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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

ESCOLA DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS

RAÍSA PEIXOTO LEITE RODRIGUES

PENA DE MORTE NO BRASIL: O crime de ser jovem negro

CURITIBA

2017
RAÍSA PEIXOTO LEITE RODRIGUES

PENA DE MORTE NO BRASIL: O crime de ser jovem negro

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Pós-
graduação em Filosofia e Direitos
Humanos da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, como requisito
parcial à obtenção do título de
especialista em Filosofia e Direitos
Humanos.
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Canal Alvarenga

CURITIBA

2017
RAÍSA PEIXOTO LEITE RODRIGUES

PENA DE MORTE NO BRASIL: O crime de ser jovem negro

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Pós-graduação em Filosofia e


Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial
à obtenção do título de especialista em Filosofia e Direitos Humanos.

COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________
Professor 1(Titulação e nome completo)
Instituição 1
_____________________________________
Professor 2 (Titulação e nome completo)
Instituição 2
_____________________________________
Professor 3 (Titulação e nome completo)
Instituição 3

Curitiba, ____ de ________ de 2017.


EPÍGRAFE
Resumo

Existe entre os brasileiros um mito de que nosso país vive uma democracia racial.
Porém, estudos mostram que o racismo está institucionalizado no Brasil. Dentre as
inúmeras decorrências desse racismo pode-se destacar o ‘genocídio’ da juventude negra.
Dados apontam que, a cada 23 minutos, morre um jovem negro, vítima de violência.
Entre 2003 e 2014, enquanto o número de vítimas de homicídio por arma de fogo de
pessoas brancas caiu 26,1%, o número de vítimas negras cresceu 46,9%, indicando que a
violência no Brasil tem bases étnicas. A população afrodescendente no nosso país sofre,
desde os tempos da escravidão, constantes violações aos seus direitos fundamentais. Da
marginalização ao extermínio essa população vem sofrendo amargamente com a ação e a
omissão do Estado. A falsa crença de que no Brasil não existe racismo impõe obstáculos à
implementação de políticas públicas de ação afirmativa para a promoção da igualdade
racial, sendo elas necessárias e urgentes para dar voz e visibilidade a este povo que
sempre esteve às margens da sociedade. Este trabalho, por meio de revisão bibliográfica,
buscou analisar as bases ideológicas do preconceito racial fazendo uma articulação com
os conceitos de racismo de Estado de Michel Foucault, e de tanatopolítica e Homo Sacer
de Giorgio Agamben. A finalidade de demonstrar como o racismo está incorporado no
tecido social brasileiro, dá-se em razão de desmitificar a democracia racial e reiterar a
necessidade das políticas de ação afirmativa supracitadas.

Palavras-chave: Racismo institucional. Racismo de Estado. Tanatopolítica.


Desigualdade racial. Assassinato de jovens negros. Homo Sacer. Políticas públicas.
RESUMO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
Introdução

Muito embora o senso comum afirme que o Brasil vive em uma democracia racial,
há estudos que evidenciam a falácia desta crença. Em fevereiro de 2016, foi produzido
pela ONU um relatório1 sobre as questões das minorias no Brasil. Neste documento, a
especialista Rita Izsák menciona a divisão social entre brancos e negros que persiste
desde os tempos escravagistas. Essa divisão não foi superada após a abolição daquele
regime, os poderes político e econômico continuaram concentrados nas mãos dos
senhores brancos, donos das terras. Os afro-brasileiros libertos tinham meios e
oportunidades limitados de estabelecerem seus lares e modos de subsistência, o que os
levaram à marginalização. Izsák ainda aponta que, a despeito das políticas públicas de
promoção de igualdade racial, os afro-brasileiros se encontram em uma situação de
desigualdade no que diz respeito a um amplo espectro de violação de direitos humanos.
Ela destaca como principais: a violência, a criminalização dos afro-brasileiros, as
condições socioeconômicas e a situação da mulher negra.

No que se refere à situação socioeconômica, dos 16,2 milhões que vivem em


condições de extrema pobreza, 70,8% são negros. A média salarial da população
afrodescendente é 2,4 vezes menor do que da população branca e asiática. Em relação à
educação, 80% dos analfabetos são negros, e 64% dos afro-brasileiros não chegaram a
concluir a educação básica. A relatora aponta também a situação de extrema desvantagem
daqueles que vivem em periferias e favelas. A juventude nesses lugares tem acesso
limitado à educação de qualidade, aos espaços comunitários e de lazer, apresentam altas
taxas de evasão escolar e criminalidade, restando-lhe poucas ambições e perspectivas.

Quanto à violência, a especialista relata que no Brasil tem claramente uma


dimensão racial. Dos 56.000 homicídios que ocorreram no ano de 2012, 30.000 foram de
jovens (entre 15 e 29 anos) sendo 77% destes, homens negros 2. No Rio de Janeiro, em
2013, 80% das mortes ocorridas em intervenções policiais foram de afrodescendentes,
destes, 75% eram jovens. Quanto à criminalização dos afro-brasileiros, Izsák aponta a
estimativa de 75 % da população carcerária ser composta por negros, e ainda, que há
maior propensão de se levá-los à prisão em detrimento de penas alternativas

1
Report of the Special Rapporteur on minority issues on her mission to Brazil.
2
Dados retirados pela autora da campanha da Anistia Internacional “Jovem Negro Vivo”. Disponível em
https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/
comparativamente às penas aplicadas aos brancos. Além disso, os negros também tendem
a ser mais submetidos à revista policial.

Esses dados coletados pela especialista das Nações Unidas escancaram aquilo
que para o olhar do brasileiro, muitas vezes, não está claro. O racismo no Brasil é
estrutural e está institucionalizado, algo que se aproxima daquilo que Foucault (2005)
chamou de Racismo de Estado, um mecanismo do poder do Estado, uma forma de
introduzir um corte entre quem deve viver e quem deve morrer. Este racismo, que
compõe a realidade social brasileira, contribui para a criação no imaginário social de um
inimigo público, qual seja, o jovem negro morador das periferias, o potencial bandido que
é quem deve morrer. Nesse sentido, o jovem negro pode ser pensado como o homo sacer,
tal como Agamben (2002) o descreveu, aquele cuja vida é politicamente irrelevante
sendo, portanto, “matável”. Assim como o homo sacer, o jovem negro não pode ser
“sacrificado”, não por ser morto por um ritual jurídico visto que não há nas normas legais
brasileiras previsão de pena de morte (salvo em casos de guerra declarada 3). Porém quem
o mata não comete delito, haja vista a impunibilidade dos agentes do Estado garantida
pelos “autos de resistência”. Esses conceitos serão mais bem desenvolvidos no decorrer
do texto.

Além desses fatores que culminam no genocídio 4 da população jovem negra, a


falsa crença da existência de uma democracia racial corrobora a omissão do Estado ao
negligenciar políticas de ações afirmativas para a promoção da igualdade racial, sendo
essas indubitavelmente necessárias para que haja uma efetiva equidade e superação dos
privilégios dos brancos em relação aos negros.

O presente estudo, elaborado a partir de leituras críticas do tema, pretende analisar


as bases ideológicas do preconceito racial e ainda demonstrar como o racismo está
incorporado no tecido social brasileiro, apresentando-se na organização social, nas
relações de poder, nas instituições, no imaginário social, e, principalmente, na violência
praticada pelos agentes do Estado.

3
Conforme alínea a do inciso XLVII do artigo quinto da Constituição Federal (1988): “XLVII - não haverá
penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”.
4
Segundo a Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio de 1948 da ONU, entende-
se por genocídio, atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, tais como: assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou
mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe
ocasionem a destruição física total ou parcial; entre outros.
1.O mito da democracia racial e o conceito de racismo institucional

A ideia de que o Brasil seria um “paraíso das raças” começou a se difundir nos
anos de 1940 com a obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre5 (apud FARIAS? )
que falava de uma sociedade na qual as raças conviviam pacífica e harmoniosamente.
Esta suposta sociedade relatada por Freyre chamou a atenção da recém-criada ONU que
então financiou a vinda de estudiosos ao Brasil para entender as bases de funcionamento
de uma sociedade na qual não haveria conflitos étnicos 6. Este programa de estudos que foi
denominado “Projeto Unesco” estudou as relações raciais no país nos anos de 1950 e
concluiu que a chamada “democracia racial” não fazia parte da nossa realidade. O
projeto, que tinha como objetivo inicial dar ao mundo lições de cooperação entre as raças,
se deparou com evidências de que, no Brasil, status econômico e raça tinham forte
correlação entre si (MAIO, 2000). Ao contrário do que se acreditava, a população negra
do país estava sob condições de pobreza e miséria e sem perspectivas de ascensão social
uma vez que “o trabalho livre não serviu como um meio de revalorização social do
negro” (Fernandes, 1955b, apud MAIO, 2000, p.119). No momento da transição do
trabalho escravo para o livre, a total ausência de políticas públicas para inserção dos ex-
escravos no sistema produtivo levou à profunda desigualdade e exclusão da população
negra (SILVÉRIO, 2002). Segundo Maio (2000), o Projeto Unesco reiterou a existência
de um “credo brasileiro” representado pelo mito da democracia racial. Um dos
pesquisadores à frente do projeto, Florestan Fernandes (Ibid.), apontou que a ideologia da
democracia racial representava um empecilho ao empreendimento de esforços rumo a
uma sociedade democrática tanto em termos políticos quanto sociais por dificultar o
surgimento de um novo tipo de mentalidade nos “leigos”. Para Oracy Nogueira (2007),
que também integrou o “Projeto Unesco”, a ideologia que fundamenta o racismo no
Brasil é assimilacionista e miscigenacionista, ou seja, há uma expectativa de fazer
desaparecer o negro (e também o índio) por meio do processo de miscigenação,
assimilando-o à população branca, “e a noção geral é de que o processo de
branqueamento constituirá a melhor solução possível para a heterogeneidade étnica do
povo brasileiro” (p. 297). Para o autor, a ideologia das relações inter-raciais como parte
do ethos nacional além de acobertar uma forma velada de preconceito, ainda contribui
para a condenação pública das práticas ostensivas de racismo (Ibid.). Isso quer dizer que,

5
Citado no relatório da CPI de assassinato de Jovens de fevereiro de 2016.
6
Ibid.
sendo de senso comum a convivência pacífica entre as raças, uma forma explícita de
preconceito é rechaçada porque escancara aquilo que esta ideologia se presta a encobrir.

De lá pra cá, pouca coisa mudou. A população negra continua sendo protagonista
dos piores quadros de exclusão social, extrema pobreza e miséria no país. Segundo dados
sobre a pobreza no Brasil do IBGE/PNAD7 do ano de 2014, dos 10% mais pobres do país,
a população negra (que corresponde a 53,6% da população total) representa 76%.
Analisando os grupos de maior renda, o 1% mais rico da população total é representado
por apenas 15% de negros. O cenário geral se caracteriza pela existência de uma
diferença significativa entre o padrão de vida de negros e brancos no Brasil.

Em dezembro de 2013, a ONU enviou ao Brasil duas especialistas em


afrodescendentes a convite do próprio governo. No relatório 8 produzido e publicado no
ano seguinte, as especialistas afirmam que o Brasil não pode ser chamado de uma
“democracia racial” por ser caracterizado por um “racismo institucional”, em que
hierarquias raciais são culturalmente aceitas como naturais (UN, 2014). De acordo com as
especialistas, apesar dos afrodescendentes corresponderem a mais da metade da
população sua participação econômica equivale a apenas 20% do PIB brasileiro; o
desemprego entre eles é 50% maior do que entre os brancos e seus rendimentos cerca de
metade (Ibid.). Elas apontam também que a expectativa de vida dos afrodescendentes é 6
anos menor do que a dos brancos; 47% deles não tem segurança alimentar; 52% vivem
em casas sem condições adequadas de saneamento e 26% não tem nem mesmo água
corrente (Ibid.).

Apesar do racismo e da discriminação serem proibidos pela Constituição


Federal9 (o que corrobora a falaciosa crença da democracia racial), as práticas passíveis
de punição são apenas as de caráter ostensivo, de tal forma que os mecanismos
institucionais que reproduzem o racismo tacitamente são inimputáveis. A sociedade
(racista) cria mecanismos, institucionais ou não, que impõem limites e até mesmo a
exclusão, fazendo com que a pessoa negra esteja mais suscetível a situações de
vulnerabilidade social associadas à pobreza e à miséria. Lopez (2011) define o racismo
institucional como uma atuação difusa no funcionamento das instituições e organizações

7
Ibidem
8
Report of the Working Group of Experts on People of African Descent on its mission to Brazil.
9
Art. 5º, inciso XLII – “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei;”
que operam de modo diferenciado entre as diferentes raças na distribuição de serviços,
benefícios e oportunidades além de afetar também a implementação de políticas públicas
produzindo amplas iniquidades.

De acordo com Werneck (2013), o termo ‘racismo institucional’ foi definido


pelos ativistas integrantes do grupo Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles
Hamilton, em 1967 como aquele que é capaz de produzir: “A falha coletiva de uma
organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua
cor, cultura ou origem étnica.” 10
(CARMICHAEL & HAMILTON, 1967, p.4 apud
WERNECK, 2013 p. 17). A autora ainda afirma que esse tipo de racismo sistêmico é um
mecanismo estrutural performativo, capaz de gerar e legitimar condutas que garantem a
exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados. Nas palavras de Werneck:

[...] o racismo institucional é um modo de subordinar o direito e a democracia


às necessidades do racismo, fazendo com que os primeiros inexistam ou
existam de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência dos
grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordinação deste
último.(Ibid. p. 18)

Este tipo de racismo opera de forma a induzir, manter e condicionar a


organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas garantindo a
apropriação dos resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos raciais
privilegiados na sociedade (Ibid.).

Sendo assim, o racismo institucional opera como um mecanismo do Estado e


suas instituições de forma a garantir a manutenção dos privilégios da população branca e
sua posição de dominação em relação a população afrodesccendente.

2. O Racismo de Estado e a Tanatopolítica

Foucault (2005), em seu curso ministrado no Collége de France que


posteriormente fora publicado na obra Em defesa da sociedade, analisa o racismo como
um mecanismo do poder do Estado inserido pela emergência do biopoder 11. Ao contrário
do poder disciplinar que agia sobre os corpos treinando-os, aperfeiçoando-os,
10
Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the politics of liberation in America. New York, Vintage, 1967,
p. 4.
11
Foucault chama de biopoder a nova técnica de poder que surge na segunda metade do século XVIII que
se aplica sobre a vida e seus processos, como a reprodução, a doença, a morte, etc.
controlando-os de forma a decidir entre a morte ou permitir a vida; o biopoder age sobre a
população, sobre a massa de indivíduos de forma a assegurar a vida. Mas, da mesma
forma como o poder disciplinar mata, o biopoder também pode ceifar a vida de seus
cidadãos, e o que incide sobre isso é racismo.
Segundo Foucault (2005), o racismo de Estado surge ao final do século XIX e
início do XX a partir de uma transformação do antigo discurso da luta das raças que era
usado como arma da soberania do Estado. É um racismo que cobra ao Estado assegurar a
integridade e a pureza da raça contra outras que o infiltram. Um racismo biológico,
centralizado e interno que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus
próprios elementos e produtos, que corresponde a uma das dimensões fundamentais da
normalização social. “O racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa
sociedade de normalização”(FOUCAULT, 2005, p. 306).
O racismo estabelece uma relação fundamentada na noção de guerra, que para
poder viver, é preciso matar, é preciso destruir o inimigo. Ele é a condição necessária para
que o Estado exerça seu “direito” de matar (Iibid.). Nesse sentido, podemos fazer a
correlação com o que ocorre nas periferias das cidades brasileiras. O negro visto como o
inimigo público a ser combatido e por isso a permissão que o Estado tem para matá-lo

O assassinato de jovens negros e a ideologia da guerra às drogas

O Mapa da Violência de 2016 mostra que o número de homicídios causados por


armas de fogo, no intervalo entre os anos de 1980 a 2014, cresceu 592,8%, e a principal
vítima é a juventude. A faixa etária entre 15 e 29 foi a que teve crescimento mais intenso
da letalidade deste tipo de violência, aumentando 699,5% no período. O mesmo
documento mostra ainda que, no período entre 2003 e 2014, enquanto o número de
vítimas brancas caiu 26,1%, o de vítimas negras cresceu 46,9%, indicando que a violência
no Brasil tem bases étnicas.
De acordo com o relatório final da Comissão de Inquérito Parlamentar do
Assassinato de Jovens12 publicado em 08 de junho do ano de 2016, a cada 23 minutos um
jovem negro é morto no Brasil. Esses homicídios dolosos têm direta relação com a ação
ou a omissão do Estado. Por um lado o Estado se omite ausentando-se das comunidades
de baixa renda, o que propicia a proliferação do tráfico de drogas com o aliciamento dos
jovens. Por outro lado, o Estado, com sua polícia violenta e mal treinada, capacitada a
combater um inimigo interno em detrimento de oferecer segurança aos cidadãos,
assassina, cotidianamente, a juventude negra do país sob o véu da impunidade assegurada
pelos chamados “autos de resistência”. O Delegado de Polícia, Orlando Zaccone (2015) 13,
define essa prática da seguinte forma:

O auto de resistência é um inquérito policial instaurado para verificar a


legitimidade ou não de uma ação policial que resultou em morte. Então o
inquérito é instaurado e vai ao titular do direito de ação, que é o Ministério
Público, que, na sua grande maioria arquivam os casos, com uma
manifestação do promotor defendendo que o policial agiu em legítima defesa.

Segundo Zaccone, os autos de resistência surgiram no período ditatorial brasileiro


como uma forma jurídica de contemplar ações letais da polícia em serviço e são sua
principal arma para matar sob a tutela da lei.

Os autos de resistência garantem ao policial homicida ação em legítima defesa,


eximindo-o de qualquer punição. O que legitima tal ação é o artigo 292 do Código de
Processo Penal14, cuja redação é:

Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante


ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o
auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para
vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas
testemunhas.

Porém, há um procedimento que deve ser seguido de acordo com o próprio


Código de Processo Penal em seu artigo sexto, que inclui: não alterar o estado e a
conservação das coisas até a chegada dos peritos criminais; colher provas que servirem ao
esclarecimento do fato; determinar exame de corpo de delito; entre outros. Tudo isso para
que seja aberto um inquérito policial para a investigação do homicídio.

12
Redigido pelo senador Lindbergh Farias (PT-RJ). Disponível em:
http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-
assassinato-de-jovens
13
Orlando Zaccone: autos de resistência legitimam extermínio como Política de Estado – Entrevista ao
Justificando. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2015/08/27/orlando-zaccone-autos-
de-resistencia-legitimam-exterminio-como-politica-de-estado/
14
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm
No entanto, de acordo com o relatório da CPI, quando se trata de autos de
resistência, tal procedimento não é seguido, especialmente no que tange ao exame de
corpo de delito. Os corpos são removidos sem perícia através da prática do falso socorro,
ou muitas vezes, este é impedido. O próprio policial registra a ocorrência, admite ter sido
o autor do disparo (em legítima defesa) e tem como testemunhas seus colegas.

Contudo, há uma negligência institucional na investigação das mortes. Além da


ausência da perícia, o relato dos policiais é a única prova testemunhal, o que acaba
levando os inquéritos ao arquivamento. A respeito disso, Natália Damazio Pinto Ferreira,
representante da organização não-governamental Justiça Global, afirmou, na 4ª audiência
pública ocorrida no âmbito da CPI:

A manutenção desse dispositivo, auto de resistência, vem garantindo uma


violação complexa de direitos humanos, de princípios e normas do Direito
Penal e Processual Penal, sem que isso seja visto como violação dessa
normativa. Grande parte dos procedimentos investigativos são deixados de
lado quando há homicídio por agente de Estado nessas áreas, comunidades e
periferias. Ocorre a remoção de cadáveres sem perícia, através da prática do
falso socorro, que é o que aconteceu com a Cláudia no Rio de Janeiro;
impedimento e ausência de socorro das vítimas; ausência de qualquer
diligência investigativa – a investigação muitas vezes é marcada por uma
comunicação entre o Ministério Público e Polícia Civil, em que não se faz
nenhuma diligência em si, mas fica-se pedindo mais tempo para investigação;
ausência de uma perícia na cena do crime; e ausência de uma perícia
autônoma independente.15 (apud BRASIL, 2016, p. 42).

No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 99,2% dos inquéritos de autos de


resistência que tramitam ou são arquivados ou não têm denúncia oferecida. No mesmo
estado, entre 2001 e 2011, apenas 3,7% dos mais de dez mil casos de mortes em
confronto com a polícia tiveram abertura de processo. Dessa forma, sem abertura de
processo e sem investigação da materialidade do homicídio, prevalece apenas o relato do
policial autor do crime e de suas testemunhas.

Em 2015, a Anistia Internacional publicou um relatório intitulado Você matou meu


filho16 no qual estão relatados diversos casos de homicídios causados pela polícia que não
tiveram a devida investigação. Os fatos narrados pelas testemunhas e pela polícia não
coincidem, e é claro que a versão lavrada nos autos é em defesa dos agentes do Estado,
como o relato que segue:

15
Notas taquigráficas disponíveis em
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/r/3384 Citadas no Relatório da
CPI de Assassinato de Jovens.
16
Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-
Internacional-2015.pdf
Vitor, de 21 anos, foi morto em uma operação policial do BOPE na favela de
Acari, em 31 de julho de 2014, por volta das 8h. Nesse dia, Vitor saiu de casa
para comprar a comida da sua cachorra. Ele foi à casa de uma amiga para
conversar, mas, na sequência, teve início um grande corre-corre em razão de
uma operação da Polícia Militar em curso na favela. Ele entrou, então, na
residência da amiga em busca de abrigo. Segundo relatos de moradores
ouvidos pela Anistia Internacional, os policiais ordenaram que ele saísse da
casa e deram um tiro na sua perna. Vitor não estava armado, portava apenas
um rádio pequeno e não havia nenhuma troca de tiros no momento. Quando
estava no chão, Vitor pediu: “Não me mata! Me leva preso, não faz isso!”.
Uma moradora também gritou: “Não faz isso com ele!”. Mas os policiais se
aproximaram e o executaram com mais dois tiros. Antes de dar um dos
disparos, um agente chegou a levantar o boné de Vitor e, ao final, disse: “Esse
aqui já era”. Os policiais enrolaram o corpo em um pedaço de lençol e o
levaram para o hospital Carlos Chagas. Segundo o registro de ocorrência,
dois policiais afirmaram que, “ao adentrarem na comunidade, foram recebidos
a tiros e ao revidarem, atingiram um dos marginais”. Não houve perícia no
local. Segundo moradores, uma testemunha do homicídio ficou muito
assustada e decidiu se mudar para outro estado, com medo de represálias por
parte da Polícia. O assassinato de Vitor provocou revolta entre seus
familiares. Um deles disse: “Eu nunca tive tanto medo da Polícia quanto eu
tenho agora. Eles são covardes. Não acredito em justiça, pois está cada dia
pior. Não adianta um policial desses ser preso. Não vai trazer o Vitor de volta.
O policial tem que prender, não tem o direito de matar. Quando a Polícia
entra na comunidade, eu fico em pânico. Me jogo no chão, não saio na rua.
Fiquei com trauma, em choque”. Até junho de 2015, a investigação do caso
ainda não havia sido concluída pela 39ª Delegacia de Polícia. (p.52)

Sob a ideologia da “Guerra às Drogas” e do combate ao inimigo (no caso, o


traficante) a justiça encontra argumentos para justificar tais homicídios. “Então,
completada a figura do inimigo, isto é, o traficante de drogas, e esse fato ocorrendo
dentro de favelas, de guetos, isso é colocado na escrita dos promotores de justiça como
elementos a justificar a morte” (ZACCONE, 2015).

Para o delegado Zaccone (idem), essa ideologia é o que sustenta a letalidade da


polícia militar, pois a violência legitimada por essa guerra é criada pelo proibicionismo.
Se o porte, o consumo e a venda de drogas fossem legalizados, haveria uma
desconstrução desse “inimigo público”, o traficante, o que contribuiria para diminuir
enormemente o número de mortes causadas por policiais militares.

Sob o pretexto da “Guerra às Drogas” os policiais usam arbitrariamente sua força


para legitimar um verdadeiro genocídio da juventude negra. A impunidade que lhes é
assegurada pelos autos de resistência revela a omissão do Estado no reconhecimento de
sua participação nessa espécie de faxina étnica perpetrada por suas forças armadas.

A questão do combate às drogas no Brasil está diretamente ligada a questões como


da violência urbana, do homicídio de jovens, e da constituição de organizações
criminosas que se alocam majoritariamente nas áreas mais carentes, sendo as favelas o
principal lugar de fixação e disseminação das atividades ligadas ao tráfico de drogas.

Segundo o relatório da Anistia Internacional anteriormente citado, as políticas de


segurança pública no Brasil são marcadas pela ação repressiva dos policiais nas favelas e
áreas marginalizadas. As incursões militares nestas áreas e o uso de força letal contra os
jovens negros sob o ensejo da suspeita de envolvimento com atividades criminosas
culminam em um elevado número de mortes. O documento diz o seguinte:

Os estereótipos negativos associados à juventude, notadamente aos jovens


negros que vivem em favelas e outras áreas marginalizadas, contribuem para a
banalização e a naturalização da violência. Em 2012, mais de 50% de todas as
vítimas de homicídios tinham entre 15 e 29 anos e, destes, 77% eram negros.
[...] Das 1.275 vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial entre
2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro, 99,5% eram homens, 79% eram
negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade. 17. (2015, p.6)

A violência perpetrada contra a juventude negra marginalizada encontra ainda


legitimidade no imaginário das classes mais altas da sociedade que disseminam o discurso
de que “bandido bom é bandido morto”. Essa crença escancara o elevado preconceito
contra essa população estigmatizada pela cultura do racismo e da discriminação.

Não só as favelas e áreas marginalizadas são palco deste genocídio. Os jovens são
também mortos no próprio Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas, o SINASE. A
Lei nº 12.594, de 18 de Janeiro de 201218, que institui o SINASE tem o propósito de
regulamentar a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que
pratiquem ato infracional. Para a aplicação das medidas deve-se considerar sua condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento e, para tanto, devem ser observados os cuidados
mínimos com esses adolescentes, tais como saúde, educação, direito à dignidade, à
garantia da convivência familiar e comunitária, entre outros. Além disso, no caso de
internação (medida privativa de liberdade) devem-se respeitar os princípios da brevidade
e excepcionalidade.

Porém, um relatório19 produzido pela Associação Nacional dos Centros de Defesa


da Criança e do Adolescente (ANCED) no ano de 2011 denunciou as condições "muito
insatisfatórias" das unidades socioeducativas de internação. Os jovens estão internados

17
Você matou meu filho. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-
meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf
18
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm
19
Pelo Direito de Viver com dignidade. Relatório Final de Pesquisa. Disponível em:
http://www.anced.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Pelo-Direito-de-Viver-com-Dignidade.pdf
em locais insalubres com inadequadas condições de higiene e ventilação, além da própria
superlotação das unidades. Além disso, há demora no atendimento das solicitações dos
adolescentes, principalmente, no que diz respeito à transferência de unidade para que se
viabilizem visitas familiares.

O Levantamento Anual do SINASE de 201420, revelou que mais da metade dos


internos são negros ou pardos, representando um percentual de 55,77%, e 22,16% dos
adolescentes e jovens não tiveram registro quanto a sua cor, sendo classificados na
categoria sem informação, mesmo assim já é possível identificar a maioria
afrodescendente no regime de internação.

O documento mostrou que há uma média superior a 4 jovens mortos por mês no
sistema, resultando no elevado saldo de 48 óbitos no ano de referência, o dobro do ano
anterior. A causa do maior número de óbitos no sistema é identificada pela categoria
“Outros”, totalizando 46%. É interessante nota que, no ano anterior a mesma categoria
tinha um percentual de apenas 3,45%. Isso, provavelmente, se deve ao descuido com o
registro das informações, ou há intencionalidade na produção incompleta destas
informações. A segunda principal causa destas mortes são “Conflitos interpessoais”
contabilizando 31% delas, em seguida estão os “conflitos generalizados” 13%. Observa-
se que há uma omissão por parte das instituições em solucionar os conflitos entre os
adolescentes e também indica pouca incidência no atendimento socioeducativo por parte
dos órgãos de fiscalização, monitoramento e controle social. Como afirma o relatório da
ANCED:

Se o estudo aponta uma série de questões que se relacionam às causas dessas


mortes que ainda precisam ser mais bem aprofundadas, cumpre reconhecer
também que o estudo aponta, objetivamente, para a falta de providências pelo
poder público que assegurem a integridade física e psicológica dos internos de
sistemas de meio fechado como uma das causas mais relevantes (BRASIL,
2011, p. 6).

Os adolescentes que passam pelo regime de internação SINASE, além de todas


as violações sofridas, quando dela saem, não têm lugar na sociedade. A lei nº 12.594/12
propõe uma política nacional com articulação em rede e de integração de políticas
intersetoriais com o propósito de retirar os jovens do universo da criminalidade e, como o
próprio nome diz, as medidas ‘socioeducativas’ têm como principal ferramenta de
reinserção social, a educação. Em seu artigo 82, a lei exige que todos os adolescentes em
20
Levantamento Anual SINASE 2014. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/levantamento-
sinase-2014
cumprimento de medidas socioeducativas estejam inseridos na rede pública de ensino. No
entanto, o mesmo levantamento do SINASE anteriormente citado indica que no sistema
há altos índices de evasão escola, além de dificuldade de efetuar a matrícula nas escolas.

A falibilidade do sistema é constatada no próprio documento:

Este sistema que já é marcado por constantes denúncias de tortura e maus


tratos, vê a cada ano o número de óbitos aumentado desde que solicitamos esta
informação a partir do LEVANTAMENTO ANUAL DE 2012. São 48 óbitos
conhecidos neste sistema em 18 Estados. Uma chaga nacional que não pode
passar despercebida e naturalizada. Outro destaque negativo é o registro
sistemático dos adolescentes quando em Internação Provisória, que não é
medida socioeducativa, ter o seu acesso à educação cerceado e interrompido.
Isto é ainda mais impactante quando estes/as adolescentes que são atendidos
nesta modalidade de atendimento socioeducativo não têm sentença de privação
de liberdade, que são a maioria, saindo deste atendimento veem sua vida
escolar interrompida e via de regra não retomada, numa reiteração punitiva
sem o devido processo legal. (BRASIL, 2017, p. 62)

Sendo assim, a lei não cumpre seu propósito, que é de educar e ressocializar o
adolescente que cometeu ato infracional.

Legitimado pelo racismo e pela discriminação que assola a juventude negra, seu
genocídio encontra respaldo no imaginário social de que ela está fadada à criminalidade e
que, portanto, a morte lhe cabe muito bem.

A sedimentação do mito que associa juventude negra a criminalidade


multiplica consequências desastrosas no cotidiano das práticas policiais. Um
dos componentes mais claros do racismo institucional das polícias é
naturalizar a relação entre pobreza e criminalidade, incoerentemente tomando
a cor da pele como seu indicador visível. É como se o jovem negro sintetizasse
o drama de uma sociedade incapaz de solucionar suas contradições. (SILVA &
GOES, 2013, p.130 )

A morte lhe cai bem, A banalidade do mal. / HOMO SACER - uma vida vale mais que
outra. Violência do Estado contra a juventude negra é aceita com o propósito de um bem
futuro para a sociedade, como se matando os jovens negros, fosse possível erradicar a
violência urbana, o tráfico de drogas, etc.

Falar de biopoder – sociedade disciplinar -

Violência  docilização dos corpos - sistema de poder baseado no controle e na


submissão dos corpos.

Políticas Públicas – Falar do projeto de lei que institui o Plano Nacional de


Enfrentamento ao Homicídio de Jovens
Tendo em vista os afrontosos dados que foram até agora relatados, resta apontar
a solução possível para o problema do racismo sistêmico de nossa sociedade que tem
levado a população negra às mais miseráveis situações. É inegável a necessidade de
implantação de políticas públicas de caráter amplo voltadas para a superação desse
problema que obstaculiza a construção de uma verdadeira democracia. Ações que
resgatem a cidadania dessa população marginalizada e ignorada pelos olhos do Estado e
que devem extrapolar a circunscrição das organizações não-governamentais e do
movimento negro organizado para atingir a sociedade como um todo bem como o poder
público (SAMPAIO, 2002).

As especialistas em afrodescendentes da ONU enviadas ao Brasil em 2013


deixaram no relatório21 produzido uma série de recomendações ao governo brasileiro.
Elas reconhecem que a educação é um passo essencial para lutar contra os estereótipos
discriminatórios e para desconstruir a ideologia do ‘branqueamento’ da população que
ainda está presente na mentalidade de uma expressiva parcela da sociedade. Para tanto,
elas sugerem a implementação da Lei N° 10.63922 que pretende incluir nos currículos
escolares o ensino da história da África e sua cultura, bem como do movimento negro e
suas lutas no Brasil.

Além disso, elas ressaltam que as políticas públicas, especialmente nos níveis
estaduais e municipais, devem ser melhor estruturadas e financiadas. Ainda com relação à
educação, as especialistas reafirmam a importância das cotas e ainda observam a
necessidade de políticas de apoio à permanência estudantil para que os alunos cotistas não
enfrentem obstáculos financeiros ou discriminatórios na duração de seus estudos. Falar de
etnocentrismo, de concepção multicultural dos DH

As relatoras sugerem também que haja cotas dentro do próprio governo para que
se torne possível acompanhar os processos legislativos no Congresso em vistas de
maiores ações afirmativas. Elas recomendam a passagem do Projeto de Lei 4471/2012 23
que prevê a investigação das mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o
ofício, ou seja, prevê o fim dos autos de resistência. Elas destacam a necessidade de uma

21
Report of the Working Group of Experts on People of African Descent on its fourteenth session. 23 sep.
2014
22
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm
23
Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1027001.pdf
formação contínua e sensibilização da polícia para mudar a cultura da violência, sob o
pretexto da segurança nacional. Falar de educação com/em/para direitos humanos.

Não só o relatório da ONU deixou recomendações ao governo como também o


relatório da CPI de Assassinato de Jovens, amplamente citado neste trabalho. Ele afirma
ser necessária, para o enfrentamento do genocídio da juventude negra, a criação de
mecanismos nacionais que facilitem o acesso aos dados e informações sobre segurança
pública. Para tanto, recomenda-se a criação de um protocolo de padronização dos dados e
informações gerais sobre a segurança pública a ser utilizado por todas as unidades da
Federação bem como pelo Governo Federal; um banco nacional de dados com
informações consolidadas e sistematizadas sobre a violência em todo o país; além da
criação do Observatório Nacional sobre Violência no âmbito do Congresso Nacional. O
relatório também reforça a necessidade da eliminação dos autos de resistência com o
Projeto de Lei já citado (N°4471/2012) e a discussão de um Plano Nacional de Redução
de Homicídios.

Segundo Soares24 (2008) há uma série de fatores, notadamente situações em há


uma ausência do Estado, que contribuem para o envolvimento de jovens com o tráfico,
sendo eles, as principais vítimas do racismo institucionalizado na polícia brasileira.
Dentre os fatores o autor cita:

(a) acolhimento familiar, comunitário e escolar deficientes; (b)


falta de perspectivas de integração social plena; (c) ausência do
Estado, nos territórios urbanos pauperizados; (d) constituição,
nas periferias, vilas e favelas, do varejo do tráfico de armas e
drogas como fonte de recrutamento para atividades ilegais; (e)
desdobramento do tráfico em ampla variedade de práticas
criminais, graças à disponibilidade de armas (p.203).

O autor aponta uma sedução dos meninos pelo tráfico de drogas uma vez que
este lhes oferece não apenas bens materiais, mas bens simbólico-afetivos. Uma vez
portando uma arma, o jovem negro e pobre, morador de favela que sempre esteve
invisível e que nunca se sentiu pertencente à sociedade que o rodeia, passa a despertar o
medo e assim é percebido.

Portanto as políticas públicas oferecidas pelo Estado devem fazer forte


concorrência a essas “vantagens” proporcionadas pelo tráfico. É preciso fazer com que o
jovem negro crie vínculos identitários com a comunidade, com a escola, com a família,

24
Luiz Eduardo Soares. Psicologia e Políticas Públicas: a função social do estado.
etc. de tal forma que ele passe a ser visto e compreendido como um integrante desta
sociedade. E não um integrante qualquer, subalterno, mas um que tenha as mesmas
condições, as mesmas oportunidades, o mesmo acesso a bens materiais, afetivos e
culturais que qualquer outra pessoa (SOARES, 2008). Como nas palavras do autor:

O grande desafio está em combinar geração de emprego e renda com


sensibilidade para o imaginário jovem, para suas linguagens culturais
específicas. Os jovens pobres das periferias e favelas não querem uma
integração subalterna no mercado de trabalho. Não desejam ser engraxates
dos nossos sapatos, mecânicos dos nossos carros ou pintores de nossas
paredes. Não querem repetir a trajetória de fracassos de seus pais. Não
pretendem reproduzir o itinerário de derrotas da geração precedente. Os
jovens pobres desejam o mesmo que nossos filhos: internet, tecnologia de
ponta, arte, música, cinema, teatro, TV, mídia, cultura, esporte. Desejam
espaços para expressão de sua potencialidade crítica e criativa; espaços e
oportunidades para sua afirmação pessoal; chances para alcançar
reconhecimento e valorização, escapando ao manto aniquilador da
invisibilidade social discriminatória (Idem, p.200).

O projeto de lei que cria o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio


de Jovens (PLS 240/2016) está pronto para votação na Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania (CCJ). A proposta foi resultado de discussões na CPI do
Assassinato de Jovens, em 2016. Para a senadora Lídice da Mata (PSB-BA), que
presidiu a CPI, a proposta precisa ser aprovada rapidamente. De acordo com o
texto, as ações do Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens devem
ser executadas pelos órgãos federais, em parceria com os estados e municípios,
dando prioridade à população negra e pobre do país. O projeto estabelece metas
para o período de dez anos, como a redução da taxa dos homicídios e da letalidade
policial.  http://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2017/03/criacao-de-plano-
nacional-de-enfrentamento-ao-homicidio-de-jovens-sera-analisada-na-ccj

Considerações Finais

Diante do que foi exposto nesse trabalho, conclui-se que o racismo persiste
arraigado no imaginário social, nas relações interpessoais e no cotidiano de instituições
públicas e privadas. O racismo institucional coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos
discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e
por demais instituições e organizações.

(Estado “incorporado” n)A polícia atua como agente de um poder soberano, como aquele
que pode decidir entre a vida e a morte de seus cidadãos entre o “fazer morrer e o deixar
viver”. Mas não de todos, não de qualquer cidadão, sim daqueles cuja vida não têm
importância, os Homo Sacer da sociedade brasileira.(FOUCAULT, 2005)
Como base nisso, é possível perceber que o racismo está encrustado nas relações
sociais, gerando oportunidades para uns em detrimento de outros, de forma a desenhar
uma sociedade desigual e injusta, alicerçada na segregação racial. E mesmo com todos
esses dados, o debate sobre a questão racial permanece circunscrito a grupos e coletivos
do Movimento Negro e interditado nos mais importantes fóruns de discussão do país.

[Exemplificar os movimentos sociais]

A persistência da ideologia da Democracia Racial e a negação da existência do


racismo no Brasil, geram empecilhos para a promoção deste debate tão importante para a
implementação de políticas públicas que visem superar as desigualdades raciais e extirpar
o racismo presente nas organizações e instituições. Racismo esse que leva a situações de
imobilidade social associadas à pobreza e à miséria, além de situações extremas que
levam à alienação e, até mesmo à morte.

MELHOR NA CONCLUSÃO

A população afrodescendente, desde os tempos da escravidão, tem seus direitos


mais básicos negligenciados pelo Estado. Trezentos anos de servidão que nunca foram
superados. Suas chagas permanecem expostas ainda hoje se revelando nas parcelas mais
pobres da população. Os escravos foram libertos, porém não houve políticas afirmativas
de reparação dos danos causados por terem sido expatriados, por terem tido sua língua,
sua religião, sua liberdade, sua cultura, roubadas. Foram deixados à própria sorte... Ou
azar.

O jovem negro brasileiro, hoje, sofre “na pele” as mais graves injustiças e
espoliações em decorrência de sua cor. São os mais pobres, os mais marginalizados, os
mais ignorados e também os que mais morrem nas mãos de uma polícia truculenta e
preconceituosa.

Em face disso, mais do que necessárias, são urgentes as políticas públicas de


combate ao racismo e à desigualdade racial. É preciso fazer com que não haja mais uma
segregação racial que coloca certos grupos étnicos em posição de privilégios e outros em
desvantagem. Mais do que isso, é preciso criar políticas que coloquem o jovem negro
como peça atuante e pertencente a uma sociedade e não como mal que deve ser extirpado.
É preciso desmantelar a falsa crença de que o Brasil vive uma democracia racial que
coloca impeditivos na implementação de tais políticas. Somente assim poderemos, um
dia, com muito esforço e luta, alcançar essa democracia de fato e então, cessar o
extermínio praticado contra a juventude negra do país.

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