Você está na página 1de 15

1

RECONTO JOÃOZINHO E MARIA NA PRÁTICA DE CONTAÇÃO


DE HISTÓRIAS: aplicabilidade da Lei 10.639/2003 na Geografia

RECOUNT JOÃOZINHO AND MARIA IN THE PRACTICE OF


STORYTELLING: applicability of Law 10.639/2003 in Geography

Ana Flávia Borges de Oliveira


Mestranda em Geografia – PPGEO/UFU
Universidade Federal de Uberlândia –UFU
anaflaviaborges97@hotmail.com

Adriany de Ávila Melo Sampaio


Professora Doutora em Geografia – IG/UFU
Universidade Federal de Uberlândia – UFU
adrianyavila@gmail.com

RESUMO
A Lei 10.639/2003 estabelece o ensino da História e Cultura africana e afro-brasileira
nos sistemas de ensino, reconhecendo a sua importância para o combate do racismo, da
discriminação e do preconceito. Com base na implementação dessa lei, o objetivo deste
artigo é analisar o trabalho sobre a cultura afro-brasileira realizado com alunos da rede
básica da cidade de Uberlândia/MG, a partir da literatura, e refletir sobre o espaço dado
para a contação de Histórias nas escolas como atividade pedagógica para o ensino de
Geografia. Para tanto, destaca-se a obra de Agostinho e Coelho (2013), que aponta para
a desconstrução de estereótipos na literatura infantil a partir da representação de
personagens com rostos e peles negras, para entre outras possibilidades aumentar a
autoestima das crianças não brancas. Com a literatura infantil, o professor de Geografia
pode utilizar a atividade de contação de Histórias e análise das imagens dos livros, para
facilitar o entendimento das questões étnico-raciais por meio de aspectos geográficos.
Por exemplo, no reconto de Joãozinho e Maria, é possível o professor de geografia
relacionar os fatos narrados com a realidade socioeconômica brasileira, com destaque a
problemas sociais, como fome, moradia, desemprego, miséria, pedofilia, trabalho
infantil e a escravidão. Quanto à metodologia, este artigo realizou uma análise
qualitativa do Projeto de Contação de Histórias desenvolvido em uma Escola Estadual
urbana de Uberlândia-MG, com alunos do 1° ao 5° ano do Ensino Fundamental I, do
período matutino. Assim, foi constatado que trabalhar com a Lei 10.639/2003 na sala de
aula possibilita apresentar às crianças a importância de respeitar a diversidade racial
para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Palavras-chave: Contação de Histórias; Educação Étnico-Racial; Ensino de Geografia;
Lei 10639/2003; Literatura Infantil.

ABSTRACT
Law 10.639/2003 establishes the teaching of African and Afro-Brazilian History and
Culture in education systems, recognizing its importance to combat racism,
discrimination and prejudice. Based on the implementation of this law, the objective of
this article is to analyze the work on Afro-Brazilian culture carried out with students
from the basic network of the city of Uberlândia/MG, based on literature, and reflect on
2

the space given to the telling of stories in schools as a pedagogical activity for the
teaching of Geography. To this end, we highlight the work of Agostinho and Coelho
(2013), which points to the deconstruction of stereotypes in children's literature from the
representation of characters with black faces and skins, among other possibilities to
increase the self-esteem of non-white children. With children's literature, the Geography
teacher can use the storytelling activity and analysis of the images in the books to
facilitate the understanding of ethno-racial issues through geographical aspects. For
example, in the retelling of Joãozinho and Maria, it is possible for the geography teacher
to relate the narrated facts to the Brazilian socioeconomic reality, highlighting social
problems such as hunger, housing, unemployment, poverty, paedophilia, child labour
and slavery. As for the methodology, this article carried out a qualitative analysis of the
Storytelling Project developed in an urban State School in Uberlândia-MG, with
students from the 1st to the 5th year of Elementary School I, in the morning period.
Thus, it was found that working with Law 10.639/2003 in the classroom enables the
presentation to children of the importance of respecting racial diversity for the
construction of a more just and egalitarian society.
Keywords: Storytelling; Ethnic and Racial Education; Geography Teaching; Law
10639/2003; Children's Literature.

Introdução
O presente trabalho apresenta o resultado da ação pedagógica de Contação de
Histórias desenvolvida a partir da necessidade de inserir a Lei Federal 10.639/2003 no
ensino de Geografia, nas turmas de 1° ao 5° do Ensino Fundamental em uma escola
pública, na cidade de Uberlândia-MG. O trabalho foi desenvolvido durante as atividades
do Grupo de Estudos de Geografia e Educação das Relações Étnico-Raciais, no
Laboratório de Geografia e Educação Popular (LAGEPOP) do Instituto de Geografia da
Universidade Federal de Uberlândia, com a ideia de levar a temática étnico-racial
relacionada com conceitos geográficos para as salas de aula.
Com a preocupação de propiciar aos alunos a aprendizagem sobre a questão
étnico-racial e também formar leitores críticos, de modo a contribuir para a melhoria da
leitura e compreensão de textos, por meio da contação de histórias, buscou-se
desenvolver o gosto pela leitura e a habilidade de interpretação, uma vez que a história
infantil desperta a imaginação e a sensibilidade criativa dos leitores.
Durante a execução desta atividade, foram desenvolvidas algumas sessões de
contação de histórias nas quais foi observado o envolvimento das crianças com o texto
narrado e suas reações, como também o entendimento e contribuições com a cultura
africana e afro-brasileira.
3

Neste artigo, será abordado a análise do reconto Joãozinho e Maria


(AGOSTINHO; COELHO, 2013) como uma forma de aplicar a Lei 10.639/2003,
apresentando a importância da temática em ações pedagógicas na educação básica. A
contação de histórias é tida como atividade interdisciplinar no Ensino de Geografia,
mostrando a capacidade de envolver habilidades e conceitos de diversas áreas e
permitindo valorizar aspectos e características da cultura afro-brasileira, sendo possível
ensinar de forma lúdica diferentes conteúdos da Geografia.
Este trabalho consistiu nas seguintes etapas: primeiro, o estudo e discussão de
pesquisas com a temática referente às Relações Étnico-Raciais e Contação de Histórias
nos encontros do Grupo de Estudos; Segundo, a escolha de livros infantis que tratam
sobre a representatividade negra para as crianças e que resgatam a ancestralidade, além
de combater o racismo e a intolerância, e enaltecer a beleza da cultura africana e afro-
brasileira; E, por último, a terceira etapa foi realizada na escola, por meio do contato
com os alunos e a prática de Contação de Histórias em sala de aula, bem como o
desenvolvimento de atividade sobre o entendimento da história com desenhos feitos
pelas crianças.

A Lei 10.639/2003 por meio do reconto Joãozinho e Maria


No processo histórico brasileiro, o Movimento Negro, desde o início do século
XX, luta para que as questões raciais sejam debatidas e inseridas no sistema
educacional, uma vez que se tratam de discussões importantes para a formação da
cidadania e tendem ao fim do racismo (OLIVEIRA, 2019).
No ano de 2003, o Brasil reconheceu a importância das lutas e pressões
antirracistas dos movimentos sociais negros e indígenas, e a necessidade de uma
educação antirracista, com um ensino democrático, que inserisse a história de todos os
grupos étnicos que formam o país. Esse reconhecimento se deu por meio da aprovação
da Lei n° 10.639/2003, alterando o artigo 26-A que estabelece as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, no qual tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira. No ano de 2008, foi aprovada a Lei n° 11.645/2008, alterando o artigo
26-A da LDB e inserindo a obrigatoriedade das questões Indígenas no currículo da rede
de ensino (OLIVEIRA, 2019).
O livro infantil analisado neste artigo, Joãozinho e Maria (AGOSTINHO;
COELHO, 2013), é uma adaptação realizada pelos autores Cristina Agostinho e de
4

Ronaldo Simões Coelho, com ilustração de Walter Lara. O reconto Joãozinho e Maria
(AGOSTINHO; COELHO, 2013) é uma história fictícia, todavia a situação mostrada
retrata problemas sociais do cotidiano da sociedade brasileira atual. A partir da leitura,
percebe-se que o livro é uma adaptação do clássico conto de fadas dos Irmãos Grimm
com referencial europeu. Por meio de questões étnico-raciais, o livro representa os
personagens com o rosto e a cor da pele negra, o que aproxima a criança negra aos
personagens do livro, colocando em prática a imaginação cultural de enfrentar bruxas e
se imaginando dentro da fantasia. A adaptação da história conseguiu manter o
encantamento da tradição e permitiu que crianças não brancas pudessem se reconhecer e
se identificar com os protagonistas, o que por sua vez colabora com a construção da
autoestima dessas crianças.
O cenário do reconto ocorre no Brasil, descrevendo a situação atual de uma
família com condições de pobreza. Observa-se nitidamente a desconstrução do conto
clássico, apresentando duas crianças negras comendo frutas, ao invés dos doces como
ocorre no clássico conto de fadas. É também interessante o uso do diminutivo
“Joãozinho” no título ao se referir ao personagem do menino, o que pode indicar a
inferioridade com a qual a pessoa negra foi tratada durante os séculos da escravização.
Outra observação é sobre o reconhecimento do empoderamento da mulher negra,
destacando a passagem em que Maria salva o irmão das chantagens da bruxa.
Ao longo da trama, observa-se a genialidade das crianças em enganar a bruxa.
Nesta situação, pode-se fazer uma relação com a organização do povo negro durante o
período de escravização como, por exemplo, a adaptação de sua religiosidade à religião
do colonizador, o planejamento de fugas e o apoio dado aos fugitivos por meio de
tranças nos cabelos das mulheres e “oferenda aos santos” em encruzilhadas, entre tantas
outras táticas de inteligência.
Observa-se, ainda, que o papel da madrasta no conto é análogo ao papel do
capitão do mato no período de escravização, no qual era responsável pela repressão dos
delitos que aconteciam no campo e também capturava e castigava aqueles escravizados
fugitivos, em troca de prêmios e recompensas para seu sustento, entre os séculos XVII e
XIX.

A imagem da bruxa é vista como uma pessoa má que impõe castigos e


restrições, fazendo com que as crianças reajam em situações difíceis como se fossem
5

adultos tomando decisões que podem levar a uma nova vida. Pode-se relacionar a prisão
das crianças com a escravização da população africana trazida para o Brasil a partir de
1530, em navios de condições subumanas. Muitas pessoas eram acorrentadas em
situações precárias, para evitar fugas e impedir que cometessem algum delito.
A utilização do conto infantil para o Ensino de Geografia
A Geografia é a ciência que estuda as relações existentes entre a sociedade e a
natureza. Na escola é uma disciplina essencial que contribui para a formação do
indivíduo como cidadão, apresentando soluções para uma melhor organização e
convivência no espaço, sempre o aproximando aos diversos grupos étnicos presentes no
processo histórico-cultural da sociedade (OLIVEIRA, p. 16, 2019).
Uma das contribuições que a Literatura pode oferecer para a Geografia é a
desconstrução da educação tradicional, que ainda permanece na metodologia dos
professores ao utilizar somente o livro didático em sala de aula para ensinar os
conteúdos aos alunos. A Literatura pode compreender espaços, lugares e expandir
horizontes que simulam diversas realidades, além de retratar paisagens, regiões,
aspectos sociais, políticos e culturais da sociedade brasileira em diferentes tempos
históricos. Já a Literatura Negra, na Geografia, contribui para a ressignificação da
matriz africana e o entendimento das reivindicações do negro de forma positiva,
oferecendo ao professor a oportunidade de contribuir com a luta contra a discriminação
racial.
O Ensino de Geografia pode usar de diversas áreas de conhecimento, como a
Literatura, para que haja uma interdisciplinaridade, o que contribui para aproximar o
aluno da realidade do seu cotidiano. O livro infantil Joãozinho e Maria (AGOSTINHO;
COELHO, 2013) nos permite uma ligação entre a ficção e a realidade, pois expressa as
diferenças culturais e sociais do Brasil. Nas aulas de Geografia, o professor tem a
capacidade de abordar os aspectos geográficos a partir de análise das imagens e leitura
do reconto, sendo capaz de auxiliar na formação de valores humanos e na transformação
pessoal do aluno.
A partir do reconto, é possível trabalhar os temas gerados pelo abandono, pela
violência doméstica e exploração infantil, bem como pela falta de segurança, fome e
miséria, e pela procura de sustento familiar. Esses temas são bastante comuns na
6

realidade brasileira, pois muitas famílias que moram em área de risco social passam ou
já passaram por essas situações em seus lares.
As principais categorias de análise de Geografia são: território, paisagem, lugar e
região, sendo que cada uma é capaz de contribuir para a aplicação da Lei 10.639/2003
nos diversos conteúdos. Com as categorias Território e Lugar, pode-se focar no
processo de formação histórico brasileiro que valorize a participação do negro na
sociedade. Emprega-se a categoria território, para analisar o continente africano em seu
processo histórico e como um território de poder e disputa e formação da civilização. É
também possível, nas aulas de Geografia, trabalhar como se dá a produção do espaço
africano enquanto região, para compreender parte do desenvolvimento desigual a partir
da dominação europeia, da subalternização da raça resultante do processo colonial. A
categoria Paisagem pode associar a Lei 10.639/2003 às relações sociais e à
representatividade das festividades dos congadeiros e a sua importância para a cidade de
Uberlândia-MG, entre outras possibilidades.
Silva e Azevedo (2015, p. 44) cita que, segundo “Lefébre (1976, p.30), o espaço
geográfico é o lócus da reprodução das relações sociais de produção, ou seja, o espaço é
visto de maneira individual e é representado por um espaço vivido com influências
humanas”.
Uma categoria de análise que é essencial para trabalhar as questões étnico-
raciais na Geografia é o território, pois para Ramos, Gomes e Sampaio (2017, p. 66), o
território “trabalha a construção histórica, socioeconômica, cultural e étnica, seja do
Brasil, ou de outros países. Ela pode ser utilizada para diagnóstico, para análise crítica, e
planejamento”. Juntamente com a Geografia, o território discute a diversidade regional,
as desigualdades no espaço, as potencialidades da natureza e as diferenças da
população, permitindo que o sujeito tenha a percepção das relações que acontecem na
sociedade.
Com o reconto de Joãozinho e Maria (AGOSTINHO; COELHO, 2013), outra
categoria que pode ser destacada é o lugar, pois remete ao pertencimento em
determinado espaço, experiências e sentimentos trocados no ambiente em que habita,
tendo relação com as características específicas ali vivenciadas. É a partir dessa
categoria que os indivíduos conseguem estreitar laços com o espaço vivido e entender
os fatos históricos e culturais de um determinado local e grupo.
7

Para os autores Mendes, Sousa e Pereira:

O Lugar gera laços tão essenciais para os seres que estes passam a se
identificar a partir dele, a afetividade e o pertencimento resultam na
configuração da identidade de cada residente como membros de um
determinado grupo social. O interesse da ciência geográfica pelo Lugar em
grande parte se dá justamente pela busca das relações identitárias entre os
sujeitos e o espaço que estes habitam e se relacionam, gerando as mais
diversas experiências socioespaciais. (MENDES; SOUSA; PEREIRA, 2017,
p. 158)

Ao se deparar com a “Casa de Doces”, o conto a remete à sedução, ilusão e


paixão por um lugar que não é considerado propício à vida das crianças, mas que
oferece uma falsa felicidade aos que saem em busca de outras oportunidades pelo
mundo. Nesta questão, a Casa de Doces é colocada também como paisagem que utiliza
dos sentidos das crianças como, por exemplo, olfato, paladar, visão e audição, em que
tudo parece muito bom, mas é uma fantasia, pois para fazer parte disso, é preciso ter
recursos para consumir.
Dessa forma,

Trabalhar o lugar para ensinar a história e a cultura afro-brasileira possibilita


a interação do indivíduo com sua própria história de vida, com a história das
pessoas que ali vivem, com suas características linguísticas, seus hábitos e
suas manifestações culturais, especialmente se o grupo tem suas bases vindas
da África ou de ascendentes e descendentes africanos. Todas essas
particularidades fazem do lugar um espaço único, com sentimentos, dores e
detalhes que, junto à memória de cada ser humano, se torna referência de
vida, de comportamento social. (RAMOS; GOMES; SAMPAIO, 2017, p. 68)

Inicialmente é observado o grande interesse das crianças com a “Casa de


Doces”, o que pode ser compreendido que, naquele momento, o lugar aparentava paz e
uma ideia enganosa de apego afetivo, com uma certa intimidade. Porém, assim que as
crianças descobrem que os doces são uma armadilha, ocorre o sentimento de aversão
por aquele lugar, surgindo sensações negativas de medo e aflição de ficarem
aprisionados.
Os problemas sociais do Brasil analisados na imagem da Casa de Doces são a
fome e a miséria da sociedade brasileira, quando os pais não tem como comprar e
oferecer um alimento atrativo para os filhos, devido à falta de oportunidade
(desemprego ou salários muito baixos) no país. Os irmãos aproveitam o quanto podem,
pois não sabem quando terá comida dentro de casa, uma vez que a madrasta os deixa
passando fome.
8

Os personagens são expostos aos diversos perigos e problemas sociais como, por
exemplo, a fome existente no Brasil e no mundo. A falta de alimentos para as pessoas é
um processo resultante da desigualdade de renda, que faz milhões de pessoas passarem
necessidades básicas, em várias cidades e também no campo. O Brasil conseguiu sair do
mapa da fome em 2014 (CNN Brasil, 2021), porém na atualidade houve um aumento no
número de pessoas em situação de miséria, decorrente da política de governo. Além de
programas sociais, é necessário ofertar melhores condições de trabalho e aumento da
renda, para que a população possa garantir o sustento de forma digna.
Outro tema a ser trabalhado com o conto infantil é a pedofilia. Segundo a
Organização Mundial de Saúde (DEFATO, 2017), a pedofilia trata-se de um transtorno
de preferência sexual em que a pessoa sente desejos por crianças. O problema ocorre
quando o pedófilo deixa de ser apenas portador de uma doença e passa a abusar
sexualmente de crianças, porém não precisa em nenhum momento que o pedófilo tenha
contato físico com a vítima, assim sendo, a pedofilia pode materializar-se de diversas
formas como, por exemplo, no conto o fato da bruxa deixar o Joãozinho preso na gaiola
e sentir prazer em vê-lo nessa situação. Essa cena pode caracterizar um fetiche pedófilo.
Em relação à questão do trabalho infantil, o reconto relata que a velha bruxa
obriga Maria a fazer os trabalhos domésticos, como encher o forno de graveto até obter
um fogo bem forte para que seu irmão Joãozinho fosse assado, além da madrasta
explorar as crianças para que fossem sozinhas colher frutas na mata. Entende-se que
essas passagens do reconto estão ligadas com a realidade brasileira, como a exploração
da criança, que é um problema mundial que afeta mais 210 milhões de menores entre 5
e 14 anos. De forma abusiva e ilegal, esses menores são privados de sua infância,
interferindo na frequência à escola regularmente e afetando seu psicológico e
emocional. A pobreza e a falta de oportunidades são as principais causas dessa situação.
A Geografia, com o auxílio da Literatura, pode contribuir para a discussão de
conteúdos sociais, destacando a atualidade brasileira e mundial, assim é possível
aproximar as crianças da realidade do cotidiano, podendo colaborar para a formação do
indivíduo com valores críticos diante do cenário de falta de direitos humanos.

Contação de Histórias e o Ensino de Geografia


A lei 10.639/2003 é considerada um grande marco para o Movimento Negro que
sempre lutou pela obrigatoriedade do ensino da História e Cultura da África e dos
9

Afrodescendentes brasileiros. A implementação da lei federal nas escolas contribui para


a superação de uma estrutura de dominação sofrida pelo negro a partir do sistema de
produção escravista.
Segundo Ramos et al. (2012), para o ensino de Geografia, a contação de história
pode ser muito útil quando se pretende ensinar, por exemplo, as categorias de análise
como lugar, paisagem, região, espaço. Ao contar a história, o contador deve se sentir
seguro e, principalmente, atentar-se para a entonação da voz considerando cada
personagem, de forma que a criança possa deixar fluir a imaginação. É importante, após
contar a história, fazer uma relação entre ela e o tema que se pretende abordar, e, em
seguida, propor uma atividade como desenhos, brincadeiras, entre outras, para que
possa ser observado o nível de aproveitamento das crianças.

Discutir o ensino de História da África e cultura afro-brasileira nas escolas é


lembrar que o exercício da cidadania não pode ser constituído como
privilégio para poucos, é necessário promover políticas de igualdade, justiça
e solidariedade. Se um lugar como a escola reflete os dilemas da sociedade e
se consideramos ela capaz de formar cidadãos ativos e conscientes de sua
prática, é indiscutível ampliar o debate, profissionalizar os educadores e
estabelecer experiências modificadoras que promovam autoestima e bem-
estar. (QUEIROZ; JUNIOR, 2016, p. 227)

A partir do uso da Literatura, o professor de Geografia pode utilizar a atividade


de Contação de Histórias Africanas e Afro-brasileiras em sala de aula, pois é um
momento de reflexão no qual o aluno se fortalece para obter uma convivência melhor
com os diversos grupos étnicos, levando-o a corrigir os estereótipos criados e ser livre
de qualquer forma de discriminação.
Assim, o professor de Geografia tem o papel de facilitar o entendimento das
questões étnico-raciais com discussões de conhecimentos geográficos, porém é
importante que este docente esteja preparado para discutir a temática em sala de aula e
descontruir os estereótipos criados pela sociedade, despertando o interesse dos alunos
em uma sociedade igualitária e livre do racismo.
Com o uso do livro infantil, é possível trabalhar as questões afro-brasileiras
relacionadas a diversos conteúdos geográficos, bem como utilizar a Contação de
Histórias como ferramenta didática no processo de ensino e aprendizagem, em todos os
níveis de escolaridade, sendo capaz de envolver o aluno de forma interessada na
disciplina de Geografia.
10

Resultados e Discussões
A Contação de História é uma prática pedagógica eficaz para a construção de
conhecimentos, valores e identidade do aluno. É uma prática que estimula o letramento
e a leitura da criança, favorecendo o trabalho do docente em todos os níveis de ensino.
Além de desenvolver a imaginação, essa estratégia estimula a interação do aluno com a
literatura, propiciando conhecimentos e aprendizagem sobre o mundo e a sociedade.

Neste sentido, a contação de história é uma atividade interdisciplinar, pois


envolve habilidades e conceitos de diversas áreas do conhecimento,
especialmente das artes, sendo possível explorar os saberes geográficos,
permitindo o ensino de história e cultura afro-brasileira, valorizando
características pessoais, tipos de cabelo, cor da pele, lendas, e formas de
pensar o mundo do povo afrodescendente, conforme pede a Lei nº
10.639/2003 (RAMOS; GOMES; SAMPAIO, 2017, p. 69)

A parte prática desta pesquisa foi resultado das experiências e conhecimentos


vivenciados no Grupo de Estudos de Geografia e das Relações Étnico-Raciais, aplicados
no mês de setembro de 2019 em uma Escola Estadual urbana de Uberlândia-MG, com
alunos de 1° ao 5° ano. O principal objetivo do Projeto de Contação de Histórias na
Escola foi ensinar a cultura afro-brasileira a partir dessa metodologia no ensino de
Geografia. Com isso, foi possível apresentar às crianças a importância de respeitar a
diversidade racial para construir uma sociedade mais justa e igualitária.
A prática da Contação de História foi realizada com o auxílio do livro infantil
Joãozinho e Maria (AGOSTINHO; COELHO, 2013) e uso do recurso Datashow em
algumas salas, para que as crianças observassem com mais nitidez as ilustrações
contidas no livro. Foram disponibilizados folhas de papel branco, giz de cera e lápis de
cor para a realização da atividade.
Inicialmente, foi apresentado o livro para os alunos, explorando a capa, os
personagens e questionando a respeito do conhecimento sobre a história. Assim, foi
observado que a qual a maioria dos alunos a conhecia a partir do conto dos irmãos
Grimm, porém perceberam a diferença de raça entre os personagens. Após esse primeiro
contato com o livro, iniciou-se a leitura (Figura 1), sempre mostrando as ilustrações de
cada página através do Datashow, bem como atentando-se ao olhar de entusiasmo
daquelas crianças.
Figura 1 – Contação de Histórias para 2° ano
11

Fonte: arquivo de Adriany de Ávila Melo Sampaio, 2019.

Após a leitura do livro infantil, foi questionado sobre o que entenderam da


história, sendo que muitos responderam apontando para: a questão étnico-racial; a cor
negra da pele dos personagens; a importância de ter personagens negros como
protagonistas na literatura infantil, pois isso colabora para a autoestima da criança
negra; o valor da diversidade racial no país. Além dessa temática, foi discutida a
Cartografia por meio da história infantil, mostrando como os personagens conseguiram
voltar para a casa, como também ficaram perdidos na floresta. Foi explicado a
importância de se localizar em um determinado espaço e questionado se conheciam o
caminho de suas residências. Muitos alunos explicaram como chegar e alguns pontos de
referências, outros relataram que ainda vão aprender com seus pais.
Depois desta conversa com os alunos, foi proposta como atividade pedagógica
que representassem, em forma de desenho, o entendimento da história. A partir da
contação da história infantil, criou-se uma aproximação do ambiente da imaginação e do
vivido pelos personagens com a realidade da criança que estava desenhando. Foi
importante observar, a partir dos desenhos (Figura 2), a relação que os alunos fizeram
entre a história e seu cotidiano, mostrando como lidar com situações reais do dia a dia,
tais como respeito às diferenças raciais e a evitar conversas com pessoas desconhecidas.

Figura 2 − Atividade entendimento sobre a história


12

Fonte: Aluna L, 10 anos, 5° ano, 2019.

Na atividade produzida pelas crianças, pode-se observar que houve imaginação,


criatividade e até mesmo expressão, ou seja, por meio de um desenho, a criança mostrou
a parte que mais chamou a sua atenção. No desenho acima, a criança optou por desenhar
a “Casa de Doces” e representou os personagens com a cor da pele negra, conforme
ilustrados no livro (Figura 3 e 4), apresentando que todos os grupos étnicos merecem
respeito. Vale ressaltar que o processo de autoidentificação e a questão racial, bem
como o combate ao racismo, são conteúdos ainda pouco debatidos na escola, porém é
preciso que o professor os insera na sala de aula. Um fato a destacar foi da professora do
1° ano se interessar pela coleção de livros infantis com a temática racial, relatando que
iria adquirir para trabalhar com seus alunos e abordar a desconstrução dos estereótipos
criados a respeito do negro na sociedade brasileira.

Figura 3 − Atividade entendimento sobre a história

Fonte: Aluna A.L, 1° ano, 6 anos, 2019.


13

Figura 4 − Atividade entendimento sobre a história

Fonte: Aluno G., 2° ano, 7 anos, 2019.

Após o desenvolvimento da prática, foi feita a análise dos resultados, que


consistiu em um processo de observação do comportamento dos alunos durante a
Contação de Histórias e as atividades realizadas. Quanto ao aproveitamento final, pode-
se afirmar que foi muito bom, apesar de no início algumas crianças não quiseram
desenhar, ao final entregaram a atividade, ou seja, foi preciso entender o ritmo infantil,
porém sempre incentivando com palavras positivas para realizarem o que foi proposto.
O interesse das crianças na Contação de História e nas atividades foi
considerado como muito bom, pois muitos alunos se mostraram bastante interessados
com as atividades, sempre pedindo para outros professores do projeto irem contar outras
histórias. Pode-se afirmar que a participação nas atividades foi proveitosa, devido às
crianças responderem o que foi questionado e participarem fazendo o desenho e
colorindo. Todos os alunos entregaram as atividades questionando o que seria feito com
seus desenhos.

Considerações Finais
Dezessete anos após a implementação da Lei 10.639/2003 no sistema
educacional, ainda há dificuldade em incluir a História e Cultura africana no
planejamento escolar, por isso, através da Literatura, o professor poderá selecionar
livros que retratem em sua narrativa a história dos povos africanos e indígenas,
observando se a história e as ilustrações desses grupos étnicos estão representadas de
forma positiva, uma vez que podem conter estereótipos racistas.
Para a aplicabilidade da Lei no Ensino de Geografia, é possível utilizar a
Literatura como forma de inserir ações pedagógicas em salas de aula. Com o estudo
sobre a África a partir da Contação de Histórias, o aluno será capaz de desconstruir
14

visões reduzidas e equivocadas do continente e obterá maior conhecimento acerca das


contribuições africanas para a sociedade brasileira.
Vale destacar a importância de ampliar o uso da Literatura e de outras
atividades, na Geografia, que possam contribuir para a aplicabilidade da Lei Federal
10.639/2003 na escola. Com isso, é possível promover atividades culturais que
valorizem a cultura africana, levando o debate racial para a sala de aula e discutindo
práticas antirracistas dentro e fora da escola.
A Contação de Histórias proporcionou novas experiências sobre a prática
pedagógica em sala de aula, pois foi possível colocar em imagens parte do conteúdo que
foi aprendido na teoria, fazendo conexões com a realidade atual das crianças. Essa
prática foi capaz de instigar o interesse das crianças, desenvolvendo o respeito a todos, e
tudo isso foi viável usando um método alternativo para ensinar e aprender o conteúdo
geográfico, incentivando a imaginação e a leitura.

Referências
AGOSTINHO, Cristina; COELHO Ronaldo Simões. Joãozinho e Maria. Adaptação.
Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013, 16p.

BRASIL. Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10/01/2003. Brasília,


2003.

BRASIL. Lei Nº 11.645, de 10 de março de 2008. D.O.U. 11/03/2008. Brasília, 2008.

INFLAÇÃO e pandemia podem empurrar Brasil de volta ao Mapa da Fome. CNN


Brasil, 01 abr. 2021. Nacional. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/inflacao-e-pandemia-podem-empurrar-brasil-de-
volta-ao-mapa-da-fome/#:~:text=O%20Brasil%20deixou%20o%20chamado,a
%20extrema%20pobreza%20em%2025%25. Acesso em: 10 out. 2021.

MENDES, Raquel Almeida; SOARES, Elaine da Silva; PEREIRA, Aires José. A


importância da categoria lugar no ensino de Geografia: um estudo de caso na Escola
Estadual Modelo em Araguaína - TO. Revista Tocantinense de Geografia, Araguaína
(TO), ano 06, n. 11, set./dez. 2017.

OLIVEIRA, Ana Flávia Borges de. A Representação do negro no livro didático de


Geografia do 8° Ano do Ensino Fundamental. 2019. 46 f. Monografia (Graduação em
Geografia) − Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2019.

PEDOFILIA deve ser vista como transtorno mental. DeFato, 23 out. 2017. Notícias.
Disponível em: https://defatoonline.com.br/canais/saude-e-bem-estar/noticias-saude-e-
15

bem-estar/2017/10/23/pedofilia-deve-ser-vista-como-transtorno-mental/. Acesso em: 22


jul. 2019.

QUEIROZ, Graziella Fernanda Santos; JÚNIOR, Manoel Caetano do Nascimento.


Ensino de História e cultura africana e afro-brasileira: experiência docente no ensino
fundamental. In: Encontro Estadual de História, 17, 2016, v. 17, n. 1, Paraíba. Anais...
ANPUH-PB, p. 222-229.

RAMOS, João Paulo Bernardo; GOMES, Fernanda Lamanes; SAMPAIO, Adriany de


Ávila Melo. Contação de histórias na Geografia: contribuições da educação popular
para o ensino da história e cultura afro-brasileira. Revista Ed. Popular, Uberlândia, v.
16, n. 1, p. 63-71, jan./abril. 2017.

RAMOS, João Paulo Bernardo et al. Contação de Histórias e o ensino de Geografia


em atividades extraescolares. Apoio PROEX-UFU, 2012. Disponível em:
http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal14/Ensenanzadelageografia/
Metodologiaparalaensenanza/41.pdf. Acesso em: jan. 2020.

SILVA, Maria Auxiliadora Gomes da; AZEVEDO, Sérgio Luiz Malta de. O Espaço
Geográfico através da literatura: um estudo dos contos de Guimarães Rosa. Revista
Científica da FASETE, 2015. Disponível em:
https://www.fasete.edu.br/revistarios/media/revistas/2015/9/o_espaco_geografico_atrav
es_da_literatura.pdf. Acesso em: 02 abr. 2019.

Você também pode gostar