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DISCURSO DE ÓDIO SOB A PERSPECTIVA DE JOHN STUART MILL

HATE SPEECH UNDER JOHN STUART MILL’S PERSPECTIVE

Resumo
O presente artigo tem como objetivo compreender o discurso de ódio sob a perspectiva de
John Stuart Mill. Perquire-se a possibilidade de Mill oferecer contribuições para o referido
debate e, para tanto, utiliza-se do método comparativo, por meio da revisão documental e
bibliográfica, onde, analisa-se os escritos do autor, lê-se artigos acadêmicos e verifica-se a
existência de uma perspectiva para a restrição (ou não) do discurso odioso. Conclui-se que o
autor oferece suporte para um panorama que, ao mesmo tempo, preocupa-se com a liberdade
individual e busca mitigar possíveis danos.
Palavras chave: Princípio do dano. Censura. Liberdade.

Abstract
This article aims to understand hate speech from the perspective of John Stuart Mill. Mill is
offered the possibility of offering contributions to this debate and, for that, it uses the
comparative method, through documentary and bibliographical review, where, the author's
writings are analyzed, academic articles are read and verified. there is a perspective for the
restriction (or not) of hate speech. It is concluded that the author provides support for a
panorama that, at the same time, is concerned with individual freedom and seeks to mitigate
possible damage.
Keywords: Damage principle. Censorship. Freedom.

Introdução
A necessidade de compreensão dos fenômenos sociais contemporâneos e suas
respectivas influências para a esfera individual é vidente. O motivo para referida assertiva é o
status privilegiado que a liberdade ocupa na vida do indivíduo, devendo ser preservada
independentemente da época e das condições que a tente subjugar. Assim, cabe às teorias
sociais analisarem os atuais fenômenos com base em autores antigos e modernos para
extraírem fundamentos teóricos mais efetivos possíveis.
Atento ao propósito, o presente artigo procura compreender a obra de John Stuart Mill
em busca de um posicionamento acerca da liberdade de expressão, bem como, com base na
bibliografia especializada, verificar comparativamente se seus escritos fornecem contribuições
para o debate acerca do discurso de ódio. Utiliza-se, para tanto, de uma pesquisa descritivo-
explicativa, com abordagem qualitativa, de vertente jurídico-dogmática. Adotou-se o método
comparativo, através de revisão documental e bibliográfica. Em um primeiro momento,
analisa-se a obra Sobre a Liberdade de Mill; em segundo, busca-se e examina-se artigos que
tratem sobre o discurso de ódio; em terceiro, compara-se os escritos do autor com os artigos
selecionados em busca de um posicionamento sobre o discurso odioso.
Sendo assim, o trabalho está estruturado em três partes principais. Primeiro, analisa-se
os principais conceitos contidos na obra Sobre a Liberdade de John Stuart Mill. Após,
investiga-se quais os principais apontamentos e preocupações dos artigos brasileiros que
tratam sobre a liberdade de expressão e discurso odioso. Por fim, analisa-se
comparativamente em busca de responder se os conceitos e concepções de Mill acerca da
liberdade de opinião e expressão podem ser tidos como parâmetros para o enfrentamento do
discurso de ódio.

Sobre a Liberdade e sobre o Princípio do Dano

Considerado por muitos um dos mais ferrenhos defensores da liberdade de expressão,


Mill torna-se o marco teórico apropriado, uma vez que pensa eventuais estruturas e limites
para a ação com base em princípios inseridos em um esquema constitucional.
Inicialmente, analisa-se a compreensão do autor para o termo liberdade. Segundo Mill,
a liberdade é una, inexistindo “liberdades”, e pode ser compreendida como a possibilidade de,
sem interferências externas, o indivíduo prosseguir na busca pela realização de seu plano de
vida. Ou seja, com base na sua racionalidade buscar seu próprio bem, sem interferir na
realização do mesmo no caso dos seus concidadãos1. Didaticamente, a esquematiza em três
esferas.
A primeira é relacionada com a liberdade de consciência, de pensamento e sentimento,
bem como de opinião e expressão. Duas características podem ser citadas: i) a total amplitude
desta primeira esfera, considerando a necessidade dela para o desenvolvimento das
posteriores; ii) e a liberdade de opinião e expressão como sendo um desdobramento da
consciência e pensamento, haja vista a íntima ligação com o fato de pensar algo e conseguir
exterioriza-lo2.
A segunda é relacionada à liberdade de perseguir seu plano racional de vida de forma
plena, buscando alcançar seus objetivos, metas e exercer seus gostos, desde que não interfira
na vida privada alheia. Por fim, a terceira é sobre a liberdade de associação, pois, se
indivíduos são livres para buscar seu próprio bem, grupos de indivíduos também devem
1
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução Pedro Madeira. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2011. (Saraiva
de bolso). p. 10.
2
Idem.
possuir essa liberdade, desde que estejam de acordo com as decisões tomadas e sejam
civilmente capazes3.
Se o autor afirma que “sobre si, sobre o seu próprio corpo e a sua própria mente, o
indivíduo é soberano”4, o próprio impõe como limite para a liberdade individual a liberdade
alheia. Nesse contexto, o Princípio do Dano ganha forma e importância no desenvolvimento
da teoria. Segundo Mill, “é o princípio de que o único fim para o qual as pessoas têm
justificação, individual ou coletivamente, para interferir na liberdade de ação de outro, é a
autoproteção”5. Além da esfera positiva (ação), tal princípio também possui sua esfera
negativa (omissão), pois “uma pessoa pode causar mal a outros não apenas pelas suas ações,
mas também pela sua inação (...)”, sendo igualmente responsável em ambos os casos6.
Como todo princípio, o do dano, da mesma forma que possui sua aplicação
justificável, é passível de ressalvas quando defrontado com um caso concreto. A primeira
justificativa guarda relação com a vida em sociedade: Mill compreende que o indivíduo age
conforme um princípio prático que direciona suas opiniões sobre a conduta com base no seu
próprio padrão individual de ação e omissão, e nos de seus mais próximos 7. Esse princípio
prático, quando inserido na sociedade desigual, provoca a busca da maioria para reger o
restante da sociedade com base exclusiva em sua moralidade e modo de viver 8. Então,
considerando a grave ofensa à esfera privada daqueles que não se enquadram no padrão de
determinada sociedade, o Princípio do Dano desempenha o papel regulador, uma vez que a
maioria só poderia interferir no modo de viver de alguma minoria se esta estivesse causando
danos para terceiros9.
O autor também condiciona a aplicação do Princípio do Dano à ofensa de terceiros,
não sendo o próprio bem do indivíduo motivo para exercer coerção sobre ele 10. Então, mesmo
que outras pessoas ligadas emocionalmente ao indivíduo que exerce uma vida que provoca
danos ao seu próprio corpo ou a sua própria mente sejam prejudicadas por tal padrão de
conduta, as mesmas, em regra, não podem interferir, cabendo outras tentativas de
aconselhamento.
Esse princípio encontra exceções em determinados grupos de indivíduos. Crianças e
Jovens abaixo da idade estipulada pelo Estado e incapazes de exercerem seu juízo perfeito
3
Idem.
4
Ibidem, p. 8.
5
Idem.
6
Ibidem, p. 9.
7
Ibidem, p. 5.
8
Ibidem, p. 5-6.
9
Idem.
10
Ibidem, p. 8.
devem ser coagidos para não impetrarem malefícios ao seu próprio corpo e mente 11. Tal regra
tem implicação direta na terceira esfera da liberdade, a liberdade coletiva, haja vista que a
associação deve conter indivíduos maiores e racionais. Tal argumento ganha abrangência
demasiada quando Mill considera, dentro desses dois grupos, um terceiro: as sociedades
retrógradas. Neste, o autor compreende que a liberdade só tem a possibilidade de se
desenvolver em um momento onde a discussão se torna livre e equitativa 12. Nesse sentido,
estabelece-se um paradoxo, vez que uma das principais justificativas para a liberdade é o
desenvolvimento humano, ao passo que Mill estabelece uma cota mínima de desenvolvimento
como pressuposto para o livre exercício do plano de vida do cidadão inserido em tal
sociedade.
Neste momento, considera-se imprescindível a averiguação da aplicabilidade dos
conceitos do autor ao objeto do presente trabalho, o discurso odioso. Contudo, torna-se
necessário responder a seguinte questão: o que é discurso de ódio? Quais são seus efeitos e
suas aplicações? Existe a necessidade de restringi-lo? Em busca destas respostas, utiliza-se da
literatura especializada brasileira para alcançar um panorama definitivo.

Panorama do ódio

Primeiramente, se faz necessário compreender a origem do debate acerca do discurso


de ódio. Considerando que a concepção de discurso odiento é posterior à evolução do direito
de se expressar, torna-se imprescindível a análise conjunta de ambos conceitos.
No que concerne à origem da liberdade de expressão, Danielle Pamplona atribuiu seu
surgimento à Inglaterra do século XVI, onde foi realizada a primeira solicitação por parte do
Parlamento à Coroa. O pedido foi atendido apenas em 1593, com a Rainha Elizabeth o
compreendendo como o direito da Corte de se expressar apenas com “sim” ou não” frente aos
atos da Coroa. Nesse sentido, o primeiro documento legislativo que versava sobre o direito de
se expressar foi o Bill of Rigths, em 1689, que reforçava o status concedido ao parlamento
anos antes. Destaca-se, também, a publicação dos Direitos do Homem e do Cidadão,
promulgada no ano de 1793, na Holanda. Tal documento estendia o direito de se expressar
para todo o indivíduo.13

11
Idem.
12
Idem.
13
Danielle Anne Pamplona, “O conteúdo do direito à liberdade de expressão, o discurso de ódio e a resposta
democrática”. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, 14(1), 297-316, abr. 2018.
Pode-se identificar três fases distintas do debate acerca da liberdade de expressão ao
decorrer dos séculos. A primeira iniciou-se no século XVI até a época da Revolução Gloriosa
e se focava na questão da tolerância religiosa, onde acreditava-se que as respectivas mudanças
pró-liberdade pudessem enfraquecer a coroa. A segunda fase caracterizava-se sobre a
discussão acerca da censura antes da publicação de determinada obra, em oposição a ideia de
que livros deveriam ser publicados para depois serem censurados. O ponto em comum dessas
duas fases é o fato de a liberdade de expressão servir como mecanismo para a manutenção da
estrutura de poder. A terceira fase é caracterizada pela discussão relacionada aos direitos
fundamentais do homem e os códigos sociais adequados14.
Conjuntamente as fases, também é possível identificar quatro grupos defensores da
liberdade de expressão nos séculos XVI e XVII. O primeiro grupo, dos normativos,
preocupavam-se com a questão da liberdade de escolha envolvendo o direito natural e
antropologia, baseando-se em textos antigos, como a Bíblia, indicando que a verdade deveria
ser perseguida. O grupo jurídico argumentava com fundamento no direito criminal e no
constitucional. O grupo utilitarista utilizava os argumentos de que a proibição de obras
aumentaria a sua circulação, considerando o fator de curiosidade do homem, e que a
circulação de novas ideias poderia ser benéfica no descobrimento de “novas verdades”, como
o caso dos protestantes em relação a igreja católica. O grupo cultural, por fim, defende que a
censura leva a estagnação cultural15. Ainda na questão histórica, salienta-se que o direito
brasileiro preserva a liberdade de expressão desde a Carta Constitucional de 1824, mantendo
tal direito por praticamente todos os textos constitucionais subsequentes e tratados
internacionais, variando quanto ao grau de preservação16.
Com base na abordagem histórica, Pamplona defende que o direito de ser expressar
deve ser utilizado sem restrição em face do Estado, mas, em face aos indivíduos, o discurso de
ódio deve ser regulado. Mas o que seria o discurso odioso? Para Botelho seria aquele que tem
por vontade de “ofender, de insultar, de intimidar ou assediar grupo ou pessoas”. Ausentes os
requisitos, deverá ser livre qualquer manifestação de pensamento 17. O referido discurso
também é definido como sendo o medo do outro, retomando o liame entre o temor social e
manutenção do poder, sendo utilizado tanto entre particulares como ferramenta política
14
Joris Van Eijnatten, “In praise of moderate Enlightenment: a taxonomy of early modern arguments in favor of
freedom of expression” In: POWERS, Elizabeth. Freedom of speech: the history of an idea. Bucknell University
Press: United Kingdom, 2011 apud Danielle Pamplona, ibidem, 310.
15
Ibidem, 311.
16
Paulo Gustavo Gonet Branco; Gilmar Ferreira Mendes. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 10
ed. 2015. p 256
17
Fabrício Costa; Érica Andrade, “A linha tênue entre o exercício do direito de liberdade religiosa em face do
discurso de ódio”, Prisma Jur, São Paulo, 16(2), 479-503, 2017.
agressiva18. Ou, para Brugger, “[refere-se a] palavras que tendam a insultar, intimidar ou
assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou
que têm a capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”19.
Carcará, por sua vez, utiliza-se de uma definição histórica colonial para o discurso de
ódio, bem como justificativa para sua restrição. Diz, o autor, que, considerando nossa origem
colonial, e as desigualdades sociais não serem originárias da sociedade latino-americana e sim
europeia, o ódio social foi intensificado pelas demandas democráticas, considerando que, para
seu pleno funcionamento, é necessário a convivência de diferentes povos. Sendo assim, o
discurso de ódio é o ódio social com caráter político próprio, via de regra, atingindo grupos
sociais específicos20, uma vez que “os crimes de ódio têm motivação e características variadas
que podem convergir para as minorias mais frágeis do passivo social”21.
Para além da definição doutrinária, no âmbito internacional pode ser citada a utilizada
pelo artigo 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Para referido diploma
legal, do qual o Brasil é signatário, estabelece que, para um discurso ser considerado como
odioso, deve haver: i) severidade profunda; ii) intenção de propagar o ódio; iii) consideração
da forma empregada; iv) extensão pública do discurso; v) probabilidade de dano; vi)
iminência entre o discurso e eventual ação motivada; viii) consideração do contexto22.
Diante desse cenário, o Estado deve agir? Com base no recorte utilizado, os autores
acreditam que sim, variando entre o modo e a intensidade. Para Carcará, o Estado deve agir
como juiz, não interferindo nas discussões entre os indivíduos. Nenhuma ideia, mesmo por
mais absurda, deve ser rejeitada na discussão do fórum público, considerando que o controle
da sociedade exerce sua função de reguladora sem interferência do Estado. Contudo, esse
cenário não se mantém na questão partidária, no âmbito das comunicações e no acesso à
cultura, haja vista a necessidade de interferência estatal para evitar monopólios e manter a
“paridade de armas” entre indivíduos23.

18
Cleyson Mello; Antônio Pereira, “O discurso de ódio, o direito e a democracia”, Quaestio Iuris, Rio de
Janeiro, 10(04), p. 2712-2727, 2017.
19
Winfried Brugger, “Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e
o americano”, Revista de Direito Público, 15(117), 2007 apud Roseane Silva et al., “Discurso de ódio em redes
sociais: jurisprudência brasileira”, Revista Direito GV, São Paulo, 7(2), p. 445-468, jul./dez. 2011.
20
Thiago Carcará, “Discurso de ódio e democracia: participação das minorias na busca pela tolerância”, Revista
Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE), Bebedouro, 5(1), p. 489-530, 2017.
21
Dalton Franco. O reino do ódio: inventário analítico de registros na Baixada Fluminense (1998-2018). Projeto
de Pesquisa apresentado originalmente ao Comitê de Iniciação Científica e ao Programa de Iniciação Científica
da Diretoria de Pesquisa da Estácio/UNESA para o período de 2018-2 a 2019-1, 2018.
22
ARTIGO 19. Panorama sobre discurso de ódio no Brasil. São Paulo, Artigo 19, n.d. Disponível em:
<http://artigo19.org/centro/files/discurso_odio.pdf.> Acesso em: 06 jul. 2017 apud Fabrício Costa; Érica
Andrade, op. cit, 2017.
23
Thiago Carcará., op. cit., loc. cit.
Sarmento acredita que a função do estado deve-se limitar a “pluralizar as vozes na
arena pública e assegurar a possibilidade real de expressão aos integrantes das camadas
subordinadas da sociedade”24. Stroppa e Rothenburg, valendo-se da interpretação do artigo
139, III da Constituição Federal de 1988, buscam elaborar requisitos objetivos para a restrição
do discurso de ódio. Para os autores, as manifestações artísticas e religiosas devem sofrer
menores restrições, ao passo que as negações de fatos históricos devem possuir mais,
considerando seu impacto. Tais restrições devem vir acompanhadas do ônus probatório da
vítima, em busca da proporcionalidade e razoabilidade. Apontam, ainda, que a forma mais
efetiva para solucionar conflitos envolvendo discurso de ódio, bem como mitigar sua
incidência, é a viabilização de políticas públicas de acesso à informação e tecnologia para os
grupos vulneráveis25.
Silva, por exemplo, compreende que o tratamento dado ao discurso de ódio deve ser
coerente com o momento atual do Estado. Se no Estado Liberal priorizava-se o status
negativo da interferência na esfera privada, com o advento do Estado Social, por meio da
nova abordagem de ponderações de valores, deve-se priorizar, em especial com a
Constituição de 1988, a dignidade humana26.
A esfera judicial também é objeto de análise: Napolitado e Stroppa concluíram que,
com base no HC 109676, instaurado pelo Desembargador Luiz Zveiter por ter sido ofendido
de “judeu de merda”, e RCL 11.292, que vinculava a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos
à tortura ou maltrato de animais, o Judiciário compreendeu que a existência de opiniões
divergentes na sociedade deve ser mantida, não cabendo ao Estado vedar a emissão dessas
ideias27. Pode-se citar, também, o voto do Min. Luíz Roberto Barroso, na ADI 4815 a favor da
liberdade de expressão, considerando que não é necessária a autorização prévia para a
elaboração de biografias28. Contudo, de modo mais restritivo, cita-se a Ação Civil Pública
promovida pelo Ministério Público Federal por meio de representação impetrada pela
Associação Nacional de Mídia Afro, que teve em seu polo passivo o Google e obrigou, em
decisão da Sétima Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no dia

24
Daniel Sarmento, “Liberdade de expressão, pluralismo e o papel promocional do Estado”, Revista Diálogo
Jurídico, Salvador, (16), 2007 apud Carlo Napolitano; Tatiana Stroppa, “O Supremo Tribunal Federal e o
discurso de ódio nas redes sociais: exercício de direito versus limites à liberdade de expressão”, Revista
Brasileira de Políticas Públicas, 7(3), dez., 2017.
25
Tatiana Stroppa e Walter Rothenburg, “Liberdade de expressão e discurso de ódio: o conflito discursivo nas
redes sociais”, Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, 10(2), p. 450-468, 2015.
26
Júlio César Silva, “Liberdade de Expressão e Expressões de Ódio”, Revista Direito GV, São Paulo, 11(1), p.
037-064, jan.-jun., 2015.
27
Carlo Napolitano; Tatiana Stroppa, op. cit, loc. cit.
28
Tatiana Stroppa; Walter Rothenburg, op. cit, loc. cit.
28/08/2014, o Youtube a retirar vídeos que foram considerados intolerantes contra religiões
afro-brasileiras29. Essa abordagem é defendida por autores como Reis e Thibau que
compreendem as Ações Coletivas como ferramentas judiciais ideias para regular o discurso
quando ele inflige outras demandas dos princípios constitucionais 30, como, por exemplo, o
livre exercício da sexualidade31.
Também existem os autores que defendem uma abordagem com base no âmbito
legislativo internacional, em especial na Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH), na Convenção Internacional pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial (CIEFDR), na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher (CIPPEV), no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticas (PIDCP) e
no Princípios de Camden sobre a Liberdade de Expressão e Igualdade (PCLEI)32.
A CADH determina, no artigo 13, §7°, a proibição de propaganda a favor da guerra,
bem como apologia ao ódio de todo o gênero, que incite violência ou crime. A CIEFDR, por
sua vez, insta aos Estados signatários a fiscalizar os meios de comunicações internos para que
os conteúdos racistas, discriminatórios e intolerantes sejam evitados. A CIPPEV compreende
que os signatários concordam em respeitarem a dignidade da mulher, em todos os sentidos. O
PIDCP, em seu artigo 20, também veda a propaganda de guerra e apologia ao ódio em
qualquer espécie. Por fim, o PCLEI, um estudo promovido por colaboração internacional,
estabelece seu 12° princípio como forma de definir o discurso de ódio e servir como proposta
aos Estados combaterem o referido33.
Por fim, existem aqueles que se preocupam com as modificações que ocorrem em
razão da tecnologia. Com o advento das redes sociais, uma nova característica que pode ser
impetrada ao discurso de ódio é a “desterritorialização” dos seus efeitos, considerando a
possibilidade de afetar números indeterminados de indivíduos de modo efetivo e rápido 34,
bem como o anonimato e a dificuldade na investigação de autoria. Sobre isso, Franco
elucida35:
O ambiente de discurso de ódio está bastante ampliado com as facilidades das redes sociais.
Com elas, os ‘odiadores’ passaram a contar com um espaço de difusão de sua frustação e
29
Idem.
30
Robson Reis; Teresa Thibau, “Os discursos de ódio e as ações coletivas”, Quaestio Iuris, Rio de Janeiro,
10(03), p. 2084-2107, 2017.
31
Valéria Cardin; Caio CAZELATTO; Antônio SEGATTO, “O Exercício Ilegítimo Do Discurso De Ódio
Homofóbico Sob A Ótica Da Sexualidade E Dignidade Humana”, Revista Jurídica – Unicuritiba, 1(46), p. 90-
118, 2017
32
Tatiana Stroppa; Walter Rothenburg, op. cit, 2015, p. 460.
33
Idem.
34
Roseana Silva et al, op. cit., 2015, p. 445-468.
35
Dalton Franco, op. cit, 2018.
irritação absoluta com as diferenças, já que elas tanto lhe aparecem com mais proximidade,
devido à tecnologia, quanto lhe parecem mais condenáveis.
Exposto o panorama, analisa-se o que Mill defende acerca da opinião e o direito de
expressá-la.

A Liberdade de Expressão conforme Mill

O direito de emitir opiniões e se expressar é compreendido como intimamente ligado à


liberdade de consciência e de pensamento, não fazendo jus resguardar uma e censurar outra.
Sendo assim, além de direito individual essencial, a liberdade de expressão guarda relação
direta também com o desenvolvimento humano, pois, a vedação de uma opinião constitui uma
mal para a humanidade, tanto a atual como a futura 36. Nesse contexto, o mal do governo
censurar ideias aprece mais evidentemente, considerando que o mesmo age como tutor da
humanidade, roubando-lhe a experiência do confronto de ideias37.
Nesse ponto, o autor expõe o conceito da vedação ao pressuposto de infalibilidade.
Para ele, o pressuposto de infalibilidade é quando alguém, uma pessoa ou ente governamental,
tendo certeza que determinada opinião é verdade, veda outros indivíduos de escutar a parte
contrária38. Sobre isso, o autor compreende que “nunca podemos ter a certeza de que a opinião
que procuramos amordaçar seja falsa; e, mesmo que tivéssemos, amordaçá-la seria, ainda sim,
um mal.”39. Então, ele categoria as opiniões em três: aquelas que constituem uma verdade;
aquelas que constituem uma mentira; e, como ocorre na maioria dos casos, aquelas que
constituem parcialmente verdade40.
Sobre o primeiro caso, das opiniões que constituem uma verdade, Mill tece quatro
comentários. De início, como o exposto, uma opinião deve ser considerada verdadeira pela
própria pessoa, haja vista a vedação ao pressuposto de infalibilidade. Um segundo ponto é
acerca da vedação do “dogma morto”: por mais que se tenha certeza da veracidade de uma
opinião, nunca deve deixar de se contestá-la em um debate para que se mantenha como uma
“verdade viva”41. O terceiro ponto, correlacionado com o segundo, é a manutenção dos
fundamentos justificadores da referida opinião. Se o indivíduo sabe que sua opinião é
verdade, contudo, não tem a capacidade de observar os argumentos do lado contrário,
36
MILL, John Stuart, op. cit., 2011, p. 12.
37
Ibidem, p. 14.
38
Ibidem, p. 17.
39
Ibidem, p. 12, et seq.
40
Ibidem, p. 25.
41
Idem.
fatalmente essa opinião também se tornará vazia. Mill elucida que “aquele que conhece
apenas o seu lado da questão, sabe pouco acerca do seu lado” 42. Por fim, é necessário que uma
opinião, mesmo que constitua uma verdade, seja debatida para não ser esquecida, uma vez
que “a tendência fatal da humanidade para deixar de pensar sobre uma coisa quando já não é
duvidosa é a causa de metade dos seus erros”43.
No mesmo sentido, Mill compreende que a opinião falsa não deve ser censurada. Em
primeiro lugar em razão da falibilidade histórica, pois, uma ideia descartada pelas pessoas de
determinada época pode retornar como verdade pelas gerações posteriores 44; em segundo,
considerar uma opinião errada também constitui-se como uma opinião passível de ser falível
e, se ao juízo individual fosse vedado estar errado, nada poderia ser realizado 45 e,
consequentemente, nenhum progresso existiria, haja vista nossa capacidade de aprender com
os nossos erros. Da mesma forma, o autor veda invocar o argumento utilitarista para censurar
uma opinião declaradamente errônea, pois a utilidade de uma opinião constitui-se como uma
opinião, não podendo servir como parâmetro para permitir ou recusar qualquer.
O terceiro caso é relacionado às ideias que possuem parte do seu conteúdo como
verdadeiro e parte como falso. Esse cenário, apontado como o qual mais recorrente,
normalmente é inserido em um debate, onde ambos os grupos sustentam doutrinas
parcialmente verdadeiras. Mill sustenta que a “opinião discordante é necessária para fornecer
o resto da verdade, da qual a doutrina incorpora apenas uma parte” 46. Ou seja, no caso de
grupos que sustentam opiniões opostas, cada uma com sua parcela de verdade, deve-se ter
contato com todos os lados47, pois, um dos principais problemas da ausência de liberdade de
expressão reside justamente nesse cenário, haja vista sua reincidência. O fato de negar a
liberdade de se debater, joga os indivíduos médios em um lugar comum, impendido a busca
da verdade e a formação autônoma do juízo, impedindo também sua evolução social48.
O direito de se expressar também é considerado como essencial para o jogo político
pleno, dando a possibilidade que todas as formas de governo sejam defendidas com afinco e
energia, independentemente se são republicanas ou não49, ou verdadeiras, pois, considerando a
impossibilidade da maioria dos indivíduos se utilizarem da total verdade para basear suas

42
Ibidem, p. 26.
43
Ibidem, p. 31.
44
Ibidem, p. 13-14
45
Idem.
46
Ibidem, p. 33.
47
Ibidem, p. 25.
48
Ibidem, p. 23-24.
49
Ibidem, p. 34.
opiniões, estabelecer sanções para a vinculação de opiniões embasadas em falsas ideias torna-
se problemático, tanto para o indivíduo quanto para o coletivo50.
Sendo assim, a defesa em prol da liberdade de expressão de Mill ocorre em quatro
frentes: a) a censura constitui presunção de infalibilidade, considerando a possibilidade da
opinião ser verdadeira; b) o conflito de opiniões opostas é o único caminho para a verdade; c)
a opinião deve ser debatida para que seus fundamentos racionais sejam compreendidos e ela
seja defendida ou descartada ao decorrer do tempo; e d) não se pode tratar uma verdade com
presunção absoluta, sem que tempos em tempos ela não seja contestada, com risco de vir a se
tornar um dogma51. Tais argumentos são sintetizados da seguinte forma pelo autor52:
Se todos os seres humanos, menos um, tivessem uma opinião, e apenas uma pessoa tivesse a
opinião contrária, os restantes seres humanos teriam tanta justificação para silenciar essa pessoa
como essa pessoa teria justificação para silenciar os restantes seres humanos, se tivesse poder
para tal.
Contudo, é mister compreender que o ponto de defesa de liberdade de expressão por
parte de Mill não é absoluto e irrestrito. Ao conjugar o Princípio do Dano com a liberdade de
expressão, mesmo reconhecendo a dificuldade de fixar limites fáticos 53, o autor compreende a
existência de opiniões passíveis de censuras, pois, “até as opiniões perdem a sua imunidade
quando as circunstâncias em que são expressas são tais que a sua expressão constitui
efetivamente uma instigação a um ato danoso”54.
Diante desse cenário, surge o questionamento de como reage a teoria de Mill sobre a
liberdade de expressão frente aos desdobramentos modernos do discurso odioso. O próximo
tópico tem como objetivo refletir sobre essas questões e verificar a possibilidade de traçar
algum parâmetro com base nos escritos do autor.

A (in)existência de restrições para o discurso de ódio

O ponto inicial para qualquer discussão da conjugação do princípio do dano com a


liberdade de expressão sob a perspectiva de Mill, bem como sua aplicabilidade ao discurso
odioso, é verificar se o referido causa algum dano para a sociedade e, em caso positivo, se

50
Idem.
51
Ibidem, p. 38.
52
Ibidem, p.12.
53
Ibidem, p. 38.
54
Ibidem, p. 40.
deve ser censurado. Contudo, torna-se necessário um debate preliminar acerca de sua
conceituação.
A literatura especializada, de modo geral, o compreende como a ofensa a determinado
indivíduo e/ou coletividade com base em características físicas e/ou sociais. Nesse sentido,
embora a ofensa deva ser evitada para que a sociedade progrida em harmonia, não constitui
um direito a vedação à ofensa, da mesma forma que qualquer ação governamental, nesse
sentido, potencialmente geraria catástrofe. Na realidade, muitas ofensas não constituem um
ato de ódio. Existem aquelas baseadas em estereótipos sociais perpetrados involuntariamente,
da mesma forma das impetradas entre amigos. Nesse sentido, sugere-se a utilização da
conceituação de discurso odioso para aquela ofensa constituída de latente gravidade.
Mesmo que não seja uma tarefa fácil descrever quando uma ofensa deixa de ser
tolerável para entrar no campo do discurso de ódio, ofensas desse porte são facilmente
reconhecidas quando presenciadas. As ameaças de ataques contra grupos específicos, palavras
direcionadas à violação da vida, propriedade e liberdade individual e coletiva, em virtude de
alguma condição específica, são os exemplos mais claros de discursos odiosos.
Então, um discurso de ódio deve ser considerado como passível de censura em virtude
do Princípio do Dano, contudo, sua conceituação deve ser restrita. A razão é que uma opinião,
envolta à liberdade de expressão, viabiliza o debate e contribui para o desenvolvimento
humano. Porém, o discurso de ódio não é pautado na racionalidade, pressuposto básico para
um debate, muito menos em argumentações que, mesmo errôneas, possam ter algum benefício
futuro. Seu propósito é ofender gravemente, subjugar e descriminar. Fica assim estabelecido
que uma opinião é uma categoria, do qual a ofensa faz parte. O discurso de ódio, então,
permanece alocado em uma subcategoria, pertencente à ofensa, que pertence à opinião.
As características de um discurso odioso podem ser compreendidas como a gravidade
das ofensas, o destinatário específico e o meio de propagação. Relacionado ao destinatário
específico, acredita-se que nenhum discurso impetrado contra a humanidade em geral pode
ser considerado odioso. Por mais grave que seja, a possibilidade de dano é exponencialmente
menor do que aquele destinado a uma classe de indivíduos. Sobre o meio de propagação, é
mister compreender as alterações perpetradas pela tecnologia na forma de relacionamento
humano. Um discurso, mesmo que direcionado a um grupo de indivíduos e com a devida
gravidade, possui peso diferente se dito em um ambiente privado ao invés de meios de
comunicação em massa, haja vista sua potencialidade de dano. Nesse caso, mesmo que ambos
sejam passíveis de censura, deve-se considerar os princípios da proporcionalidade e
razoabilidade. Para Mill, “sempre que há um dano claro, ou um risco claro de dano, que para
um indivíduo quer para o público, o caso é retirado do campo da liberdade e colocado no da
moralidade ou da lei”55.
Compreendido que o discurso odiento causa dano e é passível de censura, um
questionamento natural que deve ser considerado para fins práticos quando se relaciona
ambas as partes da teoria é se, mesmo constituindo dano, ele deva ser censurado. Essa questão
surge por parte do autor quando ele compreende que a ação estatal, mesmo que legítima, deva
ser postergada ao máximo, uma vez que, em matéria de intervenção do Estado, “quando de
fato interfere, o mais provável é que interfira deforma errada, e no lugar errado”56.
Juntamente com esse argumento, o autor elenca razões da limitação da ação estatal.
Em primeiro, deve-se limitar a censura Estatal para que seu poder não seja aumentado 57. O
segundo é que, embora reconheça algumas situações como válidas para a censura das
opiniões, Mill defende que, como ocorrem rotineiramente, essas restrições só servem quando
a minoria argumenta contra a maioria, sendo a ausência dessas restrições um benefício para a
minoria58. O terceiro, mais relacionado com a dificuldade de operacionalização desta censura,
diz que o argumento pró-restrição, via de regra, baseia-se em um caso concreto, e
considerando que o indivíduo sempre pegará os que são mais vantajosos para sustentar seu
ponto, pode gerar restrições indevidas59.
Em outro sentido, o próprio autor levanta argumentos que podem ser usados em prol
da regulamentação do discurso odioso. O primeiro é o fato dele estabelecer a equidade no
debate como pressuposto para a liberdade. O segundo é que, embora Mill rejeite a ideia de
contrato social, reconhece a existência de duas obrigações sociais para os indivíduos: i) seguir
com seu plano de vida sem prejudicar interesse de terceiros; ii) contribuir com sua parte de
sacrifícios necessários para a sociedade. A primeira obrigação social considera os “interesses
de terceiros” como aqueles protegidos por lei ou entendimento tácito 60. Sendo assim,
considerando a Carta Magna, o discurso de ódio estaria vedado se utilizássemos essas duas
obrigações sociais como parâmetro.
O terceiro ponto é conjugado com a realidade social brasileira. Se pelo autor é
apontado que “a diversidade não é um mal, mas sim um bem” 61, qual deve ser o
posicionamento do Estado, que assume função de fiscal da liberdade e protetor legal 62, para
55
Ibidem, p. 59.
56
Ibidem, 60.
57
Ibidem, p. 80.
58
Ibidem, p. 38 et seq.
59
Ibidem, p. 17-18.
60
Ibidem, p. 54.
61
Ibidem, p. 40.
62
Ibidem, p. 76.
lidar com aqueles discursos que visam minar tal diversidade? Questiona-se, nesse sentido, se
na sociedade brasileira o discurso racista e xenofóbico deva ser tolerado. Eventualmente, a
terceira condição para a cauterização do discurso odiento ganha contornos ainda mais
abrangentes se as declarações partem de um representante estatal, pois, considerando a
personificação da função pública, as opiniões por ele emitidas, mesmo que em ambientes
privados, possuem peso distinto das opiniões emitidas por particulares.
Então, assumindo que eventual discurso de ódio cause dano e deva ser censurado, qual
o meio para o devido prosseguimento? É mister relembrar que a censura de uma opinião
também constitui uma opinião, que pode ser falha, da mesma forma a necessidade de impor
limites para que a via escolhida não seja utilizada com frequência para calar adversários
políticos ou opiniões divergentes. Sendo assim, o método escolhido deve atentar para dois
objetivos: ser o máximo efetivo possível e restritivo para que não seja usado como
instrumento de vingança privada. Por isso, deve-se ter em mente a diferenciação para restrição
de indivíduos e organizações.
No que concerne aos métodos para as associações, deve-se questionar o campo de
atuação estatal para proibir e fazer cessar atividades de indivíduos que, voluntariamente, se
reúnem e comentam discurso de ódio. Mill acredita que, caso a atuação da associação seja
danosa para a sociedade e, embora a repressão nunca seja efetiva, pode-se forçar a
determinadas associações caminharem para ilegalidade ou restringirem suas atuações ao
ponto de só quem as procure consiga achar 63. Já na esfera individual, sugere-se que o
tratamento deva ser mais cauteloso para que se evite a esfera judicial ao máximo possível.
Uma ferramenta potencialmente efetiva nesse caso é um sistema procedimental
próprio para, desde que recebida a denúncia, os métodos de conciliação sejam postos em
prática de modo mais efetivo possível, bem como incentivo ao tribunal privado. Caso não
surta frutífera as tentativas conciliatórias, sugere-se que, ao invés de uma decisão monocrática
passível de recurso para o Tribunal de Justiça, adota-se o Tribunal do Júri como estrutura
recursal64, como efeito de mitigar passíveis injustiças oriundas da presunção de infalibilidade.
Ademais, é imprescindível que toda a estrutura regulatória seja mais restritiva
possível, para que as coisas desenvolvam seu curso normal sem interferência do Estado,
contudo, conforme diz Mill65:
as coisas são inteiramente diferentes se infringiu as regras necessárias para a proteção dos seus
semelhantes, individual ou coletivamente. As más consequências dos seus atos não recaem
63
Ibidem, p. 72.
64
Ibidem, p. 80.
65
Ibidem, p. 57.
então sobre si, mas sim sobre os outros; e a sociedade, como protetora de todos os seus
membros, tem de retaliar.
Por fim, o autor compreende que independência social e financeira culmina em maior
liberdade de expressão66. Ou seja, é imprescindível que, para uma sociedade livre, o governo
deva ser limitado e correr o curso da economia em prol da emancipação do indivíduo, uma
vez que, quanto menor a influência da maioria na minoria, menores as possibilidades de dano.

Considerações Finais
O presente artigo esteve dividido em quatro partes: na primeira, compreendeu-se o que
Stuart Mill entendia sobre o conceito de liberdade e o princípio do dano, bem como pensava a
sua operacionalização; na segunda, averiguou-se como a literatura pátria entendia o discurso
de ódio e seus efeitos; na terceira, analisou-se a compreensão da liberdade de expressão e de
discurso sob a perspectiva do autor; na quarta, buscou-se traçar uma panorama acerca de
institutos mitigadores do discurso de ódio com base no escritos.
Na primeira parte, relacionada aos conceitos fundamentais e ao Princípio do Dano,
pode-se concluir que Mill entende a liberdade em esferas interdependentes. Se na primeira
encontra-se a liberdade de consciência e expressão, na última reside a liberdade coletiva,
todas essenciais componentes de uma liberdade una e imprescindíveis para uma vida plena.
Contudo, essa liberdade encontra restrições no Princípio do Dano, que elucida o limite da
liberdade individual como sendo a invasão do campo da liberdade alheia. Referido princípio
possui duas esferas e funciona como regulamentador para a harmonia social dentro de uma
estrutura societária.
Na segunda parte, destinada à compreender o que se entendia por discurso de ódio,
utilizou-se de uma pesquisa nos principais periódicos científicos brasileiros em busca de
conceituação e de temas relacionados com o discurso de ódio. Em relação ao encontrado,
pode-se compreender que, embora os artigos ressaltem a importância da restrição ao abuso da
liberdade de expressão, na forma de discurso de ódio, eles ressaltam a importância do referido
direito para uma vida plena, bem como para o exercício da cidadania. É possível verificar
diversos limites objetivos traçados, seja por meio de documentos internacionais ou estruturas
teóricas elaboradas pelos autores, para mitigar, identificar e punir o discurso odioso.
Na terceira parte voltou-se para os escritos de Mill em busca da compreensão do que o
autor entendia por liberdade de expressão e opinião. São ressaltadas as possibilidades de uma
ideia ser verdadeira, falsa ou parcialmente verdadeira, bem como expostos os motivos para

66
Ibidem, p. 23.
que ela não seja censura, independentemente de seu fundamento, haja vista a importância para
o exercício do debate para o desenvolvimento humano. Porém, o próprio autor compreende
que algumas opiniões, mesmo estando na primeira esfera de liberdade, não gozam de total
abrangência, haja vista que o Princípio do Dano vedaria prejuízos a terceiros.
Nesse sentido, analisou-se, na quarta parte, se o discurso odioso entraria numa dessas
possibilidades. Conclui-se que, da forma que é compreendido por parte dos artigos
selecionados, o discurso de ódio é muito abrangente para ser considerado danoso, sendo
necessária uma restrição do seu conceito para que sua potencialidade de dano seja evidente.
Da mesma forma, o discurso odioso, para ser punido, deve ter um indivíduo ou grupo
específico como alvo e ser propagado publicamente, sob risco de, mesmo ilícito, não ser
passível de censura. Compreendeu-se, também, que associações não podem ter sua
funcionalidade vedada em razão da prática de discurso por seus associados, embora o governo
possa a colocar na irregularidade.
Por fim, compreende-se que os escritos de Stuart Mill podem ser utilizados como
ferramentas para a formulação de critérios objetivos para a mitigação do discurso de ódio,
uma vez que o autor compreende a positividade da diversidade de opiniões dentro de uma
sociedade, ao passo que visa resguardar a liberdade como um todo.

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