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Entre Nós
Entre Nós
[1986]
Na sexta-feira de setembro de 1986 em que cheguei a Turim para retomar uma
conversa com Primo Levi que havíamos iniciado em Londres, numa tarde da
primavera anterior, manifestei o desejo de conhecer a fábrica de tintas onde ele
trabalhara como químico pesquisador e, posteriormente, até se aposentar, como
diretor. Ao todo, a companhia emprega cinqüenta pessoas, na maioria químicos
que atuam nos laboratórios e operários qualificados que trabalham na produção.
A maquinaria; a fileira de tanques de armazenamento; o prédio do laboratório; o
produto final guardado em recipientes da altura de um homem, pronto para ser
transportado; a unidade de reprocessamento que purifica os resíduos — tudo
isso dentro de um terreno de cerca de dois hectares a onze quilômetros de
Turim. As máquinas que secam a resina, mesclam o verniz e bombeiam os
poluentes nunca chegam a produzir um ruído excessivo; o cheiro ácido da
fábrica — o qual, segundo Levi me disse, permaneceu impregnado em suas
roupas até dois anos depois de sua aposentadoria — não é de modo algum
nauseabundo, e a caçamba de quase trinta metros, cheia até a boca de resíduos
pastosos negros, produzidos pelo processo antipoluição, não é particularmente
feia. Não é de jeito nenhum o ambiente industrial mais horroroso do mundo,
mas mesmo assim está muito distante daquelas frases refinadas que são a marca
registrada das narrativas autobiográficas de Levi.
Por mais distante que ela esteja do espírito de sua prosa, fica claro que a
fábrica está muito próxima de seu coração; assimilando o que pude assimilar do
barulho, do fedor, do mosaico de canos, tonéis, tanques e mostradores, pensei
em Faussone, o aparelhador de A chave-estrela, e disse a Levi, que se refere a
Faussone como “meu alter ego”: “Devo lhe dizer que me dá prazer ficar num
lugar onde se trabalha”.
Enquanto caminhávamos pelo pátio aberto em direção ao laboratório, um
prédio simples de dois andares construído no tempo em que Levi era o diretor,
ele me disse: “Há doze anos estou afastado da fábrica. Vai ser uma aventura para
mim”. Acrescentou que quase todos que trabalharam com ele estavam
aposentados ou mortos; os poucos conhecidos que encontrava lhe pareciam
espectros. “Mais um fantasma”, cochichou para mim quando um homem que
trabalhava no escritório central que outrora fora a sua sala saiu para
cumprimentá-lo. A caminho da seção do laboratório em que as matérias-primas
são analisadas antes de passar para o setor de produção, perguntei a Levi se ele
era capaz de identificar o aroma químico suave que se sentia no corredor: para
mim, era cheiro de corredor de hospital. Ele levantou a cabeça uns poucos
milímetros e expôs as narinas ao ar. Com um sorriso, disse: “Eu reconheço e
posso analisá-lo como se eu fosse um cachorro”.
A impressão que me dava era que Levi, com sua animação interior, mais
parecia uma criaturinha buliçosa da floresta, dotada da inteligência mais viva de
seu meio. Levi é um homem quanto seu jeito despretensioso parece indicar à
primeira vista, e pelo que se observa continua tão ágil quanto deve ter sido aos
dez anos de idade. No corpo, tal como no rosto, vemos — o que não costuma
acontecer na maioria dos homens — o rosto e o corpo do menino que ele foi. Sua
agilidade é quase palpável, e seu vigor treme dentro dele como se fosse o piloto
de um aquecedor.
Ao contrário do que pode parecer de saída, não causa surpresa a constatação
de que os escritores, tal como o resto da humanidade, se dividem em duas
categorias: os que sabem ouvir e os que não sabem. Levi sabe ouvir, com o rosto
inteiro, um rosto modelado com precisão que, terminando na barbicha branca,
aos 67 anos parece juvenil, lembrando o deus Pã, e ao mesmo tempo tem um ar
de professor, a expressão de curiosidade irreprimível do estimado dottore.
Acredito em Faussone quando ele diz a Primo Levi no início de A chave-estrela:
“Você é mesmo incrível, me faz contar essas histórias que eu nunca havia
contado a ninguém”. Não admira que as pessoas estejam sempre lhe contando
coisas e que tudo seja registrado fielmente antes mesmo de ser escrito: quando
ele escuta, Levi fica tão concentrado e imóvel quanto um esquilo ao observar algo
desconhecido do alto de um muro de pedra.
Num prédio residencial grande, de aparência sólida, construído alguns anos
antes de ele nascer — na verdade, a casa em que ele nasceu, pois ela antes
pertencia a seus pais —, Levi mora com sua mulher, Lucia; com exceção do ano
que passou em Auschwitz e os meses de aventuras que se seguiram
imediatamente à sua libertação, ele morou nesse apartamento a vida toda. O
prédio, cuja solidez burguesa já começa a ceder um pouco aos efeitos do tempo,
fica numa avenida larga de edifícios de apartamentos que me pareceu o
equivalente, no norte da Itália, à West End Avenue de Manhattan: um fluxo
contínuo de automóveis e ônibus, bondes passando nos trilhos, mas também
castanheiras altas enfileiradas ao longo das ilhas estreitas em ambos os lados da
rua, sendo visíveis da interseção os morros verdejantes que cercam a cidade. As
famosas galerias do centro comercial da cidade ficam a quinze minutos de uma
caminhada perfeitamente reta, em que se atravessa o que Levi chama de “a
geometria obsessiva de Turim”.
No apartamento espaçoso em que ele e a mulher moram, vive também, desde
que os dois se conheceram e se casaram depois da guerra, a mãe de Primo Levi.
Ela tem 91 anos. A sogra de Levi, de 95 anos, mora não muito longe dali; no
apartamento ao lado, vive seu filho de 28 anos, que é físico; e a poucas ruas dali
mora sua filha de 38 anos, botânica. Não conheço nenhum outro escritor
contemporâneo que tenha resolvido permanecer, durante tantas décadas, em
contato íntimo, direto e ininterrupto com sua família próxima, seu torrão natal,
sua região, o mundo de seus ancestrais e, em particular, com o ambiente de
trabalho local, que em Turim, sede da Fiat, é basicamente industrial. De todos os
artistas intelectualmente bem-dotados do século xx — e o que torna Levi único é
o fato de ele ser mais um químico-artista do que um escritor-químico —, ele é
talvez o que melhor se adaptou à totalidade da vida a seu redor. No caso de
Primo Levi, é possível que o fato de ele ter passado a vida inteira ligado a sua
comunidade, juntamente com sua obra-prima sobre Auschwitz, constitua sua
reação visceral àqueles que se esforçaram ao máximo para romper todas as
ligações dele e eliminá-lo da história, junto com toda a sua gente.
Em A tabela periódica, iniciando com uma frase bem simples um parágrafo
que descreve um dos processos mais fascinantes da química, Levi afirma: “A
destilação é bela”. O que vem a seguir é também uma destilação, uma redução
aos pontos essenciais da conversa animada e abrangente que tivemos, em inglês,
no decorrer de um fim de semana prolongado, a maior parte dentro de seu
escritório silencioso, que dá para o hall de entrada do apartamento. O escritório é
um cômodo amplo e pouco mobiliado. Há um velho sofá de florzinhas e uma
espreguiçadeira confortável; sobre a escrivaninha, um processador de texto
coberto com um pano; atrás dela, prateleiras organizadas com os cadernos de
Levi, de diversas cores; em todas as paredes do escritório há estantes com livros
em italiano, alemão e inglês. O objeto mais evocativo é um dos menores: um
desenho, pendurado num lugar discreto, que representa uma cerca de arame
farpado semidestruída em Auschwitz. Têm mais destaque nas paredes as
estruturas lúdicas construídas por Levi com fio de cobre isolado, retorcido de
modo caprichoso — isto é, fio de cobre recoberto com o verniz criado para este
fim no laboratório em que ele trabalhava. Há uma grande borboleta, uma coruja
e um pequeno inseto, tudo feito de fio, e no alto da parede atrás da escrivaninha
vêem-se duas das maiores estruturas, também de fio: uma é a figura de uma ave
guerreira brandindo uma agulha de tricô; a outra, que Levi me explicou quando
não consegui entender o que era, representava “um homem brincando com o
nariz”. “Um judeu”, arrisquei. “Isso mesmo”, ele disse, rindo, “um judeu, claro.”
[1988]
Aharon Appelfeld mora a uns poucos quilômetros a oeste de Jerusalém, numa
espécie de labirinto de agradáveis casas de pedra, ao lado de um “centro de
absorção”, onde imigrantes recém-chegados moram, estudam e são preparados
para a vida na nova sociedade. A viagem atribulada que levou Appelfeld até as
praias de Tel Aviv em 1946, aos catorze anos de idade, parece haver despertado
nele um fascínio insaciável por todas as almas desarraigadas, e na mercearia local
onde ele e os moradores do centro de absorção fazem suas compras, Appelfeld
com freqüência puxa conversa com judeus etíopes, russos ou romenos, ainda
vestidos de modo apropriado ao clima de um país para o qual nunca mais hão de
voltar.
A sala de visita do apartamento duplex é mobiliada de modo simples: algumas
cadeiras confortáveis, livros em três idiomas nas estantes e, nas paredes, os
desenhos admiráveis feitos na adolescência pelo filho mais velho do casal, Meir,
que agora está com 21 anos e, desde que terminou o serviço militar, estuda arte
em Londres. Yitzak, aos dezoito anos, recentemente concluiu o secundário e está
agora no primeiro dos três anos de serviço militar compulsório. Aos doze anos,
Batya ainda mora com os pais, uma menina inteligente com os cabelos escuros e
olhos azuis da mãe, uma judia argentina jovem e bem-humorada, Judith.
Appelfeld e a mulher parecem ter criado o tipo de lar tranqüilo e harmonioso
que toda criança deseja ter. Sou amigo de Aharon há quatro anos, e creio que
todas as vezes que o visitei na sua casa em Mevasseret Zion ocorreu-me a idéia de
que sua infância — ele fugiu de um campo de trabalho nazista, sozinho, e ficou
vagando pelas regiões primitivas da Ucrânia — é a mais terrível antítese desse
ideal doméstico que se pode imaginar.
Num retrato posado, uma fotografia de aspecto antigo tirada em Tchernovtsy,
Bucovina, em 1938, aos seis anos de idade — foto essa trazida para a Palestina
por parentes seus que sobreviveram —, Aharon Appelfeld é uma criança
burguesa delicadamente refinada, de olhar vivo, montada num cavalo de
brinquedo, com um belo traje de marinheiro. É impossível imaginar essa criança,
apenas 24 meses depois, tendo de enfrentar os rigores da sobrevivência por anos
como um menino sem pais, perseguido, na floresta. A inteligência viva sem
dúvida é visível, mas onde está a astúcia robusta, o instinto animal, a tenacidade
biológica necessária para sobreviver a uma aventura terrível como essa?
O segredo permanece naquela criança tanto quanto no escritor em que ela se
transformou. Aos 55 anos, Aharon é um homem pequeno e compacto, que usa
óculos, tem um rosto perfeitamente redondo, uma cabeça perfeitamente calva e o
ar brincalhão e pensativo de um mago simpático. Não seria difícil para ele se
fazer passar por um mágico que diverte as crianças em festas de aniversário
tirando pombos da cartola — é mais fácil associar sua aparência afável e bondosa
com um trabalho como esse do que com a responsabilidade que parece motivá-lo
de modo implacável: reagir, com uma seqüência de narrativas perturbadoras —
ao mesmo tempo que ele estava passando a perna em camponeses e arranjando
comida no meio do mato —, ao desaparecimento de praticamente todos os
judeus do continente europeu, inclusive seus pais.
Seu tema, porém, não é o Holocausto, nem mesmo a perseguição dos judeus.
Aliás, a meu ver o que ele escreve não é ficção judaica, nem mesmo israelense.
Além disso, como Appelfeld é um cidadão judeu de um Estado judeu em que a
maioria da população é de imigrantes, tampouco se pode falar numa ficção de
exílio. E apesar de muitos de seus romances serem ambientados na Europa e
conterem ecos de Kafka, esses livros escritos em hebraico não são literatura
européia. Em última análise, tudo que Appelfeld não é termina sendo o que ele é
— um escritor deslocado, deportado, expropriado, desarraigado. Appelfeld é um
autor deslocado de obras deslocadas, que soube se apossar de modo
inconfundível do tema do deslocamento, da desorientação. Sua sensibilidade —
marcada quase desde o nascimento pelas caminhadas solitárias de um menino
burguês por um lugar-nenhum ameaçador — parece ter gerado de modo
espontâneo um estilo marcado por precisão, despojamento, progressão
atemporal e impulso narrativo coibido, o qual é uma insólita transposição para a
prosa da mentalidade deslocada. Tão singular quanto o tema é a voz, que se
origina numa consciência ferida, com um tom intermediário entre a amnésia e a
memória, e que situa a ficção narrada a meio caminho entre a parábola e a
história real.
Desde que nos conhecemos em 1984, eu e Aharon temos conversado por
horas a fio, normalmente caminhando pelas ruas de Londres, Nova York e
Jerusalém. Durante esse tempo, já o vi como um oráculo contador de casos e
folclorista fascinante, como um comentarista seco, lacônico e espirituoso, e como
um analista obsessivo dos estados de espírito judaicos — as aversões, ilusões,
lembranças e manias judaicas. Porém, como é comum acontecer em amizades
entre escritores, durante essas conversações peripatéticas quase não falamos
sobre nossas obras — isto é, até o mês passado, quando fui até Jerusalém para
conversar com ele sobre os seis dos quinze livros que ele publicou já traduzidos
para o inglês.
Depois da nossa primeira tarde de conversa, nos livramos do gravador que nos
atrapalhava e, embora eu tenha tomado algumas notas durante as caminhadas, o
que mais fizemos foi conversar tal como antes — perambulando pelas ruas da
cidade ou à mesa de um café onde paramos para descansar. Quando por fim
achamos que não havia muito mais a dizer, nos reunimos e tentamos sintetizar
no papel — eu em inglês, ele em hebraico — os pontos essenciais da discussão.
As respostas de Aharon às minhas perguntas foram traduzidas por Jeffrey Green.
Roth: Na sua ficção, vejo ecos de dois escritores da Europa Central de uma
geração anterior: Bruno Schulz, um judeu polonês que escrevia em polonês e foi
morto a tiros, aos cinqüenta anos de idade, pelos nazistas, em Drohobycz, uma
cidade da Galícia com uma grande população judaica, onde ele lecionava na
escola secundária e morava com a família; e Kafka, um judeu de Praga que
escrevia em alemão e que também viveu, de acordo com Max Brod, “enfeitiçado
no círculo familiar”, durante a maior parte dos seus quarenta e um anos de vida.
Você nasceu a oitocentos quilômetros a leste de Praga, duzentos quilômetros a
sudeste de Drohobycz, em Tchernovtsy. A sua família — próspera, muito
assimilada, de fala alemã — tinha algumas semelhanças culturais e sociais com a
de Kafka e, tal como Schulz, você, juntamente com sua família, sofreu na pele o
horror nazista. A afinidade que me interessa, porém, não é biográfica, e sim
literária, e embora eu veja sinais dela em toda a sua obra, isso fica
particularmente claro em The age of wonders. A cena inicial, por exemplo, em
que vemos uma mãe e seu filho de doze anos, que a adora, numa confortável
viagem de trem, voltando para casa após as idílicas férias de verão, faz pensar em
cenas semelhantes nas narrativas de Schulz. E algumas páginas depois, temos
uma surpresa kafkiana quando o trem pára inesperadamente em frente a uma
serraria velha e escura, e as forças de segurança ordenam que “todos os
passageiros austríacos que não são cristãos de nascença” se registrem no
escritório da serraria. Isso me faz pensar em O processo — e também em O
castelo —, onde há no início uma ameaça ambígua à situação legal do
protagonista. Até que ponto você considera Kafka e Schulz importantes para a
sua imaginação?
Appelfeld: Descobri Kafka aqui em Israel nos anos 50, e como escritor senti
ter muita afinidade com ele desde o primeiro contato. Ele me falava na minha
língua materna, o alemão — não o alemão dos alemães, mas o alemão do império
dos Habsburgo, de Viena, Praga e Tchernovtsy, com seu tom especial, o qual,
aliás, os judeus se esforçavam muito para criar.
Para minha surpresa, ele me falava não apenas na minha língua materna mas
também numa outra língua que eu conhecia de modo íntimo: o idioma do
absurdo. Eu sabia sobre o que ele estava falando. Para mim, não era um idioma
secreto, eu não precisava de explicações. Eu havia saído dos campos de
concentração e das florestas, de um mundo em que o absurdo se concretizava, e
nada desse mundo me era estranho. O que me surpreendia era: como podia um
homem saber tanto, de modo tão detalhado, a respeito de um mundo que ele não
conhecera?
Outras descobertas surpreendentes se seguiram: a maravilha de seu estilo
objetivo, sua preferência pela ação em detrimento da interpretação, sua clareza e
precisão, seu olhar amplo e abrangente, carregado de humor e ironia. E, como se
isso não bastasse, uma outra descoberta me mostrou que por trás da máscara do
homem desarraigado, sem lar, havia um judeu como eu, criado numa família
semi-assimilada, cujos valores judaicos haviam perdido seu conteúdo e cujo
espaço interior era árido e mal-assombrado.
O maravilhoso é que essa aridez não o levava a negar ou odiar a si próprio, e
sim lhe inspirava uma espécie de curiosidade tensa de todos os fenômenos
judaicos, especialmente os que diziam respeito aos judeus da Europa Oriental, o
idioma iídiche, o teatro iídiche, o chassidismo, o sionismo, até mesmo o ideal de
se estabelecer na Palestina, ainda sob o Mandato Britânico. Esse é o Kafka dos
diários, que não são menos empolgantes do que sua ficção. Encontrei uma
manifestação palpável do envolvimento de Kafka com o judaísmo na sua letra em
hebraico, pois ele havia estudado o idioma e o conhecia. Sua letra é límpida e
extraordinariamente bela, demonstrando esforço e concentração tanto quanto
sua letra em alemão, mas a letra em hebraico tem a aura adicional do amor pelas
letras isoladas.
Kafka me revelou não apenas o plano do mundo absurdo mas também os
encantos de sua arte, de que eu, como judeu assimilado, tinha necessidade. Os
anos 50 foram anos de busca para mim, e as obras de Kafka iluminaram o
caminho estreito que tentei abrir. Kafka emerge de um mundo interior e tenta
encontrar um ponto de apoio na realidade, e eu vinha de um mundo de realidade
empírica detalhada, os campos de concentração e as florestas. Meu mundo real ia
muito além do poder da imaginação, e minha tarefa como artista não era
desenvolver minha imaginação, mas contê-la, e mesmo assim a tarefa me parecia
impossível, pois tudo era tão inacreditável que eu mesmo parecia fictício.
De início, tentei fugir de mim mesmo e das minhas lembranças, viver uma
vida que não fosse a minha e escrever sobre uma vida que não fosse a minha.
Porém um sentimento oculto me dizia que eu não tinha permissão para fugir de
mim mesmo, e que se eu negasse a experiência da minha infância no Holocausto,
eu ficaria espiritualmente deformado. Foi só quando cheguei aos trinta anos que
me senti livre para abordar aquelas experiências como artista.
Infelizmente, conheci a obra de Bruno Schulz tarde demais, quando minha
abordagem literária já estava bem formada. Senti e ainda sinto uma grande
afinidade com sua obra, mas não a mesma que sinto em relação a Kafka.
Roth: Nos seus seis livros que já foram traduzidos para o inglês, The age of
wonders é aquele em que um contexto histórico identificável é delineado de
modo mais preciso. O pai do narrador, que é escritor, é admirador de Kafka;
além disso, ficamos sabendo que ele participa de um debate intelectual a respeito
de Martin Buber; sabemos também que ele é amigo de Stefan Zweig. Mas essa
especificidade, mesmo que não vá muito além dessas poucas referências a um
mundo externo, não é comum nos outros livros seus que li. Normalmente, o
sofrimento desaba sobre os seus judeus tal como uma desgraça esmagadora desce
sobre as vítimas de Kafka: de modo inexplicável, saindo do nada, numa
sociedade aparentemente desprovida de história e política. “O que é que eles
querem de nós?”, indaga um judeu em Badenheim 1939, depois de se registrar
como judeu no Departamento de Saneamento de Badenheim, um lugar um tanto
inusitado. “É difícil entender”, responde um outro judeu.
Não há notícias vindas da esfera pública que pudessem servir de alerta às
vítimas das suas narrativas, e a desgraça iminente dessas vítimas não é
apresentada como parte de uma catástrofe européia. O significado histórico é
dado pelo leitor, o qual, ao contrário das vítimas, tem consciência da magnitude
do mal que tudo devora. A sua reticência como historiador, aliada à perspectiva
histórica do leitor informado, explica o impacto peculiar da sua obra, o poder
que emana das narrativas contadas através de recursos tão modestos. Além disso,
ao omitir o sentido histórico dos eventos e deixar o pano de fundo fora de foco,
você provavelmente consegue aproximar-se da sensação de desorientação
vivenciada pelas pessoas que não tinham consciência de que estavam à beira de
um cataclismo.
Ocorre-me que o ponto de vista dos adultos na sua ficção lembra, em suas
limitações, o ponto de vista de uma criança, a qual não tem um calendário
histórico em que localizar os eventos que se desenrolam, tampouco recursos
intelectuais que lhe permitam chegar a seu significado. Eu me pergunto se a sua
própria consciência como criança às vésperas do Holocausto não se reflete na
simplicidade com que o horror iminente é percebido nos seus romances.
Appelfeld: Você tem razão. Em Badenheim 1939 ignorei por completo a
explicação histórica. Parti do pressuposto de que os fatos históricos eram
conhecidos pelos leitores, os quais preencheriam as lacunas. Você também tem
razão, a meu ver, ao presumir que a minha visão da Segunda Guerra Mundial
tem algo da visão de uma criança, mas não tenho certeza se a atmosfera aistórica
de Badenheim 1939 deriva da visão infantil que preservei dentro de mim. As
explicações históricas perderam o interesse para mim desde que passei a me ver
como artista. E a experiência dos judeus na Segunda Guerra Mundial não foi
“histórica”. Nós entramos em contato com forças míticas arcaicas, uma espécie
de subconsciente obscuro cujo significado não conhecíamos, como aliás ainda
não conhecemos. Esse mundo parece racional (com trens, horários de partida,
estações e maquinistas), mas na verdade eram viagens da imaginação, mentiras e
trapaças, que só poderiam ter sido inventadas por impulsos irracionais
profundos. Eu não conseguia e ainda não consigo compreender os motivos dos
assassinos.
Fui uma vítima e tento compreender a vítima. Trata-se de um período de vida
abrangente e complexo com o qual estou tentando lidar há trinta anos. Não
idealizo as vítimas. A meu ver, em Badenheim 1939 também não há nenhuma
idealização. Por falar nisso, Badenheim é um lugar real, e estações de água como
essa havia por toda a Europa, lugares cheios de formalidades pequeno-burguesas
idiotas. Mesmo quando criança eu já percebia como elas eram ridículas.
Até hoje existe a crença generalizada de que os judeus são criaturas ágeis,
espertas e sofisticadas, cheias de sabedoria mundana. Mas não é fascinante ver
como foi fácil enganar os judeus? Com os truques mais simples, quase infantis,
eles foram reunidos em guetos, obrigados a passar fome por meses, estimulados
por falsas esperanças e por fim jogados em trens que os levariam à morte. Essa
ingenuidade era algo que eu tinha em mente ao escrever Badenheim. Nessa
ingenuidade encontrei uma espécie de destilação da humanidade. A cegueira e a
surdez dos judeus, sua preocupação obsessiva consigo próprios, é uma parte
integral de sua ingenuidade. Os assassinos eram práticos e sabiam exatamente o
que queriam. A pessoa ingênua é sempre um shlemazl, uma vítima clownesca do
destino, jamais percebendo os sinais de perigo quando eles ocorrem, se
confundido, se enrolando, e por fim caindo na armadilha. Essas fraquezas me
encantaram. Eu me apaixonei por elas. O mito de que os judeus governam o
mundo através de suas maquinações, pelo visto, continha um certo grau de
exagero.
Roth: De todos os seus livros traduzidos, Tzili é o que relata a realidade mais
dura e o sofrimento mais extremo. Tzili, uma criança simples, filha de uma
família judia pobre, fica sozinha quando os outros fogem da invasão nazista. O
romance relata suas aventuras horrendas como sobrevivente e a solidão
arrasadora que ela sofre em meio aos camponeses brutais para quem trabalha. O
livro me parece uma contraparte de O pássaro pintado, de Jerzy Kosinski.
Embora menos grotesca, Tzili é a história de uma criança assustada num mundo
ainda mais sinistro e árido que o de Kosinski, uma criança vivendo numa
situação de isolamento numa paisagem tão infensa à vida humana quanto a do
Molloy de Beckett.
Quando menino, você vagou sozinho tal como Tzili depois de fugir do campo
de concentração aos oito anos de idade. Eu me pergunto por quê, tendo
conseguido transformar sua própria vida num lugar desconhecido, escondendo-
se entre camponeses hostis, você resolveu imaginar uma menina como a
sobrevivente dessa provação. Será que nunca lhe ocorreu a idéia de não
ficcionalizar esse material, e sim apresentar suas experiências tal como foram
preservadas na sua memória, de modo tão direto quanto, por exemplo, as
narrativas de Primo Levi sobre o período que ele passou em Auschwitz?
Appelfeld: Jamais escrevi sobre as coisas tal como elas aconteceram. Todas as
minhas obras são de fato capítulos das minhas vivências mais pessoais, mas
mesmo assim não são “a história da minha vida”. As coisas que aconteceram
comigo na minha vida já aconteceram, já estão formadas, e o tempo as moldou e
lhes deu forma. Escrever as coisas tal como aconteceram é tornar-se escravo de
sua própria memória, que é apenas um elemento menor do processo criativo. A
meu ver, criar significa ordenar, classificar e escolher as palavras e o ritmo que
servem à obra. Os materiais são de fato extraídos da vida do autor, mas em
última análise a criação é uma criatura independente.
Tentei várias vezes escrever “a história da minha vida” na floresta, depois que
fugi do campo de concentração. Mas todas as minhas tentativas fracassaram. Eu
queria ser fiel à realidade e ao que realmente aconteceu. Porém a crônica que
resultava era um andaime frágil. O resultado era um tanto decepcionante, uma
história imaginária que não convencia. As coisas que são mais verdadeiras são
fáceis de falsificar.
A realidade, como você sabe, é sempre mais forte do que a imaginação
humana. Além disso, a realidade pode se dar ao luxo de ser inacreditável,
inexplicável, desproporcional. A obra criada, infelizmente, não tem esse direito.
A realidade do Holocausto transcendeu qualquer imaginação. Se eu
permanecesse fiel aos fatos, ninguém me acreditaria. Mas a partir do momento
em que escolho uma menina, um pouco mais velha do que eu era naquela época,
retiro “a história da minha vida” das garras poderosas da memória e entrego-a ao
laboratório criativo. Lá, a memória não é a única proprietária. Lá, é preciso haver
explicações causais, um fio que amarre todos os elementos. O excepcional só é
permitido se fizer parte de uma estrutura maior e contribuir para sua
compreensão. Fui obrigado a remover da “história da minha vida” todas aquelas
partes que eram inacreditáveis e apresentar uma versão mais crível.
Quando escrevi Tzili, eu tinha mais ou menos quarenta anos. Naquela época,
interessavam-me as possibilidades da ingenuidade na arte. É possível haver arte
moderna ingênua? Parecia-me que sem a ingenuidade que ainda se encontra nas
crianças e nos velhos, e até certo ponto em nós, a obra de arte seria defeituosa.
Tentei corrigir esse defeito. Só Deus sabe até que ponto consegui.
Roth: Badenheim 1939 já foi comparado a uma fábula, um sonho, um
pesadelo etc. Nenhuma dessas comparações torna o livro menos perturbador
para mim. Pede-se ao leitor — de modo enfático, a meu ver — que veja a
transformação de uma agradável estação de águas austríaca freqüentada por
judeus no sinistro palco da “relocalização” dos judeus para a Polônia como um
processo de algum modo análogo aos eventos que precedem o Holocausto de
Hitler. Ao mesmo tempo, a sua visão de Badenheim e de seus habitantes judeus
é, de modo quase impulsivo, extravagante e indiferente a questões de
casualidade. A questão não é que uma situação ameaçadora se desenvolve, como
acontece com freqüência na vida real, sem aviso prévio e sem lógica, e sim que
você é tão lacônico em relação a esses eventos que, creio eu, sua inescrutabilidade
se torna frustrante. Você se incomoda de abordar as dificuldades que sinto como
leitor dessa obra tão elogiada, que é talvez o seu livro mais famoso nos Estados
Unidos? Qual a relação entre o mundo ficcional de Badenheim e a realidade
histórica?
Appelfeld: Por trás de Badenheim 1939 há lembranças bem nítidas da
infância. Todo ano no verão, nós, como as outras famílias pequeno-burguesas,
íamos a uma estação de águas. Todo ano tentávamos encontrar um lugar
tranqüilo onde as pessoas não ficassem fofocando nos corredores, não trocassem
confidências nas esquinas, não se metessem na nossa vida e, é claro, não falassem
iídiche. Mas todo ano, como se estivéssemos sendo perseguidos, acabávamos
mais uma vez cercados de judeus, e isso deixava um gosto ruim na boca dos
meus pais, e os irritava bastante.
Muitos anos depois do Holocausto, quando comecei a reconstruir o período
da minha infância anterior ao Holocausto, percebi que essas estações de água
ocupavam um lugar muito específico nas minhas lembranças. Inúmeros rostos e
cacoetes corporais voltaram à vida. Verifiquei que o grotesco era tão presente
quanto o trágico. As caminhadas nos bosques e as refeições prolongadas faziam
as pessoas se reunir em Badenheim — para conversar e para trocar confissões. As
pessoas se permitiam não apenas usar roupas extravagantes mas também falar
com liberdade, às vezes de modo pitoresco. De vez em quando um marido perdia
sua linda esposa e de vez em quando se ouvia um tiro ao cair da tarde, sinal
inconfundível de um amor desapontado. É claro que eu poderia reunir esses
preciosos fragmentos de vida de modo que eles tivessem autonomia artística.
Mas como? Toda vez que tentava reconstruir essas estações de águas esquecidas,
eu tinha visões dos trens e dos campos de concentração, e minhas lembranças de
infância mais recônditas estavam manchadas com a fuligem daqueles trens.
O destino já estava escondido naquelas pessoas como se fosse uma doença
mortal. Os judeus assimilados construíram uma estrutura de valores humanistas
e contemplavam o mundo externo a partir dessa estrutura. Estavam convictos de
que não eram mais judeus e que tudo aquilo que se aplicava aos “judeus” não se
aplicava a eles. Essa confiança estranha os transformou em criaturas cegas, ou
quase cegas. Sempre adorei os judeus assimilados, porque era neles que o caráter
judaico, e também talvez o destino judaico, estava concentrado com maior força.
Em Badenheim tentei combinar cenas da minha infância com cenas do
Holocausto. A impressão que eu tinha era a de que precisava permanecer fiel
àqueles dois mundos. Ou seja, que eu não devia idealizar as vítimas e sim retratá-
las sob uma luz intensa, sem enfeitá-las, ao mesmo tempo que eu tinha de
apontar para o destino que estava escondido dentro delas, embora elas o
desconhecessem.
Trata-se de uma ponte muito estreita, sem grades, e é muito fácil cair dela.
Roth: Foi só ao chegar à Palestina, em 1946, que você entrou em contato com
o hebraico. Que efeito você imagina que isso teve sobre a sua prosa hebraica?
Você tem consciência de alguma ligação especial entre o modo como você
chegou ao hebraico e o modo como você escreve em hebraico?
Appelfeld: Minha língua materna era o alemão. Meus avós falavam iídiche. A
maioria dos habitantes de Bucovina, onde passei a infância, eram rutenos, e por
isso todos falavam ruteno. O governo era romeno, e todos eram obrigados a falar
romeno também. Quando estourou a Segunda Guerra Mundial, aos oito anos de
idade fui deportado para um campo de concentração na Transmistria. Depois
que fugi do campo, vivi entre os ucranianos, e assim aprendi ucraniano. Em
1944, fui libertado pelo exército soviético e trabalhei para os russos como
mensageiro, e foi assim que aprendi russo. Por dois anos, de 1944 a 1946, vaguei
por toda a Europa e aprendi outras línguas. Quando finalmente cheguei à
Palestina em 1946, minha cabeça estava cheia de línguas, mas a verdade é que eu
não tinha uma língua que fosse minha.
Aprendi o hebraico com muito esforço. É um idioma difícil, severo e ascético.
Sua base antiga é um provérbio do Mishná: “O silêncio é uma cerca para a
sabedoria”. O hebraico me ensinou a pensar, a poupar palavras, a não usar
adjetivos demais, a não intervir demais, a não interpretar. Eu digo que ele “me
ensinou”. Na verdade, são as exigências que o idioma faz. Se não fosse o
hebraico, acho difícil que eu tivesse conseguido encontrar o judaísmo. O
hebraico me ofereceu o âmago do mito judaico, seu modo de pensar e suas
crenças, desde os tempos bíblicos até Agnon. Trata-se de um fluxo caudaloso de
cinco mil anos de criatividade judaica, cheio de subidas e descidas: a linguagem
poética da Bíblia, a linguagem jurídica do Talmude e a linguagem mística da
Cabala. Essa riqueza às vezes é difícil de abordar. Por vezes somos sufocados pelo
excesso de associações, pela multiplicidade de mundos ocultos numa única
palavra. Mas não faz mal: são recursos maravilhosos. Você acaba achando neles
mais do que estava procurando.
Como a maioria dos outros meninos que vieram para este país como
sobreviventes do Holocausto, eu queria fugir das minhas lembranças, da minha
condição de judeu, e construir uma imagem diferente para mim. Queríamos
mudar tudo — ser altos, louros, fortes, ser góis, com todas as características
visíveis dos góis. O hebraico também nos parecia uma língua de gentios, e é
talvez por esse motivo que nos apaixonamos por ela com tanta facilidade.
Foi então, porém, que uma coisa extraordinária aconteceu. Justamente o
idioma que víamos como um meio para mergulhar no esquecimento e nos
fundirmos com a celebração israelense da terra e de heroísmo, esse idioma me
pegou de surpresa e me levou, contra a minha vontade, para os recônditos mais
secretos do judaísmo. E desde então não saí mais de lá.
Roth: Vivendo nesta sociedade, você é bombardeado por notícias e disputas
políticas. No entanto, como romancista, você tem conseguido de modo geral
deixar de lado a turbulência cotidiana de Israel para abordar problemas judaicos
muito diferentes. Qual o significado dessa turbulência para um romancista como
você? Até que ponto o fato de você ser um cidadão dessa sociedade — que se
revela, se afirma, desafia e mitifica a si própria — afeta a sua vida de escritor?
Essa realidade que gera notícias exerce alguma tentação sobre a sua imaginação?
Appelfeld: A sua pergunta toca num ponto que é muito importante para mim.
É verdade, Israel está cheio de drama vinte e quatro horas por dia, e há pessoas
que se deixam levar e até mesmo inebriar por esse drama. Essa atividade
frenética não é apenas o resultado da pressão exterior. A inquietude judaica
também é um fator atuante. Tudo aqui está fervilhando, tudo é muito denso.
Fala-se muito, as controvérsias explodem. O shtetl* judeu não desapareceu.
Numa certa época, houve uma forte tendência antidiáspora aqui, uma repulsa
por tudo que era judeu. Hoje as coisas mudaram um pouco, embora este país seja
inquieto e ensimesmado, cheio de altos e baixos. Hoje, a redenção; amanhã, as
trevas. Os escritores também estão imersos nessa confusão. Os territórios
ocupados, por exemplo, são não apenas uma questão política mas também um
problema literário.
Cheguei aqui em 1946, ainda menino, porém com um ônus considerável de
vida e sofrimento. Durante o dia eu trabalhava em fazendas de kibutzim e de
noite estudava hebraico. Passei muitos anos perambulando por este país febril,
sentindo-me perdido e desorientado. Procurava a mim mesmo e o rosto dos
meus pais, que eu perdera no Holocausto. Nos anos 40, a gente tinha a sensação
de renascer aqui como judeu, e que portanto íamos nos transformar em algo de
maravilhoso. Toda visão utópica produz esse tipo de atmosfera. Não podemos
esquecer que isso foi logo depois do Holocausto. Ser forte não era apenas uma
questão de ideologia. “Nunca mais ser como carneiros levados ao abate”, era o
que gritavam os alto-falantes em cada esquina. Eu queria muito encontrar meu
lugar nessa enorme atividade e participar da aventura do nascimento de uma
nação. Ingênuo, eu acreditava que a ação silenciaria as minhas lembranças e que
eu haveria de florescer como os nativos, libertado do pesadelo judaico, mas o que
eu podia fazer? A necessidade — pode-se dizer que é uma necessidade — de ser
fiel a mim mesmo e às minhas lembranças de infância fazia de mim uma pessoa
distante, pensativa. Minhas ruminações me levavam de volta à região onde eu
nascera e onde ficava a casa dos meus pais. É essa a minha história espiritual, e é
a partir de lá que vou tecendo meus fios.
Do ponto de vista artístico, voltar para lá me dá um ponto de apoio e um
ponto de vista. Não sou obrigado a correr atrás dos eventos atuais e interpretá-
los imediatamente. Sem dúvida, os eventos cotidianos batem em todas as portas,
mas eles sabem que não deixo entrar na minha casa gente agitada demais.
Roth: Em To the land of the cattails, uma judia e seu filho adulto, cujo pai é
gentio, viajam de volta ao interior da Rutênia, onde ela nasceu. Estamos no verão
de 1938. Quanto mais se aproximam da casa dela, maior a ameaça da violência
dos gentios. A mãe diz ao filho: “Eles são muitos, e nós somos poucos”. Então
você escreve: “A palavra gói surgiu dentro dela. Ela sorriu como quem ouve uma
lembrança distante. Seu pai às vezes, mas só de vez em quando, usava essa
palavra para se referir a uma obtusidade irremediável”.
Os gentios com que os judeus dos seus livros convivem costumam ser a
própria encarnação da obtusidade irremediável e de um comportamento social
ameaçador e primitivo — o gói como o bêbado que bate na mulher, o semi-
selvagem grosseiro e brutal que “não sabe se controlar”. Embora seja óbvio que
há mais a ser dito a respeito do mundo não-judaico nas províncias em que se
passa o seu livro — e sobre a capacidade dos judeus, em seu próprio mundo, de
também serem obtusos e primitivos —, até mesmo um europeu não-judeu teria
de reconhecer que o poder dessa imagem sobre a imaginação judaica tem suas
raízes na experiência concreta. Por outro lado, por vezes o gói é retratado como
“uma alma telúrica... transbordando saúde”. Uma saúde invejável. Como diz a
mãe em Cattails, referindo-se a seu filho meio-gentio: “Ele não é nervoso como
eu. Um sangue diferente, mais tranqüilo, flui nas veias dele”.
Eu diria que é impossível saber alguma coisa sobre a imaginação judaica sem
investigar o lugar que o gói ocupa na mitologia folclórica, o qual é explorado nos
Estados Unidos, em um nível, por comediantes como Lenny Bruce e Jackie
Mason e, num nível bem diferente, pelos romancistas judeus. O retrato do gói
mais unilateral que aparece na ficção norte-americana está em O ajudante, de
Bernard Malamud. O gói é Frank Alpine, um ladrão fracassado que assalta a
mercearia do judeu, Bober, que está à beira da falência, depois tenta estuprar a
filha estudiosa de Bober e por fim, convertendo-se ao judaísmo melancólico de
Bober, simbolicamente renuncia à selvageria dos góis. O protagonista do
segundo romance de Saul Bellow, A vítima, um judeu nova-iorquino, é
atormentado por um gentio desajustado e alcoólatra chamado Allbee, um
vagabundo da mesma espécie que Alpine, embora sua maneira de atacar a
equanimidade duramente conquistada de Leventhal seja intelectualmente mais
sofisticada. Porém o gentio mais impressionante de toda a obra de Bellow é
Henderson — o rei da chuva, explorador de si próprio que, para recuperar a
saúde mental, leva seus instintos atrofiados à África. Para Bellow, tanto quanto
para Appelfeld, a verdadeira “alma telúrica” não é o judeu, e a busca da
restauração das energias primitivas, relatada na narrativa, não é uma busca
judaica. Não só para Bellow e Appelfeld como também, surpreendentemente,
para Mailer — todos nós sabemos que, em Mailer, quando um homem é um
agressor sexual sádico, seu nome é Sergius O’Shaugnessy; quando ele vive
batendo na esposa, ele se chama Stephen Rojack, e quando é um assassino
perigoso nunca se chama Lepke Buchalter nem Gurrah Shapiro, e sim Gary
Gilmore.
Appelfeld: O lugar do não-judeu na imaginação judaica é uma questão
complexa, por trás da qual há gerações de medo judaico. Qual de nós ousa
assumir o ônus da explicação? Vou me limitar a umas poucas palavras, a partir
da minha experiência pessoal.
Falei em medo, mas o medo não era uniforme, e não era dirigido a todos os
gentios. Na verdade, havia uma certa inveja do não-judeu no fundo do coração
do judeu moderno. O não-judeu muitas vezes aparecia na imaginação judaica
como uma criatura livre, despida de crenças antigas e de obrigações sociais, que
levava uma vida natural em sua própria terra. O Holocausto, é claro, alterou
bastante o curso da imaginação judaica. A inveja foi substituída pela
desconfiança. Os sentimentos que antes eram explícitos se tornaram
subterrâneos.
Haverá um estereótipo do não-judeu na alma judaica? Sim, e ele é
freqüentemente representado pela palavra gói, mas trata-se de um estereótipo
pouco desenvolvido. Os judeus estão sob o impacto de tantas restrições morais e
religiosas que não podem manifestar tais sentimentos de modo espontâneo.
Entre os judeus nunca houve autoconfiança suficiente para expressar
verbalmente o grau de hostilidade que é bem possível eles terem sentido. Eles
eram racionais demais para isso, como tudo que a racionalidade tem de bom e de
mau. Toda hostilidade que se permitiam sentir era, paradoxalmente, voltada
contra si próprios.
O que me preocupava, e até hoje me perturba, é esse anti-semitismo do
próprio judeu, um velho mal judaico que em tempos modernos vem assumindo
manifestações diversas. Fui criado num lar judaico assimilado em que o alemão
era valorizado. O alemão era considerado não apenas uma língua mas também
uma cultura, e a atitude em relação à cultura alemã era quase religiosa. Vivíamos
cercados de judeus que falavam iídiche, mas na nossa casa o iídiche era
terminantemente proibido. Cresci sentindo que tudo que era judeu era
estigmatizado. Desde a minha primeira infância, meu olhar se voltava para a
beleza dos não-judeus. Eles eram altos e louros e se comportavam de modo
natural. Eram cultos e, quando não se comportavam como pessoas cultas, pelo
menos agiam com naturalidade.
Nossa empregada ilustrava bem essa teoria. Era uma mulher bonita, de formas
opulentas, e eu era apegado a ela. Para mim, para uma criança, era a própria
natureza, e quando ela fugiu com as jóias de minha mãe eu encarei o ocorrido
como apenas um erro perdoável.
Desde muito jovem eu me sentia atraído pelos não-judeus. Eles me fascinavam
com o que tinham de estranho, por serem tão altos e inatingíveis. No entanto, os
judeus também me pareciam estranhos. Levei anos para compreender até que
ponto meus pais haviam internalizado todo o mal que atribuíam aos judeus, e
que, através deles, eu também internalizara. Havia uma repulsa implacável
dentro de cada um de nós.
A mudança ocorreu quando fomos arrancados de nossa casa e expulsos para
os guetos. Então percebi que todas as portas e janelas dos nossos vizinhos não-
judeus se fecharam de repente, e caminhamos sozinhos pelas ruas vazias.
Nenhum dos nossos muitos vizinhos, com os quais tínhamos ligações, estava na
janela quando fomos expulsos carregando nossas malas. Digo “a mudança”, mas
isso não é toda a verdade. Eu tinha na época oito anos, e o mundo todo me
parecia um pesadelo. Depois, também, quando fui separado dos meus pais, eu
não entendia por quê. Passei a guerra inteira vagando de uma aldeia ucraniana a
outra, ocultando meu segredo: eu era judeu. Felizmente para mim, eu era louro e
não despertava suspeitas.
Levei anos para me aproximar do judeu que havia dentro de mim. Tive de me
livrar de muitos preconceitos interiores e conhecer muitos judeus para me
encontrar neles. O anti-semitismo judaico foi uma criação original dos judeus.
Não conheço nenhuma outra nação tão cheia de autocrítica. Mesmo depois do
Holocausto, os judeus não se consideravam inocentes. Pelo contrário,
comentários ácidos foram dirigidos por judeus importantes contra as vítimas,
por não terem se protegido e não terem reagido. A capacidade dos judeus de
internalizar qualquer comentário crítico e condenatório e repreender a si
próprios é uma das maravilhas da natureza humana.
O sentimento de culpa se arraigou e encontrou refúgio em todos os judeus que
querem reformar o mundo, os diversos tipos de socialistas, anarquistas, mas
principalmente entre os artistas judeus. Dia e noite, a chama desse sentimento
gera horror, sensibilidade, autocrítica e por vezes autodestruição. Em suma, não
é um sentimento muito glorioso. Uma única coisa pode ser dita em seu favor: ele
só faz mal àqueles que o experimentam.
Roth: Em The immortal Bartfuss, Bartfuss pergunta, “com irreverência”, ao
ex-marido da sua amante moribunda: “O que fizemos nós, os sobreviventes do
Holocausto? Será que nossa grande experiência nos transformou de algum
modo?”. Essa é a pergunta que o romance de certo modo discute praticamente
em todas as páginas. Sentimos, na solidão, no anseio, no lamento de Bartfuss, em
sua tentativa perplexa de vencer seu próprio distanciamento, em sua avidez pelo
contato humano, em seus deslocamentos silenciosos pela costa de Israel e seus
encontros enigmáticos em cafés sujos, a agonia em que a vida pode se
transformar na esteira de uma grande catástrofe. A respeito dos sobreviventes
judeus que terminaram atuando no contrabando e no mercado negro na Itália
logo depois da guerra, você escreve: “Ninguém sabia o que fazer com as vidas que
tinham sido salvas”.
Minha última pergunta, que tem a ver com a preocupação que você expressa
em The immortal Bartfuss, é talvez excessivamente abrangente. Com base no que
você observou na condição de um jovem sem lar perambulando pela Europa
após a guerra, e no que você aprendeu desde que se mudou para Israel há quatro
décadas, você percebe algum padrão característico na experiência daqueles cuja
vida foi salva? Afinal, o que fizeram os sobreviventes do Holocausto, e de que
modo eles foram irremediavelmente modificados?
Appelfeld: Sim, essa é a dolorosa questão levantada no meu livro mais recente.
De modo indireto, tentei responder a essa sua pergunta no livro. Vou tentar
agora elaborar minha resposta. O Holocausto é o tipo de experiência monstruosa
que nos reduz ao silêncio. Qualquer procedimento, qualquer afirmação, qualquer
“resposta” é minúscula, sem sentido, por vezes ridícula. Até mesmo a maior das
respostas parece mesquinha.
Com sua permissão, vou dar dois exemplos. O primeiro é o sionismo. Sem
dúvida, a vida em Israel dá aos sobreviventes não apenas um refúgio como
também a sensação de que o mundo inteiro não é mau. Embora a árvore tenha
sido derrubada, a raiz não secou — apesar de tudo, continuamos vivos. No
entanto, essa satisfação não pode erradicar a sensação que tem o sobrevivente de
que é preciso fazer alguma coisa com essa vida que foi salva. Os sobreviventes
passaram por vivências que ninguém mais passou, e os outros esperam deles
alguma mensagem, alguma chave para compreender o mundo humano — um
exemplo humano. Porém, é claro, eles não têm como realizar as grandes tarefas
que lhes são impostas, e por isso acabam levando uma vida clandestina, fugindo
e se escondendo. O problema é que não existe mais nenhum lugar para se
esconder. O sentimento de culpa cresce de ano a ano e se torna, como em Kafka,
uma acusação. A ferida é profunda demais, e não há curativo que ajude. Nem
mesmo um curativo como o estado judaico.
O segundo exemplo é a postura religiosa. Paradoxalmente, como um gesto
dirigido a seus pais assassinados, muitos dos sobreviventes adotaram a fé
religiosa. Eu sei que conflitos interiores essa postura paradoxal implica, e eu a
respeito. Mas é uma postura nascida do desespero. Não nego a verdade do
desespero. Mas é uma posição sufocante, uma espécie de monasticismo judaico,
de autopunição indireta.
Meu livro não oferece a seu sobrevivente nem o consolo do sionismo nem o da
religião. O sobrevivente, Bartfuss, engoliu o Holocausto por inteiro e anda por aí
com ele em todos os seus membros. Ele bebe o “leite negro” do poeta Paul Celan,
de manhã, ao meio-dia e à noite. Não leva nenhuma vantagem em relação às
outras pessoas, mas mesmo assim não perdeu seu rosto humano. Pode não ser
muito, mas já é alguma coisa.
[1990]
Nascido em Praga em 1931, Ivan Klíma teve o que Jan Kott chama de “uma
formação européia”: já adulto, atuando como romancista, crítico e dramaturgo,
suas obras foram proibidas na Tchecoslováquia pelas autoridades comunistas (e
membros de sua família foram perseguidos e punidos junto com ele); e quando
menino, na condição de judeu, foi transportado com os pais para o campo de
concentração de Terezin. Em 1968, quando os russos invadiram a
Tchecoslováquia, ele estava no exterior, em Londres, a caminho da University of
Michigan, para ver uma montagem de uma de suas peças e lecionar literatura.
Quando terminou seu período de trabalho em Ann Arbor na primavera de 1970,
ele voltou para a Tchecoslováquia com a mulher e os dois filhos a fim de se
tornar um integrante do “punhado de admiráveis” — para usar as palavras de
um professor recentemente reincorporado à Universidade de Carlos, quando
almoçava comigo, referindo-se a Klíma e seu círculo —, um grupo cuja
persistente oposição ao regime tornava extremamente difícil a vida cotidiana de
cada um.
Dos romances e coletâneas de contos que publicou — cerca de quinze livros
ao todo —, os escritos após 1970 só foram editados legalmente no estrangeiro,
principalmente na Europa; apenas dois livros — que não estão entre suas
melhores obras — já vieram a lume nos Estados Unidos, onde a produção
literária de Klíma é praticamente desconhecida. Por coincidência, seu romance
Amor e lixo, inspirado em parte nos meses em que trabalhou em Praga, nos anos
70, como varredor de rua, foi publicado na Tchecoslováquia em fevereiro de
1990, no dia exato em que lá cheguei para visitá-lo. Ele foi me buscar no
aeroporto depois de passar a manhã numa livraria de Praga onde os leitores que
haviam acabado de comprar seu livro e queriam seu autógrafo formavam uma
fila que saía da loja e se estendia pela calçada. (Durante a semana que passei em
Praga, as maiores filas que vi foram nas sorveterias e nas livrarias.) A primeira
tiragem de Amor e lixo — seu primeiro livro publicado na Tchecoslováquia em
vinte anos — foi de 100 mil exemplares. Horas depois, Klíma ficou sabendo que
um segundo livro seu, uma coletânea de contos intitulada Má veselá jitra
[Minhas alegres manhãs], havia sido publicada naquele mesmo dia, também com
uma tiragem de 100 mil exemplares. Nos três meses seguintes depois de abolida a
censura, uma peça teatral sua foi montada, e foi ao ar uma outra escrita
especialmente para a televisão. Ainda este ano devem sair mais cinco livros de
Klíma.
Amor e lixo é a história de um escritor tcheco famoso e censurado que,
“cerceado pela proibição”, trabalha como varredor de rua, e que, por alguns anos,
sente-se livre do refúgio claustrofóbico de sua casa — da esposa que confia nele,
quer tornar as pessoas felizes e está escrevendo um texto sobre o auto-sacrifício;
dos dois filhos adolescentes que ele ama — nos braços de uma escultora mal-
humorada, sinistra e exigente, ela própria casada e mãe, a qual termina por
maldizê-lo e difamar a esposa que ele não consegue largar. Ele se sente
eroticamente dependente dessa mulher:
Nevou muito naquele inverno. Ela levava a filhinha às aulas de piano. Eu ia andando atrás delas, sem que
a menina se desse conta de mim. Afundava na neve recém-caída, pois não olhava por onde ia, só olhava
para ela, caminhando.
E então, como sempre, Klíma passou a relatar de modo muito mais detalhado a
situação de um escritor que lhe parecia muito mais séria que a dele.
Catorze anos depois de vê-lo pela última vez, a combinação de vivacidade e
impassibilidade de Ivan Klíma me pareceu surpreendentemente intacta, e sua
força permanecia a mesma. Embora seu corte de cabelo à Beatles esteja um
pouco mais curto do que nos anos 70, as feições acentuadas e a boca cheia de
dentes de carnívoro ainda me fazem pensar de vez em quando (principalmente
quando ele está alegre) que estou na presença de um Ringo Starr
intelectualmente muito desenvolvido. Ivan estivera no centro das atividades que
agora são conhecidas na Tchecoslováquia como “a revolução”, e no entanto não
demonstrava o menor sinal do cansaço que, segundo até mesmo os jovens
estudantes de literatura inglesa na universidade — assisti a uma aula sobre
Shakespeare lá —, os deixava totalmente esgotados, de modo que era para eles
um alívio poder estar de novo na sala de aula estudando mesmo um texto tão
difícil quanto as cenas iniciais de Macbeth.
Ivan demonstrou a força obstinada de seu temperamento durante um jantar
em sua casa, quando aconselhava um escritor amigo nosso a respeito do que ele
deveria fazer para conseguir a devolução do seu minúsculo apartamento de
quarto e sala, que fora confiscado pelas autoridades do final dos anos 70, no
tempo em que a polícia secreta o levou à pobreza e ao exílio. “Pegue a sua
mulher”, disse-lhe Ivan, “pegue os seus quatro filhos e vão procurar Jaroslav
Koran.” Jaroslav Koran era o novo prefeito de Praga; antes ele traduzia poesia do
inglês. À medida que a semana passava e eu conhecia ou ouvia falar das pessoas
nomeadas para cargos públicos por Václav Havel, comecei a achar que uma das
exigências mais importantes para participar do novo governo era ter traduzido
para o tcheco os poemas de John Berryman. Com exceção do pen Club,
nenhuma outra organização jamais teve tantos tradutores, romancistas e poetas
em posições de comando.
“Na sala de Koran”, prosseguiu Ivan, “vocês todos se deitem no chão e se
recusem a sair dali. Diga então a eles: ‘Sou escritor, tomaram meu apartamento e
eu quero que me devolvam’. Não implorem, não reclamem, simplesmente
fiquem deitados no chão e se recusem a sair dali. Em vinte e quatro horas você
vai conseguir um apartamento.” O escritor sem-teto — uma pessoa muito
espiritual e suave, que ao contrário de Ivan tinha envelhecido muito desde a
última vez que eu o vira, vendendo cigarros em Praga — só lhe deu em resposta
um sorriso triste, dando a entender, discretamente, que Ivan tinha enlouquecido.
Ivan virou-se para mim e disse, num tom perfeitamente natural: “Tem gente que
não tem estômago para essas coisas”.
Helena Klímová, mulher de Ivan, é uma psicoterapeuta que se formou numa
universidade clandestina administrada pelos dissidentes em diversas salas de
apartamentos durante a ocupação russa. Quando lhe perguntei de que modo seus
pacientes estavam reagindo à revolução e à nova sociedade por ela introduzida,
Helena respondeu, com seu jeito preciso, afável e sério: “Os psicóticos estão
melhorando e os neuróticos estão piorando”. “Como você explica isso?”,
perguntei. “Com toda essa nova liberdade”, ela me disse, “os neuróticos estão
terrivelmente inseguros. O que é que vai acontecer agora? Ninguém sabe. A
rigidez de antes era detestável, até mesmo para eles, é claro, mas também era
uma coisa confortadora e previsível. Havia uma estrutura. A gente sabia o que
esperar e o que não esperar. Sabia quem merecia confiança e quem se devia
odiar. Para os neuróticos, a mudança é muito perturbadora. De repente eles estão
num mundo cheio de escolhas.” “E os psicóticos? É mesmo possível eles estarem
melhorando?” “Acho que sim. Os psicóticos absorvem o estado de espírito
dominante. No momento, é entusiasmo. Todo mundo está feliz, e por isso os
psicóticos estão mais felizes ainda. Estão eufóricos. É muito estranho. Todo
mundo está sofrendo o choque da adaptação.”
Perguntei a Helena qual era a coisa a que ela tinha mais dificuldade de se
adaptar. Sem hesitação, ela respondeu que eram todas as pessoas que agora a
estavam tratando bem e que antes agiam de modo muito diferente — não fazia
muito tempo, ela e Ivan eram vistos com muita desconfiança pelos vizinhos e
colegas de trabalho que não queriam ter problemas. Surpreendeu-me a expressão
que vi no rosto de Helena, de irritação com a rapidez com que as pessoas que
antes eram tão cautelosas em relação a eles — ou mesmo abertamente críticas —
haviam se tornado simpáticas, porque nos anos em que as dificuldades eram
maiores ela sempre me impressionara por ser muitíssimo tolerante e equilibrada.
Os psicóticos estavam melhorando, os neuróticos estavam piorando e, apesar do
clima geral de entusiasmo entre as pessoas corajosas e decentes, o “punhado de
admiráveis”, algumas começavam a deixar aflorar um pouco aquelas emoções
envenenadas que, durante as décadas de resistência, elas foram obrigadas a
administrar com prudência, para manter a firmeza e a sanidade.
No dia seguinte à minha chegada a Praga, antes de eu e Ivan começarmos a
conversar, resolvi dar uma caminhada matinal pelas ruas do comércio perto da
Václavské námûstí, a larga avenida onde se reuniram pela primeira vez, em
novembro de 1989, as multidões que contribuíram para o sucesso da revolução.
Em poucos minutos, à frente de uma loja, encontrei umas setenta ou oitenta
pessoas rindo de uma voz que saía de um alto-falante. Com base nos cartazes e
inscrições do prédio, vi que, por acaso, eu havia encontrado a sede do Fórum
Cívico, o movimento de oposição liderado por Havel.
Esses passantes, pessoas que faziam compras e empregados dos escritórios
próximos, ao que parecia estavam ouvindo um comediante que se apresentava
no auditório lá dentro. Não falo tcheco, mas imaginei que fosse um comediante
— e dos mais engraçados — por causa do ritmo em staccato do seu monólogo,
das paradas, das mudanças de tom, que pareciam ter o fim explícito de fazer a
multidão ter convulsões de tanto rir, e as gargalhadas foram aumentando cada
vez mais até culminar, no auge da hilaridade, com uma explosão de aplausos.
Parecia o tipo de reação que se vê numa platéia de um filme de Chaplin. Através
de uma passagem, vi que havia uma outra multidão mais ou menos do mesmo
tamanho, também rindo, do outro lado do prédio do Fórum Cívico. Foi só
quando passei para o outro lado que compreendi o que estava acontecendo. Em
dois aparelhos de televisão colocados na janela da frente do Fórum Cívico, vi o
comediante em pessoa: visto em close, sentado sozinho diante de uma mesa de
conferências, lá estava o ex-secretário-geral do Partido Comunista da
Tchecoslováquia, Milos Jakes. Jakes, que havia sido derrubado no início de
dezembro de 1989, estava falando para uma reunião fechada de apparatchiks do
partido na cidade industrial de Pilsen, em outubro.
Eu sabia que era Jakes na reunião de Pilsen porque na véspera, na hora do
jantar, Ivan e seu filho, Michal, haviam me falado sobre esse videoteipe, que fora
gravado em segredo pela equipe da tv tcheca. Agora a fita passava o tempo todo
na sede do Fórum Cívico, e as pessoas que por ali transitavam durante o dia de
vez em quando paravam para desopilar o fígado. Eles estavam rindo de Jakes, da
sua retórica dogmática desprovida de humor, do tcheco primitivo e deselegante
que ele falava — as frases confusas e deploráveis, os disparates ridículos, os
eufemismos, as evasões e as mentiras, o imbecilês puro e simples que apenas
meses antes inspirava em tanta gente sentimentos de vergonha e repulsa. Michal
me dissera que, no réveillon, a Rádio Europa Livre havia exibido a gravação de
Jakes dizendo que era “o espetáculo mais engraçado do ano”.
Ao ver as pessoas voltarem para a rua sorrindo, pensei que aquele seria
certamente o objetivo mais elevado do riso, sua razão de ser sacramental:
enterrar o mal no ridículo. Parecia um bom sinal o fato de que tantos homens e
mulheres comuns (e adolescentes, e até mesmo crianças, que estavam na
multidão) reconheciam que um atentado contra seu idioma fora tão humilhante
e atroz quanto qualquer outra coisa. Ivan me disse depois que houve um
momento na revolução em que por alguns minutos o jovem representante do
movimento democrático húngaro se dirigiu a uma multidão enorme e terminou
pedindo desculpas por não falar muito bem o tcheco. Na mesma hora, unânimes,
meio milhão de pessoas gritou: “Você fala melhor do que o Jakes”.
Embaixo dos televisores viam-se dois dos cartazes que se encontravam por
toda parte, com o retrato de Václac Havel, cujo tcheco é exatamente o contrário
do falado por Jakes.
Ivan Klíma e eu passamos os dois primeiros dias conversando; depois, num
texto escrito, resumimos os pontos essenciais da nossa discussão.
Roth: Como foi passar todos esses anos sendo publicado em seu próprio país
em edições samizdat? A publicação clandestina de obras literárias sérias em
pequenas tiragens certamente encontra um público que é, de modo geral, mais
bem informado e intelectualmente mais sofisticado do que o grande público
tcheco. A publicação em samizdat, imagino eu, promove uma solidariedade
entre escritor e leitor que pode se tornar estimulante. Porém, por ser uma reação
limitada e artificial ao mal da censura, o samizdat termina sendo insatisfatório
para todos os envolvidos. Gostaria que você falasse sobre a cultura literária que
foi gerada aqui pelo samizdat.
Klíma: Você tem razão, a literatura em samizdat promove um tipo especial de
leitor. O samizdat tcheco teve origem numa situação de certo modo singular. O
Poder, sustentado por exércitos estrangeiros — o Poder instaurado pelas forças
de ocupação e cônscio de que só podia ser mantido pela vontade dessas forças de
ocupação —, temia as críticas. Ele também tinha consciência de que qualquer
forma de vida espiritual, em última análise, está voltada para a liberdade. É por
isso que não hesitava em proibir praticamente toda a cultura tcheca, em impedir
que os escritores escrevessem, que os pintores expusessem, que os cientistas —
especialmente os cientistas sociais — realizassem pesquisas independentes; ele
destruiu as universidades, nomeando, para a maioria dos cargos, acadêmicos que
eram fiéis servidores do regime. A nação, apanhada desprevenida nessa
catástrofe, aceitou tudo passivamente, pelo menos por algum tempo, assistindo
impotente ao desaparecimento, uma por uma, das pessoas que até então eram
respeitadas e em quem a nação depositava suas esperanças.
O samizdat foi surgindo aos poucos. No início dos anos 70, meus amigos
escritores que estavam proibidos de publicar se reuniam na minha casa uma vez
por mês. Entre eles estavam os principais criadores da literatura tcheca: Václav
Havel, Jirˇí Grusˇa, Ludvík Vaculík, Pavel Kohout, Alexandr Kliment, Jan
Trefulka, Milan Uhde e dezenas de outros. Dessas reuniões, líamos em voz alta
nossas novas obras para os outros; alguns, como Bohumil Hrabal e Jaroslav
Seifert, não vinham em pessoa, porém enviavam-nos suas obras para que as
lêssemos. A polícia começou a se interessar por essas reuniões; seguindo suas
instruções, a televisão produziu um curta-metragem que dava a entender que
perigosos conclaves conspiratórios estavam se realizando no meu apartamento.
Recebi ordem de cancelar as reuniões, mas decidimos bater à máquina nossos
textos e vendê-los pelo preço da cópia. Esse “comércio” foi assumido por um dos
melhores escritores tchecos, Ludvík Vaculík. Foi assim que começamos, com um
datilógrafo e uma máquina de escrever comum.
As obras eram impressas em edições de dez a vinte exemplares; o custo de um
exemplar era cerca de três vezes o preço de um livro normal. Em pouco tempo as
pessoas ficaram sabendo do que estávamos fazendo. Começaram a procurar esses
livros. Novas “oficinas” surgiram, nas quais eram copiados os exemplares não
autorizados. Ao mesmo tempo, os padrões gráficos foram melhorando. Por
meios clandestinos, conseguíamos encadernar os livros na encadernadora estatal;
muitos deles vinham acompanhados por ilustrações feitas por artistas
importantes, também proibidos de divulgar seu trabalho. Muitos desses livros
vão se tornar, se já não são, motivo de orgulho para os bibliófilos. Com o passar
do tempo, as tiragens foram aumentando, assim como o número de títulos e de
leitores. Quase toda pessoa que tinha a “sorte” de possuir um samizdat vivia
cercada de um círculo de pessoas interessadas em pedi-lo emprestado. Os
escritores logo foram seguidos por outros: filósofos, historiadores, sociólogos,
católicos não-conformistas, bem como fãs de jazz, música pop e música
folclórica, e escritores jovens que se recusavam a publicar em edições oficiais,
muito embora não estivessem proibidos. Dezenas de obras traduzidas
começaram a ser divulgadas dessa maneira, livros sobre política, religião, muita
poesia lírica e prosa meditativa. Coleções inteiras surgiram, com
empreendimentos editoriais notáveis — por exemplo, as obras reunidas, e
comentadas, do nosso maior filósofo contemporâneo, Jan Patoãka.
De início a polícia tentou impedir os samizdats, confiscando exemplares
individuais quando dava buscas em residências. Algumas vezes foram presos os
datilógrafos responsáveis, e alguns foram até mesmo condenados à prisão pelos
tribunais “livres”, porém cada vez mais o samizdat foi se tornando, do ponto de
vista das autoridades, um dragão de muitas cabeças como o das histórias de fada,
ou uma espécie de peste. O samizdat era indomável.
Ainda não temos estatísticas precisas, mas sei que havia aproximadamente
duzentos periódicos samizdat, e alguns milhares de livros. É claro que, quando
falamos de milhares de títulos, não se pode esperar que todos sejam de alta
qualidade, mas havia uma diferença fundamental entre o samizdat e o resto da
cultura tcheca: ele era independente tanto do mercado quanto da censura. Essa
cultura tcheca independente exercia uma forte atração sobre a geração mais
jovem, em parte por estar cercada da aura do proibido. Até que ponto essas obras
se difundiram é uma coisa que talvez seja descoberta em breve pelas pesquisas
científicas; nós estimamos que alguns dos livros tiveram dezenas de milhares de
leitores, e não podemos esquecer que muitos deles foram publicados por editoras
tchecas no exílio e depois trazidos ao país pelos caminhos mais tortuosos.
Também não devemos esquecer o papel importante desempenhado na
propagação da chamada “literatura não-censurada” pelas estações de rádio
estrangeiras Rádio Europa Livre e Voz da América. A Rádio Europa Livre
transmitia alguns dos mais importantes livros samizdat em formato de novela
radiofônica e tinha centenas de milhares de ouvintes. (Um dos últimos livros que
ouvi nessa estação foi Dálkovy´ vy´slech [Interrogações à distância], de Václav
Havel, uma obra notável que é não apenas um relato de sua vida mas também
uma exposição de suas convicções políticas.) Estou certo de que essa “cultura
clandestina” exerceu uma influência importante sobre os eventos revolucionários
de 1989.
Roth: Sempre achei que havia um certo romantismo no Ocidente a respeito da
“musa da censura” por trás da cortina de ferro. Eu chegaria mesmo a dizer que
havia escritores no Ocidente que por vezes invejavam a terrível pressão sob a
qual vocês escreviam, e a clareza da missão gerada por esse ônus: na sua
sociedade, vocês eram praticamente os únicos guardiões da verdade. Numa
cultura censurada, em que todos vivem uma existência dupla — a das mentiras e
a da verdade —, a literatura se torna responsável pela preservação da vida, dos
vestígios de verdade a que as pessoas se apegam. Creio que também é verdade
que numa cultura como a minha, em que nada é censurado mas em que os meios
de comunicação de massa nos inundam de falsificações idiotas da existência
humana, a literatura séria também é responsável pela preservação da vida, ainda
que a sociedade praticamente não lhe dê atenção.
Quando voltei de Praga aos Estados Unidos após minha primeira visita no
início dos anos 70, comparei a situação dos escritores tchecos com a nossa,
dizendo: “Lá, nada é permitido e tudo é importante; aqui, tudo é permitido e
nada é importante”. Mas qual o custo dessa situação em que tudo que vocês
escreviam era tão importante? Como você avalia o efeito destrutivo que a
repressão, que valorizou de tal modo a literatura, teve sobre os escritores que
você conhece?
Klíma: A sua comparação da situação dos escritores tchecos com a dos
escritores num país livre é uma fórmula que já repeti muitas vezes. Não sou
capaz de julgar o paradoxo da segunda parte da fórmula, mas a primeira exprime
de modo maravilhoso o paradoxo da nossa situação. Os escritores pagavam um
preço alto por essas palavras que ganhavam importância por causa das
interdições e das perseguições — a proibição da publicação estava ligada não
apenas à proibição de todas as atividades sociais mas também, na maioria dos
casos, à proibição da prática de qualquer trabalho para o qual os escritores
estavam qualificados. Quase todos os meus colegas que foram censurados
tinham que ganhar a vida como trabalhadores braçais. O trabalho de limpador
de janelas, que conhecemos no romance de Kundera [A insustentável leveza do
ser], na verdade não era muito comum entre os médicos, mas havia muitos
escritores, críticos e tradutores que ganhavam a vida dessa forma. Outros
trabalhavam como operários de construção do metrô, manejando guindastes,
fazendo escavações em sítios geológicos. Ora, pode parecer que esse tipo de
trabalho fosse uma experiência interessante para o escritor. E é mesmo, desde
que seja só por um tempo limitado e que haja alguma perspectiva de escapar de
uma rotina embrutecedora e desgastante. Quinze ou vinte anos desse tipo de
trabalho, desse tipo de exclusão, acaba afetando toda a personalidade. A
crueldade e a injustiça arrasaram por completo algumas das vítimas; outros
ficavam tão exaustos que simplesmente não conseguiam realizar mais nenhum
trabalho criativo. Os que assim mesmo conseguiram perseverar foram os que em
nome desse trabalho sacrificaram tudo: qualquer oportunidade de repouso e,
muitas vezes, de ter uma vida pessoal.
Roth: Desde que cheguei, percebi que Milan Kundera aqui é uma espécie de
obsessão entre os escritores e jornalistas com quem tenho conversado. Parece
haver uma controvérsia a respeito do suposto “internacionalismo” de Kundera.
Algumas pessoas me disseram que, nos dois livros que ele escreveu no exílio, O
livro do riso e do esquecimento e A insustentável leveza do ser, ele se dirige ao
público francês, ao público americano, e assim por diante, e que isso constitui
uma espécie de contravenção cultural, ou até mesmo uma traição. Na minha
opinião, pelo contrário, ele parece um escritor que, por estar morando no
estrangeiro, resolveu, de modo realista, que era melhor não fazer de conta que
estava vivendo no seu próprio país e que portanto precisava desenvolver uma
estratégia literária que fosse coerente com as suas complexidades atuais e não
com as do passado. Deixando de lado a questão da qualidade, a grande diferença
de abordagem entre os livros escritos na Tchecoslováquia, como A brincadeira e
Risíveis amores, e os produzidos na França, a meu ver, não representa uma perda
de integridade, muito menos uma falsificação de sua experiência, e sim uma
reação forte e inovadora a um desafio inevitável. Você poderia explicar quais os
problemas que Kundera representa para aqueles intelectuais tchecos que são tão
obcecados com o fato de que ele escreve no exílio?
Klíma: A relação deles com Kundera é de fato complicada, e eu gostaria de
afirmar desde o início que apenas uma minoria de tchecos tem alguma opinião a
respeito dos escritos de Kundera, pelo simples motivo de que seus livros não são
publicados na Tchecoslováquia há mais de vinte anos. A acusação de estar
escrevendo para os estrangeiros e não para os tchecos é apenas uma das muitas
críticas que são dirigidas a Kundera, e representa apenas uma parte de uma
crítica mais substancial — a de que ele perdeu seus vínculos com a terra natal.
Podemos deixar de lado a questão da qualidade, sim, porque a alergia a Kundera
é, de modo geral, produzida não pela qualidade de seus livros, e sim por uma
outra coisa.
Os defensores de Kundera — e eles são muitos aqui — explicam a antipatia
que ele desperta entre os intelectuais tchecos como uma atitude que não é rara
em relação aos nossos compatriotas mais famosos: inveja. Mas não vejo o
problema em termos tão simplistas. Posso mencionar muitos compatriotas
famosos, inclusive escritores (Havel aqui, Skvorecky´ no estrangeiro), que são
valorizados e até mesmo amados pelos intelectuais tchecos.
Usei a palavra alergia. Uma diversidade de fatores irritantes produz uma
alergia, e é difícil descobrir quais são os fatores cruciais. Na minha opinião, a
causa da alergia é, em parte, o que as pessoas consideram a maneira simplificada
e espetacular como Kundera apresenta sua experiência na Tchecoslováquia. Mais
ainda, a experiência que ele apresenta é, diriam eles, incoerente com o fato de
que ele próprio foi um filho mimado e premiado do regime comunista até 1968.
O sistema totalitário tem um impacto devastador sobre as pessoas, como o
próprio Kundera reconhece, mas as dificuldades da vida têm uma forma muito
mais complexa do que o que encontramos nas obras dele. Os que criticam
Kundera diriam que a visão por ele apresentada é o tipo de coisa que seria de se
esperar de um jornalista estrangeiro muito competente que tivesse passado
algumas semanas no nosso país. Essa imagem é aceitável para o leitor ocidental
porque confirma suas expectativas; ela reforça o conto de fadas sobre o bem e o
mal, que toda boa criança gosta de ouvir repetidamente. Mas para esses leitores
tchecos a nossa realidade não é um conto de fadas. Eles esperam, de um escritor
da estatura de Kundera, uma visão bem mais abrangente e complexa, uma
observação mais aprofundada de nossa vida. Sem dúvida, em seus livros Kundera
tem outros objetivos além de apresentar uma visão da realidade tcheca, mas esses
atributos de sua obra talvez não sejam tão relevantes para o público tcheco a que
me refiro.
Outra causa dessa alergia provavelmente tem a ver com o puritanismo de
alguns leitores tchecos. Ainda que na vida privada não se comportem de modo
muito puritano, eles tendem a ser mais exigentes a respeito da moralidade dos
escritores.
Por fim, há uma causa extraliterária, porém, que talvez seja a raiz do
problema. No momento em que Kundera atingia o auge de sua popularidade em
todo o mundo, a cultura tcheca estava enfrentando o sistema totalitário numa
luta encarniçada. Tanto os intelectuais que estavam aqui quanto os exilados
participaram dessa luta. Eles passaram por toda sorte de dificuldades:
sacrificaram sua liberdade pessoal, seus cargos profissionais, seu tempo, seu
conforto. Por exemplo, Josef Sˇkvorecky´ e sua mulher praticamente abriram
mão de sua vida pessoal para trabalhar, no exílio, pela literatura tcheca proibida.
Na opinião de muitas pessoas, Kundera teria se distanciado desse esforço. Sem
dúvida alguma, ele tinha esse direito — afinal, por que é que todo escritor deve se
tornar um guerreiro? —, e sem dúvida é possível também argumentar que ele fez
mais do que o bastante pela causa tcheca apenas escrevendo os livros que
escreveu. Enfim, tentei explicar a você, do modo mais franco, por que Kundera é
encarado em seu próprio país com muito mais hesitação do que no resto do
mundo.
Em sua defesa, gostaria de afirmar que existe uma espécie de xenofobia aqui
com o sofrimento dos últimos cinqüenta anos. Os tchecos acabaram se sentindo
muito possessivos em relação a seu sofrimento e, embora essa deformação seja
compreensível e natural, na minha opinião ela teve o efeito de denegrir
injustamente Kundera, que, sem dúvida alguma, é um dos maiores escritores
tchecos deste século.
Roth: Os escritores oficiais, ou oficializados, são um certo mistério para mim.
Será que todos eram ruins? Não havia nenhum escritor oportunista que fosse
interessante? Digo “oportunista” e não “sinceramente a favor do regime” porque,
ainda que possa ter existido tal coisa nos dez primeiros anos após a Segunda
Guerra Mundial, me parece claro que nos últimos dez anos todos os escritores
oficiais eram oportunistas. Por favor, me corrija se estou errado. E me diga
depois se era possível continuar sendo um bom escritor ao mesmo tempo que se
aceitavam os dirigentes oficiais e as regras impostas por eles. Ou será que as
obras eram automaticamente enfraquecidas e comprometidas por essa aceitação?
Klíma: É verdade que há uma diferença básica entre os escritores que
defendiam o regime nos anos 50 e aqueles que o defendiam depois da ocupação
de 1968. Antes da guerra, o que se chamava então de literatura esquerdista
desempenhou um papel relativamente importante. O fato de que o exército
soviético libertou a maior parte da república fortaleceu ainda mais a tendência
esquerdista; tiveram o mesmo efeito a lembrança de Munique e do modo como
as potências ocidentais abandonaram a Tchecoslováquia, apesar de todos os
tratados e promessas. A geração mais jovem, em particular, sucumbiu à ilusão de
que os comunistas iam construir uma nova sociedade, mais justa. Foi
precisamente essa geração que em pouco tempo passou a perceber a verdadeira
natureza do regime e contribuiu muito para o desencadeamento do movimento
da Primavera de Praga de 1968, e para a desmistificação da ditadura stalinista.
A partir de 1968, não havia mais motivo para ninguém — com exceção de um
punhado de fanáticos — continuar acreditando naquelas ilusões do pós-guerra.
O exército soviético havia mudado, do ponto de vista da Tchecoslováquia: se
antes era um exército de libertação, agora era uma força de ocupação, e o regime
que apoiava essa ocupação havia se transformado num bando de colaboradores.
Se o escritor não percebia essas mudanças, sua cegueira o impedia de ser
considerado um espírito criativo; se ele as percebia mas fingia não vê-las,
podemos então chamá-lo com justiça de oportunista — é talvez a palavra mais
delicada que podemos usar.
O problema, é claro, estava no fato de que o regime não durou apenas alguns
meses ou anos, e sim duas décadas. Isso implica que, fora algumas exceções — e
o regime perseguiu essas exceções com violência —, praticamente toda uma
geração de dissidentes, a partir do final dos anos 70, foi obrigada a emigrar.
Quase todos os que ficaram tinham de aceitar o regime de uma maneira ou de
outra, ou até mesmo apoiá-lo. A televisão e o rádio precisavam funcionar de
algum modo, as editoras tinham que cobrir papel com tinta. Até mesmo pessoas
perfeitamente decentes pensavam: “Se eu não ocupar esse cargo, ele vai ficar para
alguém pior do que eu. Se eu não escrever — e eu vou tentar passar pelo menos
um pouquinho de verdade para o leitor —, as únicas pessoas que vão escrever
serão aquelas dispostas a servir ao regime do modo mais servil e acrítico”.
Não quero dizer que todo mundo que publicou alguma coisa nos últimos
vinte anos é necessariamente um mau escritor. É verdade, também, que aos
poucos o regime foi tentando se apropriar de alguns escritores tchecos
importantes, e assim passou a publicar algumas de suas obras. Desse modo,
foram editados pelo menos uns poucos livros de Bohumil Hrabal e do poeta
Miroslav Holub (ambos fizeram autocríticas em público), bem como poemas do
prêmio Nobel Jaroslav Seifert, que assinou a Carta 77. Mas podemos afirmar de
modo categórico que o esforço de publicação, de passar por todas as armadilhas
montadas pela censura, constituiu um ônus pesado para muitos daqueles que
foram editados. Já comparei com todo o cuidado as obras de Hrabal — eu o
considero um dos maiores prosadores vivos da Europa — que saíram em
samizdat e foram editadas no estrangeiro com as que tiveram publicação oficial
na Tchecoslováquia. As mudanças que ele claramente foi obrigado a fazer pela
censura são, do ponto de vista da obra, monstruosas, no sentido mais preciso da
palavra. Muito pior que isso, porém, foi o fato de que muitos autores já levavam
em conta a censura de antemão e deformaram suas próprias obras — e,
conseqüentemente, a si próprios.
Foi só nos anos 80 que começou a surgir uma geração de escritores revoltados,
principalmente entre os mais jovens, pessoas ligadas ao teatro e compositores de
canções de protesto. Eles diziam exatamente o que pensavam e se arriscavam a
não ter suas obras divulgadas e até mesmo a perderem seu ganha-pão. Em parte,
é graças a eles que hoje temos liberdade na literatura — e não apenas na
literatura.
Roth: Depois da ocupação soviética da Tchecoslováquia, as editoras
americanas publicaram uma amostragem razoável de escritores tchecos
contemporâneos: dos que vivem no exílio, Kundera, Pavel Kohout, Sˇkvorecky´,
Jirˇí Grusˇa e Arnosˇt Lustig; dos que vivem na Tchecoslováquia, você, Vaculík,
Hrabal, Holub e Havel. É um número excepcional de representantes de um país
europeu pequeno — eu, por exemplo, não seria capaz de citar dez escritores
noruegueses ou dez escritores holandeses publicados nos Estados Unidos de
1968 para cá. É claro que o país que gerou Kafka tem uma importância especial,
mas a meu ver nem eu nem você acreditamos que isso explique a atenção que a
literatura tcheca vem recebendo no Ocidente. Vocês são lidos por muitos
escritores estrangeiros, que manifestam uma deferência incrível em relação à sua
literatura. Vocês são lidos, e suas vidas e obras cativaram os escritores ocidentais.
Já lhe ocorreu que tudo isso agora mudou e que no futuro o mais provável é que
vocês voltem a falar mais para si mesmos e menos para nós?
Klíma: Sem dúvida, o destino cruel desta nação, como já comentamos,
inspirou muitos temas fascinantes. Os escritores muitas vezes eram levados pelas
circunstâncias a viver experiências que jamais teriam vindo a conhecer em outra
situação, e que, quando eles escreveram sobre elas, devem ter parecido quase
exóticas para os leitores. Também é verdade que a literatura — ou a arte em geral
— era o único lugar em que ainda era possível se afirmar como indivíduo. Na
verdade, muitas pessoas criativas tornaram-se escritores exatamente por esse
motivo. Tudo isso vai passar, até certo ponto, muito embora eu acredite que há
uma aversão ao culto da elite na sociedade tcheca e que os escritores tchecos vão
sempre estar interessados pelos problemas cotidianos das pessoas comuns. Isso
se aplica aos grandes escritores do passado tanto quanto aos contemporâneos:
Kafka jamais deixou de ser um funcionário de escritório, nem Cˇapek deixou de
ser jornalista; Hasˇek e Hrabal passavam boa parte do tempo em bares
enfumaçados, tomando cerveja com os amigos. Holub nunca abandonou seu
trabalho de cientista e Vaculík evitava escrupulosamente tudo que o afastasse de
uma vida semelhante à do mais comum dos cidadãos. É claro que, à medida que
as mudanças ocorrem na vida social, os temas também vão mudando. Mas não
sei se isso necessariamente vai tornar nossa literatura menos interessante para os
estrangeiros. Creio que nossa literatura abriu um pouquinho os portões da
Europa, e mesmo do mundo, não apenas por causa de seus temas mas também
por causa de sua qualidade.
Roth: E dentro da Tchecoslováquia? Conheço pessoas que têm uma fome
insaciável de livros, mas depois que o fervor revolucionário diminuir, e a
sensação de unidade gerada pela luta se dissipar, será que vocês não vão se tornar
muito menos interessantes para os leitores daqui do que eram no tempo em que
lutavam para manter viva para eles uma língua que não fosse a dos jornais
oficiais, a dos discursos oficiais e a dos livros oficialmente aprovados pelo
governo?
Klíma: Concordo que a nossa literatura vai perder parte de seu atrativo
extraliterário. Mas muitos acreditam que esses atrativos secundários estavam
desviando tanto os escritores quanto os leitores para questões que na verdade
deveriam ser abordadas por jornalistas, sociólogos e cientistas políticos.
Voltemos ao que eu chamo de enredos instigantes oferecidos pelo sistema
totalitário. O triunfo da burrice, a arrogância do poder, a violência contra os
inocentes, a brutalidade policial, a crueldade que permeia a vida e gera colônias
penais e prisões, a humilhação do homem, a vida fundada em mentiras e
fingimento — essas histórias vão perder sua relevância, eu espero, muito embora
os escritores provavelmente ainda venham a retomá-las depois de algum tempo.
Mas a nova situação vai trazer novos temas. Para começar, quarenta anos de
sistema totalitário deixaram como legado um vazio material e espiritual, e
preencher esse vazio vai implicar dificuldades, tensões, decepções e tragédias.
Também é verdade que na Tchecoslováquia o amor aos livros tem uma
tradição muito profunda, que remonta à Idade Média, e mesmo com televisões
por toda parte é difícil encontrar uma família que não possua uma biblioteca
com bons livros. Muito embora eu não goste de fazer profecias, acredito que pelo
menos por ora a queda do sistema totalitário não vai transformar a literatura
num mero tema para conversas nas festas.
Roth: O escritor polonês Tadeusz Borowski afirmou que para escrever sobre o
Holocausto era necessário assumir a voz dos culpados, dos cúmplices, dos
implicados; foi o que ele fez em suas memórias fictícias escritas na primeira
pessoa, Poz˙egnanie z Maria˛ [Adeus a Maria]. Nessa obra Borowski pode até ter
adotado um grau de torpor moral mais terrível do que o que ele de fato sentiu
como prisioneiro em Auschwitz, precisamente a fim de revelar o horror de
Auschwitz de uma maneira que não seria possível para uma vítima totalmente
inocente. Sob o domínio do comunismo soviético, alguns dos escritores mais
originais da Europa Oriental que já li em inglês adotaram posicionamento
semelhante — Tadeusz Konwicki, Danilo Kisˇ e Kundera, por exemplo, para
mencionar apenas três escritores de nome com K, que saíram debaixo da barata
de Kafka para nos dizer que não existem anjos não contaminados, que o mal está
dentro tanto quanto fora. Seja como for, esse tipo de autoflagelação, apesar de
suas ironias e nuanças, não pode se libertar do elemento de culpa, do hábito
moral de situar a fonte do mal no sistema até mesmo no momento em que ela
examina o modo como o sistema contamina a mim e a você. Estamos
acostumados a ficar do lado da verdade, com todos os riscos que isso implica de
nos tornarmos moralistas, autocomplacentes, didáticos, fazendo
contrapropaganda movidos pelo sentimento do dever. Não estamos acostumados
a viver sem esse tipo de mal bem definido, reconhecível, objetivo. Eu me
pergunto o que acontecerá com a sua literatura — e com os hábitos morais que
nela estão embutidos — depois do desaparecimento do sistema: agora não há
mais “eles”, só eu e você.
Klíma: Essa pergunta me faz repensar tudo que eu disse até agora. Constato
que muitas vezes eu relato um conflito em que me defendo contra um mundo
agressivo, corporificado no sistema. Mas muitas vezes escrevo sobre o conflito
entre mim e o sistema sem necessariamente pressupor que o mundo é pior do
que eu. Eu diria que não apenas os escritores, mas todos nós, somos tentados a
enxergar as coisas em termos da dicotomia eu-mundo.
A questão não é se o mundo é visto como um mau sistema ou como
indivíduos maus, leis más ou má sorte. Nós dois poderíamos citar dezenas de
obras criadas em sociedades livres em que o protagonista é jogado de um lado
para o outro por uma sociedade má, hostil, incapaz de compreendê-lo, e desse
modo nos convencer de que não é só nesta parte do mundo que os escritores
caem na tentação de ver em termos do dualismo do bem e do mal o conflito
entre si mesmos — ou seus protagonistas — e o mundo que os cerca.
Imagino que as pessoas daqui habituadas a ver o mundo de modo dualista
certamente conseguirão encontrar uma outra manifestação do mal exterior. Por
outro lado, a mudança de situação talvez ajude alguns a sair desse ciclo em que
tudo que se faz é reagir à crueldade ou à estupidez do sistema, e a começar a
repensar o lugar do homem no mundo. E o que vai acontecer com os meus
escritos agora? Nos últimos três meses, ando ocupado com tantas outras
obrigações que me parece fantástica a idéia de que algum dia vou ter
tranqüilidade para escrever mais uma narrativa. Mas para não me esquivar da
sua pergunta — pensando no meu trabalho de escritor, o fato de que não vou ter
mais que me preocupar com um sistema social infeliz é algo que me inspira
alívio.
Roth: Kafka. Em novembro passado, quando as manifestações que resultaram
na criação de uma nova Tchecoslováquia estavam sendo dirigidas ao ex-
presidiário Havel aqui em Praga, eu estava dando um curso sobre Kafka numa
faculdade em Nova York. Os alunos leram O castelo, a história da tentativa
tediosa e infrutífera de K. de ser reconhecido como agrimensor pelo sujeito
dorminhoco, poderoso e inacessível que controla a burocracia do castelo, o
senhor Klamm. Quando apareceu no New York Times a foto de Havel sentado a
uma mesa de reunião, estendendo o braço para apertar a mão do primeiro-
ministro do antigo regime, eu mostrei a foto aos meus alunos. “Estão vendo?”, eu
disse. “Finalmente K. está se encontrando com Klamm.” Os alunos gostaram
quando Havel resolveu se candidatar à presidência — desse modo K. entraria no
castelo na condição de nada menos que sucessor do patrão de Klamm.
A ironia presciente de Kafka pode não ser a qualidade mais notável de sua
obra, mas pensar sobre ela é sempre fascinante. Ele está longe de ser um
fantasista a criar um mundo de sonho ou pesadelo que se oponha ao mundo
realista. Seus relatos afirmam com insistência que o que parece ser uma
alucinação inimaginável e um paradoxo absurdo é precisamente o que constitui a
nossa realidade. Em obras como A metamorfose, O processo e O castelo, ele relata
a formação de uma pessoa que termina por aceitar — tarde demais, no caso do
acusado Joseph K. — que o que parece insensato, ridículo e inacreditável,
desprezível demais para nosso senso de dignidade e nossa atenção, é
precisamente o que está acontecendo conosco: aquela coisa desprezível acaba
sendo o nosso destino.
“Não era sonho”, escreve Kafka, referindo-se aos momentos que se seguem
imediatamente ao despertar de Gregor Samsa, em que ele constata que não é
mais um responsável arrimo de família, e sim um inseto repugnante. O que é
sonho, segundo Kafka, é o mundo de probabilidades, de proporções, de
estabilidade e ordem, de causa e efeito — é o mundo confiável de dignidade e
justiça que lhe parece absolutamente fantástico. Como Kafka acharia graça da
indignação daqueles sonhadores que nos dizem todos os dias: “Eu não vim aqui
para ser insultado!”. No mundo de Kafka — e não apenas no mundo de Kafka —
a vida só começa a fazer sentido quando a gente se dá conta de que está aqui
justamente para isso.
Eu gostaria de saber que papel Kafka desempenhou na sua imaginação
durante o tempo em que você estava aqui para ser insultado. As autoridades
comunistas expulsaram Kafka das livrarias, bibliotecas e universidades na cidade
do próprio Kafka, e em toda a Tchecoslováquia. Por quê? O que os assustava? O
que os indignava? O que Kafka significava para aqueles de vocês que conhecem
sua obra bem e talvez até sintam uma forte afinidade com suas origens?
Klíma: Como você, eu estudei a obra de Kafka. Não faz muito tempo, escrevi
um longo ensaio sobre ele e uma peça sobre seu romance com Felice Bauer. Eu
formularia minha opinião sobre o conflito entre mundo onírico e mundo real na
obra de Kafka de um modo um pouco diferente. Diz você: “O que é sonho,
segundo Kafka, é o mundo de probabilidades, de proporções, de estabilidade e
ordem, de causa e efeito — é o mundo confiável de dignidade e justiça que lhe
parece absolutamente fantástico”. Eu substituiria a palavra “fantástico” pela
palavra “inatingível”. O que você chama de mundo de sonho era, para Kafka, o
mundo real, o mundo em que reinava a ordem, em que as pessoas, pelo menos
tal como ele acreditava, podiam gostar umas das outras, fazer amor, formar
famílias, cumprir suas obrigações de modo ordeiro — mas esse mundo era, para
ele, com seu senso de verdade quase mórbido, inatingível. Seus protagonistas
sofriam não por não poder realizar seus sonhos, mas porque não tinham força
suficiente para entrar da maneira certa no mundo real, cumprir suas obrigações
da maneira certa.
A pergunta sobre o motivo pelo qual Kafka foi proibido pelos regimes
comunistas é respondida numa única frase pelo protagonista de meu romance
Amor e lixo: o mais importante na personalidade de Kafka era sua honestidade.
Um regime fundado no logro, que exige que as pessoas finjam, que quer o
consentimento sem se importar com a convicção interior das pessoas que são
obrigadas a consentir, um regime que tem medo de todo mundo que pergunta
qual o sentido do que está fazendo, não pode permitir que se faça ouvir alguém
cuja veracidade era tão absoluta a ponto de se tornar fascinante, ou mesmo
assustadora.
Se você me perguntar o que Kafka representava para mim, voltamos à
pergunta da qual não estamos conseguindo nos afastar. No fundo, Kafka não era
um escritor político. Gosto de citar o registro que ele fez em seu diário em 21 de
agosto de 1914. É um registro muito breve. “A Alemanha declarou guerra à
Rússia. — À tarde, fui nadar.” Aqui o plano histórico, dos eventos que abalam o
mundo, e o plano pessoal estão exatamente no mesmo nível. Estou certo de que
Kafka escrevia movido apenas pela necessidade mais íntima de confessar suas
crises pessoais e desse modo resolver o que para ele era insolúvel em sua vida
pessoal — em primeiro lugar, o relacionamento com o pai e sua incapacidade de
passar de um certo limite nos relacionamentos com as mulheres. No meu ensaio
sobre Kafka, demonstro que, por exemplo, a máquina assassina do conto “Na
colônia penal” é uma imagem maravilhosa, passional e desesperada da condição
de estar casado ou noivo. Alguns anos depois de escrever essa história, ele
confidenciou a Milena Jesenská seus sentimentos sobre a idéia de os dois viverem
juntos:
Sabe, quando tento escrever alguma coisa [sobre nosso relacionamento] as espadas cujas pontas me
cercam num círculo começam pouco a pouco a se aproximar do corpo, é a tortura mais completa;
quando começam a roçar em mim já é tão terrível que imediatamente, ao primeiro grito, eu traio você, a
mim mesmo, a tudo.
a televisão, graças a sua influência generalizada, tem o potencial de dar a maior contribuição direta a um
renascimento moral. Isso, é claro, pressupõe [...] o estabelecimento de uma nova estrutura, não apenas
no sentido organizacional mas também no que diz respeito à responsabilidade moral e criativa da
instituição como um todo e de cada membro de sua equipe, especialmente os que ocupam posições de
comando. Vivemos num tempo em que a nossa televisão tem uma oportunidade única de tentar realizar
algo que não existe em lugar nenhum no mundo.
[1976]
Alguns meses depois que li Bruno Schulz pela primeira vez e decidi incluí-lo
na série “Escritores da outra Europa”, editada pela Penguin Books, fiquei
sabendo que quando o romance autobiográfico dele, Lojas de canela, foi lançado
em tradução inglesa há catorze anos, ele fora resenhado e elogiado por Isaac
Bashevis Singer. Como Schulz e Singer nasceram na Polônia, filhos de pais
judeus, com uma diferença de apenas doze anos — Schulz em 1892, na cidade de
Drohobycz, no interior da Galícia, e Singer em 1904, em Radzymin, perto de
Varsóvia —, telefonei para Singer, com quem eu já tivera um ou dois encontros
em situações sociais, e perguntei-lhe se ele gostaria de conversar comigo a
respeito de Schulz e da vida dos escritores judeus na Polônia durante as décadas
em que eles dois estavam lá, em período de formação artística. Nossa reunião se
deu no apartamento de Singer em Manhattan, no final de novembro de 1976.
Roth: Quando foi que você leu Schulz pela primeira vez, aqui ou na Polônia?
Singer: Eu o li pela primeira vez nos Estados Unidos. Devo confessar que,
como muitos escritores, sempre abordo com certa desconfiança um livro de
ficção de um autor que nunca li; como a maioria dos escritores não é muito boa,
quando me mandam um livro já parto do pressuposto que ele não vai ser grande
coisa. E fiquei surpreso assim que comecei a ler Schulz. Eu pensei: este aqui é um
escritor de primeira.
Roth: Você já conhecia Schulz de nome?
Singer: Não, eu nunca nem ouvira falar dele. Saí da Polônia em 1935. Na
época, Schulz não era bem conhecido — e se era conhecido, eu não sabia nada
sobre ele. Nunca tinha ouvido falar nele. A minha primeira impressão foi: este
homem escreve parecido com Kafka. Há dois escritores que, segundo se diz,
escrevem como Kafka. Um deles era Agnon. Ele dizia que nunca lera Kafka, mas
as pessoas têm certas dúvidas. Na verdade, ele leu Kafka, sim, não há dúvida
quanto a isso. Eu não diria que ele foi influenciado por Kafka; existe a
possibilidade de que duas ou três pessoas escrevam em estilos parecidos, dentro
do mesmo espírito. Porque nem toda pessoa é absolutamente singular. Se Deus
pôde criar um Kafka, Ele poderia ter criado três Kafkas se estivesse com vontade.
Mas quanto mais eu lia Schulz — talvez eu não devesse dizer isto — eu dizia: ele é
melhor do que Kafka. Alguns de seus contos têm mais força. Além disso, ele é
muito forte no absurdo, mas não de uma maneira ingênua, e sim inteligente. Eu
diria que entre Schulz e Kafka existe uma coisa que Goethe chama de
Wahlverwandtschaft, uma afinidade de almas que a própria pessoa escolhe. Pode
ter sido isso que ocorreu com Schulz, e talvez em parte com Agnon.
Roth: A impressão que eu tenho é que Schulz não conseguia afastar nada de
sua imaginação, inclusive as obras de outros escritores, em particular de um
escritor como Kafka, com o qual ele sem dúvida parece ter tido afinidades
importantes de origem e temperamento. Assim como em Lojas de canela ele
reimagina sua cidade nativa, Drohobycz, como um lugar mais terrível e mais
maravilhoso do que era na verdade — em parte, diz ele, para “se libertar das
torturas do tédio” —, ele reimagina fragmentos de Kafka para seus próprios fins.
Kafka pode ter lhe dado algumas idéias engraçadas, mas o indício mais forte de
que os objetivos dele são diferentes é talvez o fato de que no livro de Schulz o
personagem que se transforma em barata não é o filho, e sim o pai. Imagine
Kafka imaginando uma coisa dessas! Fora de questão. Algumas predileções
artísticas são semelhantes, mas elas estão associadas a desejos radicalmente
diferentes. Como você sabe, Schulz traduziu O processo para o polonês em 1936.
Eu me pergunto se Kafka alguma vez já foi traduzido para o iídiche.
Singer: Que eu saiba, não. Quando jovem, li muitos dos escritores da literatura
mundial em iídiche; se Kafka tivesse sido traduzido para o iídiche, isso teria
ocorrido nos anos 30 e eu ficaria sabendo. Imagino que não exista nenhuma
tradução para o iídiche. Ou então existe e eu não conheço, também é possível.
Roth: Você faz idéia de por que Schulz escrevia em polonês e não em iídiche?
Singer: O mais provável é que a família dele já fosse meio assimilada.
Provavelmente seus pais falavam polonês. Muitos judeus na Polônia — depois
que a Polônia se tornou independente, e mesmo antes disso — criaram os filhos
falando polonês. Isso aconteceu até mesmo na Polônia russa, mas especialmente
na Galícia, a parte da Polônia que pertencia à Áustria, onde os poloneses tinham
alguma autonomia e não eram culturalmente oprimidos. Era natural pessoas que
falavam polonês ensinarem os filhos a falar a língua. Se isso era bom ou mau, não
sei. Mas sendo o polonês, por assim dizer, sua língua materna, Schulz não tinha
opção, pois um escritor de verdade não escreve numa língua aprendida depois, e
sim na que ele fala desde a infância. E a força de Schulz, é claro, está na
linguagem. Eu o li primeiro em inglês e achei a tradução boa, e quando o li
depois em polonês vi essa força de modo muito claro.
Roth: Schulz nasceu na Polônia em 1892, filho de pais judeus. Você nasceu em
1904. Era raro um judeu polonês daquela geração escrever em polonês, ou em
iídiche, como você?
Singer: Havia vários escritores importantes entre os judeus que escreviam em
polonês, e todos nasceram mais ou menos nessa época, na década de 1890.
Antoni Słonimski, Julian Tuwim, Józef Wittlin — todos esses escritores tinham
mais ou menos essa idade. Eram escritores bons, talentosos, mas nada de
especial. Alguns, porém, eram muito fortes no uso do polonês. Tuwim era um
mestre do polonês. Słonimski era neto de Chaim Zelig Słonimski, o fundador do
jornal hebraico Hatsefira, de Varsóvia. Słonimski foi convertido ao catolicismo
pelos pais quando era criança, enquanto Tuwim e Wittlin permaneceram judeus,
se bem que só no nome. Não tinham quase nada a ver com os escritores em
iídiche. Meu irmão mais velho, Israel Joshua Singer, nasceu mais ou menos na
mesma época e era um escritor em iídiche conhecido na Polônia, e não tinha
ligação com nenhum desses dois escritores. Eu estava começando, na Polônia, e
sem dúvida não tinha nada a ver com eles. Nós, que escrevíamos em iídiche, os
encarávamos como pessoas que haviam deixado para trás suas raízes e sua
cultura para fazer parte da cultura polonesa, que nós considerávamos mais nova
e talvez menos importante que a nossa. Eles achavam que nós, que escrevíamos
em iídiche, estávamos escrevendo para gente ignorante, pobre, sem instrução,
enquanto eles escreviam para um público com formação universitária. Assim,
um grupo tinha bons motivos para desprezar o outro. Se bem que a verdade é
que eles não tinham escolha e nós não tínhamos escolha. Eles não falavam iídiche
e nós não falávamos polonês. Embora eu tenha nascido na Polônia, para mim o
polonês não era tão próximo quanto o iídiche. Eu falava polonês com sotaque.
Aliás, eu falo todas as línguas com sotaque.
Roth: Menos iídiche, imagino.
Singer: Também. Os Litvak dizem que eu falo iídiche com sotaque.
Roth: Eu queria que você falasse sobre Varsóvia nos anos 30. Schulz estudou
arquitetura em Lviv quando jovem, e então, pelo que sei, voltou para a Galícia,
para Drohobycz, onde ficou o resto da vida ensinando desenho na escola
secundária. Só saiu de Drohobycz em viagens curtas até os trinta e tantos anos,
quando então foi para Varsóvia. Que espécie de atmosfera cultural ele teria
encontrado em Varsóvia naquele tempo?
Singer: Duas coisas devem ser levadas em conta em relação a Schulz. Em
primeiro lugar, ele era uma pessoa extremamente modesta. O próprio fato de ter
ficado naquela cidadezinha, que era longe do centro de tudo, mostra como ele
era modesto, e também meio medroso. Ele se sentia como um caipira que tem
medo de vir para a cidade grande e se encontrar com pessoas que já são famosas.
Ele tinha medo, muito provavelmente, de que as pessoas fizessem troça dele, ou o
ignorassem. Acho que Schulz era uma pessoa muito nervosa. Sofria de todas as
inibições de que um escritor pode sofrer. Quando você olha para a foto dele, você
vê o rosto de um homem que nunca conseguiu encontrar paz na vida. Me diga,
senhor Roth, ele não era casado. Ele tinha namoradas?
Roth: Se podemos tirar alguma conclusão a partir dos desenhos dele, eu diria
que suas relações com mulheres eram estranhas. Um tema recorrente nos
desenhos que já vi é a mulher dominante e o homem submisso. Há uma
insinuação erótica sinistra, quase grosseira, em alguns desses desenhos —
homens pequeninos, em atitude de súplica, figuras que lembram o próprio
Schulz, e adolescentes distantes, seminuas, ou então balconistas voluptuosas,
excessivamente maquiadas. Esses desenhos me fazem pensar um pouco no
mundo erótico “trash” de outro escritor polonês, Witold Gombrowicz. Tal como
Kafka, que também jamais se casou, dizem que Schulz mantinha
correspondências longas e passionais com mulheres e que viveu boa parte de sua
vida erótica através do correio. Jerzy Ficowski, seu biógrafo, que escreveu a
introdução à edição da Penguin, diz que Lojas de canela começou como uma
série de cartas dirigidas a uma amiga íntima. Devem ter sido cartas incríveis.
Segundo Ficowski, foi essa mulher que convenceu Schulz — que era mesmo uma
pessoa profundamente inibida — a encarar essas cartas como obra literária. Mas
voltando a Schulz e a Varsóvia: como era a vida cultural lá quando ele chegou,
em meados dos anos 30? Qual era a atmosfera, a ideologia dominante entre
escritores e intelectuais?
Singer: Eu diria que eles tinham quase o mesmo movimento que temos hoje
— meio de esquerda. Isso era verdade com relação aos escritores judeus que
escreviam em polonês. Todos eram de esquerda ou eram considerados de
esquerda pelos escritores poloneses mais velhos, que encaravam esses judeus, na
verdade, como intrusos.
Roth: Isso porque eles escreviam em polonês?
Singer: Porque eles escreviam em polonês. Era como se eles dissessem: “Por
que diabo eles não escrevem lá no dialeto deles, em iídiche — o que é que eles
querem de nós, poloneses?”. Seja como for, nos anos 30 esses escritores judeus se
tornaram muito importantes, apesar de seus adversários. Primeiro, porque eram
muito bons, ainda que não fossem grandes escritores; segundo, porque eram de
esquerda, e era essa a tendência da época; e terceiro, porque eram cheios de
energia, publicavam muita coisa na revista Wiadomos´ci Literackie, escreviam
para o teatro de variedades etc. Às vezes esses escritores judeus escreviam coisas
que os judeus consideravam anti-semitas. É claro que eu não concordava que era
anti-semitismo, porque alguns críticos diziam a mesma coisa a meu respeito.
Embora eu escrevesse em iídiche, eles diziam: “Por que você escreve sobre
ladrões judeus e prostitutas judias?”. E eu respondia: “Querem que eu escreva
sobre ladrões espanhóis e prostitutas espanholas? Eu escrevo sobre os ladrões e as
prostitutas que conheço”.
Roth: Quando você escreveu um texto elogioso sobre Schulz em 1963, você fez
algumas críticas a ele. Você disse: “Se Schulz tivesse se identificado mais com seu
povo, talvez não tivesse gastado tanta energia em imitações, paródias e
caricaturas”. Eu queria saber se você tem mais a dizer sobre isso.
Singer: Era o que eu sentia na época, e acho que continuo sentindo o mesmo.
Há muito deboche nos escritos de Schulz e nos de Kafka, se bem que em Kafka o
deboche é mais disfarçado. A meu ver, Schulz tinha potencial para escrever
romances de verdade, sérios, mas em vez disso escrevia coisas semelhantes a
paródias. E acho que, acima de tudo, ele desenvolveu esse estilo porque não se
sentia realmente em casa, nem entre os poloneses nem entre os judeus. É um
estilo que também caracteriza Kafka, porque Kafka também achava que não
tinha raízes. Era um judeu que escrevia em alemão e vivia na Tchecoslováquia,
onde o idioma local era o tcheco. É verdade que Kafka era talvez mais assimilado
do que Schulz — ele não morava numa cidade tão judia quanto Drohobycz, onde
viviam muitos chassídicos, e o pai dele era talvez mais assimilacionista que o pai
de Schulz, mas a situação era basicamente a mesma, e em termos de estilo os dois
escritores eram mais ou menos do mesmo tipo.
Roth: É possível encarar o “desarraigamento” de Schulz de outra maneira: não
como algo que o impedia de escrever romances sérios, e sim como uma
circunstância em que o talento e a imaginação que o caracterizavam puderam
florescer.
Singer: É verdade, sim. Se um talento genuíno não pode ser nutrido
diretamente do solo, ele vai encontrar nutrição em outro lugar. Mas do meu
ponto de vista, eu preferia que ele tivesse sido um escritor em iídiche. Ele não
precisaria ser o tempo todo tão negativo e zombeteiro.
Roth: Eu me pergunto se o negativismo e o deboche não seriam menos
importantes como fatores atuantes em Schulz do que o tédio e a claustrofobia.
Talvez o que desencadeia o que ele chama de “contra-ofensiva de fantasia” seja o
fato de que ele é um homem com um talento artístico imenso e com uma
imaginação prodigiosa trabalhando como professor secundário numa cidade de
província em que sua família é de comerciantes. Além disso, ele é filho de seu
pai, e seu pai, tal como ele o descreve, pelo menos nos últimos anos de vida era
um louco muito engraçado, mas também apavorante, um grande “heresiarca”,
fascinado, segundo Schulz, “por formas duvidosas e problemáticas”. Esta última
característica também se aplica ao próprio Schulz, que a meu ver me parece
inteiramente consciente do fato de que sua imaginação agitada o levava até a
fronteira da loucura, ou da heresia. Na minha opinião, no caso de Schulz, tanto
quanto no de Kafka, a maior dificuldade não era a incapacidade de se sentir à
vontade junto a este ou àquele povo, por mais que isso tenha aumentado seus
problemas. Com base nesse livro, a impressão que se tem é que Schulz mal
conseguia se identificar com a realidade, quanto mais com os judeus. Isso nos faz
pensar no comentário feito por Kafka sobre as suas afinidades comunitárias: “O
que é que tenho em comum com os judeus? Não tenho quase nada em comum
comigo mesmo, e por mim ficaria quietinho num canto, contente por poder
respirar”. Schulz não tinha por que ficar em Drohobycz se achava o lugar tão
sufocante assim. As pessoas podem fazer as malas e se mudar. Ele podia ter
ficado em Varsóvia quando finalmente chegou lá. Mas é possível que o ambiente
claustrofóbico que não atendia às necessidades do homem fosse precisamente o
que dava vida à espécie de arte que ele produzia. Uma de suas palavras prediletas
é “fermentação”. Talvez sua imaginação só pudesse fermentar em Drohobycz.
Singer: Além disso, acho que em Varsóvia ele tinha a sensação de que
precisava voltar para Drohobycz porque em Varsóvia todo mundo dizia: “Quem
é esse Schulz?”. Os escritores não costumam receber um jovem vindo do interior
e dizer imediatamente: “Você é nosso irmão, nosso mestre” — eles não
costumam agir assim. O mais provável é que tenham dito: “Mais um chato com
um original debaixo do braço”. E ainda por cima ele era judeu. E esses escritores
judeus da Polônia, que na verdade mandavam no mundo literário, eram
cautelosos sobre o fato de serem judeus.
Roth: Cautelosos em que sentido?
Singer: Eles eram chamados de judeus pelos adversários, por aqueles que não
gostavam deles. Essa era a acusação eterna. “O que é que o senhor está fazendo,
senhor Tuwim, com o seu nome hebraico, escrevendo em polonês? Por que o
senhor não volta para o gueto com Israel Joshua Singer e os outros?” Era assim.
De modo que, quando chegou mais um judeu escrevendo em polonês, eles não
ficaram muito contentes. Era mais uma criança-problema.
Roth: Imagino que fosse mais fácil se assimilar em círculos artísticos ou
intelectuais do que no mundo burguês de Varsóvia.
Singer: Eu diria que era mais difícil. Vou lhe explicar por quê. Um advogado
judeu, se não gostava de se chamar Levin ou Katz, podia passar a se chamar
Levinski ou Kacinski e ninguém o incomodava. Mas com um escritor, as pessoas
eram sempre cautelosas. Elas diziam: “Você não tem nada a ver conosco”. Acho
que a situação é um pouco semelhante até mesmo neste país, no caso dos
escritores judeus que escrevem em inglês e se sentem à vontade no inglês.
Nenhum escritor aqui seria capaz de dizer a Saul Bellow ou a você: “Por que você
não escreve em iídiche, por que você não volta para a East Broadway?”. Mas um
pouquinho disso ainda existe. A meu ver, existem alguns escritores ou críticos
conservadores aqui que diriam que pessoas como você no fundo não são
escritores americanos. Mas aqui os escritores judeus não têm vergonha nenhuma
de ser judeus, e não ficam o tempo todo pedindo desculpas. Lá, na Polônia, a
atmosfera era tal que era necessário pedir desculpas. Lá eles tentavam mostrar o
quanto eram poloneses. E é claro que tentavam conhecer o polonês melhor do
que os poloneses, e conseguiam. Mas mesmo assim os poloneses diziam que não
tinham nada a ver conosco... Deixe-me explicar melhor. Digamos que houvesse
um escritor gói, aqui e agora, que escrevesse em iídiche. Se esse gói fosse um
fracasso, a gente o deixaria em paz. Mas se ele fizesse um tremendo sucesso, nós
diríamos: “O que é que você está fazendo com o iídiche? Por que é que você não
volta para os góis? Nós não precisamos de você”.
Roth: Um judeu polonês da sua geração escrevendo em polonês seria uma
criatura quase tão estranha quanto essa?
Singer: Quase. E se houvesse muita gente assim, digamos seis góis escrevendo
em iídiche, quando aparecesse um sétimo...
Roth: É, ficou mais claro. Você conseguiu deixar mais claro.
Singer: Uma vez eu estava no metrô com o escritor iídiche S, que usava barba,
e naquela época, quarenta anos atrás, quase ninguém usava barba. Ele gostava de
mulheres, então ele olhou e viu uma moça sentada à sua frente, e pareceu ficar
bem interessado. Eu estava sentado perto dele e o vi — e ele não me viu. De
repente, perto deles chegou um outro homem, também barbudo, e começou a
olhar para a mesma mulher. Quando S viu o outro barbudo, ele se levantou e
saiu. De repente ele se deu conta do papel ridículo que estava fazendo. E essa
mulher, assim que o outro homem entrou, deve ter pensado: Mas que história é
essa? Duas barbas?
Roth: Você não usava barba.
Singer: Não, não. Será que eu preciso ter tudo? Careca e barba ainda por
cima?
Roth: Você saiu da Polônia em meados dos anos 30, alguns anos antes da
invasão nazista. Schulz permaneceu em Drohobycz, onde foi morto pelos
nazistas em 1942. Enquanto eu vinha para cá para conversar com você, fiquei
pensando que você, o escritor judeu da Europa Oriental com raízes mais
profundas no mundo judaico, mais ligado a ele, largou esse mundo e veio para a
América, onde os outros grandes escritores judeus da sua geração — judeus
muito mais assimilados, muito mais atraídos pelas correntes contemporâneas da
cultura maior, escritores como Schulz na Polônia, e Isaac Babel na Rússia, e na
Tchecoslováquia Jirí Weil, que escreveu alguma das histórias mais terríveis que já
li sobre o Holocausto — foram destruídos de uma ou outra maneira espantosa
pelo nazismo ou pelo stalinismo. Eu queria lhe perguntar — quem ou o quê
estimulou você a sair de lá antes que os horrores começassem? Afinal, exilar-se
da terra nativa e da língua materna é uma coisa que quase todos os escritores
encarariam com repulsa, e talvez só fizessem voluntariamente com muita
relutância. Por que você fez isso?
Singer: Eu tinha todos os motivos para ir embora. Em primeiro lugar, eu era
muito pessimista. Vi que Hitler já estava no poder em 1935, ameaçando invadir a
Polônia. Nazistas como Göring iam à Polônia para caçar e passar as férias. Em
segundo lugar, eu trabalhava para a imprensa iídiche, e a imprensa iídiche estava
sempre em declínio — ela está assim desde que surgiu. E comecei a levar uma
vida muito frugal —, as coisas estavam muito difíceis. E o mais importante era
que meu irmão estava aqui; ele tinha vindo dois anos antes de mim. Assim, eu
tinha todos os motivos para fugir para a América.
Roth: E ao sair da Polônia, você teve medo de perder o contato com o seu
material?
Singer: É claro, e esse medo se tornou ainda mais forte quando cheguei a este
país. Cheguei aqui e vi que todo mundo falava inglês. Uma vez fui a uma reunião
de chassídicos, crente que lá as pessoas iam falar iídiche. Mas eu entrei e
encontrei duzentas mulheres e ouvi uma palavra: “delicious, delicious, delicious”.
Eu não sabia o que a palavra queria dizer, mas iídiche é que não era. Não sei o
que foi que serviram a elas, mas as duzentas mulheres estavam dizendo:
“delicioso”. Aliás, delicious foi a primeira palavra inglesa que aprendi. Naquele
momento, a Polônia me pareceu muito distante. Quando morre uma pessoa que
é próxima a você, nas primeiras semanas depois da morte essa pessoa fica tão
distante de você quanto é possível se estar; é só com o passar dos anos que ela se
torna mais próxima, e aí chega um momento em que você está quase vivendo
com ela. Foi o que aconteceu comigo. A Polônia, a vida judaica na Polônia, está
mais próxima de mim agora do que estava naquela época.
Milan Kundera
[1980]
Esta entrevista é uma condensação de duas conversas que tive com Milan
Kundera depois de ler, ainda em manuscrito, uma tradução de sua obra O livro
do riso e do esquecimento. Uma das conversas ocorreu em Londres, país que ele
visitava pela primeira vez, e a outra na sua primeira viagem aos Estados Unidos.
Kundera na época vivia na França; desde 1975 ele e sua mulher moravam em
Rennes, onde ele lecionava na universidade, e mais tarde mudaram-se para Paris.
Durante nossas conversas, Kundera falava esporadicamente em francês, mas na
maior parte do tempo em tcheco, e sua mulher, Vera, atuava como intérprete.
Um texto final em tcheco foi traduzido para o inglês por Peter Kussi.
[1984]
A escritora irlandesa Edna O’Brien, que mora em Londres há muitos anos,
mudou-se recentemente para uma avenida larga, com imponentes fachadas
oitocentistas, uma rua que, quando foi aberta, na década de 1870, era famosa,
segundo ela, pelas amantes e mulheres teúdas e manteúdas que nela moravam.
Os agentes imobiliários começaram a se referir a esse trecho do bairro de Maida
Vale como “a Belgravia do futuro”; no momento, porém, ele mais parece um
canteiro de obras, porque muitos dos prédios estão sendo reformados.
O’Brien trabalha num escritório tranqüilo que dá para o gramado de um
imenso jardim particular nos fundos de seu apartamento, um jardim
provavelmente muito maior do que a aldeia de agricultores no condado de Clare
onde ela ia assistir à missa quando menina. No escritório há uma escrivaninha,
um piano, um sofá, um tapete oriental de um tom de cor-de-rosa mais escuro
que o do papel de parede marmorizado, e pelas janelas à francesa que dão para o
jardim vê-se uma quantidade de plátanos suficiente para encher um pequeno
parque. No console da ladeira há fotos dos dois filhos crescidos de O’Brien, que
se casou cedo — “Moro aqui mais ou menos sozinha” — e a famosa fotografia
lírica de Virginia Woolf, bem jovem, de perfil; a escritora inglesa é a protagonista
de uma peça de O’Brien, intitulada Virginia: a play. Na escrivaninha, virada para
o pináculo de igreja que aparece atrás do jardim, há um volume das obras
completas de j. m. Synge, aberto num capítulo de The Aran Islands; no sofá, um
volume da correspondência de Flaubert está aberto numa página que reproduz
uma carta a George Sand. Enquanto aguardava a minha chegada, ela autografava
exemplares de uma edição especial, com tiragem de 15 mil, de uma antologia de
seus contos, ouvindo uma gravação de coros empolgantes das óperas de Verdi
para se animar.
Como todas as suas roupas são negras, é impossível não reparar na pele alva,
nos olhos verdes, nos cabelos acaju. As cores não podiam ser mais irlandesas, tal
como a cadência melíflua de sua fala.
17 de janeiro de 1987
Cara Mary:
Obrigado por se estender tanto sobre meu livro. É claro que eu queria saber o
que você achava, e que foi por isso que enviei o livro a você, e acho ótimo você
ser tão franca comigo.
Para começar, a impressão que tenho é que você gostou de boa parte do livro,
praticamente de tudo até os dois últimos capítulos. Não vou tentar mostrar por
que a idéia estrutural não foi abandonada nos dois últimos capítulos, e sim
reafirmada e reforçada, porque eu teria de escrever demais e provavelmente
acabaria assumindo um tom professoral, que não gosto de adotar com ninguém,
muito menos com você.
De fato, sou conhecido (entre os judeus) por ser “um caso agudo de anti-anti-
semitismo”, como você mesma afirma ser, e também Zuckerman. Creio que
todas essas questões parecem ter envolvido você fora do contexto narrativo e das
preocupações temáticas do livro.
Vou discutir, um por um, cada ponto que você levanta.
1. A afirmação de Rahv de que todos os gentios são anti-semitas. Isso, é claro,
é exatamente o que dizem a Zuckerman em Agor [uma colônia judaica na
Cisjordânia]. Ele não concorda de modo algum com essa afirmação. Senão, como
poderia ter se casado com Maria Freshfield? Se bem que isso ainda é o de menos:
a questão é que sua experiência simplesmente depõe contra tal idéia. A ironia,
imaginei eu, era que, tendo sido exposto a uma espécie de retórica que ele não
acha nem um pouco convincente, Zuckerman volta a Londres e se defronta com
a irmã de Maria, com seu hino de ódio [anti-semita] e suas insinuações a respeito
[do suposto anti-semitismo] da mãe de Maria. Depois temos o incidente [anti-
semita] no restaurante e a conversa com Maria [a respeito do anti-semitismo dos
ingleses] que acaba degringolando por completo. Nada disso prova que todos os
gentios sejam anti-semitas, mas esses incidentes têm o efeito de fazer com que
Zuckerman — uma pessoa que encara com tanto ceticismo, para dizer o mínimo,
o manifesto de Lippman [em Agor] — tenha de lidar com um fenômeno que até
então não havia vivenciado pessoalmente, embora sem dúvida não fosse de
modo algum desconhecido no mundo (inclusive na Inglaterra). Eu queria que
Zuckerman ficasse desconcertado, fosse apanhado de mau jeito, aprendesse uma
lição. Eu queria que ele se sentisse ameaçado da perda da mulher que ele ama por
causa desse problema antigo, horrendo, asqueroso, que parecia haver se instalado
no seio da família de sua esposa. Com toda a franqueza, não vejo aqui nada que
possa ofender ninguém, e talvez não tenha sido isso o que ofendeu e irritou você.
2. “O Natal — ou seja, a idéia da Encarnação — não é apenas ódio aos judeus.”
Mas Zuckerman não diz isso. O que ele exprime (pela primeira vez numa obra de
ficção, que eu saiba) é o sentimento de muitos judeus diante desse tipo de coisa.
Com ou sem razão, Zuckerman se sente um pouco ofendido, e o que ele diz não é
bem o que você dá a entender. “Mas entre a devoção de igreja [não a Encarnação]
e mim há um abismo intransponível de sentimentos, uma incompatibilidade
natural e absoluta — sinto-me como um espião no campo do adversário e tenho
a impressão de estar testemunhando os rituais que encarnam a ideologia
responsável pela perseguição e os maus-tratos de que são vítimas os judeus. [...]
Essa religião me parece [...] profundamente inadequada, em particular quando os
congregantes observam os mais altos padrões de decoro litúrgico e os oficiantes
enunciam do modo mais belo a doutrina do amor.” (Os grifos foram
acrescentados por mim.) Ora, você pode achar que esse raciocínio não é lógico,
mas o fato é que mesmo um judeu inteligente é capaz de raciocinar exatamente
assim. Eu estava tentando ser sincero.
3. Você afirma que, “como pessoa não religiosa”, para você “o berço cercado
de anjos e de animais e da estrela é mais atraente” do que “o Muro das
Lamentações”. Aqui, mais uma vez, você e Zuckerman estão em desacordo.
Como pessoa não-religiosa, ele não prefere nem uma coisa nem outra. Ele não vê
motivos em favor da santificação de nenhum desses dois conjuntos de ícones e
símbolos ou sejam lá o que forem, considerados no todo. Além disso, Zuckerman
se comporta muito bem durante o culto em que são cantadas canções de Natal, e
portanto olha ao menos como você tentaria olhar para o Muro das Lamentações,
quando você afirma que pelo menos tentaria captar o sentido dele, por mais
repugnante que lhe pareça. A meu ver, você extrapolou (detesto essa palavra) ao
reagir a essas poucas observações, que ele próprio sabe que são determinadas
pelo fato de ele ser judeu, e mais nada. “E no entanto, judaicamente, eu
continuava pensando: afinal, para que é que eles precisam de toda essa história?”
As objeções dele no fundo são estéticas, não é verdade? “Ainda que, para ser
franco, o lugar em que o cristianismo sempre me pareceu se tornar
perigosamente, vulgarmente obcecado com o milagroso seja a Páscoa, a
Natividade a meu ver é páreo duro para a Ressurreição, em termos de atender de
modo escancarado às necessidades mais infantis.” Você diz que se indigna com a
imagem que eu apresento do cristianismo, e se isso indigna você, assim seja. Mas
você certamente compreende que a coisa não tem nada a ver, ou só muito pouco,
com “o ódio aos judeus”.
Agora, falando apenas como romancista (e sou muito mais romancista do que
judeu): se Zuckerman não tivesse ido à Judéia [onde fica Agor] e ouvido o que
lhe disseram lá, eu não teria escrito aquela cena na igreja, e ele não poderia
pensar esses pensamentos. Mas me pareceu justo... não, não é isso que eu quero
dizer: apenas me pareceu que uma cena pedia a outra. Eu não queria que todo o
ceticismo dele se centrasse no ritual judaico e deixasse de lado o cristão. Isso teria
implicações errôneas que o faria parecer ser o que ele não é, ou seja, um judeu
que odeia a si próprio e que — como se diz — só encara com frieza sua própria
gente.
4. “Por que fazer tanta questão de usar uma faca para transformar um menino
em judeu?” Contexto, contexto, contexto. Essa é a reação dele, agressiva e
irritada, quando lhe dizem que será necessário batizar seu filho para agradar à
mãe de Maria. O louvor à circuncisão surge em reação a essa ameaça. Se você
não quiser ouvir meus argumentos, ouça os de Maria. Na carta dela (que na
verdade foi escrita por Z., mas não vou entrar nessa discussão), ela escreve: “Se é
isso que determina para você a verdade da sua paternidade — que resgata para
você a verdade da sua própria paternidade — assim seja.” Nesse ponto eu estava
tendo pensamentos que dificilmente o leitor poderia acompanhar. Estava
pensando em Zuckerman e no pai dele, e na palavra “bastardo” que o velho
Zuckerman [em Zuckerman unbound] cochicha para Nathan antes de morrer. A
circuncisão do pequeno Z. anglo-americano é a maneira como o Z. grande e
americano resolve o problema por fim. A idéia foi minha, sem dúvida, mas foi
por aí.
Acho também que você não compreende como é séria para os judeus a
questão da circuncisão. Até hoje fico mesmerizado diante de homens que não
foram circuncidados quando os vejo no vestiário da minha piscina [em Londres].
Não consigo não reparar nessa bobagem. A maioria dos homens judeus que
conheço tem reações semelhantes, e quando eu estava escrevendo o livro
perguntei a vários amigos meus, judeus não-religiosos tal como eu, se eles seriam
capazes de não circuncidar seus filhos, e todos disseram que não, às vezes sem
nem mesmo ter que parar para pensar, e às vezes depois de fazer uma boa pausa,
como fazem todos os racionalistas antes de optar pelo irracional. Por que é que n.
z. é tão obcecado pela circuncisão? Espero que isso tenha ficado mais claro.
5. “Peço desculpas se essa discussão é desagradável para você.” Você só me
deveria desculpas se tivesse sido “agradável”.
Com estima,
Philip
Retratos de Malamud
“Fazer o luto é difícil”, disse Cesare. “Se as pessoas soubessem, morriam menos.”
Malamud, “A vida é melhor que a morte”
[1986]
Em fevereiro de 1961, viajei de Iowa City, onde estava lecionando na Oficina
de Escritores da universidade e terminando meu segundo livro, para dar uma
palestra numa pequena faculdade em Monmouth, Oregon. Um ex-colega meu
dos tempos da pós-graduação, que lecionava lá, arranjara esse convite para mim.
Aceitei-o, não apenas porque a viagem me dava a oportunidade de estar com Bob
Baker e sua mulher depois de cinco anos, mas também porque ele me prometera
que, se eu fosse, ele daria um jeito de me apresentar a Bernard Malamud.
Bern lecionava ali perto, na universidade estadual, em Corvallis. Estava
morando nessa cidade do Oregon (de 15 mil habitantes) desde que partira de
Nova York (8 milhões de habitantes), onde trabalhava como professor de
supletivo, em 1949 — estava, portanto, havia doze anos no Oeste ensinando
rudimentos de redação para calouros e escrevendo um romance nada ortodoxo
sobre beisebol, The natural; sua obra-prima, passada nas profundezas do
Brooklyn, O ajudante; e mais quatro ou cinco dos melhores contos americanos
que já li (e lerei). Os outros contos também não eram nada maus.
No início dos anos 50, eu lia os contos de Malamud, mais tarde reunidos em O
barril mágico, à medida que iam sendo publicados — no dia em que eram
publicados — na Partisan Review ou na antiga Commentary. A meu ver, ele
estava fazendo pelos judeus solitários e suas maneiras de fracassar, típicas dos
imigrantes e dos judeus — por aqueles malamudianos “que nunca paravam de
sofrer” — tanto quanto Samuel Beckett, em suas obras de ficção mais longas,
fazia pelos infelizes Molloy e Malone. Os dois escritores, embora mantivessem
vínculos de imaginação (ainda que não comunitários) com a vida comum de seu
povo, isolavam as memórias raciais do contexto social e histórico, e então,
concentrando-se tanto quanto possível na melancólica rotina cotidiana de
resistência vivida pelos mais impotentes de seus conterrâneos, criavam parábolas
de frustração embebidas da gravidade dos filósofos mais pessimistas.
Tal como Beckett, Malamud escrevia sobre um mundo empobrecido e
dolorido num idioma todo seu, um inglês que parecia — mesmo sem se levar em
conta os diálogos idiossincráticos — ter sido arrancado do barril menos mágico
que se poderia imaginar: as locuções, as inversões e a dicção dos imigrantes
judeus, um amontoado de ossos verbais quebrados que, até surgir Malamud para
fazê-los dançar ao som de sua melodia tristonha, pareciam só ter serventia para
os comediantes judeus e os profissionais da nostalgia. Mesmo quando ele levava
suas parábolas aos limites, as metáforas mantinham um sabor de provérbio. Nos
seus momentos de originalidade mais consciente, quando detectava, em suas
histórias passionais narradas do modo mais sóbrio, o momento exato em que
deveria fazer soar sua nota mais grave, Malamud apegava-se ao que parecia
antigo e despojado, utilizando a poesia menos enfeitada para tornar as coisas
ainda mais tristes do que já eram: “Ele tentou fazer algum comentário doce,
porém sua língua pendia na boca como uma fruta morta na árvore, e seu coração
era uma janela pintada de preto”.
O homem de 46 anos que conheci na casinha dos Baker em Monmouth,
Oregon, em 1961, em momento algum dava a entender que seria capaz de
escrever uma frase como aquela. À primeira vista, aos olhos de quem havia sido
criado por pessoas assim, ele parecia um corretor de seguros — poderia
perfeitamente passar por um dos colegas de meu pai do escritório local da
Metropolitan Life. Quando Malamud entrou no hall da casa dos Baker depois de
assistir a minha conferência e começou a retirar as galochas úmidas sobre o
capacho, o que vi foi um trabalhador consciencioso e bem-educado, o tipo de
pessoa que eu passara a infância ouvindo jogar conversa fora, um corretor de
seguros teimoso e experimentado que não foge do cachorro que rosna nem
assusta as crianças ao surgir, quando já anoiteceu, no alto da escada de um
cortiço. Ele não assusta ninguém, mas também não desanuvia o ambiente com
risadas: afinal de contas, ele é o corretor de seguros, e a única maneira de passá-
lo para trás é morrer.
Foi essa a outra surpresa que tive com Malamud. O homem ria muito pouco.
Não exibia em absoluto aquele espírito lúdico que brotava intermitentemente
nos apartamentos mal aquecidos e pobremente mobiliados em que os enterrados
vivos de suas histórias manifestavam suas necessidades. Nele não se via nenhum
sinal daquela palhaçada sinistra que caracteriza The natural. Havia contos em
sua obra, como “Anjo Levine” — e, mais tarde, “O pássaro judeu” e “Cavalo
falante” —, em que a piada estava a um centímetro da arte, em que o encanto da
arte residia no fato de ela equilibrar-se à beira da anedota, e no entanto, 25 anos
depois, só me lembro de tê-lo ouvido contar duas piadas. Duas anedotas em
dialeto judaico, muito bem contadas, e só. Para 25 anos, duas piadas bastavam.
A única coisa que era necessário levar às últimas conseqüências era a
responsabilidade pela arte. Bern não se exibia e não achava necessário exibir seus
temas, principalmente na presença de um desconhecido. Não teria conseguido se
exibir mesmo se tentasse fazê-lo por insensatez, e a obrigação de jamais ser
insensato era apenas uma pequena parcela do ônus maior com que ele arcava. S.
Levin, o professor chaplinesco de A new life, que dá sua primeira aula na
faculdade com a braguilha escancarada, age vez após vez com uma insensatez
hilariante; mas Bern, jamais. Tal como Kafka nunca poderia se transformar
numa barata, também Malamud nunca se metamorfosearia num Levin, que após
uma aventura erótica comicamente desastrada nas montanhas de Oregon volta
para casa pé ante pé, seminu, às três da manhã, acompanhado de uma garçonete
sexualmente insatisfeita que usa apenas um pé de sapato e um sutiã. O ex-bêbado
Seymour Levin e o inseto Gregor representam autocaricaturas colossais,
proporcionando aos dois escritores uma espécie de alívio masoquista
curiosamente divertido, em meio ao peso da sobriedade e da inibição digna que
formavam a pedra angular de seu comportamento rígido. No caso de Malamud,
o exibicionismo exuberante, como a autoparódia cáustica, revelava-se através do
que Heine denominava Maskenfreiheit, a liberdade conferida pela máscara.
O colunista melancólico do choque entre carências, de carências a que se
oferece uma resistência implacável e que só são atendidas — quando o são — do
modo mais indireto, de vidas emparedadas, torturadas pela necessidade de um
pouco de esperança que as ilumine e levante — “Uma criança que jogasse uma
bola diretamente para cima veria um retalho de céu pálido” —, preferia
apresentar-se como uma pessoa cujas próprias carências não eram da conta de
ninguém. No entanto, Bern era tão carente que dói só de imaginá-lo. Tratava-se
da necessidade de considerar do modo mais exaustivo e sério todas as exigências
de uma consciência torturada pela tragédia da carência insatisfeita. Esse era um
de seus temas, um tema que ele não conseguia esconder por completo de todo
aquele que tentasse compreender qual seria o ponto de contato entre o homem
que passava perfeitamente por corretor de seguros e o autor de parábolas morais
e claustrofóbicas sobre “coisas que a gente não consegue deixar para trás”. Em O
ajudante, Frank Alpine, marginal pé-de-chinelo e vagabundo, enquanto cumpre
penitência trabalhando numa mercearia falida que uma vez fora assaltada por
ele, é assaltado por uma “descoberta terrível” sobre si próprio: “Embora o tempo
agisse como se não o fosse, ele era um homem de moral rígida”. Eu me pergunto
se, no início da idade adulta, Bern não teria feito uma descoberta ainda mais
terrível sobre si próprio: ele era um homem de moral rígida que só conseguia agir
como tal.
Entre aquela primeira vez em Oregon, em fevereiro de 1961, e nosso último
encontro no verão de 1985 em sua casa, em Bennington, Vermont, raramente
estive com ele mais de duas vezes por ano, e durante alguns anos, depois que
publiquei na New York Review of Books um ensaio sobre escritores judeus
americanos em que examinava Retratos de Fidelman e O faz-tudo por um ângulo
que não o agradou — como, aliás, era de se esperar —, não tivemos contato. Em
meados dos anos 60, quando passei longas temporadas na colônia de artistas de
Yaddo em Saratoga Springs, Nova York, perto de Bennington, Bern e sua
mulher, Ann, me recebiam quando eu tinha vontade de escapar por algumas
horas da solidão de Yaddo. Nos anos 70, quando nós dois éramos membros da
diretoria de Yaddo, sempre nos encontrávamos nas reuniões semestrais. Quando
os Malamud passaram a se refugiar em Manhattan dos invernos de Vermont e eu
ainda morava em Nova York, de vez em quando jantávamos juntos perto do
apartamento deles, em Gramercy Park. E quando Bern e Ann iam a Londres,
onde eu começava a passar uma parte do tempo, eles vinham jantar com Claire
Bloom e comigo.
Embora na maioria dessas ocasiões eu e Bern terminássemos falando sobre
livros e o trabalho do escritor, um quase nunca mencionava a obra do outro,
observando uma regra jamais escrita que rege o comportamento dos
romancistas, tal como o de jogadores de times rivais, que compreendem que é
impossível ser totalmente sincero por maior que seja o respeito mútuo. Segundo
Blake, “a oposição é a verdadeira amizade”, mas embora a frase pareça de um
vigor admirável, em particular para aqueles que gostam de discutir, e embora no
melhor dos mundos possíveis talvez ela fosse aplicável, em meio aos escritores
deste nosso mundo, em que a mistura de suscetibilidade com orgulho pode se
tornar muito explosiva, as pessoas se contentam com algo um pouco mais ameno
do que a oposição desabrida, senão se torna impossível fazer amigos entre seus
pares. Até mesmo os escritores que adoram oposição normalmente não
agüentam mais do que a dose que recebem no seu trabalho cotidiano.
Foi em Londres que marcamos um reencontro após meu ensaio publicado em
1974 na New York Review e a troca de cartas que seria a última comunicação
entre nós durante dois anos. A carta de Bern fora caracteristicamente seca e
coloquial, uma única frase, que dita em voz alta soava talvez um pouco menos
irritada do que parecia datilografada, solitária, naquela folha branca de papel,
acima da assinatura pequenina e caprichada. O que eu escrevera a respeito de
Fidelman e O faz-tudo, ele me informava, “é problema seu, não meu”. Respondi
dizendo que provavelmente eu lhe havia feito o tipo de favor defendido por
William Blake. Não fui tão cara-de-pau a ponto de mencionar Blake
explicitamente, mas foi mais ou menos essa a minha estratégia: o que eu
escrevera terminaria por ajudá-lo. Para uma carta de um escritor para outro, até
que não foi das piores, mas também nada que nos enobrecesse nos anais da
correspondência literária.
Nossa reconciliação em Londres foi bem rápida. A campainha tocou às sete e
meia da noite, e lá estavam os Malamud, pontuais como sempre. À luz da
varanda, beijei Ann e, com a mão estendida, passei por ela em direção a Bern,
que vinha subindo a escada a passos rápidos e com o braço também estendido
em minha direção. Em nossa ânsia de ser o primeiro a se desculpar — ou, talvez,
a ser desculpado —, nossas mãos se desencontraram e terminamos nos beijando
nos lábios, mais ou menos como Lieb, o padeiro pobre, e o ainda mais infeliz
Kobotsky no desfecho de “O empréstimo”. Nesse conto de Malamud, dois judeus
que haviam emigrado juntos na terceira classe do mesmo navio voltam a se
encontrar depois de muitos anos de amizade rompida. Nos fundos da loja de
Lieb, trocam histórias sobre as desgraças da vida de cada um, histórias tão
tocantes que Lieb se esquece do pão que está no forno. “Os pães nas bandejas”,
termina a narrativa, “eram tijolos negros — cadáveres cremados. Kobotsky e o
padeiro se abraçaram e suspiraram pela juventude perdida. Beijaram-se na boca e
se despediram para sempre.” Nós, por outro lado, permanecemos amigos até o
fim.
Em julho de 1985, recém-chegados da Inglaterra, eu e Claire fomos de carro
de Connecticut até Vermont para almoçar e passar a tarde com os Malamud. No
verão anterior, eles haviam feito aquela mesma viagem de duas horas e meia e
tinham pernoitado na nossa casa, mas agora Bern não estava mais em condições
de dirigir tanto. As conseqüências debilitantes de um derrame ocorrido três anos
antes estavam abalando suas forças, e a tentativa de não entregar os pontos sem
lutar contra todos aqueles problemas físicos começava a derrubá-lo. Assim que
chegamos, percebi o quanto Bern estava enfraquecido. Ele, que sempre vinha até
a rua para nos receber ou se despedir de nós, quaisquer que fossem as condições
do tempo, estava lá fora à nossa espera, como de praxe, com seu casaco de
popelina, acenando com um gesto triste, mas parecia estar um pouco inclinado
para o lado e ao mesmo tempo recorrendo a toda a sua força de vontade para se
manter absolutamente imóvel, como se o menor movimento pudesse fazê-lo
desabar. O nova-iorquino transplantado de 46 anos que eu havia conhecido no
Oeste, aquele trabalhador incansável de rosto sério e atento, com uma calva no
cocoruto e o corte de cabelo severo usado em Corvallis, cuja tranqüilidade de
superfície ocultava de qualquer observador a obstinação interna — e que
provavelmente tinha esse exato objetivo —, era agora um velho frágil e muito
doente; sua tenacidade estava nas últimas.
Seu estado era conseqüência da ponte de safena, do derrame e dos remédios
que fora obrigado a tomar, mas para quem conhecia de longa data o homem e a
obra, não havia como não concluir que a dedicação inquebrantável a uma meta,
característica que ele tinha em comum com tantos personagens seus — romper
os limites férreos do eu e das circunstâncias a fim de levar uma vida melhor —,
finalmente cobrava seu preço. Ele nunca me contara muita coisa sobre sua
infância, mas com base no pouco que eu sabia a respeito da morte de sua mãe
quando ele era pequeno, da pobreza do pai e do irmão deficiente, eu imaginava
que Bern fora obrigado a abrir mão da juventude e tornar-se adulto muito cedo.
E era isso que ele parecia agora: um homem que vinha sendo homem há um
tempo excessivo. Lembrei-me de seu conto “Tenha piedade”, a parábola mais
perturbadora de todas que ele escreveu, cujo tema é a inexorabilidade da vida até
mesmo — aliás, especialmente — diante dos anseios mais inexoráveis. Quando
Davidov, um recenseador celestial, pergunta a Rosen, recém-chegado ao reino
dos mortos, de que modo morreu um refugiado judeu pobre, Rosen responde:
“Uma coisa dentro dele quebrou. Foi assim”. “Quebrou o quê?” “A coisa que
quebra.”
Foi uma tarde triste. Tentamos conversar na sala antes do almoço, porém para
ele era necessário esforçar-se para se concentrar, e embora sua força de vontade
fosse incapaz de recuar de qualquer tarefa difícil, era desanimador constatar que
conversar com um amigo havia se transformado num sério desafio.
Quando saímos da sala para almoçar ao ar livre, na varanda dos fundos, Bern
perguntou-me se depois da refeição podia ler para mim os capítulos iniciais do
rascunho de um romance que estava escrevendo. Nunca antes ele pedira minha
opinião a respeito de uma obra ainda em construção, e seu pedido me
surpreendeu. Passei o almoço preocupado, me perguntando como seria esse
livro, concebido e iniciado, no meio de tantas dificuldades, por um escritor que
havia alguns anos tinha dificuldade em se lembrar até mesmo da tabuada, e cuja
visão, também prejudicada pelo derrame, transformava todos os dias o ato de
fazer a barba, como ele mesmo me dissera com ironia, numa “aventura”.
Depois do café, Bern foi ao escritório pegar os originais, um maço fino de
folhas meticulosamente datilografadas e presas com um clipe. Ann, que estava
com dor nas costas, disse que ia descansar; Bern voltou a seu lugar na mesa e
começou a ler, com sua voz tranqüila e insistente, para Claire e para mim.
Percebi que em torno de sua cadeira, no chão da varanda, havia restos de
comida do almoço. Suas mãos tremiam, de modo que até mesmo comer se
transformara numa aventura, e no entanto ele havia se imposto a tarefa de
escrever essas páginas, assumir mais uma vez o duro trabalho do escritor.
Lembrei-me da cena inicial de O ajudante, em que o velho merceeiro, Morris
Bober, arrasta pesadas caixas de leite no meio-fio às seis horas de uma manhã de
novembro; lembrei-me do esforço que o mata — perto do total esgotamento
físico, Bober sai de casa à noite para tirar os quinze centímetros de neve que
haviam caído, em pleno março, e se acumulado na calçada em frente da loja que
era sua prisão. Quando cheguei em casa naquela noite, reli as páginas que
relatavam o último grande esforço do comerciante na sua tentativa de trabalhar:
Para sua surpresa, o vento o envolveu num casaco gelado, enquanto seu avental se debatia ruidosamente.
Ele esperava, naquele final de março, uma noite mais amena. [...] Jogou mais uma pá de neve na rua.
“Uma vida melhor”, murmurou.
“Uma vez, em Woodstock”, disse Ross Feld, “eu estava parado ao lado de Guston diante de algumas
dessas telas. Eu não as vira antes; fiquei sem saber o que dizer. Por algum tempo, portanto, fez-se
silêncio. Então Guston tirou dos dentes a unha do polegar e disse: ‘Sabe, as pessoas reclamam que é
horrível. Como se fosse divertido para mim — eu, que sou obrigado a vir aqui todo dia e olhar para
elas assim que entro. Mas qual é a alternativa? Estou tentando ver até onde tenho condição de
suportar’.”
Musa Mayer, Night study: a memoir of Philip Guston
[1989]
Em 1967, não agüentando mais o mundo artístico nova-iorquino, Philip
Guston abandonou seu estúdio em Manhattan para sempre e foi morar em
caráter definitivo com a mulher, Musa, na casa que tinham em Woodstock, na
Maverick Road, onde havia vinte anos eles passavam temporadas. Dois anos
depois, dei as costas a Nova York e fui buscar refúgio numa casinha mobiliada
também em Woodstock, mas do outro lado da cidade; na época eu não conhecia
Philip. Eu estava fugindo após a publicação de O complexo de Portnoy. Em
Manhattan não havia como escapar da pecha de tarado, que eu adquirira da
noite para o dia, e assim resolvi pular fora — primeiro, fui para Yaddo, a colônia
de artistas no norte do estado, e depois da primavera de 1969 instalei-me naquela
casinha alugada, escondida numa encosta de morro coberta de grama a três
quilômetros da rua principal de Woodstock. Lá eu vivia com uma jovem que
estava terminando o doutorado e que havia alguns anos morava numa pequena
cabana alugada, aquecida por uma estufa a lenha, na colônia de Byrdcliffe, na
serra, que décadas antes fora um povoado primitivo formado por artistas de
Woodstock. Durante o dia eu escrevia numa mesa no quarto de cima, um
aposento despojado, enquanto ela ia para a cabana trabalhar na tese.
A vida no interior com uma doutoranda não era exatamente uma depravação,
e me proporcionava uma combinação de isolamento social com prazer físico que,
seguindo a lógica ilógica da criação, me levou a produzir, num período de quatro
anos, um punhado de livros aberrantes nada típicos da minha obra. Minha nova
reputação de pênis enlouquecido foi o que instigou a fantasia que é a base de O
seio, a história de um professor universitário que se transforma num seio
feminino; tinha também algo a ver com a lenda farsesca da alienação e da falta de
espaço numa América provinciana que terminou por gerar The great American
novel. Quanto mais tranqüilos eram meus prazeres em Woodstock, mais eu me
sentia tentado a atirar-me em minha obra aos excessos do Grand Guignol. Eu me
sentia polimorfo do modo mais original quando colocava duas espreguiçadeiras
no gramado ao final do dia para ficarmos apreciando o pôr do sol nos
contrafortes dos montes Catskill, que para mim formavam uma barreira tão
intransponível para as irrelevâncias desconcertantes quanto os Alpes. Eu me
sentia imune, inatingível, livre, e estava decidido — talvez de modo até excessivo
— a me livrar daquele enorme público recém-adquirido cujas fantasias coletivas
tinham lá seu poder transformador.
A situação de Guston em 1969 — o ano em que nos conhecemos — era muito
diferente. Aos 56 anos de idade, Philip era vinte anos mais velho do que eu e
vivia assaltado por aquelas dúvidas que por vezes atormentam os artistas sérios
no final da meia-idade. Ele tinha a sensação de que havia esgotado os meios que
lhe permitiram trabalhar como pintor abstracionista, e as habilidades que lhe
haviam granjeado renome agora lhe inspiravam tédio e repulsa. Não queria mais
pintar daquela maneira; tentava convencer a si próprio que devia mesmo parar
de pintar. Mas como a pintura era a única maneira de conter sua turbulência
emocional, e também de esvaziar a monomania que o levava a se automitificar,
abrir mão de sua arte seria uma forma de suicídio. A pintura monopolizava seu
desespero e sua catastrófica instabilidade de humor o bastante para permitir-lhe
até mesmo rir da ansiedade proporcionada por sua autoconsciência, mas jamais
chegou a neutralizar seus pesadelos de todo.
Nem era esse seu objetivo. Os pesadelos não pertenciam a ele, e portanto a
idéia não era dissipá-los com tinta, e sim, nos dez anos de vida que lhe restavam,
transformá-los em imorredouros pesadelos pintados, jamais antes concretizados
de modo tão vulgar. O terror torna-se talvez ainda mais perturbador por
aparecer embebido numa espécie de farsa que reconhecemos com base em
nossos próprios sonhos e nos sonhos que Beckett e Kafka sonharam por nós. O
que Philip descobrira — uma descoberta semelhante à deles, movida por um
fascínio por objetos cotidianos tão distorcidos e despoetizados quanto na obra
deles — era o terror que emana dos utensílios mais comuns do mundo da
completa estupidez. A visão nada enobrecedora das coisas que ele aprendera com
os quadrinhos que lia nos jornais na sua fase de formação, numa família de
imigrantes judeus na Califórnia, a vulgaridade americana pela qual, mesmo no
auge de sua fase lírica e meditativa, como bom intelectual ele sempre tivera um
fraco, passou a ser vista — de um modo fácil de entender para os leitores de
Molloy e de O castelo — como se sua vida, tanto como artista quanto como
homem, dependesse disso. Essas imagens populares de uma realidade superficial
eram imbuídas por ele de tamanha carga de sofrimento pessoal e intensidade
artística que deram forma na pintura a uma nova paisagem americana de terror.
Isolado de Nova York e sem contato com os artistas locais de Woodstock, com
os quais tinha pouca coisa em comum, Philip muitas vezes sentia-se excluído —
isolado, ressentido, deslocado, sem exercer influência sobre ninguém. Não era a
primeira vez que essa concentração implacável em suas próprias necessidades
gerava nele uma sensação depressiva de alienação, e tampouco fora ele o
primeiro artista americano a sofrer essa síndrome. A coisa era tão comum entre
os melhores quanto entre os piores — só que, no caso dos melhores, não era
necessariamente um drama pueril de ilusão egomaníaca. Sob vários aspectos,
tratava-se de uma reação perfeitamente justificada em um artista como Guston,
cujo projeto de examinar do modo mais exaustivo, cerebral e hipercrítico todas
as opções estéticas existentes era rotineiramente caricaturado pelas leituras
errôneas e simplistas que sustentam a reputação de um artista de peso.
Porém a melancolia de Philip não era constante. Na presença dos poucos
amigos de que dispunha e com quem gostava de conviver, era um anfitrião
cordial e tranqüilo, com uma animação espiritual cativante, sem nenhum sinal de
angústia. Na sua presença física havia também um toque de graça ágil que
contrastava com o torso volumoso daquele personagem beberrão, um tanto
severo, de cabelos brancos, em que Guston, um judeu moreno e bonitão com
ares de Don Juan, havia se transformado na faixa dos cinqüenta. No jantar, usava
uma de suas calças cáqui boca-de-sino, de cintura baixa, com uma camisa de
algodão branca desabotoada, exibindo o torso forte, as mangas ainda
arregaçadas, tal como ele trabalhava no estúdio; parecia um daqueles políticos
israelenses da velha guarda, cuja autoridade e informalidade tinham raízes numa
segurança interior inabalável. Em torno da mesa de jantar, comendo a massa
bem-feita que Philip havia preparado numa exibição jovial de perícia, era
impossível detectar qualquer vestígio de autocomiseração em convívio com
aquela autoconfiança prodigiosa. Era só nos olhos que se viam sinais do desgaste
causado pela oscilação — entre resolução férrea, passando por um equilíbrio
extático, até chegar ao desespero suicida — de um típico dia de trabalho no
estúdio.
Se nossa amizade floresceu, foi acima de tudo graças à semelhança entre
nossas visões intelectuais, ao amor que tínhamos em comum por muitos livros e
também ao interesse que compartilhávamos pelo que Guston denominava
crapola* — que incluía outdoors, garagens, lanchonetes, lojas de antiguidades e
oficinas de lanternagem —, coisas que havia à beira-estrada, e que às vezes íamos
de carro até Kingston só para curtir — e se estendia da fala direta e pedestre dos
habitantes dos montes Catskill aos pronunciamentos insinceros e untuosos do
presidente da República, sempre a suar abundantemente. Mas o que selou nossa
amizade foi o fato de que um gostava do trabalho recente do outro. As diferenças
entre nossas vidas pessoais e nossas reputações profissionais não obscureciam a
coincidência entre os projetos de autocrítica que nós dois havíamos
empreendido nos últimos tempos. Independentemente, motivados por dilemas
muito diversos, tanto eu quanto ele havíamos começado a encarar a crapola não
apenas como um tema interessante, de grande poder sugestivo, com o qual
ambos tínhamos uma certa afinidade inata, mas também como um instrumento
em potencial: uma arma estética brutal que daria acesso a um estilo de
representação livre da complexidade que estávamos acostumados a valorizar.
Ninguém sabia aonde iríamos chegar com essa auto-subversão, e as premonições
de fracasso não eram de todo debeladas pela sensação de liberdade que costuma
ser proporcionada por uma guinada na carreira artística, pelo menos num
primeiro momento, quando ainda não se sabe exatamente o que se está fazendo.
Mais ou menos na mesma época em que eu não sabia o que estava fazendo ao
me deliciar com as mentiras de Nixon, ou ir até o museu de beisebol em
Cooperstown para me enfronhar na mitologia do esporte, ou levar a sério a idéia
de transformar um homem como eu num seio — e ler textos sobre
endocrinologia e glândulas mamárias —, Philip também não sabia por que estava
desenhando lâmpadas de história em quadrinhos e membros da Ku Klux Klan de
chapéus cônicos na cabeça, com furos para os olhos, e charutos na boca, a pintar
auto-retratos em esconderijos cheios de sapatos, relógios e ferros de passar do
tipo que vemos nas histórias de Mutt e Jeff.
As ilustrações que Philip fez para cenas de O seio, desenhadas em papel branco
comum usado em máquina de escrever, me foram dadas de presente uma noite,
durante o jantar, pouco antes da publicação do livro. Cerca de dois anos antes,
enquanto escrevia Our gang, eu mostrava a Philip os capítulos que estava
escrevendo e ele me dava caricaturas de Nixon, Kissinger, Agnew e John
Mitchell. Ele trabalhou nessas caricaturas com mais concentração do que nos
desenhos para O seio, chegando mesmo a pensar em publicá-las numa coletânea
que seria intitulada Poor Richard [Pobre Richard]. Os oito desenhos inspirados
por O seio eram apenas uma reação espontânea a alguma coisa que o agradara. O
objetivo deles era apenas me dar prazer — objetivo que foi atingido, e como!
Para mim, o desenho que representa o seio em que o professor David Kepesh
misteriosamente se transformou — Kepesh como uma glândula mamária
encalhada na praia, tentando entrar em contato através de um mamilo que é uma
combinação discreta de um pênis amorfo e mudo com um nariz inquisitivo —,
consegue captar toda a solidão e humilhação de Kepesh, ao mesmo tempo
mantendo o ângulo cômico e mordaz pelo qual Kepesh tenta encarar sua
horrenda metamorfose. Embora para Philip os desenhos fossem apenas uma
diversão agradável, sua predileção por abordar o sofrimento pessoal através da
auto-sátira (a estratégia para anular o sentimentalismo autocomiserativo que nos
fascina em “Diário de um louco” e “O nariz” de Gogol) determina as imagens
aqui, de um modo tão marcante quanto naquelas pinturas em que os vícios
irritantes e renúncias melancólicas do artista são apresentadas por garrafas de
uísque, pontas de cigarros e figuras insones caricaturadas numa perspectiva
épica. Era apenas uma brincadeira, mas Philip estava brincando com o ponto de
vista que utilizara para dar uma reviravolta em sua carreira de pintor e
representar, sem nenhum amparo retórico, a realidade de sua ansiedade como
homem. Por coincidência, Philip — que morreu em 1980 aos 66 anos de idade —
representa a si próprio nas últimas pinturas como um homem que sofreu uma
transformação grotesca, virando não uma glândula sexual desmembrada e
pensante, e sim uma cabeça inchada, ciclópica, abrutalhada, separada do corpo
de seu sexo.
O capítulo xvi de Augie March fala sobre a tentativa de Thea Fenchel, a amada
impetuosa de Augie, de ensinar sua águia, Caligula, a atacar e capturar os
lagartos grandes que vivem nas montanhas perto de Acatla, no México central,
para que essa “ameaça descendo célere do céu” se encaixe em seu esquema geral
do mundo. É um capítulo de uma força prodigiosa, dezesseis páginas ousadas a
respeito de um evento claramente humano cuja aura mítica (para não falar no
humor) é comparável às grandes cenas de Faulkner — em O urso, Cavalos
malhados e Enquanto agonizo, em todo o livro As palmeiras selvagens — nas
quais a determinação humana enfrenta o mundo natural. O combate entre
Caligula e Thea, em que estão em jogo o corpo e a alma da águia, as passagens
maravilhosamente precisas em que a águia alça vôo para satisfazer sua bela e
diabólica treinadora e fracassa desgraçadamente, cristalizam uma visão da
vontade de poder e domínio que ocupa uma posição central em quase todas as
aventuras de Augie. “Para falar com franqueza”, diz Augie, perto do fim do livro,
“já estou cheio dessas personalidades gigantescas, que dão forma ao destino,
esses cérebros de água pesada, Maquiavéis e gênios do mal, mandachuvas e
chefões, absolutistas.”
Na memorável página de abertura do romance, logo na segunda frase, Augie
cita Heráclito: o caráter de um homem é seu destino. Mas The adventures of
Augie March não parece apontar para justamente o contrário? Que o destino de
um homem (ou ao menos deste homem, Augie, este filho de Chicago) é o que o
caráter dos outros faz dele?
Bellow me disse uma vez que “em algum lugar do meu sangue de judeu e
imigrante havia vestígios palpáveis de dúvida quanto ao meu direito de exercer o
trabalho de escritor”. Ao menos em parte, ele deu a entender, essa dúvida estava
em seu sangue porque “o nosso establishment protestante, representado
principalmente por professores formados em Harvard”, achava que um filho de
imigrantes judeus não tinha condição de escrever livros em inglês. Esses sujeitos
o deixavam furioso.
É bem possível que tenha sido o dom precioso de uma fúria justificada que o
tenha levado a começar seu primeiro livro não com as palavras “Sou judeu, filho
de imigrantes”, e sim fazendo com que esse filho de imigrantes judeus que é
Augie March quebre o gelo com os professores formados em Harvard (e com
todo mundo) afirmando sem mais nem menos, sem desculpas ou atenuantes:
“Sou americano, nascido em Chicago”.
Ao iniciar Augie March com essas palavras, Bellow demonstra o mesmo
entusiasmo afirmativo que os filhos de imigrantes judeus dotados de talento
musical — Irving Berlin, Aaron Copland, George Gershwin, Ira Gershwin,
Richard Rodgers, Lorenz Hart, Jerome Kern, Leonard Bernstein — levaram para
as rádios, teatros e salas de concertos dos Estados Unidos, afirmando seu direito
de tomar o país como tema, inspiração e platéia, em canções como “God bless
America”, “This is the army, mr. Jones”, “Oh, how I hate to get up in the
morning”, “Manhattan” e “Ol’ man river”; em musicais como Oklahoma!, West
Side story, Porgy and Bess, On the town, Show boat, Annie get your gun e Of thee I
sing; em balés como Appalachian spring, Rodeo e Billy the Kid. Na década de 10,
quando os imigrantes ainda estavam chegando, nas décadas de 20, de 30, de 40,
até mesmo na de 50, nenhum desses meninos criados na América, cujos pais ou
avós falavam iídiche, tinha o menor interesse em produzir kitsch judaico do tipo
que surgiu nos anos sessenta com Fiddler on the roof. Como a imigração de suas
famílias os havia libertado da ortodoxia religiosa e do autoritarismo social que
constituíam uma das grandes fontes da claustrofobia do gueto, por que motivo
eles haveriam de se interessar por essas coisas? Nos Estados Unidos, um país
secular, democrático e nada claustrofóbico, Augie — como ele próprio diz —
pretende “enfrentar as coisas tal como aprendi a fazer por conta própria, na base
do vale-tudo”.
Essa afirmação de cidadania inequívoca e incontrolável numa América onde
vale tudo (e o livro de mais de quinhentas páginas que se segue a ela) era
precisamente o golpe ousado necessário para dissipar quaisquer dúvidas sobre o
direito que teria um filho de imigrantes como Saul Bellow de escrever nos
Estados Unidos. Bem no final do livro, Augie exclama, exuberante: “Olhem só
para mim, indo para tudo que é lugar! Ora, eu sou uma espécie de Colombo dos
que estão por perto”. Pisando em terreno onde, segundo os que se julgavam seus
superiores, ele não tinha direito de avançar com o idioma americano, Bellow foi
de fato um Colombo para pessoas como eu, netos de imigrantes, que tal como ele
decidiram tornar-se escritores americanos.
Herzog (1964)
O personagem de Moses Herzog, um homem dividido, um labirinto de
contradições — o selvagem e a pessoa séria com “uma concepção bíblica de
experiência pessoal” e uma inocência tão fenomenal quanto sua sofisticação,
intenso porém passivo, reflexivo porém impulsivo, equilibrado porém louco,
emotivo, complicado, um perito em matéria de dor, palpitando de sentimentos e
no entanto de uma simplicidade desconcertante, um palhaço quando se torna
um vingador indignado, um bobo em quem o ódio gera comédia, um sábio
estudioso num mundo traiçoeiro, e no entanto ainda perdido no mar de amor,
confiança e entusiasmo pelas coisas que é característico da infância (e ainda
apegado de modo incurável a essa situação), um amante envelhecido com uma
vaidade e um narcisismo imensos, mas que vê a si próprio com um amor
exigente, rodopiando sem sair do lugar numa autoconsciência um tanto
generosa, sentido-se ao mesmo tempo esteticamente atraído por qualquer um
que seja cheio de vida, seduzido de modo irresistível por valentões e mandões,
sabichões teatrais, fascinado pela suposta certeza dessas pessoas e a autoridade
crua de sua ausência de ambigüidade, alimentando-se da intensidade delas até
quase o ponto de ser esmagado — este Herzog é a mais grandiosa das criações de
Bellow, o Leopold Bloom da literatura americana, com uma única diferença: em
Ulisses, a mente enciclopédica do autor se transforma na carne lingüística do
romance, e Joyce jamais confere a Bloom sua própria erudição imensa, seu
intelecto, a amplitude de sua retórica, enquanto em Herzog Bellow investe seu
protagonista de tudo isso, não apenas um estado mental e uma disposição mental
mas também uma mente verdadeira.
Trata-se de uma mente rica e abrangente, porém torturada por problemas,
prestes a explodir de ressentimentos e indignações, uma mente perplexa que,
logo na primeira frase do livro, abertamente, e com razão, questiona seu próprio
equilíbrio, não em linguagem hermética, mas na clássica formulação terra-a-
terra: “Se eu estiver louco...”. Essa mente, tão vigorosa, tão tenaz, muito bem
equipada com o que de melhor já foi pensado e dito, uma mente que emite com
elegância as generalizações mais bem informadas a respeito de boa parte do
mundo e de sua história, também questiona sua faculdade mais fundamental, a
própria capacidade de compreender.
O eixo em torno do qual gira o drama de adultério do livro, a cena que faz
com que Herzog vá correndo até Chicago para pegar uma pistola carregada e
matar Madeleine e Gersbach, mas em vez disso dá início ao processo que
culmina com seu fracasso final, ocorre num tribunal em Nova York, onde
Herzog, perambulando enquanto aguarda a chegada de seu advogado, encontra
uma paródia medonha de seu próprio sofrimento. Trata-se do julgamento de
uma mãe infeliz e degradada que, com seu amante degenerado, assassinou seu
próprio filho pequeno. Herzog fica de tal modo horrorizado com o que vê e ouve
que é levado a gritar interiormente: “Não consigo entender!” — palavras bem
comuns, mas para Herzog uma admissão humilhante, dolorosa, cheia de
implicações, que estabelece uma ligação dramática entre a complexa tessitura de
sua existência mental e a torturante grade de erros e decepções que é sua vida
pessoal. Como para Herzog a compreensão é um obstáculo à força do instinto, é
quando sua compreensão fracassa que ele apela para a arma (a exata arma com
que seu pai uma vez desajeitadamente ameaçou matá-lo) — embora, no final das
contas, Herzog, sendo quem é, não consiga atirar. Por ser Herzog (e por ser o
filho colérico de um pai colérico), para ele disparar a arma “não passa de um
pensamento”.
Mas se Herzog não consegue entender, quem é que entende, e para que serve
toda essa cerebração? Afinal, para que tantas reflexões incontidas nos livros de
Bellow? Não me refiro às reflexões desinibidas de personagens como Tamkin em
Agarre a vida, nem mesmo o rei Dahfu em Henderson, que aparentemente
pronunciam suas pílulas de falsa sabedoria tanto para dar ao autor uma
oportunidade de se divertir quanto para criar um segundo reino de confusão na
cabeça dos protagonistas, que já estão bem confusos. Refiro-me ao
empreendimento quase impossível que caracteriza a obra de Bellow de modo tão
marcante quanto os romances de Robert Musil e Thomas Mann: a tentativa de
não apenas conferir uma mente a um personagem fictício como também de fazer
com que o processo mental em si ocupe uma posição central no dilema do
protagonista — de pensar, em livros como Herzog, sobre o problema de pensar.
Ora, o fascínio especial de Bellow, e não apenas para mim, é o fato de que, à
sua maneira tipicamente americana, ele conseguiu de modo brilhante preencher
o hiato entre Thomas Mann e Damon Runyon, mas isso não minimiza a
grandeza da tarefa ambiciosa que ele assumiu a partir de Augie March: colocar
em ação (atuando livremente) as faculdades intelectuais que, em escritores como
Mann, Musil e ele próprio, interessam-se tanto pelo espetáculo da vida quanto
pelo componente imaginativo da mente; fazer com que a cerebração seja
congruente com o que é representado, alçar o pensamento do autor das
profundezas até a superfície da narrativa sem afundar o poder mimético do
narrador, sem que o livro fique meditando sobre si próprio de modo superficial,
sem fazer afirmações claramente ideológicas dirigidas ao leitor, e sem distribuir
pílulas de sabedoria, como fazem Tamkin e o rei Dahfu, desprovidas de toda e
qualquer problematização.
“Que tristeza”, observa Citrine, “toda essa bobagem humana que nos afasta da
grande verdade.” Mas a bobagem humana é o que ele ama, e adora relatar, e o
que mais prazer lhe dá na vida. E mais: “Quando [...] eu me elevaria [...] acima de
todo [...] o desperdício e o aleatório que há no humano [...] para penetrar em
mundos mais elevados?”. Mundos mais elevados? Onde estaria Citrine — onde
estaria Bellow — sem o aleatório humano a desencadear o superdrama do
mundo inferior, o superdrama primordial que é o desejo mundano de fama (tal
como se manifesta em Von Humboldt Fleisher, o indivíduo azarado e
desequilibrado que é a contraparte de Citrine, sortudo e equilibrado —
Humboldt, que quer ao mesmo tempo ser espiritual e se dar bem, e cujo fracasso
catastrófico é o avesso do sucesso de Citrine), de dinheiro (Humboldt, Thaxter,
Denise, e também a mãe de Renata, a Señora, e mais o irmão de Citrine, Julius, e
mais praticamente todo mundo), de vingança (Denise, Cantabile), de
reconhecimento (Humboldt, Cantabile, Thaxter, Citrine), pelo sexo mais
apimentado (Citrine, Renata etc.), para não falar no mais mundano dos desejos
mundanos, o desejo infernal de Citrine de gozar de vida eterna?
Por que motivo Citrine anseia de modo tão febril por jamais partir deste
mundo, se não for para continuar imerso nessa violência hilariante, na
turbulência de cobiça ridícula que ele chama, com desprezo, de “inferno dos
imbecis”? Diz ele: “Há pessoas tão reais que elas derrotam meus poderes
críticos”. E também derrotam qualquer desejo de trocar até mesmo sua
malevolência pela serenidade do eterno. Em que outro lugar senão no inferno
dos imbecis sua “subjetividade complicada” teria tanta coisa para assimilar? Em
que lugar-nenhum não catalogado, onde ele ficaria, nostálgico, trocando casos
dos tempos do inferno dos imbecis com a sombra de Rudolf Steiner?
E não é precisamente algo semelhante a esse inferno dos imbecis que Charlie
Citrine documenta, entusiasmado, no momento exato em que ele ferve pelas
ruas, tribunais, quartos, restaurantes, saunas e escritórios de Chicago que tanta
repulsa causam a Artur Sammler na sua diabólica reencarnação nova-iorquina
nos anos 60? O legado de Humboldt dá a impressão de ser o tônico revigorante
que Bellow preparou para recuperar-se do lamento doloroso e do sofrimento
moral de O planeta do sr. Sammler. É uma versão solar do Eclesiastes formulada
por Bellow: tudo é vaidade, que bom!
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