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2/11/2020 Reconhecimento facial e LGPD: uma polêmica para o século 21 | Nexo Jornal

ENSAIO (/ENSAIO/)

Reconhecimento
facial e FOTO: THOMAS PETER/REUTERS

LGPD:
uma
Rodrigo Dias Pinho Gomes
polêmica
08 de Fevereiro de 2020

para o
O debate sobre o uso das tecnologias de reconhecimento facial
século 21
se complexifica entre os benefícios que trazem à vida cotidiana
e os possíveis abusos por parte de quem as emprega

Em dezembro de 2019, o Ministério da Indústria e Segurança da Informação


Chinês criou uma nova regulamentação para todas as novas contratações de
serviço móvel para telefones celulares: além de apresentarem um documento
oficial de identificação, os usuários deverão ter suas faces captadas e arquivadas,
sob o pretexto de se garantir a titularidade.

A medida não surpreende, quando considerado o histórico da China nos quesitos


controle e vigilância da população, num país com mais de 170 milhões de câmeras
de vigilância, com planos de instalação de mais 400 milhões somente em 2020.

Aqui no Brasil, todos os aeroportos internacionais já contam com sistemas


inteligentes de monitoramento por câmeras de reconhecimento facial.
Ferramentas similares estão atualmente em testes no bairro de Copacabana e no
Estádio do Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro. Diversas prisões já foram
efetuadas com auxílio da tecnologia.

Sem dúvidas os algoritmos e dispositivos eletrônicos que possibilitam o


reconhecimento facial são de enorme utilidade e conveniência para todos nós. Eles
funcionam como ferramenta de combate a ilícitos; na investigação criminal, nos
auxiliam a destravar os telefones móveis sem ter que digitar senha; possibilitam
realizar check-in em alguns aeroportos sem contato com humanos; garantem a
realização de transações bancárias
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Porém, nem tudo sai conforme o planejado, e muitos casos têm revelado que a
tecnologia ainda está longe da perfeição, produzindo episódios desastrosos. Foi o
que se verificou em 2018, no País de Gales, onde um teste com um sistema da
polícia local apresentou um resultado errado: em mais 90% das vezes, os
identificados pelo sistema não tinha cometido nenhum ato ilegal — são os
chamados “falsos positivos”.

Diante desse cenário, temendo possíveis abusos na aplicação de tecnologias de


vigilância eletrônica inteligente, diversas cidades têm promulgado leis impedindo
ou tornando mais difícil a utilização do reconhecimento facial. Exemplos recentes
ocorreram nas cidades americanas de São Francisco — justamente a “capital” das
empresas de tecnologia —, Oakland e Somerville. Em janeiro de 2020, a Comissão
Nacional de Protecção de Dados de Portugal elaborou um parecer negativo à
instalação de câmeras de videovigilância em praias da região de Algarve, em
Portugal.

ALGUNS BENEFÍCIOS TRAZIDOS PELO MONITORAMENTO


ELETRÔNICO SÃO INEGÁVEIS, APESAR DE SEREM
FUNDAMENTAIS ALGUNS AJUSTES E O ESTABELECIMENTO DE
MECANISMOS EFETIVOS DE CONTROLE E SUPERVISÃO

Tamb��m no sentido da proibição, uma notícia recente do jornal britânico The


Guardian informou que a Comissão Europeia está trabalhando num documento
que irá propor o banimento temporário da tecnologia de reconhecimento facial em
locais públicos. Caso a proposta seja confirmada, as estações de trem, estádios
esportivos e shopping centers europeus não poderão utilizar a tecnologia nos
próximos três ou cinco anos, até que se ache uma maneira de melhor entender
como tudo funciona, bem como elaborar regulamentações, visando coibir abusos.

Talvez um dos maiores pontos de tensão entre os direitos fundamentais e o uso da


tecnologia de reconhecimento facial, que culmina nas diversas proibições que se
tem visto mundo afora, está na falta transparência por parte das empresas que a
comercializam e dos governos que a contratam.

As principais perguntas que a sociedade civil costuma fazer são: de que forma o
software que faz a análise das imagens funciona? Os rostos captados são
armazenados em algum servidor? Onde está localizado esse servidor? Quem tem
acesso a ele? Existem mecanismos de controle de acesso? Qual a política de
segurança das informações constantes desses bancos de dados? Com quais fins
esses dados serão utilizados? É possível utilizar a tecnologia para perseguir,
discriminar ou rastrear pessoas?

A verdade é que quase ninguém entende os detalhes do funcionamento dessa nova


tecnologia, levando à criação do termo “caixa-preta” pelo professor Frank A.
Pasquale, da Universidade de Maryland, em seu livro “The black box society – the
secret algorithms that control money and information” (“A sociedade da caixa-
preta – os algoritmos secretos que controlam dinheiro e informação”, em tradução
livre), publicado pela editora Harvard University Press, em 2015.

No Brasil, muito tem se debatido sobre o potencial conflito entre a segurança


pública e a proteção deVocê
dados pessoais, tensão essa que está se acirrando ainda
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mais com a entrada em vigor da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) em
agosto de 2020. O artigo quarto da nova lei declara que ela não se aplica na

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hipótese de tratamento de dados realizado para fins exclusivos de segurança


pública, defesa nacional ou nas atividades de investigação e repressão de infrações
penais.

Ocorre que, logo abaixo, o primeiro parágrafo diz que, nessas exceções, deverá
haver uma legislação específica, que obrigatoriamente tem que observar os
princípios gerais de proteção e os direitos do titular inscritos na LGPD. Já o
segundo parágrafo diz que, caso o tratamento dos dados para fins exclusivos de
segurança pública, defesa nacional ou nas atividades de investigação e repressão
de infrações penais seja realizado por empresa privada “sob tutela de pessoa
jurídica de direito público” — o que é justamente o caso do reconhecimento facial
no Brasil, pois inexiste sistema próprio do poder público nesse sentido — deverá
haver um informe específico à ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de
Dados).

Nesse cenário previsto na LGPD, podemos tirar algumas conclusões sobre a


constante (e crescente) utilização de tecnologias de reconhecimento facial pelas
forças policiais e de investigação criminal no Brasil: 1) não se aplica a lei nos casos
de tratamento dos dados para fins exclusivos de segurança pública, defesa
nacional ou nas atividades de investigação e repressão de infrações penais; 2)
dependemos de uma nova lei que deverá, necessariamente, observar os princípios
gerais de proteção e os direitos do titular inscritos na LGPD; 3) deverá haver um
“informe específico” à autoridade nacional de proteção de dados, dando ciência
prévia à ANPD, que é o órgão da administração pública responsável por zelar,
implementar e fiscalizar o cumprimento da LGPD em todo o território nacional.

Diante desse cenário, até mesmo empresas que comercializam mecanismos de


reconhecimento facial apontam algumas medidas para evitar que a tecnologia
acabe por ser banida ou mal utilizada, sem a violação do segredo industrial dos
desenvolvedores. São elas: a necessidade de maior transparência das autoridades
na utilização de reconhecimento facial; a constante revisão humana dos
algoritmos, na tentativa de evitar decisões equivocadas baseadas em informações
inconsistentes; a realização de testes periódicos, visando aferir os índices de
acertos e estabelecimento de um percentual mínimo para que a tecnologia possa
ser implementada na prática; a criação de comitês multissetoriais possibilitando a
fiscalização; e, talvez o mais importante, só permitir que o reconhecimento facial
seja utilizado com finalidades muito bem definidas, específicas e limitadas,
sempre respeitando os direitos fundamentais dos cidadãos.

Independentemente dos rumos que a implementação do reconhecimento facial no


país tomar, é certo que não faltarão argumentos contra e favor, a depender do
ponto de vista que se pretenda defender. Entendemos, no entanto, não ser
razoável adotar um discurso totalmente contrário, como se a nova tecnologia
somente viesse acompanhada de pontos negativos, pois alguns benefícios trazidos
pelo monitoramento eletrônico são inegáveis, apesar de serem fundamentais
alguns ajustes e o estabelecimento de mecanismos efetivos de controle e
supervisão.

Longe de se pretender resolver um problema complexo com uma solução simples,


vale parafrasear uma grande referência do direito no Brasil, o professor Gustavo
Tepedino, com a seguinte reflexão: “Há que se construir, superando misoneísmos,
técnica interpretativa compatível com o tempo das liberdades e das tecnologias”.

Rodrigo Dias PinhoVocêGomes é coordenador


ainda tem deneste
2 conteúdos grátis direito
mês. e tecnologia da Escola
Superior de Advocacia da OAB/RJ, mestre e doutorando em direito civil pela
UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e membro da Comissão de

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Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RJ e do grupo de Pesquisa em Direito e


Tecnologia da PUC-RIO.

OS ARTIGOS PUBLICADOS NO NEXO ENSAIO SÃO DE AUTORIA


DE COLABORADORES EVENTUAIS DO JORNAL E NÃO
REPRESENTAM AS IDEIAS OU OPINIÕES DO NEXO. O NEXO
ENSAIO É UM ESPAÇO QUE TEM COMO OBJETIVO GARANTIR A
PLURALIDADE DO DEBATE SOBRE TEMAS RELEVANTES PARA A
AGENDA PÚBLICA NACIONAL E INTERNACIONAL. PARA
PARTICIPAR, ENTRE EM CONTATO POR MEIO DE
ENSAIO@NEXOJORNAL.COM.BR INFORMANDO SEU NOME,
TELEFONE E EMAIL.

TODOS OS CONTEÚDOS PUBLICADOS NO NEXO TÊM


ASSINATURA DE SEUS AUTORES. PARA SABER MAIS SOBRE
ELES E O PROCESSO DE EDIÇÃO DOS CONTEÚDOS DO JORNAL,
CONSULTE AS PÁGINAS NOSSA EQUIPE
(HTTPS://WWW.NEXOJORNAL.COM.BR/SOBRE/NOSSA-
EQUIPE) E PADRÕES EDITORIAIS
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10/COMO-JORNAIS-PODEM-RECUPERAR-A-CREDIBILIDADE-
SEGUNDO-ESTA-PESQUISADORA) .
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