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novAS pRátiCAS de LinChAmento

viRtuAL: FAChAdAS eRRAdAS e


CAnCeLAmento de peSSoAS nA
CuLtuRA digitAL
neW viRtuAL LYnChing pRACtiCeS: WRong FACAdeS And CAnCeLLAtion oF
peopLe in digitAL CuLtuRe

nuEVAs PRácTIcAs DE LIncHAmIEnTO VIRTuAL: FAcHADAs EQuIVOcADAs


y cAncELAcIón DE PERsOnAs En LA cuLTuRA DIgITAL

Fellipe sá brasileiro
docente do programa de pós-graduação em Comunicação da universidade Federal da paraíba.
doutor em Ciência da informação pela universidade Federal da paraíba.
80 e-mail: fellipesa@hotmail.com

Jade vilar de Azevedo


mestranda no programa de pós-graduação em Comunicação da universidade Federal da paraíba.

email: jade.vilar@hotmail.com
Resumo

Este artigo objetiva compreender as novas práticas de linchamento virtual à luz das concep-
ções goffmanianas sobre os rituais de interação. As observações permitem situar o linchamen-
to virtual como uma prática, dentro de uma constelação de práticas de cancelamento digital,
que visa punir pessoas ou celebridades com fachadas erradas, através da retirada da atenção/
validação social no ambiente digital. Conclui-se que as fachadas erradas, materializadas no
mundo virtual, evocam punições virtuais com modus operandi comuns e poderes de desesta-
bilização da existência do ser-no-mundo.

Palavras-chave: Cancelamento Digital; Linchamento Virtual; Fa-


chadas; Redes Sociais

Abstract

This article aims to understand the new practices of virtual lynching in the light of Goffman's
conceptions of interaction rituals. Observations allow us to situate virtual lynching as a prac-
tice, within a constellation of digital cancellation practices, which aims to punish people or
celebrities with wrong facades, by withdrawing attention/social validation in the digital en-
vironment. It is concluded that the wrong facades, materialized in the virtual world, evoke 81
virtual punishments with common modus operandi and powers of destabilizing the existence
of being-in-the-world.

Keywords: Digital Cancellation; Virtual Lynching; Facades.; Social


Networks

Resumen

Este artículo tiene como objetivo comprender las nuevas prácticas de linchamiento virtual a
la luz de las concepciones de los rituales de interacción de Goffman. Las observaciones nos
permiten situar el linchamiento virtual como una práctica, dentro de una constelación de
prácticas de cancelación digital, cuyo objetivo es castigar a las personas o celebridades con
fachadas equivocadas, al retirar la atención/validación social en el entorno digital. Se concluye
que las fachadas equivocadas, materializadas en el mundo virtual, evocan castigos virtuales
con modus operandi común y poderes para desestabilizar la existencia de ser-en-el-mundo.

Palabras clave: Cancelación Digital; Linchamiento Virtual; Facha-


das; Redes Sociales.
Introdução mento da prática. Tati Westbrook e James Char-

Q uando Goffman (2011) teorizou sobre


fachadas erradas, controle e punição
das mesmas, ele não vivenciava um mundo re-
les, celebridades americanas, brigaram entre si
tendo a exposição do caso divulgada online. O
fato popularizou o modus operandi em que a prá-
configurado socialmente, onde cada vez mais as tica do linchamento virtual e o cancelamento do
interações face a face passam a ser mediadas por outro se desenrolam. No Brasil, Donatela Meire-
telas, redes e dispositivos comunicacionais. As lles, à época diretora da Vogue Brasil, e o cantor
interações interpessoais estão simultaneamente Mc Gui foram celebridades que passaram pelo
inscritas nas interfaces digitais e no plano mate- processo de cancelamento. Em comum, todos
rial ou biossocial – uma simbiose entre realida- buscaram a remissão dos seus erros através de
de virtual e material (SODRÉ, 2013), em que o um pedido de desculpas postado em rede social
ser que existe virtualmente se estende ao ser que própria. Enfrentaram “tribunais digitais”, cujos
seria real (BAUDRILLARD, 2001). Para Hara- juízes nem sempre estão inclinados à absolvição.
way (2009), todos tornam-se ciborgues, “[...] um Tiveram seus julgamentos incentivados por per-
organismo cibernético, um híbrido de máquina fis digitais que divulgam a vida dos famosos e, as-
e organismo, uma criatura de realidade social e sim, veem seu tráfego aumentar quando polêmi-
também uma criatura de ficção” (HARAWAY, cas envolvendo personalidades (des)alimentam o
2009, p.36). De acordo com a autora, os indiví- debate público.
duos são uma imagem condensada que é consti- Considerando esse modus operandi atrelado
tuída tanto por imaginação quanto por realidade à midiatização (SODRÉ, 2013), aproximando-o
material (Ibid.). à perspectiva goffmaniana, uma questão incita
No contexto de superexposição em redes so- a reflexão deste artigo: o linchamento virtual se
ciais (RECUERO, 2013), as fachadas são vigiadas configura como uma prática de punição frente à
full time e em larga escala. A qualquer detecção assunção de fachadas erradas na cultura digital?
82 de erro, indivíduos unem-se para rechaçar a fi- Essa questão é explorada com base na análise de
gura do errante, julgando-o culpado através de dois casos de repercussão nas redes sociais digi-
um código de justiça não institucional. Quanto tais no Brasil – Mc Gui e Donatela Meirelles.
mais famoso o errante, mais interessante para
as mídias, que monetizam com a vida das cele- 1. Fachadas erradas
bridades, explorarem o caso. Nesse contexto, as Um palco, onde representa-se o eu através das
práticas de linchamento virtual podem compor interações sociais, ora sob os holofotes da ação e
a prática de cancelar o outro. Em uma sociedade da plateia, ora nos bastidores. É sob essa metáfora
voltada ao culto à personalidade e espetaculari- que Goffman (2002) concebe os rituais de intera-
zação do eu (SIBILIA, 2008), aficionada por um ção. Segundo o autor, cada ser adota uma fachada
sistema de recompensa social advinda da apro- própria, baseada nos princípios que regem a so-
vação alheia nas redes sociais (CAMPOS, 2018), ciedade na qual está inserido, a qual irá conduzir
essa prática retira do(s) outro(s) um elemento em o seu comportamento e guiar o dos demais sobre
franca valorização: a atenção social – positiva. si. “O termo fachada pode ser definido como o
Apesar de os termos da cultura do cancelamen- valor social positivo que uma pessoa efetivamen-
to começarem a ser forjados em 2017, a partir da te reivindica para si mesma através da linha que
campanha online contra assédio intitulada #me- os outros pressupõem que ela assumiu durante
too, 2019 foi um ano propulsor para o delinea- um contato particular” (GOFFMAN, 2011, p.13).
A linha seria o padrão de atos verbais ou não, o esperado do devir, mudando radicalmente a li-
através do qual o sujeito se expressa nas situações nha seguida até então, o resultado é a confusão.
determinadas (Ibid.). As pessoas assumem uma Afinal, os indivíduos estavam preparados para
linha de ação, através da qual constroem e man- ações que deixaram de ser apropriadas (Ibid.).
têm suas fachadas para fins diversos, dentre eles, Nessas situações, acionam-se mecanismos a fim
evitar o constrangimento (Ibid.). de que a ordem já conhecida retorne, e o fluxo da
Ao receber uma fachada para manter, o sujeito interação volte a fluir, dentro dos padrões acor-
assume o compromisso com o social de resguar- dados.
dá-la. É preciso controlar os elementos para que Goffman (2011) chama isso de ciclo corretivo
toda a performance da interação seja correspon- padrão – um processo normativo do retorno à
dente à fachada estabelecida e esperada, dentro ordem após a perda da fachada. Esse ciclo se-
do determinado contexto (GOFFMAN, 2011). ria composto de quatro etapas: desafio, oferta,
Segundo Goffman (2002), as fachadas tendem a aceitação e agradecimento. O desafio é através
se tornar institucionalizadas pelas expectativas do qual ocorre a perda da fachada, seguido da
criadas pelos estereótipos sociais das regras de oferta dos demais ao errante se redimir, a qual
conduta. Essas regras de conduta perpassam o seria aceita e agradecida. Após esse processo te-
indivíduo diretamente, pontuando a moral que o ríamos a normalidade restabelecida. Porém, o
mesmo deve possuir e, indiretamente, mapeando autor estabelece que “as fases do processo corre-
a moral que os demais devem devotar ao mesmo tivo – desafio, oferta, aceitação e agradecimento
(Ibid.). O sujeito precisa garantir que é e que age nos dão um modelo do comportamento ritual
conforme o tipo de pessoa que foi estabelecida na interpessoal, mas esse modelo pode ser modifi-
sua fachada. Criamos, então, um repertório das cado de forma significativa” (Ibid., p. 29). Com a
nossas fachadas e do que esperar da fachada dos crescente virtualização da comunicação, vincula-
outros. Com fachadas estabelecidas e mantidas, da à uma superexposição dos sujeitos nas redes
a engrenagem social funciona e flui em um fluxo sociais (RECUERO, 2013), as modificações para 83
próprio, pré-determinado nos tratados invisíveis o modelo se referem à ampliação exponencial
que a regem (Ibid.). da divulgação do erro e à negação das ofertas de
Porém, quando um sujeito se comporta de remissão, ancorada nas moralidades emergentes
uma maneira diferente do esperado, ele sai de das culturas digitais.
sua fachada e desestabiliza o fluxo já acordado
das interações sociais. Ao deixar de cumprir as 2. Linchamento virtual
obrigações que lhes foram imputadas ao assumir A prática do linchamento, de acordo com Car-
sua fachada, ele quebra as expectativas do social valho et al. (2018), se configura como forma de
sobre si. “Podemos dizer que uma pessoa está justiça social empregada quando os indivíduos
fora de fachada quando ela participa de um con- acreditam que algum elemento da estrutura está
tato com outros sem ter uma linha pronta do tipo em desacordo com a ordem moral convenciona-
que esperamos que participantes de tais situações da. No âmbito de uma sociedade que tem suas
tenham” (GOFFMAN, 2011, p.16). Seguindo a relações cada vez mais mediadas pelas redes so-
lógica teórica de Goffman, é preciso que haja o ciais, os atos de violência dos linchamentos são
cumprimento das obrigações para que os demais transferidos para a tela dos dispositivos comu-
correspondam às expectativas de comportamen- nicacionais (Ibid.). Nesse contexto, o termo “lin-
to para com o sujeito. Quando há a ruptura com chamento virtual” é utilizado por Freitas (2017)
para se referir à migração de alguns aspectos das um linchamento virtual” (Ibid., p.157).
práticas co-presentes da ação para a virtualidade. A nosso ver, as questões da “face” desenvolvi-
Isso não significa dizer que o linchamento vir- das por Goffman (2011) são fundamentais para
tual seria uma prática descolada das subjetivi- a compreensão da prática do linchamento virtual
dades inerentes às interações co-presentes. Por tanto na dimensão da transgressão, quando de-
outro lado, significa entendê-lo como mutação corrente da perda da fachada, quanto na dimen-
entre as práticas tradicionais de linchamento e são das práticas de linchamento em si, quando
as lógicas virtuais contemporâneas das culturas catalizadoras da validação social dos internautas.
digitais. Neste ponto, destaca-se o pensamen- Recuero (2013), em diálogo com as concepções
to de Sibilia (2008), alinhado às concepções de goffmanianas, mostra que as redes sociais da in-
Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo, ao ternet proporcionaram formas diferentes de re-
mostrar que vivemos em uma sociedade centra- presentação da face social dos indivíduos que, ao
da no culto à personalidade, que espetaculariza o saírem de âmbitos mais restritos para proporções
“eu” por meio das ferramentas comunicacionais globais e heterogêneas, enfrentam riscos mais
digitais. Nessa lógica, a necessidade básica de se complexos (Ibid.).
exibir nos dá uma impressão de que as coisas só Quanto à dimensão da perda da fachada, en-
são validadas socialmente se existirem em uma contra-se na abordagem de Goffman (2002) que
tela (Ibid.). em alguns tipos de cenas, quando fatos dos basti-
Considerando, portanto, que a persona que dores que não deveriam chegar aos holofotes do
se apresenta na interface digital tem uma liga- palco se tornam públicos, a plateia pode decidir
ção valorosa e intrínseca com o ser social que se não mais fazer o jogo da interação cortês e optar
apresenta no cotidiano, a “dor física” que caracte- por confrontar o indivíduo quando possuir pro-
riza um linchamento recebido no plano biosso- vas de que sua pose é, somente, uma pose. Ao se
cial, em casos de linchamento virtual, passa a ser expor online e não mais convencer da legitimida-
84 experimentada como uma “dor social” à medida de de sua fachada, apresentando ao mundo uma
que envolve uma forte rejeição social. Segundo fachada errada, o que acontece nos linchamentos
Freitas (2017, p. 157), no decorrer dos aconte- virtuais é que a plateia se torna não mais cortês e
cimentos de um linchamento virtual, as conse- resolve confrontar o sujeito nos termos da socie-
quências podem ser “ostracismo social, demis- dade atual.
são, depressão, dentre outras”. Em face ao exposto, observa-se que a legitimi-
Isso porque a prática do linchamento virtual, dade da fachada agora é julgada por milhares de
quanto ao seu modus operandi, se caracteriza por usuários, de acordo com códigos punitivos pró-
publicações em série, e quase que simultâneas, de prios. A sociedade reconfigura-se em um novo
diversos internautas e veículos de mídia distin- formato balizado pelas plataformas digitais, em
tos contra um sujeito. Após o julgamento público que os usuários se monitoram mutuamente em
sobre a presumida transgressão, de acordo com diversos aspectos, ao passo que a prática de exi-
Freitas (2017, p. 157), “segue-se uma avalanche bição aumenta. A união desses fatores, portanto,
de novas publicações que reforçam, reiteram, pode ser a explicação para a expressiva repetição
complementam a primeira e podem culminar em de episódios semelhantes, em que uma fachada
ameaças, insultos e exposição de privacidade”. errada é exibida, percebida e sofre o linchamento
Para o autor, portanto, “denuncia, julgamento e virtual. Nesse contexto, torna-se cada vez mais
punição formam o tripé sobre o qual se constitui necessário investigar essas práticas de lincha-
mento virtual de modo a clarificar as categorias processo de linchamento coletivo difundido nas
explicativas de suas manifestações rituais emer- redes sociais, que resultou em sua expulsão da
gentes. Academia de Cinema dos EUA e em seu pedi-
do de demissão da própria empresa. Com o des-
3. Práticas de linchamento virtual e dobramento do caso, outros homens passaram
­cancelamento digital a ser expostos e cancelados socialmente ao se
Os sentimentos contrários à moralidade no tornarem alvos das denúncias.2 Tomando outras
ambiente digital mobilizam as práticas de lin- dimensões, a partir de denúncias criminais, em
chamento virtual, que, por sua vez, resultam no 2019, a cultura do cancelamento ganhou pro-
fenômeno intitulado pela linguagem midiática pulsão quando duas celebridades digitais ame-
de cancelamento digital.1 O cancelamento seria ricanas brigaram entre si. Tati Westbrook, dona
o ato de boicotar uma pessoa, isto é, negá-la e de uma marca de suplementos vitamínicos, teria
excluí-la da legitimação social em resposta a uma sido mentora e ajudado na carreira do jovem e
atitude tomada por ela que tenha sido conside- iniciante James Charles. A briga aconteceu após
rada errada. Tecendo relações com a dimensão Charles fazer divulgação publicitária de uma
da face (GOFFMAN, 2011), o cancelamento se- marca rival da empresa de Westbrook. Ela postou
ria um desdobramento consequente da assunção um vídeo em seu canal do YouTube expondo a si-
de uma fachada errada construída sob uma linha tuação e dando adeus a amizade. James foi então
de ação não conformada. Isso porque, “seja como “cancelado”, passou pelo processo de linchamen-
for, apesar de sua fachada social ser sua posse to virtual e perdeu 3 milhões de inscritos no seu
mais pessoal e o centro de sua segurança e prazer, canal do YouTube.3 Frente ao ocorrido, James
ela é apenas um empréstimo da sociedade; ela recorreu às redes sociais para pedir desculpas na
será retirada a não ser que a pessoa se comporte tentativa de reverter a situação, mas não obteve
de forma digna dela” (Ibid., p.18). O linchamen- êxito. Mostrar-se arrependido não foi suficiente
to virtual, nesse processo, seria um meio para os para paralisar o declínio do número de seguido- 85
fins de cancelamento, pois a intenção do cancela- res de seu canal e as práticas de linchamento de-
mento é a retirada da fachada da pessoa a ponto correntes.
de interromper a atenção que compõe o seu capi- No Brasil, também em 2019, o cantor Guilher-
tal profissional e não apenas fazer “justiça”. me Kaue Castanheira Alves, conhecido como Mc
A cultura do cancelamento teve início em 2017, Gui, quando de férias na Disney, publicou em
quando a campanha #metoo nas redes sociais le- suas redes sociais um vídeo em que debochava da
vou mulheres do mundo inteiro a compartilha- fantasia de uma criança. Durante a filmagem, a
rem denúncias de assédio sexual. O produtor de
menina percebe que está sendo gravada e trans-
cinema Harvey Weinstein, acusado de agressão
parece seu incômodo com a situação. O fato re-
sexual, estupro e assédio por mais de oitenta
mulheres, foi desvalidado socialmente. Além de
2 Disponíveis em: < https://www.nexojornal.com.br/expres-
responder judicialmente, Weinstein passou pelo so/2019/11/01/Quais-os-efeitos-da-cultura-do-cancelamento >,
< https://exame.abril.com.br/mundo/o-julgamento-de-harvey-
1 Para Meredith Clark “é um ato de afastar-se de alguém cuja ex- -weinstein-o-pioneiro-do-metoo/ >, < https://exame.abril.com.br/
pressão – política, artística ou não – já foi bem-vinda ou pelo menos estilo-de-vida/harvey-weinstein-a-queda-do-deus-de-hollywood/ >.
tolerada, mas não é mais”. Disponível em: <https://www.nytimes. Acesso em 21 de fevereiro de 2020.
com/2018/06/28/style/is-it canceled.html?action=click&module=Re 3 Disponível em: < https://www.vogue.pt/cultura-do-cancelamento-
latedLinks&pgtype=Article>. Acesso em 18 de novembro de 2019. -redes-sociais >. Acesso em 13 de novembro de 2019.
voltou os internautas e vários artistas brasilei- com a perspectiva dos rituais de interação de
ros. Anônimos e famosos, além de deixarem Goffman (2011), contribuem para a compreen-
uma série de comentários negativos nas redes são do modus operandi das práticas de lincha-
do cantor, também usaram as redes sociais mento virtual. Neste estudo, com base nos dois
próprias para expressarem suas indignações casos brasileiros, chamamos a atenção para
frente ao ocorrido. O Mc perdeu diversos con- algumas categorias elementares desse modus –
tratos e teve shows cancelados após o episódio, tribunais digitais e omissão da oferta.
tendo que se retratar publicando um pedido de
desculpas em suas redes sociais.4 3.1 Tribunais digitais
Também em 2019, Donatela Meirelles, à Com a popularização da prática dos lin-
época diretora da Vogue Brasil, foi acusada chamentos virtuais, alguns perfis criados nas
de racismo pelos internautas. O fato aconte- redes sociais – para comentar a vida das cele-
ceu após Donatela usar uma temática em sua bridades – passaram a se configurar como “tri-
festa de aniversário de 50 anos que remetia às bunais digitais”. Nestes perfis, os que perdem a
dominações da época da escravidão. Donatela, fachada são expostos para que o público deli-
que é branca, foi acusada de reviver o conceito bere nos comentários da publicação a respeito
da sinhá adornada pelas negras escravas, tra- do veredito: culpado ou inocente. Caso o su-
zendo elementos da escravidão para o campo jeito em questão seja “condenado”, o lincha-
do entretenimento. Ela sofreu uma série de mento virtual segue seu fluxo. Tais perfis fun-
acusações nas redes sociais e a Revista Vogue cionam como uma espécie de indexador para
publicou uma nota em rede social própria la- expor fachadas erradas. Assim, o público que
86
mentando o ocorrido. Reiterando sua não não estava a par do erro pode saber dos fatos
conformidade com o fato, a revista também ocorridos e, então, ocupar um lugar no “júri”.
anunciou a criação de um fórum em caráter As celebridades são os principais alvos dessa
permanente destinado para a reflexão de con- prática por terem seus trabalhos baseados na
teúdos de combate à desigualdade racial. Do- exibição pública de si e, como consequência,
natela publicou um pedido de desculpas em serem conhecidas por um grande número de
suas redes sociais e anunciou o seu desliga- indivíduos.
mento do cargo na revista após sete anos tra- Qualquer erro de suas fachadas, portanto,
balhando para a mesma.5 que dentro desse contexto digital são vigiadas
Ambos os casos, quando postos em relação em maior proporção, geram interesse de diver-
sos públicos e podem ter um extenso impacto
4 Disponível em: < https://g1.globo.com/pop-arte/noti-
cia/2019/10/22/mc-gui-tem-contrato-e-shows-cancelados-apos-rir-
social. Esses perfis das redes sociais moneti-
-de-menina-na-disney.ghtml >. Acesso em 5 de novembro de 2019. zam justamente através do tráfego de públi-
5 Disponível em: < https://www.huffpostbrasil.com/entry/donata-
co, vendendo espaços publicitários. Por isso,
-vogue_br_5c6498b9e4b09e2092c2b9c5 >. Acesso em 26 de junho
de 2020. quanto mais famoso o indivíduo errante for e,
portanto, seu erro seja mais impactante para a A postagem que exibe a perda de fachada
sociedade, mais esses perfis se beneficiam. do cantor Mc Gui gerou 142.435 comentários
O “Alfinetada dos famosos”, cujo endereço e 406 mil curtidas.7 Já uma publicação com
na plataforma Instagram é @alfinetei, possui conteúdo publicitário, por exemplo, apenas 87
10,9 milhões de seguidores e 641 publicações, comentários e 6,3 mil curtidas.8 Esse compara-
a primeira delas feita em setembro de 2015.6 tivo serve para ilustrar o valor da atenção que
O perfil mescla postagens com conteúdos re- uma situação de perda de fachada de pessoa
lacionados à vida dos famosos e conteúdos famosa carrega no âmbito digital. Numa socie-
publicitários. Algumas são direcionadas espe- dade em que a captação da atenção constitui
cificamente para a exibição do que seria, nos uma das bases econômicas, situações como es-
termos da linha teórica do presente artigo, a sas são vistas como ­oportunidades.
perda da fachada de determinados famosos.

Figura 1. Postagem sobre a perda de fachada do Mc Gui comparado a conteúdo publicitário

87

7 Disponível em: < https://www.instagram.com/p/B35Qc-7gaiK/ >.


6 Disponível em: < https://www.instagram.com/alfinetei/?hl=pt-br Acesso em 12 de novembro de 2019.
>. Acesso em 12 de novembro de 2019. Dados coletados em 12 de 8 Disponível em: < https://www.instagram.com/p/B0RtzPPH44X/>.
novembro de 2019. Acesso em 12 de novembro de 2019.
Neste caso, observa-se que o perfil (figura à várias mídias e contextos históricos. Porém,
esquerda) aglutina os ingredientes que formam agora, a sociedade incorpora ferramentas
uma cadeia de rituais de interação (COLLINS, comunicacionais que podem ser usadas com
2004), assentada em justiça social, do seguinte amplo alcance de usuários a fim de confrontar
modo: (i) exposição (imagem) da fachada so- coletivamente e diretamente a personalidade
cial da celebridade – com os sentimentos que a que apresente uma fachada que não lhe agrade.
sustentam (entusiasmo, autoconfiança, entre ou- Decerto, as empresas de mídia lucram com isso.
tros); e (ii) exposição (imagens e textos) dos atos
da celebridade que contradizem profundamente 3.2 Omissão da oferta
os sentimentos vinculados à fachada social. Con- As celebridades antagonizadas pela perda da
siderando a capacidade destes elementos visuais fachada repetem o comportamento de postarem
quanto à captação da atenção e espelhamento dos pedidos de desculpas em suas redes sociais, es-
humores dos usuários, ao registrar e estimular pecialmente após sofrerem o linchamento virtual
intensamente os feedbacks (likes, comentários, e começarem a vivenciar os primeiros efeitos da
emojis etc.), de acordo com o modelo de Collins prática em suas vidas profissionais. Na perspec-
(2004), o perfil canaliza o arrastamento das aten- tiva de Goffman (2011), esse comportamento
ções e emoções para uma experiência intensa corresponde à busca pela fase da oferta do ciclo
de emoção compartilhada, capaz de dominar as corretivo padrão. Contudo, observa-se que esta
consciências dos participantes. Como resultado, fase da oferta é omitida pelos participantes dos
tem-se a construção de sentimentos coletivos de tribunais digitais. Diante disso, os antagonizados
solidariedade e moralidade entre os participantes buscam alternativas através de meios próprios
– contra o errante. para alcançá-la, a fim de completar o ciclo corre-
Como já exposto, “a fachada pessoal e a facha- tivo, recuperar a fachada e, logo, retomar o fluxo
da dos outros são construtos da mesma ordem; das interações sociais dentro da normalidade.
são as regras do grupo e a definição da situação Abrindo um parêntese para ressaltar os efeitos
que determinam quantos sentimentos devemos da perda de uma fachada, tem-se que, a partir do
ter pela fachada e como esses sentimentos de- momento em que o sujeito não apresenta mais
88 vem ser distribuídos pelas fachadas envolvidas” uma fachada legitimada, os outros podem inter-
(GOFFMAN, 2011, p. 14). No modus operandi pretar como um sinal de que não precisarão mais
como as situações são expostas e conduzidas, os cumprir o acordo social de considerar os senti-
“tribunais digitais” não só comunicam o erro da mentos do errante (GOFFMAN, 2011). Em ana-
fachada, como também direcionam a situação logia, é como se o sujeito errante fosse desuma-
para que os sentimentos coletivos e as ações de- nizado. A partir do momento em que os outros
correntes sejam distribuídas contra o errante, na não o reconhecem como igual e digno, a barreira
busca de cancelá-lo. Observa-se a utilização de de violentá-lo, mesmo que simbolicamente, fica
legendas construídas para incentivar os públicos mais tênue.
a julgá-lo – já culpabilizando-o – e escreverem Nos instantes seguintes, retomando a discussão
nos comentários o que pensam a respeito do sobre as alternativas utilizadas pelos errantes em
ocorrido. A exemplo, tem-se a legenda da publi- busca da fase da oferta do ciclo corretivo, até en-
cação apresentada na figura 1, em que o perfil @ tão omitida pelos tribunais, observa-se (figura 2
alfinetei comenta – “E o cancelado do dia é:”.9. e 3) que há uma tentativa de se explicar e se ex-
É possível dizer que a prática de comentar por na posição de arrependimento. Seria, a nosso
a vida dos famosos se perpetua na sociedade ver, uma forma de buscar sensibilizar a percepção
por um longo período de tempo, atravessando do outro na intenção de reverter o processo de ne-
gação da legitimidade social e pertencimento ao
grupo.
9 Disponível em: < https://www.instagram.com/p/B35Qc-7gaiK/>.
Acesso em 13 de novembro de 2019.
Figura 2. Post sobre desculpas do cantor Embora os pedidos de desculpas apresentados
Mc Gui em seu perfil. sejam carregados de sentimentos de arrependi-
mento, não são suficientemente capazes de pro-
vocar a reversão da situação de linchamento vir-
tual e, principalmente, a recuperação da fachada
(figura 5). Ou seja, nas redes digitais, o “ciclo
corretivo padrão” (GOFFMAN, 2011) encontra
desafios para a transcorrência normal de suas
fases. Um destes desafios, que merece destaque,
seria o aproveitamento da omissão da oferta por
parte dos “julgadores” para fins de apropriação
da validação social – a oportunidade de construir
uma fachada pessoal nas situações, julgada como
Fonte: Instagram10 positiva no âmbito dos tribunais, em prejuízo à
perda da fachada e linchamento virtual do outro.
Figura 3. Postagem pedindo desculpas de Donatela
Meirelles em seu perfil.
Figura 4. Comentários deixados na postagem de
desculpas de Donatela Meirelles.

89

Fonte: Instagram 12

Campos (2018), baseada nas ideias do autor Ja-


ron Lanier, afirma que as redes sociais têm pren-
dido as pessoas em ciclos viciosos de necessidade
de validação social. Ao serem aceitas e valoriza-
das, seja nos comentários, likes, repostando suas
Fonte: Instagram11 publicações, ou seja, recebendo recompensas
Fon para o eu social, libera-se o neurotransmissor do-
te: Instagram11 pamina que gera a sensação de prazer e ­satisfação

10 Disponível em: < https://www.instagram.com/p/B4sh995lMBG/ 12 Disponível em: < https://www.instagram.com/p/B4sh995lMBG/


>. Acesso em 19 de novembro de 2019. >. Acesso em 19 de novembro de 2019.
11 Disponível em: < https://www.instagram.com/p/B4sh995lMBG/
>. Acesso em 19 de novembro de 2019.
(Ibid.). Colocando em perspectiva de diálogo Figura 5. Post do @alfinetei fomentando o debate
com Goffman (2011), sublinhamos que, quando sobre a punição do cantor McGui.
exibida a fachada correta, há recompensas positi-
vas advindas do social, que incitam a busca cíclica
dessa validação para mais recompensas. Por isso,
o efeito do linchamento e do cancelamento digi-
tal pode ser tão devastador para o antagonizado.
Seu sistema de recompensas rápidas e viciantes
é desfigurado e a ele agora é negada a validação
social que lhe provocava prazer e satisfação. O
que chama a atenção, segundo Campos (2018, p.
41), é que os indivíduos podem optar por essas
práticas de antagonização justamente por conta
desse sistema de recompensas, pois “ao publica-
rem conteúdos de ódio, algumas pessoas podem
acabar ganhando um reforço positivo nas redes Fonte: Instagram13

sociais [...] ao encontrarem eco em outros indi- Quanto à dimensão da validação social dos in-
víduos que apoiam e dividem a mesma opinião”. ternautas, ancorados em sentimentos de morali-
Sendo assim, de um lado, temos sujeitos con- dade (COLLINS, 2004), os julgadores se apoiam
siderados errantes e ávidos pela recuperação de e retroalimentam entre si o sentimento de legiti-
suas fachadas para voltarem à normalidade de mação da antagonização. Por isso, levantamos a
seus sistemas de recompensas. Por outro lado, hipótese de que, ao verem o errante ser punido
temos os demais sujeitos que encontram oportu- na dimensão biossocial (Figura 5), enxerga-se a
nidade de validação social em práticas de anta- confirmação de estarem agindo corretamente.
90 gonização coletiva. Estes, conscientes de estarem Como mostra a figura 5, os comentários sobre
fortemente alicerçados em práticas de justiça o ocorrido se multiplicam e replicam a mesma
social, nem sempre demonstram interesse em ideia central: o errante merece ser punido; o ve-
facilitar a recuperação da fachada perdida. Ao redito dos participantes do “júri virtual” recebeu
antagonizado é imputado o veredito do erro. O uma prova material da sua legitimação. Acredi-
interesse dos perfis divulgadores, por sua vez, é tamos que essa confirmação de que as ações vir-
reunir e amplificar a antagonização para gerar o tuais coletivas possuem efeito na realidade mate-
máximo de engajamento com o conteúdo do per- rial do outro, incentiva a perpetuação da prática
fil, visando outros ganhos de capitais. Em suma, de linchamento. Sentimentos de poder, compar-
o interesse é que a fachada demore a ser recupe- tilhados.
rada para que os efeitos continuem na discussão
pública.

13 Disponível em: < https://www.instagram.com/p/B37C2LDHU-


gU/>. Acesso em 29 de fevereiro de 2019.
Considerações finais dido de desculpas do errante; omissão da oferta à
À medida que a prática de linchamento virtual remissão; efeitos no plano material ou biossocial;
produz sentimentos de moralidade e poderio cancelamento da pessoa. Nesse contexto, desta-
compartilhados, em grande escala, o cancela- camos a reconfiguração da representação da face
mento digital se torna possível. De acordo com do indivíduo – a virtualidade penetra tão forte na
Goffman (2011), as pessoas tendem a experi- realidade material, que punir a projeção virtual
mentar respostas emocionais imediatas ligadas da mesma é infligir uma punição para a face do
às suas fachadas – positivas, quando a fachada se ser-no-mundo.
encaixa e até mesmo se sobressai perfeitamente Chamamos atenção para a recursividade dessa
na situação posta; e negativas, quando as suas ex- prática: tem origem como mecanismo de respos-
pectativas não são realizadas (Ibid.). Com o can- ta coletiva para denúncia criminal; expande-se às
celamento digital, portanto, a hipótese é que se lógicas do mercado midiático forjadas nos pro-
busca perpetuar os sentimentos negativos conse- cessos digitais atuais, em concomitância à virtua-
quentes da perda de fachada, retirando do indiví- lização e espetacularização do eu; e reconfigura-
duo errante um elemento cada vez mais primor- -se, juntamente com esses processos, como um
dial em sociedades de culto ao eu, como já dito: a novo mecanismo de justiça social. Nesse contex-
atenção social de cunho positivo. to, acreditamos que as práticas de linchamento
O linchamento virtual pode se configurar virtual devem ser problematizadas pelos estudos
como nova prática punitiva advinda como conse- comunicacionais na perspectiva das dinâmi-
quência da perda das fachadas nas redes digitais. cas sociotécnicas agenciadas pelos algoritmos e
Há um padrão entre os elementos interconec- práticas de face work, nas plataformas de mídia
tados: situação de ruptura da fachada (errada); social. Afinal, os julgamentos hipermediatizados
exposição pública nos “tribunais digitais”; posi- sobre fachadas (erradas ou não), de uns tempos
cionamentos do “júri”; construção em cadeia dos para cá, estão viciados nos tribunais digitais.
sentimentos de moralidade contra o errante; pe-
91
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