falando.
Penso que algum grau de padronização na apresentação dos trabalhos
científicos seja necessário para que a comunidade (acadêmica ou não) possa
entender qual é o conteúdo do trabalho. Nesse sentido, aspectos como cla-
reza na exposição dos pensamentos, utilização adequada das regras gramati-
cais, indicação completa das fontes utilizadas, separação clara entre as idéias
pessoais e as de outros autores, longe de serem apenas exigências acadêmi-
cas, são requisitos básicos para que o trabalho possa ser lido e discutido
com seriedade. De que serviria, por exemplo, a realização de um trabalho
com ótimo conteúdo e com muito boa aparência, mas que não contivesse, a
rigor, uma só idéia do seu suposto autor? Ou um outro, com idéias origi-
nais, mas escrito de modo quase ou totalmente incompreensível? Ou um

31 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

outro ainda, em que não se conseguisse distinguir quais seriam as idéias de


seu próprio autor, e quais seriam os conceitos desenvolvidos por terceiros?
No primeiro caso, o trabalho seria pura cópia; no segundo, seria inútil;
no terceiro, na pior das hipóteses, seria um caso de cópia disfarçada e na
melhor delas, um artigo impossível de ser questionado.
Talvez, os exemplos possam parecer ingênuos ou exagerados, mas tenho
a impressão que o número de trabalhos acadêmicos que poderiam ser classifi-
cados em uma destas categorias, ou em outras semelhantes, não é pequeno, e
serve para demonstrar os efeitos do desconhecimento ou do mau uso das
normas de padronização.
Algum grau de padronização é necessário, sim. No entanto, prefiro co-
locar as normas de apresentação do trabalho científico como parte de um
processo de aprendizagem para a exposição clara e objetiva das idéias e não
como regras fixas de digitação. É preciso conhecer e compreender as fun-
ções das normas não só para aplicá-las bem, como para discutir as razões e
conveniências da adoção de um tipo ou outro de padronização. A adoção de
normas deve ter como objetivo possibilitar a discussão do conteúdo do
trabalho, não substituir este conteúdo.
Não é errado, portanto, pensar que a discussão das normas de apresenta-
ção do trabalho científico faz parte da metodologia. Errado é pensar que a
metodologia seja só isto.

METODOLOGIA COMO CONJUNTO DE REGRAS


FIXAS SOBRE COMO FAZER PESQUISA

Não podemos nos esquecer que um trabalho, antes de ser apresentado


(digitado, reproduzido) tem que ser elaborado. Neste ponto, costuma surgir
a outra visão errônea sobre a metodologia: a de que ela é um conjunto de
regras fixas sobre como se fazer a pesquisa.
Por esta impressão, todas as pesquisas teriam que ser realizadas da
mesma maneira, e bastaria ao aprendiz decorar certas regras básicas para se
tornar cientista.
Esta idéia traz consigo uma outra − a de que a pesquisa é uma ativi-
dade padronizada. Sem dúvida, alguns momentos de uma pesquisa po-
dem exigir uma repetição bastante grande de procedimentos, como, por

32 
O OLHAR NO ESPELHO 

exemplo, a aplicação de questionários ou a repetição de medidas quando


se trabalha com grandes amostras. Isto não significa, porém, que o pro-
cesso todo de realização da pesquisa seja repetitivo ou padronizável.
Ao contrário, cada tipo de pesquisa, cada objeto, cada assunto, cada
problema de pesquisa, cada população ou situação a ser pesquisada deve
merecer, da parte do cientista, um elaborado raciocínio sobre qual seria o
método, ou os métodos mais adequados para este problema, esta teoria, esta
população e até para este momento histórico. Veja como, novamente, a
metodologia aparece como um momento ou vários momentos para a dis-
cussão sobre os procedimentos mais adequados, e não como um conjunto
de regras pré-estabelecidas.
Só haveria possibilidade da ciência estabelecer formas rígidas e imutá-
veis de procedimentos de pesquisa (ou seja, métodos rígidos), se os seus
objetos (aquilo que cada ciência pretende conhecer) fossem igualmente
rígidos e imutáveis. Neste caso, sim, poderíamos ter os métodos como repe-
tições rituais de procedimentos, mas teríamos também um problema: estes
rituais estariam condenados a obter o mesmo conhecimento infinitamente.
Veja por que: se o objeto não muda, e se ele é estudado sempre da mesma
maneira, as conclusões a que se poderá chegar serão, inevitavelmente, as
mesmas, sempre. Neste caso a ciência não teria nenhuma função.
Ao contrário disso, o processo histórico de desenvolvimento da ciência
tem mostrado uma interação dialética entre os métodos e os objetos de
estudo. Algumas vezes, um conjunto de pesquisas realizadas através da
utilização de métodos já consagrados, chega ao encontro de um objeto de
estudo que não era conhecido até o momento. Este novo objeto, por sua
vez, pode vir a exigir, para seu estudo, o desenvolvimento de todo um outro
corpo metodológico, até então inexistente.
Um exemplo deste processo, dentro da psicologia, são os estudos de
Freud. Freud tinha uma formação médica, e suas primeiras investigações se
deram dentro de uma metodologia típica da medicina de então. No entanto,
essas investigações o levaram ao desenvolvimento de alguns conceitos onde
o objeto de estudo não era mais o organismo humano, entendido apenas
como unidade biológica, mas este mesmo organismo, acrescido de uma
dimensão diferente, a dimensão psíquica. À partir do momento em que
estabeleceu o psiquismo como objeto de estudo, Freud teve que desenvolver
também um novo método, adequado a este objeto.

33 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

Assim, a noção de metodologia como um conjunto de regras fixas, além


de ser equivocada, implica também uma impressão distorcida do que venha
a ser a própria ciência.
Há várias outras impressões equivocadas a esse respeito. Entre essas, as
mais ingênuas, mas não pouco freqüentes, são as que consideram a ciência
como uma atividade obscura.

CIÊNCIA COMO ATIVIDADE OBSCURA

Esta visão se aproxima da versão caricaturesca, tantas vezes mostrada nos


filmes de terror, do cientista louco: um indivíduo que se isola da comunidade
científica e da própria humanidade para desenvolver um corpo de conhecimen-
tos totalmente original, desconhecido por todos e incompreensível para quase
todos, visando resolver, à sua maneira, um problema que ele considera crucial
para a humanidade, mesmo que a humanidade não concorde com a solução
proposta para o problema, nem com a existência do problema. Nos filmes, todo
o conhecimento desenvolvido pelo cientista se perde com a sua morte − para
alívio da platéia.
Na vida real, não são poucas as pessoas que consideram a ciência como
um conjunto de preocupações exageradamente minuciosas sobre assuntos
pouco importantes, expressas num linguajar incompreensível. A ciência
serviria apenas para alguns “iluminados” gastarem seu tempo (e garantirem
seus salários), realizando investigações detalhadas e demoradas sobre temas
supérfluos, e desenvolvendo teorias incompreensíveis e de pouca aplicabili-
dade, para serem apresentadas em congressos tão maçantes quanto inúteis,
do ponto de vista da resolução de problemas concretos.
Via de regra, basta que uma universidade entre em greve para que este
tipo de visão comece a aparecer, especialmente naqueles órgãos de comuni-
cação que primam pelo sensacionalismo.
Ver a ciência como obscura, então, implica atribuir-lhe duas caracterís-
ticas: expressar-se numa linguagem incompreensível e ter preocupações
puramente teóricas.
É verdade que, por questões de precisão e sintetização de comunica-
ções, cientistas de uma mesma área tendem a se comunicar através de uma

34 
O OLHAR NO ESPELHO 

linguagem específica, baseada em expressões e termos técnicos de uso co-


mum e significado conhecido entre eles. Esta espécie de linguagem taquigrá-
fica, embora seja eficiente quando utilizada entre duas pessoas que
dominam seus códigos, dificulta a compreensão dos demais.
É verdade, também, que em alguns casos, os próprios cientistas se en-
carregam de complicar suas expressões além do necessário, contribuindo
para dar uma aparência hermética ao saber científico.
Voltaremos a discutir estas questões mais à frente, quando tratarmos
da linguagem da ciência. Por ora, parece-me suficiente dizer que, apesar da
linguagem científica e da própria atividade científica serem sofisticadas e de
difícil compreensão para a maioria da população − especialmente em países
de baixo nível educacional, como é o nosso caso −, essa sofisticação é muito
mais uma exigência, uma necessidade para facilitar o desenvolvimento de
conhecimentos, que uma finalidade em sí. Em outras palavras, a aparente
complexidade que cerca a ciência deve ser vista como um momento, uma
situação a ser superada, não como meta a ser atingida ou mantida.
De qualquer forma, de difícil compreensão ou não, é incorreto supor
que a ciência, em qualquer de seus ramos, possa ter a intenção de se man-
ter como pura teoria. Por que?
Em primeiro lugar, porque a própria separação entre teoria e prática é
apenas um recurso de raciocínio, uma forma artificial de subdividir um
mesmo fenômeno.
Tento explicar isto melhor.
Acreditar numa teoria separada da prática é a mesma coisa que acredi-
tar na existência de um “mundo das idéias” totalmente independente do
“mundo das coisas”. O “mundo das idéias” seria constituído pelos conheci-
mentos (nomes, informações), os pensamentos (novas elaborações), as lem-
branças (armazenadas na memória e referentes ao passado), as decisões
(baseadas em análises do presente) e as intenções (projetos para o futuro).
O “mundo das coisas” seria aquele formado pelo “concreto”, seja em forma
de objetos ou corpos (palpáveis, visíveis, acessíveis aos sentidos, enfim) ou
relacionados a eles (problemas do dia-a-dia, comportamentos etc.).
Muito bem. Tente então elaborar um pensamento ou mesmo evocar al-
guma lembrança que não se refiram, de forma alguma, a qualquer dos
componentes do “mundo das coisas” (não se esqueça de que pessoas tam-
bém são “coisas”). Conseguiu? Não, não é?

35 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

Como você vê, é muito difícil elaborar qualquer “idéia” sem que ela se
refira a algo “concreto”.
Faça agora o inverso. Tente, de alguma forma, se relacionar com al-
gum “objeto”, sem que nessa relação apareçam nomes, intenções, enfim,
nada de “teórico”. Suponhamos que você esticou a mão e simplesmente
tocou um objeto. Então tente enumerar quantos “conhecimentos” estão
contidos neste gesto. No mínimo duas denominações/classificações (uma
parte do seu corpo que é “teoricamente” separada do restante e denominada
mão; e um objeto que deve ter algum nome, o que o distingue dos outros
objetos e do seu corpo), duas descrições de ação (dadas pelos verbos “esti-
car” e “tocar”) e uma intenção (a de realizar a ação). Mesmo que você não
tenha feito isso, nem tenha tentado nada, este “fazer nada” também envol-
veu uma decisão, não?
Daí podemos supor que também não é possível realizar qualquer inter-
venção no “concreto”, sem que essa ação seja permeada, de alguma maneira,
por elementos teóricos.
Se você quiser complicar ainda mais este nosso jogo de separação entre
o “mundo das idéias” e o “mundo das coisas”, responda: em qual deles você
classificaria os seus desejos? Desejos são “concretos” ou “abstratos”? “Coisas”
ou “idéias”?
Minha intenção, ao deixar a ciência momentaneamente de lado e fazer
esta volta toda, não foi a de dizer que não é possível compreender a teoria
sem a prática ou vice-versa, mas a de demonstrar que elas não são mais do
que dois aspectos de um mesmo processo. Ora, se elas não podem existir
separadas, é errado se pensar numa ciência puramente teórica: “[...] se ela
experimenta, terá de raciocinar; se raciocina, terá de experimentar” (Bache-
lard, 1986, p. 11).
Talvez não tenha sido possível, numa abordagem tão apressada e super-
ficial, ter tornado claro para você esta questão da indissociabilidade entre a
teoria e a prática. Caso isto tenha ocorrido, ou caso você pretenda se apro-
fundar no assunto (que é importante e instigante) sugiro que procure ler os
textos de Duarte Jr. (l984), sobre a Realidade, de Pereira (l982) sobre a
Teoria e o de Berger e Luckmann (l985), sobre a Construção da Realidade.
Além de aprofundarem esta discussão de forma “descomplicada”, cada um
deles fornece, ao final, uma bibliografia aos que querem se dedicar ainda
mais ao assunto.

36 
O OLHAR NO ESPELHO 

Voltando à ciência, dissemos ali atrás que ela não pode ser teoria pura.
Mesmo que isto fosse possível, há razões para afirmar que ela não deve ser
desligada das questões práticas. Não se justificaria a existência de uma ciên-
cia desvinculada da preocupação com a solução de problemas, uma vez que
a atividade científica demanda uma considerável soma de esforços, tanto em
nível econômico quanto humano. Todo este esforço é sustentado, via de
regra, por contribuições coletivas, voluntárias ou não, e deve retornar, por-
tanto, a essa coletividade. Além disso, a considerável quantidade de conhe-
cimentos prévios que o cientista utiliza ao iniciar suas investigações é um
patrimônio da humanidade que o vem produzindo através da história; e não
faz sentido que todo esse patrimônio seja apropriado por um grupo de
pessoas que não se disponham a utilizá-lo em favor dessa mesma humani-
dade.
Fica portanto aqui um convite para que você, aprendiz de cientista, re-
flita sobre a responsabilidade social da ciência e, é claro, do cientista.
Por outro lado, é interessante, e inquietante, notar como, dentro dos
próprios meios acadêmicos, parecem se manter algumas posturas que, tal-
vez, estejam relacionadas a uma visão de ciência como atividade obscura.
São os casos, por exemplo, de um apego excessívo à sofisticação do discurso,
ou de certo desprezo pelas teorias, refletido em frases como “na prática a
teoria é outra” e nas ações correspondentes. Ora, se não é possível se tomar
contato com a realidade independente de formulações teóricas e vice-versa,
desprezar as teorias, provavelmente, seja uma forma de tentar camuflar um
fraco preparo teórico e uma compreensão insuficiente do que venha a ser a
ciência. Por outro lado, apoiar-se num discurso aparentemente complexo,
mas vazio de conteúdo, pode indicar um apego excessivo à teoria, sem base
na realidade.

CIÊNCIA COMO ATIVIDADE PURAMENTE


ACADÊMICA

Uma segunda impressão equivocada, e que é especialmente forte dentro


dos meios universitários é aquela segundo a qual a ciência é uma atividade
presa exclusivamente aos meios universitários. Essa impressão se confunde
com a anterior, já que implica também um profundo desprezo pelo valor da

37 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

teoria, mas vai mais além. Aqui o próprio acadêmico se identifica como um
futuro profissional de determinada área (das ciências), mas não como um
futuro cientista. Para ele, não só as teorias como as próprias noções do que
seja ciência, as discussões sobre o rigor da ciência, as noções de metodologia
e prática de pesquisa, todo o processo científico, enfim, serviriam apenas
para os que resolverem seguir a carreira acadêmica.
A ciência seria algo útil para os que fossem fazer cursos de pós-
graduação, escrever teses ou outros trabalhos, realizar pesquisas ou dar
aulas de metodologia. Para os “profissionais” seria dispensável. A eles basta-
ria o diploma (este, sim, muito importante), o conhecimento de algumas
técnicas, alguma experiência a ser adquirida no decorrer da própria atuação,
além, é claro, de sua capacidade pessoal.
Ao pretender ser um profissional em uma área de ciência, mas não
um cientista profissional, o acadêmico se transforma em técnico, mas
isto não significa que ele se vai identificar como tal. Ele pretende ser,
por exemplo, psicólogo, não técnico em psicologia, nem cientista.
Como isso é possível, não sei, mas verifique você mesmo como essa
postura é forte entre seus colegas, e não só enquanto acadêmicos. Esta
talvez seja a postura predominante entre profissionais da maioria das áreas
com as quais já mantive contato.
Essa situação é bastante piorada pelo fato de que, num país como o
nosso, que investe tão pouco em ciência, a maioria dos profissionais de
nível universitário que consegue manter-se dentro do seu campo de tra-
balho, é contratada para a execução de tarefas rotineiras e repetitivas,
para as quais as noções de ciência parecem mesmo pouco importantes.
Mesmo atuando como profissional liberal, situação em que, teoricamente,
teria mais liberdade de ação, as próprias exigências do mercado, baseadas
no mesmo modelo tecnicista que o cientista tem de sua profissão, contri-
buem para que ele assuma o papel de mero repetidor.
Infelizmente, parece que em alguns casos os próprios meios acadêmicos
contribuem para a manutenção deste jogo de equívocos. O resultado disto
tudo, além da desvalorização da ciência, é a desvalorização do próprio pro-
fissional.

38 
O OLHAR NO ESPELHO 

CIÊNCIA COMO ATIVIDADE QUE VISA


AO DOMÍNIO TOTAL DA NATUREZA

Segundo esta outra visão equivocada, o desenvolvimento científico per-


mitiria, dentro de algum tempo, que o homem assumisse total controle
sobre os fenômenos tanto físicos quanto sociais e humanos. A ciência seria,
então, o caminho através do qual se poderia não apenas resolver, mas elimi-
nar todos os problemas que envolvem a existência humana, incluíndo-se aí
os problemas causados pelo próprio homem.
Não podemos nos esquecer que todos os avanços conseguidos até hoje
no controle da natureza se fizeram a partir de elementos da própria nature-
za e através do homem, que também é parte dela. Assim, é impossível acre-
ditar que a ciência venha a adquirir total domínio sobre a natureza, a ponto
de se tornar independente dela. A ciência é uma atividade que se realiza a
partir da natureza.
Veja que, especialmente nos dois últimos séculos, o ser humano tem
promovido um uso indiscriminado de conhecimentos científicos cada vez
mais desenvolvidos, utilizando-se de forma predatória da natureza. Isto tem
resultado numa série de ameaças à própria sobrevivência da humanidade e
colocado as questões ecológicas como algo urgente.
Partindo de uma outra linha de análise, veremos que, nas ciências físicas
ou da natureza, o controle sobre alguns elementos pode trazer benefícios con-
sideráveis para a humanidade. Já nas ciências humanas, o controle sobre os
indivíduos é algo que deve ser pensado com extremo cuidado.
Não quero dizer que não seja possível se obter um alto grau de contro-
le sobre as ações individuais, nem que a ciência não contribua para isso. A
questão é se isso é desejável, se traz benefícios ou se elimina do homem
aquilo que justamente o torna humano − sua capacidade de individualizar-
se. Esta é, por exemplo, uma questão central na psicologia: a função do
psicólogo é a de levar o indivíduo a se enquadrar na sociedade; auxiliar o
indivíduo a se libertar da sociedade ou trabalhar junto ao indivíduo para a
modificação da sociedade?
A resposta é bem mais complexa do que a simples escolha de uma das
alternativas. Pense nas implicações de cada uma. Em qual delas você acredi-
ta que poderia estar contida uma visão de ciência como instrumento de
controle?

39 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

Até o final deste capítulo espero ter conseguido mostrar a você que es-
ta visão pode estar contida em quaisquer das três. Voltaremos a isto quando
falarmos das relações entre ciência e política.

CIÊNCIA COMO PORTADORA DE VERDADES


ABSOLUTAS

Antes disso, vamos ver outra impressão equivocada, a da ciência como


infalível, ou, no mínimo, como portadora da “verdade”.
Esta impressão se manifesta tanto no dia a dia, na crença cada vez mai-
or que as pessoas têm na ciência como palavra final na resolução dos seus
problemas, quanto no respeito exagerado dos alunos em relação aos cientis-
tas famosos, que são vistos como uma espécie de portadores autorizados da
ciência oficial, e que não podem, por isso, ser questionados por “simples
aprendizes”.
Para se acreditar que a ciência possa ser portadora da “verdade”, é ne-
cessário, antes, acreditar na existência de uma verdade absoluta. O problema
é que esta palavra “verdade” é extremamente enganosa. Aparentemente uma
coisa é verdadeira quando não há nenhuma possibilidade de se duvidar de
sua existência, nem como questionar qualquer de suas partes. Além disso, a
verdade seria algo tão forte que permaneceria inalterada através do tempo.
A idéia de verdade está, então, relacionada às idéias de perfeição e de eter-
nidade.
Descobrir a verdade seria atingir um estágio no qual o conhecimento
fosse completo e perfeito, não precisando mais sofrer qualquer modificação
ou acréscimo, e esta seria a função da ciência.
Este tipo de raciocínio tem uma série de desdobramentos. Vejamos al-
guns:
A) Um tipo de conhecimento que atingisse a “verdade” tal como a
descrevemos, só seria possível se vivêssemos num universo estático, livre
de mudanças. Parece que isto não existe. Cientistas que se dedicam a
estudar a natureza, como os físicos, os químicos e os astrônomos, por
exemplo, têm conseguido estabelecer leis que descrevem com alto grau
de precisão os fenômenos que eles estudam, e permitem traçar previsões
e estabelecer controles bastante satisfatórios sobre seus elementos. Um

40 
O OLHAR NO ESPELHO 

processo químico, por exemplo, executado sob determinadas condições,


tende a reproduzir o mesmo resultado tantas vezes quantas for executa-
do. Os elementos que compõem este processo obedecem a leis naturais,
independentes da vontade do cientista.
Ocorre, porém, que a cada novo avanço, a cada problema solucionado,
se descobrem elementos que representam novos problemas à espera de
solução. Além disso, a própria ciência cria elementos novos, abrindo novos
campos de investigações. Ainda estamos longe, por exemplo, do conheci-
mento total do mundo dos microrganismos, mas já conseguimos desenvol-
ver noções de engenharia genética suficientes para aumentar em muito o
número de espécies daquele mundo, que já era grande. A natureza, por sua
vez, se encarrega também de modificar as espécies, e de fazer com que a
idéia de um conhecimento total pareça cada vez mais remota.
Mesmo sofrendo transformações, os fenômenos naturais apresentam
uma tendência à constância e à repetição infinitamente maior que os fenô-
menos humanos ou sociais. Em primeiro lugar, porque as condições dentro
das quais ocorre um processo social são praticamente inumeráveis; e se é
difícil enumerá-las e descrevê-las, torna-se quase impossível determinar o
peso relativo de cada uma delas no processo, e mais ainda reproduzí-las, tal
como elas ocorreram da primeira vez. Em segundo lugar, porque o elemen-
to humano, principal componente dos fenômenos sociais, é diferente dos
elementos que compõem os processos físicos, na medida em que é dotado
de vontade própria. À partir disso já não podemos mais falar em leis para o
comportamento humano; no máximo podemos falar em tendências, ou seja,
podemos supor que alguns individuos agirão de determinadas formas, mas
não afirmar que todos o farão.
Temos ainda que considerar que o próprio cientista é também um ser
humano, que ao estudar seus semelhantes estuda a sí mesmo, de forma que
suas idéias a respeito tanto do homem quanto da sociedade podem estar, e
sempre estão, interferindo em seus estudos.
Se o “mundo” físico tende a mudanças, ainda que de forma discreta, no
“mundo” social a tendência a mudanças é uma constante. Assim, se mesmo nos
fenômenos físicos é inadequado se considerar a existência de uma verdade
absoluta e duradoura, que dizer dos fenômenos sociais, submetidos, ao menos
em parte, à vontade dos seus próprios componentes?

41 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

B) Se aceitamos, agora, a idéia de um universo em transformação, ve-


remos que uma ciência que pretenda ser uma forma de conhecimento sobre
este universo tem que ser capaz de se transformar; de ser, ela também, um
organismo dinâmico. Só assim ela poderá acompanhar as mudanças ocorri-
das em seus objetos de estudo e mais que isso, se tornar parte ativa nessas
mudanças. Desse ponto de vista, não há nada mais prejudicial à ciência que
a noção de verdade, entendida como algo inquestionável. O questionamento
não é apenas uma parte da ciência; ele é a própria atitude científica.
O que caracteriza a ciência, portanto, não é a certeza, mas a dúvida:
“[...] a ciência dá soluções apenas à medida que levanta sempre novos pro-
blemas” (Demo, 1980, p. 18).
Isto não significa que a ciência possa duvidar de tudo ao mesmo tempo.
Uma dúvida assim indiscriminada impediria qualquer progresso científico. O
trabalho dos cientistas consiste justamente em selecionar, entre as idéias
existentes, aquelas que pareçam ter maiores chances de descrever com exa-
tidão o fenômeno que se pretende estudar. Após isto, as idéias selecionadas
são tomadas como “verdades” provisórias, para que, a partir delas, se possa
tentar elaborar novas investigações. Essas investigações podem vir a confir-
mar o valor daquelas idéias, como podem revelar que elas são inadequadas.
Um conjunto de idéias, seja uma teoria, a preocupação com um tipo de
problema ou mesmo um conjunto de normas sobre como se deve realizar as
pesquisas, pode permanecer sendo considerado adequado por algum tempo,
e depois ser abandonado. Geralmente, isto ocorre quando os conhecimentos
desenvolvidos por estudos baseados nesse conjunto de idéias se revelam
inadequados para solucionar os problemas surgidos da realidade em trans-
formação. Neste caso, o que era considerado “verdade” provisória deixa de
sê-lo, sendo substituído.
Como você pode ver, o conceito de “verdade” aqui tem um significado
bastante diferente daquele que usamos inicialmente.
C) Partimos dos conceitos de “verdade” como algo perfeito e perene, de
realidade como algo estático e de ciência como uma atividade baseada em
certezas, até chegarmos às idéias de verdade provisória, realidade em trans-
formação e da dúvida como base da ciência.
Vamos agora voltar aos nossos conceitos iniciais para tentar discutir al-
gumas das razões que contribuem para que eles se mantenham presentes,
mesmo sendo, digamos, inapropriados.

42 
O OLHAR NO ESPELHO 

Num raciocínio superficial, pode parecer confortável viver num mundo


perfeito, estático, onde possamos ter previsões sobre os acontecimentos, e
onde as mudanças não sejam necessárias. Ao mudar, deixamos uma situação
que pode até não ser muito agradável, mas que é conhecida, e portanto,
mais ou menos previsível, e passamos a outra, ou outras situações novas
cujos elementos não nos são familiares e onde temos dificuldade em estabe-
lecer previsões seguras. A mudança implica sempre algum grau de descon-
forto, de incerteza e insegurança. Pelo menos foi assim que aprendemos a
acreditar. Nossa sociedade, por exemplo, prima por valorizar muito mais a
permanência e a estabilidade do que a transformação.
Ocorre, porém, que esta mesma sociedade está baseada na desigualdade
entre as pessoas.
Basta que você examine os indicadores nacionais de saúde, alimentação,
renda e educação, para perceber que a igualdade é um mito.
Não caberia aqui expor ou discutir o processo histórico através do qual
se implantou essa diferenciação. Para os fins deste texto, podemos simples-
mente tomar como verdade (provisória [?]) a afirmação de que, embora
fale-se muito sobre as igualdades de direitos e de oportunidades, as pessoas
têm direitos e oportunidades desiguais.
É claro que um conjunto de idéias filosóficas, científicas e políticas ou
religiosas que viesse pregar que a sociedade deveria permanecer tal como
está, já que dessa forma ela se aproximaria do ideal “universal” de perfeição,
seria muito bem-vindo como auxiliar na manutenção do poder dos “cidadãos
de primeira classe”, os beneficiados pelas desigualdades.
Mais ainda, se se conseguisse que os “outros”, os prejudicados pela
desigualdade, acreditassem também nessas idéias, a ponto de deixarem de
desejar e, se possível passassem a temer qualquer tipo de mudanças, aí,
sim, o poder estaria garantido por um tempo consideravelmente maior.
Como você pode ver, aquelas idéias sobre a existência da perfeição e da
verdade não são apenas equivocadas, elas são convenientes; não a toda a
sociedade, mas a uma parte dela.
Talvez isto explique porque este tipo de idéia se vem mantendo com
tanta força e por tanto tempo, já que, via de regra, o grupo que domina o
poder econômico e político tende a controlar também a produção e a divul-
gação das idéias. Isto não significa que este controle seja total, ou que não
existam idéias contrárias às do grupo dominante:

43 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

em qualquer sociedade onde existam relações que envolvam interesses


antagônicos, as idéias refletem essas diferenças. E, embora acabem por
predominar aquelas que representam os interesses do grupo dominante,
a possibilidade mesma de se produzir idéias que representam a
realidade do ponto de vista de outro grupo reflete a possibilidade de
transformação que está presente na própria sociedade. Portanto, é de se
esperar que, num dado momento, existam representações diferentes e
antagônicas do mundo (Andery et al., 1988, p. 15).

Os ideais de perfeição, portanto, têm uma função ideológica, ou seja,


atuam como uma forma de tentar fazer os interesses específicos de uma
parte da sociedade parecerem interesses “universais”, válidos e desejáveis
para a sociedade toda.
Você poderá se aprofundar mais no estudo das ideologias, lendo, por
exemplo, Chauí (1982) e Lowy (1989).

CIÊNCIA COMO ATIVIDADE POLITICAMENTE


NEUTRA OU
COMO SUBSTITUTA DA POLÍTICA

Ao mesmo tempo que tocamos no assunto das ideologias, passamos a


falar também das relações entre a ciência e a política, e aí deparamos com
mais duas impressões equivocadas, tão próximas uma da outra que podem
ser apresentadas e discutidas em conjunto: as noções de ciência como ativi-
dade politicamente neutra, e como substituta da política.
Antes de discutirmos essas noções e seus “equívocos”, temos que escla-
recer o que entendemos por política, já que essa palavra vem ganhando,
cada vez mais, um significado distante do original.

Os gregos davam o nome de polis à cidade, isto é, ao lugar onde as


pessoas viviam juntas. E Aristóteles diz que o homem é um animal
político, porque nenhum ser humano vive sozinho e todos precisam da
companhia de outros. A própria natureza dos seres humanos é que
exige que ninguém viva sozinho. Assim sendo, “política” se refere à vida
na polis, ou seja, à vida em comum, às regras de organização dessa vida,

44 
O OLHAR NO ESPELHO 

aos objetivos da comunidade e às decisões sobre todos esses pontos


(Dallari, 1983, p. 8).

Originalmente, portanto, política significava participação coletiva.


No seu sentido atual, política é uma atividade desenvolvida por uma “ca-
tegoria de profissionais” especializada − os políticos−, e consiste basicamente
em conquistar cargos (e poder) através do voto (ou de outras formas, quando
a primeira falha). O poder proveniente dos cargos conquistados autorizaria o
seu ocupante a tomar decisões capazes de influenciar ou até determinar a
vida das pessoas. Enquanto isso, o grosso da população “não se mete em
política” ou “não entende de política”.
Talvez, o significado popular da palavra não seja assim tão radicalizado,
mas no mínimo atribui à política duas características: a de ser uma ativida-
de desvinculada do dia-a-dia e de ser executada apenas por um grupo de
pessoas.
Comparando o conceito original com o atual de política, podemos per-
ceber que não houve apenas uma descaracterização da palavra, mas uma
alteração nas formas de participação. Essa transformação não se dá ao aca-
so; pelo contrário, ela é muito conveniente, já que o afastamento das pesso-
as da prática da cidadania favorece, mais uma vez, a concentração de
poderes.
Interessante é que, de uma forma ou de outra, sempre estamos fazendo
política. Quando não participamos, quando não questionamos, estamos
facilitando, com nossa omissão, a manutenção dessa concentração de poder.
O “não envolvimento” com política ou o “não entendimento” da política são
atos políticos, tanto quanto a participação. A diferença está em que, com a
participação, o indivíduo assume também o seu direito a opinar, a fazer
parte das tomadas de decisões que vão, direta ou indiretamente, influenciar
em sua própria vida. Quando omite-se, o cidadão está não apenas negando-
se a colaborar com a coletividade, como abdicando do seu direito de opinar,
já que este direito é transferido aos “tomadores oficiais de decisões”. Mas
isto não deixa de ser uma opção política.
Por isto, quando falarmos em política, neste texto, estaremos nos refe-
rindo a “[...] toda ação humana que produza algum efeito sobre a organiza-
ção, o funcionamento e os objetivos de uma sociedade” (Dallari, l983, p. 11).
A ciência é um conjunto de ações humanas capaz, sem dúvida, de influ-
enciar a estrutura social, e assim é também uma atividade política. Não há

45 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

sentido, portanto, em falar na ciência como uma atividade politicamente


neutra.
Isto não impede que um grande número de pessoas, inclusíve profissio-
nais da ciência, acredite que o conhecimento científico é, ou deva ser, algo
“puro”, não contaminado pelas questões sociais, nem sujeito a pressões por
parte dos grupos com interesses antagônicos existentes dentro da sociedade.
A partir dessa visão, a ciência deveria buscar conhecimentos que esti-
vessem acima das questões políticas, ou seja, que fossem independentes das
paixões humanas, dos interesses pessoais e mesmo das preocupações sociais.
Os métodos seriam procedimentos altamente formalizados e rigorosos, cuja
função principal seria a de filtrar qualquer participação subjetiva do pesqui-
sador, qualquer possibilidade de interferência de suas preferências, tendên-
cias ou opiniões, seus desejos ou temores, no processo de conquista do
conhecimento.
Veja que falei em conquista e não em desenvolvimento do conhecimen-
to. Por que isto?
Porque para essa visão “purista” o conhecimento seria apenas o resulta-
do do desvendamento de regras naturais, cuja existência seria anterior e
superior à existência do cientista e da própria ciência. Ou seja, a natureza
seria portadora de leis universais e imutáveis, e a tarefa da ciência seria a de
desvendar essas leis, não para modificá-las ou controlá-las, mas para viver
de acordo com elas. Assim, quanto mais uma sociedade conseguisse desven-
dar essas leis, ou seja, quanto maior fosse o seu avanço científico, mais
perto ela estaria de se organizar de acordo com a “verdade universal” (vol-
tamos ao conceito de verdade, não é mesmo?). Essas leis universais seriam
válidas tanto para os fenômenos físicos quanto para os sociais, tanto para
coordenar o movimento dos elétrons quanto para determinar o desenvolvi-
mento da sociedade (e da própria ciência) ou controlar as emoções huma-
nas.
À partir da conquista desse tipo de conhecimento, a ciência estaria ca-
pacitada a traçar os rumos “ideais” da sociedade e a ditar as normas “exce-
lentes” para a conduta individual. Nesse sentido, a ciência não seria apenas
uma atividade independente da política, mas estaria acima dela, seria sua
substituta.
Descrito dessa forma, pode parecer que este tipo de visão sobre a ciên-
cia e a organização social seja absurdo e que, portanto, tenha pouca chance

46 
O OLHAR NO ESPELHO 

de ser aceito e posto em prática. Pelo contrário, esta é a visão dominante


em nossa sociedade.
Ela está presente quando as pessoas consultam seu horóscopo. Embora
não goze do status de ciência, a astrologia prega que o movimento dos
astros mais próximos da Terra (força universal) é que determina tanto os
acontecimentos macro-sociais como as revoluções, o progresso de um país,
o resultado das eleições etc., quanto fenômenos tão particulares como as
características de personalidade de uma pessoa, o momento exato para que
ela troque de emprego ou suas chances de ser feliz num casamento.
A mesma visão está presente no número cada vez maior de especialistas
em áreas diferentes que o cidadão comum tem que consultar para se con-
duzir dentro da sociedade, e mais que isto, na forma como estes especialis-
tas dirigem as tomadas de decisões, que deveriam ser prerrogativas do
cidadão.
No momento em que aceita que o especialista tome decisões em seu lu-
gar, o indivíduo está, ao mesmo tempo: a) supondo que o especialista seja o
detentor de um conhecimento e que este conhecimento seja necessário para a
tomada daquela decisão; b) admitindo que ele próprio não detém esse conhe-
cimento e abrindo mão da possibilidade de vir a obtê-lo, ainda que parcial-
mente; c) supondo que todos os conhecimentos que possa ter adquirido
durante toda a vida não são necessários, ou são pouco importantes para aque-
la tomada de decisão, já que o especialista pode não dispor deles e isto não o
impede de decidir; d) abdicando do seu direito de participar de forma ativa do
encaminhamento de questões que vão influenciar sua vida e transferindo este
direito ao especialista, da mesma forma como já o vimos fazendo em relação
aos políticos; e) atribuindo à ciência, contida no conhecimento do especialista,
um valor de “verdade”, apta de alguma forma a se sobrepor aos seus desejos,
interesses e crenças, podendo, inclusíve, vir a anulá-los; f) acreditando que o
especialista, por ser portador daquela “verdade”, é capaz de sugerir, ou mesmo
impor uma alternativa de ação baseada apenas no conhecimento e isenta dos
desejos, interesses e crenças do próprio cientista.
Ao indicar uma alternativa correta, o cientista está realizando as mes-
mas operações, em sentido inverso.
Ocorre aí, portanto, um processo duplo de supervalorização do cientista
e do científico, e de desvalorização do indivíduo e da política.

47 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

A maioria dos indivíduos que consulta o horóscopo não é capaz de ex-


plicar porque a posição dos astros num determinado momento pode chegar
a interferir em sua vida, nem sabe de que maneira a astrologia desenvolveu
seus conhecimentos e realiza suas previsões. Isso não os impede de acreditar
no horóscopo.
De forma semelhante, ao assumir sozinho a tomada de decisões, o especia-
lista está contribuindo para que o leigo mantenha uma relação de pura crença
com a ciência. Se o leigo ignora tanto os elementos teóricos quanto os proce-
dimentos adotados pelo cientista para chegar a uma conclusão, não pode criti-
cá-los; assim, ou não crê na palavra do cientista e se vê obrigado a agir por
conta própria, ou crê e se submete a ela.
Veja que a relação baseada na crença (ou na descrença) é diferente da-
quela baseada no conhecimento. Quando disponho de conhecimentos, posso
participar, opinar, questionar. Quando não disponho, sou obrigado a acreditar
nas informações e ordens que recebo, e me torno dependente.
Não estou defendendo a idéia de que a pessoa deva tomar todas as suas
decisões sem consultar jamais os estudiosos do assunto; isto equivaleria a
negar qualquer valor aos especialistas, e portanto ao conhecimento científi-
co, e não é essa minha posição. Estou criticando a forma como, cada vez
mais, os especialistas se encarregam de tomar decisões sobre a vida das
pessoas sem consultá-las, ou sem dar a elas a possibilidade de participarem
na elaboração de suas decisões. Estou criticando também as pessoas por
concordarem com isso.

A tecnologia, deixada exclusivamente ao critério dos tecnólogos, bem


como a ciência não participada em suas intenções, por todos os
cidadãos, transfiguram-se ambas naquilo que Dubos chamou “a ditadura
dos peritos” (Régis de Morais, 1983, p. 16).

Penso que o papel do especialista deveria ser o de sintetizar o seu co-


nhecimento de forma clara para o leigo, para que este, de posse de novas
informações, pudesse tomar suas decisões a partir de uma nova reflexão.
Agindo desta forma, ambos estariam: a) reconhecendo que, num pro-
cesso de tomada de decisões, o conhecimento científico é algo útil, mas não
único; b) revalorizando as experiências e sentimentos de cada um; c) estabe-

48 
O OLHAR NO ESPELHO 

lecendo uma relação não hierárquica, já que cada um seria portador de


conhecimentos igualmente importantes, embora diferentes; d) repolitizando
o processo de tomada de decisões e conseqüentemente, repolitizando-se.
Ao nível da psicologia, este tipo de preocupação me parece aplicável na
relação do psicólogo junto ao trabalhador, ao cliente, ao estudante, ao mo-
rador da comunidade, ao ativista em sua associação, enfim, em qualquer
uma de suas possíveis áreas de aplicação.
Por falar nisso, páginas atrás apresentei três propostas diferentes de a-
tuação para a psicologia e pedi para que você descobrisse em qual delas
poderia estar contida uma visão de ciência como instrumento de controle,
lembra-se? Vamos voltar a isto, então.
Levar o indivíduo a se enquadrar na sociedade implica postular a socie-
dade como algo perfeito e inquestionável, e a partir deste postulado agir de
forma a proibir qualquer um de questionar as estruturas sociais. É uma
forma de controle.
Auxiliar o indivíduo a se libertar da sociedade é um falso objetivo, na me-
dida em que contraria a própria natureza social do ser humano. A rigor, uma
libertação desse tipo implicaria em que o indivíduo não só deixasse de viver na
sociedade, como que ele se despojasse de toda a sua herança cultural, incluindo,
por exemplo, a linguagem e os esquemas de pensamento. Via de regra, as teori-
as científicas ou não, que se apresentam como propostas de libertação individu-
al, só fazem substituir algumas regras sociais por outras, baseadas em
princípios culturais diferentes. Essa substituição, no entanto, aparece apenas
como negação das regras originais, criando assim uma falsa sensação de liberta-
ção. Essa sensação atua mascarando a implantação das novas regras e impedin-
do o seu questionamento. Continua havendo aí, portanto, uma forma de
controle.
Trabalhar junto ao indivíduo para a modificação da sociedade parece
ser uma boa proposta, mas isto depende da forma como ela for entendida e
principalmente, praticada. Se por trabalhar junto se entende uma forma de
atuação em que uma parte dos envolvidos toma as decisões enquanto a
outra as executa, não estaremos fazendo nada mais do que manter a mesma
estrutura de poder que se manifesta na visão de ciência como substituta da
política.
Em resumo, posturas equivocadas sobre a ciência, bem como sobre
qualquer outro assunto, não se manifestam apenas pelo uso de definições

49 
ALGUMAS IMPRESSÕES EQUIVOCADAS SOBRE...

errôneas ou pouco adequadas, nem podem ser evitadas pela simples adoção
de conceitos aparentemente mais corretos. O conjunto dos procedimentos,
verbais ou não, é que deve ser levado em conta para a avaliação da atuação
do pesquisador ou do cidadão, de forma geral.
Este me parece um princípio importante, que deve ser considerado no
decorrer de todo o seu trabalho científico: a avaliação permanente da coe-
rência entre suas intenções e seus atos, seu preparo e suas pretensões e das
razões que o levaram a decidir por uma ou outra entre as várias opções
existentes a cada passo de uma pesquisa.
Esta busca de coerência é uma das preocupações da ciência. Mas isto é
assunto para um próximo texto, onde a partir das discussões que realizamos
aqui tentaremos chegar a entender o que é a ciência e quais os seus requisi-
tos.

50 
APÍTULO 3

O QUE É CIÊNCIA?: A CIÊNCIA NO


DISCURSO DOS CIENTISTAS

[...] o consenso científico é puramente negativo: delimita-se o


que não é ciência; o que ela é será sempre matéria
controversa [...] (Demo, 1980, p. 24).

Ciência é discussão.
A frase acima não é uma boa definição de ciência; aliás nem mesmo é
uma definição, na medida em que não serve para distinguir o discurso cien-
tífico de outras formas de discurso nas quais a discussão se acha igualmente
presente, como é o caso, por exemplo, dos discursos políticos ou religiosos.
Ela serve apenas para indicar uma das características fundamentais da ciên-
cia.
Se a ciência pretende ser um conhecimento válido sobre a realidade, e se esta
realidade está em contínuo processo de transformação, não há nenhum sentido
em que se pretenda ter um corpo de conhecimentos estático e definitivo. Por esta
razão, uma das funções dos cientistas é a de discutir os critérios que permitem
estabelecer os limites e alcances da ciência, uma vez que estes itens podem sofrer
(e sofrem) alterações no decorrer da história.
Assim, se para outros tipos de conhecimento a discussão é uma possibi-
lidade, para a ciência ela é uma exigência.
O QUE É CIÊNCIA?

Diante disso, se eu optasse aqui pelo procedimento costumeiro, mais rápi-


do e fácil, de simplesmente apresentar algumas definições semelhantes, adota-
das por cientistas de renome sobre o que seja a ciência, isto poderia dar a falsa
impressão da existência de um consenso sobre o assunto.
Ora, se há consenso, não há porque haver discussão. Da mesma forma,
adotar uma definição única ou definições convergentes, implicaria abrir mão
daquele caráter dinâmico de ciência a que me referi.
Por outro lado, praticamente todos os autores considerados importantes
têm se manifestado, direta ou indiretamente, sobre as definições de ciência
adotadas por eles. Até porque, ao fazer ciência, cada um adota, inevitavel-
mente, uma definição sobre ela, original ou não.
Existe, portanto, um número muito grande de definições diferentes.
Apresentar um panorama sobre essas várias posições implicaria elabo-
rar listagem de nomes importantes, acompanhados de breves esboços de
suas idéias. Isto custaria um enorme esforço, além do risco de cair numa
listagem extremamente longa, enfadonha e inútil, já que as informações
sobre tantos autores seriam necessariamente superficiais.
Outra alternativa seria selecionar um número menor de autores e pro-
curar aprofundar as informações e as discussões sobre eles. Os riscos aí
seriam os de estender este texto para além de suas pretensões e das limita-
ções do seu autor.
Além disso, vários textos têm tratado exclusivamente do assunto, dentro des-
ta última perspectiva. São muito bons, e seria conveniente que você procurasse
ler, por exemplo, Andery et al. (1988), ou Lowy (1987 e 1989).
Preferi, então, optar por um outro tipo de procedimento: apresentar as
idéias centrais de uma das tendências predominantes na ciência de nosso
século por um lado, e por outro, agrupar, como uma tendência oposta,
algumas das críticas que a primeira vem recebendo, como forma de ilustrar
o tipo de discussão que está por trás de toda produção científica, e possibi-
litar que você pense sobre o assunto.
Na medida em que adotei critérios bem amplos para a classificação dos
autores ou de seus comentários em uma ou outra das tendências, convém
lembrar que o fato de alguns estarem classificados lado a lado não implica
que haja total identidade de postura entre eles, nem que, por estarem colo-
cados em lados diferentes, não haja pontos semelhantes em seus pensamen-

52 
O OLHAR NO ESPELHO 

tos. Uma classificação é sempre um agrupamento que se faz tomando como


base alguns critérios e desprezando-se outros.
Ao confrontar estas duas tendências não tomei nenhum cuidado em
permanecer neutro, e isso deve ficar claro para você no decorrer do texto.
Espero poder deixar claro, também, que embora haja a possibilidade de se
estabelecer pontos de contato entre as duas tendências, as divergências
entre elas são de tal ordem que não é mesmo possível estabelecer qualquer
espécie de neutralidade sobre o assunto.
É claro que estas tendências não são as únicas dentro da ciência, e nem
estão apresentadas em sua totalidade aqui; no entanto, como o debate entre
elas vem ocupando grande espaço nos meios científicos, penso que será útil
a você se inteirar sobre este debate, inicialmente, para se integrar nele de-
pois, nas partes mais práticas da pesquisa.

A VISÃO EMPIRICISTA DE CIÊNCIA


(A CIÊNCIA APESAR DO HOMEM)
O homem que classifica fatos, seja lá de que natureza for, que
vê sua relação mútua e descreve suas sequências está aplicando
o método científico e é um homem de ciência [...] Quando todo
fato [...] tiver sido examinado, classificado e coordenado com o
resto, então estará terminada a missão do cientista (Pearson
apud Mann, 1975, p. 23).

A frase acima, publicada originalmente em 1900, serve bem para dar


uma idéia das propostas contidas na corrente científica que estou chamando
de empiricista.
Hoje devem ser muito poucos os cientistas que ainda acreditam na pos-
sibilidade de que um dia se possa atingir o conhecimento pleno da realidade
e com isso dar por encerrada a tarefa da ciência, mas não são poucos os
que postulam que esta tarefa consiste exclusivamente na descrição, classifi-
cação e descoberta de relações entre os fatos − ou seja, entre acontecimen-
tos naturais, concretos e mensuráveis. Estes são os que estou denominando
como empiricistas.

53 
O QUE É CIÊNCIA?

Segundo Lowy, algumas das idéias básicas desta corrente de pensamen-


to podem ser encontradas ao longo da história, de forma esparsa, mas elas
se agregam organizadamente

[...] no século XVIII, no momento em que se desenvolve a filosofia das luzes


− o enciclopedismo − e a sua luta contra a ideologia dominante na época, a
ideologia clerical, feudal, absolutista (1989, p. 37).

Tentemos ver, brevemente, como se deu essa organização.


Até meados do século XVIII o conhecimento ocidental era dominado pelo
pensamento religioso, segundo o qual todos os acontecimentos provinham da
vontade divina e esta era a causa primeira e última de todas as coisas. À ciên-
cia restava, então, a tarefa de descobrir na natureza as manifestações da von-
tade divina, através da meditação e da contemplação. Politicamente, por sua
vez, o pensamento religioso servia para justificar os poderes da nobreza, sob a
alegação de que, se alguém chega a ter algum poder, tal fato representa a
vontade divina e esta não deve ser desrespeitada. O princípio da obediência
devida aos senhores feudais seria, então, apenas uma derivação da obediência
devida a Deus.
Para se conseguir eliminar os privilégios hereditários e crescentes dos no-
bres e monarcas, era necessário que se eliminasse, paralelamente, a base de
sustentação ideológica desse regime. É neste contexto que começam a ganhar
força as idéias de que o único conhecimento válido é aquele obtido quando
são eliminados os elementos idealistas (do mundo das idéias) e metafísicos
(além do mundo da coisas concretas), e utilizados exclusivamente os elemen-
tos empíricos (provenientes das experiências).
A formulação básica deste tipo de pensamento é a de que “o que é pos-
sível conhecer são exclusivamente os fenômenos e suas relações, não a sua
essência [...]” (Ribeiro Jr., 1982, p. 9).
Assim, eliminadas as crenças numa causalidade divina (que representaria a
essência dos acontecimentos), a ciência passaria a se dedicar a estudar as leis
naturais que regem os fatos e a participação política poderia se estender a
todos os cidadãos, já que todos seriam igualmente seres naturais.
Estas idéias sobre a negação dos conteúdos ideais e a valorização dos ele-
mentos naturais aparecem em praticamente todos os movimentos contra os
estados absolutistas da época, mostram-se altamente adequados como justifi-

54 
O OLHAR NO ESPELHO 

cativas para a expansão capitalista no século XIX e atravessam boa parte do


século XX como a principal postura orientadora do desenvolvimento das ciên-
cias, ainda associadas ao capitalismo.
A maior parte destas idéias provêm da corrente filosófico-científica denomi-
nada positivismo. No entanto, como o positivismo tem sofrido várias ramificações
(algumas das quais, inclusíve, não se reconhecem como positivistas) e como nem
só os pensadores positivistas partilham dessas idéias, optei por utilizar aqui o
termo empiricismo, pretendendo que ele englobe todas aquelas linhas de pensa-
mento que se propõem a trabalhar com base exclusivamente nos fatos. De outro
lado, optamos pelo uso de empiricismo ao invés de empirismo, já que este último
termo vem sendo usado para indicar o mero conjunto de experiências individuais,
não intencionais e nem coordenadas.

A OBJETIVIDADE DA CIÊNCIA

Ao contrário do idealismo reinante anteriormente, que exigia dos estu-


diosos um espírito contemplativo, uma grande capacidade de distanciamen-
to das coisas materiais como forma de atingir a verdade divina, o
empiricismo exige de quem pretende se dedicar aos estudos, um verdadeiro
espírito científico.

O espírito científico é, antes de mais nada, uma atitude ou disposição


subjetiva do pesquisador que busca soluções sérias, com métodos
adequados, para o problema que enfrenta. Essa atitude não é inata na
pessoa. É conquistada ao longo da vida, à custa de muitos esforços e
exercícios. Pode e deve ser aprendida, nunca, porém, transmitida [...]
(Cervo; Bervian, 1976, p. 28).

À primeira vista, pode parecer estranho que uma corrente científica


que se proponha a trabalhar exclusivamente com o universo dos fatos e
objetos, exija que seus adeptos possuam determinado “espírito”, ou uma
disposição subjetiva específica. Parece contraditório, não?
O que ocorre é que “espírito”, aqui, é entendido como atitude, ou seja,
como forma de conduta, não como entidade imaterial. De forma semelhante,
a disposição subjetiva não é entendida como vontade, desejo ou mera inten-
ção, mas como um elemento de coordenação de uma série de comporta-

55 
O QUE É CIÊNCIA?

mentos que visam, justamente, eliminar o papel da subjetividade nas con-


clusões do cientista.
“O espírito científico, na prática, se traduz por uma mente crítica, obje-
tiva e racional” (Cervo; Bervian, 1976, p. 28). Mas o que significam estes
três conceitos?

Criticar é julgar, distinguir, discernir, analisar para melhor poder avaliar os


elementos componentes da questão [...] O crítico só admite o que é
suscetível de prova [...] A objetividade é a condição básica da ciência. O
que vale não é o que algum cientista imagina ou pensa, mas aquilo que
realmente é [...] A objetividade torna o trabalho científico impessoal a
ponto de desaparecer, por completo, a pessoa do pesquisador [...]
Finalmente, o espírito científico age racionalmente. As únicas razões
explicativas de uma questão só podem ser intelectuais ou racionais. As
“razões” que a razão desconhece, as “razões” da arbitrariedade, do
sentimento e do coração nada explicam, nem justificam no campo da
ciência (Cervo; Bervian, 1976, p. 28-29).

Submeter um dado qualquer à prova significa medi-lo, compará-lo a ou-


tros medidos da mesma maneira ou fazer com que ele se reproduza inúmeras
vezes, sempre que se apresentarem condições semelhantes. Uma vez que não se
pode medir, comparar ou reproduzir a existência de algo subjetivo como um
sentimento, um sonho, uma crença ou um projeto para o futuro, só são susce-
tíveis de prova aqueles dados ou fatos que existam no mundo dos objetos. Da
mesma forma, o pensamento racional tem que se ater aos fatos, e deixar de
lado os sentimentos e vontades. Assim, os três conceitos podem ser resumidos
em um: a objetividade.
A busca da objetividade é o ponto central na definição da ciência para o
empiricismo:

a ciência é todo um conjunto de atitudes e atividades racionais, dirigidas


ao sistemático conhecimento com objetivo limitado, capaz de ser
submetido à verificação (Ferrari, 1974, p. 8).

Como você pode ver, os mesmos elementos básicos da descrição do es-


pírito científico estão presentes nesta definição: a racionalidade, o critério de
prova e a objetividade (esta contida nos outros dois).

56 
O OLHAR NO ESPELHO 

O CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Com base nesta busca da objetividade, há uma grande preocupação dos


autores empiricistas em determinar as características próprias do conhecimen-
to científico e em distinguí-lo das outras formas de conhecimento. Vários destes
autores se preocupam em elaborar, apresentar e discutir listagens do que eles
consideram que sejam as características típicas das afirmações científicas. Estas
listas normalmente são extensas, e embora nem sempre sejam coincidentes em
sua totalidade, de forma geral apontam para as mesmas características. Tentei
reunir algumas delas num único quadro, de forma a facilitar uma visão geral do
seu conteúdo (ver quadro 1).
A partir de características como essas, o conhecimento científico é então
comparado a outras formas de conhecimento. Essas comparações aparecem de
forma bastante semelhante em vários autores. Ferrari (1974), por exemplo, apre-
senta um quadro de características de quatro tipos de conhecimentos, que repro-
duzimos com ligeiras modificações (quadro 2). O mesmo quadro é apresentado
também por Lakatos e Marconi (1982, p. 20 e 1985, p. 77). Os comentários e
explicações que se seguem ao quadro, na obra original, também aparecem, embo-
ra de forma diferente, nas outras duas obras citadas, e ainda em Cervo e Bervian
(1976, p. 15 e seguintes) e em Barros e Lehfeld (1986, p. 48 e seguintes).
Nesses comentários, o conhecimento científico aparece não só como di-
ferente dos demais tipos de conhecimentos, mas como, de certa forma,
superior a eles. Esta superioridade não é claramente declarada, mas fica
subentendida. Basta dizer, por exemplo, que embora os conhecimentos
filosófico e teológico (religioso) apareçam no quadro 2 tendo como caracte-
rísticas a infalibilidade e a exatidão, isto não significa que eles sejam, de
fato, infalíveis e exatos, mas que eles se apresentam como sendo, já que não
podem ser submetidos a provas de qualquer espécie. Já que a filosofia se
baseia apenas no raciocínio e a religião na inspiração, não há como subme-
ter suas afirmações a provas; portanto, não há como demonstrar suas falhas,
pelo critério científico.
Já para outros autores empiricistas, esta pretensa superioridade da ciên-
cia não existe, pois “existem muitas maneiras legítimas de tentar conhecer e
compreender o mundo. A maneira científica é apenas uma entre várias”
(Marx; Hillix, 1974, p. 20).

57 
O QUE É CIÊNCIA?

Quadro 1. Características do conhecimento científico, de acordo com alguns autores.


O conhecimento Autores (*)

científico é 1 2 3 4 5 6
aberto ................................................................... X (**)

acumulativo ........................................................ X
analítico ............................................................... X X
certo e/ou previsível ........................................ X X X
claro e preciso ................................................... X
comunicável ........................................................ X X
constante ............................................................. X
crítico ................................................................... X
demonstrável ...................................................... X X
desinteressado ................................................... X
exato ...................................................................... X
experimental ....................................................... X
explicativo ........................................................... X
factual ................................................................... X X
falível ..................................................................... X X X
geral ...................................................................... X X X
metódico .............................................................. X X X X
objetivo ................................................................ X X X X
preditivo .............................................................. X
racional ................................................................ X X X X
real ......................................................................... X X
transcendente aos fatos ................................. X
sistemático .......................................................... X X X X X
universal .............................................................. X
útil ......................................................................... X
verificável ............................................................ X X X X X
(*) 1 Bunge apud Lakatos e Marconi, 1982:29 (referindo-se às ciências fatuais)
2 Ander-Egg, citado em Lakatos e Marconi, 1982:22
3- Barros e Lehfeld, 1986:60 e 63
4- Gil, 1987, p. 21
5- Cervo e Bervian, 1976, p. 17
6- Ferrari, 1974, p. ll
(**) O espaço sombreado indica que a característica é citada pelo autor

Quadro 2. Características de quatro tipos de conhecimento.

58 
O   O LOH  A R NO ESPELHO 
Q U E   É   C I Ê N C I A ?

O OLHAR NO ESPELHO 
CONHECIMENTOS
Quadro 1. Características do conhecimento científico, de acordo com alguns autores.
O conhecimento Científico
Popular CONHECIMENTOS Filosófico Autores Teológico(*)

científico
Valorativo é Real(factual) 1 2
Valorativo 3 4Valorativo
5 6
Popular Científico Filosófico Teológico
aberto ...................................................................
Reflexivo Contingente X Racional
(**)

Inspiracional
Valorativo
acumulativo Real(factual)
........................................................ X Valorativo Valorativo
Assistemático Sistemático Sistemático Sistemático
Reflexivo Contingente
analítico ............................................................... X Racional X Inspiracional
Verificável Verificável Não verificável Não verificável
Assistemático
certo e/ou previsível Sistemático
........................................ Sistemático
X X Sistemático
X
Falível Falível Infalível Infalível
Verificável
claro Verificável
e preciso ................................................... X Não verificável Não verificável
Inexato Aproximadamente exato Exato Exato
Falível
comunicável Falível
........................................................ X Infalível X Infalível
constante
Fonte:
Inexato .............................................................
Ferrari, 1974, p. 11.
Aproximadamente exato Exato Exato X
crítico ................................................................... X
Fonte: Ferrari, 1974, p. 11.
Para estes
demonstrável autores, inclusíve, nenhuma das várias características Xda ciência,
...................................................... X
isoladamente, serve para distinguí-la de forma definitiva de outrosX tipos de
desinteressado ...................................................
Para estes autores, inclusíve, nenhuma das várias características
exato ...................................................................... X
da ciência,
conhecimento. Após analisarem algumas delas, eles concluem que
isoladamente, serve para distinguí-la de forma definitiva
experimental ....................................................... X de outros tipos de
conhecimento. Após analisarem algumas
explicativo ...........................................................
embora nenhuma das características delas,
X que examinamosque
eles concluem até aqui distinga,
factual ...................................................................
necessariamente, a ciência da não X ciência, a noçãoX de que o fazem não
embora
ocorre por nenhuma
mero acaso; das características
falível .....................................................................
de um modo X que examinamos
geral, X até aquidescrevem
essas características distinga,
X
necessariamente,
a ciência, se bem que não a distingam. a ciência
geral ...................................................................... da não
X ciência, a noção de
A ciência esforça-se
X que o
por fazem não
X conseguir
ocorre por mero
rigor terminológico, capacidade de acaso;
metódico .............................................................. de um modo geral,
X previsão essas características
X e controle,
X descrevem
mais quantificação,
X
amelhor
ciência,teoria se bem e uma queexplicação
não a distingam.
objetivo ................................................................ objetiva
X
Adociência
mundo.
X
esforça-se
Contudo,
X
por conseguir
Xacreditamos
rigor terminológico,
que a distinção essencial mais adequada capacidade de previsão e controle, mais quantificação,
entre ciência e não ciência é uma
preditivo .............................................................. X
melhor
das teoria e umadaexplicação
características metodologia objetiva do mundo.
científica. Contudo, acreditamos
racional ................................................................ X X XÉ essa Xcaracterística − o
que a distinção essencial
princípio de controle − a que está mais próxima, mais adequada entre ciência e não ciência
entre é uma
real ......................................................................... X todosX os
das características
empreendimentos da metodologia
humanos, de pertencer científica. É essa característica
exclusivamente à ciência (Marx; − o
transcendente aos fatos ................................. X
princípio de controle − a que está mais próxima, entre todos os
sistemático Hillix, 1974, p. 23).
.......................................................... X X X X X
empreendimentos humanos, de pertencer exclusivamente à ciência (Marx;
universal .............................................................. X
Hillix, 1974, p. 23).
Assim, as características citadas atéX aqui não seriam exclusívas da ciên-
útil .........................................................................
cia, nem parte
verificável automática do conhecimento
............................................................ X científico.
X X Seriam, X antes de mais X
Assim, as características citadas até aqui não seriam exclusívas da ciên-
nada,1 qualidades
(*) a serem alcançadas visando à conquista da meta maior − a
cia, nem parte automática do conhecimento científico. Seriam, antes de mais
Bunge apud Lakatos e Marconi, 1982:29 (referindo-se às ciências fatuais)
objetividade.
nada,23-qualidades
Ander-Egg, citado em Lakatos e Marconi, 1982:22
a serem alcançadas visando à conquista da meta maior − a
No entanto, outras
Barros e Lehfeld, atividades
1986:60 e 63 humanas, tais como as investigações poli-
objetividade.
4- Gil, 1987, p. 21
ciais ou aCervo
imprensa noticiosa também podem buscar a objetividade. A dife-
No
5- entanto, outras
e Bervian, 1976,atividades
p. 17 humanas, tais como as investigações poli-
renciação se daria,
6- Ferrari, 1974, p.fundamentalmente,
ll pelo rigor metodológico próprio da
ciais
(**) O espaço sombreado indica que a característicapodem
ou a imprensa noticiosa também buscar a objetividade. A dife-
ciência. Assim, pode-se dizer que a ciência é um
é citada pelo autor
renciação se daria, fundamentalmente, pelo rigor metodológico próprio da
Quadro 2.Assim,
ciência. Características
pode-se de quatro
dizer quetipos de conhecimento.
a ciência é um

59 
58 
59 
O QUE É CIÊNCIA?

[...] conjunto de conhecimentos que se dá através da utilização


adequada de métodos rigorosos, capazes de controlar os fenômenos e
fatos estudados (Barros; Lehfeld, 1986, p. 60)

ou até mesmo que ela “[...] é um método de abordagem do mundo empírico


todo, isto é, do mundo que é suscetível de ser experimentado pelo homem”
(Goode; Hatt, 1977, p. 11).

O MÉTODO CIENTÍFICO

O método científico, dentro do empiricismo, é um conjunto de proce-


dimentos, cada vez mais elaborado e rigoroso, que visa garantir que os
conhecimentos obtidos possuam as necessárias condições de neutralidade,
precisão e verificabiliade que lhes garantam a objetividade.

O método científico é aqui definido como o método para descrever e


explicar fenômenos que incorpora os princípios da verificação empírica,
definição operacional, observação controlada, generalização estatística e
confirmação empírica (Anderson, 1977, p. 6).

Podemos tentar entender estes cinco princípios a partir da descrição


dos dois procedimentos básicos da ciência empiricista. Vimos que esta se
propõe a trabalhar apenas com os dados naturais, acessíveis aos órgãos dos
sentidos, visando descrevê-los e explicá-los. Para isso desenvolveu e aperfei-
çoou os processos de observação e experimentos, que veremos a seguir.

A OBSERVAÇÃO
Observar, todos nós observamos. A cada momento estamos atentos a
um número praticamente infinito de estímulos, e colocamos nesta atividade
os nossos órgãos sensoriais todos. No entanto, da imensa gama de informa-
ções que recebemos, apenas uma pequena parcela nos interesssa, e mesmo
assim este interesse é momentâneo. Uma vez atingido nosso objetivo imedi-
ato, nossa atenção se volta para outros dados, e aqueles iniciais são nor-
malmente esquecidos. Via de regra, apenas conseguimos nos recordar de
uma parcela ínfima dos estímulos com os quais entramos em contato, e

60 
O OLHAR NO ESPELHO 

mesmo assim, por prazos relativamente curtos. A imensa maioria do que


observamos se perde.
Este processo todo é chamado, dentro da metodologia, de observação
assistemática. Esta pode ser descrita, em termos gerais, como sendo não
planejada, não intencional e pouco registrada, embora eventualmente possa
ter uma ou outra destas características invertidas.
Para as nossas atividades cotidianas, esta forma de captar informações
normalmente é satisfatória. Dentro da ciência, a observação assistemática pode
até chegar a sugerir idéias interesssantes, mas seu uso é extremamente impro-
dutivo quando se pretende descrever com exatidão um objeto ou acontecimen-
to. Para esses casos, o empiricismo procurou aperfeiçoar alguns princípios para
a realização de observações sistemáticas.
O primeiro destes princípios é o de que a observação deve ser inten-
cional e relacionada a um objetivo previamente determinado de pesquisa.
É a existência de um problema a ser pesquisado que vai permitir, entre
outras coisas, decidir se a observação é ou não o procedimento mais ade-
quado, especificar todas as fases seguintes do processo de investigação e
avaliar as decisões tomadas para isto. A definição clara do objetivo a ser
atingido é, portanto, um requisito prévio para a observação sistemática.
O princípio seguinte é o do planejamento. Tendo como base os objeti-
vos da pesquisa, é necessário que se defina claramente o que vai ser obser-
vado, de que modo vai ser realizada a observação, onde e quando isto vai se
dar, quem vai efetuar a observação etc.
Isto pode ser mais difícil do que parece à primeira vista. Apenas como
exemplo, não é suficiente você dizer que vai observar pessoas, se não especi-
ficar, entre outras coisas, quais pessoas vão ser observadas, o quê dessas
pessoas se quer observar, como é possível se efetuar isto, onde isto vai ser
feito etc.
Pode parecer ingênuo lembrar isto, mas é preciso igualmente verificar
se o que você quer observar é observável.
Definido com exatidão o que vai ser observado, deve-se atentar para
um outro princípio: o do controle. Todo empenho deve ser colocado aqui
para a superação de dois processos psicofisiológicos e seus problemas: a
sensação, por suas limitações, e a percepção, por sua falta de limites.
Na realidade, a senso-percepção ocorre como um fenômeno único, e
não como dois processos distintos. No entanto, é conveniente diferenciá-los

61 
O QUE É CIÊNCIA?

para compreendê-los melhor, como normalmente fazem os livros de psico-


logia geral.
A sensação é o processo puramente fisiológico de captação e transmis-
são dos estímulos pelos órgãos dos sentidos. É a forma pela qual o organis-
mo recebe as informações do mundo exterior ou de seu próprio interior. O
problema da utilização deste processo para a realização de observações
sistemáticas está em que os órgãos sensoriais humanos têm capacidade
bastante limitada: a diferença entre nossos limiares absolutos é muito estrei-
ta e nossa capacidade discriminativa é muito grosseira. Em outras palavras,
além de não conseguirmos captar estímulos de intensidades muito pequenas
(objetos microscópicos, raios infravermelhos) nem muito grandes (ultrasons,
raios ultravioletas), ainda temos sérias dificuldades em distinguir, com pre-
cisão, estímulos semelhantes (cores, sons, ângulos, velocidades etc.).
Estas limitações se agravam com o fato de que o ser humano não se li-
mita a captar estímulos brutos; ele os percebe. A percepção é o processo
através do qual os estímulos captados são selecionados, agrupados, reorga-
nizados, avaliados e dotados de significado. Neste processo intervêm não só
as grandezas físicas dos estímulos e as capacidades fisiológicas do organis-
mo, como, também, e principalmente, as estruturas psicológicas do indiví-
duo percebedor, decorrentes de seu passado, do seu estado atual e,
possivelmente, influenciadas por suas expectativas para o futuro. Assim, se a
capacidade sensorial humana é muito limitada, sua capacidade de elaborar
percepções é ampla demais para a realização de observações objetivas.
Para superar estas duas limitações, é recomendável a utilização,
sempre que possível, de instrumentos de medição e controle dos fenô-
menos que se quer observar. Mesmo em se tratando da observação de
pessoas, há um número muito grande de aparelhos capazes de realizar
medições sobre os mais variados aspectos das ações humanas.
De nada adiantará, contudo, obter uma grande precisão na observação
dos dados, se não se dispuser de um sistema igualmente preciso de registro
destas observações. Temos aí o último princípio: o de registro sistemático
dos dados.
Frases do tipo “houve algumas mudanças, mas foram pequenas” ou “a
velocidade aumentou bastante” são imprecisas demais para serem aceitas,
além de representarem muito mais uma avaliação do que uma descrição dos

62 
O OLHAR NO ESPELHO 

fatos observados. A linguagem matemática, via de regra, é a mais recomen-


dada, já que permite um grau de exatidão muito maior, compatível com a
precisão dos aparelhos.
A adoção de uma linguagem matemática, por sua vez, exige que, desde a
fase de planejamento da observação, todos os termos utilizados sejam defini-
dos operacionalmente, ou seja, descritos em termos das operações que serão
realizadas para sua medição, e das grandezas matemáticas que servirão para
classificá-los em diferentes grupos. Exemplificando: se pretendo observar pes-
soas altas, tenho que estabelecer um limite claro para o que estou chamando
de pessoas altas; isto pode ser feito submetendo-se uma série de pessoas à
mesma operação (medir sua altura em uma escala métrica) e classificando
como altas apenas as que estiverem acima de determinada grandeza naquela
escala (digamos, um metro e noventa centímetros).
Critérios semelhantes podem ser adotados para definir operacionalmente
termos tão diferentes como, por exemplo, inteligência, hiperatividade, honesti-
dade, interesse etc. A importância das definições operacionais é que elas possi-
bilitam a objetividade e a uniformização de critérios, e estas são as idéias
básicas de todos os princípios da observação.
Estes princípios podem ser resumidos da seguinte maneira:

[...] a) por que observar (referindo-se ao planejamento e registro da


observação)?; b) para que observar (objetivos da observação, definidos
pelo interesse da pesquisa)?; c) como observar (instrumentos que utiliza
para a observação)?; d) o que observar (o campo da observação [...])?;
e) quem observa [...]? (Rudio, 1981, p. 36).

No entanto, é conveniente que, sem deixar de lado estas questões, se


chegue a um detalhamento um pouco maior, como, por exemplo:

a) que comportamento deve-se escolher e registrar, a fim de obter a


informação necessária? b) Em que condições devem-se fazer as
observações? Como estruturar a situação de observação? c) Como se
evidencia a observação de algum processo com unidade funcional? d)
Houve esforço no sentido de sintetizar a observação em termos
quantitativos? Pode-se atribuir-lhe uma contagem e, em caso afirmativo,
quais suas características métricas? e) Qual a natureza e significação do
processo assim observado ou inferido? Como se pode qualificá-lo? Qual
sua validade? (Peak, 1974, p. 241).

63 
O QUE É CIÊNCIA?

Como você pode ver, todos esses cuidados são tomados para que o fato
observado esteja o mais próximo possível do fato ocorrido, ou, em outras
palavras, para que a observação tenha o maior grau de independência possí-
vel do observador. Em princípio, um processo de observação deve ser reali-
zado e registrado de tal forma que um outro pesquisador possa, nas
mesmas condições, obter resultados semelhantes ou, no mínimo, compará-
veis.
A adoção desses princípios tem possibilitado a utilização da observação
sistemática como um eficiente meio para a descrição dos fenômenos. No
entanto, aí mesmo reside a sua limitação: a observação serve para descrever
fatos, mas não para explicá-los; ela nos permite saber como as coisas são,
mas não porque elas ocorrem desta forma.

O EXPERIMENTO

Convém lembrar que o empiricismo prefere deixar de lado a busca das


causas dos fenômenos, já que isto implicaria o risco de se cair em procedi-
mentos metafísicos, e por esta razão, suas tentativas de explicação se diri-
gem muito mais para a descoberta de relações entre as partes componentes
de um mesmo fato.
Para o empiricismo, explicar é estabelecer relações.
Vamos procurar explicar isto melhor.
“Uma relação existe quando diferentes valores de uma variável B são
observados para diferentes valores de uma variável A” (Anderson, 1977, p.
15). Chamamos de variável qualquer parte componente de um processo,
sujeita a alterações. Ao realizarmos uma observação de um organismo em
ação, estaremos observando um organismo interagindo com um número
muito grande de variáveis, todas elas tendo, potencialmente, a possibilidade
de atuar sobre a variável que nos interessa mais diretamente, ou seja, a
ação do organismo. Como saber, com segurança, qual delas é a responsá-
vel, então, por uma alteração qualquer nessa ação?
Deixando um pouco de lado os organismos, vamos tentar ilustrar isto
através de um processo semelhante a um experimento. Digamos que deter-
minada loja de confecções resolveu implantar um novo sistema de anúncios
promocionais internos, substituindo os tradicionais cartazes desenhados por
letreiros eletrônicos, como forma de tentar aumentar as vendas. Digamos

64 
O OLHAR NO ESPELHO 

ainda que, um mês após implantados os anúncios eletrônicos, verifica-se que


as vendas aumentaram em 40%, comparadas ao mês anterior. Pode-se afir-
mar, então, que a adoção daquele tipo de anúncio produziu este aumento?
De forma alguma. Este tipo de afirmação só poderá ser feito se tiverem
sido eliminadas todas as outras variáveis que poderiam ter interferido na
mudança das vendas, não é mesmo? Se os anúncios novos tiverem sido
colocados em fins de novembro, por exemplo, a variação pode ter sido cau-
sada pelo fato de que novembro, tradicionalmente, é um mês fraco para
vendas de confecções, enquanto em dezembro se dá o contrário, em função
das festas de fim de ano. Outras variáveis, tais como mudanças de tempera-
tura, alterações nas relações econômicas regionais, ciclos de festividades,
hábitos culturais ou mesmo a política de preços da loja, a qualidade e o
grau de novidade dos seus artigos podem igualmente ter interferido no
processo.
Portanto, a realização de uma observação, mesmo que sistemática, so-
bre a alteração numa variável, não nos possibilita afirmar as razões pelas
quais essa alteração se deu.

[...] Para que uma observação se constitua num teste adequado da


afirmação de que uma mudança em A causa uma mudança em B, a
variável B precisa ser observada quando diferentes valores da variável A
ocorrerem e quando todas as outras variáveis puderem ser descartadas
como possíveis causas de quaisquer mudanças observadas em B
(Anderson, 1977, p. 33).

Para isto, o procedimento metodológico adequado é o chamado experimen-


to. A realização de um experimento supõe a obediência a todos aqueles princí-
pios básicos da observação (intencionalidade e relação com um objetivo
determinado de pesquisa, planejamento, controle das medições e registro siste-
mático dos dados), além de outros três: a eliminação dos efeitos das variáveis
indesejáveis, manipulação da veriável independente e a realização de observa-
ções sucessivas. Vamos explicar isto também.
Se estou interessado em verificar até que ponto uma alteração em A (o
sistema de cartazes em uma loja, por exemplo) provoca uma alteração em B
(o volume de vendas), estou supondo que B depende de A; por esta razão,
chamamos B de nossa variável dependente e, por extensão, A de variável inde-
pendente. Apesar destes nomes, a variável que nos interessa mais diretamente

65 
O QUE É CIÊNCIA?

é a dependente (no caso do exemplo, as vendas). Alterar a variável indepen-


dente é um recurso de que nos utilizamos para tentar conhecer melhor a
variável dependente e suas relações.
Para isto, o procedimento a ser adotado é o seguinte:

[...] (a) monta-se um conjunto de condições e mede-se a variável B sob


essas condições, e então (b) reproduz-se o mesmo conjunto de condições
com apenas uma diferença, uma mudança na variável A, medindo-se B sob
essas novas condições” (Anderson, 1977, p. 33-34).

Fazendo isto, você terá eliminado os possíveis efeitos de todas as outras


variáveis, já que, através do controle, todas elas permaneceram inalteradas.
Qualquer alteração ocorrida em B na segunda medição, conseqüentemente,
deve estar relacionada à alteração ocorrida em A.
Em seguida, o mesmo procedimento deve ser reproduzido sucessivas
vezes, a fim de que se possa verificar se a relação AxB é constante, qual a
sua freqüência etc.
Deve-se também realizar o mesmo procedimento com diferentes valores de
A, para que se possa medir a extensão de seus efeitos sobre B.
A partir daí, através da aplicação de métodos estatísticos, pode-se tentar
prever até que ponto essas relações observadas sob condições controladas
podem ou devem ocorrer também em situações naturais, sem controle das
variáveis. Estas previsões precisam, posteriormente, ser avaliadas através de
novas observações sistemáticas da realidade, que poderão demonstrar, inclu-
síve, que todas as conclusões a que se chegou no decorrer do processo não
são válidas, ou seja, não servem como base para a explicação e a previsão
dos fenômenos. Neste caso, resta rever todo o processo, já que deve ter
havido falha quer na teorização, quer no planejamento e execução dos expe-
rimentos.
Pode ser também que a realidade venha a confirmar as conclusões ob-
tidas no estudo e, neste caso, elas permanecem como válidas até que ve-
nham a ser aperfeiçoadas ou que se descubram limitações para elas.
Como se vê, o caminho da ciência, além de rigoroso, é árduo.
Espero ter conseguido, agora, tornar claros aqueles três princípios pró-
prios do experimento, citados ali atrás: a eliminação dos efeitos das variáveis
indesejáveis, realizada quando se mantêm inalterada a situação experimental;

66 
O OLHAR NO ESPELHO 

a manipulação da variável independente (as alterações produzidas em A) e a


realização das observações sucessivas.
O procedimento experimental pode ter formas mais complexas, quando o
número de possíveis variáveis independentes for maior e as relações entre elas
mais complexas, mas os princípios permanecem praticamente inalterados, vari-
ando apenas a sofisticação dos procedimentos.
Acima de tudo, permanece inalterada a idéia básica de toda a metodo-
logia empiricista: tentar eliminar ou no mínimo diminuir o mais completa-
mente possível a influência das opiniões do cientista sobre as suas
conclusões. A verdade deve advir dos fatos.

É frente à experimentação que se podem situar os métodos de uma


psicologia científica, de uma psicologia “pública”, baseados em fatos
estabelecidos objetivamente, isto é, de maneira a poderem ser
verificados por todo e qualquer observador habilitado a manejar as
técnicas que serviram para os estabelecer (Reuchlin, 197l, p. l0).

O RACIOCÍNIO EMPIRICISTA

Dentro do modo de pensar do empiricismo, os fatos ocorrem regidos


por leis naturais. Ao observar fatos isolados, o cientista está apenas tentan-
do descobrir os princípios que os regem, para, através da soma desses prin-
cípios, chegar a conhecer aquelas leis.

A investigação científica não é sobre acontecimentos particulares. Pelo


contrário, em qualquer tipo de pesquisa, o investigador seleciona, entre
os acontecimentos particulares, apenas certos aspectos que são tratados
como exemplos característicos de acontecimentos mais genéricos e
repetíveis [...] Por outras palavras, a investigação psicológica é sobre
algo que pode ser repetidamente observado − um conceito e uma
relação entre conceitos. O acontecimento particular [...] jamais poderá
ser testemunhado de novo. Mas na suposição de que está lidando com
uma “lei da natureza”, o psicólogo espera que o acontecimento seja
repetível (Hyman, 1973, p. 13).

O que Reuchlin e Hyman afirmam para a psicologia e os psicólogos


é válido também para todas as outras áreas das ciências: para o empiri-

67 
O QUE É CIÊNCIA?

cismo, os objetos dos estudos científicos só podem ser fenômenos natu-


rais, tendentes à repetição e acessíveis aos procedimentos experimen-
tais.
Há aí um processo de dependência mútua entre o objeto e o método.
Se foi o interesse pelos fenômenos naturais que ocasionou o desenvolvimen-
to do método experimental, a adoção deste estabelece, por sua vez, limita-
ções às questões que podem vir a ser investigadas:

a fim de que possam ser respondidas através da pesquisa, as perguntas


precisam ter uma característica comum; devem ser de tal ordem que a
observação ou a experimentação no mundo natural (onde se inclui, no
caso das ciências sociais, o comportamento dos seres humanos) possam
dar a informação necessária (Selltiz et al., 1974, p. 6).

Alguns tipos de objetos se enquadram muito melhor a estas exigências


do que outros. Os fenômenos químicos e físicos, por exemplo, tendem mui-
to mais à repetição e são muito mais facilmente sujeitos a operações de
isolamento, mensuração e manipulação do que os fenômenos biológicos ou
humano-sociais. Não é de estranhar, portanto, que as ciências ditas exatas
tenham apresentado desenvolvimento consideravelmente maior, mais diver-
sificado e precoce que as áreas ligadas ao estudo dos processos psicológicos
ou sociais.
A física, graças à forma rigorosa como tem conseguido aplicar os prin-
cípios do empiricismo aos seus estudos e aos progressos que vem conquis-
tando, tem sido considerada como o modelo a ser seguido pelas demais
ciências, incluindo-se aí as ciências humanas.
Contudo, cientistas desta última área (psicólogos, sociológos, antropólo-
gos e outros) têm encontrado dificuldades em adequar seus objetos de
estudo ao modelo da física. Isto tem provocado discussões sobre se haveria
ou não a possibilidade de estudar os processos humanos através do método
experimental.
Segundo Goode e Hatt,

os principais pontos discutidos podem ser agrupados em quatro


proposições dogmáticas: 1. O comportamento humano se modifica tanto
de um período para outro que não permite previsões científicas exatas.
2. O comportamento humano é muito enganoso, sutil e complexo para

68 
O OLHAR NO ESPELHO 

permitir o uso das caracterizações rígidas e dos instrumentos artificiais


da ciência. 3. O comportamento humano pode ser estudado somente
por outros observadores humanos, e estes sempre distorcem
fundamentalmente os fatos sob observação, e, assim, não existem
procedimentos objetivos para se alcançar a verdade. 4. Os seres
humanos, assunto dessas previsões têm a habilidade deliberada de
alterar qualquer previsão que fazemos (1977, p. 5).

Gil apresenta uma listagem algo semelhante ao afirmar que há cientis-


tas que não aceitam considerar as ciências sociais como ciências verdadeiras,
alegando que

[...] a) Os fenômenos humanos não ocorrem de acordo com uma ordem


semelhante à observada no universo físico, o que torna impossível a sua
previsibilidade. b) As ciências humanas lidam com entidades que não são
passíveis de quantificação, o que torna difícil a comunicação dos
resultados obtidos em suas investigações. c) Os pesquisadores sociais, por
serem humanos, trazem para as suas investigações certas normas
implícitas acerca do bem e do mal, prejudicando os resultados de suas
pesquisas. d) A ciência se vale fundamentalmente do método experimental,
que exige, entre outras coisas, o controle das variáveis que poderão
interferir no fenômeno estudado. Os fenômenos sociais, por outro lado,
envolvem uma variedade tão grande de fatores que tornam inviável, na
maioria dos casos, a realização de uma pesquisa rigidamente experimental
(1987, p. 22).

Apesar de apresentarem estas dificuldades, nenhum dos autores citados


aceita a idéia de que é impossível a realização de estudos científicos, nos
moldes empiricistas, sobre os fenômenos humanos.
Para Gil, por exemplo,

[...] a melhor defesa do caráter científico da Psicologia, Sociologia,


Antropologia e outras disciplinas designadas sob o título de ciências
sociais não está em demonstrar a falácia dessas argumentações, mas
antes em evidenciar que, mesmo nas ciências naturais não se observa a
rigorosa observância dos itens considerados. E também que, a despeito
de suas dificuldades, as ciências sociais podem ser capazes de fornecer
explicações segundo padrões que não se distanciam muito das ciências
naturais (1987, p. 23).

69 
O QUE É CIÊNCIA?

Goode e Hatt defendem a mesma posição, embora com uma argumen-


tação diferente, ao afirmarem que

[...] tanto o senso comum quanto a experiência científica sugerem que é


possível desenvolver métodos de controlar observações, abstrair
suficientemente e reduzir variabilidade e complexidade, para que a
sociologia se torne mais científica (1975, p. 5).

Em resumo, embora haja evidentes dificuldades em enquadrar os obje-


tos de estudos das ciências sociais nos parâmetros da metodologia empiri-
cista, que tem como base os objetos físicos, estas dificuldades devem ser
encaradas apenas como obstáculos a ser superados, e não como provas da
impossibilidade de se realizarem estudos objetivos do comportamento hu-
mano.
Via de regra, os empiricistas são veementes em defender este ponto de
vista, e mais veementes ainda em combater as idéias de que, sendo o ser
humano uma entidade complexa, as tentativas de estudá-lo de forma expe-
rimental, através do controle artificial de variáveis e da observação de uni-
dades comportamentais quantificáveis implicariam que não se percebesse a
sua essência, ou a sua totalidade:

estas afirmações são geralmente emocionais e não podem merecer a


atenção dos que se dedicam às ciências sociais [...] É claro que o
comportamento humano é complexo e conseqüentemente muito mais
mutável que o comportamento de rochas, metais ou gases. Isto não
significa, porém, que seja impossível tratar do comportamento humano
cientificamente. O que ocorre é que os fenômenos humanos não podem
ser quantificados com o mesmo grau de precisão das ciências naturais.
Mas, em boa parte, podem ser mensurados com a aplicação de escalas
menos sofisticadas (denominadas pelos estatísticos de nominais ou
ordinais) (Gil, 1987, p. 23-24).

Estudar os processos humanos de maneira rigorosamente experimental


não é apenas uma possibilidade colocada pelo empiricismo, é também uma
necessidade para quem, como os empiricistas, se propõe a construir uma
ciência que tem como objetivo “[...] compreender o mundo empírico no
qual o homem vive” (Goode; Hatt, 1977, p. 11).

70 
O OLHAR NO ESPELHO 

A APLICAÇÃO DA CIÊNCIA

A descrição do mundo, porém, é apenas um dos objetivos da ciência


empiricista, já que não haveria nenhum sentido no conhecimento, se este
não pudesse, de alguma forma, ser aplicado. Por essa razão é que

historicamente, a pesquisa científica se interessou tanto pelo


conhecimento em sí quanto pelo conhecimento avaliado pelo que pode
contribuir para interesses práticos (Selltiz et al., 1974, p. 7).

É mais exato, portanto, afirmar que

[...] a ciência pretende construir, de forma dinâmica, um modelo


inteligível e, ao mesmo tempo, o mais simples, preciso, completo e
verificável do mundo em que vivemos. Este modelo deve ser também
eficaz no sentido que ajude a fazer previsões e a utilizar meios
apropriados para controlar os fenômenos (Rudio, 1980, p. l2).

Os mesmos objetivos de compreensão, previsão e controle estão presen-


tes igualmente nas ciências sociais. Dessa forma a ciência não apenas possi-
bilitaria ao ser humano o domínio sobre a natureza, como poderia se
constituir, e de fato se constitui, num instrumento de previsão e de controle
sobre as ações dos próprios homens.
Aí se coloca um problema sério para a ciência empiricista: sendo uma
possível forma de controle das ações humanas, ela não perderia suas carac-
terísticas de neutralidade e portanto, de objetividade?
Podemos tentar dividir esta pergunta em outras, para tentar torná-la
mais clara.
A ciência como um todo é capaz de desenvolver instrumentos e manei-
ras de alterar a natureza e a própria conduta humana. Isto não permitiria
que os cientistas utilizassem seu conhecimento como forma de atingir seus
objetivos políticos ou pessoais, dando-lhes certa condição de superioridade
sobre as demais pessoas? Neste caso, a ciência se transformaria numa arma
política, perdendo sua característica de neutralidade.
Os mesmos interesses e convicções políticos ou pessoais não poderiam,
especialmente no caso dos cientistas sociais, interferir em suas observações
ou alterar suas conclusões, prejudicando assim a objetividade da ciência?

71 
O QUE É CIÊNCIA?

Estas são questões sérias para os empiricistas, e estes têm tentado


responder a elas, ou resolvê-las, de várias maneiras. Antes de mais nada,
é preciso reconhecer que o cientista, enquanto ser humano, não está
impedido de participar de agremiações ou grupos políticos, e muito
menos de ser portador de idéias políticas. O que se exige dele, para a
prática da ciência, tal como entendida pelo empiricismo, é a separação
rigorosa entre sua atuação como político e como cientista. Há três con-
dições que podem auxiliá-lo a conseguir isto.
A primeira delas é a própria formação do cientista:

a formação do pesquisador leva-o a uma atitude intransigente e até


certo ponto distanciada com relação às implicações dos resultados de
sua pesquisa. Sua lealdade está com o progresso da ciência e com a
fidedignidade de seus resultados. A consequência − ou inconsequência −
social de seu trabalho não pode ou não deve afetar a maneira de
conduzí-lo e o destino dado aos resultados obtidos. Isto tanto significa
um tratamento frio e desapaixonado a tópicos candentes e de grande
repercussão, como uma decisão mecânica de tornar públicos resultados
inconvenientes ou politicamante inoportunos (Castro, 1978, p. 24 e 25).

Outra condição é o próprio desenvolvimento da metodologia científica.


Como vimos, a existência de toda uma série complexa de regras sobre como
devem ser realizadas as pesquisas tem como finalidade principal garantir a
objetividade dos conhecimentos científicos, isto é, tornar estes conhecimen-
tos independentes das convicções de quem desenvolveu os estudos sobre o
assunto.
Para a ótica do empiricismo, a metodologia se destina a garantir, justamen-
te, a neutralidade da ciência. Esta neutralidade do conjunto, para ser atingida,
exige toda uma série de procedimentos que visam garantir a neutralidade em
todas as fases de obtenção do conhecimento.
Podemos, então, falar de uma neutralidade de interesses do cientista, tal
como na frase de Castro (1978), citada logo acima; de neutralidade na observa-
ção: “ao descrever eventos, o cientista meramente relata o que vê” (Anderson,
1977, p. 7); e de uma neutralidade na linguagem da ciência: “a linguagem cientí-
fica deve, portanto, ser objetiva, precisa, isenta de qualquer ambigüidade” (Cer-
vo; Bervian, 1976, p. 124).

72 
O OLHAR NO ESPELHO 

Vimos, ao falar sobre as definições operacionais, que a utilização de


uma linguagem precisa e objetiva é fundamental para a ciência, na medi-
da em que lhe possibilita e garante um caráter “público”, ou seja, permi-
te que procedimentos utilizados sejam reproduzidos minuciosamente e
que resultados obtidos sejam comparados com exatidão.
Este caráter “público” é a terceira e, segundo alguns autores, a principal
entre as condições que auxiliam o cientista na sua busca de objetividade:

o que designamos por objetividade científica não é um produto da


imparcialidade do sábio individual, mas um produto do caráter social ou
público do método científico; e a imparcialidade do sábio individual é,
na medida em que ela existe, não a fonte, mas antes o resultado desta
objetividade social ou institucionalmente organizada (Popper apud
Lowy, 1987, p. 51).

Apoiada nestas condições, e nas condições de neutralidade e objeti-


vidade que delas derivam, a concepção empiricista de ciência tem pre-
dominado em nosso mundo nos últimos cem anos, a ponto de, por vezes,
ser vista como a única definiçäo possível e a única maneira de se fazer
ciência. Como vimos, para alguns autores só é possível denominar de
científicos aqueles conhecimentos obtidos através do método experimen-
tal. Para outros autores, entretanto, esta é uma afirmação questionável.
Esta é a posição que veremos a seguir.

A CRÍTICA AO EMPIRICISMO (PELA


HUMANIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS)

[...] a ciência é uma construção humana e, por isto mesmo, traz


as glórias e as misérias próprias do ser humano (Régis de
Morais, 1983, p. 23)

Durante muito tempo, as ciências sociais acalentaram o sonho e a ilusão


de poder estudar a sociedade da mesma maneira que as ciências
naturais estudaram a natureza. Conhecer os fenômenos, ser capaz de

73 
O QUE É CIÊNCIA?

prevê-los e de descrever seu funcionamento, quantificá-los para melhor


explicá-los, tais eram os objetivos a atingir e os parâmetros de uma
atividade verdadeiramente científica (Oliveira; Oliveira, 1982, p. 21-22).

Na segunda parte desta frase, os autores citados apresentam, de forma re-


sumida, aquilo que tentei descrever anteriormente como sendo o empiricismo e
suas propostas. Na primeira parte eles colocam claramente suas dúvidas sobre a
possibilidade de que as ciências sociais devam ou possam se realizar tomando
como base aqueles objetivos ou parâmetros.
Esses autores não estão sozinhos em sua posição. Há uma série bastan-
te grande de críticas ao empiricismo, e eu poderia iniciar esta minha exposi-
ção por qualquer delas.
No entanto, prefiro começá-la não por uma argumentação científica ou
metodológica, mas por onde me parece que começam todas as transforma-
ções sociais: a insatisfação humana frente a alguma situação.
Não quero com isso afirmar que a orígem das críticas ao empiricismo
seja a mera disposição emocional de um ou outro cientista isolado, baseado
em seus motivos pessoais e momentâneos. Quero partir exatamente do
contrário. A insatisfação é sempre insatisfação em relação a algo, a alguma
situação que nos parece inadequada. A insatisfação é própria da consciência.
Esta se apresenta

[...] como internamente dividida. De um lado, consciência contemplativa,


que anota o que é. Aqui se constitui a ciência, através de sua incansável
busca da objetividade. Mas os objetos assim constituídos se defrontam
com a consciência criativa, ética: a imaginação. A primeira função nos
diz como são a coisas. A segunda função nos diz como elas deveriam
ser [...] (Alves, 1978, p. 41).

É justamente esta consciência ética, esta capacidade de confrontar o


que é, ou o que está sendo, com o que deveria ser, que tem levado muitos
cientistas a questionarem seu trabalho, a levantarem críticas aos efeitos da
ciência, praticada nos moldes do empiricismo:

quanto mais rigorosos para com sua ciência, tanto mais os cientistas
conscientes coçavam na cabeça perguntas inquietantes que se começa
ou continua a ter depois que a pesquisa afinal foi feita e tudo parece,

74 
O OLHAR NO ESPELHO 

em teoria, tão perfeito. Para o quê serve o conhecimento social que a


minha ciência acumula com a participação do meu trabalho? Para
quem, afinal? (Brandão, 1982, p. 10).

A NÃO-NEUTRALIDADE DA CIÊNCIA
Estas últimas questões concentram, em grande parte, a insatisfação ini-
cial dos cientistas a que estamos nos referindo. Se prestarmos atenção à
composição econômica e educacional de nossa sociedade e analisarmos os
direitos e possibilidades dos participantes dos diferentes extratos sociais,
veremos que os membros das classes economicamente mais favorecidas
dispõem também de oportunidades muito mais amplas (e quase exclusívas)
de cumprirem as várias etapas da carreira acadêmica, forma tradicional de
se ter acesso aos conhecimentos científicos. Dispõem, igualmente, de maio-
res chances de ocuparem os cargos-chave para as tomadas de decisões sobre
as políticas de ensino e pesquisa, bem como sobre a aplicação do conheci-
mento científico, seus objetivos e metas.
Pode-se dizer a mesma coisa sobre as outras formas de conhecimento
existentes. Também as manifestações artísticas, religiosas e as várias formas
de conhecimento popular correm o risco de serem atraídas e controladas
pelos grupos dominantes.
Em outras palavras, o poder econômico tende a concentrar ao seu re-
dor e a controlar tanto o poder quanto o saber.
No caso das ciências, os grupos dominantes tendem a determinar, a
partir de suas perspectivas e interesses, quais assuntos devem ser pesquisa-
dos, quais linhas de pesquisa devam ser incentivadas, e de que forma e com
que finalidade os conhecimentos assim obtidos devem ser aplicados. Mesmo
que estas perspectivas, interesses, formas e finalidades não sejam aquelas
preferidas ou mais convenientes para as pessoas sobre as quais a ciência
realiza seus estudos e aplica suas conclusões, e que, geralmente, não são as
pessoas das classes dominantes.

São sempre aqueles que detêm o saber e o poder social que, com o auxílio
dos instrumentos científicos determinam unilateralmente o que, como e

75 
O QUE É CIÊNCIA?

quando deve ser pesquisado e que decidem sobre o destino a ser dado ou o
uso a ser feito dos resultados da pesquisa. Os grupos “observados” não têm
nenhum poder sobre uma pesquisa que é feita sobre eles e nunca com eles
(Oliveira; Oliveira, 1982, p. 18).

Brandão denomina de “artimanha eticamente safada e politicamente


imposta” a atuação do

[...] trabalho científico que divide o mundo sobre o qual realiza a


prática de “conhecer para agir” em dois lados opostos: o lado “popula”
dos que são pesquisados para serem conhecidos e dirigidos, versus o lado
“científico, técnico ou profissional” de quem produz o conhecimento,
determina os seus usos e dirige o “povo” em seu próprio nome ou,
com mais frequência, no nome de para quem trabalha (1982, p. 10).

A leitura de frases assim incisivas contra a atuação da ciência pode, talvez,


dar a você a impressão de que se trata de uma posição exagerada, adotada por
um ou mais cientistas, simpatizantes de uma mesma tendência e contrários ao
empiricismo. Não é bem assim. Autores que adotam, ao menos em parte, os
princípios do empiricismo reconhecem o caráter autoritário e controlador da
ciência tal como ela vem sendo praticada, e mais ainda, postulam que este
caráter controlador é necessário.
Alguns destes autores dizem, por exemplo, que uma das razões

[...] para praticar ciência é aprender como controlar eventos. A


maioria das instituições existentes são planejadas para controlar o
comportamento humano − escolas, prisões, hospitais e fábricas são
todos montados para controlar seus ocupantes [...] Parte da ciência
social é praticada para se aprender como controlar e produzir efeitos
pretendidos (Selltiz, Wrightsman; Cook, 1987, p. 9).

Se você aplicar sobre esta frase as questões que vínhamos levantando


sobre quem é controlado e quem decide quais são os efeitos pretendidos,
vai ver que se torna muito difícil, a partir daí, sustentar qualquer discussão,
ou mesmo manter qualquer ilusão a respeito da neutralidade da ciência.
Esta é a mesma conclusão a que têm chegado muitos cientistas.

76 
O OLHAR NO ESPELHO 

A noção de uma ciência neutra, capaz de produzir um tipo de conhe-


cimento “universal” e “natural”, alheio às questões de poder e participação
social, serve justamente para camuflar a participação decisiva que a ciência
(e os cientistas) têm desempenhado na manutenção das estruturas de man-
do e dominação. Se isto é verdadeiro para os regimes ditatoriais (de qual-
quer coloração) com suas prisões políticas disfarçadas em hospitais
psiquiátricos, também é verdadeiro para os países tidos como modelos de-
mocráticos. Veja este depoimento de um cientista norte-americano sobre as
ciências sociais em seu país:

Não temos perspectiva. Nosso treinamento na ciência social nos


condiciona a não fazer perguntas normativas, não temos possibilidades
nem meios para duvidar ou criticar nossa política externa. Temos
somente especialistas e técnicos para servir essa política (Horowitz apud
Tragtenberg, 1978, p. 182).

O ideal/mito da “neutralidade”, portanto, se torna a ciência incapaz de


discutir políticas, não a torna incapaz de executá-las.
Ao ler estas afirmações, suponho que alguns leitores poderão levantar
objeções a elas, já que, até agora venho me referindo a não neutralidade no
controle e na aplicação da ciência, mas isto não implica que a pesquisa
científica não seja, ou não possa ser, neutra e apolítica.
Raciocinar desta última forma implica pensar que a atividade científica
deve ser vista como dividida em dois níveis diferentes. O primeiro deles, o
da pesquisa, destinado à elaboração e à descoberta de novos conhecimentos,
pode, deve e tem sido executado de maneira neutra, garantida pelo rigor
metodológico e pela crítica do próprio conjunto dos cientistas, como vimos
anteriormente. O segundo nível, o da aplicação dos conhecimentos, é que se
prestaria ao uso e manipulação políticos; mas esta parte já não seria da
responsabilidade dos cientistas, nem seria executada por eles.
Este tipo de alegação, embora bastante difundido dentro dos próprios
meios acadêmicos, esbarra numa série de argumentos contrários. Vejamos
alguns.
Em primeiro lugar, basear a neutralidade da ciência na neutralidade dos
cientistas implica considerar estes últimos como pessoas especiais, alheias
ao mundo social e independentes dele. O cientista é um cidadão do mundo,

77 
O QUE É CIÊNCIA?

participa dele como todos os demais e está exposto às mesmas pressões,


incertezas e tendenciosidades. Ele é um profissional, que vive do seu traba-
lho e está sujeito às mesmas pressões econômicas que os outros profissio-
nais. A existência de financiamento para determinada área de pesquisa e não
para outras, mesmo que não altere as convicções do pesquisador, condiciona
sua possibilidade de trabalho. Ele é um ser social, e como tal, sujeito às
idéias e tendências de seu tempo e de seu grupo. As condições e contradi-
ções sociais surgem para ele e são interpretadas da mesma forma que o
fazem os outros membros de sua coletividade. Ele é um ser humano, vulne-
rável às mesmas dúvidas e mudanças de todos os demais.
Acreditar que o cientista recebe uma educação especial, capaz de fazê-
lo superar estas características e alcançar um patamar superior de objetivi-
dade, implica ignorar que o processo educacional se dá através do contato
com outras pessoas portadoras das mesmas características.
Em segundo lugar, a ciência, fruto do trabalho humano, não poderia
deixar de receber as mesmas influências a que estão sujeitos seus autores.
Assim, não existe uma ciência “universal” e atemporal, politicamente neutra
e independente do momento histórico:

a ciência é uma das formas do conhecimento produzido pelo homem


no decorrer de sua história. Portanto, a ciência também é
determinada pelas necessidades materiais do homem em cada
momento histórico, ao mesmo tempo que nelas interfere (Andery et
al., 1988, p. 15).

Dito de forma mais detalhada

[...] a ciência é apenas um produto cultural do intelecto humano que


responde a necessidades coletivas concretas − inclusíve àquelas
considerações artísticas, sobrenaturais e extracientíficas − e também aos
objetivos específicos determinados pelas classes sociais dominantes em
períodos históricos precisos (Fals Borda, 1982, p. 43).

Terceiro: a idéia da existência de uma neutralidade na fase da pesquisa


da ciência empiricista esbarra na própria forma como ela vêm delimitando
os métodos e objetos das ciências sociais.
Ao adotar como modelo único de procedimento e ao tentar estender
para todas as áreas de pesquisa o método experimental, tomando como base

78 
O OLHAR NO ESPELHO 

o alto desempenho da física, o empiricismo comete, no mínimo, um erro


metodológico; esquece que

todas as ciências naturais começam pela descrição, para passar à


classificação dos fenômenos descritos, e enfim à abstração das leis
predominantes. A experimentação serve para verificar leis naturais
abstratas, e vem em último lugar. Esses diferentes estágios − descritivo,
sistemático e monográfico − devem ser observados por todas as ciências
naturais. Mas tendo a física chegado há muito tempo ao estágio
experimental e monográfico de seu desenvolvimento, e tendo atingido
adiantado grau de abstração [...] muitos pensam que tais métodos
deveriam ser utilizados nos ramos de pesquisa em que a observação e a
descrição seriam apenas indicadas − pelo menos no atual estado de
coisas (Lorenz, apud Abramczuk, 1981, p. 10).

Na tentativa de saltar as etapas de descrição e classificação de seus ob-


jetos de estudo para adotar, de imediato, o procedimento final da física, as
ciências sociais usaram de um outro recurso que, embora coerente com sua
proposta metodológica, traz consigo conseqüências bastante sérias: adota-
ram definições extremamente simplistas do homem e dos processos sociais.
Ao determinar como propósito para toda a ciência o estudo do mundo
empírico, composto por fatos e objetos concretos, o empiricismo elimina do
campo das ciências sociais a possibilidade de conhecer os processos subjeti-
vos, presentes em todo fenômeno que tenha a participação humana. Ignora,
ou considera pouco importante, por exemplo, a existência daquela consciên-
cia criativa descrita por Alves (1978) a que me referi ali atrás.
Se elimino a subjetividade do ser humano, elimino também a possibili-
dade de que ele venha a transformar e a recriar sua realidade. Se reduzo os
processos psíquicos, sociais e históricos à sua porção visível e mensurável,
passo a construir um conhecimento sobre objetos que posso facilmente
manipular e controlar.

Uma ciência que se limita à previsão e elaboração de resultados


utilizáveis se presta facilmente a todo tipo de manipulação por parte
dos que controlam os centros de decisão e de poder. Sua tendência será
sempre reduzir a complexidade do real a uma visão simplista e
superficial, bem como congelar o dinamismo social numa fotografia
estática. A redução do complexo ao simples e do dinâmico ao estático

79 
O QUE É CIÊNCIA?

são típicos do pensamento conservador: sob esta ótica, o que existe hoje
é o único real possível (Oliveira; Oliveira, 1982, p. 23).

Quarto e último conjunto de comentários sobre a neutralidade científi-


ca. Comecei questionando a possibilidade de uma ciência neutra, capaz de
fornecer um retrato fiel da realidade e ao final do comentário anterior já
estava levantando argumentos que colocam em dúvida também a existência
de uma realidade independente da interpretação humana. Ao falar em recri-
ação da realidade e em único real possível estou considerando a realidade
como um processo decorrente (ao menos em parte) da ação e da interpre-
tação humanas, e não mais como algo superior ao homem e independente
dele.
Veja bem: não estou afirmando que a realidade, o conjunto de seres,
objetos e fatos não exista, ou que eles são apenas fruto da elaboração inte-
lectual do homem. As “coisas” existem. Animais, vegetais ou minerais não
precisam do ser humano e de suas interpretações para existirem, da mesma
forma que os fenômenos naturais vão continuar ocorrendo, quer o homem
deseje isto ou não. O que estou querendo dizer é que o homem não se
relaciona com as coisas tal como elas são, mas tal como ele as considera.
De acordo com Berger e Luckmann (1976), a partir do momento que
nomeia um objeto qualquer, o ser humano está, simultaneamente, em-
prestando a este objeto uma classificação e um valor e, conseqüentemen-
te, desenvolvendo uma série de normas de conduta em relação a ele.
Vamos tomar como exemplo uma árvore. Ela existe, mesmo que eu ou
qualquer outro ser humano jamais a tenhamos visto. No entanto, a sociedade em
que vivo desenvolveu, através de sua história, uma série de conceitos sobre o que
venha a ser uma árvore. Em primeiro lugar, elaborou uma palavra, um signo
específico para designar todos os elementos da natureza que sejam portadores
das mesmas características. Esta palavra, este nome, é também uma forma de
classificação, já que ao identificá-la como pertencente ao grupo das “árvores”
serve também para distingui-la de outras coisas “não-árvores”. Ao mesmo tempo,
o grupo social atribui ao objeto um significado que pode ser místico (a árvore
ser vista como a morada de um deus ou um símbolo de perenidade), prático
(fonte de alimentação, abrigo) ou de outra natureza qualquer.
A atribuição deste significado faz com que a árvore passe a receber
uma valoração, entre o conjunto dos valores do grupo (pode ser classificada
como algo muito bom ou ruim, perigoso ou benéfico) e com que sejam

80 
O OLHAR NO ESPELHO 

estabelecidas regras de comportamento em relação a ela (deve-se venerá-la


ou destruí-la, ela pode ser tomada como propriedade particular ou pertence
a toda a comunidade).
À partir daí, quando falamos em árvore, quando vemos ou tocamos em
algo que denominamos árvore, estamos nos relacionando não com o que ela
é, mas com o que nós elaboramos que ela seja. O objeto bruto inicial passa,
portanto, por um processo de interpretação através do qual ganha valores e
significados que ele não possui em sua forma original; passa a ter um signi-
ficado social.
No decorrer de sua vida, o ser humano tanto aprende as denominações,
classificações, valores e normas de seu grupo, quanto participa da elabora-
ção de novas interpretações. De qualquer forma, sua relação com a realida-
de é sempre mediada por estas representações.

Os dados da realidade não se apresentam a nós numa forma que


poderíamos chamar “pura”, senão que são sempre mediados pelo
significado sócio-cultural (e portanto humano) que lhes é conferido. Um
composto qualquer de estímulos que atinja os órgãos sensoriais de
alguém, nunca é percebido apenas pelas suas condições físicas, mas
também, e primordialmente, pelo seu significado social (Tomanik, 1984,
p. 40).

Pode-se dizer, portanto, que para o elemento humano, “o real não é


constituido de coisas” (Chauí, 1982, p. 16).

[...] A realidade (para o homem) é aquilo que ela significa


globalmente; ora as coisas só terão significado para alguém, e assim
mesmo tal significado recebe larga contribuição das nossas
interpretações psicológicas, que são traduções mentais (subjetivas)
dos dados naturais que impressionam os nossos sentidos (Régis de
Morais, 1983, p.86).

Pausa. Um momento de descanso. Pronto.


Deixamos de lado, por algum tempo, as questões especificamente metodoló-
gicas e fizemos uma breve incursão pela sociologia do conhecimento. Penso que
seria conveniente, agora, elaborar um resumo do que vimos, como forma de
reconduzir nossa discussão sobre a neutralidade da ciência: a) Não existe sentido
em pensar numa realidade independente do homem e de suas interpretações. A

81 
O QUE É CIÊNCIA?

natureza e seus fatos existem; no entanto, só são percebidos e “pensados” a


partir do desenvolvimento intelectual humano. As próprias noções de natureza e
de realidade são construções humanas. b) Os dados do mundo físico são parte
da realidade, tal como percebida pelo homem; estas percepções são elaboradas,
ao menos em parte, sobre aqueles dados. c) No entanto, a realidade socialmente
construída não se esgota nesses dados, não se resume a eles. O homem atribui
aos dados naturais significados que não estão presentes neles. d) Um indivíduo
humano qualquer ao se relacionar com os dados brutos da natureza, o faz sem-
pre a partir da dupla perspectiva dos conhecimentos elaborados por seu grupo e
das suas disposições subjetivas.
Devemos, então, passar a distinguir o fato (dado bruto, tal como exis-
tente) do fenômeno (o dado tal como percebido pelo ser humano). O ser
humano adulto e normal se relaciona apenas com os fenômenos, nunca com
os fatos.

[...] As visões sociais de mundo e os valores (que fazem parte delas)


intervêm também na análise empírica da causalidade, na determinação
científica dos fatos e de suas conexões, assim como na última etapa
da pesquisa: a interpretação geral e a construção das teorias. Em
outras palavras, é o conjunto de conhecimentos científico-social [...]
que é atravessado, impregnado, colorido por valores, opções
ideológicas (ou utópicas) e visões sociais de mundo (Lowy, 1978, p.
195).

Destes pontos, podemos derivar, agora, alguns raciocínios.


Vimos que o empiricismo se propõe a estudar a sociedade e a conduta hu-
mana, partindo da suposição de que elas estão sujeitas às mesmas leis que os
fatos naturais. A sociedade é vista, aí, como parte da natureza.
Ocorre, porém, que as “leis naturais”, descobertas ou desenvolvidas pe-
las ciências, são elaborações humanas; são as formas que o homem desen-
volveu para tornar compreensíveis, para ele mesmo, os acontecimentos
naturais. É importante não confundir o acontecimento (fato natural) com a
lei (elaboração desenvolvida pelo homem com o intuito de descrever e com-
preender aquele acontecimento).
As leis científicas descrevem fenômenos, e não fatos. Mais que isso, fo-
ram e são elaboradas por indivíduos participantes de determinados grupos

82 
O OLHAR NO ESPELHO 

sociais e portadores, portanto, de valores e interesses típicos deste grupo,


naquele momento histórico.
Ao estudar a natureza, o cientista traz consigo, ao menos em parte, a repre-
sentação social de natureza que adquiriu no decorrer de sua aprendizagem. A
formação social do cientista (e a sua formação acadêmica está incluida aí) termi-
na por condicionar sua visão de natureza.
Vimos, ali atrás, como os grupos economicamente privilegiados dentro
de uma sociedade lutam para concentrar ao seu redor o poder político e o
saber (acadêmico ou não). O coroamento destes esforços se dá quando o
grupo hegemônico consegue elaborar e fazer com que seja aceito um con-
junto coordenado de idéias, capazes de se constituir numa cosmovisão, uma
visão de universo organizada de tal forma que sirva para justificar e manter
o estágio de dominação atual. Vimos como isto se dava no caso das explica-
ções religiosas como base da manutenção da monarquia; estamos vendo
agora, com a ciência empiricista auxiliando o domínio dos grupos econômi-
cos.
Temos aí uma falácia do empiricismo em sua proposta de construção
de uma ciência objetiva e neutra. Ao propor tomar a sociedade como sub-
metida às leis da natureza, os teóricos daquela corrente não levam em con-
sideração que essas leis são um fruto do próprio desenvolvimento social e
condicionadas por ele.
A relação é apresentada de forma invertida. Aparentemente, é a organi-
zação da natureza que produz e justifica a estrutura social. Por trás dessa
aparência, são a organização social vigente e os grupos interessados em sua
manutenção, que produzem uma visão de natureza elaborada à sua imagem
e semelhança.
Convém acrescentar aqui dois esclarecimentos, antes que se possa
pensar que ao negar a neutralidade da ciência estamos negando também
o seu valor ou a possibilidade da existência de qualquer mudança social.
Primeiro. Se, como vimos, as leis científicas são descrições dos fenôme-
nos (percebidos) da natureza e não um retrato fiel do fato estudado, isto
não lhes tira o valor como tentativa de construção de um modelo, o mais
próximo possível, da realidade, e nem impede que, através da utilização
destes modelos, a humanidade tenha progredido a largos passos no domínio
dos processos naturais.

83 
O QUE É CIÊNCIA?

Segundo. As visões elaboradas pela sociedade sobre a natureza ou sobre a


própria sociedade não constituem quadros estáticos, impossíveis de sofrerem
qualquer transformação, nem a submissão dos cientistas (ou de qualquer outro
elemento) a eles é total. Pelo contrário, as representações sociais são elementos
em contínuo processo de mudança. Tanto o cientista, ao realizar seus estudos a
partir de certo quadro de referência, pode chegar a perceber falhas neste quadro,
quanto qualquer membro da sociedade, em sua vivência do cotidiano, pode
chegar a levantar questionamentos sobre as crenças e estruturas sociais. Além
disso,

em qualquer sociedade onde existam relações que envolvam interesses


antagônicos, as idéias refletem essas diferenças. E, embora acabem por
predominar aquelas que representam os interesses do grupo dominante,
a possibilidade mesma de se produzir idéias que representam a
realidade do ponto de vista de um outro grupo reflete a possibilidade de
transformação que está presente na própria sociedade. Portanto, é de se
esperar que, num dado momento, existam representações diferentes e
antagônicas do mundo (Andery et al., 1988, p. 15).

A existência dessas diferentes representações é que permite ao cientista


refletir sobre os destinos que pretende que sua ciência venha a ter, e ao
cidadão (que pode ser o mesmo cientista) elaborar o modelo de sociedade
que lhe parece mais adequado. Negar essas possibilidades implicaria ignorar
tanto a evolução das ciências quanto as transformações sociais.
Apesar destas ressalvas, já não podemos mais ignorar que

todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados,


direta ou indiretamente, a uma das grandes visões sociais de mundo, a
uma perspectiva global socialmente condicionada, isto é, o que Pierre
Bourdieu denomina, numa expressão feliz, “as categorias de pensamento
impensadas que delimitam o pensável e predeterminam o pensamento”
(Lowy, 1987, p. 13).

Penso que seria interessante discutir as formas como as ciências exatas


vêm encarando problemas como a objetividade e a neutralidade em seus
estudos. No entanto, confesso não dispor de conhecimentos suficientes para
me propor a empreender uma discussão dessas. Além disso, creio que é

84 
O OLHAR NO ESPELHO 

possível passarmos sem essa discussão, na medida em que a área de interes-


se deste texto é restrita às ciências humanas.
Dentro desta área, podemos resumir as posições que apresentamos até
aqui, na afirmação de que, mesmo

na fase de obtenção de dados, numa pesquisa sociológica, tudo é social:


o objeto investigado, as pessoas concretas implicadas nele, o grupo de
pesquisadores e seu sistema de representação teórico-ideológico próprio
e, por fim, as técnicas de pesquisa ligadas ao sistema de representação e
que envolvem relacionamentos interpessoais e comunicação de símbolos
(Thiollent, 1987a, 23).

OS OBJETOS, OS MÉTODOS, AS CIÊNCIAS

Descartada, assim, a possibilidade da elaboração de uma ciência social


neutra, capaz de elaborar descrições puramente objetivas do ser humano e
de sua atuação, temos que repensar a totalidade das propostas empiricistas
para o conhecimento do homem.
Da mesma forma como estabelecemos uma diferenciação entre fatos e
fenômenos, podemos agora distinguir, dentro da ciência, dois tipos de obje-
tos: os reais e os formais. Isto não significa que haja dois objetos diferentes,
mas duas formas diferentes de considerar o mesmo objeto.
O objeto real de determinada ciência é constituído pela

[...] categoria de seres reais que ela procura conhecer. O objeto formal
consiste nos fenômenos específicos por que ela se interessa, o que
envolve uma perspectiva característica no enfoque do objeto real
(Nogueira, 1988, p. 2).

Podemos, fazendo uma analogia com a distinção entre fatos e fenôme-


nos, afirmar que o objeto real representa o dado bruto da realidade, ao
passo que o objeto formal é o mesmo dado, visto pela ótica do cientista,
interessado em investigar um aspecto específico deste dado e, para tanto,
munido de todo um arsenal de conhecimentos e de indagações a respeito
dele. Assim, o objeto de uma ciência é sempre o objeto formal, uma parte

85 
O QUE É CIÊNCIA?

da realidade artificialmente separada do todo pelo homem e reinterpretada


por ele.
A analogia feita entre fato X fenômeno e objeto real X objeto formal das
ciências não é mera ilustração, já que, a rigor, estamos falando do mesmo
tipo de processo.
A diferenciação entre estes dois tipos de objetos pode nos levar a dois
raciocínios paralelos.
Se aceitamos que todo o conhecimento buscado pela ciência visa, mes-
mo que indiretamente ou a longo prazo, servir de alguma maneira ao ho-
mem, temos que este é, ao menos, parte do objeto real de todas as ciências.
Não podemos chegar a afirmar que o homem é o objeto real único de todas
as ciências, na medida em que elas podem se dedicar a estudar partes da
realidade nas quais o homem esteja presente, mas onde não seja o único
elemento.
Se, por outro lado, centrarmos nosso raciocínio nos objetos formais,
aqueles com os quais as ciências efetivamente trabalham, teremos um qua-
dro totalmente diferente;

as ciências humanas [...] ainda que tenham por objeto real ou sensível
os indivíduos humanos, com seu substrato orgânico, têm por objeto
formal certos fenômenos engendrados pela convivência humana e pela
capacidade especificamente humana de simbolização (Nogueira, 1988, p.
4).

Isto equivale a dizer que o homem estudado pelas ciências humanas


não é exatamente o mesmo estudado pelas ciências da natureza. Embora
possua um organismo semelhante a outros organismos vivos − e esteja sujei-
to, tal como eles, a uma série de determinações naturais como as estudadas
pela física, a química ou a biologia −, o ser humano não se limita a agir
segundo estas determinações, ou seja, não está sujeito apenas a elas. Ao
desenvolver sua capacidade de recriação do real, de se relacionar com a
natureza, não em exclusiva dependência dela, mas num processo capaz de
transformá-la e de transformar a sí próprio, o homem supera suas limita-
ções biológicas.
Veja que falamos em superação, não em eliminação. Não há nenhum
sentido em supor que o homem esteja acima da natureza, ou que tenha
se tornado independente dela. Continuamos constituídos por estruturas

86 
O OLHAR NO ESPELHO 

sujeitas a forças, tal como outras estruturas físicas, temos órgãos contro-
lados por mecanismos semelhantes aos existentes em outros organismos.
No entanto, ao atribuir significados humanos aos objetos e ao transfor-
mar seu mundo num mundo de fenômenos, o homem transforma-se
num outro tipo de elemento: um organismo histórico, um corpo pensan-
te; um elemento natural dotado de vontade própria.
Assim, não conseguirá bons conhecimentos científicos, por exemplo, um
pesquisador menos avisado que tentar explicar as desigualdades sociais através
da lei da sobrevivência do mais apto de Malthus; as guerras como decorrentes
da teoria da evolução das espécies de Darwin, ou mesmo as manifestações
emocionais do ser humano como meras consequências do funcionamento do
seu sistema hormonal. Embora possam parecer exageradas, ou até mesmo
cômicas, cada uma destas explicações já foi tentada e elas fazem parte da
história das idéias científicas.
Minha intenção ao citá-las foi a de ilustrar a existência de diferentes ob-
jetos formais derivados de um mesmo objeto real e, ao mesmo tempo intro-
duzir uma discussão que decorre do que vimos até aqui: se a ciência
trabalha com os objetos formais, e se há diferenças entre eles, haverá senti-
do em que todos sejam estudados da mesma maneira, ou seja, através do
mesmo método?
Colocada a pergunta desta forma, parece evidente a resposta de que
objetos diferentes deveriam merecer tratamentos diferentes. Apesar disto,

a extrapolação do racionalismo métrico da Física para o âmbito das


ciências biológicas foi estendido destas para o âmbito das ciências
sociais; entre os praticantes destas, hoje muitos propugnam por fazer
com que o racionalismo métrico das ciências naturais assuma validade
para definir ações sociais concretas e decisões de natureza política
(Abramczuk, 1981, p. 10).

Já vimos as implicações e as falhas destas tentativas de reduzir a reali-


dade humana aos fenômenos físicos e de conhecê-la através das mesmas
medidas utilizadas para o estudo de átomos, metais ou gases. Os dados que
coloquei até aqui indicam a direção oposta: a de que objetos diferenciados
exigem métodos diferenciados para seu estudo.
A partir disso, já não faz sentido, também, que continuemos falando na
ciência como um corpo único de procedimentos e de conhecimentos. Parece

87 
O QUE É CIÊNCIA?

mais correto pensarmos num conjunto de várias ciências, que embora pos-
sam (e devam) se auxiliar mutuamente, compartilhar suas informações e
discutir seus procedimentos, só poderão avançar na conquista de seus obje-
tivos a partir de uma avaliação contínua destes objetivos e dos procedimen-
tos adequados para atingí-los.
Cada uma das ciências deve guardar relativa autonomia das demais. Es-
ta autonomia é constituída pela existência de campos de estudos diferencia-
dos, ou seja, pela elaboração de objetos formalmente distintos, e pelo
desenvolvimento de métodos próprios para a construção de conhecimentos
relativos a este objeto.
Diferenciadas desta forma, é necessário que as ciências se procurem ar-
ticular, permutando e complementado seus conhecimentos. Esta articulação,
contudo, deve se dar de forma a preservar as características de cada ciência,
e não através da adoção de uma delas como parâmetro único a ser seguido,
ou da suposição de que haja maior importância nos estudos realizados por
uma ou por outra. Embora, por uma série de fatores, uma ciência possa,
num dado momento, apresentar maior desenvolvimento que outras, isto não
implica que ela deva se constituir num modelo a ser imitado, não lhe confe-
re importância maior, não lhe garante autonomia total em relação às de-
mais, nem serve como indicador de que ela esteja mais próxima de resolver
sozinha os problemas de sua área.
Tal como o campo das ciências da natureza

o campo das problemáticas das ciências sociais é excessivamente vasto


para ser englobado ou reduzido a uma única disciplina; assim, de saída,
esse campo é pluridisciplinar. Cada disciplina − sociologia, psicologia,
etnologia, economia, etc. − não deve visar o conjunto do espaço
epistêmico das ciências do homem, mas delimitar estritamente −
metodologicamente − um campo de análise, um aspecto particular desse
espaço (Bruyne, Herman; Schoutheete, s/d., p. 26).

A delimitação de campos próprios, contudo, não implica um fechamento


de cada ciência sobre sí própria, nem na estandartização, no congelamento de
seus procedimentos. Pelo contrário, o desenvolvimento das ciências se deve a
uma dinâmica de transformações que ocorrem tanto nas relações interdiscipli-
nares quanto no interior de cada uma delas.

88 
O OLHAR NO ESPELHO 

Na medida em que os objetos de estudo são apenas formalmente dife-


rentes, o desenvolvimento de conhecimentos ou de métodos obtidos por
uma das ciências praticamente obriga as demais, especialmente as mais
próximas, a reverem seus conceitos e procedimentos, seja para reformulá-los
ou para questionar o avanço da primeira. Por outro lado, a definição formal
dos objetos também faz com que os limites entre duas ou mais ciências da
mesma área não sejam claros e nem rígidos. Há sempre espaços de domínio
comum que exigem a interação das disciplinas, e permitem o desenvolvi-
mento do que poderíamos chamar de “ciências híbridas”, como a físico-
química ou a psicologia social.
Os processos de transformação também ocorrem no interior de cada
ciência. Ora em função dos avanços teóricos que podem permitir uma rede-
finição do objeto, capaz de exigir uma alteração nos métodos utilizados; ora
pela elaboração de novas metodologias, através das quais se consiga vislum-
brar campos antes insuspeitados de estudos e até chegar à definição de
novos objetos, ou a redefinições dos anteriores.

[...] Nem os métodos nem os objetos são dados a priori. Existe


elaboração progressiva dos métodos em contato com determinados
objetos. Mas existe, correlativamente, elaboração progressiva dos
objetos, graças ao acionamento de determinados métodos [...] Na
realidade histórica de seu devir, o procedimento científico é ao mesmo
tempo aquisição de um saber, aperfeiçoamento de uma metodologia,
elaboração de uma norma (Ladrière apud Bruyne, Herman; Schoutheete,
s/d., p. 14 e 16).

O processo de desenvolvimento das ciências, contudo, não se dá de


forma linear, contínua ou harmônica. Como todo processo, ele está sujeito a
interrupções, quebras e retrocessos; nele se alternam momentos de intensas
transformações e de estagnação. Num dado momento é possível que um
conjunto de conhecimentos seja unanimemente aceito pela comunidade
científica. Em outro, pode ser que haja grupos lutando por sua reformula-
ção, ao mesmo tempo em que outros grupos defendem ferrenhamente sua
permanência tal como está.
Aqui entre nós, estas disputas nem sempre se dão com base em argu-
mentos exclusivamente científicos e nem sempre são travadas de uma ma-

89 
O QUE É CIÊNCIA?

neira que poderíamos chamar de eticamente aceitável. São disputas huma-


nas, afinal de contas, tal como é humana toda a atividade científica, e como
são eivadas de significados humanos todas as conclusões a que a ciência
puder chegar.

CIÊNCIA E IDEOLOGIA

Chegamos, então, a um ponto que tem preocupado, e muito, grande


número de cientistas e sobre o qual se tem travado longas e profundas
discussões: a relativização das ciências sociais.
Se o conhecimento humano, especialmente o relativo aos fatos sociais, é
sempre influenciado pelo envolvimento que o elaborador desse conhecimen-
to tem com as idéias e os conflitos de sua época, de sua região e de seu
grupo, podemos admitir a possibilidade de que haja tantas “verdades cientí-
ficas” quantas forem as visões sociais de mundo existentes. Haveria, então,
uma ciência social relativa a cada classe, da mesma forma que há um inte-
resse de cada segmento da sociedade existente em cada momento da histó-
ria. Vamos mais além. Na medida em que as classes sociais não são
homogêneas, estáticas nem estanques, mas há conflitos e transformações
dentro delas, poderíamos ter uma ciência para cada um destes segmentos, e
indo mais longe ainda, ter tantas ciências sociais quantos são os cientistas.
Acabamos de decretar a morte do conhecimento e a falência do empre-
endimento científico, se nos limitarmos a pensar assim. Se o conhecimento
social é de tal maneira relativo, não há por que se estudar o homem ou a
sociedade. Basta que cada um elabore seus próprios conceitos e os use co-
mo quiser.
Se, por outro lado, não nos contentarmos com essa conclusão e tentar-
mos aprofundar nosso raciocínio sobre esta questão, talvez consigamos
superá-la, fazendo o que poderíamos chamar de relativizar a relatividade das
ciências sociais.
Para que um conhecimento seja totalmente relativo a quem o produz,
seja um grupo ou um indivíduo, para que seja pura criação, o processo de
elaboração deste conhecimento deve independer de qualquer exercício de
observação da realidade que está sendo estudada e não deve, e nem pode,
ter qualquer preocupação com a alteração ou o controle desta realidade. Em

90 
O OLHAR NO ESPELHO 

outras palavras, para ser totalmente relativo, o conhecimento não pode e


nem deve ser confrontado com a realidade, para não correr o risco de ser
refutado por ela.
Um conhecimento assim alheio a qualquer fato, puro método sem obje-
to, seria algo tão absurdo que não tenho notícias de que sequer tenha sido
tentado alguma vez.
O processo de elaboração do conhecimento não se dá desta forma. Ao
contrário, quem pretende conhecer, pretende conhecer algo, e pretende que
esse conhecimento possa, de alguma forma, ser utilizado, ainda que a longo
prazo.
Uma classe, qualquer classe social, ao produzir um conhecimento, não
visa apenas criar uma série de teorias ilusórias sobre si própria e seu papel,
mas organizar uma série de informações de tal forma que lhe possibilite
conhecer, controlar, manter ou transformar a porção da realidade a que este
conhecimento se refere. Portanto, é necessário não só que o conhecimento
se refira a um objeto, como que tenha chances, as maiores possíveis, de
refletir este objeto, de ser um modelo teórico capaz de fornecer uma ima-
gem, ainda que aproximada, da realidade que se pretende conhecer.
Isto equivale a dizer que o conhecimento não é pura imaginação, mas
que o fato faz parte do fenômeno. O conhecimento é sempre uma relação
entre quem conhece e o objeto conhecido.
Esta afirmação não implica a eliminação da influência das visões sociais
de mundo na elaboração do conhecimento social. Pelo contrário, reconhece
o papel do ser humano na elaboração do saber. Apenas indica que este
saber não é pura elaboração pessoal, pura ideologia.
Esta participação do objeto no conhecimento elaborado, ou dizendo de
forma mais correta, esta relação que o conhecimento deve ter com o objeto
a que se refere, é que permite, com alguma freqüência, que cientistas, mes-
mo trabalhando sob determinada visão social de mundo, possam se servir
de conclusões elaboradas por outros cientistas que tenham partido de visões
opostas.
Veja que coloco esta continuidade do conhecimento como uma possibi-
lidade, não como regra absoluta.
Penso que é conveniente abrir um parêntese aqui, para explicar melhor
este processo de continuidade da ciência.

91 
O QUE É CIÊNCIA?

A ciência, praticada nos moldes do empiricismo, desenvolveu uma série


de teorias, como por exemplo, as noções sobre a aprendizagem humana da
psicologia behaviorista, ou as leis sobre a estrutura social da sociologia clás-
sica. Se hoje teorias como estas são rejeitadas pelos críticos do empiricismo,
isto não significa que estes mesmos críticos estejam propondo que se ignore
ou despreze todo o conhecimento produzido pela ciência empiricista nos
últimos séculos.
A perspectiva colocada pela ciência é bem outra. Uma vez que se consi-
ga perceber a influência de determinada ideologia na produção de um co-
nhecimento, a tarefa dos críticos desta posição deve (ao menos idealmente)
ser a de tentar filtrar, do todo deste conhecimento, aqueles elementos que
tenham alguma possibilidade de continuar a ser aceitos, mesmo que sob
uma outra perspectiva social.
Talvez um exemplo nos possa auxiliar a compreender este processo.
As teorias da relatividade especial e da relatividade geral desenvolvidas
por Einstein entre 1900 e 1915 questionam uma série de afirmações e pres-
supostos da física clássica. Isto não impediu que os princípios desta última
continuassem sendo utilizados até hoje, num sem número de aparelhos que
fazem parte de nosso cotidiano. Se, para grandezas astronômicas (velocida-
des superiores à da luz, distâncias equivalentes a bilhões de quilômetros), os
postulados da física clássica apresentam erros grosseiros, para nosso limita-
do dia-a-dia estes erros são desprezíveis.
De forma semelhante, apresentar críticas à obra de cientistas como
Pavlov, Skinner, Freud ou Jung dentro da psicologia ou a Lévi-Strauss,
Malinowski ou Weber nas ciências sociais não significa eliminar a possi-
bilidade de que os conhecimentos elaborados por eles, ou seus seguido-
res, possam ter qualidades explicativas. Pelo contrário, a função da crítica
(ao menos sua função ideal, repito) é a de procurar colocar estes conhe-
cimentos sob uma nova perspectiva, para assim verificar até que ponto
seu valor se mantêm inalterado, até onde vão seus limites; até que ponto
eles podem ser utilizados para compreender o fenômenos a que se refe-
rem, ou até que ponto servem apenas para justificar a existência deste
fenômeno e assim contribuirem para mantê-lo tal como se encontra.
Além disso, não é possível à ciência ignorar ou desprezar mesmo os co-
nhecimentos considerados ultrapassados num determinado momento, já que
a crítica se faz graças à existência do conteúdo criticado.

92 
O OLHAR NO ESPELHO 

A existência desta aparente continuidade entre os estudos científicos


não deve servir, entretanto, para ocultar as divergências e conflitos exis-
tentes no processo de construção do conhecimento, quer entre teorias
discordantes, quer entre interesses ideológicos opostos. O processo de
continuidade da ciência não implica concordância ou harmonia.
Ao contrário, acreditar na existência de um desenvolvimento harmônico,
ou pregar a necessidade desse desenvolvimento, via de regra é a forma mais
eficaz de ocultar a existência de situações contraditórias e de, através deste
ocultamento, impedir que a existência das contradições possa vir a gerar ou
a exigir transformações. Temos um exemplo desta forma de agir, e de suas
conseqüências, na proposta básica do empiricismo de construção de uma
ciência “neutra”, livre dos juízos de valor e das ideologias.
Já vimos como a negação do caráter político e humano da ciência age
justamente para ocultar o envolvimento da atividade científica na defesa dos
interesses de determinados grupos dentro da sociedade, em detrimento dos
interesses da sociedade como um todo.
Por outro lado, admitir a existência de visões sociais de mundo diferen-
ciadas, e sua influência na elaboração e aplicação dos conhecimentos, espe-
cialmente as referentes aos fenômenos sociais, longe de transformar a
ciência em pura ideologia, permite que as ideologias sejam pensadas como
um dado a mais, um elemento a mais na complexa rede dos elementos
significativos para a vida em sociedade.
Veja bem. Não estou dizendo que as ciências possam eliminar as ideo-
logias, pelo simples fato de torná-las conhecidas. Isto seria um processo
semelhante ao proposto pelo empiricismo, de superar as convicções políti-
cas, mantendo-as ocultas. Estou apenas afirmando que, já que as ideologias
existem, elas devem ser consideradas no processo de elaboração do conhe-
cimento.
Neste ponto podemos fechar o parêntese sobre a continuidade da cons-
trução do conhecimento científico e retomar nossa discussão sobre as visões
sociais de mundo e as ciências sociais.
Se vimos que dentro de uma mesma sociedade coexistem diferentes vi-
sões sociais de mundo, que estas visões se relacionam às concepções e pro-
jetos políticos das diferentes classes sociais e interferem no processo de
elaboração do conhecimento científico, podemos chegar agora às perguntas
que talvez você já esteja se fazendo, ou que virá a se fazer, provavelmente.

93 
O QUE É CIÊNCIA?

Qual a posição do cientista, então, frente aos conflitos ideológicos? Se não


há a possibilidade de se chegar ao conhecimento de “verdades” sociais abso-
lutas, inegáveis, então o cientista é livre para assumir a postura ideológica
que mais lhe convier? Qualquer postura ideológica é válida e capaz de pro-
duzir conhecimentos de igual qualidade?
Vamos por partes.
Quanto às duas primeiras perguntas, não é necessário repetir que o ci-
entista, visto como um indivíduo igual aos outros membros de sua coletivi-
dade, deve ter todos os direitos dos demais, inclusíve o direito à opção
política e ideológica (mesmo quando certa classe de mandantes não reco-
nhece esse direito). A última pergunta merece uma análise mais cuidadosa e
inclusíve pode ser dividida em duas, para isto.
Dizer que qualquer ideologia é válida implica ignorar que algumas delas
são falseamentos grosseiros da realidade, incapazes de resistir a qualquer
questionamento mais profundo. Vejamos um exemplo disto.
A história tem registrado um número muito grande de construções i-
deológicas que, embora sejam aparentemente diferentes, apresentam uma
base comum: partem do pressuposto de que determinada raça (aquela à
qual pertencem os elaboradores do pensamento, é claro) é qualitativamente
superior às demais. Esta pretensa superioridade serviria como justificativa
para a dominação, a exploração ou até o extermínio das raças consideradas
“inferiores”. Este tipo de raciocínio está presente, entre outros momentos,
na escravização de negros e índios no período colonial, no ideal da raça
ariana pura da Alemanha hitlerista, no regime segregacionista da África do
Sul, na estrutura social brasileira ou na construção dos primeiros testes
psicológicos destinados a medir a inteligência. Contudo, há duas falhas gra-
ves na base de elaboração dessas idéias. A primeira é que não há qualquer
evidência clara de superioridade de uma raça sobre outra. Todos os instru-
mentos elaborados até hoje para demonstrar esta superioridade serviam
muito mais para evidenciar os preconceitos de quem os elaborou. A segun-
da é que fica muito difícil, quando nos referimos aos seres humanos, definir
o que seja uma raça, e afirmar que um indivíduo pertence a ela, após todos
estes milênios de cruzamentos inter-étnicos.
As teorias elaboradas com base em ideologias racistas são, portanto, ca-
sos típicos de afirmações com pouca ou nenhuma base empírica, ou seja,
são conhecimentos elaborados muito mais a partir das convicções de seus

94 
O OLHAR NO ESPELHO 

autores do que de tentativas de construção de um modelo que procure


refletir, ao menos de forma aproximada, a realidade estudada.
A partir da análise deste exemplo, podemos lançar uma afirmação seme-
lhante à apresentada por Lowy (1987) (e que nem por isto deixa de estar sujei-
ta a discussões posteriores): quanto mais restritivos forem os interesses de
determinado grupo ou classe, quanto mais o seu projeto social tiver como
objetivo privilegiar os participantes do próprio grupo, em detrimento dos de-
mais elementos da sociedade, menor será a possibilidade de que este grupo
venha a construir um corpo de conhecimentos capaz de traduzir o todo da
sociedade. De forma inversa, quanto menos voltado apenas para sí mesmo for o
grupo ou classe social, quanto mais “universalizante” forem suas perspectivas,
maior será a chance de que o conhecimento construído a partir delas venha a
refletir corretamente a realidade.
Antes de prosseguirmos, preciso fazer uma observação para tentar evi-
tar que minha frase anterior seja interpretada de forma diferente da que eu
gostaria que fosse.
Ao citar grupos com perspectivas “universalizantes”, estou me referindo
àqueles que propõem e que efetivamente lutam pela superação das desi-
gualdades sociais, e não àqueles que se propõem a agir como se estas desi-
gualdades não existissem. Existe hoje um grande número de grupos e
entidades que, baseados em princípios místicos e/ou preocupações ecológi-
cas defendem a existência de uma “fraternidade universal”, pregam uma
“harmonia cósmica” que não levam em conta a existência, real e concreta, da
miséria e da exploração do homem e dos determinantes sociais destes fe-
nômenos. Ora, simplesmente propor que os homens se tratem como se
fossem iguais é mais uma forma de ocultar a existência das desigualdades. O
conhecimento gerado a partir desta perspectiva corre sérios riscos de ser
simples mistificação.
Há uma postura diferente, que consiste em admitir a existência de desi-
gualdades sociais, e em procurar compreender os mecanismos que as origi-
naram e as mantêm, para tentar superá-las. É a isto que estou chamando de
perspectiva universalizante.
Voltemos agora à afirmação de que esta perspectiva representaria um
ponto de vista privilegiado para a elaboração de conhecimentos científicos.
Lowy apresenta a este respeito uma ilustração bastante interessante, a qual
denomina de alegoria do mirante:

95 
O QUE É CIÊNCIA?

comparamos várias vezes o cientista social ao pintor de uma paisagem.


Ora, esta pintura depende em primeiro lugar do que o artista pode ver,
isto é, do observatório de onde ele se acha situado [...] Mais um
‘mirante’ ou ‘observatório’ (isto é, um ponto de vista de classe) é
elevado, mais ele permite ampliar o horizonte e perceber a paisagem em
toda sua extensão; as cadeias de montanhas, os vales, os rios não
conhecidos dos observatórios inferiores não se tornam visíveis senão do
cume. Evidentemente, nos limites determinados por seu horizonte de
visibilidade, os mirantes mais baixos permitem também ver uma parte
da paisagem (1987, p. 203).

Assim, existe a possibilidade de que mesmo conhecimentos produzidos


dentro de perspectivas sociais restritivas cheguem a alcançar algum grau de
validade. Porém, a possibilidade de que esses conhecimentos venham a re-
presentar a realidade como um todo, fica prejudicada pelas próprias limita-
ções de seu ponto de vista.
A alegoria do mirante, apesar de ser apenas uma ilustração, é bastante
útil, já que

[...] ela permite também “mostrar” (de forma imaginária) que: a) não
existe visão de paisagem que não esteja situada em um observatório
determinado; b) a síntese ou a média exata entre os níveis superiores e
inferiores não representa em nada um ponto de vista privilegiado; c) os
limites estruturais do horizonte não dependem da boa ou má vontade
do observador, mas da altura e da posição em que ele se encontra; d) o
pintor pode passar de um mirante a outro (“livre flutuação”), mas seu
horizonte de visibilidade dependerá sempre da posição em que ele se
encontra em tal ou qual momento; e) o observador situado no nível
superior pode dar conta tanto dos limites como das visões verdadeiras
dos níveis inferiores; f) o mirante não oferece senão a possibilidade
objetiva de uma visão determinada da paisagem” (Lowy, 1987, p. 204).

Para Lowy, o ponto de vista relativamente mais propício a atingir um


bom conhecimento da realidade social é... Não. Seria muito fácil apresentar
aqui a opinião daquele autor e as razões que o levam a fazer tal afirmação,
mas isto impediria que você procurasse chegar a uma conclusão sobre o
assunto. Prefiro, então, deixar que você reflita sobre as idéias que venho

96 
O OLHAR NO ESPELHO 

expondo ou mesmo que consulte outras fontes, talvez o próprio Lowy (1987
ou 1989). Fica aí a isca.
De qualquer forma, lembre-se que a adoção daquele ponto de vista a-
penas oferece uma possibilidade, uma chance de que o conhecimento pro-
duzido venha a representar o que poderíamos chamar de uma “verdade
objetiva” sobre os processos sociais e as ações humanas.

DESCREVER, CONTROLAR; COMPREENDER,


TRANSFORMAR

Há várias razões que podem fazer com que mesmo elaborações teóricas
baseadas na visão social de mundo mais universalizante sejam fracas, ou de
pouco alcance. Entre estas podemos citar, apenas como exemplo: a) as ideo-
logias não são elaborações estáticas e definitivas, mas estão em constante
processo de transformação, o que pode levar o pesquisador menos atualiza-
do a abordar problemas ou questões já superadas pela prática do grupo; b)
não é fácil distinguir, entre os vários discursos sobre os interesses de um
grupo ou classe social, qual é aquele que de fato representa estes interesses,
o que também pode levar a equívocos no processo de produção do conhe-
cimento; c) o próprio nível de preparo e de interesse do pesquisador é um
fator determinante na qualidade dos conhecimentos produzidos.
Haveria, então, algum critério que permitisse avaliar a qualidade de um
conhecimento, ou através do qual se pudesse ter uma idéia, ainda que apro-
ximada, do grau de “verdade” contido em uma teoria? Há sim.

A questão de saber se o pensamento humano pode atingir a verdade


objetiva não é uma questão teórica, mas uma questão prática. É na prática
que o homem deve provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a
terrenalidade de seu pensamento. A discussão sobre a realidade ou
irrealidade do pensamento, isolado da prática, é uma questão puramente
escolástica (Marx, apud Bazarian, 1985, p. 155).

Veja que voltamos praticamente ao início desta parte do texto. Come-


çamos por questionar a prática da ciência empiricista, e chegamos agora à
informação de que justamente a aplicação dos conhecimentos científicos

97 
O QUE É CIÊNCIA?

sobre as ações e aspirações humanas e os resultados dessa aplicação, são os


critérios através dos quais se pode analisar o valor da ciência, ou de outro
tipo qualquer de conhecimento.
Esta nova postura implica repensar as ciências sociais, não apenas a
partir de seus objetos, mas de seus próprios objetivos:

o verdadeiro e ativo cientista de hoje coloca-se questões como: “Qual o


tipo de conhecimentos que queremos e precisamos?”, “A que se destina
o conhecimento científico e quem dele se beneficiará?” (Fals Borda,
1982, p. 47).

Embora já tenhamos falado sobre os aspectos da elaboração e da aplica-


ção do conhecimento científico como forma de dominação, talvez seja con-
veniente relembrar que

a pesquisa empiricista consiste apenas na aplicação de regras de


contagem de opiniões ou sentimentos cuja fetichização do aspecto
técnico tenta dissimular os pressupostos ideológicos que, muitas vezes,
revelam alguma afinidade com o tecnocratismo. A pedido dos donos do
poder, os “curandeiros sociais” propõem remédios técnicos e
psicológicos (tipo manipulação de atitudes) para os males sociais cuja
dimensão política fica ignorada (Thiollent, 1987a, 20).

Se, agindo de forma contrária, optamos por lutar para que nossa ciên-
cia coloque-se a serviço das populações pesquisadas e não dos grupos que
visam controlar tanto essas populações quanto à produção do conhecimen-
to, temos que, ao mesmo tempo, propor uma nova metodologia, rever a
concepção que adotamos sobre o sujeito de nossas pesquisas e sobre o
papel desempenhado por ele na construção do conhecimento sobre ele
próprio. Antes de mais nada, é necessário refletir sobre as diferenças e se-
melhanças existentes entre o pesquisador e o pesquisado.

Uma das dificuldades fundamentais em uma atividade científica cujo


”outro lado” é constituído também por pessoas, sujeitos sociais quase
sempre diferentes do pesquisador (índios, negros, camponeses,
“populações marginalizadas”, operários, migrantes) é a de como tratar,
pessoal e metodologicamente, uma relação antecedente de alteridade

98 
O OLHAR NO ESPELHO 

que se estabelece e que, na maioria dos casos, é a própria condição da


pesquisa (Brandão, 1987, p. 8).

Antes de mais nada, é preciso admitir que o “outro” (o pesquisado) é


diferente do “eu” (o pesquisador). Longe de representar uma situação de
discriminação, como poderíam pensar os “universalistas”, o estabelecimento
desta distinção é fundamental para a pesquisa. Se “eu” e o “outro” somos
iguais, se nossas condições desiguais de existência não nos tornam desiguais,
não há porque estudá-lo; basta conhecer a mim mesmo, ou ao grupo a que
pertenço. Admitir ao menos a possibilidade dessa alteridade, dessa desigual-
dade, é a condição básica não só para perceber as diferenças existentes
como para admitir que elas continuem existindo; se o “outro” não é igual ao
“eu”, não há porque obrigá-lo a agir, pensar e sentir igual a mim. Não há
porque supor que a cultura ou os conhecimentos do cientista (ou da classe
dominante, caso ele os esteja assumindo), são necessariamente superiores
aos das populações estudadas e que por isso devam ser adotados integral-
mente por eles.
Ora, a ciência empiricista, através da utilização de métodos puramente
objetivos, ao mesmo tempo que tenta diminuir a participação do cientista
nas conclusões da pesquisa, tenta eliminar a possibilidade de que o indiví-
duo pesquisado venha a interferir no processo de elaboração de um conhe-
cimento que se refere a ele:

durante anos aprendemos que boa parte de uma metodologia científica


adequada serve para proteger o sujeito de si próprio, de sua própria
pessoa, ou seja: de sua subjetividade. Que entre quem pesquisa e quem
é pesquisado não exista senão uma proximidade policiada entre o
método (o sujeito dissolvido em ciência) e o objeto (o outro sujeito
dissolvido em dado) (Brandão, 1987a, p. 7).

Mesmo esta tentativa de anulação deliberada dos sujeitos na elaboração


da pesquisa, contudo, é feita de forma desigual: o cientista deve ter sempre
uma identidade, formada por seu nome, seus títulos e trabalhos realizados; o
indivíduo pesquisado, pelo contrário, além de se manter anônimo, deve, prefe-
rencialmente, ter suas opiniões e sentimentos pessoais diluídos entra as opini-
ões e sentimentos de várias outras pessoas que o cientista classifica como
pertencentes ao mesmo grupo.

99 
O QUE É CIÊNCIA?

Se o pesquisador empiricista tenta eliminar ao máximo a interferência de


suas opiniões no resultado da pesquisa, o faz por decisão pessoal, baseado em
sua aceitação do método que adota. O pesquisado, por outro lado, por mais
que queira valorizar suas interpretações e desejos, é impedido de fazê-lo, tanto
pela opção metodológica do cientista − que prefere acreditar que o coletivo é
igual à média dos indivíduos − quanto pela estrutura social vigente − que
estabelece uma clara separação entre alguns cidadãos com direitos e capacida-
de para pensar e falar −, e uma massa de meros trabalhadores despreparados
e desautorizados a raciocinar e a expressar-se. Numa pesquisa elaborada desta
maneira, quando

[...] o outro “popular“ aparece, a sua pessoa some no dado, ou se


dissolve num discurso que, de tanto pretender ser o da “classe“ ou da
“categoria“, ameaça não conter a fala nem o imaginário de ninguém.
Não é que o outro “popular“ não participe da pesquisa, ele não participa
sequer do ser pesquisado [...] Para serem constituídos como substância
das ciências sociais: “grupos sociais“, “culturas“, “movimentos“,
“processos“, “casos“, ou “movimentos“ populares, são igualmente
reduzidos, seja a um anonimato de seus sujeitos (aquilo mesmo que a
ciência recusa com horror quando fala de sí própria), seja a um
anonimato de suas próprias identidades sociais (Brandão, 1987a, p. 9-
10).

A desigualdade das participações no processo de construção do conheci-


mento oficial ao mesmo tempo reflete a desigualdade de papéis exigida para
a manutenção da estrutura social e contribui para sustentá-la. No entanto,

do lado subalterno do mundo, das culturas das gentes das classes


populares que habitam as comunidades indígenas ou rurais e vivem nas
periferias proletárias, cada vez com mais força chegam perguntas que
os próprios cientistas por muito tempo esqueceram de fazer. Perguntas
de pessoas reais, muito mais do que de categorias abstratas de
“objetos“, que parecem descobrir, com a sua própria prática, que devem
conquistar o poder de serem, afinal, o sujeito, tanto do ato de conhecer
de que têm sido o objeto, quanto do trabalho de transformar o
conhecimento e o mundo que os transformaram em objetos (Brandão,
1982. p. 10-11).

100 
O OLHAR NO ESPELHO 

Abre-se, portanto, uma perspectiva radicalmente diferente para a ciên-


cia: transformar-se num meio através do qual o pesquisado possa passar de
objeto de pesquisa e de controle social, em sujeito participante, tanto do
conhecimento a seu respeito quanto da elaboração de sua cultura e de sua
história. Considerar os indivíduos como capazes de assumir esta tarefa, a da
sua própria transformação em co-autores de suas condições de vida e em
atores dos acontecimentos sociais, implica que estes acontecimentos sejam
vistos não mais como fatos naturais, mas como processos humanos. A rela-
ção homem-sociedade-natureza, vista por esta outra ótica, representa uma
mudança no objeto das ciências sociais. Da mesma forma, o objetivo destas
fica alterado, já que não se propõem mais a conhecer para controlar, mas a
compreender para participar.
Há a necessidade, portanto, da elaboração de uma nova proposta meto-
dológica para as ciências sociais:

ela consiste em renunciar completamente a todos os recursos que


podem ser sugeridos pelas ciências da natureza e em forjar um
instrumento original de análise, adaptado à própria natureza do
objeto estudado, isto é, ao que pertence propriamente ao contexto
da ação. Ora, a ação não é um processo ‘em terceira pessoa’, passível
de ser analisável em termos de variáveis, de ser inscrito num
esquema de exterioridade, é um processo que é aplicação de um
sentido e que é constituído de um extremo ao outro por tal
aplicação. Se se quer chegar a um verdadeiro conhecimento da
realidade social, é necessário captá-la em sua própria produção, isto
é, na ação, e considerar esta última nela mesma, em sua efetuação,
não em seus efeitos [...] Assim, ao esquema da explicação, que utiliza
a linguagem do sistema, opõe-se o esquema da compreensão, que
utiliza a linguagem do sentido (Ladrière apud Bruyne; Herman;
Schoutheete, s/d., p. 10).

A adoção deste esquema de compreensão, oposto ao da explicação,


permite algumas posturas novas sobre a produção do conhecimento;

uma delas: só se conhece em profundidade alguma coisa da vida da


sociedade ou da cultura, quando através de um envolvimento − em

101 
O QUE É CIÊNCIA?

alguns casos, um comprometimento − pessoal entre o pesquisador e


aquilo, ou aquele que ele investiga. Outra: não é propriamente um
método objetivo de trabalho científico que determina a priori a
qualidade da relação entre os pólos de pesquisa, mas, ao contrário, com
freqüência é a intenção premeditada, ou a evidência realizada de uma
relação pessoal e/ou política estabelecida, ou a estabelecer, que sugere a
escolha dos modos concretos de realização do trabalho de pensar a
pesquisa. Uma última: em boa medida, a lógica, a técnica e a estratégia
de uma pesquisa de campo dependem tanto de pressupostos teóricos
quanto da maneira como o pesquisador se coloca na pesquisa e através
dela e, a partir daí, constitui simbolicamente o outro que investiga
(Brandão, 1987, p. 8).

Temos então, que: a) as ciências sociais podem se propor não mais co-
mo instrumentos de controle, mas como um elemento a mais nas tentativas
de superação das desigualdades sociais; b) dentro desta proposta o papel do
cientista não é mais o de ser o produtor privilegiado (quando não exclusivo)
dos conhecimentos válidos sobre seu objeto, mas um dos participantes na
construção desses conhecimentos que, afinal, se referem também a ele pró-
prio; c) os outros participantes seriam as próprias pessoas, quer entendidas
individualmente, quer como membros de grupos, classes ou categorias, mas
sempre vistas como portadores de conhecimentos diferentes dos do cientis-
ta, mas tão importantes quanto estes; d) para esta nova tarefa, os métodos
“objetivos” do empiricismo, derivados das ciências naturais, seriam inade-
quados; e) é necessário, então, que se procure desenvolver novas formas de
ação, mais adequadas aos novos objetivos e objetos.
Longe de representar um momento em que grupos de cientistas alta-
mente qualificados discutem suas propostas e estabelecem um método, ou
alguns deles, como os procedimentos adequados para a nova produção
científica, a discussão metodológica, dentro desta perspectiva de re-
humanização das ciências sociais deve ser um processo contínuo, do qual
participem todos os integrantes de cada novo projeto de pesquisa. Não há
como estabelecer um método, qualquer que seja ele, como o método das
ciências. Vejamos por quê.
O estudo de uma realidade em constante transformação exige que os ins-
trumentos e procedimentos utilizados sejam capazes de acompanhar estas trans-
formações. Diferentes momentos da história social ou individual, processos

102 
O OLHAR NO ESPELHO 

sociais diferenciados, devem ser compreendidos com suas características próprias


e através de formas de ação adequadas a elas.
Além disso, estabelecer a forma tradicional de realização de pesquisas
(ou qualquer outra adotada pelo cientista) como a única correta para a
compreensão da realidade social implicaria concentrar o poder de tomada
de decisões sobre a pesquisa nas mãos do cientísta, além de produzir, impli-
citamente, a noção de que o conhecimento deste, por ter sido obtido de
maneira “correta”, seria superior ao dos demais. Com isto, estaríamos caindo
novamente naquele processo de elitização do saber que combatemos anteri-
ormente.
Mais importante, então, que o papel do método, entendido como forma
padronizada de agir, passa a ser o papel da metodologia, enquanto discussão
dos procedimentos adotados, das razões que levaram à sua adoção e dos
resultados obtidos com isso, tanto em termos do conhecimento quanto dos
resultados alcançados no processo de transformação social. Desde este pon-
to de vista, a metodologia é

[...] um exercício constante de crítica e de autocrítica, é uma


problematização imorredoura dos caminhos para a ciência, é uma
inquirição impertinente das incongruências científicas (Demo, 1980, p. 11).

A metodologia é a área que discute a validade dos procedimentos cien-


tíficos, que procura estabelecer os critérios da cientificidade, enfim, é a área
da ciência encarregada de fazer a crítica da própria ciência. No entanto, com
a proposta do empiricismo de definição de um só tipo de objeto e de ado-
ção de um único método para todas as ciências, a metodologia ficava resu-
mida à tarefa de verificação da adequação dos procedimentos adotados, face
às exigências da experimentação, ou seja, a ela caberia apenas discutir se o
método havia sido bem aplicado, ou se poderia ser aplicado de forma mais
rigorosa, mas não haveria espaço para se discutir o valor do próprio méto-
do.
Para os adeptos da re-humanização das ciências humanas, pelo contrá-
rio, as discussões sobre a forma de realização de uma pesquisa, os caminhos
a seguir e os passos a adotar devem ser uma preocupação constante, pela
influência que têm no resultado final da pesquisa. Mais que isso, a preocu-
pação com o papel desempenhado por todos os participantes da pesquisa, e

103 
O QUE É CIÊNCIA?

os significados políticos e pedagógicos destes papéis, faz com que estes


estejam sendo constantemente revistos e se for o caso, modificados.
Não estranhe que eu tenha dito que os papéis representados pelos par-
ticipantes de uma pesquisa têm também um significado pedagógico. Pensar,
em conjunto com os outros participantes da pesquisa, sua própria realidade;
aprender (ou reaprender) a pensar a sociedade como um fruto do trabalho
humano; passar a ver a si próprio como, ao mesmo tempo, produtor e pro-
duto do seu meio social e assim descobrir-se como capaz de participar não
só das tarefas de execução, mas também das tomadas de decisões que en-
volvem a ele mesmo e ao seu grupo, é um processo educacional, tanto
quanto (ou talvez até mais que) a aquisição de habilidades ou de outros
conhecimentos. A escolha de um procedimento inadequado para as condi-
ções do grupo naquele momento, ou mesmo um planejamento adequado,
mas elaborado apenas pelo cientista (ou cientistas) podem dificultar ou até
mesmo impedir que a produção e a difusão do conhecimento se concreti-
zem.
Não há como, portanto, se efetuar o planejamento completo, ou mesmo se
optar por um método específico, antes da realização da pesquisa. O poder de
escolha não está mais concentrado nas mãos do cientista, embora esta também
não deixe de ser uma responsabilidade sua.
Algumas formas de pesquisa, conhecidas como pesquisa-participante e
pesquisa-ação, têm sido utilizadas com bastante freqüência. Embora relativa-
mente diferentes entre si, nos aspectos de execução,

um dos principais objetivos dessas propostas consiste em dar aos


pesquisadores e grupos de participantes os meios de se tornarem
capazes de responder com maior eficiência aos problemas da situação
em que vivem, em particular sob a forma de diretrizes de ação
transformadora (Thiollent, 1985, p. 8).

Elas não devem ser encaradas, contudo, como as únicas ou as melhores


formas de realização de uma pesquisa.

O SOCIAL E A CIÊNCIA

104 
em que vivem, em particular sob a forma de diretrizes de ação
transformadora (Thiollent, 1985, p. 8).

Elas não devem ser encaradas, contudo, como as únicas ou as melhores


formas de realização de
O  uma
O L Hpesquisa.
AR NO ESPELHO 
O OLHAR NO ESPELHO 
O Scapaz
Ser O C Ide
A Lelaborar
E A formas
C I Ê N adequadas
CIA para a produção de conhecimen-
tos éSer
tãocapaz
importante
de elaborar formas adequadas para destes,
quanto a própria produção quando
a produção de oconhecimen-
objetivo é
auxiliar o indivíduo pesquisado a
tos é tão importante quanto a própria produção destes, quando o objetivo é
auxiliar o indivíduo pesquisado a
conhecer a sua própria realidade. Participar da produção deste
conhecimento e tomar posse104 
dele. Aprender a escrever a sua história
conhecer a sua própria realidade. Participar da produção deste
conhecimento e tomar posse dele. Aprender a escrever a sua
de classe. Aprender a reescrever a História através da sua história.
história
de no agente
Ter classe. que pesquisa
Aprender uma aespécie
a reescrever gente que
Históriadeatravés serve.
da sua Uma
história.
gente aliada, armada de conhecimentos científicos que
Ter no agente que pesquisa uma espécie de gente que serve. Uma foram sempre
negados ao povo,
gente aliada, àqueles
armada para quem a pesquisa
de conhecimentos científicosparticipante
que foram − onde,
sempre
afinal, pesquisadores-e-pesquisados são sujeitos de
negados ao povo, àqueles para quem a pesquisa participante − onde,um mesmo
trabalho comum, ainda que com situações
afinal, pesquisadores-e-pesquisados e tarefas
são sujeitos de umdiferentes
mesmo−
pretende ser um instrumento a mais de reconquista
trabalho comum, ainda que com situações e tarefas diferentes − popular
(Brandão,
pretende 1982, p. 11).instrumento a mais de reconquista popular
ser um
(Brandão, 1982, p. 11).
Esta última frase pode nos ajudar a compreender o papel do cientista
nestaEsta
elaboração de conhecimentos.
última frase pode nos ajudarJá avimos como eleo perde
compreender o status
papel do de
cientista
detentor do únicodeconhecimento
nesta elaboração conhecimentos. válido sobrecomo
Já vimos a realidade
ele perdesocial, e como
o status de
deve abdicar do poder (mas não da tarefa) de planejar
detentor do único conhecimento válido sobre a realidade social, e como a pesquisa e de for-
necer as explicações
deve abdicar do poder para(masos não
processos ocorridos.
da tarefa) Isto não
de planejar significae que
a pesquisa ele
de for-
deva renunciar à sua identidade de cientista ou a seus
necer as explicações para os processos ocorridos. Isto não significa que ele conhecimentos
teóricos ou metodológicos,
deva renunciar e muito de
à sua identidade menos que possa
cientista ou a abrir
seus mão desses co-
conhecimentos
nhecimentos. Sua tarefa é justamente a de trazer para
teóricos ou metodológicos, e muito menos que possa abrir mão desses as populações envol-
co-
vidas no processo
nhecimentos. de pesquisa,
Sua tarefa alternativas
é justamente de reflexões
a de trazer para ase populações
de procedimentos
envol-
que,
vidasnormalmente,
no processo de elaspesquisa,
não dispõem.
alternativas de reflexões e de procedimentos
Recusar à ciência
que, normalmente, elas não o status de único conhecimento válido ou mesmo de
dispõem.
um corpo
Recusarde àteorias
ciênciaacima das de
o status ideologias, não implica desprezar
único conhecimento válido ou omesmo
seu valor
de
como um conjunto organizado e dinâmico de idéias,
um corpo de teorias acima das ideologias, não implica desprezar o seu capazes de auxiliar,
valor
sem
comodúvida, a compreensão
um conjunto organizado dos eprocessos
dinâmicosociais, quer capazes
de idéias, no níveldeindividual,
auxiliar,
quer no nívela coletivo.
sem dúvida, compreensãoDa mesma forma, retirar
dos processos sociais,dosquer
cientistas
no nívelseuindividual,
papel de
elaboradores
quer no nívelde estruturas
coletivo. de controle
Da mesma forma, social, mesmo
retirar que sob oseu
dos cientistas disfarce de
papel de
elaboração de conhecimentos “neutros”, não significa negar
elaboradores de estruturas de controle social, mesmo que sob o disfarce de a eles qualquer
possibilidade
elaboração de(ou responsabilidade)
conhecimentos de participação
“neutros”, não significasocial.
negarPelo contrário,
a eles qualquero
conhecimento
possibilidade (ou responsabilidade) de participação social. Pelo contrário,sero
científico só terá sentido se puder, de alguma maneira,
reapropriado
conhecimentopela comunidade
científico só teráousentido
indivíduo a que se
se puder, de refere,
algumae maneira,
checado por ser
eles, em suas práticas.
reapropriado pela comunidade ou indivíduo a que se refere, e checado por
eles, em suas práticas.

105 
105 
O QUE É CIÊNCIA?

É preciso, portanto, cuidar para que a ciência, ao assumir o papel polí-


tico que antes lhe era negado, não perca seu caráter científico e se trans-
forme em pura política. Este é um ponto extremamente delicado na
definição das ciências sociais e que tem sido objeto de longas (e acirradas)
discussões entre os adeptos do empiricismo e seus críticos. Aparentemente
se teria, por um lado

[...] uma proposição visando a dar ao conhecimento da realidade social


um caráter verdadeiramente científico, mas à custa de um
empobrecimento considerável do próprio objeto que se desejaria
conhecer melhor. E, por outro lado [...] uma proposição que pretenderia
encontrar esse objeto em seu núcleo mais específico, mas à custa de um
abandono de tudo o que está ligado à idéia de ciência (Ladrière apud
Bruyne; Herman; Schoutheete, s/d., p. 12).

Apenas aparentemente, já que essa colocação considera como científicos


apenas os métodos “naturais”, “objetivos”, que, como já vimos, não são ne-
cessariamente os únicos válidos para todos os objetos. De qualquer forma,
ela deve servir como alerta para o risco de que, ao aceitarmos para o co-
nhecimento científico um papel nas atividades políticas, não nos limitemos
ao ativismo, deixando de lado a busca do conhecimento.
É necessário que se tenha sempre presente alguns critérios básicos que
procurem garantir a qualidade dos conhecimentos elaborados. Esses crité-
rios podem ser, por exemplo, os seguintes:

a) Coerência: significa falta de contradição, argumentação estruturada,


corpo não contraditório de enunciados, desdobramento do tema de
forma estruturada, dedução lógica das conclusões [...] b) Consistência:
significa a capacidade de resistir a argumentações contrárias; difere da
coerência porque esta está mais próxima do rigor lógico, enquanto a
consistência se liga também à atualidade da argumentação [...] c)
Originalidade: significa uma produção não tautológica, ou seja, não
meramente repetitiva, representando real contribuição ao conhecimento
[...] d) Objetivação: significa a tentativa de reproduzir a realidade assim
como ela é, mais do que como gostaríamos que fosse. Como não
aceitamos a possibilidade de um conhecimento objetivo, substituímos o
conceito de objetividade pelo de objetivação [...] Esses quatro critérios

106 
O OLHAR NO ESPELHO 

são tentativos, não há razão final para que sejam apenas quatro ou para
que sejam obrigatoriamente estes (Demo, 1980, p. 16).

O importante é que, em nenhum momento se deixe de lado a preocu-


pação com a qualidade dos conhecimentos que se está produzindo.
Os limites da ciência são sempre objeto de discussão; não há como es-
tabelecer, de forma clara e definitiva, a barreira que separa o conhecimento
científico das demais formas de conhecimento, especialmente quando se
trata de estudar o homem e a sociedade.
É justamente por isto que o caráter de cientificidade de algum co-
nhecimento não é estabelecido de forma automática e unânime apenas por
obedecer a critérios como os que citamos. É preciso também que ele passe
pelo crivo da própria comunidade científica, e a avaliação dos cientistas
tidos como competentes tem um peso muito grande no reconhecimento do
que é científico.
Temos, então, além daqueles critérios internos de delimitação dos e-
nunciados científicos, contidos nos próprios enunciados, um outro, denomi-
nado de intersubjetividade que representa

[...] a ingerência da opinião dominante dos cientistas de determinada


época e lugar na demarcação científica [...] Em si, qualquer enunciado
seria científico ao satisfazer os critérios internos e não dependeria da
boca que o formula. O mesmo enunciado dito pelo professor ou pelo
aluno teria a mesma validade, em si. Socialmente, porém, isso raramente
acontece. Em pessoas célebres, asneiras históricas podem tornar-se
encantos de inteligência, enquanto num aluno elas são asneiras mesmo.
Intersubjetividade significa, portanto, a vigência do argumento de
autoridade em ciência. Sendo esta um fenômeno social e sendo a
sociedade um fenômeno em que é importante a variável dominação,
esta não pode estar ausente do fenômeno científico. A ciência não é algo
diferente daquilo que os cientistas produzem (Demo, 1980, p. 17).

Afirmar a existência de processos de dominação na sociedade e na ciên-


cia não implica concordar com que eles continuem existindo, nem em con-
siderar que sejam inevitáveis ou que não possam ser questionados. Pelo
contrário, a busca de transformações sociais passa pela modificação das
relações humanas em todos os níveis.

107 
O QUE É CIÊNCIA?

Para que isto aconteça, é necessária uma constante busca de superação das
aparências, um questionamento permanente das “verdades” estabelecidas, mesmo
que pela própria ciência. Tornar claras as razões e os efeitos dos processos soci-
ais que no dia-a-dia se apresentam como “naturais” e inquestionáveis talvez seja
uma das principais tarefas das ciências humanas.

Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham é com


o óbvio. O negócio deles − nosso negócio − é lidar com o óbvio [...] O
ruim desse procedimento é que parece um jogo sem fim. De fato, só
conseguimos desmascarar uma obviedade para descobrir outras, mais
óbvias ainda (Ribeiro, 1978, p. 9).

Esta tarefa exige preparo, muito preparo. Embora, como já vimos, al-
gumas visões sociais sobre a realidade possam vir a oferecer uma perspecti-
va mais ampla para a compreensão da realidade, o grau de conhecimentos
do cientista, a capacidade desenvolvida por ele para manejar estes conheci-
mentos e sua disposição em adquirir e desenvolver novas informações e
habilidades são requisitos indispensáveis para um trabalho científico signifi-
cativo. A mera opção por esta ou aquela postura não garante, isoladamente,
a qualidade da pesquisa ou da teoria produzida.
Convém lembrar que

[...] as chances de contribuir na produção da verdade dependem de


dois fatores principais: o interesse que se tem em saber e em fazer
saber a verdade (ou inversamente, em ocultá-la ou ocultá-la de si) e
a capacidade que se tem de produzi-la (Bourdieu apud Lowy, 1987,
p. 208).

108 
APÍTULO 4

SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA: O


DISCURSO DAS CIÊNCIAS

A espécie de conhecimento científico necessário ao cidadão não


é o conhecimento técnico do cientista profissional, mas uma
compreensão geral que lhe permita reconhecer, avaliar e de
algum modo antecipar as conseqüências sociais da ciência e da
tecnologia (Dubos apud Régis de Morais, 1983, p. 16).

Você leu as frases que servem de abertura para este texto? Suponho
que sim.
Ao fazer isto, você passou a fazer parte de uma cadeia de pessoas que
entraram em contato com o pensamento de um mesmo autor, e que, suces-
sivamente o foram reproduzindo e passando adiante. O texto original, escri-
to em francês, foi traduzido para o português, lido (entre outras pessoas)
pelo autor que o cita em primeira mão e incluído em seu livro. Foi a partir
daí que eu o reproduzi e estou apresentando a você.
Apesar deste trajeto todo, como se trata de um texto escrito − e, na su-
posição de que todos os que o traduziram ou reproduziram tomaram o
cuidado de não alterá-lo − há razões para crer que o texto lido por você
conserve o mesmo sentido do texto original, e reflita com bastante fidelida-
de o pensamento expresso pelo seu autor.
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

Imagine se ao invés de num texto escrito, o mesmo pensamento tivesse


sido colocado verbalmente por seu autor e repassado, também de forma
verbal, através dos anos e de vários países, até chegar aqui. Provavelmente o
que você ouviria (se é que ouviria algo) não teria muito a ver com a frase
original (se é que teria algo). Com certeza o nome do autor da frase já se
teria perdido há muito, ou talvez até já fosse outro. O mais provável, mes-
mo, é que a frase já se tivesse perdido completamente.
Imagine, por outro lado, que o autor (ou um de seus reprodutores) tenha
deixado de distinguir entre conhecimento científico e conhecimento técnico,
denominando a ambos simplesmente como conhecimentos, e ao invés de usar
os termos “cidadão” e “cientista profissional”, tenha-os substituído por “um
tipo de pessoas” e “outro tipo de pessoas”. A frase ficaria, no mínimo, confusa;
perderia sua clareza original e possibilitaria a existência de duas ou mais in-
terpretações diferentes, não é?
No primeiro caso, o texto teria se perdido por falhas na sua reprodução.
Neste segundo, as falhas teriam ocorrido já na fase de sua produção. O uso
de palavras pouco claras, com significado impreciso, deturpariam a intenção
original do autor e alterariam o significado da frase.
Estou lançando mão destas ilustrações como forma de iniciar algumas
reflexões sobre um problema crucial para a prática da ciência: a linguagem.
Todos nos comunicamos de várias maneiras, em nossas atividades coti-
dianas. Nossa vida em sociedade depende fundamentalmente de nossa capa-
cidade de produzir e enviar, receber e compreender mensagens das mais
diversas naturezas. Compreender os sinais gráficos que compõem este texto
é apenas uma das habilidades que você possui e utiliza em seus processos
de trocas de informações. Diferentes aspectos da vida em sociedade exigem
procedimentos diferenciados de comunicação e delimitam assuntos específi-
cos para serem comunicados. Gestos e palavras utilizados durante um jogo
de futebol, por exemplo, dificilmente seriam considerados adequados para
uma cerimônia de formatura, um culto religioso, ou mesmo como forma de
se tentar iniciar um namoro.
Você, com certeza, consegue perceber estas distinções e utilizar formas
de comunicação (ao menos em parte), apropriadas a cada uma destas (e a
inúmeras outras) situações.
Por que, então, elaborar um texto que fale de um assunto que todos
nós já dominamos?

110 
O OLHAR NO ESPELHO 

Porque a prática da ciência exige a utilização de um tipo de linguagem


bastante diferenciado da linguagem que todos utilizamos em nosso dia-a-
dia, uma reflexão muito mais aprofundada sobre os termos utilizados, a
construção das frases e sua divulgação.
A linguagem popular, em qualquer de suas variações, é extremante di-
nâmica. Palavras têm vários significados ao mesmo tempo ou mudam seu
significado de uma época para outra. A mesma frase, dita em ocasiões dife-
rentes, ou com uma outra entonação, pode ser interpretada de forma total-
mente diferente.
Pense, por exemplo, na palavra “mora”, colocada nas frases cotidianas
“onde você mora?”, “rendendo juros de mora” e na canção que diz “mora na
filosofia: pra que rimar amor e dor?” Pense na expressão “tudo bem”, acom-
panhada por um largo sorriso, ante a pergunta de um amigo querido; por
um olhar ameaçador diante da interrupção forçada de uma discussão violen-
ta; e por uma expressão de impotência, frente à recusa de algo importante.
A mesma palavra ou frase, em cada uma destas situações, tem um significa-
do diferente.
Esta espécie de indisciplina da linguagem popular é adequada para os
contatos do dia-a-dia, ricos em significados e em emoções, mas, se transpor-
tada para a atividade científica, poderia impedir qualquer avanço do conhe-
cimento, ou, no mínimo, transformar os centros de pesquisa numa espécie
de Torre de Babel, onde ninguém se entendesse. A ciência precisa de uma
linguagem um pouco mais estável, mais fria e “disciplinada”, para garantir a
qualidade de sua comunicação, normalmente baseada em informações mais
claras e precisas do que as da comunicação cotidiana.
Daí a importância de se pensar sobre o assunto.
Talvez o ideal fosse elaborar alguns textos sobre todo o processo de
comunicação nas ciências, mas a comunicação como um todo é um processo
muito vasto, que envolve um número muito grande de aspectos e variáveis.
Prefiro, como este é um texto introdutório, me deter na linguagem (que é
apenas um dos aspectos envolvidos nos processos de comunicação), já que
ela é o instrumento básico para a formulação, o registro e a divulgação das
afirmações científicas. Mesmo com esta limitação de tema, pretendo que
este texto sirva como uma iniciação ao assunto, sem qualquer pretensão de
explorá-lo a fundo.

111 
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

Portanto, não se contente com a leitura apenas deste texto.

A LINGUAGEM DA CIÊNCIA
(PRECISÃO OU COMPLICAÇÃO?)
Alguns críticos são tão cínicos que sugerem que a ciência é
uma maneira de expor clichês com palavras de várias sílabas
para que ninguém possa entender o que significa (Goode; Hatt,
1977, p. 58).

[...] Toda experiência, externa ou interna, deixa em nós um sinal do que


aconteceu, denominado idéia ou conceito. Estes dois termos, sinônimos,
indicam a forma mais simples do pensamento e pela qual conhecemos
as coisas e estas ficam representadas em nossa mente (Rudio, 1980, p.
19).

As palavras que usamos para nomear objetos, seres ou acontecimentos


são a forma resumida que empregamos para denominar estes fenômenos,
descrevê-los e distinguí-los dos demais, e mais ainda, para sintetizar as
impressões que eles nos causaram. Cada uma destas palavras resume, em si,
um conceito. Se a cada vez que fôssemos nos referir a algo que conhece-
mos, direta ou indiretamente, tivéssemos que realizar todas essas operações
de descrição, delimitação e caracterização, qualquer conversa se transforma-
ria em um discurso sem fim e qualquer raciocínio que envolvesse três ou
mais objetos ou fatos já teria se transformado em uma enciclopédia.
Experimente, por exemplo, descrever um objeto simples como um lápis,
caracterizando todos os conceitos utilizados nesta descrição.
Você, provavelmente, dirá que se trata de um objeto cilíndrico, compos-
to de uma capa de madeira e um interior de grafite, que serve para escre-
ver, ou algo parecido. Imagine, agora, se você tivesse que dizer tudo isto a
cada vez que fosse se referir a um lápis. Vamos mais longe. Nessa descrição
que elaborei para o conceito lápis, estão contidos nove outros conceitos
(objeto, cilíndro, composição, unidade, capa, madeira, grafite, servir, escre-
ver). Tente descrever e caracterizar cada um deles.

112 
O OLHAR NO ESPELHO 

A tarefa é quase impossível, já que cada descrição, provavelmente, con-


teria outros tantos conceitos que também teriam que ser descritos com a
utilização de outros e assim sucessivamente.
O uso das palavras que sintetizam conceitos serve justamente para evi-
tar essa complicação. Cada uma destas palavras é uma espécie de forma
taquigráfica, resumida, de exprimir toda uma série de impressões e informa-
ções sobre um objeto ou processo qualquer.
Os conceitos que utilizamos em nossa linguagem cotidiana são bastante
elásticos, ou seja, podem servir para indicar uma série bastante grande de
objetos ou processos, desde que estes tenham algum grau de semelhança.
Talvez o exemplo mais extremo da amplidão de significados de um conceito
na linguagem popular seja a palavra “coisa”. Ela pode significar praticamente
tudo, ou como diríamos popularmente, “coisa” pode ser qualquer coisa.
Já dissemos, na introdução, que a ciência não pode se servir de conceitos
assim amplos e de significado tão variável. Tentemos ver por quê.
As ciências, de forma geral, tentam descrever com a maior precisão
possível os fenômenos por elas estudados. Embora haja discussões sobre o
grau de precisão desejável para cada tipo de fenômeno, há praticamente um
acordo entre os cientistas de que a precisão é uma qualidade a ser buscada.
Portanto,

em ciência os conceitos devem ser comunicáveis num sentido muito


especial. Eles não devem dar origem só a um vago “sentimento” mas
serem construídos de maneira que todos os seus componentes sejam
conhecidos (Goode; Hatt, 1977, p. 57).

É preciso que o cientista, ao se propor a estudar um aspecto específico


de um fenômeno qualquer, tenha muito claro qual é o fenômeno e qual é o
aspecto. Emoção, sensação e percepção são conceitos que se referem a as-
pectos diferentes da vida psíquica do homem. Estas diferenças não podem
ser ignoradas por quem pretenda conhecer qualquer um deles, ou todos. A
mesma coisa se pode dizer, por exemplo, sobre comportamento, atitude e
pensamento, ou sobre castas, classes sociais e estamentos, comunidade e
sociedade etc.
Um outro dado sobre os conceitos da linguagem popular é que grande
parte deles é fruto de experiências particulares ou estão carregados de signi-

113 
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

ficados pessoais, tornando-se muito mais juízos de valor do que conceitos


“puros”.

O conceito é diferente do juízo. Quando, por exemplo, alguém diz o que


entende por aluno e por bom, está emitindo conceitos. Mas quando
afirma: “o aluno é bom”, está formulando um juízo (mais
apropriadamente está apresentando uma proposição, que é a
manifestação visível do juízo, formulado em sua mente. O juízo,
portanto, é uma relação entre conceitos (Rudio, 1981, p. 20).

Nem toda relação entre conceitos, entretanto, é um juízo. É possível de-


senvolver frases que sejam apenas descrições da forma como os fenômenos
(representados nos conceitos) se relacionam entre sí. Dizer, por exemplo,
que uma substância química é composta pelos elementos A, B e C em tais e
tais proporções, ou que as células de determinado tecido são diferentes em
forma, tamanho e composição das de outro tecido, é apenas uma maneira
de apresentar características desta substância ou destas células, e não impli-
ca um julgamento delas.
Podemos dizer, então, que o juízo é uma relação entre conceitos que
exprime muito mais uma convicção de quem o emite, do que uma efetiva
característica do fenômeno a que se refere.
Na linguagem popular raramente há qualquer esforço para distinguir
os juízos dos conceitos. Pelo contrário, grande parte dos termos utilizados
são carregados de significados avaliativos, de conotações positivas ou
negativas. Estas conotações podem variar, e normalmente variam muito,
dependendo de quem formula o juízo. Tome como exemplo a palavra “co-
munista”. Dificilmente ela é utilizada, no nosso cotidiano, simplesmente
como forma de indicar os simpatizantes da ideologia comunista ou os
membros dos partidos que a adotam. Via de regra, sua utilização tem
muito mais a intenção de ofender ou depreciar aquele que é classificado
como “comunista”. Em algumas outras vezes (poucas) é usada como for-
ma de elogiar, normalmente quando utilizada pelos próprios adeptos ou
simpatizantes do comunismo. Em qualquer destes casos, a palavra é usada
muito mais como uma forma de avaliação, de classificação numa escala de
valores, do que como uma descrição.
Não seria correto dizer que o discurso da ciência deve ser isento de juí-
zos e constituído apenas por conceitos, já que nem sempre é fácil distinguir

114 
O OLHAR NO ESPELHO 

uns dos outros e nem é possível que um ser humano se dispa de todos os
seus valores ao praticar a ciência.
Freqüentemente, emitimos afirmações a respeito de assuntos sobre os
quais as informações de que dispomos são poucas, incompletas ou mal fun-
damentadas. Em outras situações, opinamos sobre temas nos quais temos
interesses diretos, seja de cunho mais amplo, ou mesmo interesses pessoais,
mais restritos. No primeiro caso, provavelmente, emitiremos juízos típicos do
senso comum. No segundo, nos aproximaremos dos juízos ideológicos. Proces-
sos semelhantes a esses, com semelhantes conseqüências, são encontrados
também nos discursos científicos.

[...] Em toda produção científica encontramos suficiente senso comum e


suficiente ideologia. Encontramos senso comum porque não somos
capazes de discursar sobre todos os assuntos com conhecimento
especializado. De muitas coisas só sabemos por terceiros, por leituras
passageiras, por tradição não discutida etc. Qualquer tema de pesquisa
é bastante amplo, para nos colocar questões que escapam à nossa
especialização [...] Encontramos ideologia na produção científica porque,
sendo a ciência um fenômeno social, não pode escapar ao
posicionamento político, manifesto ou latente. Em boa parte o tirocínio
universitário faz-se com a finalidade de depurar as inclinações
ideológicas, mas esta decantação é apenas relativa; caso contrário,
cortaríamos com a ideologia o próprio interesse científico (Demo, 1980,
p. 15).

A tarefa da ciência, portanto, é muito mais a de tentar tornar claro, sem-


pre que possível, o que é conceito e o que é, ou pode ser juízo, do que se
propor a eliminar total e definitivamente, os juízos de seu discurso.
Neste aspecto, o que distingue o discurso científico do discurso popular
não é a ausência de juízos de valor em um e sua presença no outro, mas o
esforço deliberado e constante, embora nunca totalmente bem sucedido, que a
ciência deve empreender para tornar seus conceitos cada vez mais claros, bem
definidos e cada vez mais capazes de refletir os fenômenos que tentam des-
crever. O desenvolvimento da linguagem popular, normalmente, não se dá a
partir deste tipo de objetivos.

115 
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

Mesmo com essas preocupações todas em relação a suas qualidades, os


conceitos científicos por vezes apresentam características que podem dificul-
tar sua compreensão e utilização.
A primeira delas é que

devido às diferenças entre o esquema do senso comum e a maneira


científica de perceber o mundo, a definição cuidadosa tem uma
qualidade paradoxal. Facilita a comunicação entre as ciências, mas
também ergue barreiras para o leigo compreender os conceitos
científicos (Goode; Hatt, 1977, p. 58).

Há duas destas barreiras que costumam confundir o iniciante na ciên-


cia, ou no mínimo dificultar sua compreensão dos discursos científicos. Uma
ocorre quando a ciência, em sua evolução, lança mão de termos que não têm
correspondentes na linguagem utilizada pelo iniciante até então. Conceitos
complexos como os de ontologia, mais-valia ou subconsciente, ou mesmo
vocábulos de outras línguas, como insight ou survey, utilizados pelos cien-
tístas, normalmente dificultam a compreensão dos leigos. Daí a queixa, fre-
qüente, de que a ciência usa uma linguagem difícil.
Outra barreira ocorre na situação inversa, quando a ciência e a lingua-
gem comum utilizam o mesmo vocábulo, mas com significados diferentes.
Há situações em que conceitos elaborados pela ciência passam a fazer parte
da fala popular, mas com significados bem mais amplos e menos definidos.
É o caso, por exemplo, de palavras como trauma, que na teoria freudiana
representa uma experiência extremamente marcante e na qual esteja envol-
vida grande carga emocional e psíquica, capaz de estender seus efeitos por
longos períodos na vida do indivíduo, a ponto de impedí-lo, por vezes, de
levar uma existência “normal”, e que na linguagem popular é usada para
descrever qualquer susto, mesmo que de pouca intensidade, ou qualquer
medo sem maiores conseqüências.
Há outras situações em que a ciência se apodera de termos da linguagem
popular, conferindo-lhes outro significado, mais específico e preciso, e por vezes
diferente do original. Atitude, por exemplo, na linguagem popular, é um sinôni-
mo de comportamento. Para a psicologia, atitude é uma predisposição para agir
de determinada maneira, ou seja, é um dos componentes do processo de ação,
mas diferente do comportamento propriamente dito, e anterior a ele. É muito

116 
O OLHAR NO ESPELHO 

comum que o estudante de psicologia se confunda com esta dupla utilização do


termo.
Não são apenas os iniciantes, contudo, que encontram dificuldades em
compreender a linguagem da ciência. Outra característica dos conceitos
científicos contribui para que os próprios cientistas se sintam, por vezes,
pouco à vontade:

as várias ciências [...] desenvolvem especializações que dependem de


fatos tão abstratos e complicados, que nenhum cientista pode conhecer
todos. Como cada especialização engloba fenômenos diferentes, uma
variedade de vocabulários científicos foi desenvolvida para comunicar
esses fatos especiais. A lacuna entre essas várias ciências varia,
dependendo da proximidade de relações entre os quadros de referência.
Entre sociologia e as ciências físicas, a lacuna é um abismo (Goode;
Hatt, 1977, p. 58).

As barreiras que se erguem entre dois jargões científicos são semelhan-


tes àquelas que existem entre a linguagem popular e a da ciência. Também
aí ocorre, por vezes, que os termos usuais de uma linguagem (ou talvez
fosse melhor dizer de um dialeto próprio de uma ciência) não terem cor-
respondente no dialeto de outra, ou no seu vocabulário. Deve ser tão fácil
para um antropólogo entender o que é um fóton, quanto é para um físico
ou um astrônomo entender o que seja uma família punaluana. Em outras
vezes, termos idênticos são utilizados com significados totalmente diferentes
por cientistas de áreas distintas. A palavra força, por exemplo, é usada tanto
pela física quanto pelas ciências sociais, denominando fenômenos totalmente
diferentes.
Por vezes, dentro de uma mesma área de estudos, ou de um grupo de
ciências afins, ocorre um outro processo que contribui também para dificul-
tar, para os próprios cientistas, a compreensão de alguns conceitos. Grupos
diferentes, partindo de diferentes abordagens sobre um mesmo fenômeno,
desenvolvem conceitos diferentes para descrevê-lo. Apenas como exemplo,
em um único livro sobre o problema da marginalidade social, encontramos

[...] os seguintes conceitos teóricos, cada um deles diferindo e


discordando dos demais em ao menos um ponto e sendo, portanto,
“diferentes”: “exército industrial de reserva”, “superpopulação relativa” e
“lumpemproletariado”; “cultura da pobreza”, “hiperurbanização”, “massa

117 
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

marginal”, “pobreza oficial” e ‘reserva da reserva”; “ólo marginal”,


subdividido em “pequena
marginal”, “pobreza oficial” eburguesia marginal”,
‘reserva da reserva”; e“ólo“assalariados
marginal”,
marginais”; “protoproletariado”
subdividido e assim pormarginal”,
em “pequena burguesia diante (Tomanik, 1984, p.
e “assalariados
24).
marginais”; “protoproletariado” e assim por diante (Tomanik, 1984, p.
24).
Podemos supor que os autores que elaboraram todos estes conceitos
não Podemos
estavam simplesmente
supor que os querendoautores que serelaboraram
diferentes todos
uns dos outros,
estes mas
conceitos
tentando
não estavamelaborar um termoquerendo
simplesmente que descrevesse, com aunsmaior
ser diferentes dos proximidade
outros, mas
possível, oelaborar
tentando fenômeno umque estavam
termo que estudando
descrevesse,− acom
pobreza − e suas
a maior relações
proximidade
com a sociedade
possível, o fenômenocomoque um estavam
todo. estudando − a pobreza − e suas relações
com Éa justamente
sociedade comoeste umcaráter
todo.de busca permanente de conhecimentos no-
vos eÉ melhores
justamente queeste
a ciência
caráterdeve possuirpermanente
de busca (ao menos de idealmente) e que no-
conhecimentos faz
come que
vos novos que
melhores conceitos
a ciência sejam
deveelaborados,
possuir (aooutros
menossejam reformulados
idealmente) ou
e que faz
mesmo
com queabandonados.
novos conceitos Embora sejamisto cause dificuldades,
elaborados, outros sejam tanto aos iniciantes
reformulados ou
quanto aos
mesmo cientistas Embora
abandonados. “veteranos”, isto esta
causeé uma atividadetanto
dificuldades, necessária, sem a
aos iniciantes
qual o conhecimento
quanto aos cientistas científico
“veteranos”, perderia
esta équalquer chance necessária,
uma atividade de refletir,sem
aindaa
que parcialmente,
qual o conhecimento a realidade.
científico perderia qualquer chance de refletir, ainda
que Para quem pretende
parcialmente, conhecer, ou se dedicar à ciência, não há nenhuma
a realidade.
maneira
Para de evitar
quem estas dificuldades
pretende conhecer, oucriadas pela complexidade,
se dedicar a precisão
à ciência, não há nenhumae
a dinâmica
maneira dos conceitos
de evitar científicos.
estas dificuldades Há apenas
criadas uma forma apara
pela complexidade, tentare
precisão
asuperá-las:
dinâmicaterdosa leitura,
conceitos a reflexão e a crítica
científicos. como atividades
Há apenas uma forma permanentes.
para tentar
superá-las:
Se isto ter a leitura,
parece difícil, aoureflexão e a crítica
até mesmo como
utópico; ou seatividades permanentes.
faz você perder a vonta-
de deSeseisto pareceà atividade
dedicar difícil, ou científica,
até mesmo utópico;que
lembre-se ou se faz você perder
a preocupação coma ovonta-
apri-
de de se dedicar
moramento à atividade
de conceitos nãocientífica, lembre-se que
é uma preocupação a preocupação
exclusíva da ciência:com o apri-
moramento de conceitos não é uma preocupação exclusíva da ciência:
um dos pontos mais fundamentais para o desenvolvimento intelectual
do dos
um ser pontos
humano mais consiste no para
fundamentais alargamento, aperfeiçoamento
o desenvolvimento intelectuale
aprofundamento
do ser humano dos consiste
conceitos, no
dandoalargamento,
ao indivíduo aperfeiçoamento
uma visão, cada veze
mais precisa e adequada,
aprofundamento de sí edando
dos conceitos, do mundo em que vive
ao indivíduo uma(Rudio, 1980,vez
visão, cada p.
20).
mais precisa e adequada, de sí e do mundo em que vive (Rudio, 1980, p.
20).

A LINGUAGEM NA CIÊNCIA: CLAREZA OU


SA O LF II NS TG IUCAAGÇEÃMO
O  ?N
OAL HC
ARI Ê  NN OC   IEAS :P ECLLHAOR  E Z A O U
SOFISTICAÇÃO?
A verdade é que tanto se pode escrever de modo obscuro sobre
problemas simples e cotidianos, como se pode, muito bem,
escrever de modo claro e compreensível sobre problemas
118 e difíceis (Bazarian, 1985, p. 27).
abstratos, complexos
118 

Há uma espécie de crença arraigada, tanto nos meios acadêmicos quan-


to fora deles, de que o conhecimento de alguém pode ser medido pela difi-
O OLHAR NO ESPELHO 

O OLHAR NO ESPELHO 
A verdade é que tanto se pode escrever de modo obscuro sobre
problemas simples e cotidianos, como se pode, muito bem,
escrever
A verdadedeé que
modotantoclaro e compreensível
se pode escrever de modo sobre problemas
obscuro sobre
abstratos, complexos
problemas simples ee cotidianos,
difíceis (Bazarian,
como 1985, p. 27).
se pode, muito bem,
escrever de modo claro e compreensível sobre problemas
abstratos, complexos e difíceis (Bazarian, 1985, p. 27).
Há uma espécie de crença arraigada, tanto nos meios acadêmicos quan-
to fora deles, de que o conhecimento de alguém pode ser medido pela difi-
Há uma
culdade espéciepessoas
das outras de crençaem arraigada,
compreender tantoo nos
que meios acadêmicos
ele fala; quan-
ou seja, quanto
to fora deles, de que o conhecimento de alguém pode ser
mais difícil, sofisticado e intransponível for o discurso, maior será o conhe- medido pela difi-
culdade das outras pessoas em compreender o que ele
cimento contido nele. Ainda se valoriza muito o discurso “bonito”, mesmo fala; ou seja, quanto
mais difícil,
quando não sofisticado e intransponível
consegue transmitir for o discurso,
o seu conteúdo, ou que maior
não será
tenhao mesmo
conhe-
cimento contido nele. Ainda se valoriza muito o discurso
conteúdo algum (veja, por exemplo, a fala de alguns políticos, especialmente “bonito”, mesmo
quando
em não consegue transmitir o seu conteúdo, ou que não tenha mesmo
campanha).
conteúdo algum (veja,
Os próprios alunosporuniversitários,
exemplo, a fala de alguns
quando fazempolíticos,
uma prova especialmente
ou escre-
em campanha).
vem um trabalho, com freqüência procuram expressar-se através de um
Os próprios
discurso alunos sofisticado,
pretensamente universitários, que,quando fazemdas
na maioria umavezes,
provanão ou éescre-
mais
vem um trabalho, com freqüência procuram expressar-se
do que uma tentativa de reprodução das formas de expressão do professor. através de um
discurso pretensamente sofisticado, que, na maioria
Às vezes, isto é apenas uma parte de uma estratégia para conseguir melho-das vezes, não é mais
do que
res umaOutras
notas. tentativa de éreprodução
vezes uma tentativa das formas
honesta,deembora
expressão do professor.
ingênua, de de-
Às vezes, isto é apenas uma parte de uma estratégia
monstrar conhecimentos ou de procurar afirmar-se como um aluno capaz, para conseguir melho-
res notas.
um embriãoOutras vezesdeé um
promissor umagrande
tentativa honesta,
cientista, ou, embora
no mínimo, ingênua,
de umdecien-de-
monstrar conhecimentos
tista competente. ou de procurar afirmar-se como um aluno capaz,
um embrião
Em qualquer promissor
dessesdecasos
um revela-se
grande cientista,
uma visão ou,equivocada
no mínimo,sobre de um cien-
o papel
tistalinguagem
da competente. na ciência. Em ambos procura-se criar uma aparência de
Em qualquer
conhecimento como desses casos revela-se
substituta uma visãoreal.
do conhecimento equivocada sobre o papel
da linguagem
Vamos tentar na entender
ciência. Emisto ambos
melhor.procura-se criar uma aparência de
conhecimento
Vimos quecomo substituta
a ciência, assimdocomo
conhecimento
a linguagem real.popular, elabora concei-
Vamos tentar entender isto melhor.
tos como uma forma de representar os fenômenos. Vimos como os concei-
tos Vimos
são uma queforma
a ciência, assim como
“econômica”, a linguagem
rápida, de indicarpopular,
toda elabora
uma série concei-
de
tos como uma forma
conhecimentos sobre odefenômeno
representara queos se
fenômenos.
referem. Vimos como os concei-
tos Temos
são uma forma três
aí, então, “econômica”,
elementos rápida,
diferentes,de embora
indicar comtoda alguma
uma série de
relação
conhecimentos
entre sí. Um é sobre o fenômeno
o fenômeno, a que se referem.
um acontecimento, objeto, ser, sentimento, ou
Temosdeaí,outra
elemento então,natureza,
três elementos
sobre odiferentes,
qual o homem embora(cientista
com alguma ou não)relação
de-
entre sí. Um é o fenômeno, um acontecimento, objeto,
senvolveu algum conhecimento. Outro é o conceito, o conjunto de conheci- ser, sentimento, ou
elementoque
mentos de ooutra
homem natureza,
possui sobre
sobre oo qual o homem
fenômeno, e que(cientista ou não)entre
lhe permitem, de-
senvolveu algum conhecimento. Outro é o conceito, o conjunto de conheci-
mentos que o homem possui sobre o fenômeno, e que lhe permitem, entre
119 

119 
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

outras coisas, distinguir este fenômeno de outros. O terceiro elemento é o


termo utilizado para sintetizar o conceito, o nome dado ao fenômeno.
É possível, e até bastante freqüente, que uma pessoa conheça o termo
através do qual o conceito é resumido, mas ignore, ou tenha apenas infor-
mações muito superficiais sobre o significado do termo, ou sobre o fenôme-
no conceituado.
Veja que o conceito não é o fenômeno, e provavelmente nunca chegue
a ser uma representação total e completa dele. Assim, mesmo aquele que
conhece a fundo o conceito não tem a garantia de que conhece o fenômeno
em sua totalidade. Quem apenas ouviu o termo que sintetiza o conceito e é
capaz de reproduzí-lo não dispõe de mais do que uma palavra despida de
conteúdo.
Apesar disto, qualquer pessoa com algum grau de conhecimento é capaz de
elaborar discursos gramaticalmente corretos e aparentemente coerentes, utili-
zando vocábulos cujo significado ela ignora, ou conhece apenas superficialmente.
Não é difícil, por exemplo, para um aluno criativo e que tenha tido um mínimo
contato com as teorias marxistas, lançar numa prova uma afirmação do tipo: “há
uma relação dinâmica entre a infraestrutura econômica e a superestrutura jurí-
dico-política e ideológica”.
Não é preciso que ele conheça efetivamente os conceitos de super e in-
fraestrutura na teoria marxista para ser capaz de elaborar uma frase como
esta. Basta que os tenha escutado e memorizado, ou que tenha uma vaga
idéia sobre seu significado. Quanto à “relação dinâmica”, este é um conceito
tão amplo que pode ser usado para descrever as ligações entre praticamente
qualquer par de outros conceitos.
Se de fato o aluno não dominar os conceitos que empregou, sua frase
será tão desprovida de conteúdo quanto a daquele político que bradava do
alto do palanque: “como já dizia o célebre Rui Barbosa, em matéria de prin-
cipalmente o mais importante é tudo”. Nas duas frases os autores procuram
demonstrar um conhecimento que de fato não possuem.
Voltamos, assim, a falar sobre a diferença entre a aparência do co-
nhecimento e o conhecimento efetivo, ou entre o discurso pomposo e o
discurso consistente.
Vimos anteriormente que a ciência utiliza, com alguma freqüência, palavras
“difíceis” e sofisticadas, e que há razões para isto. Não há razão, entretanto para

120 
O OLHAR NO ESPELHO 

que ela procure alinhar punhados de termos complicados em frases de constru-


ção complexa, tornando ainda mais difícil a sua compreensão.
Sabemos que a linguagem popular, justamente por ser rica e dinâmica,
muitas vezes peca por ser superficial e pela imprecisão de seus termos.
Sabemos que a ciência necessita de uma linguagem mais objetiva e precisa.
No entanto, não creio que essa precisão deva se fazer às custas da clareza. A
sofisticação e o hermetismo do discurso atuam sempre de forma a manter o
conhecimento como algo elitizado, acessível apenas aos iniciados, e muitas
vezes até para transmitir a falsa impressão de que o emissor do discurso
detém algum conhecimento. “É necessário acabar com esse mito, atualmente
em voga, de que o estilo obscuro é sempre profundo e o estilo claro é sem-
pre superficial” (Bazarian, 1985, p. 27).
Ao contrário, o discurso complicado e pomposo se presta muito mais
à ocultação de inconsistências teóricas do que uma exposição simples e
despojada.
É conveniente, então, que tanto os cientistas já com alguma experiência
quanto os iniciantes procurem sempre garantir a clareza dos conceitos utilizados
e da forma como seus raciocínios são expostos.
Há duas questões complementares que devem estar presentes sempre
que alguém se disponha a redigir um texto científico. As reflexões geradas
por estas questões via de regra possibilitam boas avaliações sobre o conteú-
do dos textos e sua adequação.
A primeira destas questões é para quem se escreve? Quem é o leitor
que pretendo atingir com meu trabalho?
Não é a mesma coisa preparar um texto para ser lido por alunos de
graduação, por membros de uma banca de mestrado ou doutorado ou por
moradores de um bairro pobre de periferia. Um trabalho a ser apresentado
num congresso internacional provavelmente deve ter características diferen-
tes de um outro a ser publicado no jornal de um sindicato de trabalhadores
semiqualificados, ainda que o assunto e as conclusões sejam as mesmas.
Se o seu trabalho vai ser apresentado em um congresso ou a um círculo de
especialistas da área, para quem os conceitos utilizados são familiares e o seu
significado conhecido, apresentar descrições detalhadas desses significados pode
ser um cuidado desnecessário, além de implicar o risco de que sua exposição seja
considerada enfadonha ou até deselegante. Se, por outro lado, a apresentação se

121 
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

der frente a um grupo de leigos, não descrever e explicar detalhadamente os


conceitos pode fazer com que a apresentação se torne inútil e que os presentes
não consigam assimilar nada de seu conteúdo, ou que assimilem muito pouco.
Importante: jamais escreva para você mesmo.
O conhecimento científico não tem nenhum sentido se fica restrito ao
seu autor. Além disso, muitas vezes um texto parece extremamente claro e
completo para seu autor e não é nada disto para quem o lê. O que pode
acontecer numa situação destas é que quem escreve um texto científico já
tem uma idéia (ao menos aproximada) do seu conteúdo, ou seja, já conhece
a mensagem que pretende que o texto transmita. Se um raciocínio mais
complexo, ou mesmo o significado de um conceito estiverem claros para o
autor, mas forem expostos de forma confusa ou pouco clara no texto, será
difícil que o autor perceba essa deficiência porque sua avaliação do texto
poderá ser ofuscada pelo seu conhecimento anterior.
O ideal é que a avaliação de um texto seja feita por membros do grupo ao
qual ele se destina. Mesmo que este grupo seja aquele ao qual o autor pertence,
via de regra o autor não é um bom crítico de sua própria obra.
Por outro lado, a preocupação com o público-alvo, embora seja um re-
quisito necessário à boa elaboração de um texto científico, se tomada isola-
damente pode produzir uma situação inadequada de aprendizagem e até
levar o aprendiz a se habituar a elaborar discursos superficiais e inade-
quados. Veja por que?
A formação de um cientista é um processo extremamente longo. Du-
rante todo este processo o aprendiz é chamado a elaborar textos (provas,
trabalhos, dissertações etc.) cujo objetivo, ao menos em teoria, é avaliar seus
conhecimentos. Com isto se habitua a escrever para um público que, ao
menos supostamente, sabe mais que ele, conhece mais a fundo os assuntos
que estão sendo tratados e, principalmente, domina melhor os conceitos
próprios da área. O aprendiz se sente, então, livre da obrigação de definir os
conceitos que utiliza, e de detalhar os raciocínios que elabora, já que não faz
sentido fornecer explicações minuciosas a quem já conhece o assunto.
Paralelamente, há um grande número de professores que, por uma série
de razões que não cabe analisar aqui, partem do pressuposto de que se um
aluno é capaz de colocar adequadamente o nome de um conceito em uma
frase, isto significa que o aluno domina o conceito. Já vimos como isto não é

122 
O OLHAR NO ESPELHO 

necessariamente verdadeiro e como é possível elaborar frases aparentemente


corretas através da utilização de conceitos conhecidos apenas em parte.
Nesta situação, em que o aluno não explica termos que utiliza porque
pensa que o professor já os conhece e em que o professor pensa que o
aluno os conhece mesmo sem tê-los explicado, o aprendiz pode se habituar
a trabalhar com conceitos que domina apenas superficialmente, ou sobre os
quais tem apenas uma sensação de conhecimento, muito próxima do senso
comum.
Infelizmente, esta situação de incentivo à produção de discursos vazios
me parece ser bastante freqüente. Apenas como exemplo, tenho visto várias
vezes, quando se pede uma proposta de solução para um problema social
qualquer, a resposta de que este só poderia ser resolvido através de um
processo de conscientização das pessoas envolvidas. Estranhamente, quando
se pergunta como se promove um processo de conscientização, ou mesmo o
que é isto, normalmente não surgem respostas, e quando elas surgem, na
maioria das vezes revelam um profundo desconhecimento das teorias sobre
a consciência.
Uma das formas para que o aprendiz não caia nesta armadilha e possa
se habituar a produzir textos mais consistentes, é ter sempre em mente
uma segunda questão: para que se escreve? O que pretendo atingir com
meu texto?
Enquanto aluno, se pretendo que o que escrevo sirva realmente como
forma de avaliar meus conhecimentos, além de poder vir a oferecer alguma
contribuição, tenho que ter certeza que conheço os termos que emprego,
que as palavras que utilizo não são apenas enfeites, aparências de conheci-
mento. Enquanto profissional, se espero que meus textos sirvam para acres-
centar algo aos conhecimentos já existentes (além de continuarem servindo
para avaliar meu aprendizado, por que não?), preciso me certificar de que
os conceitos contidos neles são, de fato, aqueles mais adequados para a
descrição e a compreensão dos fenômenos sobre os quais realizo minhas
pesquisas.
Em qualquer situação, se escrevo para ser compreendido, tenho que ter
um cuidado todo especial com a clareza das frases que elaboro, além de não
utilizar conceitos que não domino, especialmente entre aqueles próprios de
minha área.

123 
SOBRE A LINGUAGEM CIENTÍFICA

Textos muito breves ou frases excessivamente curtas, normalmente pecam


por omitir informações ou não expor com clareza suficiente os raciocínios envol-
vidos em sua elaboração. Textos muito longos, ou compostos por frases rebusca-
das, complexas ou excessivamente floreadas, por sua vez, podem dar margem a
interpretações divergentes sobre seu conteúdo, além do risco de se tornarem
redundantes e cansativos.
Essas preocupações, além de apontarem para uma forma de expressão
descomplicada, implicam também que os termos técnicos e os conceitos
mais importantes para o texto sejam delimitados e analisados assim que
surgirem, de forma precisa e clara. Aliás, esta é uma boa forma de se verifi-
car se o autor sabe do que está falando, mesmo que, e principalmente, se o
autor for você mesmo.
A delimitação de um termo deve vir antes de sua utilização em um ra-
ciocínio ou em uma discussão que o tenha como base, caso contrário o
autor do texto corre o risco de perceber, depois de um grande esforço, que
sua conclusão não é coerente com o conceito que pretendia utilizar. Lem-
bre-se que a mudança de uma palavra na definição de um conceito pode
alterar substancialmente seu significado. Assim, se a definição que for ado-
tada no início da discussão for esquecida, ou sofrer qualquer mudança, por
mínima que seja, enquanto a discussão ou o raciocínio forem elaborados e
registrados, o autor corre sérios riscos de estar redigindo um texto incoe-
rente.
Se, por outro lado, a definição adotada não for incluída no texto final, o
leitor corre o risco de ter que percorrer páginas e mais páginas que tratam
de um assunto sobre o qual ele ainda não foi informado, e portanto não
tem condições de compreender.
Creio que uma boa fórmula a ser adotada para a redação de um texto é
a de procurar escrever para alguém que não domine o assunto. Se o texto
for claro para alguém nestas condições, com certeza o será também para
alguém que já possua fartos conhecimentos na área.
Esta fórmula, como todas as “receitas”, deve ser usada com cuidado.
Tomá-la ao pé da letra e usá-la indiscriminadamente pode levar um autor a
só produzir textos para principiantes, chegando, inclusíve, a abrir mão da
qualidade, em nome de uma pretensa simplicidade.
A preocupação com a clareza, porém, pode evitar a elaboração de textos
pretensiosos e fúteis, em que a pobreza do conteúdo procura se ocultar sob

124 
O OLHAR NO ESPELHO 

um discurso rebuscado e hermético. Tenho visto alguns trabalhos que se


pretendem científicos escritos de tal forma, num fraseado tão sofisticado, que
são praticamente intransponíveis. Se um iniciante se propuser a consultar
um trabalho desses, provavelmente não vai entender o palavrório e corre o
risco de chegar ao fim da leitura (se chegar, o que é improvável) sem ter
assimilado nada de novo. Se, por outro lado, o mesmo trabalho for lido por
outra pessoa, já conhecedora do assunto, provavelmente o que se concluirá
é que o trabalho não traz mesmo nenhuma contribuição, ou se a traz é tão
pequena que não justificaria um texto como aquele.
Como você deve estar percebendo, não é uma tarefa fácil a elaboração
de um texto científico adequado às suas finalidades. É preciso estar atento
para não ultrapassar os limites (não muito definidos) entre a clareza, a
precisão e a qualidade, de um lado, e a falsa erudição, de outro, ou para
distinguir a divulgação da ciência, desejável e necessária, de sua vulgariza-
ção.
Não há fórmula que permita estabelecer claramente estes limites. O
melhor critério de orientação, todavia, tanto para a qualidade do discurso
quanto dos dados científicos, continua sendo o do confronto com a prática:

se a realidade contradiz nossos cálculos, suposições ou hipóteses


devemos ter a coragem de renunciar a eles, aprofundando nossos
conhecimentos, pondo-os em consonância com a experiência, com a
prática. Quando nos obstinamos e não queremos levar em conta os
fatos da vida, caímos sempre em logro e fracasso (Bazarian, 1985, p.
159).

125 
APÍTULO 5

A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE


CONHECIMENTOS

[...] A melhor maneira de se aprender a fazer a pesquisa é fazê-


la: nada substitui a prática da realização. Todavia − e é
importante frisar − seria absurdo supor que essa prática não
possa ser teorizada [...] (Abramo, 1979, p. 22).

Pesquisar é ir a campo, ver pessoas e fatos, fazer perguntas e ano-


tar respostas. Esta imagem algo ingênua sobre a pesquisa nas ciências
sociais não deixa de ter sua razão de ser. Boa parte da atividade de
pesquisa social consiste em atividades como estas, ou em outras pare-
cidas. Há outras fases da pesquisa, bastante diferentes, como as leitu-
ras e o planejamento que antecedem a fase de campo, ou o tratamento
e a análise dos dados obtidos, a elaboração de relatórios e as discus-
sões que se seguem àquela parte externa. No entanto, como estas fases
são realizadas normalmente fora da região pesquisada, e sem a partici-
pação da população, ficam invisíveis a quem não faz parte da equipe
de pesquisadores. Não é de se estranhar, portanto, que a fase de cam-
po seja a mais conhecida, e chegue, por vezes, a ser considerada como
toda a pesquisa.
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

Para os iniciantes na pesquisa social, costuma ficar claro que deve haver
um planejamento que antecede a ida ao campo. No entanto, as noções sobre
o que seja este planejamento também costumam ser ingênuas. Não há nada
de errado nisto, já que, afinal, são principiantes. Com alguma freqüência,
pessoas com pouca experiência na realização de pesquisas têm me apresen-
tado preocupações do tipo: “eu pensei em fazer um questionário com tantas
perguntas, para aplicar em X pessoas de diversos níveis. Será que esta amos-
tra é suficiente, ou que este número de perguntas é bom?”
Se, por um lado, este tipo de preocupação reflete uma disposição posi-
tiva para a realização da pesquisa, por outro peca por concentrar suas aten-
ções nos aspectos quantitativos e de execução e por deixar de lado o
planejamento e a qualidade. Não estou querendo dizer que os dois primei-
ros aspectos não sejam importantes, mas sim que eles dependem dos que
citei por último.
Há uma série de noções assim ingênuas, que parecem se repetir entre
aqueles que procuram se iniciar na prática das ciências sociais.
Tenho sentido falta de trabalhos que coloquem, para os iniciantes na
pesquisa, dados sobre as dúvidas mais comuns em cada fase do processo de
pesquisa, informações sobre formas de superação das dificuldades mais
freqüentemente encontradas, ou sobre a própria razão de ser de cada uma
das partes do processo, sua relação com as demais e até do porque de sua
inclusão, ou não, no relatório final.
É isso que pretendo fazer aqui: a partir de um modelo básico de proce-
dimento de pesquisa em ciências sociais, levantar os problemas que têm
surgido em cada uma das fases deste modelo.
Convém, antes de mais nada, fazer alguns lembretes.
Primeiro, que a existência de um modelo não deve condicionar o
procedimento de pesquisa. É fundamental que você entenda que, na
pesquisa científica, o modelo é que deve ser adaptado às necessidades
do trabalho a ser realizado. Em outras palavras, o que quero dizer é o
seguinte: uma seqüência pré-determinada de passos a ser seguida para a
realização de uma pesquisa numa área específica da ciência (é isto o
que chamo de modelo), não serve para a realização de qualquer pesqui-
sa naquela área, mas deve ser entendida como um guia básico. Cabe ao
pesquisador conhecer cada um destes passos − e mais alguns que não

128 
O OLHAR NO ESPELHO 

constam no modelo − para poder adaptar o modelo às necessidades e


particularidades de seu trabalho, ou até para criar um novo esquema.
Um segundo elemento a ser lembrado é que estas notas foram base-
adas em minhas experiências enquanto professor de métodos e técnicas
de pesquisa em psicologia e se destinam fundamentalmente aos alunos
dessa disciplina. Neste sentido, a utilização das colocações aqui contidas
em outros campos, embora me pareça possível, deve ser feita com os
devidos cuidados. Além disso, na medida em que os problemas que pre-
tendo abordar nestas notas são aqueles que mais têm me chamado a
atenção e que pude recordar, não é necessário dizer que não tenho ne-
nhuma pretensão de que este texto venha a ser completo. Aliás, em ciên-
cia, trabalho nenhum é completo mesmo.
Além disso, é impossível que qualquer texto, isoladamente, consiga
trazer todas as informações necessárias à formação de um cientista.
Esta é uma tarefa que não pode ser realizada por um texto, uma disci-
plina ou mesmo um curso específico sobre metodologia de pesquisa.
Porém,

ao mesmo tempo que não se deve esperar, honestamente, que um curso


anual ou bianual de pesquisa transforme um estudante num
pesquisador, também não se pode esquecer que o aluno não poderá dar
os passos iniciais sem que adquira, através da leitura de manuais, o
conhecimento indispensável que o fará evitar certos erros e economizar
tempo e esforço (Abramo, 1979, p. 22-23).

Neste texto me preocupei muito mais em apresentar comentários sobre


o planejamento da pesquisa que sobre sua execução, por duas razões. A
principal delas é que a realidade é muito ampla e é difícil prever o que pode
acontecer nela. As ciências sociais podem estar presentes em toda atividade
realizada pelo homem, e isto cria um campo de pesquisas amplo, extrema-
mente variado e variável. Fica difícil, portanto, prever o que pode acontecer
quando o pesquisador entra em contato com este mundo, ou com uma
parte dele.
A outra razão é que os rumos da pesquisa realizada para a obtenção de
conhecimentos dependem, ao menos em parte, do seu planejamento, ou
seja, das decisões do pesquisador. Como não há forma de prever quais serão
essas decisões, não é possível elaborar comentários que procurem antecipar

129 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

as dificuldades que possam surgir em função delas. A superação destas


dificuldades vai depender sempre do preparo do pesquisador, de seus co-
nhecimentos sobre as teorias e os métodos que pretende ou necessita utili-
zar e sobre a situação na qual realiza seus estudos.
Procure se lembrar disto, antes de ceder à tentação de partir para a co-
leta de dados sem que seu planejamento esteja adequado. Um bom plane-
jamento, por si só, não é suficiente para garantir o sucesso da pesquisa, mas
é a melhor maneira de tentar atingí-lo. A ausência do planejamento, ou sua
existência de forma incompleta representa sempre um risco muito grande
de trabalho desperdiçado.
Mas o que é um bom planejamento de pesquisa?
Dizer que é aquele que permite a realização de uma boa pesquisa
é uma resposta fácil, mas não satisfatória, já que aí cairíamos na arma-
dilha de só poder avaliar o planejamento após a realização da pesquisa
e só poder realizar a pesquisa após a avaliação do planejamento. Prefi-
ro dizer que um bom planejamento é aquele que se consegue com base
no estudo sério das teorias, no aprofundamento das reflexões sobre
elas, na escolha cuidadosa dos problemas, no preparo minucioso das
ações e no tratamento competente dos dados.
Isto também não é uma resposta satisfatória, já que há uma série de
adjetivos não definidos nela. No entanto, já é uma boa indicação das dificul-
dades de se realizar uma pesquisa científica. Estas dificuldades, entretanto,
não são insuperáveis.
À partir de um detalhamento maior das fases principais da pesquisa,
exposto no quadro 3, vamos tentar entender cada uma delas, suas funções e
relações com o projeto todo.
A leitura deste texto talvez não lhe garanta a elaboração de um projeto
completo de pesquisa, mas espero que seja um bom começo.
Quadro 3. Modelo do projeto.
1- Tema
1.1- Definição
1.2- Justificativa social e científica do estudo do tema
2- Fundamentação teórica

130 
À partir de um detalhamento maior das fases principais da pesquisa,
exposto no quadro 3, vamos tentar entender cada uma delas, suas funções e
relações com o projeto todo.
A leitura deste texto
O   Otalvez
L H Anão
R   Nlhe
O  garanta
E S P E La H
elaboração
O  de um projeto
completo de pesquisa, mas espero que seja um bom começo.
3- Problema
Quadro 3. Modelo do projeto.
3.1- Delimitação e caracterização
1- Tema
3.2- Justificativa social e científica do estudo do problema
1.1- Definição
4- 1.2- Justificativa social e científica do estudo do tema
Hipóteses O OLHAR NO ESPELHO 
4.1- Definição
2- Fundamentação teórica
4.2- Justificativas
3- 4.3- Delimitação dos termos da(s) hipótese(s)
Problema
3.1- Delimitação e caracterização
5- 3.2-
Procedimentos
Justificativaesocial
métodos
e científica do estudo do problema
130 
5.1- Procedimentos gerais
4- 5.2- População
Hipóteses
5.2.1- Caracterização do universo
4.1- Definição
5.2.2- Seleção da amostra
4.2- Justificativas
5.3-
4.3- Metodologia
Delimitação dos termos da(s) hipótese(s)
5.3.1- Método geral da ciência
5- Procedimentos 5.3.1.1-
e métodosCaracterização
5.3.1.2-
5.1- Procedimentos geraisJustificativas
5.3.2- Métodos específicos
5.2- População
5.3.2.1- Caracterização
5.2.1- Caracterização do universo
5.3.2.2- da Justificativas
5.2.2- Seleção amostra
5.3.3- Técnicas
5.3- Metodologia
5.3.3.1- geral
5.3.1- Método Caracterização
da ciência
5.3.3.2-
5.3.1.1- Justificativas
Caracterização
5.3.4- 5.3.1.2-
InstrumentosJustificativas
5.3.2- 5.3.4.1- Caracterização
Métodos específicos
5.3.4.2- Justificativas
5.3.2.1- Caracterização
5.3.4.3- Pré-teste
5.3.2.2- Justificativas
5.3.3- 5.3.4.4-
Técnicas Dados complementares
5.3.5- Aplicação
5.3.3.1- Caracterização
5.3.5.1-
5.3.3.2- Planejamento
Justificativas
5.3.4- 5.3.5.2-
InstrumentosCuidados especiais
5.3.5.3- Tratamento dos dados
5.3.4.1- Caracterização
5.4- Cronograma 5.3.4.2- Justificativas
5.5- Orçamento5.3.4.3- Pré-teste
Há duas formas 5.3.4.4- mais
Dados complementares
comuns de se iniciar um processo de pesquisa.
5.3.5- Aplicação
Uma é partir do5.3.5.1- desejo ou necessidade
Planejamento de vir a conhecer, ou conhecer mais
sobre determinado assunto.
5.3.5.2- Esteespeciais
Cuidados assunto tanto pode ser uma linha teórica,
uma população 5.3.5.3-determinada ou algo
Tratamento dosainda
dados mais amplo.
5.4- Cronograma
Outra é ter como base uma pesquisa mais específica, normalmente den-
5.5- Orçamento
tro de um assunto sobre o qual já se tem algum conhecimento, ainda que
Há duas formas mais comuns de se iniciar um processo de pesquisa.
Uma é partir do desejo ou necessidade de vir a conhecer, ou conhecer mais
sobre determinado assunto. Este assunto tanto pode ser uma linha teórica,
uma população determinada ou algo ainda mais amplo.
131 
Outra é ter como base uma pesquisa mais específica, normalmente den-
tro de um assunto sobre o qual já se tem algum conhecimento, ainda que
5.3.4.4- Dados complementares
5.3.5- Aplicação
5.3.5.1- Planejamento
5.3.5.2- Cuidados especiais
5.3.5.3- Tratamento dos dados
5.4-ACronograma
  P E S Q U I S A   P A R A   A   O B T E N Ç Ã O   D E   C O N H E C I M E N T O S

5.5- Orçamento
Há duas formas
assistemático. A primeiramaisdessas
comuns de seé iniciar
formas o que um processoescolha
chamamos de pesquisa.
de um
Uma éa partir
tema; segunda, do adesejo ou de
definição necessidade
um problema. de vir a conhecer, ou conhecer mais
sobreComodeterminado
o tema éassunto. Este assunto
mais amplo tanto podecomeçaremos
que o problema, ser uma linha porteórica,
ele, o
uma não
que população
significadeterminada
que você, na ou sua
algopesquisa,
ainda mais amplo.
tenha que fazer o mesmo.
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS
Outra é ter como base uma pesquisa mais específica, normalmente den-
tro de um assunto sobre o qual já se tem algum conhecimento, ainda que
assistemático.
O T E M A AD primeira A P E S dessas
Q U I Sformas
A é o que chamamos escolha de um
tema; a segunda, a definição de um problema.
Como
Vimos oque tema é mais
o tema é o amplo
assuntoque o problema,
geral da pesquisa, começaremos
mas o que épor umele,
bomo
que
temanão significa que você, na sua pesquisa,
de pesquisa? 131  tenha que fazer o mesmo.
A resposta a esta pergunta só pode ser dada a partir da definição
da função da pesquisa. Ora, se a função do processo de pesquisa é tra-
O
zer TdeE alguma
M A D forma,A P E Suma Q U contribuição
ISA às pessoas, um bom tema é
aquele cujo estudo possa, ao menos potencialmente, colaborar para isso.
Vimos que o tema é o assunto geral da pesquisa, mas o que é um bom
Como, então, escolher um bom tema para a sua pesquisa?
tema de pesquisa?
Salvo nos raros casos de pesquisas encomendadas ou conduzidas por
A resposta a esta pergunta só pode ser dada a partir da definição
instituições, cabe ao próprio pesquisador ou à equipe de realizadores a
da função da pesquisa. Ora, se a função do processo de pesquisa é tra-
escolha do tema de pesquisa, e não há nenhuma fórmula mágica que garan-
zer de alguma forma, uma contribuição às pessoas, um bom tema é
ta esta escolha.
aquele cujo estudo possa, ao menos potencialmente, colaborar para isso.
Castro (1977) sugere que o tema de uma pesquisa deve ser, se pos-
sível,Como, então, escolher
importante, original um bom tema
e viável. para a autor
O próprio sua pesquisa?
reconhece que não é
Salvo nos raros casos de pesquisas
fácil estabelecer com segurança o quanto estes aspectosencomendadas ou estão
conduzidas
presentespor
instituições,
no tema, mascabe ao próprio
a proposta pesquisador
me parece muitoou útilà eequipe
lógica. de realizadores a
escolha do tema de pesquisa, e não há nenhuma
Além da preocupação fundamental com a função da pesquisa, fórmula mágica que garan-
o que po-
ta esta escolha.
demos acrescentar aqui é que, via de regra, é muito mais fácil e produtivo
Castro
trabalhar com(1977) sugere
assuntos que, que o temarazão,
por alguma de uma pesquisa
já nos deve ser, se pos-
interessam.
sível,É importante, original e viável. O próprio autor
provável que você, iniciante na atividade de pesquisa, tenha reconhece que não
solici-é
fácil estabelecer com segurança o quanto estes aspectos
tado a colaboração de um orientador. Possivelmente, esse orientador já tem estão presentes
no tema,
suas áreasmas de ainteresse
propostadefinidas
me parece muito
e suas útil de
linhas e lógica.
investigações traçadas.
Assim, se você for perguntar ao seu orientador qualdatema
Além da preocupação fundamental com a função pesquisa, o quenada
escolher, po-
demosnatural
mais acrescentar
que eleaquiindique
é que, algo
via dedentro
regra, do é muito
campomaisondefácil e produtivo
já vem traba-
trabalhar com assuntos que, por alguma razão,
lhando. Mas será que isso seria interessante para você? já nos interessam.
É provável
Além desse que
fator,você, iniciante
convém na atividade
que você leia o item de“como
pesquisa,
evitartenha solici-
ser explo-
tado apelo
rado colaboração
orientador”,de um orientador.
no livro de EcoPossivelmente, esse orientador
(1983), no capítulo que tratajájusta-
tem
suas áreas
mente de interesse
da escolha do tema. definidas e suas linhas de investigações traçadas.
Assim, se você for perguntar ao seu orientador qual tema escolher, nada
mais natural que ele indique algo dentro do campo onde já vem traba-
lhando. Mas será que isso seria interessante para você?
132 
Além desse fator, convém que você leia o item “como evitar ser explo-
rado pelo orientador”, no livro de Eco (1983), no capítulo que trata justa-
mente da escolha do tema.
demos acrescentar aqui é que, via de regra, é muito mais fácil e produtivo
trabalhar com assuntos que, por alguma razão, já nos interessam.
É provável que você, iniciante na atividade de pesquisa, tenha solici-
tado a colaboração de um orientador. Possivelmente, esse orientador já tem
O OLHAR NO ESPELHO 
suas áreas de interesse definidas e suas linhas de investigações traçadas.
Assim, se você for perguntar ao seu orientador qual tema escolher, nada
maisNanatural que ele indique
vida acadêmica, muitasalgo vezesdentro
você dotemcampo onde jáuma
que realizar vempesqui-
traba-
lhando.
sa para Mas será que isso
ser aprovado em seria
uma interessante
disciplina, e para aí o você?
tema a ser escolhido,
alémAlémde serdesse fator, convém
relevante, deve poder que você leia o item
ser estudado num “como evitar
prazo, via ser explo-
de regra,
O OLHAR NO ESPELHO 
rado pelocurto.
bastante orientador”, no livro
Em regiões ondede os
Ecorecursos
(1983), bibliográficos
no capítulo quesãotrata justa-
escassos,
mente da escolha do tema.
tenho visto bons temas serem escolhidos e abandonados depois, ou
darem Na origem a trabalhos
vida acadêmica, muitasmuitovezesfracos,
você por
tem falta de material
que realizar uma teórico.
pesqui-
Além
sa paradisso, normalmente
ser aprovado em quando se descobre
uma disciplina, e aí que
o temaa realização de um
a ser escolhido,
estudodesobre
além determinado
ser relevante, deve tema
poderé ser impossível
132 
estudado dentro
num do prazo
prazo, via previsto,
de regra,
também não
bastante curto.resta
Emmais tempo
regiões ondepara se realizar
os recursos bem outro estudo,
bibliográficos sobre
são escassos,
qualquer
tenho outro
visto tema.
bons temas serem escolhidos e abandonados depois, ou
darem Paraorigem a trabalhos
evitar este muito fracos,
tipo de situação, tenho por falta de material
recomendado que, para teórico.
a reali-
Além disso, pesquisas
zação destas normalmente quandoossealunos
acadêmicas, descobreusemque a realização inverso:
o procedimento de um
estudo
a partir sobre
de camposdeterminado tema (como,
muito amplos é impossível dentro psicologia
por exemplo, do prazo do previsto,
desen-
também não resta mais tempo para se realizar
volvimento ou sociedade) realizem primeiramente um levantamento bem outro estudo, sobre
do
qualquer outro tema.
material disponível, e que a partir daí se selecione, dentre os temas possí-
veis, Para
aquele evitar
que este
for otipo
maisdeinteressante.
situação, tenho recomendado que, para a reali-
zaçãoÉ destas
claro que este procedimentoosnão
pesquisas acadêmicas, alunos usem adequado
é o mais o procedimento inverso:
para trabalhos
adepartir
maior fôlego, como dissertações de mestrado ou de conclusão de desen-
de campos muito amplos (como, por exemplo, psicologia do cursos
volvimento ou sociedade)
de especialização, ou mesmorealizem primeiramente
para pesquisas um levantamento
cujos objetivos não sejam pri- do
material
mordialmentedisponível, e queNestes
didáticos. a partir daí ese naqueles
casos, selecione,em dentre
que osjá temas
se tempossí-
uma
área aquele
veis, definidaque de for
interesse
o mais ou prazos mais longos, deve se partir da escolha
interessante.
de um tema que
É claro para este
a seleção do material.
procedimento não é o mais adequado para trabalhos
Nas pesquisas
de maior fôlego, como acadêmicas
dissertaçõesem dequemestrado
se adoteouo de procedimento
conclusão deinverso,
cursos
como sugerimos, isso
de especialização, ou não
mesmoelimina
paraa pesquisas
busca de um cujosenriquecimento
objetivos não do materi-
sejam pri-
al teórico, mesmo
mordialmente após a Nestes
didáticos. escolha casos,
do tema. e naqueles em que já se tem uma
área Como
definidaauxiliar na escolha
de interesse do tema,
ou prazos maisvocê deve também
longos, consultar
deve se partir a obra
da escolha
de umCastro (1977).
tema para a seleção do material.
Qualquer
Nas pesquisas que tenha sido o em
acadêmicas procedimento
que se adote adotado, uma vez definido
o procedimento inverso,o
assunto que você isso
como sugerimos, vai pesquisar,
não eliminaduas partesdedevem
a busca ficar claras, tanto
um enriquecimento para o
do materi-
autor quanto
al teórico, mesmopara após
o futuro leitor.do tema.
a escolha
Como auxiliar na escolha do tema, você deve também consultar a obra
de Castro
C A R (1977).
ACTERIZAÇÃO DO TEMA
Qualquer que tenha sido o procedimento adotado, uma vez definido o
assuntoAntesquedevocê vai pesquisar,
dar qualquer passoduas partes de
no estudo devem ficar claras,
um assunto, tanto para
é preciso que seo
autor quanto para o futuro leitor.
“reúna” algumas informações preliminares sobre o mesmo, como por exem-
plo: o que é, em linhas gerais este assunto? Quais as informações mais di-
CARACTERIZAÇÃO DO TEMA
133 
Antes de dar qualquer passo no estudo de um assunto, é preciso que se
“reúna” algumas informações preliminares sobre o mesmo, como por exem-
plo: o que é, em linhas gerais este assunto? Quais as informações mais di-
Como auxiliar na escolha do tema, você deve também consultar a obra
de Castro (1977).
Qualquer que tenha sido o procedimento adotado, uma vez definido o
assunto que você vai pesquisar, duas partes devem ficar claras, tanto para o
A   P E S para
autor quanto Q U I SoAfuturo
  P A R Aleitor.
  A   O B T E N Ç Ã O   D E   C O N H E C I M E N T O S

fundidas
C A Re Aaceitas
C T E Rsobre
I Z A oÇ mesmo,
ÃO DO ou Tquais
E M as A questões mais polêmicas que
se têm levantado a seu respeito?
Essas
Antes informações
de dar qualquer preliminares
passo no estudo vão servir de um posteriormente
assunto, é preciso comoque por-se
ta de Aentrada para o leitor.A   No
A   Omomento
“reúna” algumas informações preliminares sobre o mesmo, como por exem-
  P E S Q U I S A   P A R B T E N Ç Ã da
O   D elaboração
E   C O N H E do
C I Mprojeto
E N T O ser-
S

vem
plo: opara
que é,aclarar
em linhas o quantogerais este o próprio
assunto?autor Quaissabe sobre o assunto
as informações mais di-e
ajudam
fundidasaedirecionar
aceitas sobre a relação
o mesmo, e asou consultas
quais asao materialmais
questões bibliográfico.
polêmicas que
se têm levantado a seu respeito? 133 
Essas
J U S Tinformações
I F I C A T I Vpreliminares
AS S O C Ivão A I Sservir E posteriormente
C I E N T Í F I C como A S por-
DO
ta deE Sentrada
TUDO DO TEMA para o leitor. No momento da elaboração do projeto ser-
vem para aclarar o quanto o próprio autor sabe sobre o assunto e
ajudamEstaaédirecionar
a parte onde a relação
devem eficar as consultas
claras as razõesao material pelas bibliográfico.
quais se escolheu
trabalhar com determinado tema. Essas razões podem estar situadas tanto
antesJ UdaS Trealização
I F I C A T da I V Apesquisa
S S O (antecedentes
CIAIS E que C I E contribuíram
N T Í F I C A S para D Oa
escolha), quanto
ESTUDO DO TEMA durante ou após a realização da mesma (efeito que se
pretende que a pesquisa produza), mas o ideal é que os dois tipos de razões
se somem.
Esta é a parte onde devem ficar claras as razões pelas quais se escolheu
Em situações
trabalhar que exijamtema.
com determinado a realização de umapodem
Essas razões pesquisa, estarmas que deixam
situadas tanto
para
antes odapesquisador
realização adaescolha pesquisa do tema e a elaboração
(antecedentes do projeto, justificar
que contribuíram para a
essa escolha
escolha), através
quanto de perguntas
durante ou apósdoa tipo “e por que
realização da mesmanão esse?”,
(efeitoou mesmo
que se
dizer,
pretende que a pesquisa produza), mas o ideal é que os dois tipos deque
ainda que de forma sofisticada, que a pesquisa tinha mesmo ser
razões
feita e pronto, além de evidenciar desinteresse pela realização da pesquisa,
se somem.
ou no Emmínimo,
situaçõespela que escolha
exijam adorealização
tema, ainda de uma porpesquisa,
cima nãomas contribui
que deixam em
nada para esclarecer porque foi esse, e não
para o pesquisador a escolha do tema e a elaboração do projeto, justificar outro qualquer, o assunto
escolhido,
essa escolha e qual o valor
através potencial do
de perguntas do seu
tipoestudo.
“e por que não esse?”, ou mesmo
dizer, ainda que de forma sofisticada, que os
A colocação, de forma clara, de quais efeitos que
a pesquisa se pretende
tinha mesmo que atingir
ser
com
feita ae pronto,
pesquisaalém é umdeponto fundamental
evidenciar desinteresse para pela que realização
o próprio da pesquisador
pesquisa,
possa
ou noavaliar
mínimo, o andamento
pela escolha da mesma.
do tema, ainda por cima não contribui em
Aliás, cabe aqui um
nada para esclarecer porque foi esse, comentário complementar:
e não outrocomo você jáo deve
qualquer, assuntoter
percebido,
escolhido, eé qual importante
o valor ir registrando
potencial do seu cada uma das decisões tomadas, e as
estudo.
razões para essas de
A colocação, escolhas, na medida
forma clara, de quais em os queefeitos
elas ocorrerem.
que se pretende O armazena-
atingir
mento
com a dessas
pesquisa informações
é um ponto apenas na memória
fundamental parafaz quecom que elaspesquisador
o próprio se percam,
possa
ou avaliar ocom
se alterem andamento
o passardadomesma. tempo, sem que o autor perceba essa altera-
ção. Aliás,
Lembre-se cabe queaquia um comentário
mudança de umcomplementar:
termo, dentro como de umavocê já devepode
pesquisa, ter
percebido, érumos
determinar importante
totalmenteir registrando
diferentescada parauma das decisões
o andamento da tomadas,
mesma. Espe-e as
razões paraemessas
cialmente escolhas,
trabalhos na medida
realizados em queaelas
em equipe, faltaocorrerem.
de registros O por
armazena-
escrito
mento dessas informações apenas na memória faz com que elas se percam,
ou se alterem com o passar do tempo, sem que o autor perceba essa altera-
134 
ção. Lembre-se que a mudança de um termo, dentro de uma pesquisa, pode
determinar rumos totalmente diferentes para o andamento da mesma. Espe-
cialmente em trabalhos realizados em equipe, a falta de registros por escrito
com a pesquisa é um ponto fundamental para que o próprio pesquisador
possa avaliar o andamento da mesma.
Aliás, cabe aqui um comentário complementar: como você já deve ter
percebido, é importante ir registrando cada uma das decisões tomadas, e as
O OLHAR NO ESPELHO 
razões para essas escolhas, na medida em que elas ocorrerem. O armazena-
mento dessas informações apenas na memória faz com que elas se percam,
ou segravados
alterem temcom produzido
o passar doefeitos
tempo,altamente
sem que odesastrosos.
autor perceba Nãoessa
confie na
altera-
memória
ção. Lembre-se−escreva.
que a mudança de um termo, dentro de uma pesquisa, pode
O OLHAR NO ESPELHO 
Voltando
determinar a falar
rumos do tema: diferentes
totalmente às vezes, aparaprópria caracterização
o andamento do tema
da mesma. Espe-já
traz em síem
cialmente algumas
trabalhos razões para oem
realizados seuequipe,
estudo.a falta
Mesmo no relatório
de registros por final,
escritoo
tema escolhido
ou gravados teme produzido
as razões dessa efeitosescolha
altamente não desastrosos.
têm, necessariamente,
Não confieque na
aparecer em
memória −escreva. ítens ou sub-ítens separados. É importante, porém, que se
saibaVoltando
claramente o que se quer estudar
134  e porque se deseja fazê-lo.
a falar do tema: às vezes, a própria caracterização do tema já Isto deve
ficar
traz emclarosí tanto
algumaspararazões
o leitorpara
quanto
o seupara o próprio
estudo. Mesmo autor.
no relatório final, o
temaNaescolhido
medida em e asquerazões
postulamos
dessa uma
escolhafunção
não social
têm, para a ciência, nãoque
necessariamente, há
como,
aparecer normalmente,
em ítens ou separar as justificativas
sub-ítens separados. sociais das científicas
É importante, porém, dentro
que de se
saiba proposta
uma claramente de opesquisa.
que se quer estudarum
Adotamos e porque
nome tão se deseja
extensofazê-lo. Isto deve
para este sub-
ficar claro
ítem apenastantoparapara o leitor
lembrar uma quanto paraque
vez mais o próprio
a práticaautor.
da ciência pela ciên-
cia eNaparamedida em que
a ciência é uma postulamos
aberração.uma função social para a ciência, não há
como, Muito bem, estabelecido
normalmente, separar aso justificativas
tema, o que sociais
devemos dasfazer? Saberdentro
científicas mais so-
de
bre o mesmo. Aí é que entra nosso próximo passo.
uma proposta de pesquisa. Adotamos um nome tão extenso para este sub-
ítem apenas para lembrar uma vez mais que a prática da ciência pela ciên-
cia e para a ciência é uma aberração.
A FMuitoU N Dbem,A M estabelecido
E N T A Ç ÃoOtema, T E oÓ que
R I Cdevemos
A fazer? Saber mais so-
bre o mesmo. Aí é que entra nosso próximo passo.
Esta é a fase da pesquisa na qual você vai aprofundar os conhecimentos
teóricos sobre o tema, tomar conhecimento, com detalhes, das várias posi-
çõesF existentes
A U N D A Msobre E N To Amesmo,
Ç Ã O levantar
T E Ó RosI Cpontos
A de concordância e dis-
cordância entre essas várias posições, confrontar as colocações de vários
autores
Estaentre sí e,dacom
é a fase suas próprias
pesquisa conclusões,
na qual você tentar descobrir
vai aprofundar e enten-
os conhecimentos
der os determinantes e as conseqüências de cada uma
teóricos sobre o tema, tomar conhecimento, com detalhes, das várias posi- destas posturas. En-
fim, vai tentar estabelecer a base teórica para a continuação
ções existentes sobre o mesmo, levantar os pontos de concordância e dis- do seu projeto.
É justamente
cordância entre essasaqui,várias
ou através desta
posições, parte, que
confrontar as se separa a de
colocações pesquisa
vários
científica
autores entre de umasí e,pesquisa
com suasbaseadaprópriasnoconclusões,
senso comum, tentaroudescobrir
de uma atividade
e enten-
de
derlevantamento
os determinantes de dados pura e simplesde
e as conseqüências (tipo
cadaIbope
uma ou similares).
destas posturas. En-
fim, vai tentar estabelecer a base teórica para a continuação do seutodos
Já vimos que colher informações faz parte do dia-a-dia de nós;
projeto.
pensar sobre elas também. No entanto, tentar reunir
É justamente aqui, ou através desta parte, que se separa a pesquisa essas informações de
forma a poder obter conhecimentos cada vez mais
científica de uma pesquisa baseada no senso comum, ou de uma atividade amplos e gerais, aplicá-
veislevantamento
de de forma cada de vez
dadosmaispura
específica
e simples e profunda,
(tipo Ibope só ou
é possível através do
similares).
conhecimento
Já vimos que teórico. Porinformações
colher exemplo: podemos
faz parte perceber, sem grandes
do dia-a-dia de todos dificul-
nós;
dades,
pensar quando,
sobre elas numa empresa,
também. os funcionários
No entanto, se acham
tentar reunir essasmais dispostosdea
informações
deflagrar
forma a poder um processo de greve. No entanto,
obter conhecimentos cada vezdificilmente
mais amplos compreenderemos
e gerais, aplicá-
veis de forma cada vez mais específica e profunda, só é possível através do
conhecimento teórico. Por exemplo: podemos perceber, sem grandes dificul-
135 
dades, quando, numa empresa, os funcionários se acham mais dispostos a
deflagrar um processo de greve. No entanto, dificilmente compreenderemos
científica de uma pesquisa baseada no senso comum, ou de uma atividade
de levantamento de dados pura e simples (tipo Ibope ou similares).
Já vimos que colher informações faz parte do dia-a-dia de todos nós;
pensar sobre elas também. No entanto, tentar reunir essas informações de
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS
forma a poder obter conhecimentos cada vez mais amplos e gerais, aplicá-
veis de forma cada vez mais específica e profunda, só é possível através do
aconhecimento
existência deteórico.
greves Por e osexemplo:
rumos podemos
daquela greve,
perceber,especificamente, se não
sem grandes dificul-
dades,Aquando,
dispusermos denuma
toda empresa,
uma sérieos de conhecimentos que mais
dificilmente
dispostosnosa
  P E S Q U I S A   P A R A   A   O B T E N Ç Ã O   D E   C O N H E C I M E N T O S
funcionários se acham
podem
deflagrarserum fornecidos
processopelos próprios
de greve. participantes
No entanto, do movimento.
dificilmente compreenderemos
Como se vê, a coleta de novos dados faz
a existência de greves e os rumos daquela greve, especificamente, parte da pesquisa científica;
se não
no
dispusermos de toda uma série de conhecimentos que dificilmente nosé
entanto, esta não se esgota aí. A compreensão desses dados também
necessária, e via de regra,
podem ser fornecidos pelosnão pode 135 
próprios ser obtida através
participantes dos próprios dados.
do movimento.
Por Como
isso, por se mais
vê, a que
coleta possa parecer,
de novos a exigência
dados faz partededauma boa fundamen-
pesquisa científica;
tação teóricaesta
no entanto, nãonãoé, se
necessariamente, uma manifestação
esgota aí. A compreensão desses dadosdo sadismo
tambémdoé
professor
necessária,dae disciplina,
via de regra, ou não
do orientador da pesquisa.
pode ser obtida através dos próprios dados.
Por isso, por mais que possa parecer, a exigência deboa
O que se deve fazer, então, para conseguir uma umafundamentação
boa fundamen- te-
tação teórica
órica? Basicamente não é,ler,necessariamente,
depois pensar sobre umao manifestação
assunto e, pordo sadismo
último, do
organi-
professor
zar da disciplina,assim
os conhecimentos ou do orientador
obtidos. Fácil, da
nãopesquisa.
é?
Vamos
O que se verdeve
comfazer,
vagarentão,
cada umaparadestas fases.uma boa fundamentação te-
conseguir
órica? Basicamente ler, depois pensar sobre você
Antes de mais nada, é preciso que relacione
o assunto e, poroúltimo,
material que
organi-
vai serconhecimentos
zar os lido. Neste material podem Fácil,
assim obtidos. estar não
incluídos
é? livros, artigos, repor-
tagens,
Vamos tesesveretc.
comNão vagarse cada
esqueçaumadedestas
que fases.
embora os livros normalmente
tragamAntes abordagens
de mais nada, mais profundas
é preciso que sobrevocêo tema,
relacioneas outras fontesque
o material de
informações também têm seus méritos, se você souber
vai ser lido. Neste material podem estar incluídos livros, artigos, repor- utilizá-las. Pro-
cure
tagens,verificar
teses etc.também
Não seseesqueçajá existem
de quetrabalhos
embora os feitos sobre
livros o mesmo
normalmente
assunto
tragam abordagens mais profundas sobre o tema, as outras fontesque
por colegas seus, e lembre-se que as listas bibliográficas de
normalmente
informações também acompanham têm seus trabalhos
méritos, científicos podem utilizá-las.
se você souber ser de grande Pro-
ajuda para a seleção
cure verificar também da suase jábibliografia.
existem trabalhos feitos sobre o mesmo
Agora,
assunto porcuidado
colegascom a qualidade
seus, e lembre-se do material
que asque vocêbibliográficas
listas vai consultar.que Há
vários tipos de material que devem ser evitados.
normalmente acompanham trabalhos científicos podem ser de grande Vamos ver alguns.
ajudaa) para
Enciclopédias
a seleção edadicionários comuns. Via de regra, as enciclopédias
sua bibliografia.
são Agora,
elaboradas cuidado com a qualidade um
tendo-se em vista público que
do material leigo,vocêe por sua própria
vai consultar. Há
extensão,
vários tiposnão podem tratar
de material que devem nenhum assunto Vamos
ser evitados. de forma mais profunda,
ver alguns.
nema)muito atualizada.e dicionários
Enciclopédias Por essa razão, comuns.normalmente,
Via de regra, as informações
as enciclopédiasque
se
sãopode obter a tendo-se
elaboradas partir delas emtêm umum
vista nível de superficialidade
público leigo, e por que sua asprópria
torna
inadequadas
extensão, nãoaopodem meio científico.
tratar nenhum A mesma coisadeseforma
assunto pode mais
dizer profunda,
sobre os
dicionários comuns. As definições dadas por estas
nem muito atualizada. Por essa razão, normalmente, as informações obras aos termos sãoqueas
definições do uso corrente da língua, não as da linguagem
se pode obter a partir delas têm um nível de superficialidade que as torna técnica. É claro
que essa afirmação
inadequadas ao meionão se aplicaA aos
científico. mesma dicionários
coisa setécnicos,
pode dizer que,sobre
mesmo os
assim, devem
dicionários ser usados
comuns. com reserva.
As definições dadasExistem,
por estascontudo,
obras aos dicionários
termos sãoelabo-as
rados por equipes
definições que incluem
do uso corrente especialistas
da língua, não as em da cada assunto,
linguagem que têm
técnica. um
É claro
grau de confiabilidade
que essa afirmação não bem se maior,
aplica eaos dicionários
dicionários específicos
técnicos,deque, determina-
mesmo
assim, devem ser usados com reserva. Existem, contudo, dicionários elabo-
rados por equipes que incluem especialistas em cada assunto, que têm um
grau de confiabilidade bem maior, e136  dicionários específicos de determina-

136 
se pode obter a partir delas têm um nível de superficialidade que as torna
inadequadas ao meio científico. A mesma coisa se pode dizer sobre os
dicionários comuns. As definições dadas por estas obras aos termos são as
definições do uso corrente da língua, não as da linguagem técnica. É claro
O OLHAR NO ESPELHO 
que essa afirmação não se aplica aos dicionários técnicos, que, mesmo
assim, devem ser usados com reserva. Existem, contudo, dicionários elabo-
rados por equipes
das áreas queO incluem
do conhecimento   O L HqueA especialistas
R são
  N Oexcelentes
  E S PemE Lcada
H O  assunto,
pontos que têm
de partida parauma
grau de confiabilidade
compreensão de algunsbem maior, e dicionários específicos de determina-
conceitos.
das b) Instrumentos
áreas do conhecimentode divulgação
que sãodoutrinária. Incluo neste
excelentes pontos tópicopara
de partida tantoa
revistas e jornais religiosos,
compreensão de alguns conceitos. quanto publicações ligadas a partidos políti-
cos ou outros gruposdee divulgação
b) Instrumentos que tenham136  como função
doutrinária. principal
Incluo neste atópico
divulgação
tanto
das idéias destes organismos. De forma geral, devem
revistas e jornais religiosos, quanto publicações ligadas a partidos políti- ser evitadas obras
panfletárias.
cos ou outrosChamo gruposdee que obrastenham
panfletárias todas aquelas
como função principalque procuram
a divulgação
prescrever determinadas
das idéias destes organismos.formas Dedeformaação, geral,
a partir de pontos
devem de vistaobras
ser evitadas não
discutidos e/ou não discutíveis, já que partem de
panfletárias. Chamo de obras panfletárias todas aquelas que procuram pressupostos inquestio-
nados.
prescrever determinadas formas de ação, a partir de pontos de vista não
Procuree/ou
discutidos nãonãotomar essas obras
discutíveis, comopartem
já que embasamento, e evite colocar,
de pressupostos inquestio-em
suas
nados. próprias formulações, afirmações que se pretendam evidentes por si
próprias,
Procure ou nãotão tomar
óbviasessas
que obras
são inquestionáveis.
como embasamento, Neste ecaso,
evite você estaria
colocar, em
caindo tambémformulações,
suas próprias numa linguagem panfletária,
afirmações que seque é contrária,
pretendam ao menos
evidentes porem si
princípio, ao espírito crítico da ciência.
próprias, ou tão óbvias que são inquestionáveis. Neste caso, você estaria
c) Meios
caindo também de numa
divulgação e artigos
linguagem anônimos.que
panfletária, Aoéprocurar
contrária,reportagens
ao menos em em
jornais e revistas não especializadas,
princípio, ao espírito crítico da ciência. procure relacionar publicações que
primem pela de
c) Meios seriedade
divulgação e pela qualidade
e artigos das matérias
anônimos. Ao procurarque veiculam;
reportagens enfim,
em
que mereçam
jornais e revistas credibilidade. À primeira
não especializadas, vista, relacionar
procure este critério pode parecer
publicações que
muito
primemsubjetivo, mas basta
pela seriedade e pelaacompanhar
qualidade das um matérias
pouco essas que publicações
veiculam; enfim,para
que o critério se torne bastante seguro. Todos nós
que mereçam credibilidade. À primeira vista, este critério pode parecer conhecemos alguns jor-
nais especialmente preocupados em mostrar sangue,
muito subjetivo, mas basta acompanhar um pouco essas publicações para ou em defender ferre-
nhamente
que o critériodeterminadas posições;seguro.
se torne bastante ou aquelas
Todosrevistas próprias para
nós conhecemos algunsse jor-
ler
em salas de espera e barbearias, ou aquelas outras
nais especialmente preocupados em mostrar sangue, ou em defender ferre- que os adolescentes
adoram,
nhamentenãodeterminadas
é mesmo? posições; ou aquelas revistas próprias para se ler
Mesmodeassim,
em salas esperaeme casos de artigos
barbearias, assinados,
ou aquelas outrasainda
queé possível, com o
os adolescentes
devido cuidado,
adoram, não é mesmo? se aproveitar alguma coisa, mesmo em órgãos pouco reco-
mendáveis.
Mesmo assim, em casos de artigos assinados, ainda é possível, com o
d) cuidado,
devido Literaturasepseudocientífica.
aproveitar alguma Temcoisa,
havido nos últimos
mesmo em órgãos anospouco
uma reco-
inva-
são, nas
mendáveis. livrarias, de obras que, sob uma aparência de ciência, escondem
teorias ocas e absurdas,
d) Literatura despidas de
pseudocientífica. Tem qualquer
havido preocupação
nos últimos anos com umasua com-
inva-
provação e, a meudever,
são, nas livrarias, obras semque,qualquer
sob uma validade.
aparênciaEstesde livros primam
ciência, escondempor
apresentar títulos bombásticos (e altamente atraentes,
teorias ocas e absurdas, despidas de qualquer preocupação com sua com- sob o ponto de vista
comercial)
provação e,tais a como Liberte
meu ver, semsua dinamitevalidade.
qualquer interior Estes
ou O livros
métodoprimam
infalívelporde
controle mental absoluto etc. Procure verificar o embasamento
apresentar títulos bombásticos (e altamente atraentes, sob o ponto de vista destas obras
comercial) tais como Liberte sua dinamite interior ou O método infalível de
controle mental absoluto etc. Procure verificar o embasamento destas obras

137 

137 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

e provavelmente você vai encontrar um mero apanhado de opiniões, algu-


mas muito criativas, e muita vontade de ganhar dinheiro fácil.
Não se assuste, porque mesmo excluídas estas obras todas, ainda há, via
de regra, muito material bom a ser consultado. Além disso, embora essas
obras não devam ser utilizadas como fundamentação teórica, isto não impe-
de que elas sejam utilizadas como objeto de pesquisa.
Do outro lado, o das leituras recomendáveis, podemos citar, além dos
livros, as revistas e outras publicações especializadas, as sessões de divulga-
ção científica dos periódicos “sérios”, os artigos assinados por pesquisadores
etc.
Lembre-se que as revistas e artigos contêm, normalmente, informações
mais atualizadas do que as contidas nos livros.
Um destaque especial deve ser dado, no início de sua coleta de material
bibliográfico, para três tipos de trabalhos: a) as chamadas obras de referên-
cia, que são coleções destinadas justamente a fornecer informações sobre o
conjunto dos textos de uma área de conhecimento (organizados, normal-
mente, a partir dos temas que abordam); b) as coletâneas, que são conjun-
tos de textos de um mesmo autor ou de vários autores sobre um mesmo
assunto, agrupados de forma a facilitar a leitura e as comparações entre
eles; c) os levantamentos já realizados por outros autores sobre o material
referente a determinado tópico, que podem auxiliar, em muito, o traba-
lho de quem estiver se iniciando no assunto.
Bem, uma vez que você tenha selecionado o seu material, agora é só ler.
Tenho percebido que as pessoas, a cada dia, estão desaprendendo o
sentido do ato de ler. Antes de mais nada, lembre-se que você não vai fazer
uma prova, livre-se do hábito de ler para decorar e procure assimilar o
conteúdo das obras que consultar de uma forma muito mais dinâmica e
suave. Procure não devorar o livro, mas saboreá-lo. Não memorize, sim-
plesmente, entenda.
Caso você tenha dificuldades em realizar uma leitura mais proveitosa (há
um número enorme de pessoas que têm esse tipo de dificuldades) consulte as
partes que se referem a este assunto, por exemplo, nos livros de Ruiz (1982);
Cervo e Bervian (1974) ou Severíno (1982).
Procure a forma de armazenamento dos dados que melhor se a-
dapte a você (fichamento, resumos, sublinhar trechos), de tal forma

138 
O OLHAR NO ESPELHO 

que, após a leitura de cada texto, você tenha, além de uma boa com-
preensão, uma listagem dos pontos mais importantes do mesmo.
Mesmo durante as leituras, procure anotar as dúvidas que os autores
despertam em você, os problemas ou questões que não são respondidos
pelas teorias, os pontos em que dois ou mais autores divergem ou concor-
dam. Procure detectar as influências de uma teoria sobre a outra, discuta
essas e outras questões com seu orientador; enfim, procure conhecer bem o
assunto.
Aí vem a hora da organização do material teórico.
Por favor, não caia no comodismo de simplesmente elaborar um resu-
mo de cada obra consultada e anexá-los uns aos outros, acreditando que
isso se tornará um trabalho científico. Se o trabalho estiver sendo feito em
equipe, também não tente dividir o material de forma que cada um leia um
pouco, para em seguida agrupar os resumos. Normalmente o que resulta
desse tipo de procedimentos são inúteis colchas de retalhos, totalmente sem
seqüência, e muitas vezes contraditórias.
Em algumas áreas da ciência se usa apresentar uma seqüência das
evidências teóricas mais importantes primeiro, ou seja, uma coleção de
citações referentes ao assunto, ligadas por brevíssimos comentários do
autor do trabalho e, em seguida, uma parte só dele, em que faz a análise,
organização e a síntese de todas aquelas informações. Este modelo me
parece pouco adequado para a nossa área, em que os dados têm uma
natureza muito pouco precisa, sendo, portanto, muito mais discutíveis.
Penso que é mais adequado que você procure organizar seus dados a
partir das informações mais simples sobre o assunto (definições, comentá-
rios iniciais), até chegar aos aspectos mais específicos e às discussões mais
profundas, utilizando os comentários e posições dos autores lidos, à medida
que eles se enquadrarem no texto.
Lembre-se que você está se colocando como autor do seu trabalho, e
não apenas como colecionador (organizando e armazenando informações),
ou digitador (transcrevendo as mesmas). Você pode −e deve −servir-se dos
trabalhos de outros autores também, mas é indispensável que você participe
ativamente na elaboração e redação do texto. Suas idéias, dúvidas e contri-
buições são imprescindíveis.
Ao final da elaboração de sua fundamentação, você deve ser capaz não
apenas de conhecer ou de reconhecer algumas das frases que os autores

139 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

consultados sobre o assunto publicaram. Deve ter conseguido dominar o


significado dos conceitos teóricos com os quais vai continuar trabalhando,
poder situá-los dentro das teorias, perceber e ser capaz de compreender e
discutir as diferenças entre as teorias ou as posições dos autores sobre elas.
Deve, acima de tudo, ser capaz de estabelecer ligações entre o que é postu-
lado pelas teorias e as situações concretas que você pretende estudar em
seguida.
Por uma série de questões éticas e legais, você deve deixar sempre claro
quais são os conteúdos de sua autoria e quais não são.
Há uma série de regras para que isto seja feito, e um grande número
de livros que trazem estas regras. Vamos nos limitar, aqui, a citar os casos
mais freqüentes e as formas como devem ser feitas as citações.
Primeiro caso: a redação e as idéias são suas. Como o trabalho é seu,
não há necessidade de se usar nenhum tipo de indicação. Lembre-se, porém,
que, por convenção, toda e qualquer frase que não estiver identificada em
seu trabalho, será atribuída a você. Não deixe, portanto, de indicar clara-
mente qualquer trecho que não seja de sua autoria.
Segundo caso: você está utilizando as idéias de outro autor, mas elas es-
tão sendo expostas com frases suas. Neste caso, indique antes da frase o
nome do autor da idéia. Indique também a data de publicação da obra de
onde você retirou a idéia, colocando-a entre parênteses logo após o nome
do autor. Use frases do tipo “Segundo Freud (19..), ...”; ou mesmo “Marx
(19..) diz que ...”.
Nunca use adjetivações do tipo “o grande sábio ...” ou “o famoso cientista ...”,
nem títulos como “doutor, professor” etc. Lembre-se que o que deve contar é a
qualidade do dado científico e não a qualificação do cientista.
Se você usar várias idéias do mesmo autor, procure sempre deixar
claro até onde vão as idéias dele, e onde se reiniciam as suas. Procure
não modificar as idéias que não forem suas, no trabalho de reelaboração.
Terceiro caso: aqui você está transcrevendo integralmente as idéias de
outro autor, tal como elas foram redigidas por ele. Indique claramente,
através de aspas (“), ou outro recurso de diferenciação gráfica, onde se
inicia e onde finda a transcrição. Informe quem é o autor, a data da publi-
cação da obra consultada e a página onde se situa a frase transcrita. Essas
informações podem aparecer antes da frase citada (exemplo: Rogers (l9.., p.
15) diz: “...”); após a mesma (exemplo: “...” (Malinowski, 19.., p. 157)), ou você

140 
O OLHAR NO ESPELHO 

pode indicar o nome do autor antes da frase e as outras informações após a


mesma (exemplo: Bastide acredita que “...” (19.., p. 35)).
Caso você vá omitir um trecho no início da frase, use reticências entre
colchetes logo após as aspas iniciais (“[...]); faça o inverso se a parte omitida
for no final ([...]”). Se for necessária a omissão de uma parte central da
frase, coloque as reticências entre colchetes no local da omissão.
Não esqueça que, no caso de uma citação literal, você não pode modificar a
frase do autor, nem truncá-la de forma a mudar o seu sentido original.
Quarto caso: você pretende usar uma frase ou uma idéia de um autor
citado no livro de um outro. É o que chamamos citação de citação. Neste
caso, não faça de conta que você leu os dois livros. Indique o nome do autor
citado, e acrescente a informação sobre o autor e a data da publicação do
livro que foi efetivamente consultado. Assim: “a linguagem é aquilo através
do que se generaliza a experiência da prática sócio-histórica da humanidade”
(Leontiev apud Lane, 1983, p. 25). Isto indica que a obra que consultei foi
escrita por Lane, e é este o livro que deve aparecer com a indicação comple-
ta nas referências.
Já que falamos nisso, não se esqueça de que toda obra utilizada, citada
no corpo de seu trabalho, tem que aparecer na listagem de referências. Por
isso, anote todos os dados de cada livro, artigo, reportagem, assim que fo-
rem lidos, e guarde esses dados para colocá-los nas referências, ao final do
trabalho.
Uma outra fonte que pode ser utilizada para a elaboração da fundamen-
tação teórica, se bem que deva ser utilizada com extremo cuidado, são as
experiências cotidianas do próprio investigador. Especialmente quando o ponto
de partida para a pesquisa for um grupo social, e o pesquisador fizer parte
deste grupo, ou tenha com ele um contato intenso, é provável que essa
convivência gere uma série de conhecimentos que não devem e não podem
ser desprezados. Contudo, é necessário um grande cuidado para que estes
conhecimentos, e as convicções que provêm deles, não enviesem o anda-
mento da pesquisa.
Se, por outro lado, a realidade social do cientista for distante da rea-
lidade da população que se pretende investigar, é indispensável que se-
jam estabelecidos contatos, mesmo informais, entre ambas. Se for este o
caso da sua pesquisa, você deve tentar conviver com a população que

141 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

quer investigar, conhecer o dia-a-dia dessas pessoas, para diminuir o


risco de vir a fazer um trabalho que não lhes sirva para nada.
Se você tiver o cuidado de não valorizar demais os dados assim obtidos,
nem se deixar levar demais por sua imaginação, eles poderão contribuir, e
muito, para que você tenha uma boa fundamentação.
Mas o que é uma boa fundamentação teórica? Quando ela pode ser da-
da como concluída?
A meu ver, a parte de coleta e organização dos dados teóricos tem uma
tripla função; ela deve: a) servir para fornecer ao autor do trabalho e aos
seus futuros leitores, informações organizadas sobre o assunto da pesquisa,
e sobre o estado atual dos trabalhos feitos sobre o mesmo; b) fornecer
elementos que orientem os rumos a serem seguidos pelo trabalho daí em
diante, e justifiquem a sua continuidade; c) conter informações que possibi-
litem a discussão final dos dados obtidos através da parte de campo da
pesquisa e a reintegração dos novos conhecimentos adquiridos às teorias já
existentes, reforçando-as ou transformando-as.
Uma boa fundamentação será aquela que contiver todos esses elemen-
tos.
Como se vê, por mais trabalho que dê, e por mais trabalhosa que pareça
sua elaboração, a fundamentação teórica de um trabalho científico serve não
só para orientar as decisões sobre os passos seguintes do próprio trabalho e as
discussões dos dados obtidos com ele, como para relacionar a pesquisa reali-
zada com o universo mais amplo do conhecimento. Além disso, se for o caso,
permite também que se selecione com mais segurança o problema a ser pes-
quisado.
Um último lembrete sobre a fundamentação teórica: embora sirva, co-
mo dissemos antes, para orientar a elaboração do problema e dos objetivos
finais da pesquisa, isto não quer dizer que ela se esgote neste momento.
Muitas vezes, ao formular o problema, o pesquisador introduz um novo
conceito ou mesmo uma teoria que ainda não haviam sido explorados na
fundamentação. Isto exige outras leituras e a elaboração de novas sínteses,
nos mesmos moldes do que já foi feito.
Em outras vezes, o problema aponta para a necessidade de uma outra
leitura, com objetivos mais específicos, dos textos já lidos e sintetizados na
fundamentação. É o caso das pesquisas bibliográficas, em que, após uma
primeira leitura ampla de um conjunto de textos − de um mesmo autor ou

142 
O OLHAR NO ESPELHO 

de vários autores sobre um mesmo assunto − o pesquisador se propõe a


explorar com maior profundidade e mais detalhadamente um ou alguns
aspectos específicos tratados naqueles textos. Neste caso, a segunda parte do
trabalho vai ser uma nova leitura do mesmo material, só que, agora, sob
uma nova ótica.
Além dessas situações, também é possível que o pesquisador depare,
depois de elaborado o problema, com novos textos, capazes de enriquecer
ainda mais seu trabalho. Se este for o caso, não há nada que impeça a in-
corporação de novas informações ao texto já elaborado. É preciso, apenas,
que você tome cuidado para que seu texto não se torne contraditório ou
incoerente.

O PROBLEMA DA PESQUISA

O problema é a pergunta específica a que se pretende responder com a


pesquisa. Por isso, ao contrário do tema, que é amplo, o problema precisa ser
expresso de forma clara, e ter seus limites mais bem estabelecidos. Assim, a
seleção de um problema requer, normalmente, um conhecimento teórico ou
prático mais aprofundado que a escolha de um tema.
Mas como proceder quando se deseja iniciar um trabalho de pesquisa a
partir de uma dúvida específica?
Quer você possua poucas informações sobre o assunto, quer já dispo-
nha de uma gama razoável de conhecimentos sobre ele, o procedimento
básico a ser adotado não difere muito daquele que propusemos anterior-
mente: uma vez selecionado o problema a ser pesquisado, a primeira coisa a
ser feita é justamente coletar (ou complementar), organizar e reelaborar as
informações já existentes sobre o mesmo.
Um problema de pesquisa sempre vai estar contido em um campo
maior de conhecimento e relacionado a este campo, de modo que, difi-
cilmente, poderá ser entendido fora dele. Além disso, é bem provável
que haja pouco material bibliográfico a respeito da questão específica
que você quer investigar. Essas duas razões somadas fazem com que,
mesmo que já exista um problema a ser investigado, na prática, você

143 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

tenha que adotar como campo inicial de sua pesquisa um tema mais
amplo. Uma vez adotado o tema, você já conhece os procedimentos.
Dito de outra forma: mesmo que o ponto inicial de sua pesquisa seja
uma questão específica, aja como se você estivesse partindo de um tema,
reflita sobre ele, elabore a fundamentação teórica sobre o assunto escolhido
e aí, sim, você estará em condições de pensar sobre a validade do estudo do
problema proposto.
Normalmente, uma boa fundamentação teórica sugere vários pro-
blemas importantes e possíveis de se investigar, dentro de um mesmo
tema. Com muita freqüência, isto tem levado pesquisadores iniciantes a
cair em duas posições extremas: ou optarem pela investigação de um
problema específico e se frustrarem por considerar o âmbito de sua
pesquisa muito restrito, ou se lançarem a investigar uma vasta gama de
questões, e acabar não investigando nada, por falta de recursos materi-
ais, humanos, de tempo e metodológicos para atingir todos os seus
objetivos. Isto também causa frustração, além de trazer outras conse-
qüências.
Procure se lembrar que a imensa soma dos conhecimentos científicos é
constituída por pequenas e pequenas contribuições. Neste caso, a humildade
é melhor do que a megalomania.
Isto quer dizer que você deve fazer a menor pesquisa possível? Tam-
bém não.
Para a seleção do problema devem ser utilizados os mesmos critérios
sugeridos para a escolha do tema por Castro (1977): a originalidade, a im-
portância e a viabilidade. Pense bem sobre cada um desses critérios, antes
de definir a questão central de sua pesquisa, e procure um problema que
tenha o máximo dos dois primeiros itens, sem deixar de ter o último.
Para isto, é necessário que você repita aqui dois procedimentos seme-
lhantes aos que recomendamos para o tema.

CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA

Esta é a parte onde você deve procurar deixar claros os limites e a pro-
fundidade da questão a ser investigada. Normalmente, isto exige uma breve

144 
O OLHAR NO ESPELHO 

discussão, onde se procure entender os termos do problema e sua relação


com as teorias vistas.

JUSTIFICATIVAS SOCIAIS E CIENTÍFICAS DO


ESTUDO DO PROBLEMA

Se a pesquisa for bem conduzida, o estudo de um aspecto da realidade


deve trazer contribuições, tanto ao corpo de conhecimentos quanto às po-
pulações envolvidas, qualquer que seja o resultado encontrado. É a discussão
desses ítens que vai permitir, ao próprio autor do trabalho, verificar os
graus de importância e de originalidade do que pretende investigar.
A viabilidade dessa investigação será determinada pelo planejamento, do
qual falaremos mais tarde. Antes dele, devemos tratar de um outro tópico
importante.

AS HIPÓTESES
Uma hipótese é uma resposta provável e provisória ao problema. Essa
resposta é elaborada pelos autores da pesquisa a partir da fundamentação
teórica, e deve representar, entre as várias respostas possíveis de serem
dadas ao problema, aquela que tem maior possibilidade de refletir a realida-
de que se deseja estudar. A escolha de uma hipótese, portanto, não é um
exercício de adivinhação, ou um teste para a capacidade de imaginação do
cientista.
Mas para que serve uma hipótese? Toda pesquisa tem hipóteses, ou e-
xistem pesquisas sem elas?
Para estas perguntas, temos antes que falar de um outro assunto: o
contexto da pesquisa.
Dependendo do assunto que se está pretendendo conhecer, podemos
ter dois tipos diferentes de pesquisa. Se estamos tratando de um assunto
novo, sobre o qual há pouco ou nenhum dado disponível (uma teoria re-
cém-criada, uma população ainda não estudada etc.) nosso trabalho enquan-
to pesquisador será, antes de mais nada, o de colecionar informações a
respeito do assunto. Uma pesquisa, nesta situação, deve procurar descobrir
as características peculiares do objeto estudado, para tornar possível, após

145 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

obtidos estes dados, relacioná-los com outros estudos e outras teorias. Esta
pesquisa é realizada, portanto, num contexto de descoberta.
Ora, se estamos nos aproximando de uma realidade pouco conhecida, e
visando descobrir suas particularidades, não dispomos de elementos que nos
permitam elaborar hipóteses, e hipóteses elaboradas sem fundamentos, além
de serem de pouca utilidade, ainda podem servir para enviesar o nosso
trabalho, como veremos adiante.
Por outro lado, se estamos trabalhando dentro de um campo mais co-
nhecido, sobre o qual já se dispõe de uma quantidade razoável de informações,
podemos verificar se um dado já detectado em uma outra população é válido
para esta, ou se uma idéia, resultante da união de dois ou mais estudos anterio-
res, corresponde ao que ocorre na prática. Podemos, em outras palavras, tentar
verificar numa realidade já conhecida, a existência ou não de um fenômeno e
suas relações com os demais. O contexto desta pesquisa, portanto, é o da verifi-
cação de uma ou mais idéias.
Quando uma pesquisa for realizada num contexto de verificação, a ação
do cientista será justamente a de investigar se uma hipótese, sugerida por
outros trabalhos, é válida para uma dada realidade. Neste contexto, é conve-
niente a elaboração da hipótese.
Dentro de um projeto de pesquisa, a hipótese (ou as hipóteses, se for o
caso) serve para delimitar ainda mais o problema, a partir da fundamenta-
ção teórica que se elaborou, tendo como base o tema.
Fiz questão de incluir esta frase toda aí, para estabelecer um primeiro
ponto importante sobre a hipótese: como você já deve ter percebido, cada
uma das partes componentes de um projeto de pesquisa tem uma íntima
ligação com as demais, e só se pode fazer uma avaliação do seu valor a
partir de sua coerência com o todo. Assim, não é difícil que, à medida que
você for avançando na elaboração do projeto, surjam dúvidas sobre pontos
decididos anteriormente, que podem, eventualmente, implicar a reformula-
ção ou a complementação desses pontos.
A partir disso, lembre-se que a hipótese é uma resposta que se supõe
ser a mais adequada à pergunta que é o problema; deve ser elaborada a
partir das informações contidas na fundamentação e ser coerente com am-
bos.

146 
O OLHAR NO ESPELHO 

Já dissemos que as hipóteses servem para delimitar ainda mais os obje-


tivos da pesquisa. Vamos ver como isto funciona.
O problema é sempre uma pergunta e é possível haver um número
muito grande de respostas para cada pergunta. Se estudos anteriores ao
nosso já indicam a possibilidade de que na realidade que estamos tentando
conhecer ocorra um fenômeno específico, teremos aí uma hipótese bem
fundamentada. Ora, é muito mais simples verificar se esta hipótese está
correta ou não, do que tentarmos investigar todas as respostas possíveis ao
problema.
À partir da escolha de uma hipótese, podemos construir instrumentos
muito mais específicos. Resta saber qual é o grau de especificidade necessá-
rio para a realização da pesquisa.
Este é um outro ponto importante. As limitações colocadas pela hipóte-
se não devem servir para reduzir tanto a pesquisa, que impeçam a obtenção
de uma resposta satisfatória para o problema. Lembre-se que a hipótese é
um recurso metodológico; o que se busca é a solução do problema.
A partir desta última frase, podemos abordar uma das dúvidas mais
freqüentes, e que causa os maiores temores nos iniciantes da pesquisa: e se
a hipótese formulada não for comprovada?
Este é um temor tão arraigado, que algumas vezes o autor é tentado a
falsear dados de sua pesquisa apenas para provar que suas hipóteses eram
corretas. Este tipo de procedimento demonstra três fatos totalmente indese-
jáveis: primeiro, a evidente falta de seriedade do pesquisador; depois, uma
tentativa de adequar a realidade à ciência, quando o correto deveria ser o
contrário; e, por último, um total desconhecimento das funções da hipótese
na pesquisa.
Se os dois últimos fatos revelam um grande desconhecimento da meto-
dologia científica, o primeiro demonstra mesmo a falta de honestidade do
pesquisador. E todos eles são desnecessários.
Se o planejamento de sua pesquisa for bem elaborado, a execução do
projeto realizada corretamente e, ao final, verificar-se que a hipótese
lançada está correta, o que isto representa? Representa um acréscimo ao
valor das teorias nas quais você se embasou e isto é muito bom.
Mas o que representaria o oposto, isto é, você realizar corretamente sua
pesquisa e ao final desta os dados apontarem a conclusão de que a hipótese
sugerida não traduz a forma como os fatos se apresentam na realidade

147 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

estudada? Neste caso sua pesquisa traria um questionamento sobre os limi-


tes da validade das teorias estudadas, e sugeriria uma discussão das mes-
mas, que poderia, quem sabe, trazer contribuições até mais valiosas para o
conhecimento científico do que o caso anterior. E isto é ótimo.
A dúvida e o questionamento constante fazem parte da ciência, muito
mais do que a certeza. Termos como “indiscutíveis” e “definitivos” não de-
vem fazer parte do vocabulário da ciência. Daí o valor das pesquisas em que
as hipóteses não são confirmadas.
Este mesmo raciocínio não se aplica aos casos em que a pesquisa é mal
planejada, ou mal executada, de modo que a hipótese, ou as hipóteses exis-
tentes não podem ser comprovadas nem refutadas. Nestes casos, o foco da
questão não está nas teorias, mas no pesquisador.
Além de definir claramente suas hipóteses, e de explicar as razões
pelas quais elas foram escolhidas (e é importante que estes dois pontos
estejam claros tanto para você quanto para o leitor), eventualmente você
precisará delimitar alguns dos termos utilizados nas hipóteses. Isto ocor-
rerá sempre que, nas hipóteses, aparecerem termos que não foram discu-
tidos antes, ou que possam ter vários significados. Neste caso, deve ficar
claro o significado que se está atribuindo ao termo, na pesquisa.
Há mais três pontos que quero abordar antes de encerrarmos este item.
Na prática, a distinção entre dois contextos de pesquisa não é tão rígida,
havendo pontos intermediários. Isto significa que é possível haver pesquisas
sobre assuntos já estudados e nas quais não são elaboradas hipóteses, ou
porque não é desejável um grande grau de especificidade, ou porque o núme-
ro de hipóteses viáveis é muito grande.
O segundo ponto é sobre o grau de dificuldade dos dois tipos de pes-
quisa. Num contexto de descoberta, como os dados teóricos são escassos e
as informações que se pretende buscar são mais gerais, o planejamento da
pesquisa como um todo tende a ser mais fácil do que no caso de uma veri-
ficação. Porém, via de regra, tanto a coleta quanto o tratamento dos dados
na verificação são mais fáceis, já que aí se pode delimitar melhor as infor-
mações que vão ser colhidas e ter uma boa previsão de como os dados
poderão ser organizados.
Por último, quer sua pesquisa tenha hipóteses ou não, já é hora de você
começar a pensar na natureza dos dados que vai ter que obter para respon-
der ao problema proposto. Que tipo de informações você vai ter que procu-

148 
O OLHAR NO ESPELHO 

rar, e onde elas podem ser buscadas? Você vai trabalhar com novos dados
bibliográficos, vai buscar registros em arquivos, em outras fontes de infor-
mação ou vai trabalhar com pessoas? Se for este o caso, o que você vai
procurar obter: comportamentos, depoimentos, memórias, opiniões, percep-
ções, atitudes, motivações, crenças, definições, representações? Convém você
rememorar as diferenças entre estes termos. É possível trabalhar seus dados
de forma quantitativa, ou eles só podem ser analisados qualitativamente?
Estes elementos são fundamentais para as partes que vêm a seguir.

PROCEDIMENTOS E MÉTODOS
A elaboração dos procedimentos decorre da escolha dos objetivos; isto
é, só agora, que você sabe o que pretende investigar, é que pode decidir
como fazê-lo.
A seguir, vamos apresentar uma lista de itens para auxiliá-lo na ela-
boração de seu planejamento. No entanto, como cada pesquisa tem caracte-
rísticas próprias, lembre-se que, eventualmente em seu projeto, alguns
destes itens podem não aparecer, ou pode ser conveniente incluir algum ou-
tro aspecto que não tenha sido sugerido aqui.
Para facilitar nossa exposição, apresentamos uma subdivisão minuciosa
dos vários itens e sub-ítens. Isto não significa que eles devam ser tratados
de forma isolada, já que são inter-relacionados, e nem é necessário que no
seu relatório eles apareçam separados e codificados da mesma forma como
estão aqui. É mais elegante escrever de forma cursiva, e assim a leitura se
torna mais fácil e agradável.

PROCEDIMENTOS GERAIS

Inicialmente procure ter claros os vários passos que devem ser segui-
dos, de agora em diante, para alcançar os objetivos propostos pela pesquisa.
Reflita sobre quais são as informações que necessitará obter, onde elas po-
derão ser obtidas e de que forma se pode fazer isto. Discuta os pontos
favoráveis e desfavoráveis de cada alternativa que surgir, de modo que suas
escolhas não sejam feitas ao acaso, nem por qualquer outro critério que não
seja a eficiência do procedimento para o andamento da pesquisa.

149 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

É claro que nesta busca de eficiência você não deve e nem pode ignorar
os aspectos éticos e humanos de suas ações.
Uma vez que já saiba como obter as informações necessárias, procure
planejar a forma como essas informações vão ser trabalhadas, ou seja, o que
você vai fazer com os dados que recolher, como vai agrupá-los e analisá-los.
Dependendo da pesquisa que se esteja realizando, nem sempre este úl-
timo planejamento pode ser feito com precisão. É o caso, por exemplo, das
pesquisas exploratórias. De qualquer forma, procure prever com a maior
precisão possível o andamento futuro da pesquisa. Este planejamento pode
evitar que você tenha surpresas desagradáveis, tais como descobrir, na últi-
ma hora, que a pesquisa não pode ser concluída por falta de tempo, ou que
não é possível obter os dados necessários da forma como foi planejado.
Uma vez elaborada essa discussão sobre os procedimentos gerais e
suas razões, convém detalhar cada passo. Você vai perceber que a ordem
de elaboração desses passos não é, necessariamente, a que apresentamos
aqui, e que pode ser necessário rever as partes iniciais do planejamento,
em função de problemas que surjam mais adiante.
Tanto nesta parte quanto nas seguintes há duas questões que não po-
dem, de forma alguma, ser esquecidas: a) a informação que você está bus-
cando é necessária e suficiente para se obter uma reposta satisfatória para o
problema da pesquisa? b) a forma como você vai buscar essas informações
é a mais adequada para isto?

POPULAÇÃO OU CAMPO DA PESQUISA

Se você vai coletar seus dados a partir de contatos com pessoas, é ne-
cessário saber qual é o grupo que pretende investigar e por que deseja fazê-
lo. Mesmo que o seu interesse seja o de obter conhecimentos sobre pessoas,
dentro das ciências sociais é possível que você atinja seus objetivos sem
lidar diretamente com elas. É o caso das pesquisas documentais e de alguns
estudos envolvendo animais. Em qualquer destes casos, é necessário que
você delimite e descreva o grupo ou o campo dentro do qual pretende rea-
lizar suas investigações. Essa escolha delimitará o alcance de sua pesquisa, e
pode ser trabalhada em dois níveis.

150 
O OLHAR NO ESPELHO 

CARACTERIZAÇÃO DO UNIVERSO
É a descrição do grupo total a ser atingido pela pesquisa. Aqui você de-
ve deixar claro qual é e como é a população ou o campo que deseja investi-
gar. Procure relacionar os aspectos que identificam um elemento como
membro deste universo, e que o diferenciam dos membros de outros gru-
pos.
Para selecionar quais são os aspectos mais importantes, tome o pro-
blema como base. Por exemplo, se você quer investigar alguma coisa sobre
os jovens, o aspecto fundamental será a idade; se o seu trabalho é sobre
imigrantes, o local de nascimento poderá ser o mais importante.

SELEÇÃO DA AMOSTRA
O tamanho do universo, a escassez de tempo, ou a complexidade da
pesquisa são fatores que podem determinar a necessidade de que os dados
sejam coletados em uma parte do grupo a ser pesquisado, e não no seu
todo. Nestes casos, você deve estabelecer critérios para selecionar uma a-
mostra.
Quando se fala em amostra, normalmente as perguntas que surgem
são: “quantos elementos eu devo ter para a amostra ser significativa?”, ou
“qual porcentagem é suficiente?”. Os manuais de pesquisa mais presos aos
métodos quantitativos sugerem porcentagens que variam de acordo com o
tamanho do universo. Já os métodos menos formais preferem se prender
mais a aspectos qualitativos, sem tanta preocupação com a proporção da
amostra.
No caso das pesquisas didáticas, os fatores limitantes costumam ser
tantos que dificilmente se pode ter uma amostra muito extensa. De qual-
quer forma, é importante que os membros da amostra sejam típicos e re-
presentativos do universo.
Quando houver uma ou mais características que justifiquem a divisão
do universo em subgrupos, a amostra deverá conter membros de cada um
deles. É o que chamamos amostra estratificada.
Tenho visto muitos projetos de pesquisa em que se diz “a amostra será
escolhida aleatoriamente”, sem maiores explicações. Precisamos falar um
pouco sobre isto.

151 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

Há certa confusão sobre o que venha a ser uma escolha aleatória.


Este termo só deve ser usado quando o processo de escolha permitir
que todos os elementos do universo tenham chances equivalentes de
pertencer à amostra. No caso de amostras estratificadas, as chances
devem ser iguais para todos os membros de cada um dos subgrupos.
Qualquer critério que decorra de uma opção do pesquisador ou dos
sujeitos, não é aleatório. Por exemplo, se o pesquisador decide se colo-
car numa esquina da cidade, e entrevistar as pessoas que passarem por
ali, e que se dispuserem a responder a suas perguntas, este procedimen-
to não estará sendo aleatório por duas razões, pelo menos. Primeiro,
porque os diversos locais de uma cidade são freqüentados, em horários
e dias diferentes, por grupos diferentes, e assim o pesquisador estará
provocando, ainda que involuntariamente, um direcionamento em sua
amostra. Segundo, a própria aparência física e a forma que o pesquisa-
dor estiver utilizando para se aproximar das pessoas, poderá determinar
quais os grupos que concordarão em ser entrevistados.
Além disso, nem toda amostra deve ser escolhida aleatoriamente. Há ca-
sos em que a aleatoriedade é necessária, há outros em que ela não é nem
desejável. Por exemplo, se você pretende conhecer algum aspecto da vida de
um grupo através do pensamento de seus líderes, seu trabalho será o de
localizar e estudar esses líderes. Neste caso, a seleção da amostra será inten-
cional.
Há vários critérios para se selecionar uma amostra. Para saber qual é o
mais adequado para a sua pesquisa, consulte tanto o problema quanto as
hipóteses, se elas existirem. Lembre-se de que as limitações de tempo e de
recursos podem até servir para determinar o tamanho da amostra, mas
devem interferir o mínimo possível nos critérios de escolha da mesma.

METODOLOGIA

Um método é uma seqüência de procedimentos, mais ou menos padro-


nizada, que é eficaz para a realização de determinado tipo de investigação.
O método é o que garante a padronização dos vários tipos de planejamento
possíveis para a pesquisa.
Não há um método melhor que os demais, o que há são métodos dife-
rentes, adequados a diferentes objetivos. Assim, o investigador que só co-

152 
O OLHAR NO ESPELHO 

nhecer um método de pesquisa, corre o risco de tratar de forma idêntica


problemas diversos e é um sério candidato a iniciar pesquisas que jamais
serão concluídas. Daí a importância de que o pesquisador conheça várias
alternativas metodológicas e possa apresentar em seu projeto uma discussão
sobre qual delas é a mais adequada.
A escolha dos métodos depende, assim, desde as teorias com as quais se
está trabalhando (fundamentação teórica), até os objetivos específicos da
pesquisa (problema e/ou hipóteses).

MÉTODOS GERAIS DAS CIÊNCIAS


Há alguns procedimentos amplos, que são comuns aos vários ramos
da ciência, e que se mostram mais ou menos adequados a cada um destes.
Para uma discussão preliminar sobre os ramos da ciência, consulte Wea-
therall (1970). Sobre os métodos indutivo e dedutivo você pode procurar
a obra de Régis de Morais (1981), especialmente o capítulo 2, que trata
dos “Recursos metodológicos básicos da ciência”. Para algumas informa-
ções preliminares sobre o método dialético, você pode consultar Konder
(1983), ou, num nível mais prático, Brandão (1981 e 1984). Você pode
consultar também Lakatos e Marconi (1982), que descrevem e discutem
tanto os métodos formais (indutivo, dedutivo)) e uma derivação deles (o
hipotético-dedutivo), quanto o dialético.
Uma vez que você conheça os métodos das ciências, e já saiba como
proceder para a realização de sua pesquisa, procure verificar a adequação
dos procedimentos escolhidos, elaborando alguns comentários sobre o mé-
todo que vai utilizar: descreva este método, evidencie como ele vai ser usado
em seu trabalho e apresente as causas dessa escolha.
Lembre-se de que, via de regra, os métodos não são unidades estan-
ques, isoladas. É possível que para o bom andamento da pesquisa, você
tenha que recorrer a mais de um deles; outra vez, é possível se perceber a
importância do conhecimento dos métodos.

MÉTODOS ESPECÍFICOS
Cada uma das várias ciências tende a adaptar os métodos gerais, ade-
quando-os ao seu objeto de estudo.

153 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

Não há uma posição única sobre quantos e quais são os métodos de


cada uma da ciências sociais. Ao contrário, pode-se dizer que cada autor
que escreve sobre o assunto apresenta uma classificação própria.
Temos adotado, para a psicologia, a divisão proposta por Hyman (1977),
por sua simplicidade, e porque toma como base critérios bastante amplos.
Seria interessante que você a consultasse.
Se fizer isto, você vai perceber que ela não considera a possibilidade da
utilização do método dialético na psicologia; para suprir esta lacuna, recorra
aos trabalhos de Brandão (1981 e 1984) e Konder (1983), já citados.
As mesmas recomendações que fizemos com relação ao sub-item an-
terior, podem ser utilizadas aqui. A única diferença é que, enquanto o
método geral representa um descrição do total dos procedimentos da
pesquisa, o método específico é uma sistematização das intenções gerais
da mesma, dentro dos limites da ciência com a qual você está trabalhan-
do.
A escolha, a caracterização e as justificativas da escolha de um ou mais
métodos específicos representam uma oportunidade para que você reflita,
de modo mais organizado, sobre o nível de suas aspirações, e isto é funda-
mental para que se possa estabelecer os passos seguintes.

TÉCNICAS
Os métodos são os procedimentos gerais da pesquisa; as técnicas, os
procedimentos específicos da fase de coleta de dados no campo, ou seja,
aquela que se faz após a escolha do problema.
Para a coleta desses dados, você pode observar pessoas, interrogá-las,
analisar ou comparar textos e documentos, controlar ou modificar compor-
tamentos etc. Cada uma destas formas de agir representa uma ou mais
técnicas diferentes. Como exemplos, há várias formas de se observar pessoas
e, para interrogá-las, você pode se utilizar de entrevistas, questionários,
formulários, escalas, listas de adjetivos etc.
O que vai determinar quais são as técnicas mais adequadas para a sua
pesquisa é a natureza dos dados que você necessita obter.
Normalmente, as pessoas têm informações superficiais sobre uma ou
duas técnicas de pesquisa (via de regra, entrevistas e questionários) e aí são
obrigadas a manipular a pesquisa para que ela se adeque à técnica, ou até a
se propor a iniciar a pesquisa pela escolha da técnica, como já vimos.

154 
O OLHAR NO ESPELHO 

É claro que os resultados, nestes casos, só podem ser desastrosos.


Só para você ter uma idéia da diversidade de técnicas existentes, Fes-
tinger e Katz (1974) apresentam um capítulo inteiro só para falar sobre
algumas delas, e Selltiz et al. (1974) dedicam ao mesmo assunto nada menos
do que 6 capítulos. Marconi e Lakatos (1982) também apresentam alguns
tópicos interessantes sobre algumas técnicas mais comuns, e estas são boas
sugestões para leituras iniciais. Castro (1977) apresenta uma discussão sobre
o “Uso da técnica sofisticada ou uso sofisticado da técnica”, que merece ser
lida e aproveitada.
É claro que você não tem a obrigação de conhecer a totalidade das téc-
nicas, mas deve poder escolher aquela que seja a mais conveniente para a
obtenção de seus dados. Neste sentido, não é impossível, e nem proibido,
que você mesmo elabore uma nova técnica.
O importante é que fique claro, para você e para o leitor, qual é a téc-
nica que vai ser utilizada, suas características e o porque dessa escolha.

INSTRUMENTOS
O instrumento é o material específico que se vai utilizar para a aplica-
ção da técnica. Assim, se a técnica escolhida para a sua pesquisa tiver sido o
questionário, você terá que utilizar uma lista de perguntas, um gravador ou
páginas para a anotação das respostas. Se a técnica for a da experimentação,
você terá que elaborar uma lista de procedimentos padronizados, além de
contar com alguns equipamentos para controle e medição dos comporta-
mentos e para o registro dos dados. Esses elementos constituem o seu ins-
trumental.
Os instrumentos devem visar à obtenção das informações necessárias à
pesquisa, e devem-se limitar a isto. Não é raro que pesquisadores iniciantes
recheiem seus questionários ou entrevistas com perguntas que representam
apenas curiosidades pessoais, ou programem observações visando obter
dados que são até curiosos, mas que nada acrescentam à pesquisa, e acabem
deixando de obter as informações realmente importantes.
Não deixe sua curiosidade passar por cima da ética, nem seu entusias-
mo sufocar a pesquisa. A palavra chave aqui é objetividade. Se nas fases
anteriores os objetivos da pesquisa não tiverem sido estabelecidos de forma
clara, é muito provável que você não consiga definir o seu instrumental de
forma satisfatória.

155 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

Descreva claramente qual é o material que vai ser utilizado, e verifi-


que cuidadosamente se através dele é possível obter as informações que
você necessita. Para isto, pode ser que você tenha que pré-testar seu
instrumento, antes de aplicá-lo. O pré-teste consiste na aplicação do
instrumento num grupo de características semelhantes às do universo,
mas que não faça parte da amostra, e serve para duas coisas: checar o
valor do instrumento e familiarizar o aplicador com seu uso.
O pré-teste pode sugerir modificações no instrumento, e isto implica
que, após modificado, ele deve novamente ser pré-testado.
Você pode também se utilizar de instrumentos e procedimentos ela-
borados por outros autores, mas não se esqueça de que eles devem ser
adaptados aos objetivos de sua pesquisa e às características de sua popula-
ção, o que não os isenta de pré-teste.

APLICAÇÃO
É necessário planejar onde, como, quando e por quem vai ser aplicado
o instrumental para a coleta de dados. Este planejamento é muito importan-
te para se verificar a viabilidade da execução total da pesquisa, e depende de
um conhecimento prévio da população ou do material que se deseja estu-
dar.
Procure ter uma previsão de problemas que poderão aparecer durante
esta fase e elabore formas de evitar o seu surgimento, ou diminuir seus
efeitos sobre a pesquisa. Tente estabelecer quanto tempo vai ser necessário
para a aplicação, e verifique se este tempo é compatível com o tamanho da
amostra que você se propôs a investigar. Leve em consideração que, além da
aplicação do instrumento, você necessitará de tempo para se locomover,
localizar seus sujeitos ou materiais, estabelecer contatos iniciais etc.
Tente estabelecer também como serão tratados os dados, uma vez co-
lhidos, com os mesmos objetivos e precauções que sugerimos aqui. Verifi-
que mais uma vez se todos os passos do seu planejamento podem ser
cumpridos, e se estão coerentes entre sí. Para facilitar esta tarefa, retorne ao
quadro 3, que contém uma lista dos itens que normalmente compõem um
projeto dentro do modelo que sugerimos.

CRONOGRAMA

156 
que mais uma vez se todos os passos do seu planejamento podem ser
cumpridos, e se estão coerentes entre sí. Para facilitar esta tarefa, retorne ao
quadro 3, que contém uma lista dos itens que normalmente compõem um
projeto dentro do modelo
O   Oque
L H sugerimos.
AR NO ESPELHO 

O OLHAR NO ESPELHO 
Como
C R O Nvocê O G jáR Apode
M A ver, um fator especialmente delicado na realização
de uma pesquisa é o tempo. A atenção a este fator pode, muitas vezes,
Como você
determinar já podeentre
a diferença ver, um
um fator
projeto especialmente
bem sucedido delicado na realização
e um projeto inviá-
de uma pesquisa
vel ou inviabilizado. é o tempo. A atenção
156 
a este fator pode, muitas vezes,
determinar a diferença
Toda pesquisa tem entre
um prazoum projeto
para suabem sucedidoseja
conclusão, e um projeto inviá-
determinado pelo
vel ou inviabilizado.
agente financiador, no caso das pesquisas de mais vulto, seja fixado pelo
Toda pesquisa
calendário escolar, no temcaso
um de prazo para sua
pesquisas conclusão,
didáticas. Istoseja
faz determinado
com que as pelo pre-
tensões do pesquisador nem sempre possam ser plenamenteseja
agente financiador, no caso das pesquisas de mais vulto, fixado den-
atingidas pelo
calendário
tro escolar,projeto.
de um único no caso de pesquisas didáticas. Isto faz com que as pre-
tensões do pesquisador
No caso das pesquisas, nem digamos,
sempre possam ser plenamente
profissionais, o que se atingidas
pode fazer den-é
tro de um único projeto.
subdividir um projeto amplo em subprojetos menores, capazes, cada um
No caso
por sua vez, dedasproduzir
pesquisas, digamos,que
resultados profissionais,
justifiquem osuaque se podee que,
execução fazeraoé
subdividir um projeto amplo em subprojetos menores,
mesmo tempo, indiquem a necessidade da continuação daqueles estudos, capazes, cada um
por sua vez, de produzir
através do subprojeto seguinte. resultados que justifiquem sua execução e que, ao
mesmo Já nastempo, indiquem
pesquisas a necessidade
didáticas, e especialmenteda continuação
naquelas que daqueles
são feitasestudos,
como
através do subprojeto seguinte.
parte de uma disciplina acadêmica, os prazos costumam ser bem mais limi-
tadosJá enas pesquisas didáticas,
a continuação do projetoe especialmente
depois daqueles naquelas
prazosquebemsão mais
feitas difícil.
como
Afinal, poucos alunos aceitariam repetir uma disciplina só para poder limi-
parte de uma disciplina acadêmica, os prazos costumam ser bem mais con-
tados e a continuação
cluir sua pesquisa. do projeto depois daqueles prazos bem mais difícil.
Afinal,
Uma poucos alunos de
das formas aceitariam
superar repetir uma disciplina
este impasse é elaborar só para poder con-
um projeto que
cluir sua
possa ser pesquisa.
executado dentro do período determinado pela instituição, mesmo
que Uma das formas
isto implique, de superar limitar
eventualmente, este impasse é elaborar
as pretensões um projeto
do autor que
do projeto.
possaOutra
ser executado dentro do período determinado pela
forma é elaborar um projeto menor, adaptado aos prazos da instituição, mesmo
que isto implique,
disciplina, concluí-lo eventualmente,
adequadamente, limitar as pretensões
e usá-lo como pontodo autor do projeto.
de partida para
Outra forma é elaborar um projeto menor,
outro, mais amplo e complexo, e com um grau maior de independência, adaptado aos prazos da
disciplina, concluí-lo adequadamente, e usá-lo como
que possibilite que o pesquisador disponha de mais tempo e que possa, ponto de partida para
outro, mais
assim, atingiramplo
seus eobjetivos
complexo, e com
mais um Exemplos
amplos. grau maiortípicosde independência,
deste último
que possibilite que o pesquisador disponha
caso são os chamados projetos de iniciação científica ou as de mais tempo e que possa,
pesquisas
assim, atingir seus objetivos mais amplos. Exemplos
extracurriculares, em que o pesquisador, que é também aluno, mantém típicos deste último
casovínculo
um são oscom chamados
a escola,projetos
mas nãode cominiciação científica
uma disciplina ou as pesquisas
específica.
extracurriculares, em que o pesquisador, que
Uma outra fase, dentro da qual o tempo pode ser um elemento é também aluno, mantém
impor-
um vínculo com a escola, mas não com uma disciplina
tante numa pesquisa é a de coleta de dados, especialmente quando essa específica.
coletaUma outraentrar
implica fase, dentro da qual
em contato emo sujeitos
tempo pode ser um
humanos. elemento
A vida impor-
das pessoas
tende a se organizar em ciclos (diários, semanais, mensais ou anuais) essa
tante numa pesquisa é a de coleta de dados, especialmente quando e a
coletadeimplica
falta atençãoentrar
a estesemciclos
contato
podeem sujeitos ahumanos.
prejudicar pesquisa.A vida das pessoas
tende a se organizar em ciclos (diários, semanais, mensais ou anuais) e a
falta de atenção a estes ciclos pode prejudicar a pesquisa.

157 

157 
A PESQUISA PARA A OBTENÇÃO DE CONHECIMENTOS

Entrevistar uma dona de casa no horário em que ela está terminando


de preparar uma refeição pode produzir respostas bem breves e, em alguns
casos, mal-humoradas. Aplicar testes coletivos em estudantes, durante o
período de férias escolares é um processo bem mais trabalhoso do que fazer
a mesma coisa durante o período letívo. Observar o trabalho rural dos “bói-
as-frias”, fora dos períodos em que eles são contratados, já é uma tarefa
quase impossível.
Todas estas questões, envolvendo o tempo do pesquisador e o tempo dos
pesquisados, exigem a elaboração de um planejamento cronológico.
Normalmente, este planejamento é apresentado sob a forma de um grá-
fico − chamado cronograma − em que aparecem as fases da pesquisa e o
prazo que se pretende utilizar para realizá-las. Você pode, se preferir, apre-
sentar suas previsões sob outras formas: listagens, descrições etc. A forma,
neste caso, não é tão importante.
O que é importante é que você elabore e apresente um planejamento
que demonstre, para o seu leitor e para você mesmo, a viabilidade de seu
projeto e que sirva, igualmente, como elemento de controle de suas ativida-
des e do andamento da execução futura da pesquisa. Não se esqueça que
pesquisa feita às pressas é normalmente sinônimo de pesquisa mal-feita.

ORÇAMENTO

Um último elemento importante diz respeito aos custos do projeto de


pesquisa e às fontes dos recursos com os quais se pretende contar para
fazer frente àqueles custos.
Projetos mais amplos (e, portanto, mais complexos e caros) podem se
tornar inviáveis se não houver formas de cobrir os gastos necessários à sua
execução, ou mesmo se as previsões de despesas não forem feitas previa-
mente, de tal forma que se tenha tempo de solicitar (e de obter) os recur-
sos.
Projetos de menor porte, como os de pesquisas didáticas, normalmente
têm custos bem inferiores, e não são tão influenciáveis pelo fator financeiro.
No entanto, despesas com aquisição de livros e outros materiais didáticos,
papel, transporte, digitação, impressão, reprodução, encadernação e outras,

158 
O OLHAR NO ESPELHO 

embora isoladamente possam parecer pequenas, em conjunto podem repre-


sentar uma quantia razoável.
Deixar de prever essas despesas ainda na fase de elaboração do projeto
e não preparar-se previamente para fazer frente a elas pode ser uma fonte
de grandes preocupações, ainda mais se o orçamento pessoal do proponente
(como costuma acontecer com a maioria dos que estão se iniciando numa
carreira) não é muito amplo.
Não deixe, portanto, no seu projeto, de incluir uma previsão orçamentá-
ria detalhada e tão precisa quanto for possível.
Vencida esta fase, acabou o planejamento.
Agora, sim; vamos ao campo.

159 
APÍTULO 6

A PESQUISA PARA A TRANSFORMAÇÃO DA


REALIDADE SOCIAL

Para mim, a realidade concreta é algo mais do que fatos e


dados tomados mais ou menos em sí mesmos. Ela é todos esses
fatos e todos esses dados e mais a percepção que deles esteja
tendo a população neles envolvida (Freire, 1982, p. 35).

A finalidade da ciência é constatar, descrever e prever. Livre de


qualquer preconceito subjetivo, desprovido de intencionalidade política,
o cientista social deve limitar-se a dissecar fatos, comportamentos ou
sistemas de representação como se eles fossem meros objetos
inanimados. A neutralidade política seria, nesta perspectiva, a garantia
da cientificidade. Ledo engano (Oliveira; Oliveira, 1982, p. 22).

Para um significativo número de cientistas, e especialmente de cientistas


sociais, a neutralidade política da ciência não é mais do que um mito, incenti-
vado pelos detentores do poder econômico, e sustentado por outros cientistas
comprometidos, de forma consciente ou não, com a manutenção de um sistema
social que se baseia na desigualdade de poderes e direitos.
A atividade científica, como qualquer atividade humana, é realizada
dentro de um contexto social, e é influenciada, ou mesmo determinada por
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

este contexto. Assim, numa sociedade que se apresenta desigualmente divi-


dida, qualquer atividade estará sempre situada entre dois pólos: o da contri-
buição para a manutenção do sistema vigente de desigualdades, ou o da
contribuição para a superação desse sistema.
Entre estes dois pólos, nenhuma neutralidade é possível.
Mais que isso, numa sociedade em que os detentores do poder econô-
mico assumem também o controle de vários outros aspectos da vida social
(como os sistemas político, jurídico e educacional) a produção e difusão de
conhecimentos aparece igualmente como uma atividade subordinada. Atra-
vés do controle econômico se pode determinar quais linhas de pesquisa
devem ser seguidas, ou quais aquelas que, por ausência de verba, vão acabar
sendo abandonadas, ou mantidas em estado latente; que áreas de conheci-
mento vão ser incentivadas, mantidas, esquecidas, e até quais aquelas que
não devem ser desenvolvidas, sob pena de punições aos seus participantes.
No caso das ciências sociais, a idéia de uma possível neutralidade, que
seria obtida através de descrições da realidade social tal como ela é, inde-
pendente do posicionamento, ou mesmo da pessoa do pesquisador, esconde
uma série de armadilhas. A primeira delas é a suposição de que os fatos
sociais têm uma existência e uma dinâmica próprias, independentes de
quem participa deles ou os observa. Ora, supor que as coisas são de deter-
minada maneira, implica pensar que esta é a sua única forma possível, e
mais que isto, que elas devem continuar sendo assim. Nada melhor, para
manter uma sociedade desigual, do que uma ciência que “prove” que a
desigualdade é um “fato” natural, independente da vontade dos que se bene-
ficiam dele e da concordância dos que o sofrem.
Em segundo lugar, a idéia de que os processos sociais podem −e devem
− ser compreendidos de forma puramente objetiva e neutra, independente
das impressões e interpretações daqueles que o vivenciam, privilegia a for-
ma acadêmica de contato com a realidade −o pensar científico −e considera
como inadequadas as formas populares − o sentir, o agir ou mesmo o pen-
sar de forma menos organizada. Assim o cientista, capaz de dominar os
métodos através dos quais se atinge a racionalidade e a objetividade científi-
cas, passa a ser considerado como o único cidadão capaz de decidir o que
deve ser pesquisado da vida social, onde e como isso deve ser feito, e que
partes da realidade devem ser consideradas para a elaboração de um bom
conhecimento. O saber popular e as inúmeras experiências vividas pelos

162 
O OLHAR NO ESPELHO 

indivíduos não-cientistas não são dignas de crédito, ou são insuficientes para


capacitá-los a participar de estudos sobre eles próprios, a não ser como
“sujeitos”, “entrevistados” ou “informantes”.
Dentro desta ótica de “neutralidade”, e com base na incapacidade dos
não-cientistas, quando a ciência se dispõe a estudar um problema social
qualquer,

[...] os problemas estudados não são nunca os problemas vividos e


sentidos pela população pesquisada. É esta população em sí mesma que
é percebida e estudada como um problema social do ponto de vista dos
que estão no poder (Oliveira; Oliveira, 1982, p. 19).

Em terceiro lugar, a idéia de que a compreensão dos textos e a interpre-


tação dos dados científicos exigem um treinamento e uma capacitação geral-
mente não acessíveis aos membros das classes populares, faz com que se
acredite também que não há como − e nem porque − devolver aos pesquisa-
dos os resultados da pesquisas realizadas a seu respeito.
Assim, fecha-se o círculo da exclusão do pesquisado do processo da
pesquisa.
Do ponto de vista do pesquisado, uma pesquisa feita sobre ele, mas que
independe dele ou de seus posicionamentos, gera um conhecimento que não
retorna para ele.
Do ponto de vista do pesquisador, seu conhecimento anterior, ao mes-
mo tempo que o capacita a escolher o que pesquisar sobre quem, justifica
que ele se aproprie das informações que obteve (e que não lhe pertenciam),
que escolha a quem e por quais meios vai divulgar as conclusões a que
chegou, e eventualmente, que defina como vai aplicar seus novos conheci-
mentos e com que objetivos.

Na verdade, esta ciência que se queria neutra, apolítica e


descomprometida acabou sendo utilizada cada vez mais como uma
ferramenta de engenharia social. Empregados por agências
governamentais, os cientistas sociais contribuiram para a
implantação gradual de toda uma série de instituições de controle
social − desde a escola e o hospital até o asilo psiquiátrico e a
prisão − cuja finalidade é modelar o comportamento de todos

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pelos padrões de normalidade definidos pelos donos do poder


(Oliveira; Oliveira, 1982, p. 23).

Por último, este verdadeiro círculo vicioso que se origina a partir da idéia
de uma ciência neutra e objetiva, tem contribuído politicamente para a manu-
tenção dos sistemas de desigualdades sociais, na medida em que não permite
que os grupos menos favorecidos, e em especial aqueles não-letrados ou com
alfabetização precária, possam utilizar, à sua maneira, os conhecimentos que a
ciência elaborou a respeito deles próprios.
No entanto, apesar de todo esse seu comprometimento político, a pró-
pria ciência abre espaços para a produção de conhecimentos que vêm ques-
tionar tanto suas conclusões, quanto os métodos empregados para chegar
até elas.
A ciência busca conhecimentos válidos, ou seja, que possam ser aplica-
dos de alguma forma, ou que traduzam com alguma fidelidade uma realida-
de qualquer. Só assim ela pode ser útil.
Para atingir estes objetivos, muitas vezes, a ciência tem que superar su-
as próprias deficiências, e até abordar questões que os próprios grupos
dominantes prefeririam ver ocultadas ou disfarçadas.

O trabalho científico desempenha, pois, mesmo na situação atual das


sociedades como as nossas, principalmente as sub-desenvolvidas, duplo
papel: o de promover o avanço do conhecimento e o de promover a
superação dos modos e condições em que é executado, em virtude da
revelação das contradições a que está ligado (Pinto, 1979, p. 247).

Assim é que, dentro das próprias ciências sociais, grupos de pesquisa-


dores vêm, cada vez mais, desenvolvendo teorias e métodos que se afastam
e diferem da maneira tradicionalmente aceita de se fazer ciência, de seus
objetivos e formas de conduta. Uma série de idéias, contrárias às noções de
neutralidade e distanciamento científicos servem para embasar estas novas
propostas;

uma delas: só se conhece em profundidade alguma coisa da vida da


sociedade ou da cultura, quando através de um envolvimento − em
alguns casos, um comprometimento − pessoal entre o pesquisador e
aquilo, ou aquele que ele investiga. Outra: não é propriamente um

164 
O OLHAR NO ESPELHO 

método objetivo de trabalho científico que determina a priori a


qualidade da relação entre os pólos da pesquisa, mas, ao contrário, com
frequência é a intenção premeditada, ou a evidência realizada de uma
relação pessoal e/ou política estabelecida, ou a estabelecer, que sugere a
escolha dos modos concretos de realização do trabalho de pensar a
pesquisa. Uma última: em boa medida, a lógica, a técnica e a estratégia
de uma pesquisa de campo dependem tanto de pressupostos teóricos
quanto da maneira como o pesquisador se coloca na pesquisa e através
dela e, a partir daí constitui simbolicamente o outro que investiga
(Brandão, 1987, p. 8).

Análises e idéias como as que expusemos até aqui, aceitas por alguns
grupos de cientistas e rejeitadas com veemência por outros, têm dado ori-
gem a formas alternativas de pesquisa, cada vez mais interessadas e com-
prometidas em tentar elaborar novos conhecimentos sociais que levem em
conta a participação e as vivências dos grupos estudados, principalmente em
possibilitar que estes mesmos grupos se reapropriem do conhecimento a seu
respeito, utilizando-o a seu favor.
Talvez, uma rápida visão da história do desenvolvimento destas idéias
nos ajude a compreendê-las melhor.
Segundo Brandão (1987) um passo importante para a inclusão dos
pesquisados nos processos de pesquisa foi dado por Malinowski quando
este, contrariando a tradição científica da época, ao invés de simplesmente
realizar rápidas observações superficiais, ou mesmo basear suas conclu-
sões no estudo de objetos ou informações obtidas de forma indireta, pre-
feriu se integrar à comunidade estudada, conviver com seus habitantes e
observar com detalhes os fatos e participações de seu dia-a-dia.

Quando Malinowski desembarcou sozinho nas ilhas de Trobriand, não


era apenas um método que ia ser reinventado ali; era uma atitude. Não
mais reconstruir a explicação da sociedade e da cultura do “outro”
através de fragmentos de relatos e viajantes e missionários. Ir conviver
com o outro no seu mundo; aprender sua língua; viver sua vida; pensar
através de sua lógica; sentir com ele [...] Estava inventada a observação
participante (Brandão, 1987, p. 11-12).

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Os processos de pesquisa realizados com base neste procedimento pos-


sibilitam, por um lado, que o cientista participe da vida e do cotidiano das
populações pesquisadas, podendo assim captar detalhes e aspectos que não
seriam perceptíveis através de técnicas tradicionais como as entrevistas ou
mesmo as observações mais estruturadas. Por outro lado, possibilitam que
os pesquisados tenham também uma participação (ainda que relativa) na
pesquisa, na medida em que as ações e verbalizações executadas por eles,
em seu cotidiano, é que vão determinar os interesses principais do pesqui-
sador. Aspectos importantes de suas vidas deverão merecer lugar importan-
te nas pesquisas feitas, afinal de contas, sobre eles.
A adoção desta técnica, entretanto, não trazia nenhuma garantia de que
os conhecimentos produzidos retornassem, de alguma maneira, aos pesqui-
sados, e nem que estes viessem a se beneficiar, mesmo que indiretamente,
dos resultados da pesquisa.
A opção política de colocar a ciência e seus conhecimentos a serviço das
populações estudadas aparece mais tarde:

pesquisando e escrevendo na mesma Inglaterra de onde o polonês


Malinowski saíra para Trobriand, o alemão Marx invertia a questão. Não é
necessário que o pesquisador se faça operário ou como ele, para conhecê-
lo. É necessário que o cientista e sua ciência sejam, primeiro, um
momento de compromisso e participação com o trabalho histórico e os
projetos de luta do outro, a quem, mais do que conhecer para explicar, a
pesquisa pretende compreender para servir [...] Estava inventada a
participação da pesquisa (Brandão, 1987, p. 12).

Esta nova postura implicava não só em colocar a ciência a serviço dos


seus pesquisados, mas também, e principalmente, em considerar que eles,
mais que quaisquer outros participantes do processo social deveriam ser
responsáveis pela análise e pelas possíveis tentativas de mudança de sua
situação. A elaboração e o aproveitamento dos dados deveriam sempre con-
tar com a participação dos pesquisados. A pesquisa passa, assim, a depender
da concordância e da participação ativa daqueles que se pretende estudar. O
próprio Marx afirmava, ao realizar uma pesquisa deste tipo sobre a vida dos
trabalhadores, que confiava contar,

166 
O OLHAR NO ESPELHO 

“[...] com a ajuda de todos os operários da cidade e do campo,


conscientes de que apenas eles podem descrever, com todo
conhecimento de causa, os males que suportam, e de que só eles, e não
os salvadores providenciais, podem energicamente remediar as misérias
sociais que sofrem (1987, p. 249).

Enquanto a observação participante se consagrava como técnica de


pesquisa capaz de propiciar excelentes informações, a preocupação com a
participação da pesquisa, por seu comprometimento político, era deixada de
lado e, por vezes, severamente reprimida, mesmo em países que se coloca-
vam como seguidores do marxismo.
A retomada das idéias sobre a participação da pesquisa, e a sua junção
com os princípios da observação participante, só viriam a acontecer nas
décadas de 1960 e 1970, quando uma série de movimentos políticos, através
do voto ou de outras ações, redespertou as discussões sobre a participação
popular em todas as instâncias de decisão social.
Para que esta participação se efetivasse, seria indispensável que as clas-
ses populares pudessem também se apropriar dos conhecimentos científicos
(especialmente aqueles que se referissem a eles mesmos), e que pudessem
participar da produção destes conhecimentos. Só assim se poderia diminuir
a situação de dependência cultural das classes menos favorecidas.
Vários estudiosos e instituições se preocuparam em desenvolver formas
alternativas de pesquisa, que pudessem vincular os conhecimentos teóricos
das diversas ciências aos processos de participação popular. Embora relati-
vamente diferentes entre sí, estas alternativas podem ser classificadas, de
forma geral, dentro de duas vertentes complementares:

uma que chamamos vertente educacional e outra que chamamos


vertente sociológica. A primeira reage contra o positivismo pedagógico,
contra as formas tradicionais de entender e fazer educação, mais
particularmente educação de adultos. A segunda reage aos paradigmas
dominantes de interpretação da realidade social (Gajardo, 1986, p. 12).

Ainda segundo Gajardo (1987), dois nomes têm sido destacados como
importantes contribuidores para o desenvolvimento destas formas alternati-
vas de pesquisa e ação social: o brasileiro Freire, na área educacional e o

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colombiano Fals Borda na sociologia. Fora do contexto latino americano,


outros autores têm também se preocupado com a problemática da relação
entre a ciência e a participação popular:

o tema não é novo. Stavenhagen (1971) considerou-o em termos de


teoria social e prática social. Huynh (1979) abordou-o em termos de
“desenvolvimento endógeno”, centrado no homem e na participação
popular no desenvolvimento (Fals Borda, 1982, p. 42).

Outros pesquisadores, além destes, têm-se preocupado tanto com os


aspectos políticos, quanto com as questões metodológicas da pesquisa
social. Caso você esteja interessado em estudar mais a fundo este assun-
to, sugiro que leia os textos de Gajardo (1987) e Silva e Silva (1986).
Nas propostas metodológicas mais tradicionais, busca-se estabelecer um
método, ou algumas poucas variações de procedimentos como a forma
correta e válida para a realização de uma pesquisa. A elaboração dos méto-
dos é, então, uma responsabiliade do cientistas, ou até dos estudiosos de
metodologia que ele vem seguindo.
Ao contrário disto, para as propostas de pesquisa participativa, o pró-
prio trabalho de elaboração ou de escolha do método é uma parte impor-
tante do processo de aprendizagem dos participantes. Este trabalho pode
capacitá-los a, mais tarde, realizar suas próprias investigações de forma mais
autônoma, já que estariam não apenas recebendo novos conhecimentos, mas
aprendendo, também, a produzi-los.
Assim, os métodos de cada pesquisa devem ser elaborados a partir da
situação concreta onde ela é realizada.
Isto favorece o surgimento de alternativas metodológicas que, embora
conservem alguns núcleos comuns, divergem em outros aspectos, e rece-
bem, inclusíve, denominações diferentes. Brandão afirma que Observação
Participante, Investigação Alternativa, Pesquisa Participante, Investigação
Participativa, Auto-Senso, Pesquisa Popular, Pesquisa dos Trabalhadores,
Pesquisa Confronto são apenas nomes diferentes “[...]daquilo que, na verda-
de, procede de origens, práticas e preocupações muito próximas e parece
apontar para um mesmo horizonte” (1982:15). Gajardo (1987) cita, além
destas alternativas, as denominadas Enquete Conscientizadora, Autodiagnós-

168 
O OLHAR NO ESPELHO 

tico, Enquete Participativa, Observação Militante e Investigação na Ação,


como ligadas aos mesmos objetivos.
Apesar disto, algumas propostas metodológicas que adotam nomes se-
melhantes ou até iguais a alguns destes, podem servir a objetivos diferentes,
embora adotem procedimentos parecidos, Vimos, por exemplo, que a obser-
vação participante, tal como entendida por Malinowski, se limitava a ser
uma técnica de investigação, de coleta de informações, sem se preocupar
com o destino a ser dado a estas. Podemos, agora, citar um outro exemplo:

[...] quando K. Marx propõe que se faça sistematicamente uma


“pesquisa operária” realizada pelos próprios operários, está propondo
também uma “intervenção” bem diferente da Pesquisa-Ação de K.
Lewin. Enquanto K. Lewin, em sua Pesquisa-Ação [...] procura ganhar
a simpatia das operárias para, no fundo, usando a sua competência de
psicólogo do trabalho, chegar a fazê-las produzir mais, através do
mecanismo de estimulação e de competição, K. Marx recusa o sistema
que conduz a esta exploração [...] (Barbier, 1985, p. 40).

Justamente por esta ausência de preocupação com a participação dos


pesquisados no processo da pesquisa, prefiro deixar de lado, neste texto,
propostas como as de Malinowski e Lewin, e procurar detalhar mais aquelas
que se propõem a ser

[...] um processo de pesquisa no qual a comunidade participa na análise


de sua própria realidade, com vistas a promover uma transformação
social em benefício dos participantes, que são oprimidos [...] (Grossi
apud Demo, 1987, p. 126).

Como já vimos, várias propostas alternativas, com nomes diversos,


guardando pequenas diferenças entre si, propõem-se a servir a estes
objetivos. Neste texto, optei por reuní-las numa mesma categoria a partir
do que elas têm de semelhante e denominá-las, genericamente, como
pesquisa participante, embora outros nomes pudessem ser utilizados
com igual sentido. Por isto mesmo, ao citar outros autores, manterei as
denominações que eles utilizam. Caso você esteja interessado nas dife-
renças entre as propostas, sugiro que consulte Thiollent (1985, 1987b e
1987c), Oliveira e Oliveira (1987) e Silva e Silva (1986).

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Na definição de Grossi, que citei logo atrás, estão contidas as três carac-
terísticas básicas da pesquisa participante: a) a participação efetiva dos
pesquisados na elaboração e execução do processo de pesquisa, que permita
b) o retorno das informações colhidas e das conclusões obtidas aos pesqui-
sados a fim de que estes possam promover c) a utilização destes conheci-
mentos para a elaboração de propostas de ação, em seu próprio benefício.

Em outras palavras, ao invés de se preocupar somente com a explicação


dos fenômenos sociais depois que eles aconteceram, a finalidade da
pesquisa/ação é de favorecer a aquisição de um conhecimento e de uma
consciência crítica do processo de transformação pelo grupo que está
vivendo este processo, para que ele possa assumir, de forma cada vez
mais lúcida e autônoma, seu papel de protagonista e ator social
(Oliveira; Oliveira, 1982, p. 27).

Um processo de pesquisa participante tem, portanto, ao menos três


objetivos: a) a produção de novos conhecimentos sobre a realidade estu-
dada, sem a qual não seria uma pesquisa; b) a transferência desses conhe-
cimentos para a população envolvida, num processo pedagógico que lhes
permita compreender melhor sua situação e com isso ter melhores chan-
ces de tentar modificá-la; c) a elaboração (e de preferência a execução) de
propostas de ação coletiva, com base nas análises realizadas.
Embora estes três aspectos devam estar sempre presentes, a ênfase da-
da a cada um deles pode variar de pesquisa para pesquisa. Às vezes, uma
situação de extrema gravidade pode fazer com que os dois primeiros objeti-
vos passem a ter uma importância secundária; em outras, a diversidade de
situações vividas por uma mesma comunidade exige um tempo muito longo
para o planejamento e a coleta de dados; em outras ainda, a ausência de
conhecimentos é tão grande que o processo educacional passa a ser o pró-
prio objetivo prático.
Além das diferenças entre as situações pesquisadas e entre as proble-
máticas específicas vividas pelas populações, o grau de preparo e as tendên-
cias pessoais dos pesquisadores (cientistas ou leigos), além de outros
fatores, podem influir no planejamento e no encaminhamento do processo
da pesquisa participante. Assim, fica muito difícil elaborar um modelo bási-
co de procedimentos, que sirva de base a todas as pesquisas deste gênero,
ou que possa ser aplicado a qualquer situação estudada. Além disso, convém

170 
O OLHAR NO ESPELHO 

lembrar que a idéia de um modo único e “correto” de se fazer pesquisas é


justamente o que se quer combater com a criação de metodologias alterna-
tivas.
Uma vez que não é possível (e nem desejável) apresentar, então, um
“modelo” completo para a realização de pesquisas participantes, optei por
descrever algumas das condições preliminares e das fases mais típicas desse
processo, e por tentar levantar algumas das dificuldades e questões comuns
a cada fase. Convém ressaltar que procurei apresentar as fases numa se-
qüência que me parece lógica, mas que não tem que ser cronológica, ou
seja, na prática da pesquisa, uma fase que apresento antes pode ser realiza-
da depois de uma outra, ou ao mesmo tempo que ela. Pode até não ser
realizada.
Lembre-se que, numa pesquisa do tipo participante

1) a metodologia e o investigador não são duas coisas separadas [...]


2) a metodologia é inseparável dos grupos sociais com os quais o
investigador trabalha. A metodologia não será a mesma conforme se
trate de um grupo camponês ou operário urbano [...] 3) a
metodologia varia, evolui e se transforma segundo as condições
políticas locais ou a correlação das forças sociais [...] 4) a
metodologia depende, em grande medida, da estratégia global de
mudança social adotada e das táticas a curto e médio prazo (Bonilla
et al., 1987, p. 142).

Quadro 4. Elementos típicos de um processo de pesquisa participante.


1- Condições preliminares
1.1- Preparo do pesquisador
1.1.1- Teórico
1.1.2- Metodológico
1.1.3- Político
1.1.4- Compromisso do pesquisador com o grupo
1.2- Disposição do grupo
1.3- Viabilidade da realização da pesquisa
1.4- Multidisciplinaridade
2- Fase de inserção
3- Formação do grupo de pesquisa
4- Levantamentos prévios

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5- Realização da pesquisa
5.1- Planejamento
5.2- Investigação
6- Seleção de alternativas de ação
7- Divulgação e avaliação do processo

CONDIÇÕES PRELIMINARES
Há alguns requisitos básicos, sem os quais não é possível, ou não é
conveniente se iniciar um processo de pesquisa participante.
A lista que apresentarei pode não ser completa, já que a situação
concreta da realização da pesquisa pode colocar outras condições como
desejáveis ou até como indispensáveis. De qualquer forma, uma análise
cuidadosa das condições básicas é de extrema importância, já que a au-
sência, mesmo que parcial, de uma delas, pode inviabilizar o processo
todo, ou, pior ainda, resultar em danos para as populações envolvidas.
Lembre-se de que as classes populares, via de regra, são bastante frá-
geis frente ao poder dominante e estão muito mais sujeitas a medidas re-
pressivas do que os cientistas, normalmente possuidores de uma situação
financeira e profissional mais confortável, e menos sujeitos a punições de
qualquer espécie. Isto aumenta, e muito, a responsabilidade do pesquisador.
Por isto mesmo, começaremos por falar sobre você (ou sobre nós).

PREPARO DO PESQUISADOR

Em geral, a idéia de pesquisa-ação encontra um contexto favorável quando


os pesquisadores não querem limitar suas investigações aos aspectos
acadêmicos e burocráticos da maioria das pesquisas convencionais.
Querem pesquisas nas quais as pessoas implicadas tenham algo a “dizer” e
a “fazer”. Não se trata de simples levantamento de dados ou de relatórios
a serem arquivados. Com a pesquisa-ação os pesquisadores pretendem
desempenhar um papel ativo na própria realidade dos fatos observados
(Thiollent, 1985, p. 16).

Por isto, o preparo teórico, metodológico e político necessário a um


pesquisador-profissional que se proponha a atuar num processo de pesquisa

172 
O OLHAR NO ESPELHO 

participante, é bastante diferente daquele exigido para a realização de pes-


quisas “tradicionais”. Para facilitar a compreensão (e a exposição) prefiro
tratar cada um destes aspectos separadamente, embora, na prática, eles não
possam ser isolados.

PREPARO TEÓRICO
Há alguns cientistas, adeptos dos métodos alternativos, que justificam a
adoção desses métodos como uma opção política que consiste, basicamente,
em desprezar, ou conferir pouco valor aos conhecimentos da ciência, tida
como tradicional, e em valorizar o conhecimento popular. Para estes, o
preparo teórico do pesquisador-cientista não é muito importante. O que
importa é a decisão de participar.
Sem dúvida, há certa aura de heroísmo e de romantismo na decisão de
“deixar de lado o conhecimento acadêmico (superado) e ir aprender com o
povo”. Mas há também muito de ingenuidade, de despreparo teórico e, em
alguns casos, de comodismo nesta decisão.
Em primeiro lugar, deixar de lado o conhecimento científico implica su-
por que ele não é capaz de prestar qualquer auxílio às classes populares.
Para os que pensam assim, já que a ciência só produz conhecimentos que
interessam aos grupos dominantes, dominá-la e controlá-la só beneficiaria a
esses grupos.
Esta é um posição equivocada, já que a relação entre ciência e poder se
dá de forma inversa. É justamente porque têm o controle da produção do
conhecimento científico que os grupos de maior poder econômico e político
podem fazer a ciência trabalhar a favor de seus interesses.
Muito embora a ciência oficial tenha sempre laços muito fortes com os
mecanismos de poder e possa até ser um instrumento de controle, isto não
significa que ela não possa ser utilizada a favor das classes menos favoreci-
das, ou que seus conhecimentos interessem apenas aos grupos dominantes.
Quebrar o monopólio do saber e tornar a ciência acessível e compreensível
às populações menos favorecidas é o primeiro passo para uma reconstrução
e para uma nova utilização da mesma.
Esta tarefa exige um grande preparo teórico do cientista interessado em
trabalhar a favor das classes populares e junto com elas. É preciso dominar
satisfatoriamente os conceitos adequados à situação pesquisada e conhecer
sua evolução, tal como na pesquisa tradicional, mas, além disso, é necessário

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conseguir analisar as implicações políticas e sociais da utilização desta ou


daquela teoria e, mais que tudo, saber ou aprender a traduzir o jargão típi-
co da ciência para o falar simples e muitas vezes limitado das populações
envolvidas no processo da pesquisa.
Em segundo lugar, a idéia de “aprender com o povo”, embora válida em
princípio, também pode se transformar em uma armadilha, se encarada de
forma ingênua. Uma coisa é considerar que as populações menos favoreci-
das, em sua luta diária pela sobrevivência ou pela conquista (ou reconquis-
ta) de alguns direitos básicos, desenvolveram alguns conhecimentos que têm
que ser levados em conta, quando se trata de repensar suas próprias condi-
ções de vida. Outra coisa, bem diferente, é acreditar que estes conhecimen-
tos sejam capazes de descrever e explicar satisfatoriamente todas as relações
destas populações com a sociedade e a natureza que as cercam.
É preciso não esquecer que o conhecimento popular, tal como o conhe-
cimento científico, é elaborado dentro de uma sociedade e reflete sempre os
valores e as contradições desta. Da mesma forma que o saber científico, o
saber popular é determinado, em grande parte, pelos interesses das classes
dominantes.
Não se pode ignorar o papel que os meios de comunicação de massa,
especialmente o rádio e a televisão exercem, tanto na seleção dos assun-
tos que são considerados como prioritários, quanto na determinação do
enfoque que deve ser dado a cada um destes assuntos. Na medida em
que todos os grandes veículos de comunicação de massa são controlados
pelos grupos dominantes, não é de se estranhar que a visão de mundo
adotada e divulgada por eles, e aceita, em grande parte, pelas pessoas
que eles atingem, seja a visão que interessa aos controladores. A própria
escola funciona também como um veículo de formação de opiniões, tanto
selecionando as informações e os enfoques que são transmitidos aos que
a freqüentam, como privando, até mesmo dessas informações, os que não
conseguem freqüentá-la.
Há um número bastante grande de outros fatores que fazem com que o
conhecimento popular seja tão politicamente comprometido com as catego-
rias dominantes quanto o conhecimento científico. Por isso, ao procurar
valorizar as formas menos estruturadas de saber, ao tentar aprender com o
pensar e o sentir populares, o pesquisador deve ter com estas formas de

174 
O OLHAR NO ESPELHO 

conhecimento a mesma preocupação crítica que tem em relação ao saber


científico.
Em terceiro lugar, se desprezar as teorias científicas, o que o cientista
terá a oferecer às populações que pretende servir? Se ele não é capaz, ou
não se dispõe a trazer para estas populações as informações pensadas pelas
ciências (teorias), nem a maneira científica de pensar as informações (méto-
dos), qual será o seu papel dentro da comunidade? Se ele simplesmente se
dispõe a aprender com esta comunidade, o que o faz pensar que ela precisa
dele?
Ora, a contribuição que o cientista pode trazer às populações menos
favorecidas é o seu conhecimento. É justamente a diferença entre o conhe-
cimento científico e o popular que abre espaço e que justifica a participação
do cientista num meio que não é o dele, e nas tentativas de superação de
problemas que, em última análise, não o atingem, a não ser de forma indire-
ta.
Pense nisto, antes de ceder à tentação da preguiça e de adotar idéias
cômodas sobre a inutilidade das teorias.

PREPARO METODOLÓGICO
Praticamente, tudo o que foi dito sobre o preparo teórico pode ser re-
petido aqui, restando apenas acrescentar alguns comentários sobre as espe-
cificidades da metodologia num processo de pesquisa participante.
No processo de produção do conhecimento científico, o papel da metodo-
logia é o de avaliar a adequação dos procedimentos adotados, analisando desde
a coerência destes procedimentos com os conceitos teóricos, até o valor de
ambos para a elaboração das conclusões pretendidas ou apresentadas. Em
outras palavras, a metodologia (estudo dos métodos) serve tanto para indicar
os caminhos a serem seguidos pelos pesquisadores, quanto para avaliar se os
caminhos seguidos são os melhores para que se atinja os objetivos pretendi-
dos. Assim, a metodologia deveria sempre ser vista como um campo ou um
espaço para a discussão dos procedimentos da ciência e para a elaboração de
novos procedimentos.
A corrente empiricista, dominante nas ciências contemporâneas, redu-
ziu a possibilidade de existência de vários métodos, adequados a cada ciên-

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cia específica, ao eleger o método experimental, típico da física, como o


único adequado a todos os ramos do conhecimento científico. O processo de
utilização política da ciência fez com que este método, transformado em
método de todas as ciências, fosse considerado também a única forma legí-
tima de se chegar ao verdadeiro conhecimento. Desta forma, quem não
dominasse as regras do método científico não estaria apto a produzir co-
nhecimentos válidos e valiosos.
Com isto se esvaziava, ao mesmo tempo, a metodologia científica e o
saber popular como espaços de discussão e de criação.
Está posto aí um desafio aos processos alternativos de pesquisa social:
o de tentar somar a criatividade popular e a preocupação avaliativa da
ciência, o fecundo descompromisso do pensar e do sentir cotidianos e o
produtivo recurso da dúvida e da crítica como preocupações constantes.
Diante deste desafio, parece claro que o cientista conhecedor de um ú-
nico método, ou que tenha a metodologia apenas como um conjunto de
regras, tem pouco a oferecer às populações menos favorecidas, se não quiser
agir como um mantenedor das condições de dominação.
Mais que conhecer um ou alguns métodos, é preciso que o pesquisa-
dor-cientista-participante compreenda a metodologia e seja capaz de contri-
buir com as populações envolvidas no processo da pesquisa, auxiliando-as a
elaborar e avaliar seus procedimentos, conclusões e propostas de forma
crítica, porém não impositiva.

PREPARO POLÍTICO
Os processos de pesquisa participante tendem, ou pelo menos preten-
dem ser um momento de questionamento da estrutura social que exige que
os grupos populares permaneçam sendo desfavorecidos economicamente,
ignorados em seus direitos básicos de alimentação, saúde, trabalho, moradia,
educação, transporte, lazer, satisfação pessoal etc., e politicamente excluídos.
É necessário, então, que o pesquisador-profissional tenha bem mais do que
meras noções sobre a política e suas funções.
Se nos limitarmos a considerar a política como o jogo dos partidos em
busca da conquista de cargos públicos, estaremos nos condenando, conde-
nando todo o processo de avaliação e de reestruturação e a comunidade

176 
O OLHAR NO ESPELHO 

pesquisada a permanecerem dependentes da caridade dos poderes públicos,


que, via de regra, trabalham a favor dos grupos dominantes.
O pesquisador deve possuir um nível de informação que lhe permita
distinguir as idéias políticas e compreender a dinâmica do jogo entre
elas. Deve estar preparado para a possibilidade de que partidos ou gru-
pos politicamente organizados atuem na comunidade e procurem influ-
enciar de forma eventual ou permanente nas decisões desta. Deve poder
analisar este tipo de atuação, seus objetivos e possíveis conseqüências.
Se ele mesmo, pesquisador, for membro de um partido político, ou a-
depto das idéias deste, deve conseguir distinguir entre os interesses de seu
partido, os seus interesses pessoais e os da comunidade. Deve ser capaz de
avaliar politicamente as alternativas de ação propostas pelo grupo e, acima
de tudo, deve ser capaz de expor suas convicções políticas de forma clara
para o grupo, de vê-las submetidas às críticas e discordâncias e de repensá-
las, frente à realidade do grupo.
Em resumo, é preciso saber ser político, no sentido mais amplo e puro
da palavra.

COMPROMISSO DO PESQUISADOR COM O


GRUPO
[...] Os investigadores militantes se definem como pessoas treinadas
nas técnicas de observação científica e formadas na prática social e
política. O trabalho se desvirtuaria e iria contra todos os seus
princípios se estas pessoas praticassem um empirismo limitado a
constatar os fenômenos sem indagar por suas causas, ou um
aventureirismo irresponsável onde primasse o ensaio-e-erro [...]
(Bonilla et al., 1987, p. 152).

Em outras palavras, é preciso que o pesquisador-profissional tenha cla-


ro, para si mesmo, que os projetos de pesquisa participante só têm sentido
se puderem, ao menos em princípio, trazer alguma contribuição direta e a
curto prazo, para as populações envolvidas.
Os projetos de pesquisa tradicionais, via de regra, partem do princípio
de que o conhecimento produzido poderá voltar, de alguma forma, aos
pesquisados, mesmo que isto se dê a longo prazo e de uma forma não defi-
nida e nem prevista pelo pesquisador. Assim, não só os momentos da pro-
dução do conhecimento e de sua aplicação são separados, como a

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responsabilidade pela aplicação ou pelo aproveitamento dos conhecimentos


desenvolvidos deixa de ser do pesquisador.
Na pesquisa participante, pelo contrário, se espera que a produção, a
divulgação e a utilização das novas informações ocorram de forma integra-
da. Assim, não faz sentido, e nem é considerado justo, que o cientista se
engaje num movimento popular e se utilize deste movimento preocupado
apenas em obter dados para o seu trabalho de conclusão de curso ou para
qualquer outra atividade exclusivamente acadêmica.
O pesquisador deve estabelecer claramente a diferença entre a observa-
ção e a participação. Se ele pretende apenas colher dados acerca de alguns
aspectos da vida de uma determinada população, num processo de pesquisa
tradicional, ligado apenas aos seus objetivos pessoais ou profissionais, deve
informar a população, desde o início, sobre suas intenções. Deve estar pre-
parado, também, para a eventualidade de que suas intenções não sejam bem
aceitas pela comunidade, e que o seu trabalho seja pouco valorizado ou até
mesmo sutilmente boicotado de vez em quando. Afinal, os “sujeitos” não
têm nenhuma obrigação de colaborar com algo que pode lhes trazer muita
amolação e nenhum proveito.
Se, por outro lado, o pesquisador pretende efetivamente participar da
vida da comunidade, ou pelo menos de um momento desta vida, deve deixar
claro, tanto para as pessoas da comunidade, quanto para ele mesmo, qual é
a extensão e quais são os limites deste seu comprometimento.
O estabelecimento deste compromisso pode ser um processo mais difí-
cil do que parece à primeira vista. Depende, em grande parte, da clareza
que o pesquisador tenha acerca do seu papel na comunidade. Não é tão
simples estabelecer, na prática, as diferenças e os limites entre o servir à
comunidade, o se servir da comunidade e o se confundir com a mesma.
Talvez alguns comentários possam ajudar um pouco nesta tarefa.
Em primeiro lugar, normalmente o cientista não faz parte da comuni-
dade. Por mais que ele se identifique com ela e com seus problemas, não é
alí que ele mora, não é através das atividades econômicas típicas do local
que ele garante seu sustento e os problemas que atingem a comunidade não
o atingem da mesma maneira. Mesmo que ele viva no local, que resida alí
por um longo tempo, sua formação e seus conhecimentos são diferenciados.
Suas possibilidades de escolha e sua capacidade de influir nas decisões soci-

178 
O OLHAR NO ESPELHO 

ais são também diferentes e muito mais amplas do que as que os moradores
da comunidade possuem;

supor que a participação está baseada em uma relação de troca


constituída sobre uma suposta igualdade de poder e saber oculta o fato
real de que, entre o agente de mediação (um intelectual não raro de
“nível superior”) e a “comunidade” (lavradores, subempregados,
operários), há uma desigualdade antecedente. Tal desigualdade não se
resolve metodologicamente, nem na relação de compromisso entre os
dois lados, nem, de modo específico, no interior de uma pesquisa
participante [...] A questão fundamental é a de saber colocar a
desigualdade a serviço (Brandão, 1987, p. 252).

Em segundo lugar, “[...] a participação dos pesquisadores não deve che-


gar a substituir a atividade própria dos grupos e suas iniciativas” (Thiollent,
1985, p. 16).
Os processos de pesquisa participante visam aumentar o grau de auto-
nomia das pessoas e das comunidades, seja na seleção de seus objetivos, seja
na elaboração de estratégias para atingí-los. Assim, posturas de cunho assis-
tencialista em que os cientistas se dispõem a executar tarefas e a assumir
responsabilidades que poderiam perfeitamente ficar à cargo de membros da
comunidade, além de reduzirem os cientistas a meros “tarefeiros”, transfor-
mam a pesquisa num instrumento a mais de desmobilização e de reafirma-
ção da dependência dos grupos mais pobres em relação à elite “culta”.
Isto não significa que o cientista não deva assumir tarefas, ou que
possa se colocar para o grupo apenas como um “pensador”. Neste caso,
embora a ação fosse inversa, o efeito seria o mesmo da situação anterior.
Por último, não se pode esquecer que a permanência do cientista junto
à comunidade e sua participação nas lutas desta é sempre transitória. Mes-
mo que o pesquisador tenha um comprometimento honesto e uma disposi-
ção legítima em trabalhar com a população do local, seus compromissos
profissionais ou mesmo pessoais podem obrigá-lo a afastar-se dalí. É preci-
so ter claro até que ponto esta possibilidade de afastamento pode afetar o
processo todo de mobilização da comunidade.
De modo geral, pode-se dizer que quanto maior for a importância do
pesquisador dentro do processo, maior será a fragilidade deste último e os
riscos de que ele venha a se extinguir com a ausência do pesquisador. Num

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processo desta natureza não convém que alguém seja insubstituível. Por
mais que seja agradável ao cientista se sentir importante, o processo é e
deve ser mais importante que ele, e ter sua continuidade garantida apesar
do eventual afastamento de qualquer pessoa dos participantes.
Temos aí uma série de exigências para o (bom) preparo do pesquisa-
dor-participante-profissional. Colocadas assim em conjunto e apontadas
como indispensáveis (todas), acredito que sejam suficientes para desanimar
qualquer um que queira se iniciar neste tipo de atividade. Ao invés de servir
como um auxílio aos que pretendem participar de qualquer pesquisa com-
prometida com os grupos pesquisados, este texto corre o risco de atuar
como uma barreira. Para que isto não aconteça, precisamos agora repensar
todas estas exigências sob uma nova ótica: a da aprendizagem.
Não estamos falando da aprendizagem tal como entendida pela pedago-
gia tradicional, na qual se esperava que um “mestre”, portador do saber,
fosse capaz de transmitir seus conhecimentos aos aprendizes, cujo maior
objetivo era o de se tornarem iguais aos mestres. Estamos falando da peda-
gogia que considera o processo de aprendizagem como uma dialética intera-
ção dos saberes de seus participantes, como uma troca de experiências e de
dúvidas, capaz de propiciar um crescimento intelectual de todos os seus
participantes, independente do papel formal que estejam desempenhando.
Dentro desta visão pedagógica, o pesquisador pode e deve ser também
um aprendiz.
Não é preciso esperar que o aprendiz venha a adquirir, por conta pró-
pria, todas as qualidades de um perfeito pesquisador-participante, para que
só então ele possa ir a campo e entrar em contato com a realidade. É preci-
so não idealizar o pesquisador como um profissional “pronto”, portador de
todas as características e conhecimentos necessários ao bom desempenho de
suas funções. Uma idealização deste tipo seria contrária a toda a proposta
da pesquisa participante, já que coloca o cientista como alguém que não
tem nada a aprender com a população, e o conhecimento científico como
superior e independente de outras formas de conhecimento. Novamente se
estaria reproduzindo o esquema de dominação cultural.
A melhor maneira de aprender a pesquisar é pesquisando.
Não há nada que impeça o aprendiz de engajar-se num processo de
pesquisa participante, orientado e supervisionado por alguém já mais expe-
riente, e de descobrir, na prática, quais são os conhecimentos que precisam

180 
O OLHAR NO ESPELHO 

ser buscados para serem oferecidos às comunidades junto às quais estiver


atuando.
Sua autonomia como pesquisador aumentará na medida em que aumenta-
rem seus conhecimentos sobre a realidade social e sua capacidade de aplicar
esses conhecimentos, num processo semelhante ao que se espera e se pretende
que aconteça com as populações envolvidas nas pesquisas participantes. Afinal,
se por um lado o pesquisador-cientista deve ser portador de um saber diferen-
ciado, por outro ele é um ser humano inserido numa sociedade, tal como todos
os outros participantes do processo de pesquisa, e tal como eles está sujeito a
ter informações escassas ou enganosas e idéias equivocadas ou ingênuas sobre a
realidade que o cerca.
A superação destas deficiências é justamente um dos objetivos das pes-
quisas participantes.
Isto não quer dizer que o pesquisador se possa desobrigar de todas a-
quelas exigências que citamos. Elas são necessárias e devem ser buscadas
continuamente.

A DISPOSIÇÃO DO GRUPO

Seria muito simples e cômodo resumir todo o conteúdo deste tópico


numa frase curta e com aparência de “lei científica” do tipo: se o grupo não
estiver disposto a colaborar, não será possível se realizar uma pesquisa
participante. Parece óbvio, não?
No entanto, a aparente simplicidade de uma frase como esta é engano-
sa, já que oculta uma série de questões que podem ser importantes para a
realização de uma pesquisa participante, como, por exemplo: O que é isto
que estamos chamando de grupo? O que é um grupo social, ou uma comu-
nidade? Em que consiste esta “disposição para colaborar”? Em que condi-
ções ela se estabelece?
Vamos por partes. Em primeiro lugar o grupo; o que é ele?
O uso de palavras como grupo ou comunidade, ou mesmo de outras
denominações mais específicas como “os moradores da Favela do Lixão”,
“os bóias-frias da região de Maringá” ou “os índios potiguara” pode
transmitir, às vezes, a impressão de que se trata de um conjunto homo-
gêneo de pessoas com características comuns, igualmente afetadas por
uma mesma problemática e com interesses e objetivos semelhantes.

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A impressão é falsa, já que não existe um grupo com esta homogenei-


dade. Embora os grupos, via de regra, se estruturem em torno de uma ou
de algumas características comuns, isto não elimina a existência de profun-
das disparidades entre seus membros.
Os próprios critérios de composição e de identificação dos grupos po-
dem auxiliar a compreender esta questão. Tome como exemplo o uso de um
critério geográfico ou espacial: o simples fato de que as pessoas morem
num espaço urbano conhecido como Favela do Lixão ou numa vila rural,
mais ou menos isolada, e identificada como Jacaré não é suficiente para
garantir a existência de outras igualdades ou semelhanças entre elas. A
própria definição dos limites da comunidade nem sempre é muito clara, já
que às vezes a delimitação oficial não coincide com a adotada pelos morado-
res; em outras vezes, estes elaboram subdivisões internas a partir de crité-
rios nem sempre muito claros.
Apenas como ilustração, veja como os moradores da antiga favela do
Morro da Catacumba, no Rio de Janeiro (hoje removida) distinguiam suas
várias partes:

dividia-se a favela em três áreas distintas, que correspondiam as três


vertentes adjacentes em que se localizavam. O que parecia uma
massa indistinta para o observador distante era separado em
subunidades. A mais próxima a Copacabana e Ipanema chamava-se
Passarinheiro, sendo considerada um lugar bom e calmo para se
viver na favela [...] Na encosta do meio ficava o Maranhão, assim
chamado porque seus primeiros moradores vieram daquele Estado. A
terceira encosta era o Café Globo, identificado pelo posto policial,
em baixo, e o incinerador de lixo [...] Além desta separação
horizontal, existia ainda uma estratificação vertical fascinante, que de
certa maneira correspondia à classe social e ao tempo de domicílio
na favela. Em geral, junto da avenida ficavam as casas de concreto e
tijolo pertencentes aos moradores mais antigos e prósperos [...]
Mais acima as casas eram comumente de madeira [...] e no alto, de
taipa ou materiais diversos apanhados aqui e alí. Corria a fama de
que a vida era mais dura e perigosa lá em cima (Perlman, 1977, p.
53).

182 
O OLHAR NO ESPELHO 

Alguns dos fatores que servem como base para estas divisões internas
podem fazer com que os grupos tenham interesses e condutas diferentes
frente a uma mesma situação problemática.
Outro fator que, via de regra, determina diferenças de comportamento,
objetivos e de disposição para se engajar num processo participativo é a
atividade econômica dos participantes de uma mesma comunidade. Numa
comunidade rural, por exemplo, embora todos exerçam atividades ligadas à
agricultura ou à pecuária,

[...] por sua maneira de pensar e por seu comportamento, o


arrendatário se distingue do proprietário, o camponês pobre do
camponês rico, o agricultor artesão do simples lavrador, o
camponês responsável por todas as operações agrícolas, em sua
fazenda alugada ou comprada, do trabalhador assalariado que
trabalha por dinheiro sob a tutela de outros (Wolf apud Le Boterf,
1987, p. 55).

Além destes fatores, inúmeros outros podem contribuir para a hetero-


geneidade do grupo. Diferenças religiosas, filiações ou mesmo simpatias
político-partidárias, pertencimento ou identificação com grupos divergentes
dentro da própria comunidade, desavenças pessoais e principalmente, as
características próprias de cada um dos participantes contribuem para que
o processo participativo seja sempre um campo dinâmico de ajustes e de
divergências.
Esta vivacidade é própria das relações sociais, e não há por que preten-
der eliminá-la, embora possa haver momentos em que as divergências inter-
nas devam ser superadas, ou mesmo suspensas provisoriamente, pelo bem
da comunidade como um todo. De qualquer forma, é preciso não esquecer
que a diversidade é a marca mais característica da vida em grupo.
Justamente por isto, a idéia de “disposição para participar” deve ser vis-
ta com algum cuidado. Esperar uma participação permanente e unânime é
uma posição que, além de ingênua, é perigosa. Ingênua por ignorar toda
aquela dinâmica interna dos grupos. Perigosa porque pode fazer com que,
sob a idéia de um bem coletivo, sejam sufocados os interesses pessoais ou
minoritários e eliminada a possibilidade da discordância e do questiona-
mento. Se isto ocorrer, o grupo estará reproduzindo aquilo que se propu-
nha a combater: a dominação e a desigualdade.

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Antes de esperar ao menos uma participação espontânea e entusiasmada,


convém que o pesquisador iniciante reflita um pouco sobre as condições de
vida das populações mais carentes.
Freqüentemente, para os membros das camadas mais exploradas da so-
ciedade

a realidade cotidiana é muito dura para que seja olhada de frente, as


possibilidades de uma verdadeira mudança estão longe demais e as
experiências anteriores foram, freqüentemente, decepcionantes e
dolorosas. Renunciam, então, ao desejo de mudança para se refugiarem
numa atitude de passividade e resignação psicologicamente mais segura.
No momento em que não há mais esperança (de superação) da situação
de opressão por uma ação comum resta apenas a salvação individual.
“Dessolidarizam-se”, então, dos outros que sofrem a opressão comum,
havendo identificação com o modelo e imagem fornecida pelo opressor
[...] A perspectiva individualista de “cada um por si” exclui, assim, a
possibilidade de toda ação comum, pois o objetivo não é mais mudar a
realidade de opressão [...] (Gajardo, 1978, p. 6-7).

As condições extremamente insatisfatórias de vida restringem a preocu-


pação e as altenativas de ação ao imediato, não deixando espaço para os
planos de longo prazo. A repressão às propostas de ação organizada e cole-
tiva reduz as tentativas de mudança ao nível individual. Ao buscar melhorar
a sua situação particular, cada membro da coletividade passa, inevitavelmen-
te, a competir com os demais. A parte dominante da sociedade, por sua vez,
se encarrega de divulgar e defender este modelo de ação imediatista, indivi-
dual e competitiva como a forma mais apropriada de ação.
Para o indivíduo marginalizado, torna-se muito mais fácil competir com
alguém que tenha condições semelhantes às suas, mesmo que isto represen-
te um ganho pequeno e temporário, do que enfrentar as classes dominantes
e toda a estrutura social vigente, o que exigiria uma ação coletiva, organiza-
da e permanente, onde os ganhos, embora potencialmente maiores, prova-
velmente só ocorreriam a longo prazo, e onde o risco de punições está
quase sempre presente.
Refletir sobre a realidade, questioná-la, é uma atividade dolorosa. Tentar
modificá-la é uma tarefa difícil, arriscada e com poucas chances de sucesso.

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O OLHAR NO ESPELHO 

Diante disto, “[...] uns dispensam-se de pensar e outros dispensam-se de


viver” (Noronha, 1989, p. 141).
Como você pode ver, a disposição para participar de um processo que
visa à mudança das condições coletivas não depende apenas da boa vontade
pessoal, nem é uma decisão simples, baseada apenas na constatação da
existência de um problema que atinge a todos. Contra essa disposição há
toda uma história de incentivo à imobilidade.
Apesar disto,

mesmo que a realidade pareça estar parada, pareça estar organizada,


pareça que está em estado − como dizem aí os conselheiros ou os
ideólogos das classes dominantes − que “há ordem social estável”, “que
há uma estabilidade”, que há uma tranqüilidade − mesmo quando as
coisas parecem estáveis, na verdade, as coisas estão em modificação. Há
transformações que estão ocorrendo ou que estão se gestando. E isto se
descobre pela reflexão crítica sobre o real. Aquilo que parece parado é
movimento. Há configurações mais ou menos ativas, mais ou menos
dinâmicas, mas há sempre configurações em movimento (Ianni, 1984, p.
98).

Mesmo que seja difícil pensar sobre ela, que pareça impossível modifi-
cá-la, a realidade da vida das populações mais carentes também é dolorosa a
ponto de ser difícil conviver pacificamente com ela e impossível não perce-
ber suas contradições. Mesmo que estas contradições não sejam entendidas,
nem se consiga perceber toda a sua extensão, elas são sentidas:

na verdade, a resignação nunca é completa. Os indivíduos e grupos


oprimidos desenvolvem estratégias de sobrevivência, de defesa, de luta e
de fuga, ainda que, explicitamente, ao nível de sua percepção da
realidade, não acreditem em sua própria capacidade de mudá-la
(Oliveira; Oliveira, 1982, p. 32).

Esta falta de uma visão clara sobre a realidade, de uma melhor compre-
ensão dos processos sociais, embora não consiga eliminar a percepção de
que a realidade não é como deveria ser, dificulta a elaboração de um outro
modelo de sociedade e contribui para impedir as tentativas de mudança do
atual.

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Freqüentemente no início de uma pesquisa num grupo oprimido [...]


constata-se que as pessoas exprimem um sentimento vago e difuso de
mal-estar e descontentamento face à situação em que se encontram.
Revelam, ainda, uma percepção elementar, não consciente e não
elaborada, de que “as coisas vão mal”. Entretanto, como não
compreendem muito bem as causas desse estado de coisas, e,
sobretudo, não sabem como fazer para se chegar a uma mudança, o
mal estar e o descontentamento recaem num sentimento de impotência
que pode bloquear ou mesmo sufocar o desejo de mudança (Gajardo,
1978, p. 6).

Quebrar este bloqueio, superar o desconhecimento é outro desafio a ser


vencido pelo processo de pesquisa participante. É preciso, então, num trabalho
de paciência e de persistência “[...] observar de perto todos os meandros do
discurso popular, em busca de tudo aquilo, por mais ínfimo que seja, que
desminta a resignação e a passividade” (Oliveira; Oliveira, 1982, p. 31-32), para,
com base nisto, tentar transformar a insatisfação em ação e o desconhecimen-
to em busca de informações.

A VIABILIDADE DA REALIZAÇÃO DA PESQUISA

Uma grande variedade de situações pode contribuir para inviabilizar a


realização de um processo de pesquisa participante, ou para tornar sua
realização inoportuna ou mesmo perigosa. Uma pesquisa deste tipo é sem-
pre uma intervenção na estrutura social, e as contradições existentes na
sociedade tendem a se acirrar frente a um processo destes. Mesmo quando
os objetivos de transformação da realidade e as ações executadas para atin-
gi-los sejam simples e pouco ambiciosas, o próprio fato de que as pessoas
de quem se espera apenas a passividade e a concordância estejam se organi-
zado e procurando repensar e modificar sua situação costuma desencadear
reações adversas. A intensidade e o alcance destas reações devem sempre
ser levados em conta, mesmo quando não sejam capazes de impedir a reali-
zação das pesquisas. Apenas como um exemplo, pela própria estrutura do
capitalismo nacional, um processo participativo que vise colaborar com a
organização dos trabalhadores volantes agrícolas de determinada região e
aumentar seu poder de reivindicação, vai, inevitavelmente, ser visto como

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O OLHAR NO ESPELHO 

um movimento perigoso pelos grandes proprietários rurais, que utilizam


aqueles trabalhadores em suas propriedades.
Estando a favor de uns, a pesquisa participante fatalmente estará contra
outros.
Convém não manter nenhuma ilusão ou visão ingênua a este respei-
to, ou acreditar em ideais de harmonia social e colaboração plena. A
realidade pode produzir, nestes casos, mais do que uma simples decep-
ção.
Já vimos, anteriormente, que as condições concretas de participação dos
pesquisadores-profissionais podem também atuar como um agente contrário
à realização de uma pesquisa deste tipo.
Um outro fato a ser levado em conta é o contexto em que a pesquisa
será realizada. Podemos distinguir três contextos diferentes, a partir de uma
classificação elaborada por Thiollent:

num primeiro caso, a pesquisa-ação é organizada para realizar os objetivos


práticos de um ator social homogêneo dispondo de suficiente autonomia
para encomendar e controlar a pesquisa. O ator é freqüentemente uma
associação ou um agrupamento ativo (1985, p. 17).

Aparentemente, esta é uma situação em que a realização da pesquisa


pode ocorrer de forma tranqüila. A associação ou o agrupamento já possui
alguma prática de atuação social, considera a pesquisa necessária e convoca
os pesquisadores-profissionais para um objetivo específico. A inserção dos
cientistas no grupo é facilitada e os papéis a serem desempenhados pelos
participantes todos já estão delimitados, são conhecidos e aceitos, ao menos
em parte.
Mesmo nesta situação, contudo, podem surgir áreas de conflito entre os
objetivos do grupo que encomendou a pesquisa e a estrutura social geral,
entre os próprios membros do grupo, ou entre estes e os cientistas, em
relação a alguns objetivos específicos ou a algumas formas de procedimento.
Quando o grupo ou associação pretendem ser representativos de uma co-
munidade maior, sempre podem surgir conflitos entre os interesses dos
representantes e dos representados. A própria representatividade dos pri-
meiros pode chegar a ser questionada, num processo destes.

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Num segundo caso, a pesquisa-ação é realizada dentro de uma


organização (empresa ou escola, por exemplo) na qual existe hierarquia
ou grupos cujos relacionamentos são problemáticos. A pesquisa pode
vir a ser utilizada por uma das partes em detrimento dos interesses das
outras partes (Thiollent, 1985, p. 17).

Esta é uma situação complicada sob vários pontos de vista.


Sob o ponto de vista ético, não se pode considerar correta a atuação de
um pesquisador, ou de um grupo deles, que favoreça a utilização de infor-
mações contra os interesses dos próprios informantes. Mais que isto, levar
estes últimos a participarem de um processo que visa, desde o início, au-
mentar o grau de controle sobre eles mesmos, além de injustificável, contra-
ria totalmente as intenções originais de um processo de pesquisa dessa
natureza.
Sob o ponto de vista político, o cientista estaria se vinculando total-
mente aos detentores do poder, ao menos do poder interno da organiza-
ção.
Sob o ponto de vista metodológico, não seria de se estranhar que esta
vinculação, assim que percebida pelos participantes do grupo desprivilegia-
do, viesse a comprometer totalmente o andamento e os resultados da pes-
quisa.
Isto não significa, contudo, que as pesquisas participantes não possam
ser realizadas em contextos como estes; apenas que sua realização depende-
rá de toda uma fase anterior de negociações. Aspectos como a representati-
vidade dos grupos participantes, o grau de controle de cada um deles sobre
o processo todo da pesquisa, os interesses e objetivos reais desta, as possibi-
lidades de utilização do processo em benefício de alguns participantes em
detrimento de outros e, principalmente, o esclarecimento dos conflitos exis-
tentes na situação pesquisada devem ser amplamente discutidos nesta fase
preliminar.
Nas fases posteriores, caso a pesquisa se realize, convém sempre estar
atento às várias nuances e sutilezas do jogo do poder.

Num terceiro caso, a pesquisa ação é organizada em meio aberto, por


exemplo, bairro popular, comunidade rural etc. Nesse caso, ela pode ser

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O OLHAR NO ESPELHO 

desencadeada com uma maior iniciativa por parte dos pesquisadores


que, às vezes, devem se precaver de possíveis inclinações “missionárias”,
sempre propícias à perda do mínimo de objetividade que é requerido na
pesquisa (Thiollent, 1985, p. 17).

Deve haver cuidado, também, por parte dos pesquisadores-profissionais,


em não substituir os interesses dos demais participantes pelos seus, ou em
não confundir seus objetivos pessoais com os dos outros, como já vimos
antes.
Também neste caso podem surgir conflitos e jogos de interesses, tanto
no interior do grupo participante, quanto nas relações deste com a socieda-
de abrangente.
Lembre-se de que uma pesquisa participante é sempre um campo de
tensões entre interesses, objetivos, saberes e situações concretas diferentes
e, muitas vezes, conflitantes.

MULTIDISCIPLINARIDADE

Cada ciência estuda um aspecto particular da realidade. Isto faz com


que, isoladamente, nenhuma delas seja capaz de traduzir a realidade toda,
ou de fornecer explicações e sugerir alternativas para qualquer aspecto da
vida social. Qualquer tentativa de investigação social esbarra sempre com
problemas complexos a ponto de não poderem ser compreendidos pelos
conhecimentos de apenas uma ciência, ou de somente um dos ramos das
ciências.
Trabalhar estes problemas a partir de uma única perspectiva implica o
risco de que se produza uma visão distorcida ou parcial da realidade, e que
se deixe de lado aspectos ou perspectivas de ação, que poderiam ser impor-
tantes para o processo como um todo. É preciso, então, que o cientista
deixe de lado sua tendência a hipervalorizar sua área de conhecimento,
reconheça as limitações de cada ciência e aprenda a compartilhar suas in-
formações e a aprender, tanto com os demais cientistas quanto com os não-
iniciados no mundo das teorias científicas.
O recurso metodológico da divisão artificial da realidade deve dar lugar,
aqui, a um outro procedimento, o da recomposição dos conhecimentos, se

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pretende-se conhecer a realidade tal como ela está, para tentar transformá-
la no que gostaríamos que fosse.

A FASE DA INSERÇÃO
“A inserção é o processo pelo qual o pesquisador procura atenuar a dis-
tância que o separa do grupo social com quem pretende trabalhar” (Olivei-
ra; Oliveira, 1982, p. 27). Atenuar a distância não significa, contudo, eliminar
as diferenças existentes, nem fazer com que uma das partes da relação se
submeta à outra.
A fase da inserção tem dois objetivos complementares: tornar os pes-
quisadores e o grupo social mutuamente conhecidos, e possibilitar o estabe-
lecimento daquela espécie de “contrato”, que chamamos de compromisso do
pesquisador com o grupo. Vimos, ao falar deste compromisso, que o cientis-
ta não deve pretender se confundir com os membros do grupo, anulando
sua identidade e suas características próprias, nem deve tomar como suas,
tarefas que o grupo pode perfeitamente executar por conta própria. O cien-
tista não deve simplesmente se submeter às vontades da comunidade, como
não deve procurar submetê-la. As mesmas exigências, em sentido inverso,
devem ser feitas aos membros do grupo junto ao qual se realiza a pesquisa.

A verdadeira inserção implica, portanto, numa tensão permanente


entre o risco de identificação excessiva do pesquisador com os
protagonistas da situação em que está inserido e a necessidade de
manter um recuo que permita uma reflexão crítica sobre a
experiência em curso. É preciso, justamente, alcançar uma síntese
entre o militante de base e o cientista social, entre o observador e o
participante, sem sacrificar nenhum dos dois pólos desta relação
(Oliveira; Oliveira, 1982, p. 28).

Conhecer e tornar-se conhecido, mostrar suas qualidades e limita-


ções e aprender a admirar e a respeitar as do outro; descobrir o que
esperar dele e deixar que ele descubra o que pode esperar é sempre um
processo delicado e, às vezes, demorado, mas necessário ao estabeleci-
mento de uma relação interpessoal mais ou menos duradoura e mutua-
mente produtiva. No estabelecimento de uma relação deste tipo,

190 
O OLHAR NO ESPELHO 

ninguém lucrará em fornecer ou em receber falsas informações a respei-


to de si mesmo ou do outro, em estabelecer expectativas exageradas ou
demasiadamente simplórias, ou em desencadear ações nas quais não
esteja disposto a se engajar ou em cuja eficácia não acredite.
É claro que a fase de inserção não poderá ser considerada encerrada
após os primeiros contatos dos pesquisadores com o grupo, nem pode ser
superada numa simples rodada de debates. Embora as intenções pessoais
possam ser apresentadas e o compromisso de participar do processo da
pesquisa possa ser viabilizado, o conhecimento e a confiança mútuos só
poderão ser estabelecidos no decorrer do processo, e poderão sofrer avan-
ços e recuos. Sempre é possível que surjam desconfianças quanto às in-
tenções ou insatisfações quanto à atuação de um ou mais participantes.
Nestes casos, as relações e os compromissos de cada um com o grupo
devem ser novamente discutidos e avaliados.
Não há nenhuma receita pronta sobre como se pode iniciar ou garantir
o desenvolvimento satisfatório de um processo de inserção, mas alguns
ingredientes básicos podem ser identificados.
Uma relação anterior do pesquisador com o grupo, ainda que não num
nível profissional, ou alguma familiaridade com a situação em que se dá a
pesquisa podem ser de grande ajuda:

quanto mais próximo o pesquisador se sentir da vivência cotidiana do


grupo, mais fácil será para ele o processo de inserção, de coleta de
dados, de identificação dos problemas-chave e, também, seu diálogo
com a comunidade (Gajardo, 1978, p. 2).

Outros elementos podem ser deduzidos do que apresentamos anteri-


ormente: a honestidade, a ausência de ambigüidades nas ações, o estabele-
cimento claro da própria identidade e dos interesses pessoais no processo,
o respeito pelo outro e por suas opiniões, além da paciência e sensibilidade
que nos permitam, por um lado, admitir que o processo não caminhe no
rítmo que gostaríamos e por outro, fazê-lo andar, apesar disso.
Uma boa dose de resistência à frustração também pode ser necessária.

A FORMAÇÃO DO GRUPO DE PESQUISA

191 
o respeito pelo outro e por suas opiniões, além da paciência e sensibilidade
que nos permitam, por um lado, admitir que o processo não caminhe no
rítmo que gostaríamos e por outro, fazê-lo andar, apesar disso.
Uma boa dose de resistência à frustração também pode ser necessária.
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...
A FUma
O R pesquisa
M A Ç Ã participante
O D O G Rpode ser D
UPO umE processo
PESQU longo
I S Ae trabalhoso.
Por isto,
Uma epesquisa
por suasparticipante
próprias condições
pode serdeum vida,processo
nem todos longoos emembros do
trabalhoso.
grupo sobre o qual se realiza a pesquisa poderão participar
Por isto, e por suas próprias condições de vida, nem todos os membros do dela em todas
as fases.sobre
grupo Algoosemelhante podeaacontecer
qual se realiza 191  entre o grupo dos pesquisadores-
pesquisa poderão participar dela em todas
profissionais.
as fases. Algo semelhante pode acontecer entre o grupo dos pesquisadores-
Assim, entre a equipe que se propõe a iniciar a pesquisa e a que vai re-
profissionais.
almente
Assim,realizá-la
entre apode haver
equipe quesignificativas
se propõe a diferenças.
iniciar a pesquisa e a que vai re-
Pode haver casos em que um pequenodiferenças.
almente realizá-la pode haver significativas grupo se proponha a iniciar a
pesquisa
Pode ehaverque acasos
comunidade
em que se umsinta atraídagrupo
pequeno por ela, a ponto dea todos
se proponha iniciarosa
seus membros participarem, de uma forma ou de
pesquisa e que a comunidade se sinta atraída por ela, a ponto de todosoutra, do processo. Pode
os
seus membros participarem, de uma forma ou de outra, do processo. Podea
haver outros em que, embora a comunidade toda reconheça desde o início
necessidade
haver outros ou emaque,conveniência da pesquisa,toda
embora a comunidade apenas uns poucos
reconheça desde se dispo-a
o início
nham ou possam participar ativamente de sua realização.
necessidade ou a conveniência da pesquisa, apenas uns poucos se dispo- Pode ocorrer,
ainda, um
nham ou sem possamnúmero de outras
participar situaçõesde
ativamente diferentes destas. Pode ocorrer,
sua realização.
A um
ainda, possibilidade
sem número de departicipação e os riscos
outras situações de uma
diferentes eventual troca de
destas.
participantes no decorrer da pesquisa devem ser
A possibilidade de participação e os riscos de uma eventual analisados pela equipe
trocaquede
pode, eventualmente, estabelecer alguns critérios mínimos
participantes no decorrer da pesquisa devem ser analisados pela equipe que para a participa-
ção. Oeventualmente,
pode, estabelecimentoestabelecer
destes critérios
alguns ecritérios
a própria discussão,
mínimos paracontudo, não
a participa-
devem perder de vista que a mera realização de um levantamento
ção. O estabelecimento destes critérios e a própria discussão, contudo, não de dados
junto à perder
devem comunidade
de vistanãoque
satisfaz
a meraosrealização
objetivos de de um
umalevantamento
pesquisa participante.
de dados
A divulgação
junto à comunidadee a discussão das informações
não satisfaz os objetivoscolhidas,
de umaopesquisa
aprendizado propor-
participante.
cionado por esta discussão e pela própria participação
A divulgação e a discussão das informações colhidas, o aprendizado propor- na realização da
pesquisa e o processo político de tomada de decisões
cionado por esta discussão e pela própria participação na realização da devem ser comparti-
lhados ao emáximo
pesquisa com político
o processo os membros do grupo
de tomada pesquisado.
de decisões devem ser comparti-
lhados ao máximo com os membros do grupo pesquisado. entre o número
Temos novamente aqui algumas situações de tensão:
desejável
Temosdenovamente
participantes aquie oalgumas
númerosituações
possível, de entre a participação
tensão: entre o númeroideal,
em todas de
desejável as fases do processo,
participantes e a viabilidade
e o número possível,dessa
entreparticipação.
a participação ideal,
Quanto ao número de participantes,
em todas as fases do processo, e a viabilidade dessa é fácil se supor que ele deva ser
participação.
sempre o maior possível. Quanto ao tipo de participação,
Quanto ao número de participantes, é fácil se supor que ele várias alternativas
deva ser
têm sido sugeridas e adotadas em projetos diferentes
sempre o maior possível. Quanto ao tipo de participação, várias alternativasde pesquisa partici-
pante.
têm sido sugeridas e adotadas em projetos diferentes de pesquisa partici-
pante.
A tipologia elaborada por Ema Rubín de Celis (1982) ajuda a entender
os níveis distintos de participação dos setores populares na
A tipologia elaborada por Ema Rubín de Celis (1982) ajuda a entender
implementação destes projetos. Define a autora cinco tipos possíveis de
os níveis distintos de participação dos setores populares na
participação nesses projetos, a saber: 1) participação a partir da
implementação destes projetos. Define a autora cinco tipos possíveis de
participação nesses projetos, a saber: 1) participação a partir da

192 

192 
O OLHAR NO ESPELHO 

devolução de informação; 2) participação a partir da coleta de dados; 3)


participação em todo o processo sobre o tema proposto pelo cientista;
4) participação em todo o processo sobre um tema proposto pelo
próprio grupo; 5) participação na pesquisa a partir da ação educativa
(Gajardo, 1987, p. 44).

Uma série de motivos pode levar o grupo de pesquisa a optar por um


destes tipos de participação popular, deixando de lado um outro que favore-
ça a vivência e o aprendizado mais completos do processo de produção do
conhecimento. Antes de se deixar levar por questões de ordem mais prática,
convém refletir um pouco sobre este processo:

não basta saber que se sabe, mas é preciso saber porque se sabe. Esta
última modalidade de conhecimento representa aquela que decorre da
posse consciente dos instrumentos metodológicos, ou seja, do
conhecimento dos processos de raciocínio que o pensamento emprega
para chegar à verdade e comprová-la (Pinto, 1979, p. 359).

Embora não se possa, a rigor, falar de uma verdade social comprovada,


o raciocínio sobre a aprendizagem permanece válido.
Um último comentário sobre a formação do grupo: nos casos em que
um número relativamente pequeno de pessoas participe efetivamente do
processo de pesquisa, é conveniente que as relações destes pesquisadores
com o restante da comunidade sejam sempre avaliadas. Qualquer tendência
a estabelecer uma elitização dos pesquisadores ou mesmo uma diferenciação
excessiva destes em relação à comunidade deve ser evitada. Praticamente
tudo o que foi dito sobre o compromisso do cientista com o grupo pode ser
repetido aqui, em relação ao grupo e à comunidade como um todo. Não se
pode perder de vista os objetivos da pesquisa, nem a quem ela pretende
servir.

LEVANTAMENTOS PRÉVIOS
Antes mesmo de engajar um diálogo mais sistemático com a
comunidade, o pesquisador pode ir desenhando um perfil provisório do
grupo. Para este trabalho preparatório, as fontes são as mais diversas, já
que são úteis tanto o estudo de documentos oficiais e o depoimento de

193 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

autoridades estabelecidas quanto a observação da vida quotidiana, as


manifestações culturais e religiosas, a identificação das formas de
atividade econômica ou dos mecanismos de poder interno e externo
(Oliveira; Oliveira, 1982, p. 29).

Num processo de pesquisa social e especialmente nos de pesquisa par-


ticipante, o início de uma fase não pressupõe o encerramento de outra.
Assim, a fase de levantamentos prévios não tem que se iniciar antes da
inserção do pesquisador na comunidade, nem tem que se encerrar antes da
formação do grupo de pesquisa.
Apesar do nome, ela pode se estender por um longo período. Pode se
iniciar mesmo antes da chegada dos pesquisadores-profissionais à comuni-
dade, no momento em que eles obtiverem as primeiras informações sobre
esta, ou entrarem em contato com alguns de seus membros. As informações
colhidas assim previamente poderão auxiliar no processo de inserção dos
cientistas na comunidade.
Esta fase pode se iniciar também em algum outro momento e se esten-
der até bem depois da formação do grupo misto de pesquisadores, propici-
ando que os moradores participem desta primeira coleta de informações a
respeito deles mesmos e possam, eventualmente, confrontar suas visões com
as visões “oficiais” sobre sua vida.
As informações oficiais, embora possam ser de grande valia, não são ne-
cessariamente as mais importantes num contexto de pesquisa participante.

Num primeiro momento, é importante compreender, numa perspectiva


“interna”, qual é o ponto de vista dos indivíduos ou grupos sociais
acerca das situações que vivem. Qual a percepção destes sobre tais
situações? Como eles as interpretam? Qual o seu sistema de valores?
Quais os seus problemas? Quais suas preocupações? É necessário aí
aprender qual é a lógica dos pesquisados, mesmo que, à primeira vista,
as suas inferências e raciocínios possam parecer irracionais (Le Boterf,
1987, p. 57).

De forma semelhante, embora em alguns momentos desta fase possa


ser proveitosa a utilização de algumas técnicas de pesquisa tradicionais, o
pesquisador deve estar preparado para trocar os esquemas da observação e
da descrição pela busca de uma maior compreensão. Na medida em que a

194 
O OLHAR NO ESPELHO 

pesquisa participante pretende retratar o mundo tal como ele é vivenciado


pelas populações envolvidas, esta fase inicial

[...] implica “viver junto” com a coletividade estudada, em partilhar o


seu cotidiano, a sua utilização do tempo e do espaço: ouvir, em vez de
tomar notas ou fazer registros; ver e observar, em vez de filmar; sentir,
tocar em vez de estudar; “viver junto” vem vez de visitar. É em geral
preferível deixar de lado os cadernos de notas, os gravadores e os
questionários. A pesquisa nesse ponto não é estruturada (Le Boterf,
1987, p. 58).

Veja bem, a pesquisa não é estruturada nesta fase, em que se procura


conhecer melhor os pontos de vista, as representações e as vivências da
comunidade. Isto não significa que a pesquisa participante como um todo
seja não-estruturada, ou que deva se esgotar com a coleta de dados iniciais,
ou com a “compreensão” deles pelos pesquisadores-profissionais.
Os levantamentos prévios devem servir a pelo menos quatro funções: a)
tornar a comunidade conhecida desde “dentro” pelos pesquisadores-
profissionais; b) levantar as queixas existentes e os principais problemas
vividos pela comunidade, suas visões sobre as causas e os mecanismos de
manutenção destas situações problemáticas, e procurar indícios da disposi-
ção dos membros da comunidade para tentar superá-las; c) sistematizar as
várias informações sobre a vida da comunidade e sobre as relações desta
com a sociedade mais ampla, tornando possível detectar falhas, fraquezas ou
incoerências nestas informações; d) agir como um ponto de partida para as
reflexões do grupo misto de pesquisadores e orientar a elaboração de proje-
tos de pesquisa mais específicos e mais profundos, que visem melhorar os
níveis de informação e de organização coletiva dos membros da comunida-
de.
Devem servir, portanto, como um começo para a fase das pesquisas
mais formais, se estas forem necessárias.

A REALIZAÇÃO DA PESQUISA
Nesta fase as pesquisas participantes se aproximam bastante das pes-
quisas de tipo mais tradicional.

195 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

Um bom conhecimento e alguma experiência com este último tipo de


pesquisa podem ser de grande valia para os pesquisadores-participantes-
profissionais.
É necessário, contudo, que estes estejam atentos às diferenças existentes
entre as duas propostas de pesquisa. Mesmo nesta fase, os processos parti-
cipantes não dispensam a atuação conjunta dos pesquisados e nem podem
perder de vista a perspectiva da aplicação, tão breve quanto possível, dos
conhecimentos obtidos e em favor destes últimos.

PLANEJAMENTO

Tal como nas pesquisas tradicionais, as investigações mais formais de uma


pesquisa participante podem se iniciar tanto por um tema (um assunto) mais
amplo, quanto pela escolha de um problema mais específico.
Na prática das pesquisas participantes a relação entre estes dois ele-
mentos costuma ser bastante estreita e imediata, já que, via de regra, os
temas são escolhidos por sua relação com situações problemáticas vividas
pela comunidade. Uma vez que este tipo de pesquisa não visa apenas à
elaboração de novos conhecimentos, também não costuma haver aqui dis-
tinções claras entre os problemas práticos e os problemas de pesquisa. Os
problemas da comunidade serão o tema e o problema da pesquisa. “O tema
da pesquisa é a designação do problema prático e da área de conhecimento
a serem abordados” (Thiollent, 1985, p. 50).
A escolha do tema e do problema da pesquisa nem sempre é um pro-
cesso fácil e tranqüilo. Pode haver divergências a respeito desta escolha,
tanto entre os membros da comunidade quanto entre estes e os pesquisado-
res-profissionais. O que é importante para uns pode parecer secundário
para outros e vice-versa.

Muitos autores consideram que são apenas as populações que determinam


o tema. Outros dizem que há sempre uma adequação a ser estabelecida
entre as expectativas da população e as da equipe de pesquisadores. A
nosso ver, deve haver entendimento. Um tema que não interessar à
população não poderá ser tratado de modo participativo. Um tema que não
interessar aos pesquisadores não será levado a sério e eles não
desempenharão um papel eficiente (Thiollent, 1985, p. 51-52).

196 
O OLHAR NO ESPELHO 

Mais uma vez, o diálogo franco e aberto é o caminho para a superação


dos impasses, caso eles surjam.
Mesmo nos casos em que não haja divergências significativas nos deba-
tes para a seleção dos temas,

[...] é muito importante introduzir a reflexão sobre a diferença entre um


problema “prioritário” (isto é, um problema-chave do qual dependem
outros problemas), e um problema “imediato” (que pode necessitar ser
resolvido a curto prazo mas que não constitui um fator decisivo para a
compreensão e solução de outros problemas) (Le Boterf, 1987, p. 62).

Em outras palavras, é importante não deixar que o urgente se sobrepo-


nha sempre ao importante.
Outro problema importante a ser discutido é a relação entre a comple-
xidade do problema concreto a ser enfrentado e a capacidade de atuação do
grupo de pesquisadores ou da própria comunidade.
A escolha de um problema excessivamente amplo, que só poderia ser
resolvido dentro de um prazo muito longo ou através da mobilização de
grupos muito maiores do que a comunidade em estudo, pode conduzir o
processo ao fracasso, com o grupo se desestruturando face à dificuldade da
tarefa. Entretanto, problemas complexos normalmente podem ser divididos
em questões menores, de alcance mais restrito, mas que podem ser resolvi-
das num prazo mais curto.
Por outro lado, podemos supor que a disposição para lutar pela supera-
ção de um problema é diretamente proporcional ao grau de importância
que se confere a este problema, ou ao quanto ele interfere no nosso dia a
dia. Assim, o mesmo grupo que desistiria facilmente de um objetivo pode se
manter mobilizado longos períodos na luta por um outro.
É possível que, a partir das discussões iniciais se chegue à conclusão de
que há mais de um tema importante a ser estudado e que há a necessidade
da realização de duas ou mais pesquisas, paralelamente. Neste caso a equipe
mista pode ter que se dividir para que cada subgrupo investigue um pro-
blema específico. Quando isto ocorrer, é preciso cuidar para que as pesqui-
sas não se separem em definitivo; ou seja, é preciso haver momentos
freqüentes para que cada subgrupo exponha e discuta com os demais seus
avanços, problemas e propostas, de mddo que o trabalho não perca a sua
unidade.

197 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

Convém também não esquecer que a pesquisa participante não é a úni-


ca forma de atuação dos cientistas junto às comunidades e que há situações
em que a realização de uma pesquisa, mesmo que do tipo participativa,
pode ser dispensada, ou substituída por um outro processo de organização
coletiva.

[...] Para que haja realmente necessidade de uma pesquisa, os


problemas colocados não devem ser triviais. Se coletar três ou quatro
informações bastasse para resolver um problema do dia-a-dia ou para
tomar uma decisão rotineira na vida de uma associação não
precisaríamos desencadear um processo de investigação e ação. Na
fase de colocação dos problemas é necessário tentar discutir a
relevância científica e prática do que está sendo pesquisado
(Thiollent, 1985, p. 54).

“Fazer de conta” que se está realizando uma pesquisa quando já se


sabe de antemão seus resultados, ou quando não há mesmo nenhuma
dúvida a ser esclarecida, é não só uma perda de tempo, como uma boa
forma de se esvaziar qualquer tentativa de organização e de ação comu-
nitária.
Não é que não haja o que ser pesquisado. A realidade é sempre um
emaranhado de dúvidas, de impressões provisórias e de informações parci-
ais. Tudo isto pode servir como tema de pesquisas. A questão é saber dis-
tinguir bons temas, capazes, ao mesmo tempo, de sustentar uma
mobilização e propiciar a geração de informações proveitosas.
Para isto, é necessário perceber as diferenças entre uma hipótese de
pesquisa, uma certeza e uma mera opinião.
Esta última é apenas um palpite, algo em que se acredita, independente
de seu grau de veracidade. Grande parte dos conhecimentos das pessoas,
leigas ou cientistas, é constituida por afirmações deste tipo. Verificar o valor
destas opiniões, confrontá-las com as teorias ou, melhor ainda, com a práti-
ca, pode ser uma tarefa proveitosa, desde que haja disposição para alterá-
las, se elas se mostrarem inadequadas. Por outro lado, tomar meros palpites
como “verdades”, e usá-los como base para outras investigações, pode resul-
tar num processo desgastante e inútil. Uma das piores frustrações para
quem faz pesquisa é descobrir, depois de um longo trabalho que os pressu-

198 
O OLHAR NO ESPELHO 

postos nos quais ele embasou todo o seu projeto estavam errados e que
tudo deve ser refeito. Uma situação destas pode até valer como aprendiza-
do, mas cansa... Num processo coletivo, recomeçar tudo pode ser bem mais
difícil do que na vida pessoal ou na pesquisa acadêmica.
As certezas são afirmações de um outro tipo, sobre as quais já há in-
formações suficientes para que sejam aceitas como corretas ou válidas. Ape-
sas disto, elas devem ser encaradas sempre como provisórias, pois o
surgimento de novas informações pode contribuir para alterá-las. Após o
surgimento destes elementos de contradição, as antigas certezas são ótimos
objetos de investigação. É impressionante o número de engodos que podem
se esconder por trás de antigas certezas. Quando não se consegue perceber
qualquer contradição nelas, entretanto, realizar pesquisas a respeito de algo
sobre o qual não se tem dúvidas, freqüentemente resulta em perda de tem-
po.
Com algum cuidado, as certezas podem ser utilizadas como base para a
realização de pesquisas; ou seja, podem servir como aqueles elementos a
partir dos quais outros elementos são questionados.
Agora as hipóteses. Elas não são certezas nem opiniões. Há indícios nas
teorias ou na vivência cotidiana de que elas sejam uma resposta provável ao
problema; no entanto ainda não há elementos suficientes para aceitá-las
como corretas ou como as mais corretas. Portanto, ainda não há como agir,
baseado nelas.
A verificação do valor da hipótese, ou das hipóteses principais sobre de-
terminado problema, especialmente, se este representa um ponto importan-
te para a vida da comunidade, pode representar um grande auxílio nas
tentativas de superá-lo ou mesmo de diminuí-lo.
Da mesma forma que nas pesquisas mais tradicionais, as hipóteses ser-
vem, aqui, como um recurso metodológico, uma forma de procurar abreviar
o tempo da pesquisa: se tenho várias respostas possíveis ao problema, mas
uma delas aparece como a mais provável, é mais simples verificar a validade
desta em primeiro lugar, do que tentar verificar simultaneamente a validade
de todas as respostas possíveis, inclusíve a mais provável.
É possível realizar uma pesquisa participante sem elaborar ou selecio-
nar hipóteses? Em princípio sim, especialmente quando as respostas possí-
veis ao problema são poucas, ou seja, quando o problema a ser investigado
é simples. No entanto, mesmo quando não selecionamos formalmente uma

199 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

hipótese − quando nos propomos a realizar uma pesquisa sem hipóteses −,


sempre temos um desejo de que a investigação aponte para determinado
resultado, ou temos um “palpite” sobre qual será ele. Isto quer dizer que, no
fundo, estaremos trabalhando com uma ou mais hipóteses, mas sem refletir
sobre elas ou sem verificar seu embasamento. Estamos trabalhando com
opiniões, como se elas fossem hipóteses.
É muito melhor, então, explicitar nossas hipóteses e discuti-las com o
grupo.
Além disso, tal como nas pesquisas tradicionais, as hipóteses têm, aqui,
uma outra função: elas servem como forma de avaliar a adequação dos
procedimentos adotados. Se chegarmos a confirmar ou a refutar uma hipó-
tese, isto pode indicar que nossos procedimentos foram adequados. Se não
conseguirmos chegar a nenhum destes resultados, com certeza falhamos,
quer na seleção das hipóteses, quer nas formas que escolhemos para a in-
vestigação.
A escolha de bons temas de pesquisa e a elaboração de hipóteses de-
pendem sempre de dois fatores: a habilidade de observar o mundo que nos
rodeia, e de perceber suas contradições, e o preparo teórico, capaz de nos
fornecer elementos para compreender este mundo e ir além de suas apa-
rências iniciais.
Já falamos sobre o preparo teórico do cientista e não há por que repetir
aqueles comentários. Apenas se poderia acrescentar aqui o lembrete de que,
sem uma boa fundamentação teórica, o máximo que teremos, se nossa pes-
quisa for bem feita, será uma descrição de uma parte da realidade, e isto
não nos possibilitará compreendê-la. Também não haverá sentido algum na
pesquisa se o conhecimento teórico permanecer como propriedade particu-
lar do grupo dos cientistas.
As demais fases do planejamento de uma pesquisa participante não di-
ferem muito das de uma pesquisa mais tradicional, desde que não se perca
de vista as diferenças de propósitos que existem entre elas. Por esta razão,
quando o processo de investigação participativa incluir uma fase de entre-
vista com os membros da comunidade, o grupo de pesquisa deve ter o
cuidado de elaborar

[...] uma técnica de entrevista através da qual seja realmente possível


captar o que o povo pensa e diz, ao invés de ouvir como resposta um

200 
O OLHAR NO ESPELHO 

simples eco de sua própria pergunta. A este propósito, os questionários


tradicionais, no estilo pergunta-resposta, tão ao gosto dos institutos de
sondagem eleitoral ou dos ibopes televisivos não nos servem. O formato
mesmo dos questionários, elaborado unilateralmente pelo pesquisador,
bloqueia o surgimento de dados novos e inesperados (Oliveira; Oliveira,
1982, p. 29).

Da mesma forma, o tratamento dos dados e sua análise deve ser um


outro momento de participação e de aprendizado. O uso de técnicas estatís-
ticas, se existir, não deve impedir que outras formas de análise, mais inter-
pretativas e ligadas à vivência das situações estudadas possam ser utilizadas.
Em resumo, todo o planejamento deve estar voltado para a preocupa-
ção de que a voz ouvida no decorrer da pesquisa seja a dos pesquisados, e
que estes possam ouvi-la.

INVESTIGAÇÃO

Um número muito grande de situações diferentes pode ser objeto de


investigação, dentro de um processo de pesquisa participante.
Dependendo do problema selecionado, pode ser necessário buscar in-
formações fora do âmbito da comunidade. É o caso, por exemplo, das situa-
ções relacionadas à posse de terrenos, à existência de direitos legais ou da
busca de alternativas institucionais para a solução de dificuldades. Nestes
casos, embora o conhecimento e as relações sociais do grupo de cientistas
possam ajudar a estabelecer contatos ou a conseguir dados e informações
junto aos organismos oficiais, não devem substituir as iniciativas e o esforço
do grupo como um todo, por tudo o que já falamos antes.
Normalmente, porém, a coleta externa de dados só acontece, quando
acontece, depois de um levantamento sobre a visão que a comunidade tem
sobre o problema enfrentado.
Esta é uma forma de levar a discussão do problema a um grupo bem
maior do que a equipe mista de pesquisadores e, ao mesmo tempo, avaliar o
grau de preocupação da comunidade com a situação que está sendo pesqui-
sada, seu nível de informação e sua disposição para se engajar numa tenta-
tiva de superação. Nesta fase, busca-se apenas

201 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

[...] conhecer o nível de percepção e de conscientização das pessoas. É


preciso insistir neste ponto, pois, muitas vezes, levados pela impaciência,
queremos saltar etapas e começar, no momento da coleta de dados,
uma discussão com os entrevistados, tentando fazê-los mudar de idéia
ou tentando fazê-los ver sua situação de outra forma (Gajardo, 1978, p.
5).

Iniciativas deste tipo são indesejáveis, tanto por representarem uma


tentativa de imposição de um ponto de vista (o do pesquisador − seja ele
cientista ou membro da comunidade), quanto por servirem como um ele-
mento de esvaziamento da fase seguinte do processo, que seria justamente a
discussão e a reavaliação coletivas das percepções e opiniões individuais,
como forma de orientar a escolha das alternativas de ação.
Le Boterf (1987) denomina esta fase de coleta interna de dados como “a-
nálise crítica dos problemas considerados prioritários e que os participantes da
pesquisa desejam estudar” (p. 62), e propõe que ela seja dividida em três
momentos. Um primeiro, em que se procura determinar “a expressão da
‘representação’ cotidiana do problema”, levando até os membros da comu-
nidade questões como:

de que problema se trata? O que já sabemos dele? Quais são os fatos que
o determinam? Como se manifesta o problema? Onde ele existe? Quando
ele surgiu? Quem é afetado pelo problema? Quais as consequências do
problema? Houve ações que tentaram resolver esse problema e
fracassaram? Por quê? O que poderíamos fazer para contribuir para a
resolução do problema? Quais são as ações e os meios ao nosso alcance?
Quais aqueles fora de nosso alcance?[...] (p. 62).

Em alguns casos, os relatos de vida dos participantes, elaborados por


eles mesmos, a partir de um eixo comum, pode trazer grande parte destas
informações, já que, provavelmente, o problema tem estado presente, de
uma forma ou de outra, na vida de cada um.
No momento seguinte, o grupo procuraria questionar os pontos de vis-
ta apresentados anteriormente, confrontando-os uns com os outros, ou com
outras informações vindas de fora da comunidade sobre situações semelhan-
tes, e até com as bases teóricas fornecidas pelos cientistas ou por outros
participantes.

202 
O OLHAR NO ESPELHO 

Esta análise crítica das representações pode permitir, no terceiro mo-


mento, uma reformulação do problema, que permita aos participantes com-
preendê-lo melhor, perceber suas causas e relações e, assim, se tornarem
capazes de selecionar melhor as alternativas de ação.

É importante assinalar que se trata aqui de um “primeiro” trabalho de


análise crítica, pois tal análise não pode ser concluida numa etapa
anterior à própria ação (Le Boterf, 1987, p. 62).

Perceba que a busca de informações externas à comunidade já está re-


lacionada a estas alternativas de ação formuladas. Por isto, a fase “interna”
de investigação é, normalmente, precedente.
É claro que, na prática, outras alternativas de procedimentos podem ser
necessárias, dependendo dos problemas existentes, da disposição e do pre-
paro da comunidade para enfrentá-los.
Quando a comunidade for pequena, e houver possibilidade de reunir a
todos, mesmo que em duas ou mais reuniões, a coleta de dados pode ser
feita não através de entrevistas ou histórias de vida recolhidas individual-
mente, mas através de debates ou outras formas coletivas de discussão.
Claro que, nestes casos, uma boa coordenação das reuniões é indispensável
para que as mesmas não se prolonguem excessivamente (e se esvaziem) e
nem percam de vista seus objetivos, transformando-se apenas em interes-
santes, mas pouco proveitosas, rodas de “causos”. Não que as memórias e o
anedotário da comunidade sejam inúteis; elas podem sempre conter elemen-
tos interessantes para a pesquisa e para os próprios participantes. No entan-
to, a pesquisa não pode esgotar-se aí.
Nos casos em que a comunidade a ser estudada for muito grande pode
não ser possível envolver diretamente todas as pessoas que fazem parte dela
nas discussões, ou mesmo na coleta de dados. Neste caso, a seleção de uma
amostra deve ser discutida com cuidado, pelas implicações que tem no
processo da pesquisa participante.

A necessidade de construir amostras para a observação de uma parte


representativa do conjunto da população considerada na pesquisa-
ação é assunto controvertido. Existem várias posições: [...] a) A
primeira exclui a pesquisa por amostra. Seus partidários consideram
que, para exercer um efeito conscientizador e de mobilização em

203 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

torno de uma ação coletiva, a pesquisa deve abranger o conjunto da


população [...] b) Uma segunda posição consiste em recomendar o
uso da amostragem. De acordo com essa concepção da sondagem, a
pesquisa é efetuada dentro de um pequeno número de unidade
(pessoas ou outras) que é estatisticamente representativo do conjunto
da população [...] c) Uma terceira posição consiste na valorização de
critérios de representatividade qualitativa (Thiollent, 1985, p. 61-62).

A primeira alternativa, embora seja a ideal, pode ser inviável, quando se


tratar de uma pesquisa sobre um grupo muito grande ou geograficamente
disperso.
A segunda, que é relativamente fácil de ser executada, e está de acordo
com os padrões de aleatoriedade das pesquisas mais tradicionais, tem alguns
inconvenientes. Um inconveniente, já que por este critério são selecionadas
pessoas isoladas, é que o aprendizado e as reflexões propiciados pela reali-
zação da entrevista ficam restritos aos entrevistados e aos entrevistadores,
não se difundindo, de forma imediata, ao restante do grupo. É possível,
entretanto, tentar estabelecer formas de comunicação que visem superar
esta deficiência, mesmo que demore um pouco mais.
Um outro problema, talvez mais grave, é que, como a amostra é esco-
lhida por sorteio, podem ser incluídas nela pessoas que não estejam interes-
sadas na solução do problema, embora sejam afetadas por ele. Por outro
lado, podem ser deixadas de lado outras pessoas que, embora não estejam
fazendo parte, ainda, do grupo central da pesquisa, poderiam ser de grande
valia, quer por um engajamento a partir da entrevista, quer por seu envol-
vimento em outras atividades da comunidade.
Os critérios puramente numéricos de seleção devem ser vistos com
cuidado, quando se tratar de uma pesquisa participante, já que a exigência
da aleatoriedade se baseia no princípio de que todos os elementos do uni-
verso tem igual valor para o conhecimento da situação pesquisada. Quando
se busca uma ação transformadora, isto pode não ser verdadeiro. Pode não
ser verdadeiro até mesmo dentro de algumas pesquisas mais tradicionais.
Por isto, quando houver a necessidade de selecionar uma amostra, a al-
ternativa de utilização de critérios qualitativos parece ser mais adequada,
embora também tenha seus inconvenientes. Talvez o principal deles seja a
possibilidade de que, ao escolher deliberadamente uma amostra, o grupo de

204 
O OLHAR NO ESPELHO 

pesquisadores privilegie em demasia um tipo de elementos da comunidade e


deixe de lado, ou dê poucas oportunidades de participação a outros tipos,
ou a elementos discordantes das posições dos membros do grupo central.
Além do risco de uma tendenciosidade nos resutados da pesquisa, este tipo
de “seleção” pode diminuir a criatividade do grupo na busca de alternativas
de ação, já que produz certa uniformização de raciocínios e de discursos, ao
excluir os discordantes.
As divisões e facções internas da comunidade e até do grupo de cientis-
tas devem ser respeitadas e, inclusíve, analisadas abertamente no momento
da seleção da amostra, quer se opte por uma alternativa qualitativa ou alea-
tória. A mesma discussão deve existir se não for adotado o processo de
amostragem, já que as divisões internas fazem parte da realidade e vão estar
presentes, de uma forma ou de outra, no decorrer da pesquisa.
Já no decorrer da coleta de dados, quer esta seja realizada sob a forma
de entrevistas, de debates, ou por outras técnicas, um outro cuidado se
impõe: o de ler também nas entrelinhas dos discursos. Deve ser levado em
conta que a verbalização não é a única forma de expressão, e que a lingua-
gem popular é rica em outras formas de expressão. Além disso, toda a situ-
ação vivenciada pelas classes populares pode fazer com que falar sobre
determinados assuntos seja bastante difícil. Por isto,

muitas vezes, não é unicamente aquilo que é dito explicitamente que é


significativo. A maneira de dizer, as inflexões, as hesitações, as pausas e
os silêncios dizem muita coisa. Freqüentemente, é nestas dobras do
discurso que se esconde a ambigüidade e a contradição entre o pensar e
o agir que importa captar e desvelar (Oliveira; Oliveira, 1982, p. 30).

É preciso que o próprio grupo perceba essas suas contradições, para


que possa se dispor a superá-las.

SELEÇÃO DE ALTERNATIVAS DE AÇÃO


O simples conhecimento de uma realidade, ou de uma situação não é
suficiente para transformá-la. Mais que isto, o conhecimento não pode se-
quer ser considerado completo enquanto não for confrontado com a reali-
dade, ou enquanto não tiver sido utilizado para transformá-la. O

205 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

conhecimento social isolado da prática provavelmente acabará por se per-


der, ou por se transformar em mais um conjunto de informações somente
disponíveis aos frequentadores dos meios acadêmicos.
Por isto, a realização de uma pesquisa, mesmo que através dela se ob-
tenham novas informações ou novas visões sobre uma situação problemá-
tica qualquer, não tem sido considerada suficiente para caracterizar um
processo de pesquisa participante. É necessário que o estudo dos proble-
mas dê origem a planos de ação e de intervenção na realidade.
A elaboração e, principalmente, a execução destes planos obedecem a
uma tripla função: tentar resolver os problemas concretos enfrentados, e
que deram origem à pesquisa; servir como um instrumento de avaliação
e de crítica aos novos conhecimentos elaborados; e, ao mesmo tempo,
permitir que os envolvidos reavaliem seu poder de participação social,
aprendendo, na prática, a conhecer os mecanismos de atuação do poder
social e a desenvolver estratégias para enfrentá-lo.
Como você pode ver, da mesma forma que a aprendizagem inicial con-
duz a um plano de ação, a execução deste propicia a continuação da apren-
dizagem. Por isto

o plano de ação elaborado a partir dos problemas analisados deve


comportar: atividades educativas que permitam analisar os problemas e
as situações vividas; medidas que possam melhorar a situação a nível
local; ações educativas que tornem possível a execução de tais medidas;
ações que encaminhem soluções a curto, médio ou longo prazo, a nível
local ou mesmo numa escala mais ampla (Le Boterf, 1987, p. 68).

Essas ações podem ser executadas de várias maneiras. Processos de e-


ducação popular; divulgação da problemática e das reivindicações da comu-
nidade através da imprensa, de dramatizações ou de outras formas de
divulgação que atinjam a própria comunidade ou a sociedade de modo mais
geral; envio de solicitações às autoridades oficiais ou a órgãos alternativos;
tentativas de interferir nas decisões oficiais são apenas algumas das formas
possíveis de ação.
É claro que a escolha de uma alternativa se deve basear na análise da
problemática e dos efeitos pretendidos, além dos riscos existentes.

206 
O OLHAR NO ESPELHO 

A elaboração do plano de ação consiste em definir com precisão: a)


Quem são os atores ou as unidades de intervenção? b) Como se
relacionam os atores e as instituições: convergências, atritos, conflito
aberto? c) Quem toma as decisões? d) Quais são os objetivos (ou
metas) tangíveis da ação e os critérios de sua avaliação? e) Como dar
continuidade à ação, apesar das dificuldades. f) Como assegurar a
participação da população e incorporar suas sugestões? (Thiollent, 1985,
p. 69-70).

A avaliação dos possíveis aliados, e do seu papel e eventuais interesses


no processo é conveniente, tanto quanto a dos adversários eventuais ou
permanentes.
Lembre-se de que a existência ou o surgimento de adversários a um
processo deste tipo é mais do que uma probabilidade...

DIVULGAÇÃO E AVALIAÇÃO DO PROCESSO


Nos processos de pesquisa mais tradicionais, a divulgação dos resul-
tados, ou mesmo do andamento da pesquisa normalmente fica restrita
aos meios acadêmicos e às instituições patrocinadoras. Além disso, com
freqüência a divulgação é realizada apenas após a elaboração das conclu-
sões finais; o projeto ou a realização parcial de uma pesquisa são divul-
gados raramente; os erros e os projetos fracassados, nunca.
Ao contrário, para os projetos de pesquisa participante, a divulgação e
a avaliação são fases permanentes e indispensáveis. As pesquisas deste tipo
não poderão ser realizadas sem que pelo menos os membros do grupo
misto possuam todas as informações sobre seu planejamento e execução e,
acima de tudo, das razões de sua realização.
Desde o momento em que haja a disposição para a realização de uma
pesquisa participante junto a determinado grupo, esta disposição tem que
ser divulgada para que o grupo possa avaliá-la e decidir se engaja-se ou não
no processo, ou em que medida o faz. Depois disto, cada fase ou cada mo-
mento significativo da pesquisa devem ser tornados públicos. Com isto, a
equipe central poderá ter um acompanhamento não só do andamento de seu
trabalho, mas da receptividade que o mesmo vem tendo na comunidade.

207 
A   P E S Q U I S A   P A R A   A   T R A N S F O R M A Ç Ã O   D A   R E A L I D A D E ...

A exposição pública de um trabalho, além de poder servir como um e-


lemento a mais de motivação, é sempre uma oportunidade para o aprendi-
zado da crítica. Elaborar ou receber críticas, aprender a debatê-las, aceitá-las
ou refutá-las é um passo importante para uma efetiva participação social.
Alguns momentos típicos das pesquisas participantes são, por si mes-
mos, instrumentos de divulgação; a coleta de dados, a comunicação dos
resultados e as ações desencadeadas são exemplos disto. Nestes momentos
uma parte da comunidade, normalmente bem maior do que a equipe cen-
tral, entra em contato com a pesquisa.
Além de toda esta divulgação interna, é importante elaborar formas de
comunicação que permitam levar as experiências do grupo para outras
comunidades, mesmo àquelas que não vivenciem problemas semelhantes aos
investigados.
Os benefícios da pesquisa enquanto processo de aprendizagem, e os
seus resultados enquanto alternativa de ação, só poderão ser ampliados se o
processo como um todo for divulgado e, mais que isto, compartilhado com
outras pessoas, membros da comunidade ou não, e que não tenham partici-
pado das fases iniciais, ou mesmo das primeiras pesquisas. “A tomada de
consciência se desenvolve quando as pesssoas descobrem que outras pessoas
ou outros grupos vivem mais ou menos a mesma situação” (Thiollent, 1985,
p. 72). Desenvolve-se mais quando estas pessoas descobrem que a supera-
ção desta situação passa pela organização e a ação coletivas, mais ainda
quando se dispõem a empreender esta ação, e ainda mais através dela.
Toda ação social, por sua vez, gera novas contradições, novas dúvidas
ou situações de conflito, que podem exigir novas investigações, novas buscas
e descobertas. É provável que muito antes do fim de um processo de pes-
quisa participante já se perceba a necessidade de um outro, ou de outros,
gerados pelo avanço do primeiro.
A realidade é sempre mais complexa do que podemos perceber; por is-
to pesquisamos. Ela é sempre diferente do que gostaríamos que fosse; por
isto tentamos modificá-la.

208 
APÍTULO 7

SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE


PESQUISA: CRÍTICA À
PESQUISA CRÍTICA

[...] Não é imperativo destruir o anterior para se empenhar


numa reconstrução de acordo com novos planos científicos
revolucionários (Fals Borda, 1982, p. 46).

A ciência muda.
Acompanhando a evolução da sociedade e fazendo parte dela, a ciência
não apenas cresce, acumulando novos conhecimentos, mas se transforma,
negando, por vezes suas fases anteriores. Novas informações, formas dife-
rentes de buscar conhecimentos, novas elaborações sobre os objetos estuda-
dos e até sobre os seus objetivos fazem parte da história das ciências e se
influenciam mutuamente.
Neste processo de transformações contínuas a ciência se submete a re-
visões e reavaliações, buscando tornar coerentes entre sí seus objetivos,
objetos, métodos e teorias. Na medida em que cada um destes elementos
guarda relativa independência dos demais, aquela coerência nem sempre é
total. Assim, conhecimentos buscados ou elaborados com uma intenção
podem ser a base para a construção de teorias que sirvam a fins totalmente
SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE...

opostos ao que se pretendia inicialmente; métodos desenvolvidos para forta-


lecer determinada posição sobre a definição de um objeto podem contribuir
para enfraquecê-la, e assim por diante.
Não estou querendo cair, aqui, na posição cômoda e ideológica de dizer
que a produção científica é (ou deve ser) um processo neutro, e que apenas
a utilização dos conhecimentos sofre as interferências de interesses huma-
nos, pessoais ou coletivos. Ao contrário, o que estou querendo dizer é que
toda a ciência, em cada uma das suas fases, pode sofrer − e sofre − aquelas
interferências.
Mais ainda: além dessas intencionalidades e das ideologias, as próprias
contradições internas da atividade humana como um todo, da ciência e de
cada uma de suas fases (ou elementos) em particular, fazem com que a
prática científica tenha que ser sempre uma atividade refletida e crítica.
O fato de que um método ou uma teoria se originaram na busca de de-
terminado objetivo não garante que eles só possam ser utilizados para este
fim, nem que eles sejam os mais eficientes ou os únicos que servem para
isto.
É preciso não esquecer que métodos e teorias são apenas instrumentos,
ferramentas elaboradas pelos seres humanos e que, como qualquer ferra-
menta, podem ser utilizados de forma diversa da que se pretendia original-
mente, e contêm em si o potencial para estes usos diferenciados.
No campo das ciências sociais, este raciocínio se aplica tanto aos méto-
dos e teorias “tradicionais”, quanto às formas alternativas, que buscam, além
da produção do conhecimento, a participação e o envolvimento das popula-
ções estudadas no processo todo da pesquisa, desde o seu planejamento até
sua utilização.
A ciência de preocupações empiricistas, desenvolvida em sintonia com
uma estrutura social que privilegia uma minoria de seus membros em de-
trimento dos demais, ao mesmo tempo que contribui para a manutenção
daquela situação, traz em si elementos que podem auxiliar a superá-la. De
maneira semelhante, mas em sentido inverso, as formas de pesquisa partici-
pante, que foram desenvolvidas para tentar superar o elitismo e o engaja-
mento político conservador das ciências sociais tradicionais, e para servir
como um instrumento de auxílio às tentativas de diminuição das desigual-
dades sociais, tanto podem servir para estes fins, como podem se tornar o
oposto disto, se sua realização não for acompanhada por uma série de cui-

210 
O OLHAR NO ESPELHO 

dados e reflexões e não obedecer a exigências rigorosas de qualidade e coe-


rência.
Sem esses cuidados, reflexões e controles, a pesquisa participante

[...] tem tudo para ser apenas a próxima farsa. Em vez de superar a
decepção histórica com respeito à utilidade das ciências sociais para os
dominados, pode refinar os controles sociais vigentes e, num pacote
bonito, esconder um “presente de grego” (Demo, 1987, p. 104).

Além do risco de vir a produzir efeitos inversos aos pretendidos, em


virtude de falhas em seu planejamento, execução e avaliação, a pesquisa
participante pode vir a ser utilizada, de modo deliberado e consciente, para
manter ou aumentar o controle social e para reforçar o grau de dependên-
cia e de submissão das classes populares ao saber comprometido com a
manutenção da estrutura social.
É fundamental que o iniciante nas pesquisas tenha claro, desde o início,
que a simples adoção de um método ou de uma forma de fazer pesquisa, ou
a utilização de uma teoria que se pretende revolucionária e libertadora não
garantem, de modo algum, a qualidade dos resultados finais, e nem mesmo
servem como um indicador seguro sobre o preparo teórico ou a competên-
cia metodológica do pesquisador; tampouco devem ser vistos como um
atestado de suas intenções ou de seu compromisso com os pesquisados.
É ingenuidade, portanto, supor que a pesquisa participante

[...] deva somente produzir efeitos transformadores, porque pode


produzir efeitos reformistas, quando não produz efeitos conservadores e
até reacionários. Depende da ideologia política (Demo, 1987, p. 121).

Isto não significa, de forma alguma, que ela não sirva aos fins para os
quais foi criada. Uma série de estudos e intervenções realizados segundo os
procedimentos participativos têm alcançado êxito tanto na produção de
conhecimentos, quanto na sua difusão e aproveitamento por parte das co-
munidades envolvidas.
Entretanto, é necessário que o aprendiz de pesquisador-participante (e
os próprios pesquisadores já mais experimentados) reflitam com muito
cuidado, não só sobre a necessidade do estabelecimento de um comprome-

211 
SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE...

timento efetivo e realista entre os membros do grupo envolvido, como so-


bre aquelas possibilidades, e sobre algumas limitações e problemas que as
pesquisas deste tipo apresentam.
Uma primeira série de dificuladades que poderíamos mencionar aqui
nem diz respeito à pesquisa participante diretamente, mas à sua aprendiza-
gem: ela não se adapta à estrutura curricular que temos hoje na maioria das
universidades brasileiras, especialmente nos cursos de graduação.
Pesquisas engajadas em movimentos sociais têm seu andamento determinado
pelo ritmo de ação da população estudada e pela sucessão dos acontecimentos,
não pelo planejamento e disposição dos pesquisadores-cientistas, o que quer dizer
que não se pode prever com antecedência os prazos de cada etapa ou mesmo
para a conclusão dos trabalhos.
A estrutura burocrática das instituições de ensino superior no Brasil,
acostumadas aos projetos de pesquisa “objetivos” das ciências exatas, ou
mesmo às pesquisas sociais mais estruturadas, têm tido dificuldades em
aceitar estas indefinições das pesquisas participantes, e obrigado seus parti-
cipantes a cansativos malabarismos na hora de apresentar projetos ou rela-
tórios parciais.
Problema mais sério que este, contudo, ocorre ao nível da formação de
novos pesquisadores-participantes: o sistema de créditos escolhidos indivi-
dualmente e de disciplinas independentes entre si, ao mesmo tempo que
confere certa “liberdade” (questionável) aos alunos, dificulta ou impede o
planejamento de atividades socialmente comprometidas, como as das pes-
quisas participantes (levadas a sério), que normalmente exigem mais que
um período letivo para sua concretização. Assim, fica praticamente inviabili-
zada a existência de uma disciplina teórico-prática sobre a pesquisa partici-
pante.
Ao mesmo tempo, dificulta-se a integração de várias disciplinas em se-
quência, que seria uma forma de superar as limitações de tempo, porque
não há nenhuma garantia de que os alunos em conjunto cursem as discipli-
nas tal como programadas.
A alternativa de manter um ou mais professores acompanhando o pro-
cesso todo e ir substituindo os alunos à medida que forem se matriculando
ou concluindo uma disciplina tampouco parece desejável.
Para os alunos, vivenciar apenas uma parte do processo pode não ser
suficiente para uma aprendizagem proveitosa. Provavelmente, no momento

212 
O OLHAR NO ESPELHO 

em que eles estivessem em condições de contribuir efetivamente para o


andamento da pesquisa, já seria hora de encerrar sua participação.
Para os demais envolvidos, não deve ser nada agradável ter seus inte-
resses e suas lutas coletivas submetidos aos calendários das instituições de
ensino. A dinâmica interna do grupo seria quebrada e teria que ser recons-
truída a cada vez que chegasse um grupo novo de alunos, que provavelmen-
te deixaria de participar do processo assim que chegassem as férias. Não
seria estranho nem injustificável se a comunidade se sentisse usada pelos
acadêmicos e se afastasse do processo.
Como você pode ver, uma alternativa deste tipo não é nem um pouco coe-
rente com as propostas e as preocupações da pesquisa participante.
As dificuldades no ensino das pesquisas participantes não ocorrem ao
acaso. Os cursos universitários que temos hoje são, quase sem exceções,
planejados dentro dos conceitos de uma pedagogia tradicional, e voltados
para o ensino de uma ciência tradicional. Isto quer dizer que visam muito
mais à transmissão dos conhecimentos já existentes e à transformação dos
alunos em novos “donos do saber”, do que a busca de novos conhecimentos
e a formação de cientistas-cidadãos, preocupados com a divulgação e a utili-
zação social da ciência. Daí as disciplinas independentes, a “livre” escolha
dos créditos, a ênfase nos aspectos técnicos e na aplicação de instrumentos
prontos, em detrimento da elaboração de novos conhecimentos e do questi-
onamento aos anteriores.
Enquanto as grades curriculares permanecem estruturadas de maneira
tradicional, a alternativa para a formação de novos cientistas-pesquisadores-
participantes tem sido os projetos elaborados fora das disciplinas e desvin-
culados delas. Além disso, alguns cursos de pós-graduação têm procurado
facilitar a realização de pesquisas participantes, adotando estruturas mais
flexíveis. De forma geral, nenhuma destas alternativas têm sido muito bem
vistas pelos órgãos centrais de controle da educação e de financiamento de
pesquisas.
Assim, pode-se dizer que a formação de novos pesquisadores-
participantes-profissionais tem sido feita apesar dos sistemas educacionais
oficiais, o que não é estranho.
Paralelamente a estas dificuldades na formação de novos pesquisadores,
outras limitações das pesquisas participantes merecem ser lembradas como
base para reflexões mais profundas.

213 
SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE...

As pesquisas participantes não devem ser vistas como a única maneira


válida para a realização de uma ciência “engajada”, ou seja, uma ciência que
pretenda colocar-se a favor das camadas menos favorecidas da sociedade e
contra as situações de dominação e exploração.
Acreditar que apenas a ciência produzida em condições participativas
pode ser útil para a transformação das situações sociais implica, antes de
mais nada, supor que qualquer conhecimento muito aprofundado, cujo
desenvolvimento requeira alta especialização ou condições especiais de tra-
balho (laboratórios ou equipamentos sofisticados, grande elaboração teórica
etc.), não teria qualquer utilidade para as comunidades menos favorecidas,
já que não seria acessível, de imediato, a elas.
Assim, seriam politicamente inúteis, ou no mínimo reacionárias, tanto
as ciências ligadas a fenômenos naturais mais universais − como a física, a
química, a astronomia e outras −, quanto as teorias mais abrangentes das
próprias ciências sociais.
Ora, se por um lado a ciência não deve perder-se apenas em divagações
sobre o universal e o longo prazo, deixando totalmente de lado os proble-
mas do cotidiano (tornando-se, portanto, uma ciência “descomprometida”),
por outro lado também não há nenhum sentido em que ela se restrinja aos
acontecimentos locais e imediatos, e abandone as tentativas de compreensão
mais ampla e profunda da realidade (o que implicaria em ser uma ciência
incompetente ou extremamente restrita). Assim, a popularização dos conhe-
cimentos e métodos das ciências não implica que o cientista deixe de ter
suas pesquisas em separado, ou que não se dedique a estudos que tenham
um nível de aprofundamento maior do que o exigido pelo trabalho na co-
munidade. Pelo contrário: ele deve poder oferecer à comunidade mais do
que os conhecimentos produzidos em conjunto com ela, até para poder
justificar sua participação no processo.
Há uma distância muito grande entre a popularização dos conhecimen-
tos e procedimentos científicos, visando tornar os cidadãos capacitados a
produzirem melhores conhecimentos e a terem uma postura crítica acerca
da ciência e da sociedade, e a suposição de que este trabalho vai poder
transformar todos os membros de uma sociedade, indistintamente, em pes-
quisadores integralmente voltados à produção científica.

214 
O OLHAR NO ESPELHO 

As pesquisas participantes não têm, em momento algum, a intenção de


impor o modo científico de pensar como sendo o único válido. Por isso, não
pretendem nem eliminar a figura do cientista, fazendo com que ele se anule
dentro dos movimentos sociais, nem transformar o mundo numa imensa
sociedade científica. (Quem já assistiu a um congresso de cientistas deve ter
calafrios só de pensar em ver o mundo transformado num imenso centro de
pesquisas).
Além disso, os problemas vividos e percebidos pelas comunidades mar-
ginalizadas não são o único assunto que pode ser estudado por uma ciência
comprometida com elas.

Stavenhagen propõe dois caminhos para o cientista social cuja opção é a


de colocar seus instrumentos a serviço da construção de uma sociedade
mais justa e democrática: seja trabalhar em estreita ligação com um
grupo oprimido, com vistas a construir, com o grupo e a partir de
dentro da situação vivida pelo grupo, um conhecimento da realidade
que conduza à identificação dos meios para superar a situação de
opressão; seja privilegiar, como objeto de estudo, o outro pólo da
relação de dominação, com vistas a entender os grupos dominantes e os
mecanismos pelos quais eles asseguram a manutenção de seus
monopólios sobre o saber e o poder (Oliveira; Oliveira, 1982, p. 20-21).

Outras formas de produção científica não participativas podem ser i-


gualmente úteis aos interesses das populações menos favorecidas: o desen-
volvimento de alternativas tecnológicas mais adequadas às condições e
necessidades locais; o levantamento e a análise de outras comunidades que
tenham enfrentado e eventualmente superado situações semelhantes; o
estudo de formas de organização e mobilização, ou mesmo tentativas de
adaptar os conhecimentos científicos mais avançados à realidade local, são
apenas alguns exemplos disto.
Embora estas alternativas tenham a desvantagem de manter a comuni-
dade afastada do processo de produção do conhecimento, isto não significa
que elas sejam inúteis ou desnecessárias, ou que a realização de pesquisas
participantes seja a única forma válida de ação dos cientistas que pretendam
colocar-se a serviço das comunidades que estudam.

215 
SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE...

As pesquisas participantes, em qualquer de suas versões, também não po-


dem ser vistas como tendo possibilidade ilimitada de utilização, já que há algu-
mas situações para as quais elas não se têm mostrado adequadas:

tal como a entendemos, a pesquisa-ação não trata de psicologia


individual e, também, não é adequada ao enfoque macrossocial. Nas
condições atuais, como proposta bastante limitada, não se conhecem
exemplos de pesquisa-ação ao nível da sociedade como um todo. É
apenas um instrumento de trabalho e de investigação com grupos,
instituições, coletividades de pequeno e médio porte (Thiollent, 1985, p.
8-9).

No caso das terapias ou de outros trabalhos realizados ao nível do indi-


víduo ou mesmo de pequenos grupos, não há nada que impeça a adoção ou
a adaptação dos princípios e objetivos das pesquisas participantes, embora
isto ainda não venha ocorrendo.
Algumas correntes dentro da psicologia e da psiquiatria já procuram,
inclusíve, valorizar a participação dos envolvidos no processo terapêutico.
Poucas destas correntes, porém, preocupam-se em apresentar e discutir
seus princípios teóricos e metodológicos, de modo a permitir que seus clien-
tes possam ter uma visão crítica bem fundamentada sobre o processo como
um todo. Assim, a participação possível é apenas parcial.
Não há nenhuma razão, entretanto, para que esta limitação se mante-
nha. Compartilhar conhecimentos diferentes e desenvolver, em conjunto,
novos conhecimentos e estratégias de ação que busquem a superação dos
problemas individuais, ou compartilhados pelos membros do grupo terapêu-
tico (e inclusíve pelo terapeuta), parece ser um procedimento viável e pro-
dutivo. É claro que exigiria uma mudança de postura, tanto da parte dos
profissionais (psicólogos, psiquiatras, médicos, assistentes sociais, agentes de
saúde, orientadores escolares etc.) quanto dos usuários de seus serviços, ou,
dizendo de outra maneira, de todos aqueles que se acostumaram às relações
baseadas na autoridade dos profissionais e na crença de que os conhecimen-
tos destes são superiores e independentes aos dos não-cientistas.
Já no nível mais amplo, o da sociedade como um todo, as propostas da
pesquisa participante parecem mesmo ser inadequadas, não apenas por
questões operacionais, mas também pela ausência de uma semelhança mí-
nima de interesses.

216 
O OLHAR NO ESPELHO 

Os trabalhos participativos se estruturam sempre em torno da preocu-


pação com um problema ou com um objetivo comum. Ora, a sociedade em
que vivemos se baseia na desigualdade permanente entre seus membros;
assim, discursos sobre os problemas comuns e a busca de soluções consen-
suais não passam de tentativas de ocultar aquela desigualdade. Os proble-
mas e interesses da parte dominante não são e nem podem ser os mesmos
das partes dominadas e não há, portanto, como se pensar na realização de
um trabalho conjunto, ao menos enquanto persistir a situação de desigual-
dade.
Isto não quer dizer que as pesquisas participantes não possam ser reali-
zadas em situações onde haja conflito de interesses, mas sim que sua atua-
ção, ou de qualquer outra forma de intervenção social, é limitada quando os
conflitos se dão entre interesses opostos, excludentes e inconciliáveis.
Frente a uma situação destas, é mesmo impossível servir igualmente aos
dois lados.
Um outro fator que pode trazer prejuízos à realização de pesquisas partici-
pantes é o seu caráter mais assistemático e argumentativo, que, se favorece a
participação mais ampla, também pode comprometer a qualidade de suas con-
tribuições, quer ao nível da produção de novos conhecimentos, quer ao nível do
auxílio à mobilização e organização coletivas.
Vejamos como isto pode acontecer.
Os momentos de avaliação devem ser uma constante nas pesquisas par-
ticipantes. No entanto, nem sempre os problemas abordados envolvem ape-
nas dados objetivos, ou são compostos por elementos simples, que possam
ser facilmente medidos e comparados; assim, o valor dos raciocínios utiliza-
dos e das propostas apresentadas não pode, normalmente, ser demonstrado
ou “provado”.
As tomadas de decisão e as avaliações são realizadas mais através de
discussões e debates entre os membros do grupo do que com base em
critérios “objetivos”, embora estes possam, eventualmente, ser usados.
A importância apenas relativa que é dada aos critérios de objetividade e
de verificabilidade (tal como entendidos pelas formas mais tradicionais das
ciências sociais) é coerente com o tipo de problema que se pretende abor-
dar nas pesquisas participantes. No entanto, a própria natureza destes pro-

217 
SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE...

blemas e as características das avaliações argumentativas podem criar entra-


ves ao bom andamento do processo.
No decorrer das discussões, por exemplo, alguma alternativa pode ser ado-
tada ou uma avaliação ser aceita não pelo seu grau de coerência ou eficácia, mas
pela capacidade de argumentação ou pelo prestígio de quem as apresentou ou
defendeu. Outros fenômenos típicos dos processos grupais podem igualmente
interferir e nem sempre é fácil detectar sua presença ou avaliar seu peso no
posicionamento dos participantes, cientistas ou não.
Além disso, as pesquisas participantes, ao contrário das tradicionais, não
possuem um objetivo único, ou mesmo um objetivo principal e alguns secundá-
rios. A produção de novos conhecimentos, válidos e úteis tanto para a ciência
quanto para as comunidades envolvidas; o processo pedagógico da apropriação
destes conhecimentos e dos meios utilizados para desenvolvê-los, por parte da
população estudada; e a organização desta em busca de seus interesses comuns
são objetivos permanentes e igualmente importantes. Entretanto, dificilmente
eles são alcançados ao mesmo tempo e com intensidades semelhantes. Por sua
natureza, nem sempre é possível definir com precisão o quanto cada objetivo foi
atingido, quanto se deveria atingir para que a pesquisa fosse considerada satisfa-
tória ou quanto poderia ter sido atingido, dadas as condições concretas frente às
quais o processo se realizou. Fica difícil, portanto, avaliar o andamento do pro-
cesso como um todo, e mais ainda decidir quais partes dele estão sendo realiza-
das satisfatoriamente e quais devem ser refeitas ou reformuladas.
Novamente, características pessoais ou mesmo alguns interesses especí-
ficos de uma parte do grupo podem contribuir para a realização de análises
equivocadas ou para a adoção de alternativas pouco adequadas ao bom
desenvolvimento da pesquisa. Por exemplo, é possível que haja, por parte
dos cientistas, certa tendência a privilegiar a produção ou a difusão de co-
nhecimentos, ou a dedicar a elas um tempo e um esforço maior do que os
demais participantes consideram necessário. Da parte dos grupos populares,
e mesmo de alguns cientistas mais voluntariosos, pode haver, por outro
lado, uma disposição para a seleção e a execução de alternativas de ação,
antes mesmo da realização de análises que permitam e justifiquem a opção
por uma ou outra dessas alternativas.
Conseguir perceber estas tendências pessoais e divergências internas
como partes integrantes da vida da comunidade, aprender a conviver com
elas, a valorizá-las e a distinguir seu papel nas tentativas de organização do

218 
O OLHAR NO ESPELHO 

grupo, fazem parte do aprendizado político pretendido pelas pesquisas


participantes. Este aprendizado, entretanto, pode ser um processo bastante
demorado e, antes que o grupo consiga definir claramente seus objetivos e
metas e se torne capaz de selecionar, com base neles, quais as avaliações e
ações mais convenientes, as pesquisas participantes podem se tornar um
campo fértil para o surgimento de lideranças carismáticas ou oportunistas,
para a ação de grupos golpistas ou mesmo bem intencionados, mas que
confundem seus objetivos e interesses particulares com os da comunidade,
ou para a atuação de cientistas despreparados, incompetentes ou que asso-
ciam a atuação participativa com o descompromisso e a ausência de avalia-
ções.
A utilização de movimentos populares como forma de atingir objetivos
pessoais (nem sempre claros ou louváveis), ou visando aos interesses alheios
aos da comunidade, não é uma novidade, nem uma possibilidade exclusíva
das pesquisas participantes. No entanto, pode existir dentro delas, e isto já é
motivo suficiente para que sua realização seja cercada de cuidados.
Outras críticas podem ser feitas às pesquisas participantes. Outros pro-
blemas e limitações à sua utilização podem ser (e alguns até já foram) des-
cobertos e citados. Isto não diminui seu valor como tentativas de
aproximação entre a ciência e os interesses populares, nem significa que elas
não sejam uma alternativa válida à forma tradicional de produção de conhe-
cimentos científicos.
Ao contrário, a crítica deve ser vista como um instrumento de avaliação
e aperfeiçoamento tanto das teorias e métodos científicos, quanto de qual-
quer atividade humana.
A crença incondicional na eficácia de um método, ou no alcance ilimi-
tado e no poder de uma teoria, por mais valiosos que eles se tenham mos-
trado, traz sempre o risco de uma inversão de valores e de um processo de
reificação.
A inversão de valores ocorreria se o cientista, ao se apegar em demasia
a um método ou teoria, deixasse de procurar construir instrumentos que
lhe permitissem compreender melhor a realidade e passasse, ainda que
inadvertidamente, a procurar adequar a realidade aos seus instrumentos e
informações, ignorando ou desprezando as contradições surgidas de seu
trabalho.

219 
SOBRE AS FORMAS ALTERNATIVAS DE...

Já a reificação dos métodos ou teorias consistiria em aceitá-los e valori-


zá-los a ponto de perder de vista que eles são frutos da elaboração do ho-
mem e que estão sujeitos aos interesses, vontades, enganos e limitações de
seu criador; que não estão acima dele, não se podem tornar independentes e
nem ser adequadamente entendidos sem ele.
Os princípios da dúvida sistemática e da reavaliação constante, embora
também não possam, de forma alguma, ser considerados infalíveis, estão
entre as principais contribuições que a ciência pode oferecer à sociedade
que a produziu. É necessário, porém, que aquela contribuição seja utilizada
sistematicamente dentro da própria ciência, para que ela não se transforme
apenas em mais um instrumento de poder.

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