Inserida no contexto latino-americano, a Venezuela partilha com seus vizinhos,
igualmente periféricos, um passado e também um presente não raras vezes marcado por crises econômicas e político-sociais, rupturas democráticas, golpes militares e intervenções estrangeiras. Desde o início de sua história constitucional em 1811, com a aprovação da primeira de suas 26 constituições (Lucca, 2012, 157 p.) – considerada por alguns a primeira da Ibero-América (Casal, 2019, p.100) –, aquele país sempre esteve às voltas com a luta pela efetivação uma experiência democrática e constitucional no seio de sua sociedade. Esse diagnóstico não é recente. Já nos idos de 1969 o jurista Ambrozio Oropeza, ao estudar a evolução constitucional de seu país, sustentava que “a divisão entre Estado constitucional e Estado autoritário, naquilo que diz respeito à forma da instituição, responde a um conceito preciso, a uma vivência claramente definida, a uma realidade política que abarca cada um dos momentos ou períodos da história venezuelana” (Oropeza, 1981. p. 16). Oropeza disse isso em um livro que comentava e saudava a Constituição Venezuelana de janeiro de 1961 que, em suas palavras, fez desaparecer o arcabouço normativo proveniente da ditadura imposta por Marco Pérez Jiménez, que permanecera vigente até aquele momento, anos após a queda do ditador em janeiro de 1958 (OROPEZA, 1969. P. 17. P. 19). Tal constituição, foi elaborada e promulgada no início daquilo que se denominou puntofijismo, acordo político entre partidos AD, Copei y URD – o Partido Comunista, embora muito tenha colaborado nas lutas para o fim do regime anterior, fora e excluído – que, ao ser assinado em outubro de 1958, balizou o caminho a ser feito para a restauração da democracia. Com tudo, esse modelo se esgotou ao longo dos seus 40 anos de duração, marcados por crises econômicas, protestos sociais e tentativas de golpes, merecendo destaque o Caracazo, manifestações turbulentas ocorridas em 1989 em função da redução do preço internacional do petróleo e das medidas econômicas propostas pelo FMI, implementadas pelo presidente Carlos Andréz Perez (Hitner, 2012). Foi na esteira desses eventos que, em 1999, Hugo Chávez Rafael Frias – militar que havia sido preso por participar, junto com o Movimento Quinta República, posteriormente transformado em partido político, da primeira tentativa golpe contra o presidente Andréz Perez em 1992 – chegou à presidência de seu país. O novo mandatário “ao assumir o país após um período de recessão econômica, declínio da participação popular e crise de representatividade, se propôs a reconstituir instituições políticas e a refundar a república” (Coelho, Rosa e Mendes, 2020, 10 p). Cumprindo aquilo que defendera em sua campanha, Chavez não tardou em efetivar as grandes mudanças prometidas em campanha. No primeiro minuto de seu mandato, ainda com as mãos sobre o texto constitucional de 1961, o empossando assim respondeu ao juramento: “Juro diante do meu povo e sobre essa moribunda constituição que impulsarei as transformações democráticas necessárias para que a nova república tenha una Carta Magna adequada aos novos tempos”. Desde aquela época, o núcleo do discurso opositor à Revolução Bolivariana já se centrava na alegação de fraude constitucional por parte do novo chefe de estado, especialmente em função da convocação, logo no começo do mandato, de um plebiscito que levou a uma Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de redigir um novo texto constitucional para substituir aquele promulgado em 1961 e promover a transformação do Estado (López, 2015, 358 p). A Constituição da República Bolivariana da Venezuela, nascida desse processo constituinte, é um documento vanguardista, repleto de avanços, sobretudo no campo dos direitos fundamentais e sociais. A oposição à Chavez, contudo, teve inicialmente muita resistência em aceitá-la. Isso também se deu com alguns renomados juristas, que dedicaram muitos livros e artigos em desfavor da constituinte de 1999 e da constituição por ela promulgada – foi o caso, por exemplo, de Allan-Randolph Brewer Carías e Jesus Maria Casal Hernandez. O amplo apoio recebido por Chávez, contudo, lhe assegurou um governo relativamente estável a despeito de ter sempre havido oposição interna e externa, democrática e golpista. Isso se vê especialmente no fracasso do golpe de estado de 2002, intentado por Pedro Carmona; na vitória do “não” no referendo revocatório, convocado em seu desfavor no ano 2004; na vitória do plebiscito que permitiu emendar a constituição para permitir reeleições sucessivas e ilimitadas para todos os cargos providos por meio de sufrágio popular; e em suas sucessivas vitórias eleitorais. Alguns atribuem isso às supostas características populistas de seu governo, mas é fato que houve efetiva redução das desigualdades socioeconômicas, eliminação do analfabetismo, redistribuição de renda, elevação do PIB, dentre outros feitos relevantes (Zero, 2017). Isso sem falar que os discursos críticos a respeito de “governos populistas” na América Latina deve ser visto com bastante receio (Gomes, 2022, p. 271). Sucede, todavia, que o respaldo popular e político à Chávez também oscilou durante seu longo governo (de 1999 ao início de 2013). Os processos político-sociais que se deram nesse ínterim são complexos e importantes, mas não convém tratá-los aqui com profundidade por razões de recorte. Limita-se, a despeito da superficialidade, a dizer que nas últimas eleições que disputou em 2012, Chávez ganhou pela menor margem de vantagem em relação ao segundo colocado em comparação aos demais pleitos em que participara – não há segundo turno nas eleições venezuelanas. Seguia forte, mas seus opositores passaram a ter um apoio crescente nas ruas e nas urnas que antes não tinham. Hugo Rafael Chávez Friaz morreu em decorrência de um câncer, em março de 2013, não completando seu período presidencial que iria até janeiro de 2019. Nicolás Maduro Moros, que acabara de ser eleito vice-presidente na chapa com Chávez nas eleições de 2012, concorreu novamente ao pleito convocado para 2013, dessa vez como cabeça da chapa. A despeito de sua vitória, pode-se dizer que o eleito não tinha a mesma habilidade política, respaldo partidário e sinergia popular que este seu antecessor (BASTOS; OBREGÓN, 2018). A eleição, acirrada (50,61% dos votos válidos para Maduro contra 49,12% dos votos válidos para o opositor Henrique Capriles, tendo havido participação de 79,65% do eleitorado) e questionada em função dessa pequena diferença de votos entre o eleito e o derrotado e das alegações de abuso de poder político feitas contra Maduro marcaram o início de uma nova fase no país. Protestos massivos e as vezes violentos não tardaram a aparecer. Essa nova etapa não se deveu apenas aos processos políticos, sociais e econômicos internos venezuelanos, mas também a questões da geopolítica internacional que são fundamentais para sua análise acurada. A principal delas, que perpassará toda a pesquisa é o fato de a sociedade venezuelana estar assentada sobre a maior reserva de petróleo do mundo. A esse respeito, para fins introdutórios, basta afirmar aqui que os programas sociais feitos por Chávez e a sua projeção internacional foram subsidiados pelo boom das commodities sobretudo no período de 2003 a 2008. Também as crises e convulsões, não só no governo Chávez mas também em todos os outros da segunda metade do século XX, sempre tiveram algum tipo de relação com a questão pretroleira. Já no final do mandato de Hugo Chávez se iniciaram as crises internacionais que desaqueceram a economia, reduziram a demanda por combustíveis e, consequentemente, levaram à redução do preço do barril de petróleo. Contudo, esse processo se intensificou após a sucessão de Nicolás Maduro quando, paralelamente, aconteceu a redução de recursos provenientes da extração do hidrocarboneto e o aumento da dependência nacional da exportação desse insumo (Coelho, Rosa e Mendes, 2020, p. 3). Nesse contexto em que se testava a viabilidade de um “chavismo sem Chávez”, sucedeu que Maduro foi “perdendo importantes respaldos políticos expressados no enfraquecimento de seu apoio eleitoral, na diminuição da popularidade do presidente e na aparição de dissidências políticas internas” (Maya, 2016, p. 169). A própria vitória apertada de que ele obteve, embora representasse, em alguma medida, a continuidade do legado chavista, acabou inaugurando um período novo desdenhosamente chamado por ex-apoiadores de Chávez, de “madurismo”. Nele houve um acirramento da divisão interna da sociedade venezuelana (sobretudo entre os ambientes urbanos e rurais) e um aumento da legitimação e do respaldo pouplar aos grupos opositores. Vale lembrar que, desde fevereiro 2014, uma ala mais estremada da oposição, organizou as chamadas guarimbas, grupos de resistência ao governo, cujos protestos violentos buscavam promover a sua derrocada por vias inconstitucionais. Articulados sobretudo por redes sociais, os guarimberos realizaram barricadas para o fechamento de vias e cercos a órgãos públicos que, frequentemente, resultaram em fortes embates entre os manifestantes e as forças de segurança. Foi nesse turbulento ambiente que se deu um evento bastante relevante: após a estratégia abstencionista adotada por grande parte dos partidos de oposição em 2006, da expressiva votação recebida pelos candidatos da MUD nas parlamentares de 2010 e do bom desempenho eleitoral de Enrique Capriles nos pleitos presidenciais de 2012 e 2013, pela primeira vez as agremiações opositoras passaram a controlar um dos Poderes do Estado venezuelano. Essa primeira derrota eleitoral do “chavismo” em 17 anos se deu nas eleições para o legislativo federal em 6 de dezembro 2015, quando a coalizão de partidos da Mesa de la Unidad Democrática conquistou 2/3 das 167 das vagas disponíveis. Até as vagas destinadas aos representantes indígenas, conquista relevante da Constituição de 1999, foram vencidas por opositores. Com isso os conflitos que já se acirravam nas ruas, bem como a fratura social existente no país, também passaram a se dar entre os Poderes do Estado, ensejando os eventos que aqui se buscam precipuamente compreender. Não que a oposição nunca tivesse acionado órgãos públicos para canalizar seus interesses. Isso, por exemplo, aconteceu quando ela logrou convocar o já citado referendo revocatório de 2004. Dessa vez, porém, os embates sociopolíticos assumiram a dimensão de uma crise institucional que não tardou a começar. Já em 30 de dezembro de 2015, a Sala Eleitoral do Tribunal Supremo de Justiça, órgão de cúpula do judiciário venezuelano, deferiu pedido cautelar (sentença 260 de 2015) para impedir a posse de três deputados opositores eleitos – representantes indígenas e do estado Amazonas –, tirando assim a maioria qualificada de 2/3 que a MUD acabara de lograr. Iniciou-se assim um duro choque entre a AN e o TSJ, marcado por avanços e recuos. Seu ponto mais grave se deu quando a Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justiça venezuelano declarou, por meio da sentença de nº 2, de janeiro de 2017, que o parlamento opositor estava em “desacato” à Constituição por se recusar a cumprir a medida cautelar exarada pela Sala Eleitoral. Com base nisso o órgão jurisdicional retrocitado atribuiu a si próprio uma competência legislativa extraordinária que perduraria até que a situação de desacato por ele apontada como inconstitucional se mantivesse. No ano de 2017 foi a sala constitucional, por exemplo, quem aprovou o orçamento público federal. Esse assunto ganhou repercussão de enormes proporções, recolocando a Venezuela no centro do noticiário internacional, sobretudo nas Américas e na Europa Ocidental. Foram tão negativas as reações internas e externas a essa decisão que a corte publicou duas sentenças aclaratórias, sem, contudo, deixar na prática de desconhecer todos os atos emanados pelo parlamento.
1.2. Tema-problema:
Esses embates políticos, sociais e econômicos na Venezuela foram e são, além de
relevantes, fonte de grandes controvérsias em toda a América Latina. Suas causas e as alternativas para a sua resolução dividem grupos sociais diversos – sobre tudo as esquerdas e as direitas políticas – em todo o continente. Como vimos, trata-se de crise persistente, dividida em vários e complexos estágios. Contudo, atem-se aqui que a fase mais aguda se deu quando, em 01 de maio de 2017, o presidente da república venezuelana convocou por meio de decreto uma Assembleia Nacional Constituinte. Tal convocação gerou debate imediado entre agentes de todos os grupos sociais no país. A querela entre apoiadores e detratores da constituinte recém-convocada girava em torno da adequada interpretação dos artigos 348, 347, 70 e 236 da Constituição da República Bolivariana da Venezuela bem como sobre a necessidade ou não de identidade entre o processo constituinte vivido no país em 1999 e aquele proposto em 2017. A principal crítica consistia em dizer que a constituição não permitia que o presidente convocasse uma assembleia constituinte, mas lhe atribuía a iniciativa para a convocação, cabendo ao povo, por meio de plebiscito, decidir a esse respeito. Nesse contexto, juristas venezuelanos propuseram diversas ações à sala constitucional do Tribunal Supremo de Justiça alegando a inconstitucionalidade do referido decreto, bem como de outros que regulamentaram a matéria. Dentre eles, Luísa Ortega Diáz, Procuradora- Geral da República nos governos de Chávez e de Maduro, que dissera haver no país uma verdadeira “ruptura del hilo constitucional”. O tribunal rejeitou todas as demandas argumentando, dentre outras coisas, que a soberania popular também se exerce de forma representativa – citou Enrique Dussel para isso – e que o presidente procedeu em representação dos cidadãos. Os processos sociais, políticos e econômicos que levaram à constituinte de 2017 e que se seguiram a ela até o seu encerramento em dezembro de 2020 são de alta complexidade e, por isso mesmo, incontornáveis para quem quiser compreendê-la. Aliás, o recente fim da Assembleia Nacional Constituinte, que se deu de sem a elaboração de um novo projeto de constituição, transcorreu sem que houvesse grandes mobilizações sociais internas e sem muita visibilidade na esfera internacional, contrastando grandemente com o que se deu em sua convocação. Naquele primeiro momento houve manifestações massivas – inclusive violentas –, movimentações políticas, rupturas e alianças partidárias, posicionamento diplomático de grande número de países, sanções e ampla divulgação tanto da mídia nacional quanto internacional. Tudo isso se deu tanto a favor ou contra a referida convocação. Juristas, sociólogos, analistas políticos, dentre outros intelectuais, lançaram, tanto no espaço acadêmico quanto no espaço público, seus argumentos a favor da correção ou incorreção desse ato governamental. Além disso, por parte da direita latino-americana termos como venezuelalização, e bolivarianismo – expressos de forma demeritória – ou xingamentos como “vai pra Venezuela” se tornaram frequentes. Passava aquele país a ser para parte expressiva da direita local a encarnação daquilo que ela apontava serem os terríveis males dos governos de esquerda. Enquanto isso, as esquerdas se dividiram entre criticar ferrenhamente o processo constituinte ou a defendê-lo. Essa divisão se deu também nos ambientes acadêmicos progressistas. Foi nesse contexto que Enrique Dussel fez as seguinte ponderações: “yo creo que debemos, en último caso, guardar una cierta distancia de juicio. No pido tampoco que algunos aprueben la revolución y den todos los argumentos a su favor, pero tampoco puedo estar de acuerdo que desde afuera hace un juicio negativo a un proceso que está siendo totalmente instrumentalizado por la mediocracia dirigida desde Estados Unidos contra el país que tiene la más grande reserva de petróleo del mundo” (Dussel, 2017). Tendo em conta toda a complexidade do que está em estudo, aproxima-se assim de um tema a ser trabalhado, a saber: As tensões entre as idealizações normativas próprias do constitucionalismo e a facticidade das relações sociopolíticas e econômicas na crise constituinte venezuelana para a compreensão do problema da legalidade/legitimidade da Assembleia Nacional Constituinte de 2017. Logo de saída é preciso fazer um esclarecimento. Sobre essa alusão à legalidade e legitimidade de um processo constituinte, há que se dizer que não se pretende aqui, na esteira das teorias tradicionais, a busca de uma abordagem exclusivamente normativista ou a defesa de um formalismo vazio. É evidente que textos normativos, atos administrativos, acordos parlamentares e decisões judiciais são fundamentais para a pesquisa. Todavia eles serão analisados em seu contexto, à luz dos processos sociopolíticos e econômicos em que se formaram. Não, porém, de forma apartada, mas conjuntamente, de forma a articular as idealizações normativas próprias da lida com textos normativos e atos estatais com os conflitos concretos experimentados pelos agentes sociais, situados no espaço e no tempo, em suas disputas na esfera pública acerca do sentido de e da constituição. O que se objetiva com isso é evitar tanto o risco de um normativismo abstrato quanto o de um realismo político que desconsidere a normatividade. Ademais, o conceito de legalidade não será abordado por meio de uma abordagem meramente semântica ou exegética dos textos, não somente como “a observância correta das formas e dos trâmites prescritos, mas [como] um conceito enfático, não apenas [como] um incômodo exercício de um dever 'formal', mas [como] expressão da materialidade do ordenamento constitucional” (Muller in Carvalho Netto, 2002, p. 171) Não se quer também, tal como parte dos constitucionalistas brasileiros fizeram com a constituição de 1988, prestar atenção exclusivamente ao processo de convocação sem atentar para a forma como os trabalhos da constituinte se deram. A constituição brasileira é exemplo de que a cidadania pode assumir as rédias de processos político-jurídicos dos quais as elites quiseram mantê-la afastada. É por isso que o início dos trabalhos da ANC são fundamentais para uma resposta ao problema. Chegamos assim, a partir daquilo que se pretender e do que se quer evitar à formulação da seguinte questão problema: Analisando o lapso da crise constituinte venezuelana transcorrido entre dezembro de 2015 e dezembro de 2017, como abordar, no marco de uma Teoria Crítica da Constituição, o problema da (i)legitimidade da convocação da Assembleia Nacional Constituinte 2017 compreendendo a normatividade constitucional como elemento de tensão nos próprios processos político-sociais e econômicos observados?
2. OBJETIVOS
2.1 Objetivo geral:
Compreender, por meio de uma abordagem crítica, como os processos político-sociais
e econômicos ocorridos no período da crise constituinte venezuelana entre dezembro de 2015 e dezembro de 2017, resultaram na (i)legitimidade da Assembleia Nacional Constituinte venezuelana de 2017.
2.2 Objetivos específicos:
A) Recuperar parte da história política, social, econômica e constitucional
venezuelana, sobretudo a partir da transição do texto constitucional de 1961 para o de 1999, buscando vê-la como processo de longo prazo, marcado por avanços e retrocessos. Isso é necessário para, partindo da perspectiva do observador, contextualizar e compreender os eventos de 2016 e a constituinte que eles ensejaram não como mera crise do constitucionalismo liberal ou como “processo desconstituinte”, mas sim como mais uma das etapas da “crise constituinte” da qual os países periféricos não se livraram. B) Analisar os conflitos sociais em torno da constituinte de 2017 a partir da ótica dos participantes, observando-os como disputas acerca do que é uma constituição e do sentido dos textos normativos constitucionais em jogo. O objetivo é reconstruir a partir dessas disputas aquilo que Habermas chamou de “fagulhas e centelhas de uma razão existente” (Habermas, 2020, p. 369). C) Analisar a convocação da Constituinte venezuelana de 2017 considerando os processos sociais que lhe precederam bem como aqueles que lhe seguiram buscando articular as expectativas normativas inerentes ao Estado Democrático de Direito com as investigações empíricas destinadas a analisar a política a partir da ação estratégica dos seus agentes ou das operações sistêmicas de reprodução material. Isso para, além de tratar o caso objeto desse trabalho em um nível adequado, também promover a crítica de alguns livros e artigos da recente literatura que abordam a crise constituinte venezuelana. Textos esses que, não raramente, são marcados por um normativismo abstrato, sem preocupações com a faticidade das relações sociais, ou por um realismo político desprovido de normatividade.
3. JUSTIFICATIVA
3.1. Aderência à linha e à área de pesquisa
4. REVISÃO DE BIBLIOGRAFIA
5. METODOLOGIA
5.1. Marco teórico
Situa-se aqui no marco de uma Teoria Crítica da Constituição e da Sociedade à medida
que, no estudo da sociedade, se pretende lançar mão de critérios e padrões críticos imanentes a ela própria. Nos inserimos nessa tradição de pesquisa, cujas origens se remonta ao texto “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, escrito por Max Horkheimer em 1937, por meio das “Contribuições Críticas de Marcelo Cattoni para uma Teoria da Constituição” (2017, 131 p) e dos “Estudos Preparatórios” que David Gomes agrupou para propor “uma Teoria da Constituição como Teoria da Sociedade” (2022, 346 p). Com Cattoni busca-se uma Teoria Crítica da Constituição não reduzida à mera crítica ideológica, mas sim de matriz reconstrutiva, todavia, atentar às necessárias ressalvas desconstrutivas (Cattoni, 2017, p. 5-7). Para isso, nos passos do autor em questão, adere-se ao paradigma da teoria da comunicação (Habermas, 2020, p. 33-77), aos aspectos gerais da Teoria Social habermasiana e ao papel nela desempenhado pelo direito e, especialmente, pela constituição. Tal recepção de Habermas não é feita de modo purista, mas sim em um diálogo com outros autores que se dedicaram a pensar a sociedade moderna – sobretudo W. Benjamin, G. Marramao, A. Honneth e J. Derrida – bem como as exigências de uma teoria jurídica capaz de tratar de maneira adequada o direito no âmbito do Estado moderno – Sobretudo F. Müller e R. Dworkin, além de muitos outros (Gomes, 2020, p. 146). Com Habermas busca-se dar ao enfoque crítico uma necessária matriz reconstrutiva para assim observar os processos sociopolíticos venezuelanos sem estabelecer uma “contraposição entre ideal e realidade, pois o conteúdo normativo, considerado de início em termos reconstrutivos, encontra-se parcialmente inscrito na facticidade social de processos políticos observáveis” (Habermas, 2020, 369). Manuel Jiménes Redondo, na introdução à tradução espanhola que fez de Faticidade e Validade, aclara o que seria uma teoria reconstrutiva ao dizer que ela busca recuperar “a idealidade imanente à facticidade da realidade como aguilhão e elemento de tensão operante nessa mesma realidade” (Jiménez Redondo in Habermas, 1998, p. 13). Trata-se, mais uma vez nas palavras de Habermas, de trabalhar conceitos fundamentais que permitam à pesquisa “identificar partículas e fragmentos de uma razão existente já incorporados nas práticas políticas, por mais distorcidas que possam ser” (Habermas, 2020, p.369). Todavia, nem só de reconstrução pode viver uma Teoria da Constituição que se pretenda crítica, porquanto, se os referidos critérios para a crítica social são imanentes à própria realidade social, não se pode deixar de lado a análise da sociedade também para verificar se a dimensão normativa que se desenvolveu na passagem à modernidade, exatamente pelo fato estar sempre aberta à interpretação/reinterpretação por meio das relações político-sociais, possa ter perdido seu sentido original (Cattoni, 2017, p 6-7, 111). Para isso, Marcelo Cattoni recupera as contribuições de Axel Honneth, autor da terceira geração da chamada “Escola de Frankfurt”. Segundo Cattoni “é preciso fazer, como sugere Honneth, as devidas ressalvas 'genealógicas' (Honneth, 2011, p. 61-63) e estarmos atentos para o risco, sempre presente, de uma situação que possa vir a ser a ser caracterizada como um caso de abuso de direito ou de tentativa de lançar a constituição contra a própria constituição, ou seja, um verdadeiro caso de fraude à constituição”. (Cattoni, 2017, p. 111). Procedendo dessa forma, densificando seu método a partir de um diálogo com a Teoria Estruturante do Direito de Friedrich Müller e com seu processo metodológico estruturante, nascido “da constatação da inadequação das representações tradicionais, inclusive da norma jurídica [...] em face das exigências práticas que os princípios do Estado Democrático de Direto impõem ao trabalho com as normas” (Carvalho Neto, 2002. p. 171), Marcelo Cattoni insiste na necessidade de fugir de uma abordagem dualista (real vs. Ideal), de modo que “o próprio Direito Constitucional po[ssa] ser visto como a expressão normativa e contrafactual dos processos políticos e sociais. Em outras palavras, a perspectiva de uma teoria da efetividade constitucional” (Cattoni, 2017. P. 108). A partir daí podemos trabalhar, desde a perspectiva dos participantes, o problema da legitimidade e da efetividade no processo constituinte de 2017, fundamental para resolução da situação-problema aqui proposta, sem incorrer no erro do dualismo metodológico próprio das teorias tradicionais. Ao contrário, essas duas dimensões serão tratadas como “‘tensões constitutivas’ [...] na legalidade mesma do direito e do direito constitucional enquanto constitucionalidade” (Cattoni, 2017, p.108). Só por meio dessa compressão de que a legalidade, a legitimidade e a efetividade estão implicadas no próprio conceito de constitucionalidade é que se pode, “a partir de uma teoria da sociedade em termos de uma teoria da comunicação” (Cattoni, 2017, p.), aferir a (i)legitimidade e a (in)efetividade dos processos de constitucionalização não “em função de uma maior ou menor correspondência, em maior ou menor medida, entre um dado conteúdo constitucional e a realidade dos processos sociais”, mas sim a partir da possibilidade de que “o próprio sentido de e da constituição [seja/possa ser] objeto de disputas interpretativas e, portanto, políticas, na esfera pública (Cattoni, 2017, p.). Contudo, para assumir de forma ainda mais complexa “a herança e os desafios atuais da Tradição da Teoria Crítica da Sociedade” (Cattoni, 2015) toma-se aqui algumas considerações feitas por David F. L. Gomes no primeiro volume da obra que reúne seus “estudos preparatórios” num projeto de pesquisa que busca posicionar a “Teoria da Constituição como Teoria da Sociedade” (2022, 346 p)).
Recuperando a afirmação de Habermas de que “toda teoria da sociedade que se reduza
a teoria da comunicação está sujeita a limitações que é necessário ter bem presentes” (2003, p. 168), David Gomes pondera que, a despeito da extrema importância do ponto de vista do participante, tratado a partir do mundo da vida por meio de uma teoria da comunicação, ele “precisa ser complementado pelo ponto de vista do observador”, especialmente por meio da “crítica a essa dimensão sistêmica capitalista” (2022, p. 163). Isso é necessário para evitar aquilo que Gomes conceitua como “Deficit Sociológico”, ou seja, “a ausência de uma teoria da sociedade como marco geral no bojo do qual se desenrola uma reflexão teórica e, portanto, como ponto de partida epistêmica e metodologicamente necessário dessa reflexão” (2022, p. 254). Tomando como exemplo os processos revolucionários ocorridos na Europa Ocidental no final do século XVIII, Gomes propõe que a luta por novas instituições que neles se deram consistiram em uma forma de se livrar daquela institucionalidade já caduca porquanto não mais espelhava adequadamente “as novas possibilidades e os novos desafios que a integração dessa nova sociedade traz[ia] consigo” (2022, p. 254). Ao especificar essa ideia afirma o autor que “as constituições modernas e o constitucionalismo moderno somente se dão a ver com clareza quando compreendidos como tentativas modernas de resposta a problemas tipicamente modernos de integração da sociedade” (Gomes, 2022, p. 254). A partir disso o autor passará a sustentar a relação originária e umbilical entre o capitalismo nascente e o constitucionalismo moderno que buscará viabilizar condições ótimas para o desenvolvimento daquele sistema econômico. Para ele uma Constituição moderna, além de todas as funções clássicas que corretamente lhe são atribuídas, também promove a institucionalização, “em seu mais elevado grau, tanto das condições de reprodução da economia de troca capitalista quanto das condições de uma aprendizagem social que encontra seu lugar no interior de práticas comunicativas contrafaticamente livres de coerção” (Gomes, 2016, p. 244) Essa coexistência no seio da constituição “tanto das condições de reprodução do modo produção capitalista quanto das condições que podem em alguma medida lhe fazer frente” (Gomes, 2016, p. 244) fará com que, ao longo da modernidade, haja uma tenção constante entre as exigências da economia de trocas capitalista e as expectativas normativas intrínsecas ao constitucionalismo. Um ponto relevante proposto por David Gomes está em sua advertência a respeito do risco de trabalhar as definições de modernidade, de sociedade moderna, de constitucionalismo moderno e das constituições modernas de modo demasiadamente abstrato (Gomes, 2022, p. 267). Isso porque, tal como se acolhe que uma análise concreta é importante para a análise dos processos de reprodução social o mundo da vida, também se reconhece sua indispensabilidade para considerar a reprodução sistêmica. Ademais, é certo que as tensões entre capitalismo e constitucionalismo não se dão de forma homogênea em todo o mundo. Ao propor esse retorno “dos voos da abstração em direção ao solo da concretude social cotidiana” David nos diz que é importante ter em conta duas refrações a respeito dos conceitos acima citados: uma no plano histórico da formação dos paradigmas jurídicos e a outra no plano geopolítico, subdividindo essa última duas: uma na relação centro-periferia vista a partir da teoria da dependência e outra em relação à “história singular de uma sociedade específica” (Gomes, 2022, p. 267-280). Essas refrações se mostram imprescindíveis na compreensão de uma sociedade específica, a venezuelana, estabelecida no espaço e no tempo, afinal, a tendência de estabilização na tensão entre constitucionalismo e capitalismo que se verifica nos países centrais não se dá na periferia. Ao contrário, essa relação parece ser inversamente proporcional. Isso se torna mais claro quando, por exemplo, se vê a relação indissociável entre o preço internacional do petróleo e os processos de desintegração político-sociais havidos na esfera pública venezuelana. Além disso, a própria discussão a respeito da aplicação ou do levantamento das sanções aplicadas àquele país, embora seja justificada nas arenas internacionais como pressões ao governo local a respeito de suas alegadas práticas antidemocráticas, está intimamente ligada à demanda comercial dos países centrais. É assim que podemos melhor compreender e trabalhar o conceito de Crise Constituinte, de Paulo Bonavides, como “crise do próprio poder constituinte; um poder que quando reforma ou elabora a Constituição se mostra, nesse ato, de todo impotente para extirpar a raiz dos males políticos e sociais que afligem o Estado, o regime, as instituições e Sociedade mesma em seu conjunto” (Bonavides, 2004, p. 383). Tal crise se diferencia das crises constitucionais que se dão nos países centrais em na sua maior profundidade e resiliência. Nas palavras de Bonavides “a crise constituinte que naqueles [os países centrais] é a exceção nestes [os países periféricos] é a regra” (2004, p. 384). Esse conceito bonavidiano, todavia, é recuperado a partir das observações que Gomes faz a seus respeito, sobretudo em função do conceito “vazio e homogêneo” de povo que lhe é subjacente (2020, p. 66-69).
5.2 Métodos e técnicas de pesquisa
Por se situar no marco acima apresentado, o problema proposto será abordado de
forma necessária e efetivamente “interdisciplinar, histórica, crítico-reconstrutiva [com ressalvas genealógicas (Honneth, 2011, p. 59-63) ou desconstrutivas (Cattoni de Oliveira, 2017, p. 111] e antidualista, que se remete às ‘amplas tarefas de uma teoria crítica da sociedade, da modernidade e da razão’ [...] (Cattoni, 2017, p. 101). Busca-se assim congregar teoria e práxis, de modo a articular o direito e a política sem descuidar dos aspectos econômicos. Para dar conta da tarefa de, nesse diapasão, compreender o caso da crise constituinte venezuelana no período acima delimitado, adota-se, os raciocínios indutivo e dedutivo, em pesquisa qualitativa, com as técnicas de análise documental e revisão bibliográfica. As fontes a serem trabalhadas na pesquisa, primárias e secundárias, serão privilegiadamente de origens venezuelana, sem deixar de atentar para outras fontes latino-americanas, sobresaindo-se dentre elas as brasileiras. As fontes primárias a serem trabalhadas são textos normativos da República Bolivariana da Venezuela, documentos oficiais exarados pelos Poderes e outras entidades governamentais daquele país, a jurisprudência do Tribunal Supremo de Justiça, pronunciamentos e entrevistas de agentes políticos relevantes (partidários ou não), posicionamentos oficiais de partidos, sindicatos, associações e ONG's, dados estatísticos, matérias publicadas em jornais e blogs, as manifestações diplomáticas de governos estrangeiros e outros organismos internacionais, dentre outros. Abaixo segue uma especificação dos dados genericamente acima referidos: O texto normativo que mais interesse possui em uma empreitada da natureza que aqui se propõe é naturalmente o da Constituição da República Bolivariana, vigente desde 1999, sobretudo na parte que estabelece as competências dos Poderes Legislativo (arts. 186 a 224), Executivo (arts. 225 a 252) a e Judiciário (arts. 253 a 272) federais, bem como quando trata das formas de convocação de um Assembleia Nacional Constituinte (arts 347 a 350). Também o regimento interno da Assembleia Nacional e da Assembleia Nacional Constituinte são de relevo, juntamento com as leis constitucionais promulgadas pela ANC. Tais documentos podem ser encontrados virtualmente na “Gaceta Oficial de la República”. Dentre os atos administrativos e outros documentos exarados pelos Poderes nos interessam, sobretudo os decretos por meio dos quais o presidente Nicolás Maduro convocou e regulamentou as eleições para a ANC, disponíveis na “Gaceta Oficial”. Também os acordos feitos no âmbito da Assembleia Nacional eleita em 2015 no contexto de seu atrito com o Executivo, o Judiciário e a ANC. Como essa Assembleia foi desconhecida pelos demais Poderes venezuelanos seus atos não foram publicados na “Gaceta Oficial”, mas podem ser encontrados por meio de documentos disponíveis no site da Associação Fermín Toro de Estudos Parlamentares. A jurisprudência do Tribunal Supremo de Justiça, disponível no site da corte, é de suma importância para recuperar a forma como a corte, diante dos conflitos que lhe foram submetidos para a apreciação, valorou os argumentos das partes e os textos normativos em disputa. Desde a declaração da inabilitação dos candidatos que davam maioria qualificada à oposição, passando pelas sucessivas declarações de inconstitucionalidade dos atos do parlamento – ao argumento de vício formal acarretado pelo desacato –, até a declaração da constitucionalidade da convocação e eleição da ANC, o TSJ desempenhou um papel fundamental nas controvérsias havidas no país. Os pronunciamentos e entrevistas de agentes político-sociais (partidários ou não) é relevante para observar como os debates na esfera pública provocaram e, ao mesmo tempo, reagiram às decisões tomadas pelos órgãos estatais. Evidentemente, a vastidão de pessoas e grupos envolvidos nos conflitos em tela exige a seleção de alguns representantes a partir de critérios que, embora possam ser mais bem trabalhados futuramente, se orientem sobretudo pela grande capacidade de mobilização de suas ações e palavras, bem como pela tentativa de, a partir dessas figuras/agrupamentos chave, abarcar uma diversidade de posições e ideologias. Tais serão recuperadas por meio de declarações e entrevistas, escritas ou audiovisuais, registradas em páginas web de partidos políticos, jornais e blogs, bem como em redes sociais (Twitter, Youtube, Facebook etc). Escolhe-se, pois, a princípio, políticos do PSUV (Nicolás Maduro, Diosdado Cabello, Delcy Rodríguez e Jorge Rodríguez); políticos da MUD (Juan Guaidó, Henrique Capriles e Maria Corina Machado); representantes da dissidência chavista (Gustavo Márquez, Germán Ferrer e Luisa Ortega Díaz); representante do grupo de dissidência opositora chamada “mesita” (Timoteo Sambrano, Claudio Fermín e Javier Bertucci); juristas (Jesus Maria Casal, Jesus Silva R., Hermann Escarrá e Edgardo Lander); jornalistas (Patricia Poleo, José Vicente Rangel e Vladimir Villegas); e analistas políticos (John Magdaleno, Jesus Seguías e Luis Aguilar) e economistas (Luis Vicente León, Víctor Alvarez, José Guerra e Tony Boza). A colheita de posicionamentos oficiais de universidades e de outros grupos da sociedade civil também se dará por dos sites e redes sociais sendo, provisoriamente, selecionadas a Universidade do estado Zulia, a Universidade Católica Andrés Bello, a Universidade Nacional para a Segurança e a Universidade Central da Venezuela, bem como a Confederação de Trabalhadores da Venezuela, a União Nacional de Trabalhadores da Venezuela, a Liga de Trabalhadores pelo Socialismo e a Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela. Os dados estatísticos a serem trabalhados são aqueles que permitem comparar a evolução ou retrocesso do desenvolvimento social nacional, a expansão ou contração da economia (com especial atenção para os índices ligados à produção e precificação internacional do petróleo). Com eles busca-se compreender a forma como os imperativos econômicos que se impunham no curso dos processos político-sociais, bem como o seu impacto nas condições de vida de grupos sociais diversos. Atenção também deve ser dada às pesquisas de opinião feitas em nível nacional a respeito dos mais diversos temas políticos, eleitorais e sociais em geral. Elas conservam a fotografia da opinião pública em momentos relevantes e permitem melhor compreender quais sentimentos e tendências predominavam entre os grupos consultados. As informações estatísticas serão coletadas junto a organismos nacionais e internacionais, bem como de empresas venezuelanas especializadas e reconhecidas como Datanálisis e Polianalítica, dentre outras. Seu tratamento adequado implica em não tomar seus indicadores de forma isolada, mas sim conjugados com outros que descrevam qualitativamente os processos sociais e seus potenciais (Habermas, 2020, p. 408). A despeito do tratamento cuidadoso que exigem em função das abordagens tendenciosas em algumas linhas editoriais, as matérias e análises contidas em jornais – escritos ou televisivos – e blogs também são importantes não só não para compreensão dos eventos que narram, mas também da própria forma como determinados grupos de interesses, a partir de suas linhas editoriais, produzem o conteúdo informativo que fornecerão aos consumidores de informações na esfera pública. Para isso recorreremos aos sites dos jornais El Tiempo e El Nacional, aos blog Aporrea e àquele que pertence ao constitucionalista Jesus Silva R., e aos vídeos e matérias disponibilizados nas páginas das emissoras Telesur, Venezolana de Television e Globovisión. Por fim as manifestações diplomáticas de governos estrangeiros e de algumas organizações internacionais são fundamentais pois permitem compreender como elas reagiam às questões internas daquele país, seus interesses, sua coerência, mas sobretudo o efeito delas nas relações políticas, sociais e econômicas nacionais. Para isso atentaremos às manifestações e ações concretas dos Estados Unidos, dos países latino-americanos, do Grupo de Lima, da União Europeia, da OEA e da ONU. Os dados acima mencionados não devem ser trabalhados de forma estanque como se tratados isoladamente dessem conta da complexidade o do problema jurídico social que se busca compreender. Na verdade, se objetiva que todos sejam trabalhados de forma conjunta e interdependente, servindo como contexto uns para os outros. Desse modo é nítido que não se propõe uma abordagem meramente comparativa dos dado a fim de identificar “contrastes ou hiatos entre um direito constitucional que se pretende legítimo e realidades político-sociais e econômicas recalcitrantes, um ideal a ser buscado e uma crua realidade” (Cattoni, 2000, p. 95). Ao contrário, reitera-se que, na esteira do programa de pesquisa que vem sendo desenvolvido por Macelo Cattoni desde a sua tese de doutorado, pretende-se “um enfoque multidisciplinar e um pluralismo hermenêutico, pragmático e metodológico, que não teme a equivocada acusação de ecletismo metodológico, de tal modo que uma abordagem normativa não perdesse de vista seu contato com a realidade, nem uma abordagem objetivista excluísse aspectos normativos, mas permanecessem em tensão” (Cattoni, 2017, p. 103). Um modo de fazer isso é, por exemplo, conjugar os textos normativos com os atos administrativos que neles se justificam, com os discursos político-sociais que defendem a (i)legalidade de tais atos; com protestos de massa que discursos mobilizam, com as coberturas jornalísticas que enaltecem ou desmerecem tais manifestações, com dados estatísticos que buscam fotografar a opinião pública a respeito das disputas; com o discurso dos acadêmicos a respeito desses dados, com os resultados eleitorais que expõe a derrota ou vitória de programas de governo debatidos e mais ou menos implementados, com a recepção que os órgãos estatais fazem dessas disputas, canalizando-as para si e, ao mesmo tempo, retroalimentando os debates na esfera pública. As possibilidades são muitas, mas o que mais importa é não perder de vista que e “uma intensa disputa jurídico-política a respeito do sentido de e da constituição pode representar, por um lado, exatamente, a centralidade que a constitucionalidade adquiriu ao longo da história (Cattoni, 2017, p. 110). Grifamos que pode representar, pois é sempre preciso atentar para as contradições performativas daqueles discursos e práticas, vindas ou não de agentes estatais – inclusive de juristas –, que, embora se apropriem das ideias de constitucionalidade e legalidade, pervertem seu sentido numa tentativa de fraude constitucional. A mesma conjugação de dados também deve ser feita para que, da perspectiva do observador, se possa ter uma visão com a igualmente complexa. Todavia, o foco não está mais nos participantes dos debates públicos, mas sim nos entraves que o modo de produção capitalista traz para as pretensões normativas do constitucionalismo. Pode-se conjugar, por exemplo, os interesses geopolíticos dos Estados Unidos na região com as suas manifestações diplomáticas, com as sanções que ele impôs e fez com que outros países impusessem ao governo venezuelano, com o impacto destas nos indicadores sociais, com os discursos e protestos em massa acerca das pioras nas condições de vida, com o reflexo do aumento da pobreza na insatisfação de parcela expressiva da população em relação à classe política e às instituições democráticas, com as tentativas de golpes de estado e saídas violentas.
5.3. Estratégias para a utilização de obra em língua estrangeira