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S E T E M B R O

Tito de Andréa
Para minha avó
e também para todos os outros.
“O inferno é sem limites. Circunscrito
Não está a lugar nenhum, pois, onde estamos
Inferno é, e sempre aí estaremos:
Pra concluir, ao dissolver-se o mundo,
Purificada toda criação,
Lugar’s que o céu não sejam, são Inferno”

Marlowe
I

Sangue fresco em lençol branco,


é setembro, eles dizem,
– não se mate.

Sangue fresco, lençol branco,


é chegado o tempo das castanhas,
os sorrisos se escondem nos nomes
e nós, novamente, dançamos nus.

É setembro e o pior já passou,


dizem os astrólogos e os sábios,
pode-se descansar com os olhos fechados,
pode-se ficar em paz.

É setembro, sangue fresco, lençol branco,


não se mate, eles dizem, e eu, aqui,
fumo cigarros e encontro os amigos:

não somos mais tão jovens,


não guardamos mais nas barbas
algum tipo de esperança
ou encantamento:

fomos traídos ou enganados


em nossas buscas,
Eldorado, Atlântida, o túmulo de Deus,
a pedra filosofal, a razão da vida,
nada se concretizou.

Diabos me carreguem,
estou cansado e repetitivo,
é setembro e eles me querem vivo,
sangue fresco, lençol branco,
bandeira negra no horizonte,
lençol branco, sangue fresco,
é setembro, não esqueçam.
II

Novamente este inferno branco,


uma fotografia em contraste ao espelho,
no que foi que me tornei?

Os diabos comeram as pontas do meu bigode,


meus dedos, meus anos de sono,
minhas calamidades, meus cactos.

Os diabos atravessaram o deserto,


vieram, sobre meus ombros,
curvando minha coluna
e açoitando minhas costas.

Era fim de manhã


quando cheguei aqui:
era domingo, também.

Nada disso importa, agora


que o espelho é mais real
que o tempo passado.

É setembro
o que me tornei?
III

O nome do mês amarga na boca,


fumaça coagulada,
é setembro novamente
e eu, aqui,
azedo, com meus olhos, o leite.

Não tenho mais novidades,


diante do cataclismo inevitável
as palavras todas se calcificaram:
o que dizem
não basta ao mundo,
falta algo que lhes anime
algo que não esteja morto.

Não se mate,
é setembro,
eles dizem e estão certos:
sabem do que falam.

Eu, por minha vez,


trago um estômago cheio de pedras e
quando for ao poço
me afogarei
e darei companhia
aos cadáveres dos lobos.

Eis-me aqui
transmutado neste adiamento,
uma tortura em praça pública,
sob a luz do meio dia,
gritos, lágrimas, palmas.

Eis-me aqui,
um veneno estúpido
que estrangula, corrói
e faz cuspir sangue,
mas não mata.

Diabos me carreguem para longe,


me apanhem pelos sovacos,
me ponham sobre os pés,
guiem meus passos
e me abandonem novamente.

Diabos, diabos,
me tirem daqui e
então estarei,
novamente,
apto a ser abandonado.

O nome do mês preso na garganta,


esgasga, tosse, cospe e
mancha a calçada,
sangue fresco, outro cigarro,
é setembro:
morrer é proibido.

Precisamos, então,
de novas danças,
novas flores, novos dentes.

Algo está errado,


é setembro, precisamos
inventar uma saída,
cavar os dias com as mãos,
qualquer coisa que nos deixe a salvo
ou permita fingir que assim estamos:
morrer é proibido.

Diabos, clamo vosso nome novamente,


percorro com o dedo
a linha azul do mapa
de minhas peregrinações inventadas
e novamente padeço
de fome
de peste
de medo ou
de amores.

Todos os lugares são iguais.


IV

Estarei para sempre aqui,


não há novos caminhos
e o inferno permanece.

Setembro,
nenhum lugar para ir,
a casa não possui portas
nem janelas.

Setembro,
nenhum minuto a mais,
o tempo também se foi,
estamos abandonados
e morrer é proibido.

Do lado de fora,
o corpo se mantém como sempre,
é magro, cansado,
tem os olhos baixos,
nasceu com olheiras
e unhas grandes,
dizem.

Do lado de fora,
as promessas por cumprir
ainda ecoam.

Ninguém aqui
para afastar meu gêmeo natimorto,
esse fantasma que me acompanha,
um cadáver atado aos meus pés,
um afogado que me apodrece,
como as maçãs cortadas ao meio.
Ninguém aqui
além dessa presença
que me corrói pelo lado de fora
e cava seu caminho para dentro
do meu peito:

estou cansado, estou cansado


digo para mim mesmo
e não consigo dormir,
nenhum sono é permitido.

Do lado de fora
os olhos dos mais velhos
ainda ferem a nuca.

Caso ficasse atento,


poder-se-ia ouvir
os bons augúrios
se perdendo no vazio deste coração.

Do lado de dentro,
uma casa vazia e assolada pelo frio,
muitos quartos para ninguém,
fina camada de poeira.

Este coração não se moverá,


ficará estático entre uma batida
e a próxima.
É setembro, eles dizem,
eles nunca param.
V

Há um grito aqui,
eu o larguei em algum lugar,
mas, ainda assim,
sei que posso encontrá-lo
caso me concentre o bastante.

Mentiram-nos, meu irmão,


(Abdias, é convosco que falo)
estou aqui, coberto de teias de aranha,
sentado no centro de um círculo
que me mandaram desenhar
e tudo continua caindo,
ao redor,
como se parado no espaço:
uma fotografia do meu desespero.

Mentiram-nos, meu irmão,


nada mudou depois do desapego,
nada se fez novo depois do nirvana,
nada se iluminou depois do incêndio
e agora é setembro
e eles me dizem que fique calmo
e que não me mate.

(No que me tornei,


tu sabes?)

Há um grito aqui,
não me lembro o que dizia,
talvez pedisse socorro
ou, então,
clamasse pela morte,
não saberei dizer,
esta garganta não conhece mais a força.
Mentiram-nos, meu irmão,
ainda estou aqui,
olhando o fantasma de um sábio
que sorri e vai embora
montado em um búfalo.

Em meu sonho,
que dia sim, dia não,
se repete, eu o digo que fuja de mim,
caso o contrário…

Mas minha ameaça é tão vazia


quanto este choro,
ele sabe.

Mentiram-nos,
nada de bom virá.
VI

Isso não vai passar,


as feridas eternamente abertas,
o corpo já completamente seco,
uma ressaca perene,
gosto de madeira velha na boca,
a garganta cheia de farpas,
o estômago invadido pelos cupins.

Isso não vai passar,


esses minutos,
ansiedade,
o nome de meu tormento,
as mãos tremendo,
os olhos cerrados,
a cabeça: não,
não, eles dizem,
eles sabem o que dizem,
é setembro e é melhor escutar,
caso contrário…

Isso não vai passar,


os tendões esticados
como as cordas de um piano
que, eternamente martelado,
desafinou-se para além do reparo.

Isso não vai passar,


o corpo eternamente aberto,
as feridas completamente secas,
a cabeça, a garganta,
gosto de estômago velho nas paredes.

É preciso chorar baixo


para não incomodar os vivos,
para não atrair as traças,
manter os vermes no lado de dentro,
os pulmões cheios de terra,
isso não vai passar.

É preciso manter-se desperto,


o perigo consiste em fechar os olhos,
dar-se ao descanso,
permitir-se um segundo com os ombros leves,
eis a morada do diabo,
um segundo de distração
e então é setembro novamente
e isso não vai passar.

Estou condenado,
é ido o tempo do plural,
minha solidão e eu somos um só
e nada acontece aos outros,

estou condenado,
a boca eternamente aberta,
o estômago completamente seco,
os olhos, as paredes,
gosto de feridas velhas no corpo.

Não,
não vai passar…
VI

Novamente o inferno,
sangue fresco em lençol branco,
a terra cheia de cicatrizes,
os pulsos cobertos por ervas:

é setembro,
impera meu desespero
e a vida, essa urgência:
grita.

Novamente a brancura
e a fotografia
a negar o espelho,

no que foi que me tornei?


Pergunto ao retrato
e ele nada diz.

Da parede
minha bisavó olha para mim
e reprova o presente,

do passado as vozes ainda dizem


o que diziam,
como um oceano a estourar
contra as paredes dessa fortificação,

lentamente transformando
em areia o meu castelo.

Sangue fresco,
lençol branco,
nenhuma esperança
para iluminar este quarto,
nenhuma flor
a brotar do asfalto
dessa cidadela abandonada.

Foi a peste, dirão,


da mesma forma que falam
sobre o bom tempo
ou os sabores da infância.

Foi a peste, minha vida,


chegou como um gato,
deitou em minha cama
e jamais me deixou levantar.

Mas é setembro,
tempo bom para colher as frutas
ou andar nas ruas
desejando boa sorte
às velhas que fiam boatos.

É setembro,
o vento da tarde
varre as calçadas,
o chão, antes coberto de flores,
agora nublado por tantas lágrimas.

É setembro
bandeira branca
amarrada aos pulsos cortados,
cicatrizes na terra,
sangue fresco, lençol branco,
fomos traídos, nada acontecerá.

É setembro e todos dizem


mantenha-se aqui,
esteja alerto, sede forte,
ergue os braços, movimenta as pernas,
é setembro e em morrer não se pensa.

Entretanto aqui dentro


nenhuma pegada desarruma
este tapete de pó,

nenhum rangido de porta


ou janela sendo aberta
fere o silêncio deste abandono.

É setembro
e em morrer não se pensa.
Tito de Andréa
Fortaleza
Setembro de 2017
Serpentário
2017

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