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História do jornalismo
econômico no Brasil:
do café ao tempo real1
Paula Puliti
Doutora em Ciências da Comunicação pela USP
Docente do Centro de Pesquisa e
Pós-graduação da Uni-FMU
E-mail: pulitipaula@hotmail.com
no final dos anos 1930, do advogado Mário foram o grande divisor de águas dessa cro-
Mazzei Guimarães, que escrevia sobre temas nologia (Resende, 2003:88).4 A entrada de
de agropecuária. Por volta de 1950, a Folha capital estrangeiro produtivo promovida
também tinha repórteres voltados exclusi- pela política de Juscelino Kubitschek tam-
vamente para temas econômicos, que escre- bém promoveu a expansão do mercado pu-
viam, sobretudo, matérias analíticas. blicitário no país. Como a receita da venda
Um episódio à parte é o surgimento da em banca nunca fora suficiente para bancar
Gazeta Mercantil (criada em 1920, na forma as equipes e os custos de produção, os jor-
de boletim diário econômico e financeiro) nais passaram a necessitar cada vez mais de
como um jornal de negócios, que vai desper- anunciantes. E a indústria de bens de consu-
tar os grandes jornais para o valor contido na mo que aqui se instalara respondeu positiva-
informação econômica. Em 1934, o chama- mente às necessidades de receita dos jornais.
do Boletim Diário de Informações da Gazeta Essa virada mercadológica foi uma das prin-
Mercantil e Indústria, na época propriedade cipais mudanças da imprensa no período.
do italiano Pietro Pardini, foi adquirido pela O grande impulso ao jornalismo econô-
família Levy, que já tinha experiência em pu- mico, no entanto, foi o próprio regime mili-
blicações na área, com o Boletim Comercial tar, iniciado em 1964 por meio de um golpe
Levy, criado em 1929, e a Revista Financeira de estado. No final dos anos 1960, o jornalis-
Levy, criada em 1931 (Lachini, 2000:66). Pas- mo econômico começa a se consolidar como
sou a se chamar Gazeta Mercantil, Comercial, uma área diferenciada da atividade profis-
Industrial e Financeira e foi a grande escola sional, nem tanto por seus próprios méritos.
de jornalismo econômico do Brasil. O que ocorreu, de fato, é que os militares
Foi a partir da segunda metade dos anos tiraram os temas políticos do noticiário por
1950 que se começou a praticar no Brasil um meio de uma impiedosa censura e de per-
jornalismo mais voltado a temas econômicos seguição violenta ao livre pensamento. Isso
para além da agricultura, dentro de um pro- aconteceu ao mesmo tempo em que surgia
cesso intimamente ligado à reorganização do com força um mercado de capitais especu-
capitalismo em âmbito mundial, com a con- lativo, na própria década de 1970, com o fim
solidação de multinacionais estrangeiras e do sistema de Bretton Woods.
alguns grandes bancos internacionais como Fora da política, a grande imprensa (for-
os grandes detentores do poder econômico. mada basicamente no eixo Rio-São Paulo)
Significa dizer que os anos JK (1956-1961)3 viria a prestigiar, primeiramente, o caráter
auto-professado como modernizador da du-
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Durante seu mandato, o presidente Juscelino Kubitschek pôs pla Roberto Campos e Octávio Gouveia de
em prática seu Plano de Metas, de crescimento de “cinquenta Bulhões (1964-1967), no Planejamento e na
anos em cinco”. O plano era fortemente influenciado pela po-
lítica de substituição de importações da Cepal (Comissão das Fazenda, respectivamente. Dentro da mítica
Nações Unidas para a América Latina e o Caribe), que visava de modernidade, a dupla introduziu na im-
a criar no país um parque industrial forte e variado, capaz de
suprir as necessidades do mercado interno, permitindo um
prensa temas inspirados nas teses neolibe-
excedente exportador. Tentou-se aliar desenvolvimento com rais norte-americanas, como a necessidade
abertura do país às multinacionais, detentoras de tecnologia de reestruturação das relações trabalhistas,
e geradoras de emprego, que ajudariam também a criar um
mercado consumidor local. JK criou o Grupo Executivo da In- que acabou levando a demissões em massa e
dústria Automobilística, setor que alavancaria a industrializa- à recessão 1964-1966, sob o pretexto de do-
ção do Brasil sustentado pelo investimento estrangeiro. Nesse
período, também se instalou no país a indústria estrangeira de
mar a escalada da inflação. “Mas o jornalis-
bens de consumo, e, junto com as grandes multinacionais, vie-
ram também as assessorias de imprensa. Muito utilizadas pelas 4
Ainda nesse período, surge na cena jornalística Aloysio Biondi,
montadoras nos anos 1950 como ferramenta de divulgação de um dos expoentes da equipe de profissionais especializados em
produtos e de criação de imagem, mais tarde elas seriam apro- economia que a Folha conseguiu reunir. Biondi viria a ser uma
priadas pelo regime autoritário, incentivando a cobertura do das maiores, se não a principal, referências do jornalismo econô-
milagre econômico (Resende, 2003:88). mico brasileiro. Atuou por 44 anos até sua morte, no ano 2000.
bém houve crises de abastecimento que pre- manho o grau de confiança que seus discur-
ocupavam a sociedade. Os jornais refletiram sos técnicos passam aos jornalistas e leitores.
isso e começaram a cobrir agricultura mais Com a renegociação da dívida exter-
com esse enfoque. na no âmbito do Plano Brady5 de 1989, os
investimentos estrangeiros começaram a
retornar ao país, basicamente por meio da
Entre a equipe do Real, aquisição de títulos do governo. A entrada
era pesadelo a de recursos foi reforçada com as primeiras
possibilidade de medidas de liberalização do fluxo de inves-
timentos financeiros de 1990, no governo
o plano ser prejudicado
Collor. Nesse meio tempo, as instituições
por falhas na financeiras começaram a contratar assesso-
comunicação inicial rias de imprensa e, em paralelo, começou a
ao público consolidação da cultura de departamentos
econômicos, que produziam estudos e pro-
jeções para clientes.
De início, fontes do mercado financei-
Com a criação do Jornal da Tarde, no iní- ro entraram no noticiário prioritariamen-
cio dos anos 1970, a notícia economia ganha- te para falar de instrumentos de aplicações
ria um perfil mais de atender ao consumidor, financeiras contra a corrosão inflacionária.
inclusive nas aplicações financeiras, com ses- Com o Plano Real lançado em 1994, du-
sões do tipo “entenda”, “dicas” ou “ABC”. O rante o governo Itamar Franco e sob o co-
jornalista Joelmir Beting lançou a própria mando de Fernando Henrique Cardoso na
coluna diária, traduzindo o “economês” téc- Fazenda, aquele tipo de jornalismo de ser-
nico. Foram criadas, com grande ênfase, se- viço financeiro entrou em declínio com a
ções do tipo “Seu dinheiro”, voltadas para a redução da inflação. Uma vez controlados
classe média que sonhava com a casa própria os preços, o noticiário passou a enfatizar
e começava a fazer aplicações financeiras. aspectos mais ideológicos do neoliberalis-
Diante das mudanças estruturais em cur- mo, como mudanças nas políticas monetá-
so, as direções dos jornais começaram a achar ria e fiscal. Naquele momento, o apoio da
os economistas acadêmicos exageradamente imprensa seria fundamental para legitimar
teóricos. Os jornalistas queriam informações questões ideológicas, como a redução do
de pessoas mais envolvidas com o cotidiano papel do Estado na economia, com privati-
do nascente mercado financeiro. Nesse pe- zações, abertura comercial, financeira, juros
ríodo, uma série de instituições financeiras altos e câmbio flutuante.
não-bancárias ganharia corpo, como as cor- A tecnologia avançava mundialmente,
retoras e as distribuidoras de títulos e valores permitindo a integração global das bolsas de
mobiliários, as DTVM. Além disso, com as valores, enquanto as aplicações financeiras se
confusões criadas por planos econômicos sofisticariam com os derivativos. A obtenção
complicados, com tabelas, tablitas, conver- de ganhos no mercado financeiro passou a
sores, redutores e impostos extraordinários,
os jornais precisavam de fontes para explicar
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Em março de 1989, após as moratórias, foi anunciado pelo se-
cretário de Tesouro dos EUA, Nicholas F. Brady, um plano para
tudo isso. Foi assim, para dar conta de novas renegociar a dívida externa de países em desenvolvimento, me-
exigências do jornalismo econômico, que os diante a troca por papeis novos. Esses novos títulos contem-
plavam o abatimento do encargo da dívida, através da redução
economistas de bancos passaram a aparecer do seu principal ou pelo alívio nos juros. Além de emitir os
no noticiário, ocupando posição de destaque bônus, os países deveriam promover reformas liberais em seus
mercados. Os bônus do Plano Brady ficaram conhecidos como
que ainda hoje não foi possível desafiá-la, ta- bradies (Batista Junior; Rangel, 1994).
ser muito maior do que com a atividade pro- A presidência contrataria a jornalista Ma-
dutiva, e muitas grandes empresas deixaram ria Clara R. M. do Prado para comandar a
de investir em suas atividades para aplicar organização da divulgação do Real pela im-
no mercado financeiro. O noticiário concen- prensa. Ela conta (2005) que para que pudes-
trou-se em comportamento de bolsa, dólar e se fazer um bom trabalho de comunicação
juros, enquanto as notícias de negócios pas- precisaria ter acesso a todas as informações,
saram de estratégias empresariais para a di- além de ser aceita como participante em to-
vulgação dos lucros das empresas de capital das as reuniões da equipe econômica. As exi-
aberto negociadas em bolsa, de forma que os gências foram aceitas, e as reuniões da equi-
novos acionistas dessas empresas pudessem pe econômica passaram a ser acompanhadas
acompanhar seus investimentos. pela jornalista. Naquele momento da polí-
tica brasileira, depois do fiasco do governo
O plano real e a imprensa Collor, o que estava em jogo era algo mui-
to maior do que a estabilização econômica.
Desde o regime militar, o Brasil vinha Não podia haver risco de desconfiança nem
passando por mudanças profundas de polí- tropeços, já que o Real também garantiria a
tica econômica, com espasmos de liberaliza- consolidação no poder de um modelo eco-
ção que só viriam a se consolidar a partir de nômico sintonizado com a globalização e a
1994. Naquele ano, entrou em vigor o Plano modernidade, condições que o PSDB, parti-
de Estabilização Econômica do governo Ita- do do então ministro da Fazenda, considera-
mar Franco – o Plano FHC ou Real – pelas va fundamentais para tirar o país do atraso e
mãos do então ministro da Fazenda, Fernan- se beneficiar da avalanche de recursos finan-
do Henrique Cardoso, que depois sucedeu ceiros que buscava lucro (Prado, 2005).
Franco na Presidência por dois mandatos Com o lançamento, os economistas do
consecutivos (1995 a 2002). Plano Real passaram a realizar quinzenal-
No noticiário, o que se viu foi o avanço mente mesas-redondas de entrevistas com
das fontes reprodutoras das políticas econô- seletos grupos de jornalistas na sede do
micas do “Consenso de Washington”, tanto Banco Central no Rio, em Brasília e em São
do lado do poder Executivo quando do setor Paulo. O objetivo era facilitar o entendimen-
privado, com analistas de bancos, adminis- to de tudo o que se relacionava ao plano de
tradores de fundos de investimento, consul- estabilização. Procuravam tirar dúvidas e dar
tores e operadores do mercado financeiro, explicações sobre pontos que os jornalistas
mas sobretudo membros do próprio gover- considerassem importantes naqueles pri-
no. Fernando Henrique achava que o suces- meiros meses de vigência da unidade mone-
so de seu plano dependeria em grande parte tária e posteriormente do Real.
de um substancial esforço de comunicação. Na visão que tinha de si próprio, repro-
Entre os integrantes da equipe que traba- duzida amplamente pelos jornalistas, Fer-
lhava na preparação do Real, era pesadelo nando Henrique se colocaria como o can-
recorrente a possibilidade de o plano vir a didato presidencial que vinha em defesa da
ser prejudicado por falhas na comunicação entrada do Brasil no primeiro mundo, por
inicial das medidas ao público, como havia meio da liberalização econômica, mas com
acontecido com o Plano Collor (março de profundas preocupações sociais. Sua frase
1990), quando a equipe comandada por Zé- “a estabilidade é a mais eficaz política de
lia Cardoso de Mello tropeçava nas respostas distribuição de renda que o governo pode
dadas aos questionamentos dos jornalistas, fazer” serviria para legitimar o plano que
aumentando as desconfianças sobre o duvi- adotava as premissas financistas do “Con-
doso e polêmico plano. senso de Washington”.
Referências
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