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FORTALEZA – CEARÁ
2011
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FORTALEZA – CEARÁ
2011
2
CDD: 551.5773
3
21 01 2011
Aprovada em: ____/____/______. 10 (Dez)
Nota: ________________
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Carlos Jacinto Barbosa
Universidade Estadual do Ceará – UECE
________________________________________________
Prof. Ms. Tyrone Apollo Pontes Cândido
Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central - FECLESC
________________________________________________
Prof. Ms Allyson Bruno Viana
Universidade Estadual do Ceará - UECE
4
AGRADECIMENTOS
Como não poderia deixar de ser, gostaria de agradecer àqueles que contribuíram, direta ou
indiretamente, para a realização deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Francisco Carlos Jacinto Barbosa, estimado amigo e orientador, sem o qual este
trabalho não teria surgido.
À banca de qualificação do projeto, Prof. Dr. Tyrone Apollo Pontes Cândido e Prof. Ms.
Allyson Bruno Viana, pelas observações pertinentes que enriqueceram a pesquisa.
Ao caro colega de curso e amigo João Paulo da Guia, cooperador na busca das fontes que
constituíram a pesquisa geradora deste trabalho.
Aos estimados colegas da turma que ingressou na seleção de 2004.2 da Universidade Estadual
do Ceará e amigos de todo momento, Vinicius Barbosa, Abraão Campos, Juliete Castro,
Gabriela Ferreira, Ítala Mayara, Ana Michele, Luciana Oliveira, Paulo Roberto, Marcelo
Lemos, Moisés e Janílson.
Igualmente aos amigos que fiz nos anos de curso de História: Almir Mariano, Eduardo, Felipe
Barreira, Paulo Giovani, Gustavo Magno, Elaine Salmito, Flávio Conceição, Ana Paula e
Edna Vera, pelas conversas, ajuda mútua e bons momentos compartilhados.
Aos funcionários do Arquivo Público do Estado do Ceará, Paulo e prof. Francisco Assis, pela
facilitação do acesso às fontes primárias. Igualmente ao prof. André, árduo pesquisador do
mesmo Arquivo, pelas dicas e ajuda na leitura de documentos do século XIX.
6
RESUMO
Este trabalho propõe analisar a natureza das relações de poder constantes na Comissão de
Socorros Públicos da cidade do Aracati, durante a seca de 1877 a 1880, visando compreender
as forças e interesses que se apresentaram nas ações e práticas empreendidas por este órgão
formado a partir da ordem do Poder Executivo Provincial do Ceará. Este estudo centrou-se na
abordagem das práticas dos membros da Comissão, descritas nas fontes oficiais e também nas
fontes não-oficiais, como jornais e cartas, e percebemos que o órgão distribuidor de gêneros
do Aracati durante o período de seca apresentou um expediente diversificado do ponto de
vista dos interesses nele envolvidos. Se por um lado, a Comissão de Socorros Públicos foi
formada para atender à demanda de um poder político interessado em controlar o avanço
retirante ao centro urbano mais importante do vale jaguaribano, por outro lado, nela estiveram
presentes pessoas que buscaram impor interesses próprios, pervertendo a natureza primordial
do órgão. Portanto, buscou-se analisar a relação destes membros com os demais envolvidos na
seca, não apenas os representantes dos poderes políticos oficiais, mas também com os
habitantes da cidade aracatiense, assim como com a grande massa adventícia ao espaço
urbano do Aracati, fugida dos efeitos devastadores da seca no sertão cearense, examinando as
estratégias através das quais os aracatienses envolvidos diretamente na distribuição dos
socorros procuraram intervir de forma transformadora sobre sua realidade imediata.
ABSTRACT
This study proposes to examine the nature of power relations contained in the Committee of
Public Aid City Aracati during the drought from 1877 to 1880, aiming to understand the
forces and interests that are presented in the actions and practices understaken by this body
formed from the order of the Provincial Executive of Ceara. This study focused on addressing
the practices of the members of the Commission mentioned in official sources and also in
non-official sources such as newspapers and letters, and we realized that the Aracati
distributor organ of genres during the drought period presented an expedient diversified
standpoint of the interests involved therein. On the one hand, the Public Aid Committee was
formed to meet the demands of a political power interested in tracking the progress retirante
largest town jaguaribano valley, on the other hand, it was attended by people who sought to
impose their own interests, perverting the primordial nature of the organ. Therefore, we
attempted to analyze the relationship of these members with the others involved in the
drought, not only the official representatives of political powers, but also with the
townspeople aracatiense, as well as the great mass of urban space to the adventitia Aracati,
fleeing the devastating effects of drought the inside of Ceará, examining the strategies through
which the aracatienses directly involved in the distribution of relief sought to intervene on
transforming their immediate reality.
LISTA DE TABELAS
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Planta do centro urbano da cidade do Aracati no final do século XIX........ 100
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 13
FONTES.................................................................................................................... 161
INTRODUÇÃO
Das variadas narrativas que temos de tais comissões, vemos que o estigma
imposto sobre as mesmas penetrou a historiografia e as crônicas, tendo-se tornado
característica delas memórias relativas à corrupção, modelos de conduta desviantes e
impreterivelmente repreensíveis no que diz respeito, por um lado, ao manuseio da verba
pública, e por outro, ao trato com a impressionante (a cada vez que rememoramos) massa de
retirantes que se deslocou dos recônditos do sertão cearense e que disputou o chão e o pão das
elites provinciais em diversos pontos do Ceará. Contudo, o presente trabalho procura explorar
situações para além da corrupção e do mau uso dos socorros e dos órgãos de atendimento aos
famintos. Da corrupção, dos maus tratos impostos por comissários de socorros cruéis a
retirantes indefesos, da defloração de moças ingênuas e do uso e abuso das condições de
manuseio de um bem extremamente valioso em época de flagelo, o alimento; de todas estas
características que se tornaram peculiares às comissões de socorros, da imagem formada na
memória histórica a respeito deste órgão de assistência, é que procuramos extrair algo mais,
algo que o estigma tenha tentado esconder.
Tanto para produzir estas perguntas quanto propor respostas a elas, o diálogo com
o filósofo Michel Foucault (1979, 1998, 2006) foi um dos expedientes desta pesquisa. A partir
de sua percepção de poder e das relações de poder, pudemos visualizar um quadro em que a
16
com a antropologia, especificamente com o teórico Marshal Sahlins (2003, 2008), quando
prevê que as estruturas sociais podem apresentar-se como algo dado, mas também podem ser
uma construção nos diversos níveis da sociedade, um fazer-se, uma estrutura performativa. A
ação dos agentes sociais nos diversos níveis em vários momentos se dá por estratégias que
conscientemente buscam mudar a estrutura social. Na construção do entendimento das
naturezas estratégicas, dialogamos com o historiador italiano Giovanni Levi (2000),
colocando em relevo a análise de como as práticas dos agentes sociais interferem sobre a
realidade social por meio de estratégias definidas, que não se apresentam apenas sob a forma
da resistência, mas também pela ação transformadora.
O presente trabalho tem por objetivo último contribuir para a compreensão cada
vez mais detalhada do que representou para a história do Ceará a seca de 1877 a 1880.
Esperamos, por meio das análises aqui empreendidas e das páginas escritas, auxiliar numa
abertura cada vez maior do leque de possibilidades do estudo das secas do Ceará, em especial
20
CAPÍTULO 1
Parece não merecer duvida que Deus tem resolvido fazer-nos passar por privações
vigorosas e só nos resta pois impregar os meios ao nosso alcance para mitigar ou
menorar o rigor dos soffrimentos [...] Lembra porem que aqui já tem completa falta
de gêneros alimentícios e que o Aracaty celeiro desta villa, está olhado como lugar
de refugio do sertão e já não tem abundancia de generos.1
1
Ofício do Paço da Câmara Municipal de Villa da União, em 21 de Abril de 1877 Apud FERREIRA NETO,
Cicinato. A tragédia dos mil dias: a seca de 1877-79 no Ceará. Fortaleza: Premius, 2006. p. 42-43
2
Foi nomeado Presidente da Província por carta imperial de 13/12/1876, e governou o Ceará de 10/01/1877 a
23/11/1877.
3
Região que acompanha o curso do maior rio do Ceará, o Jaguaribe, que nasce ao sudeste, na chapada do
Araripe, e desemboca no município do Aracati. Cf: GIRÃO, Valdelice Carneiro. As oficinas ou charqueadas
no Ceará. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984. p. 47.
22
4
Raimundo Girão informa o aumento de 5.000 para 60.000 pessoas durante a grande seca de 1877-1880. Cf.
GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. 2. ed. Fortaleza: Editora Instituto do Ceará, 1962. p. 321.
Tentaremos no decorrer deste trabalho problematizar este número, dado que, segundo as fontes, este número não
pode ser entendido como absoluto, devendo ser relativizado em virtude dos mecanismos deficientes de
contabilização do fluxo constante de retirantes que ora quedavam e ora apenas passavam pelo Aracati. Contudo,
em determinados momentos, esta imprecisão tenha subestimado o número de retirantes alojados no Aracati
durante o período de seca.
23
5
Ofício do Juiz de Direito da Comarca do Aracati, Dr. Antonio Firmo de Sabóia, em 21 de outubro de 1877. In:
APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidaes. Data: 1877-1889.
Caixa 02.
6
Recibos datados dos dias 27 e 28 de junho, 07 de julho e 03 de setembro informam que o Dr. Sabóia tomou
emprestado aos comerciantes Antonio Joaquim Leve, à firma Antunes & Irmão e Melquíades da Costa Barros, o
valor de 4:100$000 (Quatros contos e cem mil reis). Uma prestação de contas, referente ao mês de julho de
1877, traz um relatório de 20 bilhetes resgatados pelo comerciante Melquíades da Costa Barros junto à
Tesouraria da Fazenda, totalizando 6:159$000 (Seis contos cento e cinquenta e nove mil réis), e um do sr. Sá
Leitão, de 6:000$000 (Seis contos de reis) referentes a empréstimos feitos ao Dr. Sabóia para o transporte de
gêneros para o interior. Há uma outra prestação de contas datada de 22 de agosto onde vemos mais 27 bilhetes
resgatados pelo comerciante Melquíades da Costa Barros totalizando 1:792$000 (Hum conto setecentos e
noventa e dois mil réis), também de empréstimos feitos ao Dr. Sabóia para o mesmo fim. In: APEC. Fundo:
Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidaes. Data: 1877-1889. Caixa 02.
24
7
Neste primeiro momento, trabalhamos com as correspondências e ofícios trocados entre a comissão do Aracati
e a presidência da província, e também com as circulares emitidas pelo então presidente Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa. Este corpo documental encontra no Arquivo Público do Estado do Ceará, sob as seguintes
localizações: Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidaes. Data: 1877-
1889. Caixa 02; Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202; e
Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a chefes de várias repartições.
Data: 1877-1880. Cx. 26. Livro: 213.
8
Ofício de no 185, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 24 de abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
9
Circular expedida pelo Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, em 17 de
abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a
chefes de várias repartições. Data: 1877-1880. Cx. 26. Livro: 213.
10
Ofício de no 223, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 26 de abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
11
Circular expedida pelo Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, em 24 de
abril de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a
chefes de várias repartições. Data: 1877-1880. Cx. 26. Livro: 213.
12
Autorizada por meio de ofício expedido pelo Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati, em 05 de junho de 1877. Fundo: Governo da Província.
Série: Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202. Cf. também THEOPHILO, Rodolpho. História
da secca do Ceará (1877-1880). Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa. 1922. p. 85.
25
providenciar o envio dos gêneros para as cidades do interior. Muitas cidades, vilas, distritos e
povoações foram atendidos por esta Comissão.
13
Ofício no 972, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de
socorros do Aracati, em 7 de julho de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
14
Ofício no 424, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de
socorros do Aracati, em 11 de maio de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
15
Ofício no 652, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de
socorros do Aracati, em 16 de maio de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
16
Ofício no 2.751, do Presidente da Província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 05 de setembro de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões
de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
26
[...] consta que somente em dous dias forão distribuidos pelos indigentes 57 saccas
de farinha e 18 atados de carne; e com quanto não tenha uma idéa exacta do numero
de soccorridos, devo, todavia, acreditar que os soccorros forão largamente
ministrados tirando uma rellação dos que se proporcionarão n’esta capital a um
numero variante de 140 a 150 indigentes no decorrer de 22 de maio a 2 do corrente
em que se consumio 20 saccas de farinha, 12 de feijão e 22 atados de carne. 18
Afora isto, entre os meses de abril e setembro, pode-se com base nesta
documentação ainda mencionar como movimentos da Comissão a saída do vigário da cidade,
reverendo João Francisco de Sá, informada pelo órgão em 25 de maio, do Barão de Mecejana
em 05 de setembro, substituído pelo promotor Francisco Fernandes Vieira e do comerciante
João A. Bussoms, que foi substituído pelo Reverendo João Francisco Pinheiro em 10 de
setembro20. A documentação informa que os cinco membros que compuseram a primeira
17
Ofício de no 810, do presidente da província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão
de socorros do Aracati, em 05 de junho de 1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Subserie: Seca. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
18
Idem.
19
Ibidem.
20
Ofícios: no 812, de 05 de junho de 1877; no 2751, de 05 de setembro de 1877; e no 2865, de 10 de setembro de
1877 todos emitidos pelo presidente da província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à
comissão de socorros do Aracati. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros.
Subsérie: SecaData: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
27
21
Relatório com que o Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, passou a administração da
Província do Ceará ao Ex.mo Sr. Conselheiro João José Ferreira D’Aguiar Presidente da mesma Província em
23.11.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro II, 1877. p. 21-22.
28
Com base nos registros oficiais, fica a pergunta sobre o descontentamento do Dr.
Sabóia em relação às suas demissões das duas comissões que ocupou. Entendemos que a
documentação oficial trocada entre a Comissão e a Presidência Provincial não visava relevar
possíveis contendas internas, se é que existiram, e também não fazer ecoar justificativas pela
demissão do juiz. Contudo, no debruçar sobre outras fontes, outras perspectivas foram se
apresentando no caminhar desta pesquisa.
22
Na primeira parte deste capítulo, trabalharemos o jornal O Cearense. Este periódico era um órgão do Partido
Liberal, publicado semanalmente em Fortaleza desde 1846. Sua publicação cessou logo após a Proclamação da
República. Nomes como o Senador Thomas Pompeu, Conselheiro Rodrigues Júnior e Dr. Paula Pessoa
constaram na redação do jornal. Cf. STUDART, Guilherme (Barão). Catálogo dos jornais de grande e
pequeno formato publicados em Ceará. Fortaleza: Typ. Studart, 1896. p. 07.
29
ou ataque a este ou àquele grupo, se nos apresentaram como registros propícios para
relacionar fragmentos coletados nas fontes oficiais.
[...] o pensamento da administração [da província] tem sido mal executado, senão de
todo descurado, pela commissão de soccorros do Aracaty!
........
A commissão de soccorros, do Aracaty, não tem estado na altura de sua missão.
Composta, por ventura, de autoridades e cidadãos importantes, ella deu o primeiro
signal de vida pela sua indecisão, cresceu no meio das divergências, e, ainda, bem
nova, amputado um dos seus membros, hoje na idade viril, procede como [sic] desde
o seu nascimento.23
23
O Cearense. Ano XXXI. n. 54. Publicações sollicitadas. Soccorros publicos. – Aracaty. Fortaleza. 28.06.1877.
p. 3.
24
O Cearense. Ano XXXI. n. 35. Fortaleza. Soccorros publicos. Fortaleza. 26.04.1877. p. 2.
30
Uma segunda carta, sem menção da data de sua escrita e igualmente sem menção
do nome do autor, foi publicada no mesmo jornal no dia 08 de julho de 187725. O autor
propunha relatar “as notícias d’esta localidade”, ou seja, expor como estava o Aracati no
contexto da recém-declarada seca. Iniciou falando sobre a emigração, que se dava diariamente
com a entrada de várias famílias na cidade, e que para acudir a tais retirantes, a Comissão
atuava com esforço louvável. A forma elogiosa com que a carta foi redigida, procurou remeter
aos membros da Comissão os méritos pelo bom andamento da distribuição dos socorros:
A commissão de soccorros, que com a sahida dos dignos Dr. Firmo e Vigário Sá,
compõe-se de cinco membros, o coronel Silvestre, o presidente da camara, barão de
Mecejana, D. João Bussons, e Dr Almeida e Castro, que substituiu na presidência ao
Dr. Juiz de direito, não tem poupado exforços e trabalhos, para tornar menos
afflictivo este quadro desolador.26
A diferença do teor das duas cartas publicadas pelo Cearense é mensurável pela
menção da saída do juiz de Direito da Comarca, Dr. Firmo de Sabóia. A primeira carta fala
das “rivalidades de mando” e do “amputamento” do membro, que supostamente seria o juiz;
nesta, o autor posteriormente lança a público a justificativa da substituição do juiz pelo Dr.
Almeida Castro, como algo estritamente dentro da normalidade do funcionamento do órgão
da distribuição dos socorros:
25
O Cearense. Anno XXXI, no 57. Correspondência do Cearense: Aracaty. Fortaleza. 08.07.1877. p. 3.
26
Idem.
31
O Dr. Juiz de direito, Firmo de Saboia, que no começo, fez parte da commissão, e
foi dispensado pelo Exmo. Sr. Estellita, para occupar-se de outra, que não e somenas
– desembarque e transporte dos generos alimentícios para o centro – assim n’aquella
como n’esta commissão tem procedido com zelo, actividade e honradez, dignos de
louvor e reconhecimento: naturalmente sensível aos soffrimentos do próximo, e
compenetrado de que uma importante porção dos nossos patrícios estorce-se nas
vascas da fome, não perde occasião para realisar uma remessa dos gêneros a seu
cargo, à qualquer commissão do centro, a que são taes gêneros destinados,
procurando n’este serviço, realisar a maior economia para os cofres publicos .27
27
Ibidem.
32
em largos traços uma ligeira historia dos actos praticados pela commissao desde o dia 30 de
abril, data de sua installação, até 14 de junho, em que foi reorganisada”28. Esta, de início, se
propõe a expor mais pormenorizadamente, todas as atividades da Comissão de Socorros do
Aracati, desde sua formação.
[...] dia 16 de junho, em que a commissao se organisou, ficando entao composta dos
Ilms. Srs. Dr. Miguel Joaquim de Almeida Castro, coronel Silvestre Ferreira dos
Santos Caminha, tenente coronel Guilherme Azevedo, Barão de Mecejana e João A.
Bussons. Em sua primeira reunião a commissao elegeo seo presidente o Sr. Dr.
28
O Cearense. Anno XXXI, no 62. Publicações Sollicitadas: Soccorros publicos - Aracaty. Fortaleza.
26.07.1877. p. 4.
33
Castro. Tendo-se já dado noticia dos seus trabalhos, não nos mais d’elles
occuparemos.
Cumpre dizer que o Sr. Coronel Silvestre Caminha começou a fazer parte d’ella
depois do meiado de maio, e que o Sr. Vigário de Sá tendo pedido, obteve sua
demissão. O Sr. Dr. Juiz de direito chegando aqui de volta da capital no fim de maio
veio encarregado pelo presidente de receber, e fazer seguir para o centro os gêneros
alimentícios por elle enviados, missão que tem desempenhado bem, deixando por
esta razão de continuar na commissao de socorros.29
29
Idem.
30
O Cearense. Anno XXXI, no 80. Publicações sollicitadas: Ao público. Fortaleza. 20.09.1877. p. 5.
31
Idem.
34
nenhum dos indivíduos indicados, claro estava que não podia tomar parte na commissão”32.
Para ele, foi em virtude desta atitude que a sua saída se deu imediatamente, relatando que em
sua viagem à Fortaleza no dia 11 de maio, foi demitido da Comissão de Socorros pelo
presidente Estellita, restando-lhe cuidar da Comissão de Transporte de Gêneros para o
interior. Ainda nesta carta, ele mencionou sobre algumas reuniões na Câmara Municipal, que
se deram com o fim de promover uma campanha contra a sua pessoa. A “política mesquinha
das localidades”, com as quais concordava tacitamente o presidente Estellita, promoveram
posteriormente a dupla demissão do Dr. Sabóia. Num jogo de tramas proposto pelo juiz,
partimos no caminho das fontes produzidas pela Câmara Municipal do Aracati naquele ano de
1877, para verificarmos a posição dos vereadores em relação às questões levantadas.
Perante o juiso Municipal desta cidade está sendo procedida uma justificação para
provar: que o mesmo Dor. Juis de Direito, encarregado por essa Presidencia do
desembarque e transporte dos generos destinados para soccorros publicos, déra
differente destino a uma parte desses mesmos generos, que se achavão recolhidos
em um armasém sob sua guarda, já fasendo passar alguns, do dito armasem para
casa de sua residencia, e já promovendo e effectuando a venda de outros. 34
32
Ibidem.
33
Ofício do Paço da Câmara Municipal do Aracaty em sessão extraordinária de 25/09/1877, In.: APEC. Fundo:
Câmaras Municipais. Série: Correspondências Expedidas. Local: Aracati. Data: 1838-1894. Caixa 93.
34
Idem.
35
Municipal e se opuseram à perseguição, que segundo o juiz, teria sido levantada pela família
Caminha35. Apesar destes apelos, o Dr. Sabóia não comporia mais as comissões36.
Em alguns momentos do relato do Dr. Sabóia, ele procurou transparecer que sua
atitude imparcial – mesmo sendo um conservador - perante as questões políticas do Aracati,
era fruto de seu empenho em eleger como imprescindíveis as questões de justiça, e que sua
“consciência tranqüila” perante tais questões não lhe precavera contra os conflitos locais.
Aplicar a justiça, sem ver a quem, talvez tenha sido o erro do Dr. Sabóia, possivelmente pelo
fato de sua estada na comarca do Aracati ser ainda breve naquele momento, pois havia
chegado à cidade em janeiro de 1877, vindo do Acaraú, onde exercia igualmente a função de
juiz39. O seu pouco contato com as questões da localidade, principalmente as políticas,
possivelmente lhe tenham impedido de notar que o conflito com determinados elementos da
política local lhe colocaria em uma posição desprivilegiada nas relações de força e de poder
naquela localidade40.
38
O Cearense. Anno XXXI, no 62. Publicações sollicitadas: Ao publico. Fortaleza. 26.07.1877. p. 4
39
Os ofícios da Câmara dão conta da atividade do juiz a partir início do ano de 1877 (Cf. Ofício do Presidente da
Câmara Municipal, Sr. Guilherme Pereira de Azevedo, de 11/09/1877 e 25/09/1877 In: APEC. Arquivo Público
do Estado do Ceará (APEC). Fundo: Câmaras Municipais. Série: Correspondências Expedidas. Local: Aracati.
Data: 1838-1894. Caixa 93; e o mesmo Dr. Sabóia relata, em sua carta publicada no Cearense de 20/09/1877,
que em maio daquele ano, após cinco meses de atividades, o presidente Estellita ainda não havia dado conta de
sua estada no Aracati.
40
O juiz Sabóia era natural de Sobral, formado na Academia de direito de Olinda em 1853. Na Província
cearense já tinha exercido a magistratura nas localidades de Príncipe Imperial (atual Crateús), Acaraú e
Maranguape, tendo sido transferido para o Aracati em janeiro daquele ano de 1877. Membro da uma importante
família no cenário político da Província, sobrinho do senador Figueira de Mello e irmão do Visconde de Sabóia,
Vicente Cândido Figueira de Sabóia, o Dr. Firmo, além de incursões como magistrado por várias províncias do
37
O que propomos é que a saída do Dr. Sabóia, face às relações de força da elite
política aracatiense, tenha atendido também à proposta inicial da Comissão de Socorros. Tais
comissões, nomeadas em abril daquele ano de 1877, visavam atender a premissas definidas do
governo provincial. O propósito e a natureza de poder segundo os quais a Comissão de
Socorros do Aracati deveria empreender suas práticas, talvez tenham influído na preferência
do Presidente Estellita pela coronel Silvestre Caminha. É sobre tal proposta e natureza que
discutiremos a partir de então.
império, receberia a condecoração da ordem da Rosa. Cf. STUDART, Guilherme C. e STUDART, Newton
Jacques. Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense. 2. ed. Fortaleza: Tipografia Progresso, 1980.
41
Falla com o que Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, Presidente da Província do
Ceará, abriu a 2ª Sessão da 23ª Legislatura da Assembléia Provincial em 02.07.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro
II, 1877. p. 37.
42
Ofício do Paço da Câmara Municipal de Villa de Jaguaribe Mirin, em 9 de Abril de 1877. In FERREIRA
NETO, Cicinato. A tragédia dos mil dias: a seca de 1877-79 no Ceará. Fortaleza: Premius, 2006. p. 39-40
43
Ofício do Presidente da província Caetano Estellita, ao ministério do império, em 7 de Abril de 1877,
(Arquivo Nacional). Apud CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Trem da seca: sertanejos, retirantes e operários
(1877-1880). Fortaleza: Museu do Ceará. Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2005. p. 40.
38
Cândido (2005, p. 41) propõe que o Presidente Estellita, muito embora não
podendo prever a grande calamidade que a partir daquele ano de 1877 se estenderia por mais
três anos, já poderia, pelos elementos que se lhe apresentavam, perceber que a conservação da
configuração social dependia diretamente de sua pronta atuação. Portanto, era mister que de
forma antecipada o Presidente da Província promovesse a contenção do fluxo migratório:
44
Idem.
45
Falla com o que Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, Presidente da Província do
Ceará, abriu a 2ª Sessão da 23ª Legislatura da Assembléia Provincial em 02.07.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro
II, 1877
46
Ofício do Presidente da província Caetano Estellita, ao ministério do império, em 7 de Abril de 1877 (Arquivo
Nacional). Apud CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Op. Cit.. p. 40-41.
39
Obra de alto custo e grande extensão, é a única que pode garantir por muito tempo a
subsistência de centenares de famílias, por meio do trabalho, assim como a única
que oferece a vantagem de conservar mais ou menos divididas as grandes
aglomerações de povo que a fome improvisa nos pontos onde há facilidade de
47
exercer a atividade .
Este trecho da circular expedida pelo presidente Estellita nos fez considerar um
aspecto através do qual o controle sobre a massa retirante poderia efetivar-se. A menção de
uma volta do camponês aos “cálculos de sua existência e nas relações íntimas da família”, nos
leva a considerar que tal medida inicial, a nomeação das comissões de socorros, objetivava
reproduzir determinados laços de dominação, na iminência da crise de antigos laços,
mesclando antigos modos de sujeição com outros que atendiam a uma lógica que tomava
corpo e se impunha sobre a sociedade cearense: a lógica do capital internacional.
Acreditamos, portanto, que a natureza de poder a qual o presidente Estellita tencionava
transferir às comissões de socorros, mantinha uma relação direta com a manutenção da
topologia social, ou em outras palavras, visava manter a estrutura social vigente, nos moldes
de dominação predominantes, mantendo os interesses reinantes de determinada classe
hegemônica.
47
Idem. p. 41.
48
Circular expedida pelo presidente da província do Ceará, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa,
em 17 de abril de 1877. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência
dirigidos a chefes de várias repartições. Data: 1877-1880. Caixa 26. Livro 213.
40
produção e mercado, levada a cabo por forças do capital internacional e que encontravam
ressonância na elite provincial fortalezense, mas ainda insuficientes para promover profundas
mudanças do ponto de vista social e cultural do sertão. Seriam necessários, portanto,
mecanismos que atendessem às prerrogativas que se tentavam impor, no sentido de reproduzir
uma determinada ordem imaginada, mas que encontrasse na estrutura social estabelecida um
canal de reprodução sem lhe destruir as bases de forma abrupta. Desta forma Chaves (1995),
quando afirma que a seca de 1877 a 1880 compreendeu um momento no qual o imaginário de
sociedade das classes dominantes no Ceará foi reiterado principalmente pela elite
fortalezense, no sentido de manter o status quo social, ou seja, manter a configuração da
estrutura social cearense, no sentido de vigorar as relações de dominação existentes, considera
que a hegemonia fortalezense na captação de excedentes da produção era garantida pela
manutenção das relações de poder no sertão cearense.
tratamento unitário proposto pelo discurso dos cafeicultores do Rio de Janeiro apontava como
solução útil para o fim da marginalização política das províncias do Norte. As medidas
centralizadoras e uma política administrativa mais forte, preconizadas na idéia de um Estado
centralizador e unificador da nação atendiam seus interesses.
caracterizam o que de forma geral denominou-se como regime patriarcal do Norte brasileiro
(LEITE, 1994, p. 86).
49
Circular expedida pelo presidente da província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, em 17 de
abril de 1877. In: APEC - Fundo: Governo da Província. Série: Registro de ofícios da presidência dirigidos a
chefes de várias repartições (1877-1880). Cx. 26. Livro: 213.
45
comissões de socorros, foi uma tentativa do presidente Estellita de manter ordenada tal
estrutura social vigente, no sentido de sustentar a configuração social reinante na Província,
que tinha como referência o interesse das elites da Capital em manter sua posição
hegemônica, mas agora intervindo segundo uma lógica transformada ou em transformação,
que Cândido (2005, p. 40) atribui como sendo uma “política empreendedora”, que lançava
mão de uma visão progressista, promotora de uma nova relação de produção. “Assistência
alimentar” e “trabalho” eram o casamento necessário, segundo a proposta de Estellita, para
manter a ordem social. A reiteração do uso das comissões de socorros naquele presente
momento era visada pelo presidente Estellita como o resgate de um elo, ou um elemento de
“intermediação” entre o povo e o governo, tendo em vista aplacar-lhe os ânimos, tão
perigosos quando a multidão faminta os tornasse avultados:
Vale ressaltar ainda que a formação de comissões de socorros para os afetados por
calamidades naturais tornou-se uma prática constante no período que compreendeu o Segundo
Reinado. Assim como nas monarquias e governos representativos da Europa, a idéia da
caridade, como instrumento de solidificação de solidariedades entre as classes dirigentes e o
controle das populações afetadas por calamidades naturais, ganha novo formato, influenciada
pela transformação do quadro de pensamento e mentalidade operada pelas Luzes; “Esta nova
caridade assume-se ‘cívica e secular’ (...) reivindica preceitos distintos dos evangélicos,
assenta em novos valores e deveres – a Humanidade e a Fraternidade” (PEREIRA, 2004,
p.832). No caso do Império brasileiro, identifica-se com o seu processo de centralização
administrativa e política, tendo em vista a formação da “Nação” brasileira, atribuindo a si, por
meio da Constituição de 1824, o dever de cuidar de seus súditos prestando-lhes os devidos
socorros em momentos de calamidade natural. Desta forma, os socorros públicos deviam ser
entendidos “como atos administrativos de dever social do governante em benefício do
governado, assegurados por lei” (BELTRÃO, 2000, p. 848).
50
Falla com o que Ex.mo Sr. Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, Presidente da Província do
Ceará, abriu a 2ª Sessão da 23ª Legislatura da Assembléia Provincial em 02.07.1877. Fortaleza: Typ. Dom Pedro
II, 1877. p. 37.
46
de 49 pessoas de toda a Província do Ceará que teriam prestados serviços ao Império por meio
das mais diversas comissões, em especial das comissões de socorros, durante a grande
epidemia de Cholera-morbus que grassou no Ceará naquele mesmo ano. Por meio desta
relação vemos que a participação em comissões de socorros tornou-se um meio de alcançar
favores honoríficos do imperador D. Pedro II. Segundo Calmon (1935), os títulos honoríficos
tinha por fim reforçar cada vez mais a posição e o prestígio dos componentes das elites
políticas nas localidades. A obtenção de tais títulos, conseguidas também por meio da compra,
poderia ser alcançada igualmente pela participação na política de assistência imperial,
personificada em diversos tipos de ações e condutas, como a participação em comissões
médicas, de socorros, e em qualquer atitude em favor do Império. No sentido de “afidalgar os
homens, num fecundo instrumento de valorização de condutas” (CALMON, 1937, p. 295), os
títulos honoríficos serviram de instrumento para o fortalecimento de alianças e favores entre
grupos políticos em torno do projeto imperial. A obtenção destes títulos, de Cavaleiro,
Comendador ou Oficial das diversas ordens honoríficas instituídas pelo Império, dentre as
quais vemos mais diretamente relacionadas às comissões de socorros a Ordem da Rosa e a
Ordem de Cristo, se auferia pelos mesmos mecanismos de obtenção de favores políticos.
conhecidas relações de troca de favores políticos, que de forma geral constituíam o vínculo
entre o governo provincial e as municipalidades, seria de se prever que as diretrizes adotadas
entre a Presidência da Província e os membros da comissão atenderiam aos mesmos critérios.
Entendemos que a adoção dos socorros previa a coesão das elites locais em torno da
manutenção da ordem imperial, ao tempo em que o emprego do trabalho, como requisito para
a obtenção do socorro, e a distribuição dos socorros propriamente dita, seriam mecanismos de
refreamento do avanço retirante, assim como de seu controle e usufruto de sua força de
trabalho.
Tais informações nos orientam a concluir sobre da razão pela qual o Presidente
Estellita preferiu o coronel Silvestre Caminha em detrimento da permanência do Dr. Firmo de
Sabóia na Comissão de Socorros do Aracati. A influência enquanto grande latifundiário
aracatiense, sem contar o fato de que era um notório membro do partido Conservador, contou
pontos a favor dele quando as forças eram medidas entre ele e o juiz municipal. No
significado e proposta inicial da Comissão de Socorros, a presença do coronel Silvestre
favorecia a idéia primordial do Governo da Província, tendo em vista ser um homem de
ascensão sobre a massa retirante, e pelo que nos deixa entrever o presidente Estellita, poderia
oferecer mais ao governo provincial em relação ao controle dos adventícios.
Quando percebemos que o poder oficial do Estado luta por impor-se e reproduzir-
se no tecido social, consideramos que o poder assim o faz quando introduz mecanismos de
alcance nos recônditos das estruturas existentes de relações interpessoais e de dominação
local. Estas relações colocam o poder em uma perspectiva diluída e disseminada, subjugando
e combatendo outras formas de dominação, como as que existiam no sertão cearense, ou a
elas se aliando estrategicamente com o fim de impor-se. Portanto, concebemos as relações
sociais como relações de poder, concordando com Foucault (2006, p. 231), quando afirma que
na sociedade “há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de
força de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo”, e que para que as grandes
estruturas de poder, como as do Estado e da dominação de classe, possam se efetivar, “é
preciso dizer ainda que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de
Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder”
(FOUCAULT, 2006, p. 231). Para este filósofo, o poder deve ser entendido não como algo
que se detêm, mas como uma relação, diluída na sociedade, alcançando determinados estratos
sociais por meio de micro-poderes imersos nas relações interpessoais.
49
Dessa forma, é de se notar que o poder não se apresenta meramente sob a ótica da
repressão e punição. A própria forma de “assistência” empreendida pelo Governo Provincial,
quando nomeou as comissões de socorros, realça esta perspectiva. O entendemos segundo
determinados posicionamentos dos indivíduos, configurados como relações de poder, imerso
nas relações sociais. O poder não é simplesmente aquele elemento de punição, no sentido
negativo, mas deve ser entendido “como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não
sejam atribuídos a uma ‘apropriação’, mas a disposições, a manobras, táticas, a técnicas, a
funcionamentos” (FOUCAULT, 1998, p. 26). Ele não é uma coisa, objeto que se tem ou não.
De acordo com as manobras e estratégias que os agentes sociais desenvolvem e delas se
utilizam, cada indivíduo insere-se em uma posição, segundo a qual age e constrói sua
possibilidade de negociação no social, assim como mobiliza também sua resistência.
A questão levantada em relação à saída do Dr. Sabóia pode muito bem ser
entendida como uma “manobra” do Governo Provincial, no sentido de melhor dispor de
aparelhos que pudessem promover a “assistência” aos retirantes, de forma a controlá-los,
impedir seu avanço e manter a ordem social . Esta “estratégia” tinha um fim duplo: incluir as
elites locais aracatienses como intermediários de sua relação com as classes pobres e reagir
frente ao avanço dos retirantes. Como veremos adiante, analisando os movimentos dos
adventícios na reivindicação da assistência alimentar, os retirantes em multidão passam a
constituir um sujeito político de força durante a seca de 1877-1880 (NEVES, 2000).
Que dilema horrível, Sr. Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessôa, que
victima innocente deixava sacrificar a política mesquinha de localidades, em tempos
distantes de epochas eleitoraes, e sem o menor interesse para a cousa publica! Mas
vos precisaes que o silencio se occupasse de vossa administração, e então deixastes
50
que o mar das paixões submergisse a frágil barquinha em que navegava o juiz de
direito, que era a sua independência e orgulho.51
Forão soccorridos as pessoas desvalidas desta cidade e seus subúrbios com toda
economia possível, como Va. Exa. Recommendou. E por certo prestou Va. Exa.
grandiozo serviço a esta comarca com as providencias que acertadamente tomou: o
53
que é irrefragável, e todos fazem justiça de reconhecel-o.
O que se percebe, pelo menos da parte dos membros da comissão, muitos dos
quais compunham a Câmara Municipal, e entre eles o coronel Silvestre Caminha e seu irmão
Raymundo Ferreira dos Santos Caminha, é que a ação da comissão tinha como função
primordial a manutenção da ordem, a não irrupção de um quadro desfavorável ao equilíbrio
social. Por outro lado, a assistência às famílias atingidas possivelmente serviria como um
embrião para a formação de um vínculo entre o assistente e o assistido.
Percebe-se ainda que compor aquela comissão permitia gerir recursos de forma
mais livre, distribuindo a determinados grupos de pessoas que se tinha em vista ajudar. Esse
tipo de relacionamento que se afigurava entre os membros da comissão e os “desvalidos”,
vítimas da calamidade natural, reproduzia laços de sujeição ou de compadrio, que como
explicita Leite (1994, p. 84), promoviam deveres recíprocos entre os sujeitos vulneráveis às
calamidades naturais, sobremaneira as estiagens. Sousa (2009, p. 58) lembra que durante o
século XIX, as enchentes e as secas foram as duas principais promotoras de assistência por
meio de socorros públicos diretos, que até a seca de 1877, se apresentavam como medidas de
distribuição direta de suprimentos aos desvalidos atingidos pelas calamidades naturais, sendo
53
Ofício da comissão de socorros do Aracati ao presidente da Província, o Exmo. Sr. Dr. Francisco d’Assis
Oliveira Maciel, seguido de uma relação de pessoas a quem foram distribuídas esmolas, em 09/05/1875. In.:
APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-
1889. Caixa 02.
52
que na grande seca do século XIX, tal auxílio foi sendo substituído pelo socorro público
indireto, onde o trabalho tornou-se o intermediador entre o socorrido e o socorro, na forma de
alimentos, assistência médica e vestuário (SOUSA, 2009, p. 151).
Devo ainda dizer que uma das cauzas que me indispoz contra os conservadores, foi
o ter eu, de ordem do presidente, mandado uma escolta ao Palhano, em procura dos
criminosos que lá se acoutão, sob a proteção dos homens que dispoem dos votos no
Aracaty! Deste facto era o presidente inteirado.
Vendo os homens do Aracaty que eu desprezava os seus feitos, e que só me
occupava de minhas duplas obrigações, poserão em contribuição os protectores da
capital, e lhes declaravão – ou nós, ou juiz de direito!55
Ainda segundo o ofício enviado pela Câmara Municipal do Aracati56, nota-se que
possivelmente o Dr. Sabóia tenha trilhado caminho diferente daquele a que os políticos
aracatienses tenham se acostumado a tomar nos rumos da vida política local. A denúncia de
desvio de gêneros da Comissão de Transporte foi apenas uma das várias denúncias feitas pela
Câmara. Dentre elas, a que mais causou tumulto foi em relação à prisão de uma escrava
chamada Umbelina, fato bastante contestado por ter prejudicado “um distinto cidadão” da
localidade. Segundo o próprio Dr. Sabóia, suas práticas diziam respeito simplesmente ao
cumprimento do seu dever:
Tranquillo em minha consciencia, e vendo por outro lado que não podia arcar com o
infortunio, entregava-me com toda a dedicação ao meu trabalho, procurando
54
NOGUEIRA, Paulino. Relação dos cearenses titulares e condecorados. Revista do Instituto do Ceará. Anno
XV. Tomo XV. Fortaleza:Typ. Minerva, 1901. p. 295.
55
O Cearense. Ano XXXI. n. 80. Publicações Solicitadas. Ao público. Fortaleza. 20.09.1877. p. 5.
56
Ofício do Paço da Câmara Municipal do Aracaty em sessão extraordinária de 25/09/1877, In: APEC. Fundo:
Câmaras Municipais. Série: Correspondências Expedidas. Local: Aracati. Data: 1838-1894. Caixa 93.
53
O juiz municipal, enquanto agente do poder oficial que tinha por função promover
a ordem e a justiça, empreendia suas ações não sem conflito e negociação com os membros da
elite local. A própria Comissão de Socorros, que tinha igualmente o dever primordial de
promover a intermediação entre a massa retirante e o Estado, promovendo a ordem e a
estabilidade social, também não promovia suas práticas em desacordo com duelos e conflitos
entre os agentes sociais. Entendemos que a estrutura social cearense da segunda metade do
século XIX, sobre a qual descrevemos brevemente neste primeiro capítulo, que supostamente
regia todas as condutas e pensamento dos agentes sociais nela inseridos, não se constituiu
segundo um núcleo definidor das relações sociais, no sentido que a estrutura definiu toda e
qualquer ação humana. A sociedade imaginada (CHAVES, 1995) por um grupo restrito e
dominante, não se construiu segundo a sumária perspectiva desse grupo e nem se construiu
sem a ação resistente e transformadora dos demais agentes sociais, sejam de grupos de menor
expressão da classe dita dominante, ou dos agentes da classe dita dominada.
57
O Cearense. Ano XXXI. n. 80. Publicações Solicitadas. Ao público. Fortaleza. 20.09.1877. p. 5.
54
diversos, capazes de contradizer os sistemas simbólicos que o descreveriam. Tal uso motivado
dos significados colocaria em distinção o “interesse” e o “sentido” da coisa significada. “Este
risco subjetivo consiste da possível revisão dos signos pelos sujeitos ativos em seus projetos
pessoais” (SAHLINS, 2003, p. 186), sendo então que, o valor conceitual adquire um valor
intencional, que poderá ser diferente do valor convencional. Portanto, teríamos dois aspectos
da estrutura social, com historicidades diversas: uma “estrutura prescritiva” (SAHLINS, 2003,
p. 13), a qual tem por tendência “assimilar as circunstâncias a elas mesmas, por um tipo de
negação de seu caráter contingente e eventual” sendo que para esta estrutura nada é novo ou
pelo menos, a conjuntura é valorizada por continuidade e semelhança com o sistema
instituído; há, portanto, a “projeção” da ordem vigente, repetição e efetivação. Há também a
estrutura performativa, onde as diferenças promovidas pelas circunstâncias contingenciais
ganham valor e força por seu afastamento em relação aos arranjos existentes, “podendo as
pessoas então agir sobre esses arranjos para reconstruir suas condições sociais” (SAHLINS,
2003, p. 13).
58
Ofício no 3003, de 17 de setembro de 1877,do presidente da província, desembargador Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202.
59
Ofícios no 3573, de 03 de outubro de 1877; e no 3645, de 06 de outubro de 1877, emitidos pelo presidente da
província, desembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati. Fundo:
Governo da Província. Série: Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202; Cf. também Ofício de no
62 da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente Caetano Estellita Cavalcanti Pessôa, em 10 de outubro de
1877. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data:
1877-1889. Caixa 02.
60
PALÁCIO DIOCESANO DE LIMOEIRO DO NORTE. Livro de Óbitos no 10 da Paróquia de Aracaty, criada
em 20/06/1780. Assentos de 01/04/1877 a 07/04/1878.
57
coronel ainda manteve-se no Aracati, como nos mostram as fontes produzidas pela Câmara
Municipal. A dispensa do coronel Silvestre abriu caminho para que o capitão Coriolano, que
também atuava no comércio, e o suíço Brummischveiler, pudessem fazer parte da Comissão.
Contudo, a situação aracatiense vinha se tornando cada vez mais onerosa para a
Comissão de Socorros. O crescente número de retirantes, chegando naquele ano à proporção
que não mais se repetiriam durante os dois anos seguintes, começava a atemorizar a elite
local. O aumento vertiginoso da emigração verificou-se no mês de setembro (THEOPHILO,
1922, p. 113). A seguir, temos o quadro demonstrativo das quantidades mensais de gêneros
enviados para a Comissão de Socorros do Aracati, nos meses de abril a dezembro de 1877:
61
Anexo ao Ofício de no 66 da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente Caetano Estellita Cavalcanti
Pessôa, em 27 de outubro de 1877. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas localidades. Data: 1877-1889. Caixa 02.
58
62
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente Caetano Estellita Pessôa, em 19 de novembro de
1877. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data:
1877-1889. Caixa 02.
60
O aumento do volume de gêneros enviados tinha por meta atender à grande massa
retirante já alojada na cidade. Contudo, os alimentos enviados já não eram suficientes para
acudir à população emigrada.
Outro dado que a tabela nos permite analisar é o envio de peças de pano para a
confecção de roupas para os retirantes, e em outros momentos, outras já confeccionadas,
como as “chitas” e as peças de “madapolão” era enviadas, tendo em vista cobrir a nudez dos
retirantes que se expunham nas ruas. Verifica-se aqui o estranhamento em relação aos corpos
dos retirantes - nus, cadavéricos, disformes - como o motivador para vestir os famintos,
havendo momento em que até mesmo sacos de farinha e de arroz eram utilizados para
confeccionar roupas para os pobres emigrados. Semelhante ao que mostra Barbalho (2005, p.
147), quando trata desse estranhamento na capital, Fortaleza, ressaltando que no imaginário
das elites do Ceará naquele contexto, “aqueles corpos nada lembravam o ideal de beleza do
corpo clássico ou do corpo burguês”.
O andamento “normal” das atividades, que perpetua até outubro de 1877 nas
correspondências da Comissão, passa a ter seu lugar ocupado nos documentos pela
preocupação cada vez maior de seus membros, assim como dos demais cidadãos do Aracati,
63
Ofício dos srs. Joaquim Chavier Maia e Fco. Rodrigues da Silva, da Povoação do Sacco de Orelha (atual
Ererê, município do médio Jaguaribe) ao Presidente da Província, Desembargador Caetano Estellita Cavalcanti
Pessoa, em 04 de Novembro de 1877. In: FERREIRA NETO, Cicinato. A tragédia dos mil dias: a seca de
1877-79 no Ceará. Op. cit. p. 101.
61
com o assustador número de retirantes que dia a dia chegava à cidade. Em toda a Província, o
movimento da emigração para o litoral se acentuou entre os meses de outubro a novembro
(THEOPHILO, 1922, p. 129). Em correspondências enviadas aos jornais de Fortaleza, alguns
aracatienses apresentavam o espanto dos citadinos diante de tão volumosa procissão, como
mostrou um escritor ao jornal O Cearense:
Sem força publica para conter tam grande nummero de emigrantes, sem meios de
fazer parar a corrente de emigração, sem recursos, com possa satisfaser a
necessidade de todos, vive a laboriosa população do Aracaty entre aos mais
horríveis presentimentos. Para mais de 35 mil emigrantes soberbão já nas ruas, sem
64
casas, semi-nus, mortos a fome, a pedir pão.
Exm. Sr. – Se nos parece impossível que a cidade do Aracaty deva continuar por
mais tempo aterrada por esse pezadello, será entretanto logico que elle se converterá
em dispertar terrível, se não houverem promptas e efficazes medidas. Cumpre que o
governo provincial lance suas vistas sobre essa immensidade de filhos, pertencentes
a este torrão fertil e abençoado, quando bafejado pela mão da Providência, e nos de
o remedio. Se é inexequivel que a Commissão de soccorros publicos possa continuar
a distribuir diariamente por longos mezes 600, 800, 1.000 saccas de viveres; si e
impossível que possamos ter uma força de 300 a 400 praças que nos offereção
algumas garantias; e o governo não pode fazer parar a corrente de emigração dos
centros para o litoral, uma vez que se torna impossível o transporte de generos para
o centro; que ao menos facilite a sahida d’esses bandos em barcos, que já tem sido
offerecidos a commissão de soccorros, que faça vir a este porto transporte que os
possão conduzir aos centenares para essas províncias do sul, aonde lhes são mais
66
faceis os recursos.
64
O Cearense.Anno XXXII. n. 101. Noticiário. Situação do Aracaty. Fortaleza. 2.12.1877. p. 3.
65
O Cearense.Anno XXXII. n. 102. Noticiário. A fome no Aracaty. Fortaleza. 6.12.1877. p. 3.
66
Idem.
62
O alarme por parte da elite aracatiense e o ataque dos retirantes como forma de
pressão, mostram aquilo que nos lembra Neves (2005, p. 123), quando afirma que a “luta
política é, em igual medida e ao mesmo tempo, a luta por impor sentidos aos espaços na
cidade”. Esta perspectiva ganha contornos interessantes, se atentarmos para o fato de que os
retirantes invadiram o mercado, e não as pagadorias e armazéns da Comissão de Socorros. É
possível que os retirantes já percebessem que atingir o mercado seria atingir e pressionar a
classe comercial aracatiense, mostrando diretamente a ela a gravidade da presença da
multidão retirante como sujeito político ativo nas relações de força.
Esta pressão, possivelmente, fez com que o então presidente da província naquele
dezembro de 1877, Conselheiro João José Ferreira d’Aguiar, acatasse a solicitação dos
cidadãos aracatienses em promover de forma sistemática a reemigração dos retirantes, via
porto do Fortim, para outras províncias do Império. No final daquele mês, o Presidente
requisita à Comissão uma relação de nomes de retirantes que poderiam ser reemigrados68. A
reemigração no Aracati iniciaria em janeiro de 1878, a qual nos dedicaremos no próximo
capítulo.
Nos meses aqui compreendidos, as fontes oficiais não nos dão conta de alguma
irregularidade nestas compras. Entretanto, o Presidente Estellita já expressara preocupação a
respeito da forma de distribuição e da quantidade de gêneros distribuídos. Em agosto, o
Presidente já alertava sobre a excessiva distribuição de gêneros69, não sendo esta a primeira
vez que recomendava a economia na assistência aos indigentes, como já vimos anteriormente.
69
Ofício no 2071, de 19 de agosto de 1877, do presidente da província, desembargador Caetano Estellita
Cavalcanti Pessoa, à comissão de socorros do Aracati. In.: APEC - Fundo: Governo da Província. Série:
Comissões de Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202
65
igreja, pagarão a 250 trabalhadôres, despenderão 16 saccas com farinha, total dos
trabalhadores 10.093, numero de saccas consumidas 612. Gasta-se mais diariamente
com dietas, entradas de retirantes, escolas por bilhetes das comissões domiciliarias
44 saccas: total 656.
........
Pensa esta comissão ter procedido com maior escrúpulo no fornecimento d’estes
70
dados [...]
É por certo, bem notável que, tendo sido remettidos para essa cidade, durante o mez
de janeiro, uma tão grande quantidade de generos e, alem disso, havendo a
commissão, a que V. Sa. substituiu, em fim do mesmo mez, feito compras de
generos na importância, talvez de 120:000$000 réis, V.Sa. somente encontrasse nos
armazéns 600 sacos de farinha?72
70
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao Presidente João José Ferreira d’Aguiar, em 6 de janeiro de
1878 In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data:
1877-1889. Cx. 2.
71
Ofício no 1 do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao Presidente João
José Ferreira d’Aguiar, em 31 de janeiro de 1878 In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
72
Oficio do Presidente João José Ferreira d’Aguiar, em 5 de fevereiro de 1878 ao Comissário de socorros
públicos do Aracaty, Quintino Augusto Pamplona. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências expedidas. Diversas localidades. Data: 1878. Livro 155-B.
66
73
Ofício no 3 do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao Presidente João
José Ferreira d’Aguiar, em 7 de fevereiro de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
74
Dois recibos datados de 28 de janeiro de 1878, um no valor de $1:834’880 (Um conto oitocentos e trinta e
quatro mil oitocentos e oitenta réis) e outro no valor de $557’560 (Quinhentos e cinqüenta e sete mil quinhentos
e sessenta réis), referentes a gêneros fornecidos por Pedro da Silva Nava, que teriam sido pagos pelo Sr. G.J.
Brummischveiler, ao qual a Tesouraria da Fazenda devia ressarcir o devido valor. In.: APEC. Fundo: Governo
da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
75
Idem.
67
Tendo em vista o furor retirante, levado a termo pela invasão ao mercado público,
aliado ao posicionamento destoante dos membros da Comissão, o Governo Provincial,
assumindo a postura de promotor da ordem, reagiu recolocando-se como agente hegemônico
nas relações de poder. Quando percebeu a manifestação de interesses contrários e destoantes
do que havia proposto para as Comissões de Socorros em abril de 1877, novamente despertou,
impondo-se como poder “oficial”, ocupando determinado espaço nas relações sociais. Esta
perspectiva de demarcação das posições dos agentes sociais nas relações de poder, é proposta
por Foucault (1979, p. 226) quando diz:
[...] A análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder é ao
mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se ao contrário de demarcar as
posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de
contra-ataque de uns e de outros.
76
Transcrição do jornal “O Aracaty”, nos de 21 e 27 de agosto de 1909. Apud: REVISTA DO INSTITUTO DO
CEARÁ. Fortim. Anno XXIV. Tomo XXIV. Fortaleza: Typ. Minerva. 1910. p. 169.
68
77
Carta da Casa Comercial Habisreutinger&Cia à Casa Bóris & Fréres, em 01/07/1875. In.: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1872-1879. Cx. 1.
78
Correspondências do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres. In: APEC. Arquivo da Casa Bóris &
Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
79
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 26 de agosto de 1879. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
69
Esta suspeita nos é reforçada pela forma como alguns aracatienses descontentes
com a Comissão se referiam a seus membros naquele início de 1878, denunciando um certo
acordo entre os comissários, empregados e o membro suíço, como se vê em uma
correspondência enviada ao Retirante, de Fortaleza:
Atuando como representante dos interesses da Casa Comercial francesa Bóris &
Fréres, o Sr. Brummischveiler mantinha informada a mesma casa sobre as possibilidades de
fornecimento de gêneros à comissão de socorros:
80
O Retirante. Anno I. n. 29. Correspondência. O Aracaty. Fortaleza. 09.01.1878, p. 3.
81
O Retirante. Anno I. n. 25. Correspondência. Aracaty, 4 de dezembro de 1877. 12.12.1877. p. 3.
82
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 8 de setembro de 1878. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
70
Com o seu socio o Sr. Boris, que se acha n’esta praça tive a satisfação de enttreter
conversação, e está elle convencido de que o nosso mercado, tem de effectuar uma
vez que o governo suspendeu suas remessas de viveres, grandes vendas destes, isto
posto é conviniente que o nosso mercado sempre se matenha bem provido.83
O mesmo trapiche, o comerciante suíço ofereceu, por duas vezes, nos meses de
março e maio de 1878, ao comissário de socorros enviado pelo Presidente da Província ao
Aracati, com o fim de acomodar os gêneros enviados pelo governo, mas o mesmo foi
rejeitado, alegando o comissário que as condições e armazenamento e transporte do armazém
não ofereciam a segurança adequada85.
83
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 12 de novembro de 1878. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
84
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 16 de novembro de 1878. In.: APEC. Arquivo
da Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
85
Ofício do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao Presidente José Júlio
de Albuquerque Barros, em 14 de junho de 1878 In.: APEC - Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
86
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 3 de dezembro de 1878. In.: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data:1874-1880. Cx. 6.
71
É possível que as “boas quadras” citadas pelo suíço tenham sido as vendas
realizadas no período de grande imigração no final de 1877 e início de 1878. Enquanto que
para o Presidente da Província, a Comissão de Socorros representava um mecanismo de
retenção e remanejamento da grande massa retirante, tendo em vista a manutenção da ordem e
a reprodução do status quo vigente, para o suíço comerciante e para os demais do Aracati que
a ele estavam ligados, a Comissão era uma boa oportunidade de negócios e lucro, excelente
válvula de escape diante da crise pela qual há tempos passava a economia provincial, e que a
seca viria agravar.
Contudo, o lucro auferido das vendas feitas à Comissão de Socorros, que nem
sempre eram assegurados, tendo em vista as dificuldades pelas quais o Governo Provincial
passava para saudar suas dívidas frente aos comerciantes, seja apenas um elemento a ser
considerado quando falamos do posicionamento da elite comercial aracatiense em relação ao
Governo Provincial. A forma pela qual a classe comercial aracatiense via sua relação com o
Estado, e especialmente sua posição frente à política de centralização do Império, podem
trazer à tona determinas forças que impulsionavam os comerciantes aracatienses a destoar da
ordem vigente. É possível que a intermediação do Sr. Brummischveiler, como comerciante
inserido na Comissão para representar os comerciantes aracatienses e a eles proporcionar
caminhos para ganhos financeiros, seja peça constituinte de uma estratégia de tal classe
comercial, no jogo de interesses conflitantes, em fazer prevalecer seus interesses numa
disputa desigual pelos lucros que a política de centralização do Império, aliada à hegemonia
fortalezense na obtenção de recursos do mercado internacional, fazia convergir
soberanamente para a elite da Capital. Analisar a existência e a natureza desta estratégia é o
que propomos para o capítulo seguinte, visualizando-a a partir da Comissão do Aracati, não
mais administrada por membros locais.