Você está na página 1de 4

Lê o excerto final do Capítulo I de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu irmão, temeroso do
génio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em
pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de
noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas. O corregedor admira a
bravura de seu filho Simão, e diz à consternada mãe que o rapaz é a figura e o génio de seu bisavô
Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes.
Manuel, cada vez mais aterrado das arremetidas de Simão, sai de Coimbra antes de férias e
vai a Viseu queixar-se, e pedir que lhe dê seu pai outro destino. D. Rita quer que seu filho seja cadete
de cavalaria. De Viseu parte para Bragança Manuel Botelho, e justifica-se nobre dos quatro costados
para ser cadete. No entanto, Simão recolhe a Viseu com os seus exames feitos e aprovados. O pai
maravilha-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância por amor do talento. Pede-lhe
explicações do seu mau viver com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer forçar a viver
monasticamente.
Os quinze anos de Simão têm aparência de vinte. É forte de compleição; belo homem com as
feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo avesso em génio. Na plebe de Viseu é que ele
escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das
genealogias, e mormente do general Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a
malquerença de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no
desgosto dela, e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a mais nova, com quem ele
brincava puerilmente, e a quem obedecia, se lhe ela pedia, com meiguices de criança, que não
andasse com pessoas mecânicas.
Finalizavam as férias, quando o corregedor teve um grave dissabor. Um dos seus criados
tinha ido levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas
que estavam à vez no para-peito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado;
espancaram-no. Simão passava nesse ensejo; e, armado dum fueiro que descravou dum carro, partiu
muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros. O povoléu
intacto fugira espavorido, que ninguém se atrevia ao filho do corregedor; os feridos, porém,
incorporaram-se e foram clamar justiça à porta do magistrado. Domingos Botelho bramia contra o
filho, e ordenava ao meirinho-geral que o prendesse à sua ordem. D. Rita, não menos irritada, mas
irritada como mãe, mandou, por portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença, fugisse
para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai.
O corregedor, quando soube o expediente de sua mulher, fingiu-se zangado, e prometeu
fazê-lo capturar em Coimbra. Como, porém, D. Rita lhe chamasse brutal nas suas vinganças, e
estúpido juiz de uma rapaziada, o magistrado desenrugou a severidade postiça da testa, e confessou
tacitamente que era brutal e estúpido juiz.

1. Explicita o relacionamento entre Simão Botelho e a sua família, indicando a relação de sentido
presente na apresentação dos dois irmãos.

2. Compara as reações do corregedor e de D. Rita perante os comportamentos do filho mais novo,


fundamentando a resposta com citações textuais pertinentes.

3. Comprova que o episódio do chafariz, protagonizado por Simão Botelho, concorre para a
construção da personagem enquanto herói romântico.
1. O relacionamento entre Simão e a sua família é conflituoso: o seu irmão Manuel tem-lhe medo, por recear que o seu «génio
sanguinário» lhe ponha a vida em risco; a sua mãe, que lhe censura as más companhias, vê a sua genealogia ser alvo de troça, criando uma
certa antipatia pelo filho; o seu pai, inicialmente admira-lhe a coragem e, perante a aprovação nos exames, orgulha-se dele, desculpando-
lhe a «extravagância», mas, depois, solidário com a mulher e subserviente à mesma, iguala a sua postura; e as irmãs, à exceção da mais
nova, à qual Simão nada recusava, têm-lhe medo. A personalidade de Simão, agitadora e avessa «em génio», contrasta com a do seu
irmão Manuel, apresentado como medroso («se vê ameaçado na vida», l. 2; «aterrado», (l. 7), como regrado («viver monasticamente», l.
12) e como submisso à vontade da mãe, que pretende que seja cadete de cavalaria, da qual herdou a presunção («justifica-se nobre dos
quatro costados», l. 9).

2. O corregedor, inicialmente, desvaloriza as queixas de Manuel perante os comportamentos de Simão, considerando o filho mais novo
corajoso tal como o seu bisavô («O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e diz [...] que o rapaz é a figura e o génio de seu bisavô
[...], o mais valente fidalgo que dera Trás-os-Montes», ll. 4-6). Desculpa-lhe o comportamento desregrado perante a aprovação nos
exames («O pai maravilha-se do talento do filho, e desculpa-o da extravagância por amor do talento», ll. 10-11). Posteriormente, e
induzido pela mulher, cria uma certa antipatia por Simão («o corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no
desgosto dela, e na aversão ao filho», ll. 16-17) e, após o episódio no chafariz, fica furioso com a atitude do filho, mandando-o prender
(«ordenava ao meirinho-geral que o prendesse à sua ordem», l. 26). D. Rita repreende a escolha de amizades de Simão («censura a indigna
eleição que faz», l. 15) e cria-lhe uma certa inimizade perante os motejos à sua genealogia («Simão zomba das genealogias, e mormente
do general Caldeirão que morreu frito. Isto bastou para ele granjear a malquerença de sua mãe», (ll. 15-16). Contudo, revela algum amor
maternal, ao proporcionar-lhe a fuga para Coimbra, após a ordem de prisão dada pelo corregedor («mas irritada como mãe, mandou, por
portas travessas, dinheiro ao filho para que, sem detença, fugisse para Coimbra, e esperasse lá o perdão do pai»,( l. 27-28).

3. No episódio do chafariz, Simão revela um comportamento rebelde e violento («partiu muitas cabeças», l. 23) na defesa de um criado do
seu pai que fora espancado por ter quebrado algumas vasilhas, apresentando atitudes extemporâneas e inflamadas («rematou o trágico
espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros», ll. 23-24), próprias de um herói romântico.

Lê atentamente o seguinte texto.

Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e
bem-nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara
ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que
a usual nos seus anos.
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como
paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se
ambos. O amor aos quinze anos é uma brincadeira; é a última manifestação do amor às bonecas; é
tentativa da avezinha que ensaia o voo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe, que
está da fronde próxima chamando: tanto sabe a primeira o que é amar muito, como a segunda o que
é voar para longe.
Teresa de Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu amor.
O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivos de litígios, em que
Domingos Botelho lhes deu sentenças contra. Afora isso, ainda no ano anterior dois criados de
Tadeu de Albuquerque tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. É, pois, evidente que o
amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai,
era verdadeiro e forte. E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se
três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que
ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem
outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração,
o seu grande património. Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível
ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um património!
Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa
menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela
voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na
cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve
tentações de se matar, na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em
raivas e projetos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue e renasceu a esperança com os
cálculos.
1. Indica, com base no texto, quatro traços caracterizadores de Teresa.
2. Explicita dois dos valores expressivos presentes na seguinte afirmação: “é tentativa da
avezinha que ensaia o voo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-mãe, que está da fronde
próxima chamando” (ll. 10-11).
3. Identifica o recurso expressivo presente em “Não ficara ela incólume da ferida que fizera
no coração do vizinho” (l. 3-4) e comenta o seu valor.

Teresa de Albuquerque em sua carta ao Mundo 5 10 15 20 25 30 Simão Botelho, meu amado


esposo. Não te admires da configuração daquela que te há de parecer uma bem estranha carta.
Quando estas laudas1 chegarem às tuas mãos, saberás que as escrevi com tinta feita da cinza que
dia e noite me rodeia, diluída na escorrenteza das minhas próprias lágrimas. Oxalá matérias tão
precárias resistam à viagem e consigam levar-te saudações da minha parte, seja onde for que te
encontres, e estejas tu acompanhado por quem quer que seja que o destino te tenha dado por
amiga ou amante.
Pois pelo meu lado, se muito mudei, continuo a querer-te como no primeiro dia em que te
vi cavalgando pelas ruas de Viseu, e a amar-te da mesma forma, sem refrigério nem apelo, como no
último instante, quando te dirigiste ao portaló para receberes as minhas cartas, na nau que em
breve partiria levando-te a caminho da Índia. Nessa hora, a minha vida acabou, Simão, mas a tua
felicidade, fatalmente sem mim, continua a ser o meu maior cuidado. A tua felicidade é o meu
destino. Vê como são as coisas, meu amado. Agora, pouco me importa que aquela, com quem fazias
projetos de partilhar uma casinha nos arredores de Coimbra, já não se chame Teresa, nem que o
peito onde sonhavas encostar a tua cabeça, já não seja o seu. A vida mudou, isto é, a morte mudou o
que foi sonhado em vida. Mas o mais importante é que sei agora o que não sabia antes. E por isso
posso dizer-te que a natureza daquela Eternidade que ora víamos como um paraíso perfeito, ora
como um lugar de quietude e silêncio para onde os dois iríamos adormecer para sempre, afinal é
muito diferente do que ambos imaginávamos. Posso dizer-te que se escrevo esta carta, é porque
faço empenho em avisar-te para que não sejas tomado tu pela surpresa que a mim me prende. Meu
divino esposo do céu, meu amado, estávamos enganados, a vida a partir daqui tem um sentido
diferente. O amor que aí vivemos até ao desespero, cá deste lado, não tem o valor de um pinto, e os
bens que pensávamos que nos conduziriam a um lugar de bom merecimento, ficaram pelo caminho.
Grande dolo. Só o meu amor por ti, meu adorado esposo, continua igual, absoluto e derradeiro, e
por isso preciso explicar-te o que por cá se passa, antes que seja tarde. Podes crer. Tão grande é a
minha emoção ao fazer esta denúncia, que me atrapalho nas letras de cinza que desenho sobre este
pedaço de sudário, e tão grande a minha urgência em fazer-to saber, que nem sei como chamar as
palavras.

1.Teresa escreve “uma bem estranha carta” (l. 2), uma vez que:
A. se encontra enclausurada.
B. já morreu e comunica com Simão.
C. as frases não têm nexo.
D. a tinta é de má qualidade.
2. As “matérias tão precárias” (l. 4) remetem para
A. as lágrimas.
B. o papel usado.
C. materiais pouco frágeis.
D. cinza diluída em lágrimas.
3. A expressão “não tem o valor de um pinto” (l. 25) significa
A. tem pouco valor.
B. não vale tanto como um pintainho.
C. não significa nada para mim.
D. não é correspondido.
4. O pronome presente em “nos conduziriam” (l. 26) desempenha a função sintática de
A. complemento indireto.
B. complemento agente da passiva.
C. complemento direto.
D. sujeito.
5. A oração “que me atrapalho nas letras de cinza” (ll. 29-30) é
A. subordinada substantiva completiva.
B. subordinada adverbial causal.
C. subordinada adverbial consecutiva.
D. subordinada adjetiva relativa explicativa.
6. Refere o tipo de coesão assegurado pelas seguintes expressões: “estas laudas” (l. 3) e “esta carta”
(ll.21-22).
7. Refere os processos fonológicos ocorridos de VITAM > vida.
8. Indica a função sintática da expressão “a minha emoção” (l. 29).

1. Teresa é caracterizada como uma jovem, ainda adolescente (“menina de quinze anos”), “vizinha” de Simão, e que por ele se apaixona.
Esta menina pertence a um estatuto socioeconómico elevado, pois apresenta-se como uma (“rica herdeira”, “bem-nascida” – ll. 1-2),
possuindo uma aparência medianamente bela (“regularmente bonita” – l. 1). Para a sua idade, Teresa é uma adolescente singularmente
madura, que ama com uma seriedade invulgar (“o amor de Teresa (…) era verdadeiro e forte”). Outra característica sua é a determinação,
já que, por amor, desafia o dever de obediência filial quando se vê, pela força, impedida de se relacionar com o seu apaixonado.

2. As imagens presentes na afirmação transcrita produzem, entre outros, os seguintes efeitos de sentido: • evidenciar a fragilidade e a
imaturidade na adolescência; • sublinhar a vontade de experimentação da autonomia, própria da adolescência; • salientar o receio e a
insegurança que caracterizam a atitude amorosa na adolescência; • acentuar que a busca de autonomia na adolescência é muito relativa,
pois decorre sob a proteção maternal; • …

3. Nesta expressão está presente uma metáfora ao identificar-se o efeito do sentimento amoroso com uma ferida. A dor sugerida em
“ferida que fizera no coração do vizinho” salienta o sofrimento amoroso provocado por Teresa em Simão, mas do qual ela também não
fica a salvo, não sai “incólume”. Esta metáfora cria a ideia de mágoa associada ao amor.

BDACC Coesão lexical. Apócope do /m/ e sonorização do /t/. Sujeito.

Você também pode gostar