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Artigo original

DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE


60 anos após a sua publicação
Ivo Coser
  https://orcid.org/0000-0002-8010-1287

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro - RJ, Brasil. E-mail: ivocoser@uol.com.br

DOI: 10.1590/3410011/2019

Introdução contemporâneos (Gray, 2000a; 2000b; Crowder,


2002; 2004; Galston, 2002; Hirschmann, 2003).
Em 1958 era publicado o ensaio “Dois con- Todo esse esforço resultou num corpus teórico espe-
ceitos de liberdade” (DCL), de Isaiah Berlin, ori- cífico, que é designado como pluralismo de valores
ginado de palestra proferida por ele na Higham (PV). DCL permanece como um dos ensaios mais
Chichele Society. Em 1969, foi relançado com uma importantes da teoria política do século XX, com
extensa introdução em um livro que reunia três ou- repercussões no debate do século XXI. À come-
tros ensaios. DCL viria a ser o trabalho de Berlin moração dos 60 anos de sua primeira publicação,
mais conhecido. Em parte, essa difusão obscureceu mostrou-se oportuno realizar um balanço crítico
seu argumento, reduzindo-o a um confronto sim- do ensaio.
ples entre as liberdades positiva e negativa. Neste artigo, considerei necessário percorrer o
A partir dos anos de 1990, surgiram diver- conjunto de temas que emergem no DCL – reco-
sos trabalhos sobre temas específicos de sua obra nhecimento, liberdade interior, democracia –, de
(Crowder, 2016). É possível assinalar claramente, maneira a não ficar restrito a uma análise dicotô-
pari passu, um conjunto de autores que, apoiados mica liberdade negativa x liberdade positiva. Assim,
nas ideias de Berlin, buscaram analisá-las critica- mobilizo o texto original de DCL, o ditado oral, a
mente, a partir das quais se voltaram para temas introdução escrita em 19691 e seus trabalhos ante-
riores e posteriores.2
Artigo recebido em: 04/05/2018 Apresento também dois outros aspectos. Em
Aprovado em: 23/11/2018 primeiro lugar, considero quatro críticas ao seu
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argumento (MacCallum Jr., 1967; MacPherson, palavra liberdade deriva do desejo de o sujeito ser
1973; Taylor, 1979; Tully, 2014), discutidas nos seu próprio senhor” (Idem, p. 16; p. 236). A nature-
momentos em que dizem respeito diretamente aos za desse desejo implica a recusa ao papel de um ser
temas em questão. Em segundo lugar, discuto as in- passivo: o sujeito, individual ou coletivo, requer o di-
terpretações da obra de Berlin efetuadas por autores reito de escolher seus fins e os meios para atingi-los.
que apontam impasses presentes em sua obra, bem Berlin já discutira esse conceito em trabalhos
como sugerem desenvolvimentos teóricos possíveis. anteriores, “A ideia de liberdade” (IL) e em “Dois
Este artigo sustenta que a compreensão do conceitos de liberdade: o romântico e o liberal”
ensaio requer a mobilização da ideia de pluralis- (DCLRL).4 Em IL, o conceito de liberdade englo-
mo de valores (Crowder, 2002; Gray 2000a). Tal ba os valores que mais tarde estarão associados às
ideia emerge, em vários momentos do texto, e, liberdades negativa e positiva: “O desejo de liberda-
claramente na última seção do ensaio. O plura- de” consiste no “desejo de não sofrer interferências
lismo de valores consistiria num dado central da de outros indivíduos ou grupos”; os seres humanos
condição humana; a experiência humana ordinária têm desejos e qualquer coisa “que os impeça de rea-
mostra que somos confrontados com diversos fins lizar esses desejos é chamada de obstáculo” (Berlin,
razoáveis – justiça, piedade, fraternidade, busca da 2009b, p. 149). Num mesmo conceito, Berlin reú-
realização individual etc. – e estes são, não apenas ne a ideia de autonomia, a realização de desejos,
distintos, mas, em certas circunstâncias, conflitivos. de fins almejados pelo sujeito, com uma área de-
Tais confrontos nos forçam a fazer escolhas, que se sobstruída. Esse conceito, Berlin atribuía a Rous-
revelam trágicas, porque esses fins correspondem a seau e Kant. Segundo ele, a partir desses autores, a
dimensões relevantes do florescimento humano.3 liberdade passa a ser entendida como um bem ab-
Tendo por base essa ideia, o argumento de Ber- soluto, não negociável, pois é a característica defini-
lin oscilou entre dois pontos teóricos, que se mani- dora dos homens enquanto homens, aquilo que os
festaram no ensaio e em obras posteriores. O primei- torna detentores de direitos e deveres. Retirar a sua
ro: a diversidade e o conflito de fins conduziriam a liberdade seria negar que eles são responsáveis pelos
um decisionismo moral, em outras palavras, qual- seus atos: “A verdade, a justiça, a maldade somente
quer preferência será sempre uma escolha arbitrária. poderiam existir se ao homem lhe fosse dada a li-
Isso ocorre porque não é possível estabelecer uma berdade de escolha” (Berlin, 2009b, p. 175). Nessa
métrica comum entre os fins, capaz de mensurar as discussão, já emerge o valor central do conceito de
perdas e ganhos. O segundo: a partir de um compro- liberdade: a escolha; este será o coração do concei-
misso prático construído em função do contexto, é to de liberdade em DCL. Entretanto, essa reunião
possível estabelecer um acordo temporário entre os será parcialmente rompida em DCLRL: os valores
fins diversos e conflitivos. ligados à ausência de obstrução pertenceriam à tra-
dição intelectual liberal, enquanto o ideal român-
tico reuniria tanto os valores positivos da ideia de
As duas liberdades: um choque inevitável ou liberdade – autonomia, autorrealização, criação de
compromisso prático? novos ideais – quanto os valores negativos – a coa-
ção em nome da adequação à lei natural. Na defi-
A liberdade negativa é definida como a área de- nição de liberdade, emerge apenas a ideia de que
sobstruída, na qual o indivíduo ou um grupo pode esta consiste na ausência de obstáculos à ação dos
agir sem a interferência de outro(s) indivíduo(s), sujeitos (Berlin, 2009a, p. 218). Porém, ao longo
grupo(s) ou do Estado: “A liberdade política, nesse do texto, Berlin volta a rearticular os valores, quando
sentido, é simplesmente a área dentro da qual um estabelece que essa área desobstruída não é um fim
homem pode fazer o que ele quer sem ser obstruído em si mesma, mas uma proteção para fins mais
por outras pessoas de fazer o que ele quer” (Berlin, valiosos – amor, amizade, justiça etc. A separação
1958, p. 7; 2002c, p. 229). Por sua vez, a liberda- sucede em razão de o movimento romântico ter
de positiva corresponde a: “O sentido positivo da carregado em seu bojo duas ideias: a identificação
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da liberdade com o ato de criar – “a criação e a li- tuação social dos menos favorecidos, gerando um
berdade são idênticas” (Idem, p. 242) – e a liberda- sentimento de virtude e harmonia social em subs-
de como adesão a uma estrutura externa (a história, tituição à vergonha do convívio com a desigualda-
a igreja, a nação, a razão), em que o sujeito é livre de. Entretanto, tais medidas não deixam de afetar a
enquanto age conforme essa lógica. De acordo com liberdade individual de sujeitos que faziam uso dela
a segunda ideia do romantismo, qualquer condu- para atingir seus fins. Conclui Berlin (1958, p. 10;
ção do sujeito ao padrão da estrutura externa não 2002c, p. 232):
se constituiria numa violação da sua liberdade, mas
num ato de liberdade; dessa forma, a educação ou Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não é
a coação pura e simples seriam passíveis de ser acei- igualdade, equidade, justiça, felicidade ou
tas, pois cumpririam uma função legítima perante consciência apaziguada. Se a minha liberdade
o fim superior. A separação dos valores do conceito ou de minha classe ou nação depende da mi-
de liberdade decorre de um movimento interno do séria de um vasto número de seres humanos, o
romantismo, que nega o valor central, a liberdade sistema que promove tal coisa é injusto e imo-
de escolha: “A liberdade reduzida a seus mínimos ral. Mas se restrinjo ou perco minha liberdade
termos é, pelo menos, a liberdade de escolher en- para atenuar a vergonha de tal desigualdade, e
tre alternativas: não pode ser menos do que isso” com isso não aumento materialmente a liber-
(Idem, p. 249). Isso denota que não há uma sepa- dade individual de outros, ocorre uma perda
ração ontológica entre os valores que constituem o absoluta de liberdade.
conceito de liberdade; em princípio, a ideia chave
reside na liberdade de escolha, e o distanciamento Berlin não nega que a igualdade social seja um
se dá à medida que esta é negada por um movimen- valor legítimo. Porém, uma vez que cada fim é pen-
to contingencial. sado como uma medida absoluta, torna-se impos-
Em 1958, o autor reafirma essa unidade ló- sível qualquer acordo. O autor não estabelece que
gica. Do ponto vista conceitual, “são não mais a liberdade negativa seja o padrão a partir do qual
que formas negativas e positivas de dizer a mesma os fins existentes na sociedade sejam avaliados. Ou-
coisa” (Berlin, 1958, p. 16; 2002c, p. 237). Além tros fins são igualmente razoáveis: “A liberdade não
desse vínculo conceitual, estão também interliga- é a única meta dos homens” (Berlin, p. 10, nota 1;
das “a área na qual eu ajo desimpedido requer que 2002c, p. 232). Existem diversos fins razoáveis na
eu possa formular e buscar os fins que eu almejo” sociedade, que dizem respeito a valores fundamen-
(Berlin, 1969, p. xliii). Entretanto, historicamen- tais para o desenvolvimento do ser humano: justiça,
te houve conflitos entre essas duas concepções; tais solidariedade, piedade, amizade, liberdade de opi-
choques não estavam inscritos nas suas respectivas nião, segurança etc.; todavia, em certas circunstân-
definições, mas decorreram do uso que foi feito cias, tais valores colidem e não há uma regra univer-
de ambas. A maneira pela qual a liberdade positi- salmente aceita que estabeleça uma hierarquia entre
va foi pensada gerou um conflito com os valores eles (Idem, p. 52; 2002c, p. 268; 2002f, p. 50).
que orientavam a liberdade negativa. A igualdade A perspectiva de que não seja possível um acor-
social, entendida como um requisito para o uso da do entre igualdade social e a liberdade negativa foi
liberdade positiva, chocou-se com a liberdade ne- base para certa crítica. Numa abordagem marcada
gativa, pensada como uma área desimpedida para a pelo contextualismo histórico,5 Tully (2014) sus-
ação de sujeitos na busca de fins particulares. tenta a seguinte perspectiva: DCL foi escrito em
Os membros de uma sociedade marcada pela meio ao conflito que dividia o mundo em dois sis-
desigualdade social podem se sentir ofendidos com temas, a Guerra Fria, pertencendo o ensaio àque-
tal situação, fato que os conduziria a postular a le contexto histórico específico. Nesse contexto, a
adoção de políticas públicas que restrinjam a liber- resposta de Berlin foi em sentido oposto ao movi-
dade de alguns em favor de maior igualdade social. mento do liberalismo social. O contexto político e
Essas medidas influenciariam positivamente na si- as ideias que geraram o New Deal e o Welfare State
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acenavam para a combinação entre direitos sociais ramente expressos, quanto mais generalizados
e direitos civis; a novidade do ensaio de Berlin foi em regras ou máximas universais. Ainda assim
“o esforço em definir o liberalismo nos termos da um compromisso prático tem que ser encontrado
liberdade negativa exclusivamente e postular que (Berlin, 1958, p. 10, nota 1; 2002c, p. 232).
era por esta que o capitalismo ocidental estava em
guerra aberta” (Tully, 2014, p. 25). Esse deslocamento e esse acréscimo representam
Em linha teórica distinta, Macpherson (1973) a intenção do autor em reforçar duas ideias. A pri-
elabora uma crítica em parte semelhante. Segun- meira: tomar certos fins como único, um valor sa-
do ele, o argumento berliniano seria marcado pelo grado inegociável representa uma dimensão da ideia
conflito entre as liberdades negativa e positiva, en- de incomensurabilidade – determinados fins são fins
tendidas como dois conceitos portadores de fins in- em si mesmos e busca-se a sua realização por esse
comensuráveis e ambos razoáveis do ponto de vista próprio fim e não por qualquer outro. Eles são a sua
do florescimento humano. Entretanto, o polo forte própria medida. Entretanto, tomá-los dessa maneira
da concepção de liberdade em Berlin residiria na espelha uma incapacidade em tolerar e compreender
liberdade negativa entendida como uma esfera pro- a razoabilidade de outros fins. A segunda: a possi-
tegida de qualquer intervenção, em razão da qual o bilidade de que sejam realizados acordos entre esses
sujeito poderia formular os fins que desejasse alcan- fins, de maneira a estabelecer uma convivência pací-
çar. A lei deveria apenas proteger essa esfera sem ne- fica, sem que esse compromisso oculte o fato de que
nhum conteúdo específico; seu papel principal seria houve perdas e ganhos na composição. Discutindo
o de não intervir na liberdade de ação do sujeito. o conflito entre liberdade e justiça social, Berlin sus-
Essa ideia de não intervenção estaria entrelaçada tenta que em uma situação em que a sociedade con-
em outra: a incomensurabilidade dos fins. Como sidera a injustiça social algo a ser superado, torna-se
os fins são sempre incomensuráveis, é impossível necessário encontrar um compromisso prático entre os
mensurar um ganho ou uma perda produzida por dois princípios.
determinada intervenção. As tentativas de ampliar Ao afirmar essa ideia, Berlin estabelece que é
a igualdade seriam sempre contrabalançadas pela impossível pensar num acordo universal estável em
perda da liberdade negativa. Tal efeito geraria uma torno de princípios que suprimam o conflito; o que
impossibilidade de adotar qualquer medida de in- é possível são soluções políticas gestadas, alicerça-
tervenção que vise alterar a condição social presen- das na conjuntura de cada sociedade. Em 1988,
te, o que tornaria a concepção berliniana favorável Berlin retomou o tema do conflito entre liberdade
às injustiças presentes numa sociedade liberal de individual e justiça social, atribuindo uma dimen-
mercado (Macpherson, 1973, p. 105). são nova à ideia de compromisso prático.
De modo a compreender esse conflito, que
está no coração dos dois conceitos de liberdade, é Mas os conflitos, mesmo que não possam ser
interessante analisar a articulação interna do tex- evitados, podem ser suavizados. As reivindica-
to e as ênfases distintas ao longo da trajetória de ções podem ser equilibradas, soluções de com-
Berlin. Na edição original de 1958, há uma longa promisso podem ser alcançadas: em situações
nota na qual Berlin discute a necessidade de que as concretas nem toda reivindicação tem igual
exigências da liberdade individual possam ser sacri- força – um tanto de liberdade e um mesmo
ficadas em favor de maior justiça social. Na edição tanto de igualdade [...]; para alimentar os fa-
de 1969, Berlin deslocou esse trecho para o corpo do mintos, vestir os nus, curar os doentes, abrigar
texto e acrescentou uma frase que não constava os sem-teto. Devem-se estabelecer prioridades,
da edição original. jamais finais e absolutas (Berlin, 2002f, p. 55).

Um ou outro de tais princípios ou regras con- O compromisso prático exige não apenas a
flitantes deve ceder, pelo menos na prática: moderação das reivindicações, mas também o esta-
nem sempre por motivos que podem ser cla- belecimento de prioridades. A ideia de incomensu-
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rabilidade dos fins é contida pela exigência de esta- mento das artes e das ciências, de impedir po-
belecer certas prioridades. As exigências de justiça líticas ou sociais reacionárias ou desigualdades
social teriam prioridade perante reivindicações da arbitrárias, não se torna menos rígida pelo fato
liberdade individual propiciada pelo mercado livre de não se voltar diretamente para a promoção
de restrições. Esta última noção não é uma novidade da liberdade, mas para as condições nas quais
no argumento berliniano, como veremos mais a posse da liberdade possui valor, ou de valo-
adiante, quando observarmos a distorção da liber- res que podem existir independentemente da
dade negativa. O que é reforçado no argumento é liberdade. Mas, ainda assim, a liberdade é uma
a ideia de prioridades. A incomensurabilidade dos coisa e as condições para a liberdade são outras
fins pode ser controlada quando estes são compara- (Berlin, 1969, p. liii).
dos, procedimento que permitiria aos sujeitos e às
sociedades estabelecer certas prioridades. Para tan- As condições para o exercício da liberdade são
to, torna-se necessário compreender outros fins que tão importantes quanto o exercício dela, mas a li-
não aqueles postulados pelo grupo e tolerar a di- berdade não se dissolve nas pré-condições para o
versidade de fins, reconhecendo que ela é um dado seu exercício. A ausência de condições efetivas para
permanente e que, em certas circunstâncias, alguns a prática da liberdade, na forma de oportunidades
fins terão precedência sobre outros. para educação, emprego e reflexão crítica, produ-
Quando os fins são pensados de modo abso- zirá um ganho vazio. Na citação anterior, Berlin se
luto, é impossível qualquer acordo e qualquer es- refere à obrigação de promover educação, justiça,
colha individual; intervenções públicas que visem saúde etc. Quando o faz, ele não discute se cabe
moderar ou estabelecer uma hierarquia entre eles ou não distribuir esses bens, mas salienta a impe-
são entendidas como produtoras de perdas irrepará- riosa necessidade de que eles sejam distribuídos
veis, entre quaisquer fins. No caso, o conflito ocor- igualmente. Tal ação implica conflitos entre fins
re entre a liberdade individual e a intervenção com últimos. Mas se trata de sacrificar alguns fins em
a finalidade de promover a justiça social. favor de outros, a despeito de resistências existentes
Na introdução escrita em 1969, Berlin abor- na própria sociedade.
da o problema da intervenção pública com vistas a A educação constitui-se em uma ferramenta
diminuir a desigualdade social. Em primeiro lugar, poderosa para abolir distinções sociais arbitrárias,
ele afirma a centralidade da liberdade de escolha decorrentes de fatores casuais como nascimento.
entre fins diversos e conflitantes como valor central Propiciar educação teria diversas consequências,
de sua abordagem. Em segundo, ele indica a possi- como um reforço da solidariedade social e uma pre-
bilidade de estabelecer prioridades numa interven- paração maior e mais eficaz de adultos para o mer-
ção pública. Como exemplo dessa perspectiva, ele cado de trabalho. Essas consequências são impor-
nota que discorrer sobre a importância da leitura tantes, mas também há um valor que se constitui
como um alargamento das fronteiras do sujeito em ponto central de uma intervenção pública sob a
para aqueles que não possuem o acesso à escola ótica pluralista: “a necessidade de prover oportuni-
pode propiciar um discurso belo, porém inócuo. dades de livre escolha ao maior número de crianças,
o que provavelmente crescerá com a igualdade de
É importante discriminar entre liberdade e as ensino” (Berlin, 1969, p. liv). Tal intervenção pú-
condições de exercício da liberdade. Se um blica encontra resistências.
homem é muito pobre, muito ignorante ou
doente para fazer uso dos seus direitos legais, Se dissessem-me que isso reduziria a liberdade
a liberdade que esses direitos lhe conferem é dos pais que reivindicam o direito de não sofrer
nada para ele, mas disso não resulta que eles se- interferências nesse assunto – que é um direito
jam suprimidos. A obrigação de promover edu- elementar poder escolher o tipo de educação
cação, saúde, justiça, de aumentar o nível de a ser dado aos filhos, determinar as condições
vida, de propiciar oportunidades para o cresci- intelectuais, religiosas, sociais e econômicas em
6  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 100

que cada criança deve ser criada –, eu não teria (Idem, p. xliv). Essa operação transformou a liberda-
capacidade de negar tal opinião (Idem, p. liv). de positiva, que contém diversos valores favoráveis à
liberdade de escolha, em uma “doutrina da autorida-
A redução da área de não interferência seria o de e da opressão” (Idem, p. xlvii).
resultado de uma ação que visa propiciar condições O que houve foi que a liberdade de escolha en-
igualitárias a todos, de maneira a que todos possam tre fins incomensuráveis foi substituída pela ideia de
desfrutar de uma educação que lhes permita exercer liberdade para escolher um único fim desejável. O
a liberdade de escolha entre diversos fins. Há per- desejo que orientou várias das indagações em torno
da da liberdade negativa, mas essa não é a métrica da liberdade positiva envolveu a pergunta “como
absoluta que rege todas as esferas da sociedade. Se devo ser governado de maneira a que leve determina-
a análise aponta que um sistema de educação uni- da forma de vida”, a forma mais justa e racional que
forme para todos aumenta as oportunidades de es- seria a única possível e desejável. Nessa indagação,
colha do sujeito e desobstrui barreiras arbitrárias a predomina a ideia de que a liberdade significa levar
certos bens, não há por que bloquear a intervenção apenas “uma” determinada forma de vida, aquela
em nome de outro fim igualmente incomensurável – prescrita pela razão ou por um livro religioso.
no caso, um fim relacionado à liberdade negativa. Tal A lógica presente na distorção da liberdade po-
prioridade não exclui a dimensão trágica da escolha. sitiva suprime um valor fundamental da liberdade,
em qualquer uma de suas várias formas, qual seja,
Mas eu devo manter que quando (como nes- a liberdade de escolha. Historicamente, essa traição
te caso) os valores colidem genuinamente, de fato ocorreu, mas não estava inscrita na lógica
devem-se fazer escolhas. Nesse caso, ocorre a da liberdade positiva; ainda assim, a sua pergunta
colisão entre a necessidade de preservar a liber- fundamental permitia essa distorção. Nesse sentido,
dade existente de algum pai para determinar o a distorção da liberdade positiva foi historicamente
tipo de educação que busca para seus filhos e contingencial, mas não acidental (Crowder, 2004,
a necessidade de promover outros fins sociais; p. 69). A crítica de Berlin não incidia sobre a liber-
finalmente, a necessidade de criar condições dade positiva tout court, mas sobre a sua distorção.6
nas quais aqueles que delas não disponham te- A distorção da liberdade positiva é um ponto
nham oportunidades de exercer esses direitos estabelecido.7 Entretanto, considero que sucedeu
(liberdade de escolha) que detêm legalmente, outro movimento de distorção; este no conceito de
mas de que não podem, sem tais oportunida- liberdade negativa. Na “Introdução”, Berlin men-
des, usufruir (Idem, p. liv). ciona que, durante o período do capitalismo liberal,
este conduziu a uma distorção da liberdade negati-
Portanto, fica claro que perante resistências é va. O capitalismo liberal do século XIX advogou a
legítimo invocar a intervenção pública como uma tese de que não deveria haver nenhuma forma de
forma de ação para que se estabeleçam certos fins, interferência na vida social, o que permitiria à so-
no caso: igualdade social, fim de barreiras arbitrárias ciedade civil um equilíbrio saudável, designado por
e, fundamentalmente, proporcionar a liberdade de Berlin (1969, p. xlv), de maneira crítica, como “um
escolha a todos entre fins diversos e contraditórios. darwinismo social”. O resultado disso foi que, em
Berlin pontua que o surgimento do conflito de- nome da liberdade individual, foram “encorajadas e
corre do uso feito da liberdade positiva. Esse uso, ele permitidas violações brutais da liberdade negativa”
qualifica como uma perversão que transformou uma (Idem, p. xlv). A não interferência afetou não ape-
doutrina da liberdade em uma apoteose da autorida- nas as liberdades civis, associadas usualmente ape-
de. A distância entre ambas alargou-se “à medida que nas à liberdade negativa, mas também os valores da
a noção de self padeceu de uma fissura metafísica du- liberdade positiva, como a livre expressão e o direito
rante a qual se transformou, por um lado, em um self de associação, valores altamente importantes para
real, ou mais alto, e com isso se tem a pretensão de o florescimento humano. Assim, durante o século
dominar o self mais baixo, empírico ou psicológico” XIX, os muros que a liberdade negativa propiciava
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foram destruídos e os valores que encorajam a par- desejos manifestados por certos fins; pretendo al-
ticipação pública foram constrangidos: cançá-los, mas sou impedido pela ação de outros
sujeitos. De maneira a evitar a frustração e suas
[...] a falência do sistema em promover o mí- consequências (humilhação social, tortura, prisão
nimo de condições nas quais qualquer nível de etc.), efetuo uma retirada estratégica para uma cida-
liberdade negativa possa ser exercido por indi- dela interior. Nessa esfera, posso fruir os valores dos
víduos ou grupos, sem as quais é de pouca ou fins almejados; nessa esfera acolhedora, permaneço
nenhuma valia para aqueles que teoricamente fiel aos desejos iniciais, ainda que não os manifeste
a possuem. O que são direitos sem poder para abertamente (Berlin, 1958, p. 19; 2002c, p. 240).
implementá-los? (Idem, p. xlvi). A ideia de retirada para a cidadela interior con-
tém um segundo movimento, no qual o sujeito
Ao final, ele infere que a liberdade advinda des- constrói seus desejos mais imediatos, mas percebe
sa situação resultou num ganho vazio. Essa inter- a impossibilidade de realizá-los, em razão do cons-
pretação da liberdade negativa propiciou que ela se trangimento realizado por terceiros, e, então, efeti-
tornasse um instrumento de dominação de poucos va um movimento de adequação, reduzindo o atri-
sobre muitos. Tornar a liberdade individual um fim to e eliminando os desejos anteriores. Nas palavras
absoluto significa reduzir a uma única medida todos de Berlin: “Eu identifico-me com o controlador e
os demais fins aceitáveis para o florescimento dos escapo da escravatura do controle” (Idem, 1958, p.
indivíduos: participação, bem-estar material, justiça 21; 2002c, p. 241).
social etc. A conclusão de Berlin sobre a distorção Esse segundo movimento, Berlin o associa a
da liberdade negativa é fundamental: “Cada con- uma ação na qual o sujeito, pelo uso da razão, adap-
ceito pode se tornar uma perversão para a qual ele ta-se ao contexto em que vive. Em tal acepção, ser
foi criado para resistir” (Idem, p. xlvi). Isso é passí- livre é compreender as leis que regem a ação huma-
vel de acontecer com qualquer fim razoável para o na e eliminar tudo aquilo que vai em sentido con-
florescimento humano e que se torne uma medida trário a elas: “O único método verdadeiro de obter
absoluta: quando um fim é apresentado como um a liberdade, dizem-nos, é pelo uso da razão crítica,
fim incomensurável, que não admite conflito com da compreensão do que é necessário e do que é cir-
outros, porque os considera falsos, quando todos cunstancial” (Idem, 1958, p. 25; 2002c, p. 245).
os demais fins são sinais de erro e devem ser supri- O sujeito deve ser racional, não deve desejar que
midos, quando o florescimento humano somente aquilo que se manifesta daquela forma seja diferen-
admite um modelo – tem-se aí a sua perversão.8 te, pois ele é o que deve ser; isso se dá dessa maneira
e não de outra, porque as premissas que regem o
mundo assim o determinam. Não compreender as
A retirada para a cidadela interior regras racionais que regem os fenômenos conduz
o sujeito à irracionalidade. Dessa forma, o sujeito
Ao longo do DCL, Berlin delineia o conceito elimina seus desejos imediatos, produtos do seu self
de liberdade a partir da liberdade de escolha en- empírico, e se submete a uma razão externa, que o
tre diversos fins. Entretanto, essa escolha pode ser conduz a agir em conformidade a ela (Idem, 1958,
constrangida, o que lhe retiraria o papel de uma p. 28; 2002c, p. 248).
escolha adequada. Um dos sinais da presença desse No argumento berliniano, quando as leis da
constrangimento está na ideia de retirada para uma razão ou as leis sociais desempenham um papel de-
cidadela interior. terminante nas concepções morais, seu efeito é o
A retirada para a cidadela interior corresponde de oprimir os desejos imediatos. Nesse modelo, as
a um movimento provocado por uma ação inten- leis desempenham um papel semelhante ao leito de
cional ou não, que tolhe direta ou indiretamente Procusto: todo ser humano deve constranger seus
a busca dos fins pretendidos pelo sujeito. Digamos desejos e adaptar-se a esse constrangimento: “A liber-
que eu seja um sujeito com autonomia e tenha dade não é a liberdade de fazer o que é irracional, estú-
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pido ou errado. Forçar os eus empíricos a adaptarem-se reminiscências de uma sociedade “arcaica”? Nessa ló-
aos padrões corretos não é tirania, mas libertação” (idem, gica, pode ser dito que à resistência faltava um projeto
1958, p. 31; 2002c, p. 251). O tema da retirada para político-social mais claro, em razão de as condições
a cidadela interior permite uma análise do tema da objetivas para a superação da ordem de mercado não
coerção sobre o sujeito e a partir deste o estudo de estarem ainda maduras. Mas da ótica pluralista, lhes
quatro aspectos teóricos relacionados: (1) a proteção era legítimo requerer uma proteção contra o esforço
que a liberdade negativa deve oferecer ao sujeito; (2) a em subordinar todas as esferas da vida social a um úni-
existência de um fim para a ação livre; (3) os constran- co critério (o mercado), mesmo que não pleiteassem
gimentos sociais sobre a construção dos desejos e (4) o um projeto político-social alternativo.
papel dos desejos de segunda ordem. A mesma lógica aplica-se a uma situação de opres-
Em primeiro lugar, fica evidente pelo argumen- são de gênero. Uma mulher que não se identifica com
to de Berlin que a retirada para a cidadela interior uma relação heteronormativa marcada pela naturali-
é resultado de uma ausência de proteção contra in- zação opressiva do patriarcado não necessita justifi-
terferências arbitrárias. Em segundo lugar, esse fato car essa recusa em nome de outro modelo de relação
chama a atenção para a função cumprida pela liber- afetiva; simplesmente, ela deve dispor de uma esfera
dade negativa: ela é um instrumento para proteger na qual possa recusar tal padrão. Se, no futuro, ela es-
o sujeito ou grupos sempre que estes indiquem a colher uma relação heteroafetiva ou homoafetiva ou
presença de ações que os constrangem. Tal ideia de qualquer outra natureza, isso não a impede de re-
visa destacar que o uso da liberdade negativa não querer barreiras contra o constrangimento. Por outro
requer que o sujeito, individual ou coletivo, formu- lado, a situação social da mulher que não se identifica
le um conteúdo específico para querer a presença com um padrão afetivo marcado pelo patriarcalismo e
dessa proteção, mas simplesmente o sentimento de retira-se para tornar-se “a rainha do lar” representa um
que uma ação constrange o seu eu. Essa ideia tem exemplo da retirada para a cidadela interior. Tal ação
consequências mais relevantes do que aparenta. De não é um exercício de liberdade, mas de adaptação a
maneira a compreender esses desdobramentos, se- uma opressão. A leitura feita por Nancy Hirschmann
guem dois exemplos históricos, um proveniente do do argumento berliniano indica a importância da li-
movimento dos trabalhadores no surgimento da so- berdade negativa nos contextos sociais marcados pela
ciedade de mercado, o outro originário dos novos opressão patriarcal. Segundo a autora, a liberdade
movimentos sociais da pós-modernidade. negativa oferece a possibilidade de pensar sobre a im-
Os trabalhadores oriundos do campo foram in- portância de proteger a escolha individual da mulher
corporados à sociedade de mercado num processo acerca da reprodução, contra o assédio sexual e a dis-
histórico descrito por Polanyi como “moinho satâ- criminação no emprego (Hirschmann, 2003, cap. 1).
nico” – controle total da vida social pelo mercado, Barreiras são fundamentais para conter a opressão,
o qual funcionava como o único padrão para as re- mesmo que o sujeito oprimido não tenha clareza
lações sociais. Esse traço foi uma inovação radical da quanto ao destino que dará à sua liberdade.
contemporaneidade: a economia de mercado deveria Considerado esse argumento, é possível com-
estar livre dos constrangimentos produzidos pelas re- preender a fundamentação da recusa de Berlin à crí-
lações sociais (Polanyi, 1980, p. 60). Ao longo desse tica de MacCallum. Segundo este autor, a liberdade
processo histórico, os trabalhadores manifestaram o está alicerçada em uma relação triádica: X é livre
seu descontentamento para com a maneira pela qual (ou não) de Y para fazer (ou não) Z (MacCallum
esse processo era conduzido. Esse movimento de resis- Jr., 1967, pp. 314-316). Vários elementos impor-
tência requereu, entre outros elementos, a presença de tantes emergem da crítica de MacCallum. Mas
barreiras que protegessem os cidadãos, que lhes per- quando se reflete na discussão acima, a refutação de
mitissem o direito de recusar certos fins, de proteger Berlin faz todo sentido:
certos bens que cabem somente ao indivíduo decidir o
que fazer com eles. Qual projeto político aqueles tra- Sugeriu-se que a liberdade é sempre uma re-
balhadores tinham? Esse projeto era viável? Ou apenas lação triádica [...]. Isso se constitui, para mim,
DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE  9

em um erro. Um homem pode lutar contra os abertas, mas em razão de medo e constrangimentos
seus grilhões ou um povo pode lutar contra a sociais, o sujeito nem sequer as enxerga. Taylor rea-
escravização sem que possuam conscientemente presenta os dois conceitos: a liberdade positiva en-
quaisquer objetivos ou uma situação futura. Um volveria o exercício, enquanto a liberdade negativa
homem não precisa saber como ele usará sua estaria voltada para a existência da oportunidade de
liberdade: o que ele quer é remover a opressão. agir. Ao separar os dois polos, Taylor destaca a possi-
O mesmo vale para nações e classes (Berlin, bilidade da existência de uma área desimpedida com
1969, p. xliii, nota 1). oportunidades possíveis, mas que não seria utilizada.
Tal fato decorreria não de uma escolha racional, mas
Em razão dessa ideia, Berlin enfatiza em vá- de um bloqueio. Esse sujeito pode estar vivendo uma
rios momentos a centralidade do ato de escolher, situação de opressão difusa, mas sem sofrer nenhum
sem que esse esteja atrelado necessariamente a um constrangimento explícito. O bloqueio se dá em
fim. Caso estivesse, o sujeito, ou a classe, somente razão de o sujeito ter internalizado sentimentos de
poderia fazer uso dessa proteção quando possuísse inferioridade que tolhem sua ação, mas ele disporia
um fim aceitável conforme os padrões sociais. Tal formalmente de um campo de ação extenso. Segun-
postulado ignoraria o peso que as convenções so- do Taylor, no conceito de liberdade de Berlin, caso
ciais jogam sobre as escolhas que buscam recusar um sujeito que dispusesse de um leque de opções,
os padrões socialmente aceitáveis. Assim, é possível mas não agisse com o receio de violar normas repres-
pensar que ser livre tem, também, esta consequên- soras internalizadas, ele seria considerado livre.
cia: recusamos ou não uma ação intencional que A crítica de Taylor distingue entre os desejos
consideramos opressiva, mesmo sem termos um de primeira e segunda ordens. É a partir do desejo
fim objetivo que justifique a recusa.9 manifesto pelo sujeito que o reconhecimento de si
Essa discussão permite ainda desenvolver um mesmo começa a manifestar-se; mas este pode ser
segundo aspecto relacionado à crítica formulada apenas um aparecimento irrefletido. A maneira
por Taylor (1979). Hirschmann (2014) destaca um pela qual o sujeito supera esse elemento irrefletido
elemento central no conceito berliniano de liber- consiste na atividade reflexiva, por meio da qual se
dade apresentado posteriormente à publicação de realiza o desejo conforme o conhecimento do self
DCL: a ideia de escolha forçada. Em um trabalho no mundo. Introduzindo as categorias de avaliações
publicado em 1964, Berlin (2002a, p. 151) afirma: fraca e forte, Taylor busca estruturar sua concep-
“Ser livre é ser capaz de fazer uma escolha não força- ção de ação moral do sujeito como uma atividade
da; e a escolha acarreta possibilidades concorrentes reflexiva. Ao proceder assim, ele estabelece que os
– no mínimo duas alternativas ‘abertas’ desimpedi- desejos do sujeito devem resultar de uma profunda
das”. Na “Introdução”, ele relata mecanismos so- avaliação, mas isso não implica negar que existam
ciais produzidos pelo Estado, mas também por gru- incompatibilidades entre os objetos do desejo. Ao
pos sociais poderosos, que constrangem a liberdade identificar que os desejos do sujeito são o resultado
de escolha de maneira camuflada, com tanta efi- de uma avaliação forte, Taylor aponta que o sujeito
cácia quanto os métodos abertamente opressivos procede a partir de contrastes entre os valores últi-
(Berlin, 1969, p. xlvii-xlviii). Entretanto, observa mos envolvidos.
Hirschmann, se Berlin apontou a possibilidade de Essa discussão permite refletir a respeito de al-
que as escolhas fossem constrangidas indiretamen- guns limites do argumento berliniano. A primeira
te, ele não atentou para um problema que afeta o questão remete à crítica efetuada por Taylor e Ma-
momento anterior: a construção social dos desejos cpherson: por que quando o self empírico faz um
(Hirschmann, 2003, cap. 1). movimento de depuração das suas escolhas iniciais
A crítica que mobilizou esse aspecto foi desen- esse movimento deve ser chancelado como “autori-
volvida por Charles Taylor (1979). Segundo esse au- tarismo”? A resposta possível indica que nem sem-
tor, a mera existência de alternativas não assegura o pre esse movimento deve ser avaliado dessa manei-
exercício da liberdade. As portas podem encontrar-se ra. Tal ideia sugere a possibilidade de que os valores
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 100

da liberdade positiva desempenhem um papel rele- Com a formulação anterior e seu desenvolvi-
vante na construção da ação do sujeito, retomando mento, Berlin afasta-se de toda tradição liberal que,
a ideia inicial de que os dois conceitos não são lo- partindo de Hobbes, toma o indivíduo como uma
gicamente antagônicos (Dimova-Cookson, 2013). unidade autônoma e independente, que deve ser
considerado isoladamente e, a partir da qual, toda
a engenharia social e política deveria ser pensada.
A luta pelo reconhecimento No argumento berliniano, o ponto de partida é o
desejo de o sujeito participar de formas culturais
Se se prestar atenção ao conteúdo da ideia de comuns e de pertencer a comunidades autogover-
reconhecimento, se irá perceber que é pouco claro nadas ou reconhecidas no seu Estado-nação.
o motivo pelo qual o assunto entra em DCL. Ber- Tendo em mente essa perspectiva, deve-se com-
lin estabelece que o conteúdo da ação que almeja o pará-la com a crítica efetuada por Taylor (2000) ao
reconhecimento não pertence nem à liberdade ne- pensamento liberal. Um dos pontos centrais da críti-
gativa e nem à positiva, sendo uma forma híbrida, ca de Taylor à teoria liberal consiste no seu abando-
ou seja, uma terceira forma de liberdade. Se o título no do tema do bem comum. O liberalismo procedi-
do ensaio refere-se a dois conceitos, por que não o mental recusa radicalmente a ideia de bem comum no
intitular de “Os três conceitos de liberdade”? Creio sentido estrito, porque o arranjo político social deve
que Berlin tinha sérias dúvidas de que os valores ser neutro no que diz respeito à questão da boa vida
contidos nessa ideia pudessem ser enquadrados (Idem, p. 210). Ao postular essa ideia, o liberalismo
num conceito de liberdade. procedimental perde de vista o bem comum imediato
O liberalismo de Berlin apresenta um forte partilhado. Existem coisas que não teriam o mesmo
componente comunitário, que reside na compreen- valor se a sua fruição fosse feita solitariamente. Essa
são de que o sujeito está envolvido pela comunida- dimensão da vida dos sujeitos é fundamental para
de. Segundo Berlin (1958, p. 40; 2002c, p. 257), a existência dos indivíduos. Porém, o liberalismo
quando me pergunto o que sou, respondo: procedimental termina operando uma separação en-
tre o que é valioso em termos de grupo e o arranjo
[...] sou um inglês, um chinês, um mercador, político. Os teóricos do liberalismo procedimental
um homem sem relevância, um milionário, um acreditam que o Estado deve se afastar da produção
criminoso condenado: descubro pela análise que desses bens, pois crê que o afastamento é a garantia de
possuir esses atributos implica ser reconhecido que se manifeste a diversidade de concepções de boa
como pertencente a um grupo ou classe [...] e vida. O resultado final desse arranjo político é a pro-
que esse reconhecimento é parte da maioria dos dução de uma cisão entre os sujeitos e os assuntos
termos que denotam algumas das minhas carac- públicos. As instituições são vistas pelos diversos
terísticas mais pessoais e permanentes. grupos da sociedade como instrumentos a serem
manipulados, despidas de qualquer sentido comum;
O sujeito não é um Robinson Crusoé isolado, em face dessa ausência, a participação ganha a for-
que cultiva seu self apartado dos demais, tomando ma de reivindicações judiciais, centradas na forma,
seu julgamento como o único critério para avaliar sem qualquer fundo de bem comum (Idem, pp. 217-
os fatos. O prazer ou a dor que o sujeito sente, ele 218). O fundo dessa concepção, para Taylor, deve-se
os sente em razão dos valores presentes no grupo a que o liberalismo procedimental permanece preso a
a que pertence. Um evento que me proporciona noções atomistas e à visão de um modelo instrumental
alegria somente o faz porque os valores que deter- das instituições (Idem, p. 219).
minado grupo elege como valiosos são atendidos O argumento berliniano guarda em si a ideia
por esse evento. O prazer que tenho em usufruir de que o desejo do sujeito de possuir bens relevan-
um bem reside na possibilidade de compartilhar tal tes somente ganha sentido na medida em que ele
sentimento com os membros do meu grupo, pois pertence a um grupo. Esse pertencimento não é um
não desejo fruir solitariamente o bem. dado secundário; os valores e os fins compartilha-
DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE  11

dos pelo grupo devem ser não apenas garantidos, entendidos como fruto de um atraso que lentamente
mas também reconhecidos como válidos pela co- será superado, mas exige ser visto como um sujeito
munidade mais ampla, na qual o sujeito e o grupo pleno. O reconhecimento por parte da sociedade na
estão inseridos. A crítica de Taylor ao liberalismo qual o sujeito vive é parte fundamental para que as
“procedimental” não atinge o PV. Porém, o argu- possibilidades garantidas pelas barreiras sejam con-
mento berliniano discorda de qualquer modelo cretizadas. Dessa forma, Berlin recusa a ideia de que
de bem comum, não porque ele acredite que não o respeito e a autoestima humanas requerem exclusi-
exista internamente aos grupos, mas em razão da vamente a posse de direitos e liberdades individuais
existência de diversas concepções de bem comum (Gray, 2000a, p. 122).
e porque elas são diversas e conflitantes. O acordo No contexto histórico de DCL, estava em evi-
prático em torno de políticas comuns, que venham dência o tema da luta pela autonomia dos povos
a estabelecer metas, nunca é perfeito ou harmôni- colonizados. Berlin compreendia a legitimidade
co, é apenas uma tênue linha desenhada com mate- dessa luta baseado em sua ideia de que os indiví-
rial fugaz, destinada a ser em breve refeita. duos conferem um valor fundamental ao pertenci-
Em DCL, Berlin menciona, em primeiro lu- mento a dada etnia, tradição, língua e religião, os
gar, o pertencimento do sujeito a um grupo; em se- quais são marcos da sua identidade. O que os po-
gundo, faz compreender que os valores que guiam vos colonizados desejavam era ser governados por
as ações do sujeito são inseparáveis do grupo; em alguém que representasse esses elementos. A pauta
terceiro lugar, o sujeito e o grupo ao qual pertence principal desses povos não era a forma de governo
lutam para o reconhecimento desse grupo e dos seus (democracia, ditadura, socialismo ou capitalismo),
valores na comunidade mais ampla em que vivem. mas a luta por reconhecimento (Berlin, 2002e, p.
263). Mesmo que se imaginasse uma forma colo-
O que as classes ou as nações oprimidas de- nial irreal, uma colonização benéfica, ainda assim a
mandam não é simplesmente uma liberdade luta contra ela seria legítima. Os povos colonizados
desembaraçada de ação para seus membros, preferem ser oprimidos por algum membro do seu
nem, acima de tudo, igualdade social ou eco- grupo a ser tratados com tolerância por alguém que
nômica de oportunidades, menos ainda o es- não os reconhece e que não pertence ao seu grupo
tabelecimento de um lugar sem atritos num (Idem, p. 259). Para todos esses povos, existe uma
Estado orgânico desenhado por um legislador. luta comum: o combate ao paternalismo. Entre-
O que desejam, frequentemente, é o simples tanto, paira uma dúvida sobre o pertencimento da
reconhecimento (de sua classe, nação, cor ou luta pelo reconhecimento ao campo liberal; ela ma-
raça) como uma fonte de atividade humana nifesta-se nesse trabalho e aprofunda-se em obras
autônoma com vontade própria [...], em vez de posteriores, nas quais Berlin buscou delinear quatro
ser educado, guiado, mesmo que por mão sua- tipos diferentes de nacionalismo.
ve (Berlin, 1958, p. 41; 2002c, p. 259). O primeiro tipo postularia que os sujeitos per-
tencem a um grupo específico, o que os conduz a
O trecho indica que o valor atribuído à liberdade compreender que seu modo de vida difere do de
negativa está relacionado ao reconhecimento das outros grupos. Em virtude disso, se pode dizer que
identidades e das formas de vida presentes no gru- os traços de personalidade dos indivíduos são mo-
po. Assim, esse reconhecimento tem de estar refleti- delados a partir do grupo, ou seja, do todo para as
do nas instituições sociais e na atitude da sociedade partes, em que estas não podem ser entendidas sem
como um todo para com o grupo. Não se trata ape- referência ao todo (Berlin, 2002e, p. 594).
nas do direito do grupo de se organizar – aspecto Um segundo modelo afirmaria a crença arraigada
importante –, mas do desejo de o grupo ser reconhe- de que a sociedade é análoga a um organismo bioló-
cido como uma parte autônoma, capaz de realizar gico: as necessidades do organismo tomado como um
suas escolhas. O grupo não deseja ser aceito na socie- todo determinam os objetivos das partes; as energias
dade como um menor de idade que tem seus valores e os objetivos parciais dos subgrupos – família, igreja,
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província etc. – devem subordinar-se às necessidades diversos fins. É essa ideia que empresta o caráter po-
e aos objetivos da unidade superior. Mais importante: sitivo ou negativo às características do nacionalismo.
em situações de conflito com outros valores – prove- Existe ainda outro traço do nacionalismo, deci-
nientes da religião, da economia, dos direitos da pes- sivo para o argumento berliniano, também ligado à
soa humana entendidos como universais, de um ideal diversidade de fins: ele representa a natural expressão
de verdade científica –, os valores do grupo deverão da diversidade de culturas. Tal ideia emerge nos seus
prevalecer sempre (Berlin, 2002e, p. 595). ensaios sobre Herder e Vico (Berlin, 2002b; 2005a).
O terceiro tipo sustenta que o motivo pelo qual São trabalhos com preocupações distintas, mas que
os sujeitos buscam um fim particular é que este é o do permitem destacar uma linha que os une: o pluralis-
grupo a que pertence. O motivo pelo qual esse fim mo cultural. O ensaio no qual essa ideia assoma com
é buscado não significa que ele conduza à justiça, à mais impacto é o sobre Herder. Nele, Berlin aponta
igualdade ou à liberdade, nem que ele seja estabelecido como a descoberta mais revolucionária do pensador
por Deus, pela ciência e muito menos que contenha alemão, a ideia de que cada cultura nacional ou cada
valores universais reconhecidos em qualquer local ou época histórica abarca um conjunto de valores que
contexto, mas porque corresponde ao fim estabelecido são “uma expressão de uma manifestação particular
pelo meu grupo, pela minha nação (Idem, p. 595). do espírito humano, valioso em si mesmo, e não
O quarto tipo é o do nacionalismo que, quando como um passo para uma ordem mais elevada” (Ber-
plenamente desenvolvido, pratica a mesma distorção lin, 2002b, p. 438). Entretanto, a interpretação de
que a dos teóricos da liberdade positiva: quando os Berlin vai mais além. Numa mesma época histórica,
fins almejados pelo organismo a que o sujeito perten- emergem culturas distintas, com fins e valores radi-
ce revelam-se incompatíveis com as metas desejadas calmente distintos entre si, sendo irracional tentar
por grupos particulares ou sujeitos individuais, a coa- submeter um conjunto ao outro. A atividade huma-
ção é uma medida necessária e que deve ser usada ple- na produz incessantemente novos valores que orien-
namente (Idem, p. 596). tam os sujeitos a novos fins, que ganham a forma de
Analisado o argumento anterior, percebe-se que culturas num movimento sempre diverso, no qual
o nacionalismo compreende um sentido positivo e cada forma cultural é distinta e perfaz um conjunto
um sentido negativo. Das características descritas, a de valores próprios, que lhe confere sentido, que não
primeira representa o sentido positivo, porém ocor- se pode reduzir a um pretenso conjunto de valores
re que, num movimento decrescente, o nacionalismo universais. Em outras palavras, cada cultura nacional
vai perdendo seu sentido positivo. O positivo emerge tem valor em si mesmo, ideia que terá importância
quando grupos mantêm o espaço interno para que para balizar as escolhas dos sujeitos.
seus membros disponham de liberdade de escolha
enquanto sujeitos capazes de se compreenderem au-
tonomamente. O sentido negativo – ou, como ele A ameaça da democracia majoritária à
designou no ditado oral, “uma perversão do sentido liberdade
da ideia de fraternidade” (Berlin, 1957, p. 29) – surge
quando, em vez de união entre os membros, emerge o Ao longo de DCL podem-se recortar dois sen-
valor de uma fusão indistinta, na qual desaparece o su- tidos distintos do conceito de democracia: (1) de
jeito como alguém capaz de avaliar e escolher, gerando liberdade positiva, como participação nos assun-
em seu lugar uma visão organicista do grupo. Berlin tos públicos ou autogoverno; (2) como um gover-
enfatiza que, quando isso acontece, os indivíduos “es- no consentido pela maioria, que age sem limites e
tão preparados para trocar o doloroso privilégio da es- que impõe determinada forma de vida para toda a
colha – o fardo da liberdade – por paz, conforto e re- sociedade (Myers, 2014). Em alguns trechos, Ber-
lativa despreocupação de uma estrutura autoritária ou lin utiliza o termo “democracia” com o sentido de
totalitária” (Berlin, 1958, p. 44; 2002c, p. 261). Tal participação pública; em outros, o termo denota a
avaliação chama a atenção do valor chave que ordena intervenção do poder soberano para coagir a socie-
o argumento berliniano: a liberdade de escolha entre dade a adotar determinada forma de vida.
DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE  13

O primeiro sentido de democracia está asso- O desejo [...] de participar do processo que
ciado à ideia de participação, valor prezado pelos controla minha vida pode ser um desejo tão
grupos desejosos de limitar a extensão da soberania profundo quanto o de uma área livre para a
e por aqueles que pretendem ampliar esse poder. ação [...]. Mas não é a mesma coisa. [...] Pois
A liberdade positiva corresponde a uma dimensão é isso, a concepção positiva de liberdade, não
fundamental da ideia de democracia: “desejo ser a libertação de, mas a libertação para – levar
alguém”, “desejo participar das decisões públicas uma forma prescrita de vida – que os adeptos da
que dizem respeito à minha vida” (Berlin, 1958, p. noção negativa consideram, em certas ocasiões,
16; 2002c, p. 236). Esse valor corresponde ao sen- nada mais do que um disfarce capcioso para
timento de repulsa por qualquer forma de paterna- uma tirania brutal (Berlin, 2002c, p. 236).10
lismo, presente na raiz do conceito de democracia.
Em DCI (“Democracy, communism and the No argumento berliniano, a ideia de democra-
individual”), Berlin (1949) apresentava de maneira cia torna-se uma ameaça à liberdade quando reúne
precisa o vínculo entre democracia e liberdade. A de- a concentração de poderes sem limites e a presun-
mocracia é o sistema político que legitima a vontade ção de estabelecer uma única forma aceitável de
política do sujeito ordinário. Numa democracia, o vida. Enquanto a democracia permite o surgimento
sujeito, sem ser senhor de virtudes heroicas ou de de diversas formas de vida, ela não representa um
uma capacidade intelectual elevada, encerra o mes- problema, ao contrário, constitui-se em um dos
mo peso que aqueles dotados dessas qualidades; já pilares de uma sociedade plural. De novo, pode-se
os sujeitos que, porventura, acreditem ter essas vir- assinalar a presença da dupla conceitual pluralis-
tudes podem almejar o poder, mas, para alcançá-lo, mo-monismo desempenhando um papel central no
deverão contar com o apoio dos cidadãos ordinários, argumento berliniano.
aproximando-os por meio da mobilização das pai- Dessa forma, o argumento berliniano conside-
xões e dos interesses desses cidadãos. Nessa concep- ra que, de maneira geral, a liberdade está mais bem
ção de democracia, o self empírico é erguido a uma protegida numa democracia do que em regimes au-
posição central, sendo-lhe dado o direito de mani- tocráticos, o que não o impede de verificar tensões
festar sua opinião sem que tenha de a justificar em entre a democracia e a liberdade. Também histo-
termos altruístas ou racionalistas. E ainda com o di- ricamente, democracias majoritárias constrange-
reito de recusar formas autoritárias de imposição de ram e, eventualmente, suprimiram liberdades civis
determinada forma de vida (Berlin, 1949, p. 2). fundamentais para minorias. Nesse sentido, a liber-
Entretanto, a democracia pode gerar apatia po- dade não está ligada, ao menos do ponto de vista
lítica. A importância da preservação de um espaço lógico, à democracia. O respeito ao direito das mi-
protegido para o sujeito apresenta um problema: norias envolve uma questão que permaneceu aberta
uma vez que dispõe de um espaço com barreiras na obra de Berlin: o arranjo político que forneceria
que o protegem, o indivíduo recolhe-se e abando- sustentação à manifestação da diversidade.
na a participação pública. O argumento berliniano
não compartilha da ideia de que a apatia política
seja funcional para a democracia. Num trecho pre- O pluralismo
sente no ditado oral, Berlin mostra a preocupação
de liberais de que o prazer que o sujeito moder- Analisar os escritos de Berlin anteriores a DCL
no encontra na vida privada termine levando-o a permite destacar dois pontos. Em primeiro lugar, a
abandonar a participação política, fato que levaria formulação sobre as liberdades negativa e positiva
à perda da liberdade privada (Berlin, 1957, p. 13). já estava presente anteriormente. Em segundo lu-
O segundo sentido de democracia assoma ao gar, a relação normativa entre esses dois conceitos já
ensaio quando Berlin associa democracia ao poder tomava como base a ideia de liberdade de escolha.
irrestrito de uma maioria impor determinada forma Entretanto, DCL introduz um valor novo: a ideia
de vida às minorias que compõem uma sociedade. de diversidade e de conflito. Essa ideia emerge em
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diversos momentos de DCL, mas é na última par- homens conferem enorme valor à liberdade de esco-
te, “O um e o múltiplo”, que ela é caracterizada lha” (Idem, p. 53; 2002c, p. 269).
plenamente e na qual Berlin apresenta dois estilos Assim, a liberdade de escolha, que anteriormente
de pensamento que perpassariam a teoria política nos definia como seres humanos capazes de escolhas
ocidental: o monismo e o pluralismo. carregadas de valores, ganha uma nova dimensão. No
O monismo pressupõe que, para todas as in- ditado oral, essa ideia está formulada com mais ênfase:
dagações humanas, deve existir uma única resposta “O poder de escolher entre alternativas incompatíveis,
verdadeira e, consequentemente, existiriam diversas igualmente absolutas, é uma das características que nos
respostas falsas. A existência da verdade única re- torna humanos” (Berlin, 1957, p. 36). A liberdade de
presenta a possibilidade de que todos os conflitos escolha encontra-se em meio a um mundo repleto de
sejam considerados resultado da má fé ou da igno- fins distintos e conflitivos, que, em certas circunstân-
rância e, daí, seriam obstáculos para a realização da cias, requerem escolhas que implicam sacrifícios de
única meta desejável, justificando-se a supressão de- outros fins igualmente razoáveis.
les. O fim único também representa a possibilidade A maneira pela qual Berlin apresenta a ideia de
de harmonizar em torno de si mesmo os diversos pluralismo torna compreensível o sentido político
fins que antes entravam em choque: justiça, igual- de DCL. Os fins últimos que perpassam os confli-
dade, liberdade, bem-estar material, indivíduo, co- tos políticos – liberdade, igualdade, justiça, comu-
letividade. O fim único passaria a desempenhar a nidade, desenvolvimento material etc. – podem ser
função de medida absoluta, a partir da qual todos compreendidos como portadores da verdade última
os demais fins são hierarquizados; dessa forma, a e única, acarretando um movimento irracional e au-
imperiosa necessidade de escolher um dentre eles toritário de bloquear a diversidade de fins presente
desaparece (Berlin, 2002c, p. 268). na condição humana e impedir o exercício da liber-
Já o pluralismo guarda em si uma natureza ra- dade de escolha. Sempre que um fim é apresentado
dicalmente diversa: ele é tanto um estilo de pensa- como valor fundamental e único, a partir do qual
mento quanto uma experiência que nasce da vida todas as questões podem ser respondidas, encontra-
ordinária dos sujeitos. mos um estilo monista de compreensão dos proble-
mas morais. Esse impulso está presente em diversas
O mundo que encontramos na experiência ordi- concepções políticas. O liberalismo do século XIX
nária é um mundo em que somos confrontados foi moldado por uma visão monista quando ergueu
com escolhas entre fins igualmente supremos e a liberdade individual como princípio único da vida
reivindicações igualmente absolutas; a realização social e política. No contexto da Guerra Fria, foram
de algumas dessas escolhas e reivindicações deve as concepções distorcidas de liberdade positiva que
envolver inevitavelmente o sacrifício de outras buscaram tolher a diversidade de fins.
(Berlin, 1958, p. 53; 2002c, p. 269). Dessa maneira, para Berlin o foco na liberdade
negativa decorre de outro fim, pois esta só tem re-
O pluralismo de valores (PV) sustenta que, para levância à medida que, naquele contexto específico,
as questões éticas, existem várias respostas razoáveis, ela acolhe o princípio da diversidade e do conflito
calcadas em valores distintos e conflitivos. Nessa vi- entre fins, permitindo que se manifeste a liberdade
são, não se trata de condenar uma moral em favor de de escolha dos sujeitos.
outra em nome de um fim único e verdadeiro, mas
de reconhecer a existência de diversos fins razoáveis e O pluralismo e a dose de liberdade “negativa”
que, em certas circunstâncias, não é possível estabe- que carrega parece-me um ideal mais verdadei-
lecer um acordo entre eles. Esse fato conduz o sujeito ro e mais humano [...]. É mais verdadeiro, pois
a uma escolha, que se revela trágica, porque os fins pelo menos reconhece o fato de que as metas hu-
recusados correspondem a dimensões relevantes da manas são muitas, nem todas mensuráveis, e em
condição humana. Esse painel leva Berlin à seguinte perpétua rivalidade umas com as outras (Berlin,
conclusão: “Portanto, é devido a tal situação que os 1958, p. 56; 2002c, p. 272).
DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE  15

Como destaquei, no ensaio DCLRL as barreiras escolha: um liberalismo agonístico (Gray, 2000a); a
que formam a ideia de liberdade negativa não são ideia de uma escolha entre diversos fins conflitan-
fins em si mesmas; já em DCL, a liberdade nega- tes não pode encontrar um fundamento inquestio-
tiva recepciona um valor que lhe fornece sentido: a nável. Qualquer escolha trará sempre um cálculo
manifestação da diversidade de fins perante os quais aproximado do que foi perdido e do que foi ga-
a escolha será exercida. Nesse sentido, a ideia que es- nhado; essa imprecisão não decorre da precariedade
trutura as duas liberdades é o pluralismo de valores. do método empregado, mas da inexistência de uma
escala única de grandeza, capaz de medir perdas e
ganhos (Berlin, 1958, p. 652, nota 19). Toda es-
Ato arbitrário ou compromisso prático colha será sempre uma escolha numa situação im-
precisa, na qual só resta ao agente agir. Essa ideia,
Se a liberdade de escolha entre fins diversos e Berlin apresentou-a como tendo sido gestada no
conflitantes é o valor central do PV, pode-se inda- seu ensaio sobre Maquiavel, quando compreendeu
gar quais são os seus fundamentos. Seria uma es- ter sido o autor florentino o primeiro a tirar conse-
colha calcada, em última instância, na tradição? É quências morais da existência de concepções razoá-
aceitável um ato que busca, mesmo que introdu- veis e conflitantes. A ideia chave de Maquiavel con-
zindo mudanças, manter uma paz interna entre os siste “na revelação da possibilidade de mais de um
modos de vida predominantes? Ou seria mais acei- sistema de valores, sem nenhum critério comum aos
tável uma escolha, justificada publicamente, calca- sistemas que permitam uma escolha racional” (Ber-
da em valores que assegurassem a diversidade e a lin, 2002e, pp. 340-341). Escolhemos sabendo que
tolerância, mesmo que, com isso, a paz interna da outras escolhas seriam não só possíveis, mas tam-
sociedade fosse afetada? bém razoáveis: tomamos uma decisão porque é ne-
Num primeiro momento, Berlin apresenta a cessário fazê-lo. As circunstâncias de que o conflito
ideia de que a escolha dos sujeitos é determina- dispõe nos força a escolher. Por sua vez, essa escolha
da por conceitos morais que são uma expressão irá nos conduzir a meios que são coerentes com o
de tradições e costumes (Berlin, 2002c, p. 272). fim que estabelecemos, justificado com relação a
Essa ideia é extremamente importante no argu- valores relacionados a esse fim. Nossa escolha é ra-
mento berliniano, porque remete à relevância do cional com relação ao fim que escolhemos, mas é
sentimento de pertencimento a uma coletividade irracional quando avaliada por outros fins.11
e ao tema do pluralismo cultural. Todavia, essas duas alternativas contêm um
A ideia da importância do pertencimento a um forte componente de relativismo moral, de caráter
grupo ou a uma cultura ampliou-se e radicalizou-se cultural ou individual. Esses componentes pare-
na sua análise. Em DCL, ele escreve que talvez o ceram a Berlin próximos demais do relativismo, o
valor da tolerância para a diversidade seja fruto da que o levou a buscar uma distinção entre pluralis-
civilização capitalista; ou seja, um valor específico mo e relativismo:
de determinada cultura (Idem, p. 272). Nesse senti-
do, o liberalismo democrático é também uma ma- Eu prefiro café, você prefere champanhe. Te-
nifestação cultural particular, que não pode aspirar mos gostos diferentes. Não há nada mais a ser
a ser uma norma universal. dito. Isso é relativismo (Berlin, 2002, p. 49).
Com essa perspectiva, é razoável indagar: cul-
turas que restringem a diversidade de formas de Não há uma infinidade de valores: o número de
vida são aceitáveis como base para o exercício da valores humanos [...] é finito. O fato de que os
liberdade de escolha? Numa sociedade democrática homens são homens e as mulheres são mulhe-
e plural, doutrinas abrangentes que buscam cons- res, e não cachorros, gatos, mesas ou cadeiras,
tranger modos de vida distintos são toleráveis? é um fato objetivo; parte desse fato objetivo é
Entretanto, no argumento berliniano é possí- que há certos valores, e apenas aqueles valores,
vel encontrar outro fundamento para a liberdade de que os homens, continuando a ser homens,
16  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 34 N° 100

podem buscar. [...] Posso entrar num sistema da empatia no processo de conhecimento de outras
de valores que não é o meu, mas ainda assim é sociedades. Para conhecer outra sociedade, deve-
algo que possa conceber como sendo buscado mos ser capazes de compreender os valores dessa
por homens que permanecem humanos, que sociedade, de recusar qualquer tentativa de redu-
permanecem criaturas com as quais posso co- zi-los a outro conjunto de valores. Somente assim,
municar-me, e com quem tenho alguns valores poderemos compreender essa cultura, mas isso não
em comum [...]. É por isso que o pluralismo impede que formemos um julgamento sobre ela.
não é relativismo – os valores múltiplos são ob- A tolerância consiste em reconhecer a diversidade
jetivos, fazem parte da essência da humanida- humana e em afastar quaisquer posturas que con-
de, em vez de criações arbitrárias das fantasias duzam ao monismo. A tolerância é, por essência,
subjetivas dos homens (Berlin, 2005b, p. 30). antiutopista; ela recusa a possibilidade de que um
fim possa conter todos os demais, afasta a erradi-
Os dois trechos apresentam ideias novas. Em cação do conflito, mas acredita na possibilidade de
primeiro lugar, há um limite para os fins huma- firmar compromissos entre os fins.
nos aceitáveis: aqueles que permanecem dentro do
horizonte humano. Em segundo lugar, as escolhas
devem ser publicamente apresentadas e discutidas, Modus vivendi ou pluralismo liberal
não apenas escolhas brutas – “eu escolho porque
quero”. Esse debate tem como finalidade tornar os O compromisso corresponde a um modus vi-
homens conscientes das categorias a partir das quais vendi? Ele requer que certos valores, como auto-
pensam (Berlin, 2002g, p. 117). Mas essa tarefa nomia do sujeito e respeito à pluralidade, tenham
não suprime o conflito, pois há limites para a razão precedência? Considero que essas indagações não
em ser uma medida que esclareça os sujeitos e con- encontram respostas estáveis em Berlin.
duza-os a um meio termo consensual. Em carta a Quando Berlin foi indagado se a sua defesa do
John Rawls, Berlin (1988) exprime sua concordân- PV visava defender o liberalismo, sua resposta foi que
cia com o uso que Rawls fez da ideia de pluralismo, os dois não eram conceitos idênticos, nem manti-
mas manifesta seu ceticismo quanto à capacidade nham vínculos lógicos, e que várias correntes liberais
de o consenso sobreposto dirimir conflitos entre fins não eram pluralistas. Mas ele acreditava no liberalis-
últimos, como aqueles ocorridos na segunda me- mo, por este abrir espaço para que concepções diver-
tade do século XX, desencadeados pela religião no sas de vida se revelem, e que, a partir disso, emerjam
Oriente Médio. Como pensar sobre os limites para seus valores incompatíveis e a possibilidade de com-
a escolha? O que é aceitável e o que não é aceitável? promissos que não destruam o mundo público (Ber-
Berlin sustenta que a diversidade de fins e seus lin e Jahanbegloo, 1996, p. 73).
conflitos permanecem como um marco objetivo Essa questão retornaria quando lhe foi fei-
da condição humana e que negá-lo corresponde a ta a crítica de que o PV propiciava a emergência
negar essa condição. Tem-se aqui um primeiro ele- de escolhas irracionais e, portanto, eventualmente
mento para responder àquelas questões. Em segun- contrárias à diversidade. Se a liberdade de escolha
do lugar, se essa diversidade não é redutível a um é um processo trágico, por que não a suprimir ou
fim único, torna-se necessário preservar a liberdade constrangê-la? Escolher essa alternativa é tão arbi-
de escolha. É esta que assegura que não somos pe- trário quanto requerer um arranjo político-social
dras. Um terceiro elemento corresponde à recusa ao que ampare e estimule a diversidade e o conflito
monismo: é contrário à condição humana estabele- (Crowder, 1994).
cer um único fim como sagrado ou inegociável; em A resposta de Berlin foi que o PV não postula
certas circunstâncias, é preciso firmar acordos. uma hierarquia de valores; existem valores relevan-
Emergem daí duas ideias centrais no argumen- tes (ele lista alguns), mas não estabelece que sejam
to berliniano: empatia e tolerância. Nos ensaios so- apenas estes: autonomia do sujeito e diversidade de
bre Vico e Herder, Berlin destacou a importância fins. Escolher um dentre outros não é inconsistente
DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE  17

com o PV, mas negar sua importância, sim. Quais- Há outra interpretação que conduz a uma ar-
quer políticas públicas devem ser regidas pelas cir- ticulação maior entre PV e liberalismo (Crowder,
cunstâncias; em certos momentos, prevalecem al- 2002; Galston, 2002). A experiência ordinária
guns valores, em outros, outro conjunto de valores; diante da diversidade de valores não é uma des-
não há um algoritmo moral para as decisões indi- crição da perplexidade emocional sentida pelos
viduais ou de políticas públicas (Berlin e Williams, sujeitos, mas corresponderia a uma estrutura da
1994, pp. 307-308). condição humana. Isso implica que tal dimensão
Segundo Gray, a obra de Berlin teria gerado não pode ser relevada em qualquer arranjo político.
uma tese radical em face da tradição da filosofia A pedra angular do PV reside no respeito à diver-
moral, ao postular o conflito agonístico entre as sidade de fins e valores: trata-se de aceitar que o
concepções de bem e, principalmente, ao estabele- florescimento humano comporta várias dimensões
cer a incomensurabilidade entre os valores, na vida e cada uma delas realiza fins distintos.
ordinária ou na cultura. O insight mais profundo Nenhuma vida individual ou arranjo político
da obra de Berlin residiria na constatação de que a pode realizar todos os fins ao mesmo tempo, nem
incomensurabilidade entre os fins impede qualquer dispor de todos os bens necessários, o que acarreta
resolução dos conflitos por meio de um padrão ra- ter de fazer escolhas. Sem negar que os fins últimos
cional (Gray, 2000a, p. 57). são sempre incomensuráveis, eles podem ser pesados
Essa ideia ganharia contornos mais radicais nas e comparados em razão das circunstâncias. Essas es-
sociedades pós-modernas, em que não existiriam colhas, feitas em meio a circunstâncias específicas,
mais elementos que permitam a tolerância liberal não são atos arbitrários, como se fosse possível de-
clássica: os sujeitos não têm um entendimento co- cidir entre dois fins últimos jogando uma moeda
mum da moralidade e negam que exista um modo de ao alto ou por meio da referência a um elemento
vida que possa idealmente reunir o gênero humano. determinante que suprimisse o razoamento públi-
Não apenas não é viável a tolerância nos moldes do co (como a tradição). O PV requer um compro-
liberalismo como também não seria possível entre misso com uma razão prática.
as concepções de bem construir um ponto arqui- Tendo em vista essa perspectiva, o PV adota
mediano, como a religião ou o direito. Em meio a esse como medida para os arranjos políticos a ideia de
dilema, Gray propõe a categoria de modus vivendi, diversidade e recusa arranjos políticos que busquem
a qual representa o reconhecimento da impossibili- a afirmação de um único fim, pois, se determinada
dade de encontrar uma base racional entre os fins sociedade promove um único fim, ela suprime
últimos e as formas de vida correspondentes. Trata-se o valor central da experiência mais ordinária da
de um arranjo político que permitiria a coexistência de condição humana e bloqueia o florescimento dos
formas de vida guiadas por fins conflituosos e inco- sujeitos. Em contrapartida, o PV reconhece que é
mensuráveis (Gray, 2000b, cap. 4). melhor a sociedade dispor de uma variedade maior
As diversas formas de vida não precisam ado- de fins do que bloquear essa diversidade. O mes-
tar sequer a ideia da diversidade de valores e de mo vale para concepções de boa vida postuladas
autonomia do sujeito. O modus vivendi pretende por grupos de um Estado. Os grupos que negam a
corresponder a um arranjo institucional que per- diversidade presente numa sociedade são passíveis de
mita o convívio pacífico entre os diversos grupos e sofrerem interferências legais, o que não implica
formas de vida, sem que estejam presentes valores dizer que certo grupo deva postular valores como
fundamentais para o liberalismo, como indivíduo individualismo ou secularismo, mas todo grupo deve
e livre mercado, entre outros. Na visão de Gray, o assegurar que seus membros tenham o direito de
arranjo político liberal foi válido para as sociedades escolher entre diversos fins e de pertencer ou sair
com certa tradição cultural, sobretudo os países da do grupo (Galston, 2002, cap. 5).
Europa ocidental, sem que possa ser exportado para Existem tradições culturais distintas, para as
sociedades com formação histórica radicalmente quais a autonomia do sujeito, como pretende o
distinta (Gray, 2000b, cap. 4; 2000c). liberalismo, não se coloca com um valor funda-
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mental. Porém, da perspectiva do PV, não é a au- tas a assegurar os direitos sociais e sua relação com a
tonomia do sujeito tomado como unidade isolada liberdade (Idem, pp. xlv-xlvi, lii-liv), a relevância e a
que se apresenta como central, mas a diversidade importância da liberdade positiva e a traição da liber-
de fins. É esse o valor central. A liberdade positiva, dade pelos teóricos da liberdade positiva (Idem, pp.
xliii-xlv) e, por último, a discussão sobre o pluralismo
entendida como autonomia do sujeito em escolher
(Idem, pp. l-lii).
entre fins, é fundamental para que essa diversidade
2 Comparadas as edições de 1958 e de 1969, em grande
se manifeste. Da mesma forma, uma esfera na qual
medida seu conteúdo é o mesmo. Porém, há algumas
o sujeito esteja protegido de interferências arbitrá- alterações que serão mencionadas ao longo do artigo.
rias, a liberdade negativa, é um valor chave. Mas Entre o ditado oral e o texto publicado existem al-
ambos são meios para um valor maior: a expressão gumas diferenças pontuais: trechos foram excluídos,
e a diversidade de fins conflitantes. enquanto outros foram adequados para a escrita. A
Um dos problemas centrais da interpretação de edição brasileira de 2002 provém da coletânea organi-
Gray reside no seguinte: a incomensurabilidade dos zada por Henry Hardy, que, por sua vez, toma como
fins pode ser o meio pelo qual se manifesta o valor base o texto publicado em 1969 na coletânea Four
oposto à diversidade: o monismo. Nesse sentido, a essays on liberty. Essa edição é ligeiramente diferente
incomensurabilidade requer outros valores, a meu da de 1958; a fim de evidenciar quando utilizo qual
edição, considerei o ditado oral como 1957, a pri-
ver, dois: tolerância e empatia. Como destaca Gals-
meira edição de 1958 e a edição de Four essays como
ton, esses outros valores não são produtos da mão de 1969. Ao longo do artigo, especifico a página da
invisível, mas de arranjos políticos e de práticas so- edição de 1958 e a página correspondente da edição
ciais. Nesse sentido, considero que uma nova inves- nacional (Berlin, 2002c). Uma vez que o artigo pre-
tigação para além do DCL requer um debate acerca tende analisar as ideias de Berlin a partir do texto de
desses dois conceitos. 1958, traduzi os trechos citados; entretanto, para que
DCL continua sendo um marco teórico rele- o leitor possa comparar com o texto original, coloquei
vante para o estudo de sociedades e de teorias que a página correspondente em português. Berlin gravou
se veem perante a diversidade e o conflito entre em dictabelts o conteúdo da palestra; a transcrição en-
fins. Ao longo de sua trajetória intelectual, Berlin contra-se disponível em Berlin (1957). Todos os grifos
são meus, exceto quando assinalados.
sempre manifestou a recusa aos esforços utópicos.
Tal estado lhe parecia o sono produzido pela morte: 3 É interessante observar como Berlin, no final da vida,
ao fazer um balanço da sua trajetória, se referiu ao
seu ensaio mais famoso não poderia ser lido de ma-
pluralismo. Segundo ele, quando percebeu o alcance
neira diferente. Abre-se para novas questões e para
desta ideia foi “como um choque” que “solapou” todo
outras que o próprio autor não conseguiu resolver. o seu conhecimento anterior (Berlin, 2002f (1988), p.
47). Chamou-me a atenção Berlin destacar como sen-
do sua ideia central não o tema da liberdade negativa,
Notas mas do pluralismo.
4 Os dois ensaios são originários de palestras proferidas
1 Na “Introdução”, de 1969, foram respondidas diver- em 1952 no Bryn Mawr Collegue, chamadas de con-
sas críticas e efetuadas reformulações significativas no ferências Mary Flexner.
argumento original. Berlin reconhecia, nesse texto,
5 Por contextualismo histórico, entendo fundamental-
que diversas ideias haviam recebido críticas “pertinen-
mente a reflexão de Quentin Skinner.
tes e justas”, algumas por falta de clareza sua mesmo,
necessitando esclarecer certos aspectos; por fim, hou- 6 Macpherson (1973, p. 109) percebeu claramente esse
ve críticas resultantes de ideias que lhe haviam atri- aspecto e propôs uma divisão entre LP1 (liberdade
buído, mas que não eram suas (Berlin, 1969, p. ix). positiva 1), LP2 e LP3, de maneira a concentrar a sua
Assim, foi nesse momento que Berlin respondeu aos crítica não na distorção, com a qual ele concordava,
seus críticos posteriores, sendo fundamental a sua lei- mas em outros aspectos.
tura para uma análise crítica do seu pensamento. Na 7 Ver, por exemplo, Crowder (2004, pp. 69-70) e Ma-
minha visão, os principais pontos abordados foram cpherson (1973, p. 109).
os seguintes: a discussão sobre intervenção com vis- 8 Só é possível entender plenamente as duas distorções
DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE  19

se compreendemos o papel da diversidade, tema dis- liberdade”, in H. Hard e R. Hausheer (orgs.),


cutido na seção “A luta pelo reconhecimento”. Estudos sobre a humanidade, São Paulo, Cia.
9 Segundo Silva (2015, p. 199), Coser (2014, p. 59) te- das Letras.
ria feito uma afirmação “imprecisa” ao considerar que BERLIN, Isaiah. (2002d), “A originalidade de Ma-
“Berlin rejeita, radicalmente, a ideia de um fim neces- quiavel”, in H. Hard e R. Hausheer (orgs.), Es-
sário à ação livre”. Para Silva, Berlin teria rejeitado a tudos sobre a humanidade, São Paulo, Cia. das
ideia de um fim específico para a ação livre. Em Berlin, a
Letras.
liberdade de escolha envolve o direito à recusa, sem que
se requeira a existência de um fim, específico ou neces-
BERLIN, Isaiah. (2002e), “Nacionalismo: negli-
sário. O sujeito carrega o sentimento de opressão, ou gência passada e poder presente”, in H. Hard e
seja, a percepção de que aquele fim não corresponde à R. Hausheer (orgs.), Estudos sobre a humanida-
sua vontade, desconhece ainda um fim alternativo, mas de, São Paulo, Cia. das Letras.
tem o direito de recusar a situação com que se defronta. BERLIN, Isaiah. (2002f ), “A busca do ideal”, in
Em suma, Berlin rejeita radicalmente, com razão, a ne- H. Hard e R. Hausheer (orgs.), Estudos sobre a
cessidade de um fim para ação livre. humanidade, São Paulo, Cia. das Letras.
10 O trecho grifado foi inserido apenas na edição de BERLIN, Isaiah. (2002g), “Ainda existe a teoria polí-
1969. tica”, in H. Hard e R. Hausheer (orgs.), Estudos
11 Quando essa perspectiva é discutida na “Introdução”, sobre a humanidade, São Paulo, Cia. das Letras.
Berlin (1969) chama a atenção da sua proximidade BERLIN, Isaiah. (2005a), “Um dos inovadores
com Weber. mais audaciosos da história do pensamento hu-
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  21

DOIS CONCEITOS DE TWO CONCEPTS OF LIBERTY: 60 DEUX CONCEPTIONS DE LA


LIBERDADE: 60 ANOS APÓS A YEARS AFTER ITS PUBLICATION LIBERTÉ : 60 ANS APRÈS SA
SUA PUBLICAÇÃO PUBLICATION

Ivo Coser Ivo Coser Ivo Coser

Palavras-chave: Teoria política contem- Keywords: Contemporary political theo- Mots-clés: Théorie politique contem-
porânea; Pluralismo de valores; Isaiah ry; Value pluralism; Isaiah Berlin poraine; Pluralisme des valeurs; Isaiah
Berlin. Berlin.

Este artigo analisa criticamente o ensaio This paper proposes a critical analysisof Cet article propose une analyse critique
“Dois conceitos de liberdade”, de Isaiah the essay “Two concepts of Liberty”, by de l’essai « Deux conceptions de la liber-
Berlin. Para isso, compara a primeira edi- Isaiah Berlin. We compare the editions té » par Isaiah Berlin. Il comparela pre-
ção de 1958 com a edição de 1969 e o of 1958, 1969 and the oral dictation of mière édition de 1958, l’édition de 1969
ditado oral de 1957, à luz de trabalhos 1957, in light of earlier and later works. et le texte dicté de 1957, à la lumière
anteriores e posteriores do autor. Abor- We discuss the criticisms of the essay au- des travaux antérieurs et postérieurs de
dam-se as críticas ao ensaio, feitas por thored by Crawford Brough MacPher- l’auteur. Les critiquesà l’essai faites par
CrawfordBrough MacPherson, Gerald son, Gerald MacCallum Jr., Charles C. B. MacPherson, Gerald MacCallum
MacCallum Jr., Charles Taylor e James Taylor and James Tully. We also take into Jr., Charles Taylor et James Tully sont
Tully, e também são recuperadas inter- consideration different interpretations également abordées et les interprétations
pretações distintas da obra de Berlin, of Isaiah Berlin’s works, the ones made distinctes de l’œuvre de Berlin, proposées
feitas por John Gray e George Crowder. by John Gray and George Crowder. For par John Gray et George Crowder, sont
Para a interpretação do ensaio, mobili- the interpretation of the essay, the idea évoquées. Pour l’interprétation de l’es-
zou-se a ideia de “pluralismo de valores”, of “Value Pluralism”, present throughout sai, nous avons mobilisé l’idée de plura-
presente em toda a obra de Berlin, cujos the work of Berlin, was mobilized, for lisme des valeurs, présente tout au long
fundamentos são: a diversidade cultural e which the foundations are: cultural diver- de l’œuvre de Berlin et dont les fonde-
a decisão do sujeito com relação a valores sity and the subject’s decision regarding ments sont : la diversité culturelle et la
últimos. De todo modo, como há certa ultimate values. In any case, since there décision du sujet par rapport aux valeurs
instabilidade teórica no conceito de plu- is some theoretical instability in the con- ultimes. De toute façon, comme il existe
ralismo de valores, buscar-se-á uma nova cept of Value Pluralism, a new grounding une certaine instabilité théorique dans
fundamentação com base em suas inter- for the concept will be sought, based on le concept de pluralisme des valeurs,
pretações contemporâneas. its contemporary interpretations. une nouvelle justification fondée sur ses
interprétations contemporaines sera re-
cherchée.

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