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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Centro de Estudos Internacionais sobre Governo


Especialização em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa

CIRO ALBUQUERQUE TELLES

O CRESCIMENTO DO MERCADO CHINÊS E A NACIONALIZAÇÃO DOS


HIDROCARBONETOS: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A BOLÍVIA

Porto Alegre
2020
CIRO ALBUQUERQUE TELLES

O CRESCIMENTO DO MERCADO CHINÊS E A NACIONALIZAÇÃO DOS


HIDROCARBONETOS: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A BOLÍVIA.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito parcial à obtenção do título de
Especialista em Relações Internacionais:
Geopolítica e Defesa pelo Centro de Estudos
Internacionais sobre Governo da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Me. Guilherme Thudium

Porto Alegre – RS
2020
FOLHA DE APROVAÇÃO

CIRO ALBUQUERQUE TELLES

O CRESCIMENTO DO MERCADO CHINÊS E A NACIONALIZAÇÃO DOS


HIDROCARBONETOS: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A BOLÍVIA.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito parcial à obtenção do título de
Especialista em Relações Internacionais do Centro
de Estudos Internacionais sobre Governo, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientador: Prof. Me. Guilherme Thudium

Aprovado em: Porto Alegre – RS ,

BANCA EXAMINADORA:

Nome e titulação do orientador


Instituição do orientador

Nome e titulação do membro da banca


Instituição do membro da banca

Nome e titulação do membro da banca


Instituição do membro da banca
Dedico este trabalho à minha esposa, Renata, fiel
companheira de todos os momentos e grande
apoiadora de meus trabalhos e estudos.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus, pelo dom da vida e por ter me conduzido até este
momento de pleno sucesso profissional e felicidade pessoal. À minha esposa, Renata, que me
apoiou durante toda a condução deste curso de especialização e, com inestimado
companheirismo, soube compreender as inúmeras horas de estudo despendidas em detrimento
do convívio familiar. Agradeço, também, aos meus pais, por terem me proporcionado o amor e
o carinho que serviram de base para meu caráter e a educação e ensino indispensáveis para
minhas conquistas até aqui alcançadas.
Não poderia deixar de agradecer a todo o corpo docente do Curso de Especialização em
Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela brilhante condução
dos trabalhos e aulas ministradas ao longo de 2019, em especial, ao meu orientador, Professor
Guilherme Thudium, cujo apoio, compreensão e vasto conhecimento foram primordiais para a
redação deste Artigo.
Agradeço, também, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, me auxiliaram na
elaboração deste projeto e, por fim, agradeço à Força Aérea Brasileira, instituição à qual sirvo
há mais de vinte anos e que foi provedora de grande parte de meu alicerce acadêmico.
RESUMO

O presente estudo pretende relacionar o aumento da demanda do mercado chinês e o acréscimo


das exportações de hidrocarbonetos da Bolívia com um possível processo de
desindustrialização daquele país. O entendimento das consequências do novo cenário global
para a economia boliviana poderá ajudar na compreensão do comportamento de outras
economias cujos desempenhos também sejam calcados na exportação de bens primários, além
de auxiliar no entendimento dos impactos de tais relações no cenário geopolítico atual. A
pesquisa adotará o método hipotético-dedutivo, fazendo uso de dados oficiais levantados, para
a comprovação da hipótese apresentada. A conclusão preliminar dos trabalhos consiste na
observação dos sintomas da doença holandesa na economia Boliviana, bem como de uma
dependência das exportações de commodities energéticas.

Palavras-chave: Desindustrialização; Bolívia; China; Hidrocarbonetos.


ABSTRACT

The present study aims to relate the increase in demand from the Chinese market and the
increase in hydrocarbon exports from Bolivia with a possible deindustrialization process in that
country. Understanding the consequences of the new global scenario for the Bolivian economy
may help to understand the behavior of other economies whose performances are also based on
the export of primary goods, in addition to helping to understand the impacts of such relations
on the current geopolitical scenario. The research will adopt the hypothetical-deductive method,
making use of official researched data to prove the hypothesis presented. The preliminary
conclusion of the work consists of observing the symptoms of the Dutch disease in the Bolivian
economy, as well as a dependence on exports of energy commodities.

Keywords: Deindustrialization; Bolivia; China; Hydrocarbons.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURA 1 - Parcelas chinesas de prod. e consumo de commodities, em 1990, 2000 e 2009..............15


FIGURA 2 - Parcelas chinesas de prod. e import. de commodities, em 1990, 2000 e 2009....................15
FIGURA 3 - Produto Interno Bruto da Bolívia (2000 – 2010) ..............................................................17
FIGURA 4 - Valor exportações Bolívia (2000 – 2010, em bilhões de dólares) ....................................17
FIGURA 5 - Exportações da Bolívia, como percentual do PIB (2000 - 2010) .....................................18
FIGURA 6 - Exportações por tipo de produto (2000 – 2010, em milhões de dólares) ..........................18
FIGURA 7 - Evolução da composição das exportações da Bolívia (2000 – 2010) ...............................19
FIGURA 8 - Evolução dos índices de valor e índices de volume das exportações................................19
FIGURA 9 - Preços das commodities (2000 – 2010) ............................................................................20
FIGURA 10 – Export. de Gás Natural, de 00 a 10, em milhões de dólares e MPCS ............................20
TABELA 1 - Categorias de bens............................................................................................................21
FIGURA 11 - Evolução da composição das exportações, de acordo com a classificação tecnológica, em
porcentagem do total (2000 – 2010) ......................................................................................................22
FIGURA 12 - Importações da Bolívia, em milhões de dólares (2000 – 2010) ......................................22
FIGURA 13 - Importações da Bolívia como percentual do PIB (2000 A 2010) ...................................23
FIGURA 14 - Valores de import., por tipo. (2000 – 2010, em milhões de dólares) ..............................23
FIGURA 15 - Composição das Importações da Bolívia, por tipo. (2000 – 2010) .................................23
FIGURA 16 - Taxa de câmbio dólar x peso Bol (média anual, de 2000 a 2010) ..................................24
FIGURA 17 - Taxa de desemprego na Bolívia (2000 – 2010) ..............................................................25
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
2 CONJUNTURA BOLIVIANA E OS IMPACTOS DO “EFEITO CHINA” ................. 11

2.1 CENÁRIO POLÍTICO BOLIVIANO ................................................................................ 12


2.2 CRESCIMENTO DA DEMANDA CHINESA: EM BUSCA DE NOVOS MERCADOS ............13

3 ANÁLISE DE DADOS DA ECONOMIA BOLIVIANA ................................................. 16

3.1 PRODUTO INTERNO BRUTO ........................................................................................ 16


3.2 EXPORTAÇÕES ............................................................................................................... 17
3.3 IMPORTAÇÕES ................................................................................................................ 22
3.4 TAXA DE CÂMBIO .......................................................................................................... 24
3.5 DESEMPREGO ................................................................................................................. 24

4 DESINDUSTRIALIZAÇÃO E DOENÇA HOLANDESA NA BOLÍVIA ..................... 25


5 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 28
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 30
10

1 INTRODUÇÃO

Como uma civilização milenar, a China passou por diversas fases, sendo as últimas
décadas um dos períodos mais marcantes da história do país. Desde a Revolução de Sun Yatsen,
que marcou a criação de um governo republicano, passando pelo rompimento com a URSS e a
abertura de seu mercado, a China vem experimentando um crescimento constante, que se
acentuou a partir dos anos 2000, quando, após integrar a OMC e, baseada em um projeto de
desenvolvimento multifascético globalizado, o país ultrapassou o Japão e assumiu o posto de
segunda maior economia do mundo1, tornando-se, assim, um expoente entre os demais países
do eixo industrial emergente (VISENTINI, 2019). Durante esse mesmo período, qual seja, a
primeira década dos anos 2000 (2000 - 2010), a elevada demanda chinesa pela infraestrutura
necessária para sustentar suas altas taxas de crescimento acarretou significativa valorização das
commodities energéticas no mercado mundial.
Tomando o mencionado contexto temporal como pano de fundo, nos debruçaremos
sobre os impactos gerados por tal conjuntura na economia da Bolívia, que consiste em uma das
maiores exportadoras de gás natural e minérios das Américas e que, durante o mesmo período,
passou por um significativo processo de nacionalização de seus recursos energéticos.
Para o desenvolvimento do presente trabalho, foram estabelecidos os seguintes
objetivos específicos: identificar o contexto político do caso boliviano, na década de 2000,
diante do crescimento do mercado chinês; identificar dados referentes ao desempenho da
economia boliviana, durante o mesmo período; e, por fim, identificar os conceitos de
desindustrialização e de doença holandesa.
Com o intuito de balizar o presente trabalho, estabeleceu-se o seguinte problema de
pesquisa: de que maneira o crescimento da demanda da China e a nacionalização dos
hidrocarbonetos afetou a economia boliviana? Trabalharemos com a hipótese de que o
crescimento do mercado chinês, que ocasionou uma alta no preço das principais commodities
energéticas, estaria fomentando uma dependência da exportação de bens primários, por parte
da economia boliviana, e levando ao início do fenômeno de desindustrialização, que consiste
em um processo que, de acordo com Bresser Pereira (1990), leva à reprimarização da pauta de
exportações de um país. Quando tal reversão ocorre no sentido das commodities, como é o
objeto do presente estudo, o evento pode ser visto como sintoma da chamada “doença

1 Ao considerarmos o método alternativo de Paridade do Poder de Compra (PPC), a China já atingiu a posição de
maior economia do mundo.
11

holandesa”, caracterizada, também, pela valorização do câmbio ante a exploração de


abundantes recursos naturais.
A pesquisa adotará o método hipotético-dedutivo, fazendo uso de dados estatísticos
oficiais para a análise necessária. A partir de toda a informação pesquisada acerca do
desempenho da economia boliviana ao longo do período temporal proposto, analisaremos a
correlação entre tais dados e os conceitos de “desindustrialização” e de “doença holandesa”,
com o fulcro de confirmar, ou não, a hipótese em tela.
O entendimento das consequências do novo cenário global para a economia boliviana
poderá ajudar na compreensão do comportamento de outras economias cujos desempenhos
também sejam calcados na exportação de bens primários, além de auxiliar no entendimento dos
impactos de tais relações no cenário geopolítico atual. Ademais, busca-se suprir uma lacuna
acadêmica existente em nosso país, no tocante aos estudos relacionados à Bolívia, importante
vizinho, que está inserido em nosso entorno estratégico e com o qual partilhamos extensa
fronteira terrestre e diversas semelhanças.
Faz-se oportuno mencionar a motivação profissional que levou este autor a escolher o
presente tema, que consiste no desempenho da função de analista do Centro de Inteligência da
Aeronáutica, com a tarefa precípua de analisar a conjuntura boliviana, suas influências em
nosso entorno estratégico, bem como possíveis desdobramentos para o campo da Defesa
Nacional.
No segundo capítulo do trabalho, buscaremos revisar o contexto dos casos boliviano e
chinês, com ênfase na nacionalização dos hidrocarbonetos da Bolívia, que se deu de forma
quase concomitante à alta das commodities vivenciada em meados de 2000. No terceiro
capítulo, iremos expor dados afetos ao desempenho da economia boliviana ao longo do mesmo
recorte temporal. Em seguida, no terceiro capítulo, exploraremos os conceitos de
“desindustrialização” e de “doença holandesa”, para, por fim, expor as derradeiras
considerações na conclusão deste Artigo.

2 CONJUNTURA BOLIVIANA E OS IMPACTOS DO “EFEITO CHINA”

Neste capítulo, abordaremos o cenário político vivido na Bolívia, ao longo da primeira


década de 2000, e relacionaremos tal conjunura com as medidas que levaram à nacionalização
das reservas de gás natural e petróleo do país, em 2006. Em um segundo momento, revisaremos
as causas do rápido crescimento da economia chinesa, experimentado ao longo do mesmo
12

período, e verificaremos como tal fenômeno impactou o mercado mundial das commodities
energéticas e, consequentemente, a economia boliviana.

2.1 CENÁRIO POLÍTICO BOLIVIANO

Antes de nos debruçarmos estritamente sobre o campo econômico, que será discutido
no próximo capítulo, faz-se necessário abordar alguns aspectos políticos vivenciados no início
dos anos 2000 e que foram decisivos para significativas mudanças estruturais na economia da
Bolívia, país que integra o eixo agrário, mineral e periférico do poder mundial, cujas principais
características serão relevantes para a presente análise, a saber: fragilidade político-social,
debilidade econômica, agenda interna basicamente voltada para a manutenção de sua existência
como nação, além de sujeição às grande potências e players mundiais (VISENTINI, 2019)2.
Apesar do aparente sucesso da Revolução Nacional, de 19523, que teve como um de
seus principais objetivos acabar com os padrões de organização social vigentes desde a colônia,
o que se observou na Bolívia até o final dos anos 90 foram sucessivas crises de legitimidade
política, que era protagonizada por alianças partidárias efêmeras e com pouca
representatividade popular. Tal aspecto excludente da política boliviana pode ser considerado
como um dos fatores de insatisfação latente e que culminaram em fortes mobilizações sociais
entre 2000 e 2005.
Além do desgaste político vivido à época, o cenário econômico internacional
desfavorável, que culminou em uma queda vertiginosa no desempenho da economia boliviana
e em altas taxas de desemprego, levou a uma insatisfação generalizada quanto ao
neoliberalismo, recém-estreado na América Latina, e a uma posterior onda nacionalista, como
veremos a seguir.
Em 2003, protestos populares tomaram as ruas do país e o então presidente Sanchez de
Lozada renunciou ao cargo, por não mais possuir sustentação política. Seu sucessor, Carlos
Mesa, como uma de suas primeiras medidas e a despeito da posição contrária de toda a opinião
pública, aprovou a Lei de Exploração de Recursos Naturais do País. Tal Lei foi considerada

2 Segundo a categorização de polos de poder mundiais pós-Guerra Fria, o primeiro grupo político-econômico
proposto por Visentini (2019), consiste no “eixo militar-rentista anglo-saxão”, que é, basicamente, constituído
pelas grandes nações hegemônicas. O segundo é o “eixo industrial desenvolvido”, que aglutina União Europeia,
Japão e Tigre Asiáticos. O terceiro consiste no “eixo industrial heterodoxo emergente”, integrado pelos BRICS,
com destaque para a China e Rússia e, finalmente, o “eixo agrário, mineral e demográfico periférico”, do qual,
dentre outros, faz parte a Bolívia.
3 Também conhecida como Revolução Boliviana, o período que se estende de 9 de abril de 1952 até 4 de novembro
de 1964 foi uma importante revolução popular, que teve como objetivo mudar a ordem econômica, social e política
vigente.
13

uma afronta à soberania nacional, o que levou, mais uma vez, a uma série de protestos. Na
esteira de mais uma renúncia, agora por parte de Mesa, novas eleições foram convocadas e os
dois principais concorrentes desse novo pleito foram Jorge Quiroga, que representava uma
alternativa conservadora e desgastada, e Evo Morales, pertencente ao MAS (Movimento al
Socialismo) e portador de ideais progressistas, que catalisavam o anseio de mudanças, de
grande parcela da população. O resultado das eleições, apesar de previsível, surpreendeu pela
larga vantagem de Morales, que se tornou presidente da Bolívia com mais de 54% dos votos
válidos.
Menos de quatro meses depois de assumir a presidência, Evo deu o caráter vinculante a
um referendo realizado por Mesa, ainda em 2004, no qual a grande maioria dos votantes se
declarou favorável à nacionalização das jazidas de petróleo e gás natural. Com isso, Morales
baixou o Decreto Supremo 28071, de 1.º de Maio de 2006, o qual: a) devolvia ao Estado
Boliviano a propriedade dos recursos naturais ali encontrados; b) retomava a gestão de todas as
etapas de produção daqueles; c) determinava que somente poderiam ser executados os contratos
devidamente aprovados pelo Congresso Boliviano; d) ordenava a nacionalização das ações
necessárias para que a YPFB (Yacimentos Petroliferos Fiscales Bolivianos) passasse a deter
50% mais 1 das ações das empresas transnacionais estabelecidas em território boliviano e e)
estabelecia o período de 180 dias para que estas mesmas empresas pudessem se adaptar às
disposições do decreto, através da assinatura de novos contratos ou saída do território boliviano.
Apesar de toda a polêmica gerada e dos efeitos negativos para as empresas
internacionais que controlavam grande parte dos recursos naturais bolivianos (dentre elas, a
Petrobrás), o governo Evo esperava, como resultado da nacionalização, um impacto positivo
para a economia boliviana, como viria a se confirmar nos anos subsequentes. Tal impacto
superou as expectativas das equipes econômicas, em virtude da súbita alta dos preços das
commodities energéticas no mercado internacional, motivadas pelo chamado “efeito China”.

2.2 CRESCIMENTO DA DEMANDA CHINESA: EM BUSCA DE NOVOS MERCADOS

Na sequência de um notável período de crescimento, iniciado pela abertura de seu


mercado, por Xiaoping, nos anos 80, a República Popular da China consolidou-se, ao longo da
primeira década de 2000, como o maior exportador e segundo maior importador mundial, o que
representou um incremento nas trocas comerciais com os países em desenvolvimento, muito
embora as economias mais industrializadas permanecessem como seus principais parceiros. Já
após 2008, o país se tornou ainda mais assertivo em sua política de desenvolvimento
14

globalizada e, na esteira da crise financeira mundial, consolidou-se como expoente do eixo


industrial emergente (VISENTINI, 2019).
Uma série de fatores proporcionou os alicerces para tal ascensão chinesa, tanto no
comércio mundial como na divisão internacional do trabalho. O mais importante para o presente
estudo são, de fato, as consequências que o vertiginoso crescimento chinês acarretou na
economia mundial, mais especificamente, no preço das commodities energéticas. Como um dos
fatores primários para tais mudanças, podemos elencar, inicialmente, a urbanização e sua
consequente industrialização. Apesar da existência de políticas restritivas quanto à migração
campo-cidade, principalmente após a Revolução Cultural, a população urbana, em 1980, já era
de, aproximadamente, um quinto do total, número esse que começou a crescer drasticamente a
partir de 1985, chegando a 46%, em 2010.
Tais políticas públicas começaram a mudar no início dos anos 2000, quando o governo
chinês passou a promover a urbanização como forma de aliviar a superpopulação das áreas
rurais e suprir as necessidades de mão de obra barata do crescente setor industrial. Estima-se
que em 2025 mais 350 milhões de chineses migrarão para os centros urbanos, o que equivale à
população dos cinco maiores países europeus somadas.
O rápido crescimento econômico chinês, associado à crescente população urbana
ocasionou elevadas demandas por infraestrutura, como estradas, pontes, ferrovias, redes de
saneamento e de eletricidade. Em meados da primeira década dos anos 2000, o setor de
construção civil já consumia metade das importações de aço, além de um terço de toda a
produção de alumínio do país. Também em 2005, a média do consumo de cimento per capita
na China era de 795 kg por habitante, número consideravelmente acima da média de países
considerados desenvolvidos, que à época era de 350 a 600 kg por habitante. Em cada um desses
exemplos, as demandas do setor da construção se traduzem, também, em demandas indiretas
por commodities energéticas. Além disso, ressalta-se que, de 2000 a 2010, 60% de todos os
investimentos fixos da China se destinaram aos setores de infraestrutura e construção civil.
Importante ressaltar que a China sempre foi um dos maiores produtores globais de
diversos tipos de commodities e, até o final da década de 90, o país, além de autossuficiente,
era um grande exportador de diversos desses produtos. Entretanto, o rápido crescimento
econômico e suas diversas consequências já mencionadas fizeram com que a demanda
doméstica rapidamente suplantasse a capacidade de suprimento chinês de todos os tipos de
commodities.
Aqui, conforme Figura 1, o domínio chinês tanto no consumo como na produção de
carvão é evidente (quase metade do total mundial) e nota-se que ambos cresceram rapidamente
15

após o ano 2000. No caso do gás e do petróleo, a parcela chinesa do total mundial é menor,
entretanto, ressalta-se o significativo crescimento de ambos os setores, que quase dobraram,
também após o ano 2000.

Figura 1: Parcelas chinesas de produção e consumo de commodities energéticas, em 1990,


2000 e 2009

Fonte: FAROOKI; KAPLINSKY (2012).

Quando comparamos a produção versus importação, conforme Figura 2, observa-se


igual tendência, destacando-se valores quase duas vezes maiores na importação de petróleo e
gás, entre os anos de 2000 e 2009.

Figura 2: Parcelas chinesas de produção e importação de commodities energéticas, em 1990,


2000 e 2009

Fonte: FAROOKI; KAPLINSKY (2012).

Torna-se evidente que, de fato, a demanda chinesa por commodities energéticas


suplantou sua capacidade de produção. Segundo Farooki e Kaplinski (2010), no decorrer da
primeira década dos anos 2000, a China ainda se encontrava em um estágio imaturo de consumo
dessas commodities, com uma estimativa de manutenção de suas taxas de crescimento pelos
anos vindouros, o que se traduz em igualmente altas demandas sustentadas por commodities,
16

levando, por sua vez, a uma elevação de seus valores de mercado, ainda segundo os autores.
Tal contexto diferencia a alta vivida nos anos 2000 dos últimos dois picos de preços, vividos
no início dos anos 50 e 70, quando as expectativas de elevação da demanda mundial acabaram
por não se concretizar, acarretando posteriores quedas nos valores dos produtos no mercado
mundial.
A elevação de preços, decorrente do, já mencionado, “efeito China”, gerou impactos
significativos em todo o mercado mundial, em especial nas economias primário exportadoras,
como veremos no caso boliviano.

3 ANÁLISE DE DADOS DA ECONOMIA BOLIVIANA

Antes de iniciarmos a exposição de dados afetos à economia boliviana, no decorrer do


período proposto, cabe esclarecer que os anos de 2000 a 2010 englobam dois dos cinco períodos
da história econômica da Bolívia, desde 1952 (KEHOE, 2015). Os anos de 2000 a 2005
representam o final do ciclo chamado “Crescimento Lento”, iniciado em 1986 e caracterizado
por uma reorientação do mercado, em busca da estabilização econômica, após a crise vivida
entre 1979 e 1985 e, também, por reformas estruturais que tentavam promover o protagonismo
do setor privado no desenvolvimento do país. Trata-se de um ciclo de crescimento econômico
baixo, como seu próprio nome sugere.
Já o ciclo que se iniciou em 2006 e segue até os dias atuais denomina-se “Nacionalização
e Crescimento” e, ao contrário do ciclo anterior, caracteriza-se pelo retorno do protagonismo
do Estado na economia e pela propriedade estatal das principais empresas dos setores
energéticos, com o advento do processo de nacionalização, que foi conduzido em maio de 2006,
por Evo Morales. Tal ciclo caracteriza-se, também, por um contexto internacional bastante
favorável, conforme exposto no capítulo anterior e por altas taxas de crescimento da economia,
como observaremos a seguir.

3.1 PRODUTO INTERNO BRUTO

O crescimento notável da economia boliviana pode ser ilustrado, dentre outros


indicadores, pelo desempenho de seu Produto Interno Bruto (Figura 3), que passa de 8 bilhões
de dólares, em 2000, para aproximadamente 20 bilhões, em 2010. Nota-se um aumento do
crescimento do PIB a partir de 2006, ano que representa um rompimento da série histórica. De
17

fato, se avaliarmos a taxa de crescimento médio entre 2000 e 2005, obtém-se um crescimento
anual de 3%, inferior ao crescimento médio de 2006 a 2010, que foi de 5,06%.
Além disso, tal incremento na taxa de variação do PIB boliviano coincide com a data na
qual se iniciou o processo de nacionalização dos hidrocarbonetos, conduzido por Evo Morales.

Figura 3: Produto Interno Bruto da Bolívia (2000 – 2010)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).

3.2 EXPORTAÇÕES

As exportações bolivianas tiveram um desempenho ainda mais expressivo do que o PIB.


Conforme se observa na Figura 4, o valor das exportações, que era de apenas um bilhão de
dólares em 2000, alcançou mais de seis bilhões em 2010. O crescimento foi constante durante
todo o período, com a exceção de 2009. A Figura 5, por sua vez, ilustra que a parcela das
exportações, em números percentuais em relação ao PIB, passou de, aproximadamente, 15%,
em 2000, para quase 33%, em 2010.

Figura 4: Valor exportações Bolívia (2000 – 2010, em bilhões de dólares)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).


18

Figura 5: Exportações da Bolívia, como percentual do PIB (2000 – 2010)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).

Por oportuno, na Figura 6, dividimos os valores das exportações por tipos de produtos,
de acordo com uma classificação tradicionalmente utilizada na Bolívia, qual seja, entre
Hidrocarburos, Minerales e No Tradicionales.

Figura 6: Exportações por tipo de produto (2000 – 2010, em milhões de dólares)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).

Na Figura 7, apresentamos a participação das três categorias nas exportações totais.


Observa-se que as exportações de hidrocarbonetos tiveram um aumento significativo, ao
mesmo tempo em que as exportações de “no tradicionales” apresentaram significativa redução.
19

Interessante mencionar que a soma das exportações de hidrocarburos e minerales, que não
chegavam a 50% em 2000, aproximam-se de 80%, em 2010.

Figura 7: Evolução da composição das exportações da Bolívia (2000 – 2010)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).

Face ao notório aumento das exportações bolivianas, mais especificamente dos


hidrocarbonetos, faz-se mister elucidar se tal incremento foi devido à alta dos preços, ao
aumento dos volumes produzidos ou a uma combinação de ambos os fatores. Na Figura 8, que
ilustra a evolução do índice de valores e do índice de volumes das exportações, entre 2000 e
2010, observa-se que enquanto o primeiro aumentou em cinco vezes, o segundo aumentou em
apenas duas.

Figura 8: Evolução dos índices de valor e índices de volume das exportações

Fonte: WORLD DEVELOPMENT INDICATORS (2019).


20

Portanto, observa-se que o acréscimo da participação das exportações bolivianas no


PIB do país, durante o período em tela, não se deveu apenas ao incremento da receita gerada
pela nacionalização dos hidrocarbonetos, mas também, e de forma mais destacada, ao aumento
de seus preços de mercado, ilustrados pela Figura 9.

Figura 9: Preços das commodities (2000 – 2010)

Fonte: FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL (2019).

A Figura 10 ilustra a variação do volume e valor das exportações do principal produto


boliviano: o gás natural. Observa-se a mesma tendência de alta em ambas as variáveis, com a
exceção de 2009, período pós-crise americana de 2008.

Figura 10: Exportação de Gás Natural, de 2000 a 2010, em milhões de dólares e MPCS

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).

Todos os gráficos apresentados até agora mostram que as exportações bolivianas se


constituíam, em sua maioria, por matérias primas. Infere-se, com isso, que o país estabeleceu
21

significativa dependência dos preços internacionais das commodities e tornou-se, dessa


maneira, vulnerável a eventuais variações externas dos valores de tais produtos. Ainda nesse
sentido, não se observou esforço do governo boliviano no tocante à diversificação da matriz
produtiva do país, nem mesmo incentivos à indústria, como abordaremos a seguir.
Ao analisarmos a composição total das exportações bolivianas, dividimos os produtos
exportados em cinco grupos, de acordo com seu nível tecnológico e seguindo metodologia
adotada por Lall (2000), a saber: (1) bens primários; (2) manufaturas baseadas em recursos
naturais; (3) manufaturas de baixa tecnologia; (4) manufaturas de média tecnologia e (5)
manufaturas de elevada tecnologia, conforme exemplos da Tabela 1:

Tabela 1 – Categorias de bens

Categoria Exemplos de produtos


1. Bens primários Frutas, carne, arroz, chá, madeira, grãos, petróleo, gás, etc.

2.Manufaturas baseadas em recursos Derivados da carne, bebidas, produtos de madeira, azeites


naturais vegetais, derivados do petróleo, cimento, vidro, etc.

3.Manufaturas de baixa tecnologia Produtos têxteis, roupas, calçados, cerâmica, móveis, plásticos, etc.

4.Manufaturas de média tecnologia Veículos automotores e autopeças, fibras sintéticas, produtos


químicos, fertilizantes, máquinas industriais, etc.
5.Manufaturas de elevada tecnologia Televisores, computadores, turbinas, instrumentos óticos,
produtos farmacêuticos, etc.

Fonte: Elaboração própria.

A Figura 11 exibe a evolução da composição das exportações bolivianas, de acordo com


sua classificação tecnológica, entre 2000 e 2010. Merece destaque o fato de que as categorias
1 e 2 apresentaram significativo aumento. No ano 2000, as duas categorias somadas
representavam, aproximadamente, 70% das exportações, enquanto, em 2010, suas somas
chegaram a mais de 90%. Tal fato, invariavelmente, acarreta uma redução das outras três
categorias, que, somadas, representavam 29% do total, em 2000 e passaram para apenas 9% em
2010.
22

Figura 11: Evolução da composição das exportações, de acordo com a classificação


tecnológica, em porcentagem do total (2000 – 2010)

Fonte: WORLD INTEGRATED TRADE SOLUTION (2019).

3.3 IMPORTAÇÕES

Seguindo a mesma tendência apresentada pelas exportações, as importações bolivianas


também sofreram significativo aumento durante o período de análise, conforme se observa na
Figura 12. Tal tendência também fica em evidência ao analisarmos as importações como
percentual do PIB (Figura 13).

Figura 12: Importações da Bolívia, em milhões de dólares (2000 – 2010)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).


23

Figura 13: Importações da Bolívia como percentual do PIB (2000 A 2010)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).

Apesar do valor das importações ter subido consideravelmente, observa-se que sua
composição permaneceu estável entre 2000 e 2010, conforme ilustram as Figuras 14 e 15.

Figura 14: Valores de importações, por tipo. (2000 – 2010, em milhões de dólares)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).

Figura 15: Composição das Importações da Bolívia, por tipo. (2000 – 2010)

Fonte: UDAPE (2019); BANCO CENTRAL DA BOLIVIA (2019).


24

O aumento do volume de importações, normalmente, tem como uma de suas causas a


apreciação do câmbio, como será exposto a seguir. Já a manutenção dos percentuais de
participação dos diferentes tipos de produtos consiste em indício de que não houve mudança da
matriz produtora do país.

3.4 TAXA DE CÂMBIO

Outro indicador que deve ser analisado consiste no histórico da taxa de câmbio do Peso
Boliviano frente ao Dólar americano. A Figura 16 ilustra que, de 2000 a 2005, a moeda
boliviana se desvalorizou de forma constante, chegando ao valor de 8,07, em 2005, quando, a
partir de então, esboçou leve tendência de valorização. A partir de 2006, ano da nacionalização
dos hidrocarbonetos, a tendência de valorização se confirmou e se acentuou. O Peso atingiu o
patamar de 7,02 por dólar, em meados de 2008, mantendo-se estável até o final do período
avaliado.

Figura 16: Taxa de câmbio dólar x peso Bol (média anual, de 2000 a 2010)

Fonte: CEICDATA (2020).

3.5 DESEMPREGO

As taxas de desemprego na Bolívia (Figura 17) se mostravam estáveis no início dos


anos 2000, oscilando entre 4,2 e 5,4%, entretanto, após a nacionalização dos hidrocarbonetos,
em 2006, o indicador apresentou forte tendência de queda, com leve alta apenas em 2009, em
virtude da crise mundial, mas vindo a cair novamente em 2010. Novamente, pode-se inferir que
o processo de nacionalização, somado ao aumento da produção dos bens primários, por sua vez
impulsionado pela alta dos preços mundiais, refletiu positivamente no emprego da força de
trabalho boliviana.
25

Figura 17: Taxa de desemprego na Bolívia (2000 – 2010)

Fonte: GOOGLE PUBLIC DATA (2020).

4 DESINDUSTRIALIZAÇÃO E DOENÇA HOLANDESA NA BOLÍVIA

Historicamente, o protagonismo da indústria, com seu impacto nas economias e, por


conseguinte, na vida da sociedade moderna é algo recente e que remonta os idos de 1720, por
ocasião do início da primeira revolução industrial. Entretanto, não obstante sua tenra idade, a
indústria exerce hoje papel decisivo e representa condição si ne qua non para o desenvolvimento
de qualquer país.
Da mesma maneira e por motivos óbvios, o conceito de “desindustrialização” é
igualmente novo e começou a ser abordado com maior amplitude no final da década de 80, com
Rowthorn e Ramaswamy, que esboçaram o primeiro conceito “clássico” de desindustrialização
de um país.
Ao investigar as características da dinâmica industrial dos principais países capitalistas
desenvolvidos, os mencionados autores elaboraram a seguinte definição para o termo
desindustrialização: “processo no qual a redução contínua das taxas de emprego da indústria
impacta drasticamente nas taxas de emprego total, em uma determinada economia”. Com base
nesse conceito, que se convencionou denominar de conceito “clássico” de desindustrialização,
os autores atestaram, à época, que “nos últimos vinte e cinco anos, o emprego na manufatura,
como parte do emprego total, caiu drasticamente nas economias mais avançadas do mundo:
um fenômeno amplamente conhecido como desindustrialização”. (ROWTHORN;
RAMASWAMY, 1997, p. 01, tradução nossa).
Mais recentemente, no final da década de 2000, Tregenna (2009), por sua vez,
questionou a adequação do conceito “clássico” de desindustrialização. Para a autora, o processo
de desindustrialização deveria ser definido não apenas em termos de participação da indústria
26

nas taxas de emprego, mas, principalmente, em termos de participação do valor adicionado pela
indústria de transformação ao Produto Interno Bruto.
Tal definição de desindustrialização, baseada apenas em taxas de emprego, sem a atenta
observância das taxas de produção industrial, pode ser prejudicial, principalmente para os
governos de países em desenvolvimento, no tocante a políticas públicas. Para Tregenna (2009,
p. 439):

Dois países que experimentaram um declínio equivalente na parcela do emprego industrial,


mas onde a parcela da produção no PIB caiu em um e aumentou no outro, poderia ser
considerado como tendo experimentado um grau semelhante de desindustrialização com base
em uma definição enquadrada exclusivamente em termos de participação no emprego. No
entanto, haveria dinâmicas muito diferentes no trabalho, sem dúvida, com implicações
diferentes para o crescimento.

Tal ênfase da literatura recente em atrelar a desindustrialização a taxas de emprego pode


ser explicada pelo fato de que uma eventual redução da participação do emprego industrial é,
normalmente, superior ao declínio da produção industrial. Além disso, o desemprego é um
indicador que se reveste de maior peso na economia e no dia-a-dia da população, traduzindo-se
em uma questão política e social de extrema importância e notoriedade.
Além do fenômeno da desindustrialização, outro conceito comumente relacionado ao
acréscimo da exportação de recursos naturais e ao declínio do setor manufatureiro é a chamada
“doença holandesa”. Tal termo tem suas origens em eventos ocorridos na década de 60 e que
envolveram a economia da Holanda. Uma escalada no preço do gás natural, um dos recursos
mais abundantes no país, levou a um aumento vertiginoso nas exportações holandesas, bem
como à valorização da moeda local, o Florim. Como consequência, as exportações dos demais
produtos foram prejudicadas e seus preços tornaram-se pouco competitivos, o que acarretou
prejuízos para a economia holandesa durante a década seguinte, principalmente após o início
da queda nos preços das commodities.
Tais consequências advindas da exploração de abundantes recursos naturais foram
exploradas pelos economistas Max Corden e Peter Neary (1982) e, posteriormente, por Bresser
Pereira (1990, p.44), que aperfeiçoou o conceito de doença holandesa:

A doença holandesa é a sobreapreciação permanente da taxa de câmbio de um país resultante


da existência de recursos naturais abundantes e baratos, que garantem rendas ricardianas aos
países que os possuem e exportam as commodities por eles produzidas.
27

Ainda segundo os autores, o aumento das exportações de matérias primas acarretaria,


inicialmente, um aumento do valor global das exportações e uma consequente apreciação da
moeda local, o que possui potencial negativo para a indústria local, que passa a enfrentar a
concorrência dos produtos internacionais. Adicionalmente, existe a possibilidade de migração
da mão de obra para o setor mais competitivo – no caso, dos bens primários – em decorrência
de uma maior demanda e de melhores salários. Como resultado, observa-se a chamada
“desindustrialização direta” (CORDEN, 1984).
O processo de nacionalização das reservas de hidrocarbonetos bolivianos, conduzido
por Evo Morales, em 2006, foi responsável por um aumento das receitas geradas pelas
exportações de tais recursos, entretanto, cabe salientar que, conforme explicitado no capítulo
anterior, o impacto positivo na economia do país foi majorado em mais de duas vezes, devido
à súbita alta dos preços das commodities, motivada, por sua vez, pela ascenção da demanda
chinesa, que ocorreu a partir de meados da década de 2000.
Observa-se, ainda, que tal aumento na produção de hidrocarbonetos, que levou, em
apenas cinco anos, a uma multiplicação de quase quatro vezes do volume total de exportações
do país, está relacionado, diretamente, a uma redução significativa nas parcelas de exportações
de bens manufaturados, de todas as categorias de complexidade (baixa, média e alta), que,
somados, passaram de 29%, em 2000, para apenas 9%, em 2010.
Tal incremento na primarização da pauta exportadora da Bolívia levou a preocupações
no sentido de que um possível processo de desindustrialização poderia estar em curso no país.
Dentre os indicadores analisados no capítulo anterior, a taxa de desemprego, que apresentou
uma queda acentuada no decorrer do corte temporal avaliado, não condiz com um quadro de
desindustrialização, de acordo com o conceito clássico, elaborado por Rowthorn e Ramaswamy
(1997). Entretanto, ao levarmos em consideração a interpretação de Tregenna (2009), que
considera como principal indício de desindustrialização não a queda do emprego total, mas sim
a queda da participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto, podemos, sim,
classificar o caso boliviano como um exemplo de desindustrialização, uma vez que as
características elencadas pela autora puderam ser observadas na análise apresentada.
Somado ao cenário exposto, a valorização do Peso Boliviano, após o ano de 2006, bem
como a manutenção de sua taxa de câmbio estável nos anos subsequentes, consistem em
indícios de que a economia da Bolívia estaria sendo acometida, também, pela chamada doença
holandesa, cujo conceito, aperfeiçoado por Bresser Pereira, foi anteriormente explanado.
A receita advinda de tal configuração da pauta exportadora Boliviana, favorecida pelo
cenário internacional vigente, proporcionou a consecução de inequívocos avanços para o povo
28

boliviano, principalmente no campo social. O aumento da renda média, somado a inúmeros


programas assistencias criados pelo governo, proporcionou, além do decréscimo da parcela da
população que vive abaixo da linha da probreza, a melhora do IDH e do sistema de saúde do
país.
Contudo, faz-se oportuno pontuar que tal modelo econômico apresenta
vulnerabilidades, sendo a variação dos preços das commodities no mercado internacional uma
de suas principais, além da possibilidade de esgotamento das matrizes e da perda da capacidade
industrial do país a longo prazo, o que pode acarretar em desemprego, queda do PIB e uma série
de outros efeitos adversos.

5 CONCLUSÃO

O presente artigo teve como objetivo principal fazer um estudo de caso acerca dos
impactos do processo de nacionalização dos hidrocarbonetos bolivianos quando associado à
elevação dos preços das commodities, bem como do consequente acréscimo das exportações de
bens primários do país.
Inicialmente, traçamos um panorama da situação política vivida na Bolívia, no início
dos anos 2000, que culminou na vitória de Evo Morales, em 2005, e na política de
nacionalização dos recursos naturais, como uma de suas primeiras medidas no comando do
país. Da mesma maneira, esboçamos um panorama do crescimento experimentado pela
República Popular da China e intensificado na virada do milênio, expondo as causas para tal
feito e as consequências do exponencial crescimento da demanda chinesa para o mercado
internacional, mais especificamente, para os valores das commodities energéticas.
No terceiro capítulo, foram apresentados diversos indicadores de desempenho
econômico da Bolívia, para, ao final dessa etapa, após uma breve discussão acerca dos conceitos
de desindustrialização e à luz do referencial teórico, analisarmos os impactos e correlações dos
eventos em pauta com a possibilidade de ocorrência da doença holandesa no país.
Após a análise dos dados, e, de acordo com a abordagem proposta por Treggena,
pudemos observar características de um processo de desindustrialização em curso na Bolívia,
mais especificamente, após 2006. Ademais, por meio dos dados apresentados, pôde-se
identificar os principais sintomas da doença holandesa, que consistem na valorização do câmbio
local e no declínio do setor manufatureiro, salientando-se que os impactos estudados foram
diretamente afetados e majorados pelo efeito do crescimento chinês sobre o mercado
internacional.
29

O atual cenário econômico, que se caracteriza por crescente volatilidade e incerteza,


devido à pandemia causada pelo novo coronavírus, representa o prelúdio de uma possível
recessão, com potencial de assolar a economia global pelos próximos anos e cujas
consequências já começam a ser sentidas por diversos países. Dentre os principais efeitos
adversos, podemos elencar, de forma destacada, a queda vertiginosa no preço do barril de
petróleo, que foi acentuada por uma disputa comercial entre Rússia e Arábia Saudita, além da
elevação das taxas de desemprego e, por consequência, queda nas rendas familiares.
Tal cenário de significativa redução do valor das commodities energéticas no mercado
mundial consiste em uma antítese à confortável conjuntura vivenciada pela Bolívia, durante os
anos de 2000 a 2010 e reforça os perigos da primarização excessiva da pauta exportadora de
um país.
Nos dias atuais, nem mesmo a grandiosidade do mercado chinês, que se encontra
combalido pelo estado de emergência sanitária vigente, foi capaz de, conforme Farooki e
Kaplinski (2010) defendiam, sustentar a elevada demanda por bens primários e os altos preços
praticados na venda desses produtos. Consequentemente, conforme exposto no capítulo
anterior, as vulnerabilidades intrínsecas ao modelo econômico adotado pela Bolívia se
potencializam com a atual crise global e a já frágil indústria nacional enfrentará mais um
considerável revés para seu desenvolvimento, agravando, assim, o cenário de
desindustrialização ora estudado.
Ademais, ao mesmo tempo em que o país enfrenta a severa crise econômica, a política
boliviana também se encontra fragilizada, em virtude da instabilidade gerada pela renúncia de
Evo Morales, no final de 2019. O vácuo de poder decorrente de tal cenário pode representar
uma possibilidade de acréscimo de influências externas na economia do país, quer seja por parte
da China ou dos Estados Unidos, com potenciais reverberações para nosso entorno estratégico.
De maneira geral, o contexto em tela parece consolidar as transformações geradas pelo
mundo pós-moderno e neoliberal, onde, segundo Visentini (2019) bem expôs, o eixo anglo-
saxão, com sua economia pós-industrial, divide com os expoentes do eixo industrial emergente
o domínio sobre o eixo agrário, mineral e demográfico, com suas economias primário
exportadoras. A multipolaridade volta à cena, juntamente com a geopolítica.
30

REFERÊNCIAS

BANCO CENTRAL DE BOLÍVIA. Banco Central de Bolívia. Disponível em:


www.bcb.gob.bo. Acessado em: 15 de dez de 2019.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Globalização e Competição. São Paulo: Elsevier, 2010.
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no Equador e na Bolívia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2016.
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janeiro de 2020.
FAROOKI, Masuma; KAPLINSKY, Raphael. The Impact of China on Global Commodity
Prices. New York: Routledge, 2012.
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Acesso em: 10 de dez de 2019.
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KEHOE, T.J., MACHICADO, C.G. y Peres Cajías, J.A. The Fiscal and Monetary History of
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UDAPE. Unidad de Análisis de Políticas Sociales y Económicas. Disponível em:
www.udape.gob.bo. Acesso em: 10 de dez de 2019.
VISENTINI, Paulo F. Eixos do Poder Mundial no Século XXI: Uma proposta analítica.
Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, v.8, n.15, Jan./Jun.
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de dezembro de 2019.

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