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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

JOÃO EMANOEL LIMA DE OLIVEIRA

RELAÇÕES DE FORÇA NO “CELEIRO” JAGUARIBANO:


A Comissão de Socorros Públicos do Aracati na seca de 1877 a 1880

FORTALEZA – CEARÁ
2011
1

JOÃO EMANOEL LIMA DE OLIVEIRA

RELAÇÕES DE FORÇA NO “CELEIRO” JAGUARIBANO:


A Comissão de Socorros Públicos do Aracati na seca de 1877 a 1880

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em


História da Faculdade de História da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Carlos Jacinto


Barbosa

FORTALEZA – CEARÁ
2011
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O48r Oliveira, João Emanoel Lima de


Relações de força no “celeiro” jaguaribano: a
Comissão de Socorros Públicos do Aracati na seca
de 1877 a 1880 / João Emanoel Lima de Oliveira.
— Fortaleza, 2011.
173 p.
Orientador: Profº. Drº. Francisco Carlos Jacinto
Barbosa.
Monografia (Graduação em História) –
Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Humanidades.
1. Seca. 2. Poder. I. Universidade Estadual do
Ceará, Centro de Humanidades.

CDD: 551.5773
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JOÃO EMANOEL LIMA DE OLIVEIRA

RELAÇÕES DE FORÇA NO “CELEIRO” JAGUARIBANO:


A Comissão de Socorros Públicos do Aracati na seca de 1877 a 1880

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em


História da Faculdade de História da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Licenciado em História.

21 01 2011
Aprovada em: ____/____/______. 10 (Dez)
Nota: ________________

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Carlos Jacinto Barbosa
Universidade Estadual do Ceará – UECE

________________________________________________
Prof. Ms. Tyrone Apollo Pontes Cândido
Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central - FECLESC

________________________________________________
Prof. Ms Allyson Bruno Viana
Universidade Estadual do Ceará - UECE
4

À minha família, minha vida.


À Ana, meu amor.
5

AGRADECIMENTOS

Como não poderia deixar de ser, gostaria de agradecer àqueles que contribuíram, direta ou
indiretamente, para a realização deste trabalho.

Em primeiro lugar, a Deus, Soberano em tudo.

Aos professores da Graduação em História da Universidade Estadual do Ceará, Prof. Dr.


Antônio de Pádua Santiago de Freitas, Prof. Dr. Gleudson Passos Cardoso, Prof. Dr.
Alexandre Almeida Barbalho, Profa. Dra. Berenice de Castro Abreu, Prof. Ms. Artur
Pinheiro, Profa. Dra. Regiane Rolim, Prof. Dr. Gizafran Nazareno Mota Jucá, Prof. Dr. Erick
Assis, pelas conversas, aulas, dicas, apoio e incentivo à pesquisa.

Ao Prof. Dr. Francisco Carlos Jacinto Barbosa, estimado amigo e orientador, sem o qual este
trabalho não teria surgido.

À banca de qualificação do projeto, Prof. Dr. Tyrone Apollo Pontes Cândido e Prof. Ms.
Allyson Bruno Viana, pelas observações pertinentes que enriqueceram a pesquisa.

Ao caro colega de curso e amigo João Paulo da Guia, cooperador na busca das fontes que
constituíram a pesquisa geradora deste trabalho.

Às colegas e amigas Karla Torquato e Beatriz Chaves, por colaborarem indicando e


fornecendo materiais e bibliografias imprescindíveis à pesquisa.

Aos estimados colegas da turma que ingressou na seleção de 2004.2 da Universidade Estadual
do Ceará e amigos de todo momento, Vinicius Barbosa, Abraão Campos, Juliete Castro,
Gabriela Ferreira, Ítala Mayara, Ana Michele, Luciana Oliveira, Paulo Roberto, Marcelo
Lemos, Moisés e Janílson.

Igualmente aos amigos que fiz nos anos de curso de História: Almir Mariano, Eduardo, Felipe
Barreira, Paulo Giovani, Gustavo Magno, Elaine Salmito, Flávio Conceição, Ana Paula e
Edna Vera, pelas conversas, ajuda mútua e bons momentos compartilhados.

Aos funcionários do Arquivo Público do Estado do Ceará, Paulo e prof. Francisco Assis, pela
facilitação do acesso às fontes primárias. Igualmente ao prof. André, árduo pesquisador do
mesmo Arquivo, pelas dicas e ajuda na leitura de documentos do século XIX.
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Sem chuva na terra descamba janêro,


Depois, feverêro,
E o mêrmo verão
Entonce o rocêro, pensando consigo,
Diz: isso é castigo!
Não chove mais não

A triste partida - Patativa do Assaré


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RESUMO

Este trabalho propõe analisar a natureza das relações de poder constantes na Comissão de
Socorros Públicos da cidade do Aracati, durante a seca de 1877 a 1880, visando compreender
as forças e interesses que se apresentaram nas ações e práticas empreendidas por este órgão
formado a partir da ordem do Poder Executivo Provincial do Ceará. Este estudo centrou-se na
abordagem das práticas dos membros da Comissão, descritas nas fontes oficiais e também nas
fontes não-oficiais, como jornais e cartas, e percebemos que o órgão distribuidor de gêneros
do Aracati durante o período de seca apresentou um expediente diversificado do ponto de
vista dos interesses nele envolvidos. Se por um lado, a Comissão de Socorros Públicos foi
formada para atender à demanda de um poder político interessado em controlar o avanço
retirante ao centro urbano mais importante do vale jaguaribano, por outro lado, nela estiveram
presentes pessoas que buscaram impor interesses próprios, pervertendo a natureza primordial
do órgão. Portanto, buscou-se analisar a relação destes membros com os demais envolvidos na
seca, não apenas os representantes dos poderes políticos oficiais, mas também com os
habitantes da cidade aracatiense, assim como com a grande massa adventícia ao espaço
urbano do Aracati, fugida dos efeitos devastadores da seca no sertão cearense, examinando as
estratégias através das quais os aracatienses envolvidos diretamente na distribuição dos
socorros procuraram intervir de forma transformadora sobre sua realidade imediata.

Palavras-chave: Seca. Poder. Estratégia


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ABSTRACT

This study proposes to examine the nature of power relations contained in the Committee of
Public Aid City Aracati during the drought from 1877 to 1880, aiming to understand the
forces and interests that are presented in the actions and practices understaken by this body
formed from the order of the Provincial Executive of Ceara. This study focused on addressing
the practices of the members of the Commission mentioned in official sources and also in
non-official sources such as newspapers and letters, and we realized that the Aracati
distributor organ of genres during the drought period presented an expedient diversified
standpoint of the interests involved therein. On the one hand, the Public Aid Committee was
formed to meet the demands of a political power interested in tracking the progress retirante
largest town jaguaribano valley, on the other hand, it was attended by people who sought to
impose their own interests, perverting the primordial nature of the organ. Therefore, we
attempted to analyze the relationship of these members with the others involved in the
drought, not only the official representatives of political powers, but also with the
townspeople aracatiense, as well as the great mass of urban space to the adventitia Aracati,
fleeing the devastating effects of drought the inside of Ceará, examining the strategies through
which the aracatienses directly involved in the distribution of relief sought to intervene on
transforming their immediate reality.

Key-words: Drought. Power. Strategy


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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 Relação de gêneros enviados pela Comissão de Transporte por Mar à


Comissão de Socorros do Aracati, entre os meses de abril a dezembro de
1877............................................................................................................... 58

TABELA 2 Compras realizadas pela Comissão de Socorros Públicos à praça


comercial do Aracati, segundo prestação de contas da mesma comissão,
de outubro a dezembro de 1877.................................................................... 63

TABELA 3 Pessoal existente na Comissão de Socorros Públicos da cidade do Aracati


em junho de 1878, seus respectivos cargos e vencimentos........................ 111

TABELA 4 Quadro demonstrativo do número de sepultamentos nos cemitérios do


Aracati de janeiro a agosto de 1879.............................................................. 129
10

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Planta do centro urbano da cidade do Aracati no final do século XIX........ 100
11

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

APEC Arquivo Público do Estado do Ceará


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................ 13

CAPÍTULO 1 - ENTRE A NOMEAÇÃO E A FORMAÇÃO: PRÁTICAS E


CONFRONTOS EM 1877....................................................................................... 21

1.1. NOMEADOS OU FAZENDO-SE NOMEAR: A PRIMEIRA FORMAÇÃO


DA COMISSÃO DE SOCORROS DO ARACATI.................................................. 22

1.2. AS COMISSÕES DE SOCORROS: PODER REPRODUZIDO NUMA


ESTRUTURA QUE É UM FAZER-SE..................................................................... 37

1.3. RESISTÊNCIAS E ESTRATÉGIAS NO FINAL DE 1877: A PRESSÃO


RETIRANTE E OS COMERCIANTES NA COMISSÃO DE SOCORROS........... 56

CAPÍTULO 2 - NOVAS PRÁTICAS E INSTRUMENTOS DE


CONTROLE: ORDEM VERSUS ESTRATÉGIA NA COMISSÃO DE
SOCORROS (1878).................................................................................................. 72

2.1. O DUPLO CONTROLE: RACIONALIZAR A COMISSÃO E


RACIONALIZAR A CIDADE.................................................................................. 72

2.2. OS COMERCIANTES ARACATIENSES E SUA ESTRATÉGIA:


INFLUÊNCIAS POSSÍVEIS..................................................................................... 94

2.3. A VOLTA DAS “BOAS QUADRAS”: OS COMERCIANTES RETORNAM


À COMISSÃO........................................................................................................... 109

CAPÍTULO 3 - REITERANDO O CONTROLE: A COMISSÃO MÉDICO-


HIGIÊNICA SOBREPUJA A COMISSÃO DE SOCORROS NO ARACATI
(1879-1880)................................................................................................................ 117

3.1. EQUILÍBRIO E DESEQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES DE FORÇA: O


SIGNIFICADO SIMBÓLICO DA COMISSÃO DE SOCORROS NO JOGO DE
INTERESSES............................................................................................................. 118

3.2. A MEDICINA E O PODER: A COMISSÃO MÉDICA DO IMPÉRIO........... 125

3.3. UMA “SOCIEDADE” E SEUS INTERESSES: A ESTRATÉGIA DE


GEORG JACOB BRUMMSCHVEILER.................................................................. 145

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 158

FONTES.................................................................................................................... 161

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 165


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INTRODUÇÃO

Os caminhos da pesquisa histórica, insuspeitos antes de trilhados, derrubam as


previsões com suas surpresas. Não constituem um traçado reto e linear, mas percurso pleno de
desvios e indefinições. Apesar do temor que tais incertezas do caminhar causam aos iniciantes
da arte de “inventar o passado” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007), são eles mesmos que
trazem à pesquisa o sabor e prazer que acabam por proporcionar. Tal sentimento de satisfação
não se pode confundir com um sentimento de conclusão, como se a pesquisa que resultou
neste trabalho tenha solucionado todos os enigmas ou respondido a todas as perguntas. Ela na
verdade constituiu um início da caminhada, mas ainda assim apresentando várias e várias
encruzilhadas difíceis de escolher e trilhar.

Neste caminho, deparamo-nos com uma documentação riquíssima - a


documentação oficial produzida durante a seca de 1877 a 1880 na cidade do Aracati - que
delineou o objeto da presente pesquisa. Tentando desvendar como se deram os movimentos
constantes do flagelo naquela cidade do vale jaguaribano, prematuramente iniciamos com
uma tendência de comparar o caso aracatiense com o da Capital da Província, Fortaleza.
Cresceu no início da pesquisa a percepção de que os diversos corpos documentais, como os da
Câmara Municipal ou das comissões médicas que por lá passaram no referido período,
colocavam em relevo um órgão que se mostrou em grande parte das vezes um centralizador
das atenções dos que produziam a documentação oficial enviada ao poder executivo
provincial: a Comissão de Socorros Públicos.

Sendo fruto de uma decisão política de “combate” à seca, a Comissão de Socorros


do Aracati reinou soberana nas correspondências oficiais enviadas pelos aracatienses durante
os anos da grande seca do século XIX, tanto os documentos recebidos pelo governo provincial
do Ceará como também aqueles enviados pela presidência aos cidadãos aracatienses. Parece
que tudo girava em torno daquele órgão destinado a executar a tarefa do governo de acudir
aos milhares de retirantes famintos, desterrados de seus lares, empurrados para os centros
urbanos em busca de alimento e acolhida, num momento em que a seca veio ecoar pelos
quatro cantos do Império que as relações de produção reinantes no sertão cearense não
suportariam, naquele final de século, a uma pequena estiagem sequer, quanto mais ao épico
flagelo que marcou o final da década de setenta.
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Sendo assim, a Comissão de Socorros do Aracati pôde nos trazer à tona


determinadas características de uma relação conflituosa, e com o escarafunchar nos
documentos oficiais e em outras fontes e vestígios, pudemos perceber mais claramente que
definiam-se fortemente pela negociação e às vezes pela divergência: falo da relação entre os
diversos grupos aracatienses (comerciantes, políticos e outros indivíduos de cabedal e de
notoriedade social) e o Governo Provincial, personalizado na figura dos presidentes que
ocuparam a cadeira principal do Executivo durante aqueles anos de seca. A partir da análise
do funcionamento da Comissão aracatiense, dos membros que a compuseram, pudemos
levantar diversas questões que nortearam esta pesquisa. Em muitos momentos, as orientações
dadas pelas fontes tentavam ofuscar esta perspectiva, parecendo que algumas fontes queriam
desmentir outras. Na verdade, os muitos “silenciamentos” e por vezes os muitos
“desmentimentos”, tentativas de nublar o quadro que se nos apresentava, nada mais foram do
que indícios ainda mais fortes de que o objeto ao qual havíamos nos agarrado era um rico
prisma de conflitos e tensões sociais.

Portanto, o presente trabalho toma como objeto específico a Comissão de


Socorros do Aracati na grande seca do século XIX, fitando especificamente nas relações que
compuseram seu expediente nos três anos de duração do grande flagelo (1877 a 1880). Se nos
é permitido ousar a partir deste objeto, poderíamos afirmar que este trabalho também busca
analisar como se deram os movimentos de formação de um modelo específico de assistência
aos retirantes cearenses em período de seca. Segundo Neves (2000: p. 83-84), o sistema de
controle de donativos e de assistência à classe trabalhadora retirante, constante das épocas de
estiagem, contudo não restrito a elas, que no século XX ganhou a denominação de “indústria
das secas”, teve como embrião as práticas empreendidas durante a grande seca iniciada em
1877, principalmente na adoção dos “chamados socorros públicos indiretos” (SOUSA, 2009,
p. 151-190). Concordando com esta genealogia do famoso sistema de controle da massa
retirante que marcou as relações entre grupos sociais do sertão cearense durante grande parte
do século passado, fomos despertados imediatamente para explorar ainda mais esta gênese,
debater um pouco mais a respeito das amarras que interligavam este amplo sistema,
questionar se elas estariam situadas nos grandes mecanismos oficiais dos governos cearenses
que se sucederam, ou em relações de escala reduzida, que poderiam tornar ainda mais denso o
cimento que sustentou as bases de tal sistema.
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Das variadas narrativas que temos de tais comissões, vemos que o estigma
imposto sobre as mesmas penetrou a historiografia e as crônicas, tendo-se tornado
característica delas memórias relativas à corrupção, modelos de conduta desviantes e
impreterivelmente repreensíveis no que diz respeito, por um lado, ao manuseio da verba
pública, e por outro, ao trato com a impressionante (a cada vez que rememoramos) massa de
retirantes que se deslocou dos recônditos do sertão cearense e que disputou o chão e o pão das
elites provinciais em diversos pontos do Ceará. Contudo, o presente trabalho procura explorar
situações para além da corrupção e do mau uso dos socorros e dos órgãos de atendimento aos
famintos. Da corrupção, dos maus tratos impostos por comissários de socorros cruéis a
retirantes indefesos, da defloração de moças ingênuas e do uso e abuso das condições de
manuseio de um bem extremamente valioso em época de flagelo, o alimento; de todas estas
características que se tornaram peculiares às comissões de socorros, da imagem formada na
memória histórica a respeito deste órgão de assistência, é que procuramos extrair algo mais,
algo que o estigma tenha tentado esconder.

Não negamos aqui todas as características que por demais já se confirmaram na


historiografia e na literatura, na poesia de cordel e na música, em obras e obras. Mas ao
deparar-nos com os ofícios, minutas, telegramas, cartas, relatórios, jornais e outras fontes com
as quais trabalhamos aqui, percebemos que notar a Comissão de Socorros do Aracati pelo viés
da corrupção seria adotar um olhar específico demais, que muitas vezes assume-se como uma
abordagem que quer encontrar culpados, e o culpado é sempre o outro, e o outro era a
Comissão de Socorros. Na verdade, fora do mundo dos “mocinhos” e “bandidos”,
encontramos negociações legítimas entre os diversos participantes do universo social cearense
do século XIX, os quais encontraram no órgão distribuidor de socorros uma via não apenas
para a resistência, mas também para a transformação do próprio ambiente social, o que
muitas vezes ganhou o nome de corrupção. As várias forças que ocuparam a Comissão do
Aracati, cada uma com interesses e objetivos bem definidos, que seriam negociados naquele
período de seca, cada uma tinha sua perspectiva de corrupção ou não-corrupção. Levantamos
as seguintes questões: quais forças seriam essas? Que relações de poder constituíram essas
negociações?

Tanto para produzir estas perguntas quanto propor respostas a elas, o diálogo com
o filósofo Michel Foucault (1979, 1998, 2006) foi um dos expedientes desta pesquisa. A partir
de sua percepção de poder e das relações de poder, pudemos visualizar um quadro em que a
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Comissão de Socorros do Aracati constituiu um elemento de reprodução de uma ordem


pretendida por uma parcela da classe social hegemônica da província do Ceará na segunda
metade do século XIX. Neste sentido, necessário foi entender que a Comissão fazia parte de
um amplo sistema de controle, e que ocupava um lugar de determinada abrangência no
movimento de reprodução e expansão do poder político central. Tendo na mesma cidade do
Aracati um órgão representante da Tesouraria Provincial, a Mesa de Rendas, da qual dependia
para receber os recursos necessários para a distribuição de socorros e ainda tinha que lhe
prestar contas, a Comissão do “celeiro jaguaribano” ainda submetia-se diretamente à
Presidência da Província. Apesar desta sujeição direta, foi em virtude dela que os membros
que assumiram a distribuição dos socorros obtiveram um trunfo, que consistia em fazer uso
direto de recursos do Poder Executivo, os quais seriam para socorrer aos indigentes, além de
ser dotada de poderes para intervir em diversos aspectos referentes à cidade.

Entretanto, o uso de tais atribuições de forma diferente daquelas que a presidência


da província havia pré-estabelecido como primordiais para as comissões de socorros, trouxe à
tona interesses diversos e destoantes. Outros órgãos, como a Câmara Municipal do Aracati e a
Junta de Compras, órgão ligado à Mesa de Rendas, formado para controlar as compras feitas
pela Comissão de Socorros, aparecem como outros instrumentos fiscalizadores da distribuição
de gêneros ou aliados dos membros da Comissão em projetos particulares. Este conjunto,
onde cada parte produziu documentos que em algum momento buscavam denunciar desvios
da proposta inicial da Comissão, em outro reforçavam a imagem de que o órgão distribuidor
de gêneros procedia de forma coerente com a proposta da presidência provincial, constituiu as
forças diversas que giraram em torno ou foram introduzidas na Comissão de Socorros
Públicos do Aracati. A natureza de cada um desses órgãos, especialmente a Comissão objeto
do presente estudo, foi alterada conforme o avanço ou recuo dos interesses inerentes aos
participantes deste teatro social.

A partir da constatação de tais movimentos, procuramos propor que a estrutura


através da qual a ordem então vigente lutava por se reproduzir, ganhou contornos variados e
por vezes teve sua natureza mudada em virtude de forças diversas nas relações de poder. No
caso dos membros da Comissão de Socorros do Aracati, a intervenção promovida apresentou-
se sob a forma de estratégias e objetivos definidos. Portanto, percebemos que as ações de tais
membros não buscavam apenas intervir na estrutura imposta a eles, mas também transformá-
la, chegando a tal êxito em alguns momentos. A fim de entender tais movimentos, dialogamos
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com a antropologia, especificamente com o teórico Marshal Sahlins (2003, 2008), quando
prevê que as estruturas sociais podem apresentar-se como algo dado, mas também podem ser
uma construção nos diversos níveis da sociedade, um fazer-se, uma estrutura performativa. A
ação dos agentes sociais nos diversos níveis em vários momentos se dá por estratégias que
conscientemente buscam mudar a estrutura social. Na construção do entendimento das
naturezas estratégicas, dialogamos com o historiador italiano Giovanni Levi (2000),
colocando em relevo a análise de como as práticas dos agentes sociais interferem sobre a
realidade social por meio de estratégias definidas, que não se apresentam apenas sob a forma
da resistência, mas também pela ação transformadora.

A partir da análise proposta, dividimos o produto final em três capítulos que,


coincidentemente, analisam os três anos da grande seca, de abril de 1877 a junho de 1880.
Procuraremos deixar registrado aqui que tal divisão não toma a cronologia como norte, mas
uma particularidade das investidas do governo provincial em controlar a comissão do Aracati.
Percebemos que no início de cada ano, o governo provincial empreendeu, por três vezes nos
três respectivos anos, intervenções sobre a Comissão de Socorros Públicos do Aracati, tendo
em vista reforçar seu controle e hegemonia sobre os negócios no vale jaguaribano.

No primeiro capítulo, “Entre a nomeação e a formação”: práticas e confrontos


em 1877, analisamos como a proposta primordial para a Comissão de Socorros do Aracati foi
sendo modificada no passar do primeiro ano de seca, havendo uma grande diferença entre a
nomeação pretendida pelo Presidente da Província e a efetiva formação. A formação inicial,
mais fruto dos confrontos e tensões interiores dos indivíduos aracatienses do que
propriamente da vontade do Presidente, é analisada neste capítulo como resultado dos avanços
e retrocessos das forças envolvidas na distribuição de gêneros. Ainda neste capítulo,
abordaremos ainda uma reformulação geral dos membros da Comissão, acontecida entre os
meses de agosto a outubro de 1877, quando a partir de então, os comerciantes situados no
Aracati passam a fazer parte e interferir nos rumos da distribuição de socorros. Tanto em
relação ao governo provincial, quanto em relação aos milhares de retirantes que já quedavam
ao Aracati naquele momento, vemos uma Comissão de Socorros disposta a defender
interesses próprios de seus membros, em disputas com outros agentes sociais envolvidos no
contexto de flagelo da seca. Se por um lado, a Comissão de Socorros ainda era um órgão do
governo provincial, por outro, ela continha em seu bojo pessoas que lutavam por interesses
próprios, às vezes antagônicos aos do poder oficial, assim como da população retirante.
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No capítulo segundo, intitulado “Novas práticas e instrumentos de controle”:


ordem versus estratégia na Comissão de Socorros (1878), procuramos analisar a investida do
então presidente da Província, João José Ferreira d’Aguiar, no sentido de reaver o controle
sobre a Comissão de Socorros do Aracati, em um momento em que os comerciantes
aracatienses haviam ultrapassado o limite da ação do órgão, transformando-o em um meio
para lograr êxitos particulares. A partir de janeiro de 1878, sob o comando de comissários da
Capital da Província, a Comissão do Aracati passou a intervir de forma mais contundente
sobre diversos aspectos relativos ao controle urbano, à salubridade pública e, principalmente,
relativos ao racionamento da distribuição de gêneros. Veremos que a medicina social, no
envio de comissões médicas destinadas a promover o controle de doenças e a limpeza urbana,
foi uma forte aliada para os empreendimentos dos comissários da Capital. Veremos neste
momento que a tensão e os conflitos entre os interesses do governo provincial e os interesses
de membros da elite local se agravaram. Portanto, neste capítulo nos debruçaremos sobre as
negociações constantes desta relação entre níveis de poder e entre membros dos diversos
grupos sociais, ambientados em localidades distintas. Trataremos também das estratégias que
os membros da elite aracatiense, em especial os ligados diretamente ao comércio,
empreenderam para intervir de forma transformadora sobre a estrutura que se impunha sobre
seus negócios. Tais negociações, como veremos, nem sempre desprivilegiam o suposto grupo
mais fraco, seja política ou economicamente. No caso dos comerciantes aracatienses, o poder
de barganha fomentado por suas estratégias deu-lhes a possibilidade de obter êxito, ainda que
momentaneamente, em suas negociações.

No terceiro e último capítulo, “Reiterando o controle”: a comissão médico-


higiênica sobrepuja a Comissão de Socorros no Aracati (1879-1880), abordaremos a última
investida de proporção notória do governo provincial em debelar os interesses locais de
indivíduos aracatienses na condução da comissão distribuidora de gêneros. Tal investida
coincide com o último ano de seca, declarada como encerrada na metade de 1880, e teve
como ponto nevrálgico o envio de uma Comissão Médico-higiênica, chefiada pelo médico do
império, Dr. José Maria Teixeira. A estratégia utilizada pelo governo, para interromper o uso
desviante da Comissão de Socorros, foi esvaziar o órgão de suas incumbências controladoras,
seja sobre a compra de gêneros, seja sobre o movimento retirante na cidade. A Comissão
Médico-higiênica passou então a administrar tais questões, restando à Comissão de Socorros a
mera função de distribuir os gêneros. Veremos que a formação de uma Junta de Compras
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serviu igualmente de instrumento controlador das aquisições e recebimentos da Comissão de


Socorros, no sentido de restringir ainda mais os desvios de gêneros e identificar possíveis
infratores. Analisar-se-á a conflituosa relação entre os interesses locais e os do governo
provincial, representados na Comissão Médico-higiênica. O resultado de tal intervenção do
governo provincial fez incidir sobre os membros da Junta de Compras e da Comissão
distribuidora uma fiscalização até então impraticável. Entretanto, ver-se-á que a partir da
análise de outras fontes, que não as oficiais do Poder Executivo, como as cartas da Casa
Comercial Bóris e Fréres, surgirão indícios que apontam que as medidas controladoras não
decretaram de forma absoluta o fim das estratégias de desvio das pessoas ligadas à
distribuição de socorros no Aracati.

O alcance de objetivos ligados aos diversos interesses envolvidos na forma de


como “usufruir” da seca fizeram surgir ou trouxeram à tona formas e maneiras de burlar a
maneira oficial de se conduzir a própria seca; estratégias pelas quais os agentes sociais
empreenderam suas formas particulares de ver o flagelo e de se interessarem por ele, e de
acordo com tais interesses tangenciaram suas ações visando transformar as relações e moldá-
las a fim de lhes trazer determinados benefícios. Neste jogo de concessões e de imposições,
que não está fora das relações sociais - que são relações de poder e força - é que percebemos
como importante é o estudo da Comissão de Socorros Públicos do Aracati.

Para tanto, consideramos como imprescindível o uso do método da variação de


escala no estudo histórico. Como se perceberá nas páginas a seguir, minúcias das relações
sociais, como alianças pessoais e opiniões particulares, interesses e segredos, se tornaram
importantes para o entendimento dos destinos do objeto proposto, ganhando contornos tão
relevantes quanto os grandes aspectos sociais, como as estruturas sociais e de poder. Propor
que a ação prática dos agentes sociais apresenta a possibilidade de intervir de forma
transformadora sobre a estrutura social foi-nos possível devido a “mudança de escala”
(REVEL, 1995, p.19), percebendo nas minúcias da ação humana elementos que constroem a
realidade social.

O presente trabalho tem por objetivo último contribuir para a compreensão cada
vez mais detalhada do que representou para a história do Ceará a seca de 1877 a 1880.
Esperamos, por meio das análises aqui empreendidas e das páginas escritas, auxiliar numa
abertura cada vez maior do leque de possibilidades do estudo das secas do Ceará, em especial
20

a grande seca do século XIX. Esperamos, mesmo reconhecendo a imaturidade historiográfica


do escritor deste texto, que esta pesquisa colabore positivamente para o melhor entendimento
não apenas do grande flagelo nortista do Império, mas também das relações sociais dos
diversos ambientes do Ceará provincial no Segundo Reinado.
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CAPÍTULO 1

ENTRE A NOMEAÇÃO E A FORMAÇÃO: PRÁTICAS E CONFRONTOS EM 1877

Parece não merecer duvida que Deus tem resolvido fazer-nos passar por privações
vigorosas e só nos resta pois impregar os meios ao nosso alcance para mitigar ou
menorar o rigor dos soffrimentos [...] Lembra porem que aqui já tem completa falta
de gêneros alimentícios e que o Aracaty celeiro desta villa, está olhado como lugar
de refugio do sertão e já não tem abundancia de generos.1

O ofício expedido pela Câmara da Vila de União ao então Presidente da Província


do Ceará, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa2, foi um dos vários
comunicados recebidos por ele, que informavam sobre a situação da Província no mês de abril
de 1877, mês em que foi declarada a que posteriormente ficaria conhecida como a “grande
seca” (NEVES, 2000, p. 25) do Ceará. Desfeita a esperança de chuvas após o Dia de São
José, 19 de março, quando este “trouxe ao povo cearense o mais atroz desengano”
(THEOPHILO, 1922, p. 80), centenas e centenas de trabalhadores camponeses deixaram suas
moradias no sertão do Ceará, e deslocaram-se em direção aos principais centros da Província
em busca do sustento não mais auferido nas roças e roçados. Entendemos que a partir das
informações que as localidades forneceram e depois da chegada de retirantes à Capital, o
desembargador Estellita pôde promover a nomeação de comissões de socorros, órgãos que
intermediariam a relação do Estado com a massa de retirante.

Quando dessa nomeação, levas de retirantes oriundas do sertão cearense já


provocavam os mais diversos sentimentos nos representantes do poder político das diversas
localidades do vale jaguaribano 3. Pelo texto em epígrafe notamos como tais localidades
percebiam a cidade do Aracati naquela segunda metade de século XIX. Esta cidade foi
naqueles anos de grande seca, 1877 a 1880, o celeiro tanto da vila de União como de outras
vilas e comunidades distribuídas pela extensão do rio Jaguaribe, do litoral à vila de Icó no
sertão central, chegando a atender outras vilas e comunidades também do sertão central como

1
Ofício do Paço da Câmara Municipal de Villa da União, em 21 de Abril de 1877 Apud FERREIRA NETO,
Cicinato. A tragédia dos mil dias: a seca de 1877-79 no Ceará. Fortaleza: Premius, 2006. p. 42-43
2
Foi nomeado Presidente da Província por carta imperial de 13/12/1876, e governou o Ceará de 10/01/1877 a
23/11/1877.
3
Região que acompanha o curso do maior rio do Ceará, o Jaguaribe, que nasce ao sudeste, na chapada do
Araripe, e desemboca no município do Aracati. Cf: GIRÃO, Valdelice Carneiro. As oficinas ou charqueadas
no Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984. p. 47.
22

Quixeramobim, e também de milhares de retirantes que afluiriam ao centro urbano


aracatiense, que teria naquele período o número de seus habitantes, anteriormente de cinco
mil pessoas4, multiplicado doze vezes.

Neste primeiro capítulo trataremos desta primeira investida do poder oficial na


cidade do Aracati, no sentido de controlar a massa retirante naquele primeiro ano de seca,
tendo como suporte o auxílio das autoridades locais na composição da sua comissão de
socorros, num ambiente de contato direto entre as elites políticas, local e provincial, com os
pobres aglomerados em multidão, contato este recheado de negociações, tanto entre retirantes
e Comissão, como entre a Comissão e o governo provincial. Tencionamos analisar qual a
natureza das relações de poder que compunham o órgão distribuidor de socorros do Aracati,
visando identificar a natureza ou as naturezas do poder que a constituíram na sua relação com
o centro de poder oficial e a massa retirante.

1.1. Nomeados ou fazendo-se nomear: a primeira formação da Comissão de Socorros do


Aracati

Qual a natureza de poder de uma comissão de socorros da seca de 1877-1880? A


partir do órgão distribuidor de gêneros do Aracati, buscaremos analisar neste capítulo como se
constituíram as relações de poder que relacionavam tal órgão ao governo da Província, e que
ligavam a Comissão à cidade aracatiense, assim como aos retirantes emigrados para aquele
centro urbano.

A partir de um documento emitido pelo primeiro comissário presidente dos


socorros públicos do Aracati durante aquela seca de 1877, iniciaremos a análise proposta.
Este comissário era o juiz de direito da comarca do Aracati, o Dr. Antonio Firmo Figueira de
Sabóia, demitido da Comissão de Socorros e de outra comissão, a que enviava gêneros para o
interior, fatos estes que lhe motivaram a escrever ao Presidente da Província:

4
Raimundo Girão informa o aumento de 5.000 para 60.000 pessoas durante a grande seca de 1877-1880. Cf.
GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. 2. ed. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1962. p. 321.
Tentaremos no decorrer deste trabalho problematizar este número, dado que, segundo as fontes, este número não
pode ser entendido como absoluto, devendo ser relativizado em virtude dos mecanismos deficientes de
contabilização do fluxo constante de retirantes que ora quedavam e ora apenas passavam pelo Aracati. Contudo,
em determinados momentos, esta imprecisão tenha subestimado o número de retirantes alojados no Aracati
durante o período de seca.
23

Remetto a V. Excia. a conta da despeza que fiz na qualidade de Prese. da Commissão


de Soccorros, de que V. Excia. me demittio, e na de encarregado de receber gêneros e
remetell-os para o centro, de que V. Excia. também me demittio.
Estas demissões me inhibirão de formular uma conta que os entendidos podem
exigir mas que eu não sei fazer com rasão de não ser pessoa competente, e não poder
pagar a quem a faça, não disponho de dinheiro para humilhante objetcto, uma vez
que estou pagando a dívida que contrahi por ordem de V. Excia com os meos
ordenados, conforme documentos juntos!
Se me tivesse limitado a dispor de dinheiro que recebia, não contrahindo a pedido de
V. Excia para remetter gêneros sem intervenção, estaria acoberto de qualquer
vingança e sem necessidade de acceitar afronta; mas tomei ao sério a minha
commissão e sou hoje menospresado por quem exigio e recebeo de mim verdadeiro
sacrifício.5

Os documentos mencionados pelo Dr. Sabóia constam de vários relatórios,


recibos e de respostas de comerciantes aracatienses que confirmavam o pagamento de parte da
dívida contraída pelo juiz6. Em um dos relatórios, há a descrição de várias promissórias
emitidas, contabilizando 27 empréstimos feitos ao juiz para que pagasse o transporte de
gêneros que deveriam ser enviados para as cidades e demais localidades do vale jaguaribano e
sertão central, atendidas por intermédio da Comissão de Transporte do Aracati, sob a
presidência do mesmo Dr. Sabóia. Segundo o juiz, tais contas, que deveriam ser pagas com
dinheiro da Tesouraria da Fazenda, ainda não haviam sido saudadas, estando sobre ele a
cobrança dos comerciantes.

Ainda nesta correspondência, o ressentido juiz fez menção de “vingança” e de


“afronta”, o que pela forma como compôs o texto, parece remeter-se a outrem que não o
próprio Presidente da Província, a quem destinava o ofício. Numa tão breve vida da Comissão
do Aracati, percebe-se que medidas bruscas, como a demissão do Dr. Sabóia, já eram uma
realidade.

5
Ofício do Juiz de Direito da Comarca do Aracati, Dr. Antonio Firmo de Sabóia, em 21 de outubro de 1877. In:
APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidaes. Data: 1877-1889.
Caixa 02.
6
Recibos datados dos dias 27 e 28 de junho, 07 de julho e 03 de setembro informam que o Dr. Sabóia tomou
emprestado aos comerciantes Antonio Joaquim Leve, à firma Antunes & Irmão e Melquíades da Costa Barros, o
valor de 4:100$000 (Quatros contos e cem mil reis). Uma prestação de contas, referente ao mês de julho de
1877, traz um relatório de 20 bilhetes resgatados pelo comerciante Melquíades da Costa Barros junto à
Tesouraria da Fazenda, totalizando 6:159$000 (Seis contos cento e cinquenta e nove mil réis), e um do sr. Sá
Leitão, de 6:000$000 (Seis contos de reis) referentes a empréstimos feitos ao Dr. Sabóia para o transporte de
gêneros para o interior. Há uma outra prestação de contas datada de 22 de agosto onde vemos mais 27 bilhetes
resgatados pelo comerciante Melquíades da Costa Barros totalizando 1:792$000 (Hum conto setecentos e
noventa e dois mil réis), também de empréstimos feitos ao Dr. Sabóia para o mesmo fim. In: APEC. Fundo:
Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidaes. Data: 1877-1889. Caixa 02.
24

Analisando as fontes oficiais7, temos a momentânea noção de que a formação


inicial da Comissão de Socorros do Aracati pautou-se no cumprimento das prerrogativas
governamentais, tendo como principal promover o “soccorro dos necessitados”8: auxiliar os
retirantes que gradativamente deslocavam-se de seus domicílios no interior da Província em
direção aos centros urbanos. A princípio, isto seria algo absolutamente normal para um órgão
de tal natureza. Como as demais comissões de socorros da Província, a Comissão do Aracati
foi nomeada por meio de ofício anexo à circular emitida pelo presidente Caetano Estellita, no
dia 17 de abril de 18779. Igualmente, esta Comissão foi composta das “principaes autoridades
da localidade e do vigário da freguezia”. Seus membros teriam a princípio a função dupla de
atender à demanda de retirantes que quedavam ao Aracati e de suprir as demais localidades do
interior do vale jaguaribano. Por exemplo, consta que a primeira remessa de víveres enviada
ao Aracati tinha como destino as cidades do Icó e Telha, para as quais foram enviados “150
saccas de farinha, 50 de milho, 25 de arroz e 25 de feijão, sendo 2/3 para aquella e 1/3 para
esta cidade”10. Mediante as orientações enviadas pelo presidente Estellita, constantes de sua
circular de 17 de abril e de outra de 24 do mesmo mês11, na qual propõe aos responsáveis da
distribuição de gêneros indicarem obras de necessidade pública que poderiam empregar a
mão-de-obra retirante, a Comissão do Aracati iniciou suas atividades promovendo a aplicação
da primeira rubrica12, no valor de dois contos de réis, enviada pela Tesouraria da Fazenda para
ser aplicada no atendimento aos retirantes alojados na própria cidade, assim como

7
Neste primeiro momento, trabalhamos com as correspondências e ofícios trocados entre a comissão do Aracati
e a presidência da província, e também com as circulares emitidas pelo então presidente Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa. Este corpo documental encontra no Arquivo Público do Estado do Ceará, sob as seguintes
localizações: Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidaes. Data: 1877-
1889. Caixa 02; Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202; e
Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a chefes de várias repartições.
Data: 1877-1880. Cx. 26. Livro: 213.
8
Ofício de no 185, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 24 de abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
9
Circular expedida pelo Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, em 17 de
abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a
chefes de várias repartições. Data: 1877-1880. Cx. 26. Livro: 213.
10
Ofício de no 223, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 26 de abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
11
Circular expedida pelo Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, em 24 de
abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a
chefes de várias repartições. Data: 1877-1880. Cx. 26. Livro: 213.
12
Autorizada por meio de ofício expedido pelo Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati, em 05 de junho de 1877. Fundo: Governo da Província.
Série: Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202. Cf. também THEOPHILO, Rodolpho. História
da secca do Ceará (1877-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa. 1922. p. 85.
25

providenciar o envio dos gêneros para as cidades do interior. Muitas cidades, vilas, distritos e
povoações foram atendidos por esta Comissão.

As correspondências trocadas entre o governo provincial e a Comissão de


Socorros nos primeiros meses de seca dão conta, principalmente, dos envios de gêneros, não
abordando muitos outros assuntos. A Comissão informava sobre o recebimento de tais
gêneros, contudo não há, nos ofícios oficiais, prestações de contas da distribuição no que
tange ao número de retirantes, e não há relatórios informando sob que forma os gêneros
estavam sendo distribuídos. Apenas em junho, é que a Comissão informou sobre o
empreendimento de uma obra pública, a construção de um açude na localidade de Passagem
das Pedras, a qual o Presidente autorizou como sendo útil para o emprego dos indigentes13.

Em 11 de maio, o Presidente da Província informou a nomeação do Coronel


Silvestre Ferreira Caminha, assim como a saída do juiz Firmo de Sabóia, que passaria a
compor a Comissão de Transporte de Gêneros14. Segundo o Presidente da Província, ele o
teria dispensado da Comissão de Socorros por “têl-o imcumbido do desembarque e transporte
dos generos alimentícios para o interior da provincia”15. O ofício dá a perspectiva de que o
remanejamento do doutor juiz nada mais foi do que um procedimento que visava distribuir
melhor os gêneros às localidades interioranas. Seria igualmente nomeado para a Comissão de
Socorros o bacharel Miguel Felício d’Almeida e Castro, tornando-se o substituto do Dr.
Sabóia, e permaneceria como presidente da Comissão até ser dispensado no dia cinco de
setembro daquele ano 16.

Apenas algumas exceções ao ambiente de normalidade podem ser notadas nas


correspondências oficiais, constando de dois momentos em que o Presidente Estellita chama a
atenção dos membros da Comissão para que atentassem de forma mais criteriosa no

13
Ofício no 972, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de
socorros do Aracati, em 7 de julho de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
14
Ofício no 424, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de
socorros do Aracati, em 11 de maio de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
15
Ofício no 652, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de
socorros do Aracati, em 16 de maio de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
16
Ofício no 2.751, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 05 de setembro de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões
de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
26

armazenamento e distribuição dos gêneros. Em ofício de 5 de junho, o Presidente respondeu


ao comissário de socorros sobre um caso ocorrido entre a Comissão e o Dr. Sabóia, então
comissário de transporte para o interior, ao qual negaram o fornecimento de gêneros que
deviam ser enviados para o município de União. O juiz teria em mãos uma autorização do
Presidente para receber tais gêneros, mas a Comissão de Socorros lhe negara, justificando-se
ao Presidente que teria distribuído para retirantes recém-chegados ao Aracati. Sobre tal
questão, o Presidente informou que reconhecia as justificativas, mas chamou a atenção dos
membros a respeito de como estavam sendo distribuídos os alimentos aos retirantes,
recomendando “a maior parcimônia e bem entendida economia na distribuição dos
soccorros”17, e se utilizou da comparação entre a distribuição do Aracati com a da capital para
tal recomendação:

[...] consta que somente em dous dias forão distribuidos pelos indigentes 57 saccas
de farinha e 18 atados de carne; e com quanto não tenha uma idéa exacta do numero
de soccorridos, devo, todavia, acreditar que os soccorros forão largamente
ministrados tirando uma rellação dos que se proporcionarão n’esta capital a um
numero variante de 140 a 150 indigentes no decorrer de 22 de maio a 2 do corrente
em que se consumio 20 saccas de farinha, 12 de feijão e 22 atados de carne. 18

Notava o Presidente uma distribuição excessiva de gêneros, porém não


confirmada, pois a Comissão não informava o número de retirantes alojados na cidade.
Contudo, como que para acalmar os ânimos e manter estabelecida uma boa relação com a
Comissão, o mesmo Presidente informou que estes “inconvenientes que, felizmente, apenas
forão de tempo, acabão de ser remediados”19.

Afora isto, entre os meses de abril e setembro, pode-se com base nesta
documentação ainda mencionar como movimentos da Comissão a saída do vigário da cidade,
reverendo João Francisco de Sá, informada pelo órgão em 25 de maio, do Barão de Mecejana
em 05 de setembro, substituído pelo promotor Francisco Fernandes Vieira e do comerciante
João A. Bussoms, que foi substituído pelo Reverendo João Francisco Pinheiro em 10 de
setembro20. A documentação informa que os cinco membros que compuseram a primeira

17
Ofício de no 810, do presidente da província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 05 de junho de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Subserie: Seca. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
18
Idem.
19
Ibidem.
20
Ofícios: no 812, de 05 de junho de 1877; no 2751, de 05 de setembro de 1877; e no 2865, de 10 de setembro de
1877 todos emitidos pelo presidente da província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à
comissão de socorros do Aracati. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros.
Subsérie: SecaData: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
27

formação da Comissão de Socorros foram: o Dr. Firmo de Sabóia, nomeado presidente da


Comissão, o presidente da Câmara Guilherme Pereira de Azevedo, os comerciantes João
Bussoms e o Barão de Mecejana e o vigário João Francisco de Sá. Exceto o presidente da
Câmara, todos os demais foram substituídos entre os meses de abril e setembro: o Dr. Sabóia
por transferência, e os demais por solicitarem seus desligamentos.

Portanto, de forma geral, um clima de normalidade pode ser ligeiramente


entendido, se analisarmos a documentação oficial e atentarmos apenas para sua perspectiva.
Contudo, sendo uma construção, as próprias fontes oficiais remetem a subjetividades próprias
de quem as produziu, e, portanto, falam mas também silenciam determinadas perspectivas e
agentes do universo social. Será sobre questões que fogem desta atmosfera de “normalidade”
e bom andamento das funções da Comissão que trataremos a partir de então, tendo em vista
relacioná-las com o grande descontentamento do demitido Dr. Sabóia. Surge a pergunta: teria
sido o Dr. Sabóia um estorvo a essa normalidade?

Ainda para o Presidente Estellita, a nomeação das comissões de socorros,


formadas por pessoas, que segundo ele, seriam “do maior critério e consideração das
localidades”, atendeu às suas expectativas durante o restante de sua administração. Este manto
de normalidade também é visto em seu relatório de 23 de novembro de 1877, quando passava
a Presidência da Província ao seu sucessor, o Conselheiro João José Ferreira D’Aguiar, onde
explicitava elogios à atuação das comissões de socorros:

[...] as comissões da provincia, que me coadjuvaram nobre e patrioticamente no


empenho de salva-la da crise temerosa, que a tem afflicto, dou testemunho dos
serviços, que teem prestado sem outra recompensa mais que a da consciência
satisfeita.
Todas essas commissões, procurando tirar das despezas feitas com soccorros
públicos a maior somma de utilidade para os municípios, a accedendo aos votos
incessantes das classes laboriosas que, por vocação e índole, obedecem nesta
provincia à lei do trabalho, iniciaram diversas obras, que estam sendo realisadas
.........
Corrigia-se assim o consenso estéril que, em epochas anteriores e de egual
calamidade, fez-se dos soccorros publicos, colhendo-se das lições da experiência o
ensino que ella ministrava, para ficarem alguns monumentos commemorativos da
passagem pela provincia dos penosos sacrificios feitos pelo Estado.21

21
Relatório com que o Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, passou a administração da
Província do Ceará ao Ex.mo Sr. Conselheiro João José Ferreira D’Aguiar Presidente da mesma Província em
23.11.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro II, 1877. p. 21-22.
28

Com base nos registros oficiais, fica a pergunta sobre o descontentamento do Dr.
Sabóia em relação às suas demissões das duas comissões que ocupou. Entendemos que a
documentação oficial trocada entre a Comissão e a Presidência Provincial não visava relevar
possíveis contendas internas, se é que existiram, e também não fazer ecoar justificativas pela
demissão do juiz. Contudo, no debruçar sobre outras fontes, outras perspectivas foram se
apresentando no caminhar desta pesquisa.

Buscando outras fontes, tomamos o caminho da consulta aos periódicos. Lima


(1979, p. 89), historiador aracatiense, informa sobre a existência de jornais produzidos
durante os anos de 1870 e 1872 na cidade do Aracati, mas não nos dá indício sobre qualquer
publicação nos anos de 1877 a 1880. Infelizmente, também não nos foi possível o encontro
com algum registro jornalístico produzido no Aracati naqueles anos de seca. Entretanto, ao
deparar com os jornais da Capital, Fortaleza, percebemos que diversas correspondências
vindas do interior da Província, publicadas naqueles jornais, poderiam nos fornecer elementos
para o conhecimento e entendimento da primeira formação da Comissão de Socorros do
Aracati, e os acontecimentos que geraram a nomeação e a posterior demissão do Dr. Firmo de
Sabóia.

Os jornais O Cearense, O Retirante e o Echo do Povo, publicaram, em momentos


distintos, algumas correspondências enviadas por indivíduos aracatienses, que em grande
parte das mesmas, procuravam descrever, seja como crítica ou como elogio, a atuação da
Comissão de Socorros do Aracati naquele período de grande calamidade. Estes periódicos,
carregados de teor político e com vozes bem definidas no contexto social de então, tornaram-
se veículo para que diversas pessoas expressassem suas representações daquela realidade
marcada pelo flagelo. No ano de 1877, entre os meses de junho a agosto, quatro cartas
publicadas pelo jornal O Cearense22 chamaram-nos a atenção, nas quais vemos relatos sobre a
formação inicial da Comissão de Socorros do Aracati, assim como o empreendimento de suas
primeiras atividades. As cartas enviadas ao jornal, que revelavam lutas locais entre os que
defendiam e os que criticavam a adoção da distribuição de socorros, por seus relatos que
abrangiam aspectos diversos da realidade aracatiense naquele momento como forma de defesa

22
Na primeira parte deste capítulo, trabalharemos o jornal O Cearense. Este periódico era um órgão do Partido
Liberal, publicado semanalmente em Fortaleza desde 1846. Sua publicação cessou logo após a Proclamação da
República. Nomes como o Senador Thomas Pompeu, Conselheiro Rodrigues Júnior e Dr. Paula Pessoa
constaram na redação do jornal. Cf. STUDART, Guilherme (Barão). Catálogo dos jornais de grande e
pequeno formato publicados em Ceará. Fortaleza: Typ. Studart, 1896. p. 07.
29

ou ataque a este ou àquele grupo, se nos apresentaram como registros propícios para
relacionar fragmentos coletados nas fontes oficiais.

A primeira carta, datada do dia 20 de junho de 1877 e publicada pelo periódico de


Fortaleza no dia 28, na qual não há a menção do nome do autor, traz como objetivo expor
“alguns traços” da Comissão do Aracati:

[...] o pensamento da administração [da província] tem sido mal executado, senão de
todo descurado, pela commissão de soccorros do Aracaty!
........
A commissão de soccorros, do Aracaty, não tem estado na altura de sua missão.
Composta, por ventura, de autoridades e cidadãos importantes, ella deu o primeiro
signal de vida pela sua indecisão, cresceu no meio das divergências, e, ainda, bem
nova, amputado um dos seus membros, hoje na idade viril, procede como [sic] desde
o seu nascimento.23

A nomeação de “autoridades” e “cidadãos importantes”, citada pelo missivista,


atendia ao caráter inicial que o presidente Estellita tentava impor à formação das comissões de
socorros de forma geral. Segundo Theophilo (1922, p. 85), nomeadas no final de abril de
1877 “ordinariamente estas commissões se compunham das principaes autoridades da
localidade e do vigário da freguezia”. Vemos aqui a crítica ressaltando a Comissão, segundo
sua responsabilidade de atender ao “pensamento” do governo provincial, como órgão que não
estava a “altura de sua missão”, principalmente por culpa das “divergências” entre seus
membros, o que teria culminado na “amputação” de um deles. Não nomeia o amputado, nem
informa o motivo da amputação. A carta, bastante genérica e sem alusões específicas, foca na
crítica em relação à demora da Comissão em distribuir o valor de dois contos de réis enviados
pelo governo provincial, concedida pela abertura da primeira rubrica, incluída sob o crédito
Socorros Públicos. A menção desta quantia se faz também em outro número de O Cearense24.
Ainda segundo Theophilo (1922, p. 85), o envio da verba seria a medida inauguradora da ação
das comissões de socorros nomeadas pelo presidente Estellita. Segundo o missivista, a opção
da esmola como primeira medida adotada, seria a pior possível, dado que tal sistema só
promoveria a mendicidade e a prostituição, denegrindo moralmente famílias inteiras de
retirantes. O trabalho, segundo o autor, seria o método adequado para ocupar os retirantes,
retribuindo-lhes o esforço laborioso.

23
O Cearense. Ano XXXI. n. 54. Publicações sollicitadas. Soccorros publicos. – Aracaty. Fortaleza. 28.06.1877.
p. 3.
24
O Cearense. Ano XXXI. n. 35. Fortaleza. Soccorros publicos. Fortaleza. 26.04.1877. p. 2.
30

Segundo o correspondente do jornal, depois de um longo período de delonga, que


o autor caracteriza como de reconhecimento de “quem é rico e de quem é pobre”, o dinheiro
foi distribuído como esmola para os retirantes que jaziam na cidade. Além da distribuição do
dinheiro, outra distribuição é descrita, caracterizada como “tristíssimo espetáculo que
commove todos os corações”, na qual foram distribuídas tigelas de farinha aos retirantes,
sendo relevante a insalubridade da distribuição. Conta o correspondente que o número de
retirantes já chegara a duas mil pessoas naquele mês de junho, e que a Comissão continuava
“no seu systema de delonga, de indecisões, por assim dizer sem rumo”. A metáfora da jovem
comissão, que ainda em sua idade viril não teria desenvolvido maturidade, procura transmitir
para os leitores do jornal uma imagem de um órgão que ainda não tinha se adequado ao seu
propósito. Forças estranhas impediam o desenvolvimento normal da Comissão de Socorros do
Aracati. Seriam elas as “rivalidades de mando” e estariam relacionadas à saída do Dr.
Sabóia?

Uma segunda carta, sem menção da data de sua escrita e igualmente sem menção
do nome do autor, foi publicada no mesmo jornal no dia 08 de julho de 187725. O autor
propunha relatar “as notícias d’esta localidade”, ou seja, expor como estava o Aracati no
contexto da recém-declarada seca. Iniciou falando sobre a emigração, que se dava diariamente
com a entrada de várias famílias na cidade, e que para acudir a tais retirantes, a Comissão
atuava com esforço louvável. A forma elogiosa com que a carta foi redigida, procurou remeter
aos membros da Comissão os méritos pelo bom andamento da distribuição dos socorros:

A commissão de soccorros, que com a sahida dos dignos Dr. Firmo e Vigário Sá,
compõe-se de cinco membros, o coronel Silvestre, o presidente da camara, barão de
Mecejana, D. João Bussons, e Dr Almeida e Castro, que substituiu na presidência ao
Dr. Juiz de direito, não tem poupado exforços e trabalhos, para tornar menos
afflictivo este quadro desolador.26

A diferença do teor das duas cartas publicadas pelo Cearense é mensurável pela
menção da saída do juiz de Direito da Comarca, Dr. Firmo de Sabóia. A primeira carta fala
das “rivalidades de mando” e do “amputamento” do membro, que supostamente seria o juiz;
nesta, o autor posteriormente lança a público a justificativa da substituição do juiz pelo Dr.
Almeida Castro, como algo estritamente dentro da normalidade do funcionamento do órgão
da distribuição dos socorros:

25
O Cearense. Anno XXXI, no 57. Correspondência do Cearense: Aracaty. Fortaleza. 08.07.1877. p. 3.
26
Idem.
31

O Dr. Juiz de direito, Firmo de Saboia, que no começo, fez parte da commissão, e
foi dispensado pelo Exmo. Sr. Estellita, para occupar-se de outra, que não e somenas
– desembarque e transporte dos generos alimentícios para o centro – assim n’aquella
como n’esta commissão tem procedido com zelo, actividade e honradez, dignos de
louvor e reconhecimento: naturalmente sensível aos soffrimentos do próximo, e
compenetrado de que uma importante porção dos nossos patrícios estorce-se nas
vascas da fome, não perde occasião para realisar uma remessa dos gêneros a seu
cargo, à qualquer commissão do centro, a que são taes gêneros destinados,
procurando n’este serviço, realisar a maior economia para os cofres publicos .27

Este missivista, no momento em que fala da saída do Dr. Firmo de Sabóia,


aproveita para destacá-lo como pessoa não comprometida com as disputas políticas da
localidade mesmo sendo um convicto conservador, e que na sua atividade como juiz,
distribuía a justiça a todos que a merecessem. Dedicou-se também a mostrar como o Dr.
Sabóia, em julgamento de um proprietário de terras do Aracati, o capitão Horácio Ramos,
procedeu de forma coerente e reta, absorvendo o capitão da acusação de maus tratos a sua
mulher. Ressaltando a honradez do juiz municipal, e em nenhum momento o autor endossou
as críticas do correspondente do mês anterior, nem mesmo lhe fazendo referência. As
“disputas de mando” denunciadas na carta anterior são silenciadas nesta segunda carta.

Constatando alguma relação entre as cartas, é notório que a delonga denunciada


na primeira seja justificada pelo arrolamento de retirantes e discussões sobre a distribuição do
valor enviado pelo governo provincial, enquanto que os conflitos de mando e hegemonia
permanecem ainda como crítica vazia na primeira carta. A Comissão procedia normalmente
suas atividades e a dispensa do Dr. Sabóia, o suposto “amputado”, nada mais foi, conforme a
segunda carta, que um remanejamento que objetivava promover de forma mais adequada as
distribuições, tanto para os retirantes no Aracati como para outras regiões à margem do rio
Jaguaribe.

Desdenhadas na segunda carta ao Cearense, as críticas da primeira missiva


suscitaram uma resposta numa terceira correspondência publicada no periódico. Identificado
apenas pelo pseudônimo de “Justus”, outro missivista aracatiense solicitou a publicação de
sua correspondência, e assim o foi no dia 26 de julho, no mesmo periódico da Capital. As
acusações feitas pelo articulista do jornal no mês anterior seriam o seu alvo, pois segundo este
terceiro missivista, o primeiro não teria “em vista a verdade”. Sua proposta era “somente fazer

27
Ibidem.
32

em largos traços uma ligeira historia dos actos praticados pela commissao desde o dia 30 de
abril, data de sua installação, até 14 de junho, em que foi reorganisada”28. Esta, de início, se
propõe a expor mais pormenorizadamente, todas as atividades da Comissão de Socorros do
Aracati, desde sua formação.

Segundo o autor, a Comissão inaugurou suas atividades no dia 30 de abril de


1877, por meio de uma reunião na residência do presidente nomeado, o Dr. Juiz de Direito
Antônio Firmo de Sabóia. Participaram daquela reunião o vigário João Francisco de Sá, o
comerciante João A. Bussons, o proprietário de terras Antonio Cândido Antunes de Oliveira,
conhecido como Barão de Mecejana e o presidente da Câmara, coronel Guilherme Pereira
Asevedo. Ali teria sido acordado que se procederia ao arrolamento das famílias emigradas ao
Aracati, e que após isto, em uma nova reunião seria decidida a forma de distribuição dos
socorros. Este segundo encontro foi realizado em 08 de maio, onde, além de discutir sobre a
distribuição do dinheiro para as famílias arroladas pelo Barão de Mecejana, a Comissão
colocou em pauta as obras que poderiam ser empreendidas na cidade a fim de empregar-se a
mão-de-obra retirante, conforme solicitação do presidente Estellita em circular do dia 22 de
abril. Na reunião, decidiu-se dar esmolas aos retirantes considerados inativos, segundo a
relação nominal levantada, e aos retirantes aptos para o trabalho seria distribuído o dinheiro
na forma de gratificação pelo labor nas obras de utilidade pública.

Nos dias 25 e 28 de maio, novas distribuições foram realizadas pela Comissão,


desta vez em um armazém destinado especificamente para depósito dos gêneros enviados pela
Comissão de Transporte por Mar, instituída pelo governo provincial. Segundo a carta de 21 de
julho, 1.250 pessoas foram atendidas nestas datas, sendo 450 pessoas atendidas no primeiro
dia, e 800 pessoas no segundo dia, quando cada uma delas recebeu 2 quilos de carne e 3 litros
de farinha. Após aquela data, o coronel Guilherme de Azevedo e o Barão de Mecejana
ficaram encarregados de distribuir as esmolas em suas respectivas residências, assim
procedendo até o dia 16 de junho, data da reorganização da Comissão:

[...] dia 16 de junho, em que a commissao se organisou, ficando entao composta dos
Ilms. Srs. Dr. Miguel Joaquim de Almeida Castro, coronel Silvestre Ferreira dos
Santos Caminha, tenente coronel Guilherme Azevedo, Barão de Mecejana e João A.
Bussons. Em sua primeira reunião a commissao elegeo seo presidente o Sr. Dr.

28
O Cearense. Anno XXXI, no 62. Publicações Sollicitadas: Soccorros publicos - Aracaty. Fortaleza.
26.07.1877. p. 4.
33

Castro. Tendo-se já dado noticia dos seus trabalhos, não nos mais d’elles
occuparemos.
Cumpre dizer que o Sr. Coronel Silvestre Caminha começou a fazer parte d’ella
depois do meiado de maio, e que o Sr. Vigário de Sá tendo pedido, obteve sua
demissão. O Sr. Dr. Juiz de direito chegando aqui de volta da capital no fim de maio
veio encarregado pelo presidente de receber, e fazer seguir para o centro os gêneros
alimentícios por elle enviados, missão que tem desempenhado bem, deixando por
esta razão de continuar na commissao de socorros.29

Apesar das cartas aqui apresentadas, as “questões de mando” e o ressentimento do


Dr. Sabóia não são esclarecidos. Os contornos da situação se nos apresentaram mais definidos
quando encontramos uma carta escrita pelo próprio Dr. Sabóia e enviada ao mesmo jornal de
Fortaleza, publicada no dia 20 de setembro de 187730. No início da carta, o juiz do Aracati já
confirmava o informe de uma das cartas anteriores sobre o ambiente das rivalidades no
interior da Comissão de Socorros e as relações de força que lhe provocara a saída:

Triumpharão finalmente a cabaia e a astucia e o presidente da província e


desembargador Caetano Estellita Cavalcante Pessoa assignou o officio de minha
exoneração de encarregado de receber os gêneros alimentícios e envial-os para os
diversos pontos desta parte da provincia.
Não me piza a demissão porque tenho consciencia de que cumpri os meus deveres
com lealdade e a mais patriotica dedicação; e se me vou occupar com ella,
succintamente é para mostrar que o presidente da província trata mais de servir aos
homens que o cercão, do que a causa da humanidade soffredôra, e que dotado de
animo dúctil e fraqueza cede a mais leve ameaça, com tanto que salve a sua
individualidade.31

Ao descrever o andamento das relações entre os membros da comissão desde a


sua formação, o Dr. Sabóia reitera várias informações já conhecidas por nós por meio das
outras cartas do jornal fortalezense. A lista de nomeação remetida ao juiz Sabóia, que foi
instituído presidente da Comissão, enviada pelo Presidente da Província, datava de 22 de abril
de 1877. Os membros reuniram-se no dia 30 do mesmo mês com a finalidade de definir a
forma como a verba enviada no dia 24 deveria ser aplicada no socorro aos então mais de mil e
duzentos retirantes alojados na cidade.

Entretanto, o Dr. Sabóia afirmou que os problemas acompanhavam a Comissão


desde sua nomeação. Na data marcada, dia 30 de abril, às 10 horas da manhã, além dos
membros constantes da nomeação recebida pelo juiz, compareceu também o vereador e
Coronel Silvestre Ferreira Caminha. Segundo o Dr. Sabóia, “não sendo o coronel Silvestre

29
Idem.
30
O Cearense. Anno XXXI, no 80. Publicações sollicitadas: Ao público. Fortaleza. 20.09.1877. p. 5.
31
Idem.
34

nenhum dos indivíduos indicados, claro estava que não podia tomar parte na commissão”32.
Para ele, foi em virtude desta atitude que a sua saída se deu imediatamente, relatando que em
sua viagem à Fortaleza no dia 11 de maio, foi demitido da Comissão de Socorros pelo
presidente Estellita, restando-lhe cuidar da Comissão de Transporte de Gêneros para o
interior. Ainda nesta carta, ele mencionou sobre algumas reuniões na Câmara Municipal, que
se deram com o fim de promover uma campanha contra a sua pessoa. A “política mesquinha
das localidades”, com as quais concordava tacitamente o presidente Estellita, promoveram
posteriormente a dupla demissão do Dr. Sabóia. Num jogo de tramas proposto pelo juiz,
partimos no caminho das fontes produzidas pela Câmara Municipal do Aracati naquele ano de
1877, para verificarmos a posição dos vereadores em relação às questões levantadas.

Nos documentos da Câmara, algumas correspondências do ano de 1877 tinham


por finalidade justificar a posição dos vereadores em relação ao procedimento do Dr. Sabóia.
Uma delas propõe expor de forma pormenorizada as “infracções da Constituição e as
prevaricações comettidas pelo Dr. Juiz de Direito”33. Neste documento, várias acusações a
respeito da índole do juiz Sabóia são levantadas, como o não comparecimento em sessões do
júri, retenção de documentos de interesse da Câmara, arbitrariedade em determinados
julgamentos e despachos. Relata também uma autuação contra a Câmara Municipal, por
julgar que a mesma teria procedido de forma irregular numa vistoria em um galpão
pertencente a Casa Comercial Gomes de Matos & Cia. E por fim, urgiu a acusação de ter o
Dr. Juiz Sabóia procedido de forma criminosa na administração da Comissão de Transporte
de Gêneros:

Perante o juiso Municipal desta cidade está sendo procedida uma justificação para
provar: que o mesmo Dor. Juis de Direito, encarregado por essa Presidencia do
desembarque e transporte dos generos destinados para soccorros publicos, déra
differente destino a uma parte desses mesmos generos, que se achavão recolhidos
em um armasém sob sua guarda, já fasendo passar alguns, do dito armasem para
casa de sua residencia, e já promovendo e effectuando a venda de outros. 34

Cartas publicadas em setembro e em novembro de 1877 em O Cearense, escritas


por defensores aracatienses do Dr. Sabóia, buscaram rechaçar as denúncias feitas pela Câmara

32
Ibidem.
33
Ofício do Paço da Câmara Municipal do Aracaty em sessão extraordinária de 25/09/1877, In.: APEC. Fundo:
Câmaras Municipais. Série: Correspondências Expedidas. Local: Aracati. Data: 1838-1894. Caixa 93.
34
Idem.
35

Municipal e se opuseram à perseguição, que segundo o juiz, teria sido levantada pela família
Caminha35. Apesar destes apelos, o Dr. Sabóia não comporia mais as comissões36.

O juiz municipal questionou como o presidente Estellita atentou mais para


questões de política local do que para o exercício “justo” e “correto” empreendido por ele nas
comissões que ocupou e sobre como a preferência do presidente Estellita recaiu sobre a
pessoa do Coronel Silvestre Caminha, mesmo tendo sido ele nomeado inicialmente para
presidir a Comissão de Socorros. Ainda que amparado na Comissão de Transporte de Gêneros
para o interior, a relação do Dr. Sabóia com o presidente Estellita não pôde resistir aos
interesses locais dos políticos aracatienses.

O seu algoz na cidade, o coronel Silvestre, pertencia a um clã aristocrático,


tradicional nos quadros da política aracatiense: a família Caminha. Segundo o relato de
Francisco Freire Alemão, membro da comissão científica que visitou o Ceará em 1859, os
Caminha eram talvez a família mais rica do Aracati. Já naquele ano chefiavam o Partido
Conservador ou Caranguejo, e dominavam “a patuléia [...] Os Caminhas têm por si grande
parte da gente do sertão” (ALEMÃO, 2006, p. 86). Segundo os registros das eleições de 1876,
o coronel Silvestre aparece como o primeiro eleitor qualificado do Aracati a votar para cargos
de deputado na legislatura provincial, com 614 votos. Já seu irmão, o tenente coronel
Raymundo Ferreira dos Santos Caminha, aparece como vereador eleito naquele mesmo ano,
recebendo a segunda maior votação: 434 votos. Em 1870, a família Caminha apresentava três
nomes para o quadro dos cidadãos qualificados a eleitores especiais de senadores da Província
do Ceará: o Tenente coronel, Dr. Antonio Ferreira dos Santos Caminha, o coronel Silvestre
Ferreira Caminha e o tenente André Ferreira dos Santos Caminha37. A posição nos quadros de
elegibilidade reforçam ainda mais o status da família Caminha: o quadro de “eleitores”,
diferente dos “votantes”, era composto pelos mais abastados das localidades, os quais, para
elegerem senadores, não poderiam ter uma renda liquida anual menor do que 200$000
(duzentos mil réis) (PAIVA, 1979, p. 61-62). A influência da família Caminha também era
sentida nos quadros do funcionalismo público, como bem mostra uma carta insatisfeita de um
35
O Cearense. Anno XXXI, no 80 . Publicações Sollicitadas: O juiz de direito do Aracaty julgado perante os
factos. Fortaleza. 20.09.1877. p. 4; e O Cearense. Anno XXXI, no 94 . Correspondências: Aracaty. Fortaleza.
08/11/1877. p. 4.
36
O ofício assinado pelo presidente da Província, informando a dispensa do Dr. Sabóia foi publicado em 31 de
agosto de1877 In.: O Cearense. Anno XXXI, no 80 . Publicações Solicitadas. Ao público. Fortaleza. 20/09/1877.
p. 6.
37
Anexo II com a relação de eleitores especiais de senadores da província do Ceará em 1870. Apud: CÂMARA.
José Aurélio Saraiva. Fatos e documentos do Ceará Provincial. Fortaleza: Impresa Universitária, 1970.
36

ex-funcionário da coletoria provincial no Aracati, Aniceto Pereira da Costa Queiroz, obrigado


a ceder seu cargo público para mais um membro daquela família:

Em fim, estão os meus amigos e correligionarios satisfeitos. Fui demitido, e


nomeado o Sr. João Caminha Júnior, o qual não obstante haver recentemente fallido,
sem poder pagar cinco por cento a seus credores, tem o privilegio de pertencer a
importante e poderosa família Caminha, para quem são exclusivamente creados
todos os gosos e proventos da actual situação. 38

É então de se notar que a influência do Coronel Silvestre se fazia sentir também


nos quadros da política oficial, tendo o Dr. Sabóia, também conservador, comprado briga com
cidadãos de vulto e cabedal no Aracati. O conservador Estellita, portanto, não poderia deixar
de atender aos reclames da poderosa família Caminha. O coronel Silvestre assumiu um posto
na comissão, provocando a saída do Dr. Sabóia, que em um último pedido, solicitou a
nomeação do Dr. Miguel Joaquim de Almeida Castro para presidir a Comissão, sendo
atendido pelo presidente Estellita.

Em alguns momentos do relato do Dr. Sabóia, ele procurou transparecer que sua
atitude imparcial – mesmo sendo um conservador - perante as questões políticas do Aracati,
era fruto de seu empenho em eleger como imprescindíveis as questões de justiça, e que sua
“consciência tranqüila” perante tais questões não lhe precavera contra os conflitos locais.
Aplicar a justiça, sem ver a quem, talvez tenha sido o erro do Dr. Sabóia, possivelmente pelo
fato de sua estada na comarca do Aracati ser ainda breve naquele momento, pois havia
chegado à cidade em janeiro de 1877, vindo do Acaraú, onde exercia igualmente a função de
juiz39. O seu pouco contato com as questões da localidade, principalmente as políticas,
possivelmente lhe tenham impedido de notar que o conflito com determinados elementos da
política local lhe colocaria em uma posição desprivilegiada nas relações de força e de poder
naquela localidade40.

38
O Cearense. Anno XXXI, no 62. Publicações sollicitadas: Ao publico. Fortaleza. 26.07.1877. p. 4
39
Os ofícios da Câmara dão conta da atividade do juiz a partir início do ano de 1877 (Cf. Ofício do Presidente da
Câmara Municipal, Sr. Guilherme Pereira de Azevedo, de 11/09/1877 e 25/09/1877 In: APEC. Arquivo Público
do Estado do Ceará (APEC). Fundo: Câmaras Municipais. Série: Correspondências Expedidas. Local: Aracati.
Data: 1838-1894. Caixa 93; e o mesmo Dr. Sabóia relata, em sua carta publicada no Cearense de 20/09/1877,
que em maio daquele ano, após cinco meses de atividades, o presidente Estellita ainda não havia dado conta de
sua estada no Aracati.
40
O juiz Sabóia era natural de Sobral, formado na Academia de direito de Olinda em 1853. Na Província
cearense já tinha exercido a magistratura nas localidades de Príncipe Imperial (atual Crateús), Acaraú e
Maranguape, tendo sido transferido para o Aracati em janeiro daquele ano de 1877. Membro da uma importante
família no cenário político da Província, sobrinho do senador Figueira de Mello e irmão do Visconde de Sabóia,
Vicente Cândido Figueira de Sabóia, o Dr. Firmo, além de incursões como magistrado por várias províncias do
37

O que propomos é que a saída do Dr. Sabóia, face às relações de força da elite
política aracatiense, tenha atendido também à proposta inicial da Comissão de Socorros. Tais
comissões, nomeadas em abril daquele ano de 1877, visavam atender a premissas definidas do
governo provincial. O propósito e a natureza de poder segundo os quais a Comissão de
Socorros do Aracati deveria empreender suas práticas, talvez tenham influído na preferência
do Presidente Estellita pela coronel Silvestre Caminha. É sobre tal proposta e natureza que
discutiremos a partir de então.

1.2. As comissões de socorros: poder reproduzido numa estrutura que é um fazer-se.

Como informa em seu relatório de 2 de julho de 1877, o presidente Estellita,


mesmo anunciada a seca no início do mês de abril daquele ano, só tomou as medidas
necessárias após a chegada das comunicações oficiais do interior da Província em relação à
seca declarada41. Tais comunicações remetiam principalmente à procissão migratória dos
sertanejos em direção às cidades litorâneas, desprovidos de todo e qualquer meio de
alimentação, assim como da esperança de dias de chuva. Um ofício de abril, da Câmara
Municipal da vila de Jaguaribe-Mirim mostra como fluxo migratório estava se dando naqueles
primeiros movimentos da seca:

As estradas estão continuamente tranzitadas por innumeras famílias que do centro da


província, buscam o litoral. A estas, que deixaram suas habitações, vae accudindo a
42
caridade publica que, forçozo é confessar, se tem desenvolvido em alto grau [...]

Tal quadro predispôs o Presidente provincial a definir um plano de ação, mas


quando da chegada massiva de retirantes à capital43 e ainda pela possibilidade do avanço de
um número maior de famintos, sua iniciativa foi imediata. Com relação ao avanço retirante, o
mesmo escrevia ao Ministério do Império:

império, receberia a condecoração da ordem da Rosa. Cf. STUDART, Guilherme C. e STUDART, Newton
Jacques. Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense. 2. ed. Fortaleza: Tipografia Progresso, 1980.
41
Falla com o que Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, Presidente da Província do
Ceará, abriu a 2ª Sessão da 23ª Legislatura da Assembléia Provincial em 02.07.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro
II, 1877. p. 37.
42
Ofício do Paço da Câmara Municipal de Villa de Jaguaribe Mirin, em 9 de Abril de 1877. In FERREIRA
NETO, Cicinato. A tragédia dos mil dias: a seca de 1877-79 no Ceará. Fortaleza: Premius, 2006. p. 39-40
43
Ofício do Presidente da província Caetano Estellita, ao ministério do império, em 7 de Abril de 1877,
(Arquivo Nacional). Apud CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Trem da seca: sertanejos, retirantes e operários
(1877-1880). Fortaleza: Museu do Ceará. Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2005. p. 40.
38

A crise começa apenas a manifestar-se e já existem n’esta cidade mais de mil


emigrantes em busca de trabalho, além dos que em maior número povoam a esta
hora as serras de Baturité, Maranguape e Pacatuba, e mais tarde buscarão o mesmo
44
centro [...]

As correspondências oficiais provavelmente lhe permitiram visualizar um


panorama do avanço retirante, que apontava para as principais cidades litorâneas: Fortaleza,
Aracati e Sobral. Neste momento, que data do início do mês de abril de 1877, o presidente
Estellita empreendeu sua primeira medida substancial e de abrangência provincial: a
nomeação sistemática das comissões de socorros em vários municípios da Província, para
gerir os gêneros de primeira necessidade que seriam distribuídos aos famintos retirantes. No
quadro de avanço da multidão, em que nível as medidas iniciais de Estellita, por ele mesmo
denominadas de “medidas destinadas a socorrer os indigentes, collocando-os ao abrigo da
fôme e da miseria”45 e inauguradas pelas nomeações das comissões de socorros, foram uma
contenção da imigração retirante, com o ensejo de desacelerar ou mesmo estancar o fluxo
migratório que desembocaria fatalmente, e principalmente, na Capital da Província?

Cândido (2005, p. 41) propõe que o Presidente Estellita, muito embora não
podendo prever a grande calamidade que a partir daquele ano de 1877 se estenderia por mais
três anos, já poderia, pelos elementos que se lhe apresentavam, perceber que a conservação da
configuração social dependia diretamente de sua pronta atuação. Portanto, era mister que de
forma antecipada o Presidente da Província promovesse a contenção do fluxo migratório:

Esse estado de ordem e tranqüilidade aparentes, com quanto se possa considerar o


resultado de um fenômeno habitual, tende a desaparecer, e desaparecerá por certo, se
a esperança que o sustenta desaparecer, como é provável, e o povo não achar a
confiança do governo quando se voltar para este em busca de outro conforto [...] 46.

Promover a ordem também consistia em manter desagregada a grande massa


retirante e o emprego dos retirantes em obras públicas pareceu ser uma ferramenta apropriada
para tal fim. No ofício ao Ministério Imperial, referindo-se à continuação das obras da estrada
de ferro que ligava Fortaleza à região serrana do Baturité, Estellita reiterava:

44
Idem.
45
Falla com o que Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, Presidente da Província do
Ceará, abriu a 2ª Sessão da 23ª Legislatura da Assembléia Provincial em 02.07.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro
II, 1877
46
Ofício do Presidente da província Caetano Estellita, ao ministério do império, em 7 de Abril de 1877 (Arquivo
Nacional). Apud CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Op. Cit.. p. 40-41.
39

Obra de alto custo e grande extensão, é a única que pode garantir por muito tempo a
subsistência de centenares de famílias, por meio do trabalho, assim como a única
que oferece a vantagem de conservar mais ou menos divididas as grandes
aglomerações de povo que a fome improvisa nos pontos onde há facilidade de
47
exercer a atividade .

Para tanto, em Circular de 16 de abril, o presidente solicita às Câmaras


Municipais informações a respeito da situação das localidades, além de sugestões de obras de
maior necessidade que poderiam ser empreendidas, com a finalidade de empregar a mão-de-
obra retirante. Antes de qualquer resposta vinda das diversas câmaras, Estellita envia uma
nova circular, no dia seguinte (17 de março), para os municípios estratégicos na estrutura da
distribuição de socorros aos retirantes que afluíam ao litoral, convocando a formação de
comissões de socorros que levariam a cabo seu projeto de contenção e auxílio da massa
migrante.

É esta talvez a face mais delicada e importante da tarefa confiada às comissões de


soccorros, porquanto, compreende V. S., não basta matar a fome ao necessitado para
apagar-lhe na mente os horrores de sua situação, é além disto indispensável que a
mão beneficente derrame sobre a sua cabeça a esperança que lhe foge, fazendo-a
48
entrar de novo nos cálculos de sua existência e nas relações íntimas da família .

Este trecho da circular expedida pelo presidente Estellita nos fez considerar um
aspecto através do qual o controle sobre a massa retirante poderia efetivar-se. A menção de
uma volta do camponês aos “cálculos de sua existência e nas relações íntimas da família”, nos
leva a considerar que tal medida inicial, a nomeação das comissões de socorros, objetivava
reproduzir determinados laços de dominação, na iminência da crise de antigos laços,
mesclando antigos modos de sujeição com outros que atendiam a uma lógica que tomava
corpo e se impunha sobre a sociedade cearense: a lógica do capital internacional.
Acreditamos, portanto, que a natureza de poder a qual o presidente Estellita tencionava
transferir às comissões de socorros, mantinha uma relação direta com a manutenção da
topologia social, ou em outras palavras, visava manter a estrutura social vigente, nos moldes
de dominação predominantes, mantendo os interesses reinantes de determinada classe
hegemônica.

47
Idem. p. 41.
48
Circular expedida pelo presidente da província do Ceará, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa,
em 17 de abril de 1877. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência
dirigidos a chefes de várias repartições. Data: 1877-1880. Caixa 26. Livro 213.
40

A forma como se procurava conduzir a política econômica da Província sofria


transformações na segunda metade do século XIX, quando a lógica do capitalismo, no sentido
de determinar novas relações de produção, passaram a reger o convívio entre as classes
sociais. Oliveira F. (1981), quando analisa o projeto de criação do DNOCS (Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas), em meados do século XX, lembra que a intervenção do
Estado na região conhecida hoje como Nordeste, desde tempos de Império no século XIX
quando era conhecida como Norte brasileiro, não se deu sob o ponto de vista do planejamento
que visava pôr em igualdade de condições as regiões Norte e Sudeste no que diz respeito ao
desenvolvimento, como alguns propõem. Segundo o autor, seria “uma forma de reposição
transformada dos pressupostos da produção”, como um reforço das condições da própria
estrutura produtiva, “tanto na esfera na produção quando na esfera da circulação e da
apropriação” (OLIVEIRA F., 1981, p. 52), o que não previa um “desenvolvimento
igualitário” entre Norte e Sudeste, mas a submissão da economia do Norte algodoeiro-
pecuário aos caprichos do capital internacional, comercial e financeiro inglês, sendo que esta
mesma lógica se reproduzia sobre a estrutura econômica e social da província cearense.

Portanto, a própria forma como se iria intermediar a relação entre os grupos


governantes e os trabalhadores rurais ganhava novos contornos. A lógica do capital objetivava
aproveitar a mão-de-obra sertaneja de outra forma, e tornou-se a proposta dos políticos mais
interessados em integrar o Ceará na rota e programa do mercado internacional, tendo como
principal referência Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, o Senador Pompeu. Segundo Sousa
(2009), o Senador Pompeu compunha a linha de frente entre os representantes nortistas no
Senado imperial, e auxiliado por pesquisadores e cientistas como Raja Gabaglia e por
políticos como João Lins Vieira Cansanção de Sinimbú, fez constante pressão sobre o
governo imperial tendo em vista satisfazer as reivindicações do Norte e, principalmente, do
Ceará, o que permitiu que investimentos infra-estruturais, principalmente na capital Fortaleza,
fossem concretizados. Tais investimentos propiciaram a elite fortalezense sonhar e projetar
uma sociedade moderna, urbana e civilizada na Capital da Província (PONTE, 1993).

A “aventura civilizatória” (NEVES, 2000, p. 25) da elite cearense, iniciada mais


precisamente na década de 1860, consistia, na adequação, sempre conflituosa, da sociedade
cearense ao modelo racionalizado de sociedade progressista e moderna, que encontrava
referencial nos padrões estéticos e materiais dos grandes centros europeus. Albuquerque
Júnior (1995) caracteriza este período como que possuindo uma rota de mudança na forma de
41

produção e mercado, levada a cabo por forças do capital internacional e que encontravam
ressonância na elite provincial fortalezense, mas ainda insuficientes para promover profundas
mudanças do ponto de vista social e cultural do sertão. Seriam necessários, portanto,
mecanismos que atendessem às prerrogativas que se tentavam impor, no sentido de reproduzir
uma determinada ordem imaginada, mas que encontrasse na estrutura social estabelecida um
canal de reprodução sem lhe destruir as bases de forma abrupta. Desta forma Chaves (1995),
quando afirma que a seca de 1877 a 1880 compreendeu um momento no qual o imaginário de
sociedade das classes dominantes no Ceará foi reiterado principalmente pela elite
fortalezense, no sentido de manter o status quo social, ou seja, manter a configuração da
estrutura social cearense, no sentido de vigorar as relações de dominação existentes, considera
que a hegemonia fortalezense na captação de excedentes da produção era garantida pela
manutenção das relações de poder no sertão cearense.

O fator econômico determinante da hegemonia da Capital decretou


proporcionalmente a dependência dos demais municípios da Província em relação ao controle
de Fortaleza. Politicamente, as medidas centralizadoras do governo provincial, que tomaram
corpo mediante a legislação que vinha sendo formulada desde a Constituição de 1824,
impunham às Câmaras Municipais apenas a condição de gerenciadoras de encargos
administrativos locais (art. 240 da Lei Organização Municipal de 1º de Outubro de 1828), não
podendo “exercer qualquer jurisdição contenciosa”, subordinadas então ao governo provincial
instalado na Capital, que por sua vez não possuía autonomia significativa diante do governo
imperial (art. 3º da Constituição de 1824) (CORDEIRO, 2000, p. 139). Lemenhe (1991, p.
106-107), tratando da política de centralização promovida no segundo reinado a partir dos
anos vinte do século XIX, destaca que o esvaziamento das prerrogativas das municipalidades
no que concerne às iniciativas econômicas, políticas e judiciárias, impondo-se a elas apenas o
poder de “solicitar”, fazia parte de um movimento conciliatório, empreendido no Rio de
Janeiro, onde a representação política das elites latifundiárias cafeicultoras pressionava o
governo central no sentido de assumir apenas parcialmente as posturas advindas da influência
inglesa - em relação à abertura de mercado e a introdução de mão-de-obra livre, abolindo
assim a relação escravista -, preservando o trabalho escravo, grande fonte de renda desta
fração da classe dominante. Aos grandes proprietários, nas diversas regiões, o discurso
centralizador que essa política previa era bastante interessante. Aos proprietários do Norte
especificamente - aos quais os baixos preços do açúcar e do algodão, associados aos custos
maiores do trabalho escravo, restringiam suas possibilidades de acumulação de capital - o
42

tratamento unitário proposto pelo discurso dos cafeicultores do Rio de Janeiro apontava como
solução útil para o fim da marginalização política das províncias do Norte. As medidas
centralizadoras e uma política administrativa mais forte, preconizadas na idéia de um Estado
centralizador e unificador da nação atendiam seus interesses.

A política de centralização administrativa proporcionou a Fortaleza, Capital da


Província do Ceará, nuclear o excedente econômico, que alcançou volumes extraordinários
durante o “boom” do algodão nos anos sessenta do século XIX. É interessante pontuar que as
medidas centralizadoras que favoreceram a hegemonia fortalezense, compreenderam um
movimento conciliatório, o qual consistia na convivência de medidas políticas, liberais e
conservadoras, que podem ser visualizadas no quadro político e econômico do Ceará na
segunda metade do século XIX, até o fim da monarquia. A hegemonia capitalista de
Fortaleza, que em si mesma comportava o conflito entre liberais e conservadores, contrastava
com o “atraso” interiorano, preso a antigos laços econômicos e sociais.

Enquanto Fortaleza empreendia seu sonho moderno, o interior cearense


perpetuava laços sociais coloniais. As relações econômicas e sociais produzidas no período de
formação dos primeiros povoados do sertão cearense, baseados na grande propriedade
pecuarista (GIRÃO, V., 1984), mantinham-se no advento da cultura algodoeira, predominante
na segunda metade do século XIX. Analisando as relações de trabalho na cotonicultura
cearense do século XIX, Leite (1994) coloca que tais relações, caracterizadas pela parceria e
por outros tipos de relação, como o aforamento, arrendamento e absorção de agregados em
geral, em especial de vaqueiros, ainda que seculares, se intensificaram na cotonicultura
cearense na segunda metade do século XIX. O parceiro ou morador recebia a terra, que lhe
era cedida pelo dono, cultivava o algodão consorciado com o proprietário e também outros
itens para subsistência, como o milho e o feijão. Ao fim da colheita, como pagamento de
renda pela uso das terras, o parceiro entregava a metade do algodão colhido. Em alguns casos,
o pagamento do parceiro consistia em dias de trabalho nas terras do proprietário. Ao
proprietário, agregar um maior número de parceiros, como famílias inteiras, consistia em uma
produção proporcionalmente maior, dada a parcela que lhe era devida em relação à produção
obtida pelo parceiro. Aos parceiros, interessava participar do cultivo do algodão pois tal
cultura, em face dos intervalos concedidos entre os períodos de plantio e colheita e a
disponibilidade de porções de terra para outras culturas, permitiam ao agricultor agregado
promover o cultivo de subsistência. Os laços sociais no sertão cearense, até então assinalados,
43

caracterizam o que de forma geral denominou-se como regime patriarcal do Norte brasileiro
(LEITE, 1994, p. 86).

A regular manutenção da mão-de-obra agrícola levou os proprietários,


normalmente organizados em grupos familiares detentores do poder nas diversas regiões
interioranas da província (CORDEIRO, 2000, p. 139), a organizar medidas de submissão
desta mão-de-obra, principalmente controlando o acesso a terra. O Estado, de forma gradual,
trabalhava a inserção de sua influência, elaborando mecanismos legais que inibissem a
vadiagem e a ocupação irregular de terras (LEITE, 1994, p. 67).

A rede política de conciliações entre os diversos clãs familiares que compunham


os poderes oficiais locais no sertão cearense e as elites citadinas, em especial a elite política,
econômica e intelectual da capital, ganhou ainda mais respaldo, a partir da década de 1820,
em virtude da atuação do setor da classe dominante encarregado do comércio intra-provincial,
e principalmente, o comércio exportador e importador. O crescimento da produção
cotonicultora se deu paralelamente à ascensão de uma elite comercial, responsável por escoar
os produtos agrícolas e outros oriundos da pecuária, como os couros, ao mesmo tempo
importando manufaturas e artigos de luxo. Takeya (1995) lembra que a abertura dos portos,
em 1808, inaugurou esse momento, que, durante o regime monárquico, chegaria ao auge na
segunda metade do século XIX. A relação construída entre proprietários de terra e
comerciantes se tornou fundamental, a ponto de em muitos casos proprietários e comerciantes
constituírem a mesma pessoa. Esta parceria que teria por fim escoar a produção para os ávidos
mercados do exterior, especialmente o inglês, produziu desdobramentos, no sentido de formar
uma cadeia de comerciantes em toda província, e que teria, a partir da década de 1850, em sua
extremidade mais privilegiada, os grandes exportadores e as grandes casas comerciais, tanto
estrangeiras quanto nacionais. Segundo Leite (1994), os comerciantes exportadores
acumularam as maiores fortunas do Ceará provincial, sendo favorecidos pela grande distância
entre os centros produtores do sertão e centros de comércio, localizados nas cidades
litorâneas, o que lhes permitia não somente especular, mas impor os preços tanto na compra
como na venda ao mercado interno. A autora ainda destaca que o acúmulo de capital
comercial permitia a centralização de recursos líquidos em mãos dos grandes exportadores,
que tornaram-se financiadores de proprietários, pequenos agricultores e comerciantes locais,
por inexistir casas bancárias no Ceará neste período. Estas circunstâncias são apontadas pela
44

autora como razões da subordinação da agricultura ao capital comercial, vinculado ao


comércio de exportação.

Entretanto, o início dos anos setenta marcaria um período de declínio econômico


para a Província do Ceará, quando da retomada da produção do algodão norte-americano,
findada a Guerra de Secessão, trazendo de volta o grande concorrente do Norte brasileiro
algodoeiro. Como lembra Albuquerque Júnior (1995, p. 113), a seca de 1877 acentuou ainda
mais esta crise pela qual passava todo o Norte do Império, “colocando em cheque vários
mecanismos de dominação, que garantiam a manutenção da ordem e do status quo”.
Caracterizando o período aqui destacado, situado entre as décadas de setenta e oitenta do
século XIX, Mello (1999, p. 16) aponta que o período corresponde:

[...] na sua brevidade, à convergência de três momentos críticos da história do


império: a ‘grande depressão’, que afetou a economia mundial de 1873 a 1896; a
‘crise do norte’, que praticamente eliminou o açúcar e o algodão nortistas do
mercado internacional; e a agonia do sistema monárquico [...].

Entendidos assim, tanto o contexto quanto a estrutura social cearense naquele


período, vale a pena propor que o governo provincial - cujo expediente dificilmente pode ser
entendido quando desvinculado dos planos de uma elite fortalezense inclinada para a lógica
capitalista e beneficiada com a condição estrutural da economia e da política cearense,
levando assim adiante um sonho modernizador e progressista (PONTE, 1993) - previa manter
a grande massa pobre em seu devido lugar, num estado de ordem, apartada das elites que
sonhavam com a modernidade. O então presidente Caetano Estellita, mesmo sendo um
político conservador, expressou ser simpático à perspectiva de mudança na forma como os
laços de controle deviam ser empreendidos naquele contexto de calamidade. Provavelmente,
sua aproximação com a pessoa do Senador Pompeu, lembrada por Sousa (2009), lhe tenha
servido de influência quando da proposta que transmitiu às comissões de socorros, no sentido
de empregar os retirantes em obras públicas, atendendo de forma gratuita apenas aqueles que
não apresentassem condições físicas aptas para o trabalho 49.

A partir do exposto, consideramos que a nomeação dos elementos de importância


política nas cidades, em que se distribuiria tanto socorros quanto trabalho, para comporem as

49
Circular expedida pelo presidente da província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, em 17 de
abril de 1877. In: APEC - Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a
chefes de várias repartições (1877-1880). Cx. 26. Livro: 213.
45

comissões de socorros, foi uma tentativa do presidente Estellita de manter ordenada tal
estrutura social vigente, no sentido de sustentar a configuração social reinante na Província,
que tinha como referência o interesse das elites da Capital em manter sua posição
hegemônica, mas agora intervindo segundo uma lógica transformada ou em transformação,
que Cândido (2005, p. 40) atribui como sendo uma “política empreendedora”, que lançava
mão de uma visão progressista, promotora de uma nova relação de produção. “Assistência
alimentar” e “trabalho” eram o casamento necessário, segundo a proposta de Estellita, para
manter a ordem social. A reiteração do uso das comissões de socorros naquele presente
momento era visada pelo presidente Estellita como o resgate de um elo, ou um elemento de
“intermediação” entre o povo e o governo, tendo em vista aplacar-lhe os ânimos, tão
perigosos quando a multidão faminta os tornasse avultados:

O meu primeiro passo foi nomear commissões de soccorros para as diversas


localidades, organisando esses corpos collectivos, com funcções próprias, de pessoas
as mais prestigiosas, que servindo de intermediários entre o povo e a administração,
se constituíssem perante ella os procuradores de seus direitos, velassem por suas
necessidades e promovessem a iniciativa da caridade particular que, em crises
semelhantes, occupa a linha de honra em quanto não for extincto do coração humano
50
o sentimento generoso dessa primeira virtude christã.

Vale ressaltar ainda que a formação de comissões de socorros para os afetados por
calamidades naturais tornou-se uma prática constante no período que compreendeu o Segundo
Reinado. Assim como nas monarquias e governos representativos da Europa, a idéia da
caridade, como instrumento de solidificação de solidariedades entre as classes dirigentes e o
controle das populações afetadas por calamidades naturais, ganha novo formato, influenciada
pela transformação do quadro de pensamento e mentalidade operada pelas Luzes; “Esta nova
caridade assume-se ‘cívica e secular’ (...) reivindica preceitos distintos dos evangélicos,
assenta em novos valores e deveres – a Humanidade e a Fraternidade” (PEREIRA, 2004,
p.832). No caso do Império brasileiro, identifica-se com o seu processo de centralização
administrativa e política, tendo em vista a formação da “Nação” brasileira, atribuindo a si, por
meio da Constituição de 1824, o dever de cuidar de seus súditos prestando-lhes os devidos
socorros em momentos de calamidade natural. Desta forma, os socorros públicos deviam ser
entendidos “como atos administrativos de dever social do governante em benefício do
governado, assegurados por lei” (BELTRÃO, 2000, p. 848).

50
Falla com o que Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, Presidente da Província do
Ceará, abriu a 2ª Sessão da 23ª Legislatura da Assembléia Provincial em 02.07.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro
II, 1877. p. 37.
46

Os registros de formação destas comissões, no Ceará, iniciam com a seca de 1844


a 1845. Ainda em 1825, ano de grande seca, Brasil (apud STUDART, 1997, p. 35-37)
comenta a respeito dos efeitos da seca de 1825, os quais motivariam o talvez primeiro dos
movimentos do Governo Imperial em auxílio aos cearenses oprimidos pela seca, ainda que
não fosse além de uma acanhada atitude, onde o governo “só em fins de 1826, ou já em 1827,
quando o mal passava, mandou alguma farinha para o Ceará, que não aproveitou”. Seria,
portanto, em 1844, que a ajuda imperial se daria de forma sistematizada, e segundo números
relatados por Studart (1997, p. 35-37), chegou a 527 contos de réis. Naquele ano afluíram
grandes correntes migratórias em busca de auxílio nas cidades litorâneas e em Fortaleza. Este
auxílio já seria algo previamente definido nos orçamentos anuais do Império, sob a letra ou
rubrica denominada para “Socorros Públicos”.

Nota-se, portanto, que a formação das comissões de socorros se deu paralelamente


aos movimentos de grande emigração de retirantes para os centros econômicos e de decisão
política, ou, em outros casos, quando de grande aglomeração de desabrigados em
determinadas localidades. O envio de ambulâncias de medicamentos e de socorros públicos,
em dinheiro ou em alimentos, se dava constantemente quando da ocorrência de flagelos
naturais, como epidemias e enchentes, calamidades mais freqüentes nos períodos entre-secas.
De forma geral, as comissões de socorros eram formadas por pessoas ligadas às câmaras
municipais, das quais participavam vereadores e médicos da municipalidade, e por pessoas
ligadas à segurança pública, como membros da guarda nacional, delegados de polícia e juízes
de direito. Segundo Sousa (2009), a assistência empreendida pelo Estado por meio das
comissões de socorros serviu de estratégia de inserção do próprio Estado imperial em
ambientes do sertão, até então dominados soberanamente pelos grandes proprietários rurais,
que exerciam o controle principalmente por meio da violência. A seca passou a ser um
elemento que sobrepujou a violência do “bacamarte” (VIEIRA JÚNIOR, 2004) como
principal problema a ser enfrentado no sertão cearense, mas que na verdade seria a principal
brecha para a inserção do poder oficial nos meandros na estrutura social sertaneja.

Como lembra Vasconcelos (1910, p. 78-79), os favores imperiais poderiam ser


auferidos pelos membros das elites locais por meio da participação em comissões de socorros.
O autor traz uma relação enviada pelo então Presidente da Província em novembro de 1862, o
bacharel José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, ao então Presidente do Conselho e
Ministério do Império, Pedro de Araújo Lima, Marquês de Olinda, quando recomenda o nome
47

de 49 pessoas de toda a Província do Ceará que teriam prestados serviços ao Império por meio
das mais diversas comissões, em especial das comissões de socorros, durante a grande
epidemia de Cholera-morbus que grassou no Ceará naquele mesmo ano. Por meio desta
relação vemos que a participação em comissões de socorros tornou-se um meio de alcançar
favores honoríficos do imperador D. Pedro II. Segundo Calmon (1935), os títulos honoríficos
tinha por fim reforçar cada vez mais a posição e o prestígio dos componentes das elites
políticas nas localidades. A obtenção de tais títulos, conseguidas também por meio da compra,
poderia ser alcançada igualmente pela participação na política de assistência imperial,
personificada em diversos tipos de ações e condutas, como a participação em comissões
médicas, de socorros, e em qualquer atitude em favor do Império. No sentido de “afidalgar os
homens, num fecundo instrumento de valorização de condutas” (CALMON, 1937, p. 295), os
títulos honoríficos serviram de instrumento para o fortalecimento de alianças e favores entre
grupos políticos em torno do projeto imperial. A obtenção destes títulos, de Cavaleiro,
Comendador ou Oficial das diversas ordens honoríficas instituídas pelo Império, dentre as
quais vemos mais diretamente relacionadas às comissões de socorros a Ordem da Rosa e a
Ordem de Cristo, se auferia pelos mesmos mecanismos de obtenção de favores políticos.

Portanto, a inclusão de membros das elites locais das diversas municipalidades do


interior do Ceará por meio da concessão de mercês honoríficas, seria, dentro do aspecto
funcional das comissões de socorros, mais uma forma de reprodução do poder oficial sobre os
poderes locais, onde o Estado Imperial objetivava impor-se e tornar-se presente nos espaços
que ainda eram preenchidos por outras configurações nas relações de poder, ganhando
adeptos por meio do “afidalgamento” de membros das elites locais. Dito de outra forma, o
Império esforçava-se por meio de diferentes mecanismos e ferramentas, atrair para si a
propriedade dos mais diversos tipos de violência, disseminando por meio da reprodução dos
seus interesses - e dos interesses dos que lhe influenciavam, em especial o capital
internacional – uma natureza de poder que lhe conferia a hegemonia do controle.

Estrategicamente, as comissões deveriam conter em sua formação as pessoas que -


pela influência que exerciam - poderiam promover a manutenção da ordem social,
sustentando a estabilidade de uma estrutura que interessava à elite política provincial. Por um
lado podemos deduzir que a nomeação de sujeitos de importância política nas localidades, que
pretensamente já teriam um compromisso com a ordem instituída, seriam as pessoas
preferidas para levar adiante o intento do Governo Provincial. Se levarmos em conta as
48

conhecidas relações de troca de favores políticos, que de forma geral constituíam o vínculo
entre o governo provincial e as municipalidades, seria de se prever que as diretrizes adotadas
entre a Presidência da Província e os membros da comissão atenderiam aos mesmos critérios.
Entendemos que a adoção dos socorros previa a coesão das elites locais em torno da
manutenção da ordem imperial, ao tempo em que o emprego do trabalho, como requisito para
a obtenção do socorro, e a distribuição dos socorros propriamente dita, seriam mecanismos de
refreamento do avanço retirante, assim como de seu controle e usufruto de sua força de
trabalho.

Tais informações nos orientam a concluir sobre da razão pela qual o Presidente
Estellita preferiu o coronel Silvestre Caminha em detrimento da permanência do Dr. Firmo de
Sabóia na Comissão de Socorros do Aracati. A influência enquanto grande latifundiário
aracatiense, sem contar o fato de que era um notório membro do partido Conservador, contou
pontos a favor dele quando as forças eram medidas entre ele e o juiz municipal. No
significado e proposta inicial da Comissão de Socorros, a presença do coronel Silvestre
favorecia a idéia primordial do Governo da Província, tendo em vista ser um homem de
ascensão sobre a massa retirante, e pelo que nos deixa entrever o presidente Estellita, poderia
oferecer mais ao governo provincial em relação ao controle dos adventícios.

Quando percebemos que o poder oficial do Estado luta por impor-se e reproduzir-
se no tecido social, consideramos que o poder assim o faz quando introduz mecanismos de
alcance nos recônditos das estruturas existentes de relações interpessoais e de dominação
local. Estas relações colocam o poder em uma perspectiva diluída e disseminada, subjugando
e combatendo outras formas de dominação, como as que existiam no sertão cearense, ou a
elas se aliando estrategicamente com o fim de impor-se. Portanto, concebemos as relações
sociais como relações de poder, concordando com Foucault (2006, p. 231), quando afirma que
na sociedade “há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de
força de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo”, e que para que as grandes
estruturas de poder, como as do Estado e da dominação de classe, possam se efetivar, “é
preciso dizer ainda que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de
Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder”
(FOUCAULT, 2006, p. 231). Para este filósofo, o poder deve ser entendido não como algo
que se detêm, mas como uma relação, diluída na sociedade, alcançando determinados estratos
sociais por meio de micro-poderes imersos nas relações interpessoais.
49

Dessa forma, é de se notar que o poder não se apresenta meramente sob a ótica da
repressão e punição. A própria forma de “assistência” empreendida pelo Governo Provincial,
quando nomeou as comissões de socorros, realça esta perspectiva. O entendemos segundo
determinados posicionamentos dos indivíduos, configurados como relações de poder, imerso
nas relações sociais. O poder não é simplesmente aquele elemento de punição, no sentido
negativo, mas deve ser entendido “como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não
sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, táticas, a técnicas, a
funcionamentos” (FOUCAULT, 1998, p. 26). Ele não é uma coisa, objeto que se tem ou não.
De acordo com as manobras e estratégias que os agentes sociais desenvolvem e delas se
utilizam, cada indivíduo insere-se em uma posição, segundo a qual age e constrói sua
possibilidade de negociação no social, assim como mobiliza também sua resistência.

A questão levantada em relação à saída do Dr. Sabóia pode muito bem ser
entendida como uma “manobra” do Governo Provincial, no sentido de melhor dispor de
aparelhos que pudessem promover a “assistência” aos retirantes, de forma a controlá-los,
impedir seu avanço e manter a ordem social . Esta “estratégia” tinha um fim duplo: incluir as
elites locais aracatienses como intermediários de sua relação com as classes pobres e reagir
frente ao avanço dos retirantes. Como veremos adiante, analisando os movimentos dos
adventícios na reivindicação da assistência alimentar, os retirantes em multidão passam a
constituir um sujeito político de força durante a seca de 1877-1880 (NEVES, 2000).

No que diz respeito a postura do presidente Estellita, a relação de proximidade


que tinha com o juiz Sabóia não permitiu-lhe de pronto sacar-lhe por definitivo. Portanto, o
remanejamento do juiz para a Comissão de Transporte para o centro pareceu,
estrategicamente, a atitude mais adequada para o Presidente da Província, não desamparando
totalmente o amigo, mas também permitindo que a influente família Caminha pudesse compor
a Comissão de Socorros, agregando assim, de certa forma, “mais valor” ao seu
empreendimento. Vencido por forças que não podia controlar, o Dr. Sabóia postula que o
presidente Estellita era um “barro mole”, levado pelas influências dos conservadores:

Que dilema horrível, Sr. Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessôa, que
victima innocente deixava sacrificar a política mesquinha de localidades, em tempos
distantes de epochas eleitoraes, e sem o menor interesse para a cousa publica! Mas
vos precisaes que o silencio se occupasse de vossa administração, e então deixastes
50

que o mar das paixões submergisse a frágil barquinha em que navegava o juiz de
direito, que era a sua independência e orgulho.51

Avaliando a ressentida fala do Dr. Sabóia, notamos que a atitude do Presidente


Estellita não pautou-se em uma posição sumariamente autônoma. As relações de força no
âmbito local do Aracati deram o tom da decisão do Presidente provincial. Admitindo que os
agentes sociais envolvidos e levados a confronto direto naquele cenário de calamidade
natural, agiram estrategicamente visando interesses os mais variados, objetivando prevalência
nas relações de poder, concordamos novamente com Foucault (1998, p. 26), quando afirma
que esse poder de que tratamos “se exerce mais que se possui, que não é o ‘privilégio’
adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições
estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são
dominados”.

Atentando para o interesse do coronel Silvestre Caminha em relação à sua


permanência na Comissão, poderemos notar que a revelia do Dr. Sabóia em relação à pessoa
do coronel na primeira nomeação da Comissão por si só não explica uma possível insistência
em ingressar na comissão. Contudo, na análise de documentos produzidos em outros
momentos, anteriores a aqueles de 1877, onde se foi necessária a formação de comissões de
socorros para acudir os desabrigados das enchentes do Jaguaribe, vemos de forma reincidente
a presença do coronel Silvestre como pessoa ativa nas comissões de socorros em períodos de
enchentes.
Na enchente do Jaguaribe ocorrida em 187352, formada uma comissão para acudir
com socorros os desabrigados do Aracati, o coronel Silvestre Caminha, então presidente
daquela comissão, nomeou seu irmão, o então delegado Raymundo Ferreira dos Santos
Caminha, para juntos procederem a distribuição de esmolas a 648 famílias, que somariam um
total de 2.694 pessoas. As estas pessoas foi distribuído o total de $800.000 (Oitocentos mil
réis) no dia nove de maio daquele ano. A verba foi cedida pela Mesa de Rendas do Aracati,
órgão que geria os recursos da Tesouraria da Fazenda Provincial na cidade.

Durante outra enchente do rio Jaguaribe, decretada em 22 de abril de 1875, uma


comissão de socorros foi novamente formada, com vistas a promover a assistência às famílias
51
O Cearense. Ano XXXI. n. 80. Publicações Solicitadas. Ao público. Fortaleza. 20.09.1877. p. 5.
52
Ofício da comissão de socorros do Aracati ao presidente Dr. Esmerino Gomes Parente, seguido de uma relação
de pessoas a quem foram distribuídas esmolas, em 09/05/1875. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Caixa 02.
51

que tiveram suas casas inundadas. Em ofício de 09 de maio, os membros agradeciam a


atuação do Governo Provincial:

Forão soccorridos as pessoas desvalidas desta cidade e seus subúrbios com toda
economia possível, como Va. Exa. Recommendou. E por certo prestou Va. Exa.
grandiozo serviço a esta comarca com as providencias que acertadamente tomou: o
53
que é irrefragável, e todos fazem justiça de reconhecel-o.

O serviço prestado à comarca consistiu no envio de, primeiramente, um conto de


réis, que foi distribuído entre as famílias afetadas, recebendo cada uma a quantia de dois mil
réis. Posteriormente, em um outro ofício, a comissão agradece outros envios, de onde não
auferimos valores, mas que foram igualmente distribuídos entre os desabrigados, que por sua
vez estavam alojados nas igrejas da cidade. A comissão informou que as muitas famílias já
haviam retornado às suas casas, o que se dava de forma ordeira e tranqüila, tendo tido a
comissão êxito em sua missão.

O que se percebe, pelo menos da parte dos membros da comissão, muitos dos
quais compunham a Câmara Municipal, e entre eles o coronel Silvestre Caminha e seu irmão
Raymundo Ferreira dos Santos Caminha, é que a ação da comissão tinha como função
primordial a manutenção da ordem, a não irrupção de um quadro desfavorável ao equilíbrio
social. Por outro lado, a assistência às famílias atingidas possivelmente serviria como um
embrião para a formação de um vínculo entre o assistente e o assistido.

Percebe-se ainda que compor aquela comissão permitia gerir recursos de forma
mais livre, distribuindo a determinados grupos de pessoas que se tinha em vista ajudar. Esse
tipo de relacionamento que se afigurava entre os membros da comissão e os “desvalidos”,
vítimas da calamidade natural, reproduzia laços de sujeição ou de compadrio, que como
explicita Leite (1994, p. 84), promoviam deveres recíprocos entre os sujeitos vulneráveis às
calamidades naturais, sobremaneira as estiagens. Sousa (2009, p. 58) lembra que durante o
século XIX, as enchentes e as secas foram as duas principais promotoras de assistência por
meio de socorros públicos diretos, que até a seca de 1877, se apresentavam como medidas de
distribuição direta de suprimentos aos desvalidos atingidos pelas calamidades naturais, sendo

53
Ofício da comissão de socorros do Aracati ao presidente da Província, o Exmo. Sr. Dr. Francisco d’Assis
Oliveira Maciel, seguido de uma relação de pessoas a quem foram distribuídas esmolas, em 09/05/1875. In.:
APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-
1889. Caixa 02.
52

que na grande seca do século XIX, tal auxílio foi sendo substituído pelo socorro público
indireto, onde o trabalho tornou-se o intermediador entre o socorrido e o socorro, na forma de
alimentos, assistência médica e vestuário (SOUSA, 2009, p. 151).

O coronel Silvestre naquele ano de 1877, já era um condecorado com o título de


Cavaleiro da Ordem de Cristo54. Assim como outras benesses honoríficas, este título era
concedido a pessoas que prestavam relevantes serviços ao Império, e o coronel Silvestre
enquadrava-se neste quesito. Por isso, é possível propormos que o prestígio do coronel no
Aracati foi determinante para sua entrada na comissão, e que o mesmo possivelmente já havia
percebido as vantagens de compor um órgão de tal natureza. O Dr. Sabóia, em seu ataque aos
Caminha, buscou relevar este aspecto, quando afirmou que sua luta era contra aqueles que
detinham tal poder em relação às pessoas pobres da cidade e aos sertanejos. Dizia ele em
carta:

Devo ainda dizer que uma das cauzas que me indispoz contra os conservadores, foi
o ter eu, de ordem do presidente, mandado uma escolta ao Palhano, em procura dos
criminosos que lá se acoutão, sob a proteção dos homens que dispoem dos votos no
Aracaty! Deste facto era o presidente inteirado.
Vendo os homens do Aracaty que eu desprezava os seus feitos, e que só me
occupava de minhas duplas obrigações, poserão em contribuição os protectores da
capital, e lhes declaravão – ou nós, ou juiz de direito!55

Ainda segundo o ofício enviado pela Câmara Municipal do Aracati56, nota-se que
possivelmente o Dr. Sabóia tenha trilhado caminho diferente daquele a que os políticos
aracatienses tenham se acostumado a tomar nos rumos da vida política local. A denúncia de
desvio de gêneros da Comissão de Transporte foi apenas uma das várias denúncias feitas pela
Câmara. Dentre elas, a que mais causou tumulto foi em relação à prisão de uma escrava
chamada Umbelina, fato bastante contestado por ter prejudicado “um distinto cidadão” da
localidade. Segundo o próprio Dr. Sabóia, suas práticas diziam respeito simplesmente ao
cumprimento do seu dever:

Tranquillo em minha consciencia, e vendo por outro lado que não podia arcar com o
infortunio, entregava-me com toda a dedicação ao meu trabalho, procurando

54
NOGUEIRA, Paulino. Relação dos cearenses titulares e condecorados. Revista do Instituto do Ceará. Anno
XV. Tomo XV. Fortaleza:Typ. Minerva, 1901. p. 295.
55
O Cearense. Ano XXXI. n. 80. Publicações Solicitadas. Ao público. Fortaleza. 20.09.1877. p. 5.
56
Ofício do Paço da Câmara Municipal do Aracaty em sessão extraordinária de 25/09/1877, In: APEC. Fundo:
Câmaras Municipais. Série: Correspondências Expedidas. Local: Aracati. Data: 1838-1894. Caixa 93.
53

esquecer nelle a tibieza, senão pusilanimidade do prezidente e a injustiça dos


homens.57

Portanto, a queda do juiz também estava ligada diretamente ao jogo da política


local e também ao posicionamento da elite aracatiense frente a um agente do poder que
interferia em seus interesses. A já sentida influência da família Caminha, e a contestação
generalizada da Câmara municipal, tendo como seu presidente um membro da Comissão de
Socorros, o coronel Guilherme Pereira Azevedo, nos mostra que a relações internas à
estrutura social, não necessariamente são definidas num sentido centro-periferia, partindo de
uma estrutura estruturante, que define todas as relações sociais.

O juiz municipal, enquanto agente do poder oficial que tinha por função promover
a ordem e a justiça, empreendia suas ações não sem conflito e negociação com os membros da
elite local. A própria Comissão de Socorros, que tinha igualmente o dever primordial de
promover a intermediação entre a massa retirante e o Estado, promovendo a ordem e a
estabilidade social, também não promovia suas práticas em desacordo com duelos e conflitos
entre os agentes sociais. Entendemos que a estrutura social cearense da segunda metade do
século XIX, sobre a qual descrevemos brevemente neste primeiro capítulo, que supostamente
regia todas as condutas e pensamento dos agentes sociais nela inseridos, não se constituiu
segundo um núcleo definidor das relações sociais, no sentido que a estrutura definiu toda e
qualquer ação humana. A sociedade imaginada (CHAVES, 1995) por um grupo restrito e
dominante, não se construiu segundo a sumária perspectiva desse grupo e nem se construiu
sem a ação resistente e transformadora dos demais agentes sociais, sejam de grupos de menor
expressão da classe dita dominante, ou dos agentes da classe dita dominada.

Entendendo a formação das comissões de socorros como uma tentativa de


manutenção do status quo, como já referido anteriormente, não necessariamente significa
dizer que a estrutura social que se quer manter, se manterá segundo uma determinação que
parte de uma ordem pré-estabelecida. Em outras palavras, uma instância do poder não dá a
palavra final sobre como a estrutura social irá configurar-se, levando-se em conta que a
interferência dos agentes sociais também é determinante na configuração da estrutura social.
Esta possibilidade pode ser vista na afirmação de Albuquerque Júnior (2007, p. 69-70) :

57
O Cearense. Ano XXXI. n. 80. Publicações Solicitadas. Ao público. Fortaleza. 20.09.1877. p. 5.
54

As estruturas são as formas de regularidade dos acontecimentos, são as regras


imanentes às próprias práticas sociais e que as direcionam em dados sentidos
repetitivos, mas que não impedem o acontecimento desviante, a fuga esquizóide, a
metamorfose inesperada, o acaso instaurador de novos processos. Toda a história é
feita de acontecimentos, mas estes se conectam em estruturas que são, por seu turno,
indiciadas por estes eventos e possibilidade de compreensão de seu acontecer.

As próprias formas como a Comissão do Aracati irá se constituir no decorrer da


seca, dizem respeito mais a um “fazer-se”, onde as influências, interesses, ações e
representações de diversos agentes sociais vão formando as relações sociais e a estrutura
social. A formação inicial da comissão do Aracati foi igualmente um “fazer-se”, não
previamente estabelecido, assim como os seus procedimentos, diante da sempre surpreendente
massa retirante. Houveram os nomeados, mas também os que se fizeram nomear. A estrutura
social que um grupo da elite cearense previa construir, e que teve na seca de 1877 a 1880 um
momento determinante, se fez e se realizou tendo nas ações tanto das elites interioranas,
concordantes ou não com este projeto, quanto nas ações da multidão retirante, apercebida de
sua capacidade de pressão sobre os órgãos de governo e sobre as elites locais e provinciais,
elementos transformadores, que contribuíram de certa forma para a configuração estrutural
resultante daquele período de calamidade, elementos de influência no jogo de interesses
constituinte da formação de uma sociedade.

A forma como percebemos a estrutura não se dá por meio da ação deste ou


daquele grupo, isolado e específico, mas num conjunto de disputas, avanços e retrocessos; na
negociação entre os agentes envolvidos. Entendemos, portanto, por meio da análise da
Comissão de Socorros do Aracati, que as relações sociais e de poder que constituem e formam
em última instância o que se entende como estrutura social cearense do século XIX, são um
“fazer-se” de seus agentes sociais, tanto dominantes quanto dominados, e que portanto, tal
estrutura social não é algo acabado por uma única imposição, mas algo negociado, disputado,
rejeitado, contrabalanceado e não concluído. Nisto, temos em comum acordo com Sahlins
(2003, p. 9) uma percepção de que numa estrutura social, tanto econômica e política quanto
simbólica e de sentido, a imposição de signos e significados, cujos sentidos pretendem ser
impostos de algumas pessoas para outras nas relações de força, encontra obstáculos subjetivos
e objetivos no processo de encontro entre a estrutura e os agentes à qual se destina
condicionar. Subjetivamente, porque o uso motivado dos signos pelas pessoas se dá, de
forma corrente, para seus projetos próprios; e objetivamente, porque os significados
encontram os diferentes agentes sociais, imersos em diferentes espaços, ou em cosmos
55

diversos, capazes de contradizer os sistemas simbólicos que o descreveriam. Tal uso motivado
dos significados colocaria em distinção o “interesse” e o “sentido” da coisa significada. “Este
risco subjetivo consiste da possível revisão dos signos pelos sujeitos ativos em seus projetos
pessoais” (SAHLINS, 2003, p. 186), sendo então que, o valor conceitual adquire um valor
intencional, que poderá ser diferente do valor convencional. Portanto, teríamos dois aspectos
da estrutura social, com historicidades diversas: uma “estrutura prescritiva” (SAHLINS, 2003,
p. 13), a qual tem por tendência “assimilar as circunstâncias a elas mesmas, por um tipo de
negação de seu caráter contingente e eventual” sendo que para esta estrutura nada é novo ou
pelo menos, a conjuntura é valorizada por continuidade e semelhança com o sistema
instituído; há, portanto, a “projeção” da ordem vigente, repetição e efetivação. Há também a
estrutura performativa, onde as diferenças promovidas pelas circunstâncias contingenciais
ganham valor e força por seu afastamento em relação aos arranjos existentes, “podendo as
pessoas então agir sobre esses arranjos para reconstruir suas condições sociais” (SAHLINS,
2003, p. 13).

Entendido desta forma, o sentido imposto ao ideal de Comissão de Socorros


Públicos encontraria, nos diferentes espaços da estrutura social, diferentes interesses, o que de
forma gradual no decorrer da grande seca do século XIX, colocaria em risco o valor e o
significado atribuído às comissões de socorros públicos. Segundo Foucault (1979, p. 225) há
ainda um elemento que define as relações de poder: a “resistência efetiva das pessoas”.
Veremos como a partir de outubro de 1877, outros agentes sociais passam a representar uma
força diversa e controversa em relação à premissa oficial e primordial da Comissão de
Socorros do Aracati. A partir deste momento, a comissão recebe em seu interior outros
indivíduos que, por interesses diversos, divergem da visão em relação ao propósito iniciador
da Comissão de Socorros. A Comissão, de forma perspicaz, passa a apresentar outros
elementos que remetem a uma natureza diferenciada de poder. Uma terceira força passa
também a compor de forma mais decisiva este quadro de disputa: os retirantes, cujo número
crescente faz surgir uma multidão que começa a perceber-se como elemento forte em relação
à distribuição de socorros, e que assume práticas que causarão os primeiros clamores
atemorizados da elite aracatiense em relação à ordem social local.
56

1.3. Resistências e estratégias no final de 1877: a pressão retirante e os comerciantes na


Comissão de Socorros.

Em setembro de 1877, a Comissão de Socorros reformulou-se substancialmente


no seu quadro de membros. O Barão de Mecejana, o Dr. Miguel Joaquim de Almeida e o
comerciante João A. Bussoms solicitaram suas saídas. Foram acrescentados dois membros, o
promotor Francisco Fernandes Vieira e o Reverendo João Francisco Pinheiro em 10 de
setembro. Sendo ainda composta pelo coronel Silvestre Caminha e pelo vereador e presidente
da Câmara Municipal, Guilherme Pereira Arruda, a Comissão receberia ainda o Dr. Augusto
Gomes Tavares, por ordem do presidente Estellita58.

O mês de outubro marcou uma nova reformulação. No dia 2 de outubro, o coronel


Silvestre Caminha solicitou ao Presidente da Província sua saída da Comissão, sendo atendido
no dia 3, assim como o Reverendo João Francisco Pinheiro. Suas vagas foram, dias depois,
preenchidas pelo Capitão Coriolano Francisco Ramos e pelo “agente consular da magestade
britânica”, George Jacob Brummischveiler59.

Não há uma menção específica da causa da saída do coronel Silvestre Caminha.


Entretanto, nos obituários produzidos pelo vigário João Francisco de Sá60, dos sepultamentos
realizados no Cemitério Público do Aracati, notamos que uma tragédia familiar se abateu
sobre a família Caminha naquele ano de 1877. No início de outubro, consta o sepultamento de
um dos irmãos Caminha, João Ferreira dos Santos Caminha. Esta não seria a única perda para
a família do coronel Silvestre durante a seca, pois em 27 de novembro de 1878, faleceria
também a mulher de seu irmão, Raymundo Ferreira dos Santos Caminha, a senhora Maria
Firmina Caminha. Dona Maria Firmina era mãe do menino que se tornaria posteriormente o
famoso escritor cearense Adolfo Caminha (AZEVEDO, 1997, p. 20). Sabemos ainda que o

58
Ofício no 3003, de 17 de setembro de 1877,do presidente da província, desembargador Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
59
Ofícios no 3573, de 03 de outubro de 1877; e no 3645, de 06 de outubro de 1877, emitidos pelo presidente da
província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati. Fundo:
Governo da Província. Série: Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202; Cf. também Ofício de no
62 da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente Caetano Estellita Cavalcanti Pessôa, em 10 de outubro de
1877. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data:
1877-1889. Caixa 02.
60
PALÁCIO DIOCESANO DE LIMOEIRO DO NORTE. Livro de Óbitos no 10 da Paróquia de Aracaty, criada
em 20/06/1780. Assentos de 01/04/1877 a 07/04/1878.
57

coronel ainda manteve-se no Aracati, como nos mostram as fontes produzidas pela Câmara
Municipal. A dispensa do coronel Silvestre abriu caminho para que o capitão Coriolano, que
também atuava no comércio, e o suíço Brummischveiler, pudessem fazer parte da Comissão.

Apesar de amplamente reformulada, a Comissão de Socorros do Aracati


continuou a produzir sua documentação tendo em vista mostrar ao Presidente da Província
que tudo ia muito bem. No que tange também aos documentos da Presidência da Província, o
mesmo quadro de normalidade das atividades se mantêm. Esta nova formação da Comissão
de Socorros do Aracati mantinha o expediente procurando, semelhantemente à formação
anterior, transmitir à presidência a imagem de um órgão de normalidade e que estava
desempenhando fielmente sua missão.

Segundo a proposta das fontes oficiais, vemos que a utilização da mão-de-obra


retirante continuava a ser uma prática constante. Em 21 de outubro, a Comissão anunciou o
lançamento da pedra fundamental da Casa de Caridade na cidade do Aracati, um momento
planejado pela própria Comissão, que viria a ser mais um símbolo da caridade pública. A
construção seria empreendida com a mão-de-obra retirante, e segundo seus membros: “devido
aos esforços da commissão de soccorros d’esta cidade"61.

Contudo, a situação aracatiense vinha se tornando cada vez mais onerosa para a
Comissão de Socorros. O crescente número de retirantes, chegando naquele ano à proporção
que não mais se repetiriam durante os dois anos seguintes, começava a atemorizar a elite
local. O aumento vertiginoso da emigração verificou-se no mês de setembro (THEOPHILO,
1922, p. 113). A seguir, temos o quadro demonstrativo das quantidades mensais de gêneros
enviados para a Comissão de Socorros do Aracati, nos meses de abril a dezembro de 1877:

61
Anexo ao Ofício de no 66 da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente Caetano Estellita Cavalcanti
Pessôa, em 27 de outubro de 1877. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas localidades. Data: 1877-1889. Caixa 02.
58

TABELA 1 – RELAÇÃO DE GÊNEROS ENVIADOS PELA COMISSÃO DE


TRANSPORTE POR MAR À COMISSÃO DE SOCORROS DO ARACATI, ENTRE
OS MESES DE ABRIL A DEZEMBRO DE 1877*:

MÊS / ANO QUANT DISCRIMINAÇÃO


150 Sacos de farinha de mandioca
50 Sacos de milho
Abril / 1877
25 Sacos de feijão
25 Sacos de arroz
50 Sacos com feijão
100 Sacos de farinha de mandioca
Maio / 1877
10 10 sacos de arroz pelado
20 Amarrados de carne seca
23 Sacas de arroz
32 Sacas de farinha
02 Sacas de feijão
Junho / 1877 01 Saca de milho
06 Barricas de bacalhau
01 Fardo c/ 24 peças de pano de algodão
01 Fardo com 25 peças de pano de algodão
01 Saco c/ feijão de 60 quilos
02 Sacos de arroz c/ casca de 50 quilos
08 Sacos de milho
Julho / 1877
4.800** Quilos de arroz s/ casca
2.250 Quilos de farinha
1.200 Quilos de milho
50 Sacos de farinha de mandioca de 42 a 47 quilos
25 Sacos de milho de 48 quilos
80 Sacos de arroz pilado de 60 quilos
01 Fardo c/ 25 peças de pano de algodão
Agosto / 1877 35.100 Quilos de farinha
9.600 Quilos de arroz
3.000 Quilos de milho
1.800 Quilos de feijão
05 Paneiros de farinha de tapioca
22.500 Quilos de farinha
12.000 Quilos de arroz
8.000 Quilos de carne do sul
31 Barricas de bacalhau
Setembro / 1877
20 Paneiros de farinha de tapioca
500 Sacos c/ farinha de 42 a 47 quilos
80 Sacos de arroz pilado de 59 a 71 quilos

Outubro / 1877 18.000 Quilos de farinha


136.990 Quilos de farinha
33.840 Quilos de arroz
25.800 Quilos de milho
9.300 Quilos de feijão
50 Arrobas de farinha de milho
Novembro / 1877 310 Atados de carne do sul
104 Barricas de bacalhau
100 Peças de algodãozinho
40 Peças de chita
30 Peças de americano
30 Peças de madapolão
59

MÊS / ANO QUANT DISCRIMINAÇÃO


54.000 Quilos de farinha
13.000 Quilos de milho
18.000 Quilos de arroz
13.800 Quilos de feijão
175 Atados de carne do sul
Dezembro / 1877
3.000 Sacos com farinha de 42 a 47 quilos
100 Sacos de feijão
200 Sacos de arroz
200 Sacos de milho

Fonte: documentação da Comissão de Socorros Públicos do Aracati, da Comissão de Compras de Gêneros e


Transporte por Mar, instalada na capital, Fortaleza, e do Governo Provincial. In: APEC - Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades (1877-1889). Caixa 02; Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. (1877-1889). Caixa 18; e Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências expedidas. (1877-1889). Caixa 26. Livro 210 (antigo Livro 135-B).
** Face às constantes reclamações do recebimento de sacas desfalcadas no peso por parte da comissão, o
governo convencionou prestar contas, a partir do mês de Julho, segundo o peso dos cereais e não mais por
quantidade de sacas, acontecendo esta segunda conferência somente em casos isolados a partir de então.
Portanto, nos preocupamos em distinguir os alimentos enviados por quilo e os enviados por sacas.

Pela tabela, podemos notar um tremendo salto do volume de gêneros enviados


entre os meses de outubro e novembro. No dia 19 de novembro, as dificuldades que a cada dia
aumentavam na administração dos gêneros e na conduta em relação aos retirantes chegados ao
Aracati foram relatadas pela comissão:

As difficuldades incalculaveis em que actualmente luta esta commissão para acudir


de prompto a perto de trinta e cinco mil indivíduos que reclamao diariamente meios
para subsistência, é o que leva a esta commissão pedir a V. Excia. Providências no
sentido de mitigar a sorte d’esses infelizes que, abandonando os seos lares, procurão
um lugar buscando a remissão de suas necessidades.
Os minguados soccorros de que dispõe esta commissão em face de uma população
de emigrados que se condensão de dia para dia, vai se tornando um obstáculo para o
desempenho da sua missão.
Para esta localidade, Exmo. Snr. tem affluido uma grande parte de população dos
sertões desta província e de outras limitrophes, victimas do flagello da secca, que, na
persuasão de encontrar remédio a seus males, perde logo a illusão.
Os recursos remettidos ultimamente por V. Excia já forão consumidos, de sorte que
tem-se recorrido ao encarregado da remessa de gêneros para o centro, nesta cidade,
afim de satisfazer-se a tão grande numero de famintos; não se podendo contar
sempre com taes recursos, visto como são os mesmos destinados para outras
localidades.
Compenetrada esta commissão de que não lhe é possível chegar aos seus fins sem
dispor de meos promptos, espera que V. Excia, attentendo a verdade do que fica
entendido, se dignará providencialmente como o caso urge.62

62
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente Caetano Estellita Pessôa, em 19 de novembro de
1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data:
1877-1889. Caixa 02.
60

O aumento do volume de gêneros enviados tinha por meta atender à grande massa
retirante já alojada na cidade. Contudo, os alimentos enviados já não eram suficientes para
acudir à população emigrada.

Outro dado que a tabela nos permite analisar é o envio de peças de pano para a
confecção de roupas para os retirantes, e em outros momentos, outras já confeccionadas,
como as “chitas” e as peças de “madapolão” era enviadas, tendo em vista cobrir a nudez dos
retirantes que se expunham nas ruas. Verifica-se aqui o estranhamento em relação aos corpos
dos retirantes - nus, cadavéricos, disformes - como o motivador para vestir os famintos,
havendo momento em que até mesmo sacos de farinha e de arroz eram utilizados para
confeccionar roupas para os pobres emigrados. Semelhante ao que mostra Barbalho (2005, p.
147), quando trata desse estranhamento na capital, Fortaleza, ressaltando que no imaginário
das elites do Ceará naquele contexto, “aqueles corpos nada lembravam o ideal de beleza do
corpo clássico ou do corpo burguês”.

O crescente número de retirantes dava-se também pela impossibilidade de a


Comissão de Transporte para interior proceder ao envio constante de gêneros para as regiões
mais distantes, além do fato de ter que providenciar do seu estoque de gêneros os alimentos
que a Comissão de Socorros iria distribuir. Além disso, os retirantes, cansados de esperar pela
demora na remessa de gêneros para o interior, deslocavam-se das localidades mais
interioranas, dirigindo-se para o litoral. A demora no envio de gêneros, e muitas vezes o não
envio , eram as principais reclamações dos membros das comissões de socorros do interior:

Os legumes remetidos, havendo transporte he o melhor meio de salvação, porem se


estiver difícil o transporte, vindo dinheiro sendo o porto de Moçoro distante daqui
trinta léguas, fácil he a compra de gêneros, e tudo mais a que se seguirá. Qualquer
demora nos soccorros que lembramos a V. Exa. é prejudicial aos indigentes que
segundo o estado em que si axão, a não serem soccorridos aparecerão não poucas
63
victimas [...]

O andamento “normal” das atividades, que perpetua até outubro de 1877 nas
correspondências da Comissão, passa a ter seu lugar ocupado nos documentos pela
preocupação cada vez maior de seus membros, assim como dos demais cidadãos do Aracati,

63
Ofício dos srs. Joaquim Chavier Maia e Fco. Rodrigues da Silva, da Povoação do Sacco de Orelha (atual
Ererê, município do médio Jaguaribe) ao Presidente da Província, Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti
Pessoa, em 04 de Novembro de 1877. In: FERREIRA NETO, Cicinato. A tragédia dos mil dias: a seca de
1877-79 no Ceará. Op. cit. p. 101.
61

com o assustador número de retirantes que dia a dia chegava à cidade. Em toda a Província, o
movimento da emigração para o litoral se acentuou entre os meses de outubro a novembro
(THEOPHILO, 1922, p. 129). Em correspondências enviadas aos jornais de Fortaleza, alguns
aracatienses apresentavam o espanto dos citadinos diante de tão volumosa procissão, como
mostrou um escritor ao jornal O Cearense:

Sem força publica para conter tam grande nummero de emigrantes, sem meios de
fazer parar a corrente de emigração, sem recursos, com possa satisfaser a
necessidade de todos, vive a laboriosa população do Aracaty entre aos mais
horríveis presentimentos. Para mais de 35 mil emigrantes soberbão já nas ruas, sem
64
casas, semi-nus, mortos a fome, a pedir pão.

No mesmo número do periódico que aqui relatava sobre a situação aracatiense, há


a publicação de uma representação feita pela “gente grauda”65 do Aracati, assinada por 96
cidadãos aracatienses, na maioria comerciantes, ao ainda presidente Caetano Estellita, que
seria substituído no dia 23 de novembro pelo Conselheiro João José Ferreira de Aguiar. Nela,
vê-se em tom desesperado o temor por um completo aniquilamento da cidade, sucumbida pela
desordem. Os membros da elite local também assumem um tom reivindicatório do dever do
governo de prover sua segurança, frente a um tão grande número de retirantes:

Exm. Sr. – Se nos parece impossível que a cidade do Aracaty deva continuar por
mais tempo aterrada por esse pezadello, será entretanto logico que elle se converterá
em dispertar terrível, se não houverem promptas e efficazes medidas. Cumpre que o
governo provincial lance suas vistas sobre essa immensidade de filhos, pertencentes
a este torrão fertil e abençoado, quando bafejado pela mão da Providência, e nos de
o remedio. Se é inexequivel que a Commissão de soccorros publicos possa continuar
a distribuir diariamente por longos mezes 600, 800, 1.000 saccas de viveres; si e
impossível que possamos ter uma força de 300 a 400 praças que nos offereção
algumas garantias; e o governo não pode fazer parar a corrente de emigração dos
centros para o litoral, uma vez que se torna impossível o transporte de generos para
o centro; que ao menos facilite a sahida d’esses bandos em barcos, que já tem sido
offerecidos a commissão de soccorros, que faça vir a este porto transporte que os
possão conduzir aos centenares para essas províncias do sul, aonde lhes são mais
66
faceis os recursos.

O terror, medo e repulsa são as representações mais freqüentes dos membros da


elite cearense neste contato já inevitável com a grande multidão retirante. Interessante
notarmos que a elite aracatiense preocupava-se essencialmente com a ordem e a segurança,
diferentemente do “duplo caos” (CHAVES, 2002, p. 56) temido pela elite fortalezense, que
dizia respeito à desordem social e a proliferação de epidemias. Tal temor foi acentuado

64
O Cearense.Anno XXXII. n. 101. Noticiário. Situação do Aracaty. Fortaleza. 2.12.1877. p. 3.
65
O Cearense.Anno XXXII. n. 102. Noticiário. A fome no Aracaty. Fortaleza. 6.12.1877. p. 3.
66
Idem.
62

quando um grupo de retirantes, possivelmente cônscios de seu poder enquanto número


elevado e insatisfeitos com insuficiente distribuição de gêneros, invadiu o mercado público da
cidade no dia 8 de dezembro. Tanto a Comissão de Socorros como a Câmara relataram tal
incidente67, clamando pelo envio de mais praças para reforçar a segurança e resguardar a
propriedade comercial. Enquanto que a Comissão de Socorros informava um número de
novecentos retirantes, a Câmara informou um número de dois mil invasores do mercado, que,
segundo este mesmo órgão, não efetuaram de forma plena a pilhagem do mercado, devido à
intervenção policial que dispersou a turba.

O alarme por parte da elite aracatiense e o ataque dos retirantes como forma de
pressão, mostram aquilo que nos lembra Neves (2005, p. 123), quando afirma que a “luta
política é, em igual medida e ao mesmo tempo, a luta por impor sentidos aos espaços na
cidade”. Esta perspectiva ganha contornos interessantes, se atentarmos para o fato de que os
retirantes invadiram o mercado, e não as pagadorias e armazéns da Comissão de Socorros. É
possível que os retirantes já percebessem que atingir o mercado seria atingir e pressionar a
classe comercial aracatiense, mostrando diretamente a ela a gravidade da presença da
multidão retirante como sujeito político ativo nas relações de força.

Esta pressão, possivelmente, fez com que o então presidente da província naquele
dezembro de 1877, Conselheiro João José Ferreira d’Aguiar, acatasse a solicitação dos
cidadãos aracatienses em promover de forma sistemática a reemigração dos retirantes, via
porto do Fortim, para outras províncias do Império. No final daquele mês, o Presidente
requisita à Comissão uma relação de nomes de retirantes que poderiam ser reemigrados68. A
reemigração no Aracati iniciaria em janeiro de 1878, a qual nos dedicaremos no próximo
capítulo.

Diante do crescente número de emigrados, desde junho daquele ano de 1877, o


Presidente havia autorizado a Comissão de usar da compra de gêneros aos comerciantes
locais, assim como tomar empréstimos aos mesmos para o pagamento das custas inerentes ao
67
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente João José Ferreira d’Aguiar, em 09 de dezembro de
1877. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data:
1877-1889. Caixa 02; e Ofício do Paço da Câmara Municipal de Aracaty, em sessão extraordinária, ao
Presidente João José Ferreira d’Aguiar, em 10 de dezembro de 1877. In: APEC. Fundo: Câmaras Municipais.
Série: Correspondências Expedidas. Local: Aracaty. Data: 1857-1912. Cx. 14.
68
Ofício no 6600, de 27 de dezembro de 1877, do presidente da província, Conselheiro João José Ferreira
d’Aguiar, à comissão de socorros do Aracati. In.: APEC - Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202
63

armazenamento e contratação de pessoal. No período em que se deu a passagem de governo, a


falta de gêneros para o interior da Província forçou a multidão retirante a deslocar-se para o
litoral. No Aracati, a compra de gêneros em virtude deste avultado número de emigrados se
tornou uma medida constantemente utilizada.

Dos meses de outubro a dezembro, as compras feitas aos comerciantes locais


tornou-se uma prática corriqueira no exercício da Comissão de Socorros. Na tabela a seguir
temos as compras realizadas entre os meses de outubro a dezembro de 1877:

TABELA 2 – COMPRAS REALIZADAS PELA COMISSÃO DE SOCORROS


PÚBLICOS À PRAÇA COMERCIAL DO ARACATI, SEGUNDO PRESTAÇÃO DE
CONTAS DA MESMA COMISSÃO, DE OUTUBRO A DEZEMBRO DE 1877:

DATA FAVORECIDO SAQUE JUNTO À REFERENTE A:


(COMERCIANTE / TESOURARIA DA QUANT. DISCRIMINAÇÃO
CASA COMERCIAL) FAZENDA (EM RÉIS)
27/10/1877 Melquíades da Costa (Valor não informado) 24 Sacas de arroz (1.800 Kg)
Barros 10 Sacas de milho (750 Kg)
22/11/1877 Singlehurst&Cia 2.072,820 189 Sacas de milho
4 Sacas de arroz
23/11/1877 Singlehursth&Cia 1.822,000 20 Sacas de arroz
4 Barris de bacalhau
6 Caixas c/ bacalhau
11 Fardos de carne
60 Sacos de milho
06/12/1877 João da Silva Villar 2.660,000 280 Sacas de Farinha
08/12/1877 Singlehurst&Cia 1.140,000 120 Sacas de farinha de
mandioca (801 lts cada)
08/12/1877 Singlehurst&Cia 2.850,000 300 Sacas de farinha
14/12/1877 Luiz Ribeiro 5.000,000 500 Sacas de farinha
Cunha&Sobrinhos
17/12/1877 Luiz Ribeiro 4.900,000 500 Sacas de farinha
Cunha&Sobrinhos
18/12/1877 Antonio da Silva Villar 2.940.000 300 Sacas de farinha
18/12/1877 Pedro da Silva Nava 6.204,500 100 Sacas de farinha
60 Fardos de carne seca
100 Barricas de bacalhau
18/12/1877 Antonio da Silva Villar 1.528,800 156 Sacas de farinha
19/12/1877 Luiz Ribeiro 4.900,000 500 Sacas de farinha
Cunha&Sobrinhos
20/12/1877 Luiz Ribeiro 5.880,000 600 Sacas de farinha
Cunha&Sobrinhos
21/12/1877 Pedro da Silva Nava 544,000 10 Fardos de carne charqueada
Fonte: Prestações de contas da Comissão de Socorros, de outubro a dezembro de 1877. In: APEC - Fundo:
Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Caixa 02.
64

O total em dinheiro é de $42.442,120 (Quarenta e dois contos quatrocentos e


quarenta e dois mil cento e vinte réis). Se atentarmos somente para o mês de dezembro,
verificaremos que foram compradas 3.356 sacas de farinha segundo estas prestações de
contas. Se tomarmos por cálculo o peso que comumente se atribuía à saca de farinha de
mandioca, que variava de 42 a 47 quilogramas, teríamos um número total de 140 à 158
toneladas compradas aos comerciantes da praça do Aracati somente no mês de dezembro.
Comparando com os dados da tabela 1, atentando para os itens mais volumosos, que eram os
cereais, somando as quantidades de farinha, arroz, feijão e milho enviados pelo Governo
Provincial naquele mês de dezembro de 1877, não chegaremos a 100 toneladas (98.800Kg).

Nos meses aqui compreendidos, as fontes oficiais não nos dão conta de alguma
irregularidade nestas compras. Entretanto, o Presidente Estellita já expressara preocupação a
respeito da forma de distribuição e da quantidade de gêneros distribuídos. Em agosto, o
Presidente já alertava sobre a excessiva distribuição de gêneros69, não sendo esta a primeira
vez que recomendava a economia na assistência aos indigentes, como já vimos anteriormente.

Já na gestão de João José Ferreira d’Aguiar, no mês de novembro, mesmo em face


da escassez de gêneros para envio, o Presidente acentuou o volume de gêneros enviados ao
Aracati. Entretanto, vemos que o uso da compra de gêneros feita aos comerciantes continuou
sendo uma medida constante, e em dezembro alcançou cifras altíssimas. Já em janeiro de
1878, mediante solicitação da prestação de contas da forma como se estava distribuindo os
gêneros na cidade, a Comissão do Aracati escreveu ao presidente Aguiar, detalhando a
respeito do número de retirantes empregados nas obras públicas e seu consumo semanal de
gêneros:

[...] augmentando diariamente o numero de indigentes emigrados, maiores têm se


tornado as despêzas para acorrer as necessidades dos mesmos emigrados. Calcula
esta commissão que n’esta cidade, em Passagem das Pedras, José Alves e Corrego
da igreja, tem para mais de cincoenta mil pessoas e para isto funda-se o numero de
trabalhadores. Trabalhão actualmente n’esta cidade 8.789 pessôas; em Passagem das
Pedras, 1054; Corrego da Igreja, 130, e José Alves, 120; Total de 10.093
trabalhadôres.(...) Armazem da rua direita pagou na sexta feira, 4 do corrente, mea a
3.580 trabalhadores, despendeu 183 saccas com farinha, armazém n. 2 pagou a
2.482 trabalhadores, despendeu 160 saccas de farinha; armazém n. 3 pagou a 2.727
trabalhadores, despendeu 189 saccas com farinha; em Passagem das Pedras pagou-
se a 1.054 trabalhadores, despendeu 65 saccas com farinha; José Alves e Corrego da

69
Ofício no 2071, de 19 de agosto de 1877, do presidente da província, desembargador Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati. In.: APEC - Fundo: Governo da Província. Série:
Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202
65

igreja, pagarão a 250 trabalhadôres, despenderão 16 saccas com farinha, total dos
trabalhadores 10.093, numero de saccas consumidas 612. Gasta-se mais diariamente
com dietas, entradas de retirantes, escolas por bilhetes das comissões domiciliarias
44 saccas: total 656.
........
Pensa esta comissão ter procedido com maior escrúpulo no fornecimento d’estes
70
dados [...]

A questão que levantava o Presidente Aguiar era sobre a razão de se comprar


gêneros aos comerciantes locais, tendo em vista o grande volume de gêneros enviados no mês
de dezembro. As informações enviadas pela Comissão do Aracati não davam conta dos
demais itens enviados, abordando apenas sobre a farinha distribuída. No decorrer daquele mês
de janeiro, a Comissão de Socorros superaria em muito o volume atingido em dezembro de
1877. O descontentamento do Presidente Aguiar se mostra claramente, quando após a drástica
medida de enviar um funcionário da Comissão de Compras da capital, Quintino Augusto
Pamplona, com ordens para demitir todos os membros da Comissão do Aracati71, o mesmo
recebeu a notícia do comissário enviado de que não havia muitos itens nos armazéns da
Comissão:

É por certo, bem notável que, tendo sido remettidos para essa cidade, durante o mez
de janeiro, uma tão grande quantidade de generos e, alem disso, havendo a
commissão, a que V. Sa. substituiu, em fim do mesmo mez, feito compras de
generos na importância, talvez de 120:000$000 réis, V.Sa. somente encontrasse nos
armazéns 600 sacos de farinha?72

Assumindo a função de comissário de socorros públicos, o sr. Pamplona procedeu


a investigações com relação à forma como se distribuía os socorros, e o relacionamento dos
membros da Comissão com os negociantes que venderam gêneros à comissão. Nesta
empreitada, o comissário Pamplona começou a experimentar o que, naquele ano de 1878,
seria uma constante no relacionamento entre os comerciantes aracatienses e o comissário de
socorros que lhe sucederiam. Negando-lhe as contas de vendas feitas à Comissão, os
comerciantes impediram o comissário de “promover uma syndicancia em ordem a chegar ao

70
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente João José Ferreira d’Aguiar, em 6 de janeiro de
1878 In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data:
1877-1889. Cx. 2.
71
Ofício no 1 do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao Presidente João
José Ferreira d’Aguiar, em 31 de janeiro de 1878 In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
72
Oficio do Presidente João José Ferreira d’Aguiar, em 5 de fevereiro de 1878 ao Comissário de socorros
públicos do Aracaty, Quintino Augusto Pamplona. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências expedidas. Diversas localidades. Data: 1878. Livro 155-B.
66

conhecimento real e completo”73 daquilo que suspeitava o Presidente Aguiar: de que os


membros anteriores promoviam a distribuição dos gêneros acima do necessário, para forçar a
compra de gêneros aos comerciantes aracatienses.

Alguns recibos emitidos pelo então presidente da Comissão, em janeiro de 1878, o


capitão Coriolano Francisco Ramos, tratam de pagamentos feitos pelo Sr. G.J.
Brummischveiler ao comerciante Pedro da Silva Nava, que havia fornecido gêneros à
Comissão74. Mais quatro recibos, todos de 28 de janeiro, que montavam um valor de
$524.391 (Quinhentos e vinte e quatro mil trezentos e noventa e um réis), referentes a
pagamentos feitos a transportadores de gêneros da barra do Fortim para o armazém da
Comissão na cidade do Aracati, gasto que era de responsabilidade da Tesouraria da Fazenda
foram entregues à Mesa de Rendas, para que o devido pagamento fosse feito ao comerciante
suíço. Com relação a tais contas, o comissário Pamplona expressou sua suspeita, mas obteve
mais informações sobre os procedimentos da “ex-commissão”75, somente ouvindo denúncias
feitas por outros cidadãos aracatienses, mas sem conseguir levantar demais documentos
necessários para esclarecer toda a situação. Os livros de contabilidade, tanto da Comissão
quanto dos comerciantes que constavam como fornecedores, não lhe foram entregues.

O fato é que, segundo a constatação de interesses destoantes da função primordial


da Comissão de Socorros, o Governo Provincial tratou de reiterar sua prevalência nos destinos
da Comissão do Aracati. Tal investida brusca do poder provincial, reivindicando sua
prevalência sobre a Comissão do Aracati ao demitir seus membros no início de 1878, nos
remete mais uma vez a tal jogo de relações no qual o poder se insere. Nos posicionamentos
nos quais os agentes sociais se colocam, e isto em relação a determinada investida de outros
agentes nas relações de força, vemos por todos os lados pressões e conflitos, e a configuração
estrutural destas relações vai se amoldando a cada avanço e retração.

73
Ofício no 3 do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao Presidente João
José Ferreira d’Aguiar, em 7 de fevereiro de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
74
Dois recibos datados de 28 de janeiro de 1878, um no valor de $1:834’880 (Um conto oitocentos e trinta e
quatro mil oitocentos e oitenta réis) e outro no valor de $557’560 (Quinhentos e cinqüenta e sete mil quinhentos
e sessenta réis), referentes a gêneros fornecidos por Pedro da Silva Nava, que teriam sido pagos pelo Sr. G.J.
Brummischveiler, ao qual a Tesouraria da Fazenda devia ressarcir o devido valor. In.: APEC. Fundo: Governo
da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
75
Idem.
67

Tendo em vista o furor retirante, levado a termo pela invasão ao mercado público,
aliado ao posicionamento destoante dos membros da Comissão, o Governo Provincial,
assumindo a postura de promotor da ordem, reagiu recolocando-se como agente hegemônico
nas relações de poder. Quando percebeu a manifestação de interesses contrários e destoantes
do que havia proposto para as Comissões de Socorros em abril de 1877, novamente despertou,
impondo-se como poder “oficial”, ocupando determinado espaço nas relações sociais. Esta
perspectiva de demarcação das posições dos agentes sociais nas relações de poder, é proposta
por Foucault (1979, p. 226) quando diz:

[...] A análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao
mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se ao contrário de demarcar as
posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de
contra-ataque de uns e de outros.

A resistência e a reação, ou “contra-ataque”, é que nos fazem pensar que a


estrutura social cearense do período aqui recortado, é uma estrutura que se faz no desenrolar
dessas lutas e negociações, que toma forma em conseqüência da ação transformadora dos
agentes sociais. Analisando o possível comportamento destoante dos membros da Comissão
de Socorros, temos nos ofícios e relatórios produzidos até aquele mês de janeiro de 1878, a
participação ativa de dois dos membros da Comissão: o capitão Coriolano Francisco Ramos e
o suíço G.J. Brummischveiler. Vamos nos deter especificamente no membro suíço.

O suíço Brummischveiler era um comerciante vindo da Europa, que atuava como


representante de firmas estrangeiras, e se instalou no Aracati no ano de 187276, construindo
um trapiche (galpão) no Fortim, para promover a cabotagem, ou seja, exportação e
importação de produtos diversos, tais como algodão, couros, calçados, rendas e peças de
algodão, cera de carnaúba, artigos em palha e artigos de luxo europeus. Provavelmente, este
suíço tenha se estabelecido no Ceará juntamente com os franceses vindos da região da
Alsácia-Lorena, proprietários de Casas Comerciais como a Gradvohl & Cia, a Bóris & Fréres
e a Habisreutinger&Cia (TAKEYA, 1995, p. 137), sendo que, juntamente com o proprietário
desta última, o comerciante Gustave Habisreutinger, o Sr. Brummischveiler firmou uma

76
Transcrição do jornal “O Aracaty”, nos de 21 e 27 de agosto de 1909. Apud: REVISTA DO INSTITUTO DO
CEARÁ. Fortim. Anno XXIV. Tomo XXIV. Fortaleza: Typ. Minerva. 1910. p. 169.
68

sociedade no ano de 1875, tornando-se o procurador desta casa comercial estabelecida no


Aracati junto à Casa Bóris & Fréres, estabelecida em Fortaleza77.

Analisando as correspondências enviadas por comerciantes aracatienses que


mantinham negócios com a Casa Bóris & Fréres, notamos que a relação do Sr.
Brummischveiler com os proprietários desta casa comercial eram estreitas. Nelas podemos
ver um outro tipo de relação que os agentes inseridos naquele contexto de seca construíram,
tendo em vista conduzirem seus negócios e interesses da forma possível em um estado de
calamidade. As correspondências enviadas pelo Sr. Brummischveiler dão-nos a noção de ter
sido ele o principal representante daquela casa comercial durante a seca de 1877 a 1880. Em
suas correspondências, ele fez reiteradas menções de amizade que nutria pelo também
comerciante, o Capitão Coriolano Francisco Ramos, e pelas menções de ajuda que o capitão
lhe tinha proporcionado78. Em uma delas ele menciona também o Dr. Augusto Gomes
Tavares79.

A entrada do Sr. Brummischveiler na Comissão de Socorros possivelmente tenha


se dado em face de suas relações com membros citados. Sabemos pela documentação da casa
comercial Bóris & Fréres que ele também mantinha estreitas relações comerciais com
negociantes tanto do Aracati quanto de localidades do interior, representando os interesses de
casas comerciais européias, tanto a Habisreutinger&Cia quanto a Bóris & Fréres, na
importação de produtos industrializados e na exportação de matérias primas e produtos
agrícolas. O Sr. Brummischveiler atuava como um representante por “consignação/comissão”,
que segundo Takeya (2002) era o indivíduo que atuava junto aos comerciantes das diversas
localidades da Província intermediando a relação destes com as casas comerciais estrangeiras,
recebendo pelas vendas uma porcentagem sobre o lucro auferido na compra e na venda de
mercadorias.

Seria, portanto, o Sr. Brummischveiler um intermediador entre os interesses do


Governo Provincial - cooperando na Comissão de Socorros – e os comerciantes aracatienses,
ávidos por lucrar com a seca?

77
Carta da Casa Comercial Habisreutinger&Cia à Casa Bóris & Fréres, em 01/07/1875. In.: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1872-1879. Cx. 1.
78
Correspondências do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres. In: APEC. Arquivo da Casa Bóris &
Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
79
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 26 de agosto de 1879. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
69

Esta suspeita nos é reforçada pela forma como alguns aracatienses descontentes
com a Comissão se referiam a seus membros naquele início de 1878, denunciando um certo
acordo entre os comissários, empregados e o membro suíço, como se vê em uma
correspondência enviada ao Retirante, de Fortaleza:

Os felizes empregados da commissão sentem estremecimentos de alegria com o


ultimo ambiente mephitico que exhalam as suas victimas!
Os commissarios, de parceria com o seu companheiro suisso, cantam o-la petite
merièe!.80

O excesso que beneficiaria um determinado grupo de comerciantes com o


privilégio das vendas de gêneros também é mencionado:

Mais um escândalo monstruoso vamos registrar.


Não temos no serviço publico mais do que quatro mil homens, e são distribuidos
pelos administradores do mesmo serviço – cinco mil e tantos cartões, havendo um
excesso de mil e tantos, que são pago em generos!
Só n’esta especulação esses gatunos não lucram menos de 500$000 por dia!
Junta-se a esta torpe especulação os outros roubos, que o prejuiso é superio a
700$000 por dia, em puro detrimento das pobres e infelizes victimas que existem
n’esta cidade!.81

Analisando as correspondências do próprio Sr. Brummischveiler, não nos é


possível colher informações suas a respeito deste caso, visto que desvinculou-se da casa
Habisreutinger&Cia somente no segundo semestre do ano de 1878, já que esta não suportou
manter seu braço comercial no Aracati por culpa da crise natural, e passou então a representar
diretamente a Bóris & Fréres em setembro daquele ano 82, e, portanto, suas correspondências
datam de período posterior. Contudo, pela intermediação entre o negociante Pedro da Silva
Nava, tornada pública naquele janeiro de 1878, e pela forma como o Sr. Brummischveiler
trata dos negócios em relação à seca e a Comissão de Socorros nos anos de 1878 e 1879,
podemos fazer algumas considerações.

Atuando como representante dos interesses da Casa Comercial francesa Bóris &
Fréres, o Sr. Brummischveiler mantinha informada a mesma casa sobre as possibilidades de
fornecimento de gêneros à comissão de socorros:

80
O Retirante. Anno I. n. 29. Correspondência. O Aracaty. Fortaleza. 09.01.1878, p. 3.
81
O Retirante. Anno I. n. 25. Correspondência. Aracaty, 4 de dezembro de 1877. 12.12.1877. p. 3.
82
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 8 de setembro de 1878. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
70

Com o seu socio o Sr. Boris, que se acha n’esta praça tive a satisfação de enttreter
conversação, e está elle convencido de que o nosso mercado, tem de effectuar uma
vez que o governo suspendeu suas remessas de viveres, grandes vendas destes, isto
posto é conviniente que o nosso mercado sempre se matenha bem provido.83

Já instalado há anos no Aracati, o Sr. Brummischveiler apresentava uma estrutura


apropriada para o recebimento de gêneros, dispondo de um “trapiche” (armazém) para
acomodar as remessas enviadas pela casa comercial, e oferecia, por preços rasoáveis, os seus
serviços, como explicita em novembro de 1878:

Approveito o ensejo para demonstrar à Vm.ces por escripto, as condições rasoaveis


que aprezentei ao seu socio pela commissão de venda de generos alimentícios e
compra de generos do paiz, assim como pela armazenagem de volumes em nosso
Trapiche, visto que muito dezejo entrar em negócios com à sua respeitável firma.
Por cada volume de alimentícios durante trez mezes, recebimento e entrega no
trapiche 160 rs, couros salgados e espichados 80 rs por cada 1.84

O mesmo trapiche, o comerciante suíço ofereceu, por duas vezes, nos meses de
março e maio de 1878, ao comissário de socorros enviado pelo Presidente da Província ao
Aracati, com o fim de acomodar os gêneros enviados pelo governo, mas o mesmo foi
rejeitado, alegando o comissário que as condições e armazenamento e transporte do armazém
não ofereciam a segurança adequada85.

Essa oferta do trapiche mostra o interesse que o sr. Brummischveiler conservava


em relação à Comissão de Socorros do Aracati, mesmo depois de ter sido membro da
mesma. A propósito, em sua estada como membro, já notamos a especial atenção da
Comissão de Socorros aos comerciantes locais. Notadamente, pudemos concluir que, para o
comerciante suíço diante de toda aquela calamidade, a entrada de retirantes em solo
aracatiense e a assistência da Comissão de Socorros representavam um negócio extremamente
rentável. É o que se percebe quando ele escrevia em dezembro de 1878: “Sem cessar
continuão as entradas dos retirantes, e é para prezumir que brevimente voltem as boas quadras
para vendas de alimentícios”.86

83
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 12 de novembro de 1878. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
84
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 16 de novembro de 1878. In.: APEC. Arquivo
da Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
85
Ofício do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao Presidente José Júlio
de Albuquerque Barros, em 14 de junho de 1878 In.: APEC - Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
86
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 3 de dezembro de 1878. In.: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data:1874-1880. Cx. 6.
71

É possível que as “boas quadras” citadas pelo suíço tenham sido as vendas
realizadas no período de grande imigração no final de 1877 e início de 1878. Enquanto que
para o Presidente da Província, a Comissão de Socorros representava um mecanismo de
retenção e remanejamento da grande massa retirante, tendo em vista a manutenção da ordem e
a reprodução do status quo vigente, para o suíço comerciante e para os demais do Aracati que
a ele estavam ligados, a Comissão era uma boa oportunidade de negócios e lucro, excelente
válvula de escape diante da crise pela qual há tempos passava a economia provincial, e que a
seca viria agravar.

Contudo, o lucro auferido das vendas feitas à Comissão de Socorros, que nem
sempre eram assegurados, tendo em vista as dificuldades pelas quais o Governo Provincial
passava para saudar suas dívidas frente aos comerciantes, seja apenas um elemento a ser
considerado quando falamos do posicionamento da elite comercial aracatiense em relação ao
Governo Provincial. A forma pela qual a classe comercial aracatiense via sua relação com o
Estado, e especialmente sua posição frente à política de centralização do Império, podem
trazer à tona determinas forças que impulsionavam os comerciantes aracatienses a destoar da
ordem vigente. É possível que a intermediação do Sr. Brummischveiler, como comerciante
inserido na Comissão para representar os comerciantes aracatienses e a eles proporcionar
caminhos para ganhos financeiros, seja peça constituinte de uma estratégia de tal classe
comercial, no jogo de interesses conflitantes, em fazer prevalecer seus interesses numa
disputa desigual pelos lucros que a política de centralização do Império, aliada à hegemonia
fortalezense na obtenção de recursos do mercado internacional, fazia convergir
soberanamente para a elite da Capital. Analisar a existência e a natureza desta estratégia é o
que propomos para o capítulo seguinte, visualizando-a a partir da Comissão do Aracati, não
mais administrada por membros locais.

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