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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

O DESENHO EM CONTEXTO DE ARTE-TERAPIA PARA PESSOAS


COM DOENÇA MENTAL

João Maria D'Oliveira e Sousa Garcia Ferreira

Trabalho de Projecto

Mestrado em Desenho

Trabalho de Projeto orientado pelo Prof. Doutor António Pedro Marques

2019
DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, João Maria D’Oliveira e Sousa Garcia Ferreira, declaro que o presente trabalho de projeto
de mestrado intitulado “O Desenho em contexto de arte-terapia para pessoas com doença
mental”, é resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e
todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia bem como nas
outras listagens de fontes documentais que incluem as citações directas e indirectas, presentes
e devidamente assinaladas ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa 23-06-2019

1
RESUMO

Na presente dissertação, irá ser analisado o papel do desenho em contexto de arte-terapia para
pessoas com doença mental, a partir de dois segmentos que de seguida iremos identificar. O
primeiro, terá por base uma investigação teórica, levada a cabo em torno da ligação do
desenho com a doença mental, bem como do seu posterior uso em contexto de arte-terapia. Já
a segunda parte, terá por base um relatório de um projecto de arte-terapia para pessoas com
doença mental, projecto esse desenvolvido pelo autor em parceria com o Departamento de
Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém, no qual foram desenvolvidas oficinas de arte e
onde o desenho foi uma das competências artísticas abordadas com maior preponderância.
Relativamente à investigação teórica, em primeiro lugar, será feita uma análise da
terminologia que caracteriza a doença mental, enfatizando o significado da palavra “loucura”,
que ao longo da história adquiriu leituras diferentes. Será também dado foco à área da
psicopatologia visto que apresenta hoje um papel determinante na classificação, diagnóstico e
tratamento das várias doenças mentais.
De seguida, como forma de entender a ligação do desenho com a doença mental, iremos
abordar dois exemplos que a ilustram. O primeiro assenta na ​Arte Bruta,​ termo criado e
desenvolvido pelo artista Jean Dubuffet, que engloba a produção artística oriunda de meios
mais alternativos, que incluem trabalho de desenho desenvolvido por pacientes com doença
mental. Já o segundo exemplo implica a análise de uma série de estudos levados a cabo pelo
psicólogo Hans Eysenck, a partir dos quais este explorou uma possível ligação objetiva entre
a criatividade e a doença mental.
Posteriormente, a partir dos exemplos do percurso dos artistas William Kurelek e Yayoi
Kusama, abordaremos o papel da arte na forma como ambos lidaram, e no caso de Kusama
ainda lida, com as adversidades inerentes às respectivas doenças mentais, percebendo em que
medidas esse papel da arte se veio a revelar benéfico, sendo esse o ponto introdutório à
percepção da inserção do desenho em contexto de terapia.
Seguidamente, tentaremos situar a origem e o desenvolvimento inicial da arte-terapia num
contexto clínico para pacientes com doença mental, a partir do trabalho pioneiro de Nise da
Silveira e de Edward Adamson, que desenvolveram ateliers de desenho e pintura para essa
referida finalidade.
Finalmente, de forma a percebermos como é hoje encarada a arte-terapia dentro da área da
saúde mental, bem como os benefícios que decorrem dessa prática, analisaremos uma série de
artigos científicos que se baseiam no uso da arte enquanto ferramenta terapêutica para
pessoas com doença mental, dando aqui, mais uma vez, ênfase ao papel do desenho, pois é
esse o principal foco deste trabalho de investigação.
Na segunda parte desta dissertação, apresentaremos o relatório do trabalho prático realizado
em torno do projecto de arte-terapia para pessoas com doença mental intitulado ​Incluir -
Oficinas para todos e para cada um,​ que o autor desenvolveu em parceria com o
Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém. Serão descritas todas as fases
do desenvolvimento do projecto, nomeadamente a ideia, os objectivos iniciais, o

2
financiamento e as competências artísticas a serem desenvolvidas nas oficinas, devidamente
justificadas pelas referências utilizadas.
Serão de seguida analisados os resultados do projecto, a partir de uma perspectiva empírica,
por parte do autor, relativamente ao progresso dos participantes e da reacção que tiveram às
várias técnicas abordadas nas oficinas, especificando o desenho, base e ponto de partida para
todo o trabalho artístico desenvolvido ao longo do projecto.
Finalmente, ainda referente ao relatório, serão apresentados os dados relativos ao estudo da
análise quantitativa levada a cabo pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de
Santarém, em torno do impacto positivo do trabalho desenvolvido nas oficinas quanto à
autoestima dos participantes, bem como ao nível de preconceito tido por parte da comunidade
relativamente à doença mental. A partir desses dados e da descrição daquilo que foi a reacção
dos alunos às competências artísticas desenvolvidas nas oficinas, faremos uma reflexão final
do projecto, acrescida de sugestões para futuras iniciativas, percebendo como foi importante
o desenho neste projecto e como pode ser aplicado noutras iniciativas idênticas.

Palavras-Chave
Arte-terapia, Desenho, Doença mental, Benefícios, Loucura

3
ABSTRACT

In the present dissertation, we will analyse the role of drawing used in art therapy for people
with mental illness, based on two segments. Firstly, we will carry out a theoretical
investigation based on the connection between drawing and mental illness, as well as its use
in the context of art-therapy. Secondly, we will do report based on an art-therapy project for
people with mental illness, developed between the author and Santarém’s Hospital Psychiatry
Department, in which art workshops were developed, being drawing one of the artistic
competences approached with greater preponderance.
Regarding theoretical research, firstly, we will analyse the terminology regarding mental
illness, emphasising the meaning of the word "madness", which throughout history has
acquired different readings. We will also address the importance of ​psychopathology, since it
has an enormous preponderance regarding the diagnosis and treatment of various mental
diseases.
Then, in order to perceive the connection between drawing and mental illness, we will look at
two examples that illustrate it. The first, Outsider Art, a term created by the artist Jean
Dubuffet, which includes artistic production originated from alternative sources, such as the
work developed by patients with mental illness. The second example consists on a series of
studies carried out by the psychologist Hans Eysenck, from which he tried to perceive if there
was an objective connection between creativity and mental illness.
Later, based on the examples of William Kurelek and Yayoi Kusama, we will approach art’s
role in the way both the artists dealt, and in the case of Kusama still deals, with the
adversities inherent to their respective mental illnesses, clarifying whether their art practise
became relevant and brought them benefits, being this the introductory point to the perception
of the real role of drawing in the context of therapy. After that, we will try to locate the
origins and the initial development of art-therapy in a clinical context for patients with mental
illness, based on the pioneering work of Nise da Silveira and Edward Adamson, who
developed drawing and painting workshops in order to help in the treatment of mental illness.
Finally, in order to understand the importance of art-therapy today, as well as the benefits that
result from its usage, we will analyze a series of scientific articles based on the way art works
as a therapeutic tool for people with mental illness, giving once again emphasis on the role of
drawing since it is the main focus of this research work.
In the second part of this research, we will present a report of an art therapy project for people
with mental illness called ​Incluir - Oficinas para Todos e para Cada Um​, a project developed
between the author and Santarém’s Hospital Psychiatry Department. All the project’s stages
will be analysed, including the idea, the initial objectives, the funding, the art skills developed
during the workshops, duly followed up and justified by the references used in each phase.
The project results will also be analyzed based on the participant's progress and their reaction
to the various techniques explored during the workshops.
Finally, the data obtained from a study about the participant’s self esteem and the prejudice
surrounding mental illness among the community, carried out by the Santarém’s Hospital
Psychiatry Department, will be presented and discussed. Based on this data, and also from

4
students' reactions to the artistic skills developed during the workshops, we will make a final
reflection on the project, increased with suggestions for future initiatives similar to ​Incluir,​
taking conclusions about the importance of these kind of projects, and also giving special
attention to the role of drawing in all its stages, especially its importance during the
workshops.

Key words
Art therapy, Drawing, Mental illness, Benefits, Madness

5
ÍNDICE

p.8 - ​Índice das imagens

p.11 - 1 INTRODUÇÃO

p.12 -​ 1.1 Objectivos

p.13 - ​1.2 Metodologia

p.14 - 2 ARTE E “LOUCURA”: A LIGAÇÃO DO DESENHO COM A DOENÇA


MENTAL

p.15 - 2.1 ​A problemática da definição de “loucura” e a ligação do desenho à doença


mental

p.20 - 2.2 ​A Arte Bruta e a os estudos de Hans Eysenck

p.27 - 3 A ORIGEM E O DESENVOLVIMENTO DA ARTE-TERAPIA PARA PESSOAS


COM DOENÇA MENTAL E O PAPEL DO DESENHO NESSE CONTEXTO

p.28 - 3.1 ​William Kurelek e Yayoi Kusama

p.31 - 3.2 A origem da arte-terapia e o uso do desenho como forma de expressão nesse
contexto, Nise da Silveira e Edward Adamson

p.37 - 3.3 ​A definição de arte-terapia e a sua relevância no panorama actual da saúde


mental

p.40 - 3.4 ​Os benefícios da arte-terapia em pessoas com doença mental e o papel do
desenho nesse contexto

p.46 - 4 RELATÓRIO DO TRABALHO PRÁTICO

p.47 - 4.1 O início do projecto, os motivos, objectivos principais, o calendário e os


participantes

p.48 - 4.2​ Competências artísticas a desenvolver e lista de material necessário

p.53 - 4.3 Financiamento do projecto, infra estruturas, exposições, colaborações e o


ícone

6
p.56 - 4.4​ Monitorização e avaliação do projecto e a sua continuação
p.57 - 4.5 Os resultados do projecto: as oficinas e as competências artísticas
desenvolvidas

p.71 - 4.6 ​Exposições realizadas, aulas outdoor e com convidados

p.77 - 4.7 As primeiras Jornadas de Arte e Inclusão e os resultados quantitativos


relativos à monitorização do projecto ​Incluir

p.80 - 4.8 Considerações finais e sugestões para o futuro, a importância do desenho no


projecto ​Incluir

p.87 - 5 CONCLUSÃO

p.89 - 6 BIBLIOGRAFIA

p.94 - 7 ANEXOS

7
Índice de Imagens

Fig. 1: Dois bustos da série ​Character heads. ​À esquerda, T ​ he Vexed Man​, 1771 - 1783,
Museu Paul Getty, e à direita ​An Intentional Wag,​ 1770-1783, Belvedere, Viena. p.17

Fig. 2: Detalhe da pintura ​A extração da pedra da loucura​, de Hieronymus Bosch (1450 -


1516), óleo sobre madeira, 1475-1480, Museu do Prado, Madrid, Espanha. p.19

Fig. 3: Pintura de Francisco de Goya (1746 - 1838) ​Casa de loucos​, óleo sobre painel,
1812-1819, Academia Real de Belas-Artes de São Fernando, em Madrid. p.20

Fig. 4: Exemplo de trabalhos reunidos por Jean Dubuffet, hoje presentes no Museu de Arte
Bruta, em Lausanne, na Suíça. À esquerda, trabalho da autoria de ​Aloïse Corbaz,
(1886-1964), lápis sobre papel cosido, e à direita, trabalho de Goston Savoy (1923-2004),
caneta sobre papel, 1988. p.22

Fig. 5: Uma das 160 ilustrações da série Paixão de Cristo segundo São Mateus,​ da autoria de
William Kurelek (1927 - 1977), gouache sobre papel, 1960-1963, Museu e Galeria de
Niagara Falls. p.29

Fig. 6: Instalação ​Dots Obsession – Love Transformed into Dots,​ da autoria de Yayoi
Kusama, presente na exposição ​Yayoi Kusama: infinity Mirrors,​ no Museu de Arte de Seattle,
2007. p.30

Fig. 7: Nise da Silveira com os seus pacientes, arquivo Nise da Silveira. p.32

Fig. 8: Trabalho de Carlos Pertuis, um dos pacientes de Nise da Silveira, de 1949, presente no
Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, Brasil. p.33

Fig. 9: Trabalho de autoria desconhecida, pertencente à colecção de Edward Adamson. p.35

Fig. 10: A escultura ​Mãe Natureza​, presente na exposição colectiva ​Santarém, Cidade em
Crescente,​ em 2017, a partir da qual o autor se baseou para o desenvolvimento da escultura
do projecto ​Incluir.​ p.54

Fig. 11: O ícone do projecto ​Incluir​, o ​Tintas.​ p.56

Fig. 12: Exemplo de um dos documentos teóricos desenvolvidos pelo professor e entregue
aos participantes, neste caso, referente às características do lápis a grafite. p.58

8
Fig. 13: À esquerda, um dos enunciados de um dos exercícios práticos da sub-temática
Síntese das formas​, à direita, um desses exercícios já resolvido por um dos alunos. p.60

Fig. 14: À esquerda, um dos enunciados de um dos exercícios práticos da sub-temática


Desenho de linha,​ à direita, um desses exercícios já resolvido por um dos alunos. p.61

Fig. 15: Um desenho a carvão de um dos alunos, o André Margalho. p.62

Fig. 16: Um dos desenhos de observação de um dos modelos tridimensionais. p.63

Fig. 17: À esquerda, enunciado de um dos passos da técnica da quadrícula, que o professor
abordou nas oficinas, e à direita, enunciado relativo às cores na pintura. p.64

Fig. 18: À esquerda, foto da pintura original, ​Dança em Bougival,​ de 1883, do artista Jean
Renoir, à direita, a cópia feita por uma das alunas das oficinas, a Mónica, do segundo grupo.
p.65

Fig. 19: Duas pinturas originais dos alunos, a óleo, à esquerda ​O guitarrista​, do André, e à
direita, ​O caminho​, da Maria José. p.66

Fig. 20: À esquerda, uma das páginas originais da história de banda desenhada da Carla, e à
direita, a mesma página já depois de colorida. p.67

Fig. 21: Foto de uma das oficinas de banda desenhada, na qual os alunos desenvolveram as
suas histórias. p.68

Fig. 22: Duas das páginas do esquema da escultura desenvolvida em grupo nas oficinas. p.69

Fig. 23: A escultura final, já no seu local definitivo, no pátio do Hospital Distrital de
Santarém p.70

Fig. 24: Poster alusivo ao ciclo de exposições do primeiro grupo de participantes ​Uma
andorinha em três actos.​ p.72

Fig. 25: Foto da inauguração da exposição ​A Arte da Inclusão: Parte 2,​ que decorreu no
Fórum Mário Viegas, em Santarém. p.73

Fig. 26: Foto de uma das ​aulas outdoor que decorreu em frente ao Convento de São
Francisco, com os pequenos artistas a pintarem as paredes do “ninho da andorinha”. p.75

Fig. 27: Foto da aula de escultura orientada pelo artista Mário Rodrigues, que teve lugar na
Incubadora de Artes, em Santarém. p.76

9
Fig. 28: Foto da ​aula outdoor em que os alunos pintaram duas caixas de electricidade da
EDP, no centro histórico de Santarém. p.77

Fig. 29: Cartaz alusivo às ​Primeiras Jornada de Saúde Mental Arte & Inclusão,​ que tiveram
lugar no Teatro Sá da Bandeira, em Santarém. p.79

Fig. 30: Os alunos do primeiro grupo do projecto Incluir n​ a inauguração da segunda


exposição dos trabalhos realizados nas oficinas, que decorreu no W Shopping, em Santarém.
p.85

10
1 . INTRODUÇÃO

O uso da arte enquanto forma de terapia para pessoas com doença mental é inegavelmente
reconhecida hoje como sendo uma ferramenta útil e válida quanto aos seus benefícios e às
suas diversas formas de aplicação. Independentemente do público em causa, a natureza da
arte e a forma imediata como muitas vezes chega às pessoas, sejam elas espectadores ou
praticantes, pode realmente implicar melhorias sob o ponto de vista emocional e psicológico.
O desenho, sendo uma das formas de expressão artísticas mais importantes, utilizada e
explorada desde as primeiras manifestações culturais humanas, terá com certeza um papel
determinante no contexto particular da terapia através da arte para pessoas com doença
mental. Esta investigação surge no sentido de perceber qual a importância e o papel do
desenho nesse tipo de enquadramento, sendo esse o tema central desta dissertação.
Começaremos por, no capítulo dois, abordar sucintamente os primórdios da ligação do
desenho com a doença mental, sendo essa interpelação importante para perceber quais as
bases que sustentam a ideia por detrás da arte-terapia. O primeiro passo a ser dado passará
pela análise da terminologia ligada à doença mental, a partir da qual será dado ênfase à
definição de psicopatologia e da forma como historicamente a “loucura” foi sendo vista pela
sociedade, algo que acabou por trazer consequências, entre outros aspectos, na violência
injustificada utilizada nos tratamento desse tipo de distúrbios, fruto, frequentemente, da
ignorância tida relativamente a esta problemática.
Abordaremos também a forma como ao longo do tempo a arte encarou e interpretou essa
referida visão divergente de como a doença mental foi sendo encarada, algo que acabou por
ficar bem espelhada nas inúmeras representações pictóricas, sob a forma de pintura, desenho,
escultura, entre outras manifestações de idêntica génese, resultado do trabalho de artistas que
muitas vezes se interessaram por esse tema.
Mas a ligação da arte com a doença mental está longe de ficar pela mera documentação
pictórica das peculiaridades desse universo. Ainda no segundo capítulo, trataremos de
analisar, de forma mais profunda, essa referida ligação, a partir de dois exemplos que,
curiosamente, assumem duas visões distintas, uma sob o ponto de vista mais artístico e outro
mais científico. O primeiro, remete-nos para a Arte Bruta, de Jean Dubuffet, termo
desenvolvido pelo próprio, que caracteriza a produção artística oriunda de contextos fora do
mercado de arte mais tradicional, que levou o artista a reunir, através de uma extensa
pesquisa, trabalhos de pacientes internados em hospitais psiquiátricos, sendo o desenho uma
das formas de expressão artística mais acentuadas no espólio que reuniu e ao qual será dada
particular importância. Já o segundo exemplo passa pela análise de uma série de
investigações levadas a cabo pelo psicólogo Hans Eysenck, em torno da ligação da
criatividade com a doença mental, na tentativa do mesmo perceber até que ponto esses dois
aspectos estariam objectivamente interligados​.
Ño terceiro capítulo, partindo da abordagem teórica feita no segundo capítulo, iremos situar a
origem da arte-terapia e do papel do desenho nesse contexto. Num primeiro momento, iremos
perceber a influência e importância do próprio processo criativo na forma como artistas com

11
doença mental lidaram com a sua condição, bem como o contrário, como essa mesma
condição acabou por ter impacto no respetivo trabalho. ​Para tal, analisaremos o exemplo de
William Kurelek e Yayoi Kusama, dois artistas que lidaram ao longo da vida com as
adversidades das respectivas doenças. Mais uma vez, daremos ênfase ao desenho nestes dois
exemplos.
De seguida, e com o intuito de contextualizar o aparecimento da arte-terapia para pessoas
com doença mental, tomaremos como exemplo os projectos pioneiros desenvolvidos por Nise
da Silveira e Edward Adamson, cujos ateliers para pacientes com doença mental, por eles
desenvolvidos, são ainda hoje um marco na investigação em torno da ligação da arte com a
doença mental, que resultou num espólio extremamente rico e a partir do qual é ainda hoje
possível constatar a importância do desenho como sendo uma das formas de expressão mais
importantes das duas abordagens. A partir desses dois exemplos, e tendo como base uma
série de artigos que analisaram os benefícios de vários projetos de arte-terapia desenvolvidos
nas últimas duas décadas, analisaremos a relevância deste tipo de prática, dentro do panorama
actual da saúde mental, esclarecendo com maior profundidade o uso do desenho,
interpretando a sua natureza e a forma como a mesma se integra naquilo que implica um
contexto de arte-terapia.
Finalmente, no quarto e último capítulo, procederemos ao relatório do trabalho prático,
inserido na temática desta dissertação, a realização de um projecto de arte-terapia intitulado
Incluir - oficinas para todos e para cada um,​ no qual o desenho foi uma das principais
competências artísticas exploradas e onde foram verificados os efeitos benéficos do uso desse
meio de expressão para o grupo de participantes que integraram o projecto. O relatório servirá
também o propósito de perceber como se constrói um projecto desta natureza, a partir da
descrição e análise de todos os passos dados, sugerindo ainda aspectos a melhorar para
futuras situações idênticas.

1.1 .​Objectivos

O objectivo principal desta dissertação passa por analisar o papel desenho em contexto de
arte-terapia para pessoas com doença mental. Para tal, será levada a cabo uma investigação
teórica em torno da análise de vários autores, na qual nos iremos debruçar relativamente a
essa referida ligação, abordando depois a origem da arte-terapia e o seu posterior
desenvolvimento, culminado essa investigação na análise do papel do desenho nesse
contexto, enquanto ferramenta terapêutica. Para o objectivo pretendido, será ainda elaborado
um relatório, referente à parte prática desta dissertação, em torno de um projecto de
arte-terapia intitulado ​Incluir- Oficinas para todos e para cada um​, desenvolvido em parceria
com o Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém, a partir do qual foram
realizadas oficinas artísticas para pessoas com doença mental e onde foram exploradas e
desenvolvidas competências artísticas, entre as quais o desenho. Como objetivo secundário,
pretende-se descrever o processo de criação de um projecto de arte-terapia, analisando todas

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as suas fases, dando particular atenção à forma como o desenho acabou por ser nele
incorporado.
1.2. ​Metodologia

A metodologia deste trabalho de projecto será dividida em duas partes.


Na primeira, será feito um estudo de carácter qualitativo, a partir de uma pesquisa teórica na
qual foi contextualizada e analisada a origem da ligação do desenho à doença mental e
consequentemente da aplicação dessa forma de expressão artística num contexto de
arte-terapia para pessoas com doença mental.
Já a segunda parte corresponderá a um relatório do trabalho prático realizado, um projecto de
arte-terapia para pessoas com doença mental, a partir do qual houve uma observação directa e
consequente interpretação dos dados referentes ao comportamento dos seus participantes, de
forma a analisar e interpretar os benefícios deste projecto, bem como a interpretação do papel
do desenho.
A recolha dos dados referentes a essa análise, de predominância descritiva, tem como
principal instrumento de observação o próprio investigador, podendo neste caso assumir a
forma de palavra ou de imagem. É importante considerar que neste caso o processo é mais
relevante do que o produto final pois a finalidade maior é a de entender como a aplicação do
desenho é assumida pelos participantes no contexto em causa, esclarecendo todo o tipo de
actividades, procedimentos e interações que tal ocorrência implicou.
É ainda importante afirmar que durante todo o processo existe uma interação entre a teoria,
desenvolvida numa primeira parte, e a pesquisa empírica, já aquando da própria execução do
projecto, a fim de melhor compreender e aplicar os pressupostos tidos no projecto.
Por fim, esclarecer que a perspectiva tida por parte dos participantes é muito importante para
o investigador, de modo a permitir que haja uma percepção de como as pessoas deram
significado ao uso do desenho ao longo de todo o processo, e de como reagiram a todos os
passos que deram ao longo da duração do mesmo, dentro de toda a diversidade de actividades
que forma desenvolvendo.

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2. ARTE E “LOUCURA”: A LIGAÇÃO DO DESENHO COM A DOENÇA MENTAL

Neste capítulo, iremos abordar as origens da ligação da arte e da doença mental, dando
particular ênfase ao desenho, visto ser esse um dos pontos principais deste trabalho de
investigação.
Começaremos por, no capítulo 3.1, analisar a terminologia associada à doença mental,
particularizando a importância da definição de psicopatologia e abordando as dificuldade que
implicam um diagnóstico de uma doença mental, factor espelhado na violência implícita nos
tratamentos que historicamente têm vindo a ser aplicados. Ainda relacionado com a
problemática da terminologia da doença mental, tentaremos perceber a natureza do termo
“loucura”, carregado, frequentemente, de uma visão pejorativa, associada a fatores fora do
contexto e da natureza científica daquilo que é uma doença mental.
Já no capítulo 3.2, abordaremos a ligação entre o desenho e a doença mental. Para isso,
faremos uma primeira e breve abordagem à associação das manifestações artísticas, desde os
primórdios do seu aparecimento, ao contexto social em que inevitavelmente se inserem. Com
mais detalhe, tentaremos perceber as características particulares e a importância do desenho
nesse mesmo contexto. A partir dessa ideia, de inserção da arte numa perspetiva social,
partiremos para uma outra consequente associação, a da ligação do desenho à doença mental.
Essa, será ilustrada a partir de dois exemplos distintos. O primeiro, implica uma análise ao
conceito de ​Arte Bruta,​ desenvolvido pelo artista francês Jean Dubuffet, cuja classificação
assenta em princípios associados a uma forma de produção artística “pura” e “autêntica”,
desprendida de fatores e influências por ele considerados como sendo elitistas e redutores,
tendo essa sua pesquisa levado a que desenvolvesse um interesse pelo trabalho de pacientes
internados em hospitais psiquiátricos, ressalvando que muita dessa produção passou pelo
desenho. O segundo exemplo, envolve uma série de investigações levadas a cabo pelo
psicólogo Hans Eysenck, a partir das quais tentou estabelecer uma ligação de base científica
entre a criatividade e o distúrbio mental. As deduções a que chegou, ainda que longe de
apresentarem uma adjacente objectividade, acabaram por contribuir, de forma vincada, para a
investigação em torna da ligação da arte com a doença mental.

14
2.1 A problemática da definição de “loucura” e a ligação do desenho à doença mental

O livro do psiquiatra José Luís Pio Abreu ​Como Tornar-se Doente Mental tem início com o
prefácio do professor Oscar Gonçalves, que questiona a forma como o diagnóstico de uma
doença mental é encarada nos dias de hoje.

“Será a psicopatologia uma disciplina científica? (...) ou tratar-se-á, pelo contrário, de um dos
maiores embustes da contemporaneidade (...) Será que existem doenças mentais que se
configuram à revelia de uma etiologia biológica?”1

Ao longo do tempo, com os avanços ocorridos em áreas científicas tão importantes como a
medicina ou a psicologia, podemos constatar que a definição de doença mental, que muitas
vezes de forma discriminatória é denominada de “loucura”, tem vindo a sofrer drásticas e
importantíssimas modificações ao longo do tempo. No entanto, continua a ser muito difícil
definir, diagnosticar e até encontrar um tratamento adequado para uma doença mental. No
mesmo prefácio acima referido, Oscar Gonçalves afirma:

“Quando, há várias dezenas de anos, decidi encetar a carreira de psiquiatra, estava longe de
saber o que me esperava. Estava então convencido (...) que, reconhecendo e diagnosticando
os doentes mentais, seria possível tratá-los com alguns procedimentos técnicos que a ciência
descobriria ou haveria de descobrir. (...) Sei hoje como esta ilusão era tola. (...) A experiência
de tratar doentes mentais é paradoxal. Por um lado, os verdadeiros doentes, aqueles que
facilmente se podem identificar, não aceitam que o sejam e recusam, por isso, o
tratamento.(...) Por outro lado, também existem pessoas que vão de livre vontade ao
psiquiatra. Fazem-no por diversos motivos, excepto por apresentarem uma doença, claro,
daquelas que veem nos livros (...) Não se tratando porém de uma doença, nada feito.”2

Apesar desta problemática, hoje, a classificação e definição das diversas doenças mentais e
dos estados psíquicos a ela associados, os sintomas e os tratamentos, englobam a
psicopatologia, uma área imprescindível dentro da psiquiatria clínica.

“Nos últimos tempos a psiquiatria tem dado uma importância primordial à construção de
sistemas de classificação categórica nomeadamente o ​Diagnostic and statistical Manual of
Mental Disorders (DSM) e​ a Classificação Internacional das Doenças (CID) que permitem a
elaboração de diagnósticos de grande fiabilidade.”3

1
​ABREU, Pio, ​Como tornar-se doente mental,​ p. 9
2
​ABREU, Pio, ​Como tornar-se doente mental,​ p. 13
3
​TELLES CORREIA, Diogo, ​Manual de Psicopatologia,​ p. 1

15
Apesar da importância da psicopatologia, a inviabilidade de existir um sistema classificativo
totalmente irrefutável torna-a numa área dinâmica e em contínua evolução. Factores
determinantes agora, não o eram há algumas décadas e porventura não o serão no futuro.
Estão por isso constantemente a surgir novas e diversificadas formas de tratamento e de
terapia. A própria natureza dos sintomas psiquiátricos acaba por ser responsável em grande
parte por essa ideia.4

“(...) os sintomas psiquiátricos são construtos teóricos criados em resultado de uma


convergência entre um comportamento, um termo, e um conceito (...)”5

A psicopatologia tem as suas raízes na fenomenologia, movimento filosófico ligado a um


procedimento empírico, cujo objectivo é o de descrever, de forma unidirecional, as
manifestações da consciência.6 Considera-se que um dos aspectos mais importantes da
psicopatologia está assente na sua ligação à psiquiatria clínica, sendo a missão da primeira o
fornecimento de informação e dados à segunda, com o intuito de ajudar a estabelecer um
diagnóstico correcto, para que o doente possa ser o melhor orientado possível quanto ao
tratamento da respectiva doença. Constituem assim dois segmentos de uma mesma unidade.7
Ao abordarmos a doença mental, é inevitável mencionar uma outra ciência, fundamental nas
questões relacionadas com o estudo do comportamento humano, a psicologia, que nas últimas
décadas tem vindo a adquirir uma enorme importância, abrangendo uma série de fatores
fundamentais na percepção da forma como se comporta o ser humano.

“Pela primeira vez o método científico aplicava-se a questões como a percepção, a


consciência, a memória, a aprendizagem, a inteligência, e de tal observação e experimentação
surgiram novas e numerosas teorias.”8

Inevitavelmente, a arte tornou-se um dos campos no qual a psicologia se tem vindo a


debruçar, de inúmeras e variadas maneiras. Muito embora o conceito de arte seja de difícil e
dúbia definição,9 temos, ainda assim, certezas quanto à inevitável ligação das manifestações
artísticas, dentro das suas mais variadas formas de expressão, desde o seu aparecimento com
as primeiras gravuras rupestres, a um contexto social específico.

“Art serves social purposes, though it is manipulated by individual people in social contexts
to achieve certain ends. Art cannot be understood outside its social context.”10

4
​TELLES CORREIA, Diogo, ​Manual de Psicopatologia,​ p. 1
5
​TELLES CORREIA, Diogo, ​Manual de Psicopatologia,​ p. 1
6
​TELLES CORREIA, Diogo, ​Manual de Psicopatologia,​ p. 4
7
​TELLES CORREIA, Diogo, ​Manual de Psicopatologia,​ p. 7
8
​COLLIN, Catherine, VOULA, Grand, BENSON, Nigel, LAZYAN, Merrin, GINSBURG, Joannah, WEEKS,
Marcus, ​O Livro da Psicologia​, pp. 10-13
9
LEWIS-WILLIAMS, David, ​The Mind in the Cave​, p. 41
10
LEWIS.WILLIAMS, David, ​The Mind in the Cave,​ p. 44

16
Desde a sua concepção até à sua contemplação, a existência de um objecto artístico insere-se
dentro de um contexto social, servindo um propósito humano

“As práticas culturais dependem de fenómenos sociais que os seres humanos adultos
dominaram - por exemplo, a forma como dois indivíduos contemplam, em conjunto, o
mesmo objecto e como partilham uma interação em relação a esse objecto”.11

Fig. 1: Dois bustos da série ​Character heads. ​À esquerda, ​ T


​ he Vexed Man​, 1771–1783,
Museu Paul Getty, e à direita ​An Intentional Wag,​ 1770-1783, Belvedere, Viena.

O interesse da psicologia justifica-se por isso a partir dessa ideia fundamental de inserção da
arte num contexto social, sendo inúmeras e variadas as formas como a ligação entre a arte e o
comportamento humano acabou por ser abordado.
A título de exemplo, podemos referir a controversa investigação levada a cabo pelo famoso
psicanalista Sigmund Freud, ​Uma Recordação de Infância,​ na qual é feita uma interpretação
da orientação sexual e comportamental de Leonardo Da Vinci, a partir da respectiva obra
artística, dentro, como é evidentemente, de um enorme grau de incerteza e especulação12. Um
segundo exemplo assenta em torno da análise da famosa e peculiar série de bustos ​Character
Heads​, da autoria de Franz Messerschmitts, que, por tudo aquilo que a envolveu,13 levou
alguns investigadores da área da psicologia e da psiquiatria a diagnosticarem o artista com
uma esquizofrenia.

11
​DAMÁSIO, António, ​A estranha Ordem das Coisas a Vida os sentimentos e as culturas humanas​, p. 31
12
​FREUD, Sigmund, ​Uma recordação de Infância de Leonardo Da Vinci, p​ p.8-23
13
​KRAPF, Michael, KRAPFf-WEILLER, Almut, ​Franz Xaver Messerschmidt​,​ p.​ 16

17
Sendo evidente que estes dois exemplos são uma mera amostra de todo um vasto e
diversificado campo de investigação que há décadas procura no resultado e na própria
expressão artística respostas a perguntas relativas à natureza humana, não deixa, ainda assim,
de ambas serem interpretações curiosas, bem como uma interessante amostra da expressão
artística do próprio homem.
Evidentemente que, ao falarmos de expressão artística, é inevitável abordarmos o desenho,
pela importância que tem, pois é uma prática tão antiga como a própria humanidade, não
tendo sofrido grandes alterações até hoje quanto às suas características mais comuns.
Perceber porque desenhamos é um exercício de autoconhecimento, de perceção daquilo que
faz de nós aquilo que somos.

“Drawing is as old as mankind. The drawings of animals on the walls of prehistoric caves are
as good as any drawings made in the thousands of years since. Drawing changes a little in a
manner and style from one historical period to another, but these variations are more
important to historians than to artists. (...) Why do we draw? Drawing can be a means of
communication - a language - and we use it as such. It is often said that a picture is worth a
thousand words. But the impulse to draw is probably deeper than the desire to communicate,
and issues form the artist’s desire to project and hold a mental image or fantasy.”14

Com o crescente interesse da ligação da arte com as várias ramificações do comportamento


humano, não será pois de estranhar que essa mesma ligação tenha vindo a ocorrer com
comportamentos ligados à própria doença mental. Inevitavelmente, a expressão através da
arte por parte de pessoas com doença mental adquiriu esse interesse, pois, embora não só,
acaba por ser uma forma de interpretar um universo que como referimos anteriormente, é de
difícil e dúbia interpretação.
Mas se essa ligação entre a expressão artística e o comportamento associado à doença mental
tem hoje um relevante interesse científico, a verdade é que, historicamente, a mesma já
existia, muito embora de formas e com interpretações diferentes.
A “loucura” sempre foi uma temática recorrente no universo das artes plásticas, despertando
a curiosidade de inúmeros artistas que a representaram, tendo em conta a forma como a
mesma era percepcionada em cada época. As formas de tratamento, por exemplo, adornadas
muitas vezes de violência e ignorância, acabaram por ser retratadas com bastante frequência.

“A forma de tratamento está intimamente relacionada à maneira como a loucura era percebida
em cada época (...) assim cada distorção ou percepção inapropriada depositada sobre a
condição do paciente assim diagnosticado, acarretava em uma intervenção conforme o
entendimento individual. Dessa forma, a loucura, em seu conceito e terapêutica foi objecto de
estudos ao longo dos anos.”15

14
​LANING, Edward,​ The act of drawing, ​p.12
15
​Citação trasncrita a partir do artigo ​A relevância da arte como terapia para pacientes portadores de
sofrimento mental no século XXI - entre novos métodos terapêuticos após reforma psiquiátrica no Brasil
disponível em

18
A extração da pedra da loucura,​ do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450 - 1516), é
provavelmente um dos primeiros testemunhos pictóricos de uma forma de tratamento da
doença mental de que temos conhecimento16. Nesta pintura, um médico extrai uma pedra da
cabeça de um paciente, pedra essa que seria, segundo aquilo que na altura se percecionava, a
origem da sua loucura. No entanto, a peculiaridade desta obra reside na mensagem subliminar
transmitida pelo artista, criticando a forma como os tratamentos do foro psíquico eram então
encarados,17 sobretudo a violência injustificada e desumana que os caracterizava.

Fig. 2: Detalhe da pintura ​A extração da pedra da loucura,​ de Hieronymus Bosch (1450 -


1516), óleo sobre madeira, 1475-1480, Museu do Prado, Madrid, Espanha.

Também Francisco de Goya (1746 - 1838), com as obras ​Casa de loucos e​ ​Curral de loucos,​
procurou representar o sofrimento dos pacientes internadas nos asilos, lugares onde imperava
a falta de condições e a desumanização dos cuidados para com esses referidos pacientes.18
Todavia, a ligação da arte com a doença mental está longe de ficar pela mera representação
pictórica da violência dos tratamentos praticados. Acima, referimos a forma como muitas
vezes se emprega, de forma irrefletida, o termo “loucura”, muito porque o seu significado
acaba por tomar uma significância divergente da que verdadeiramente o define,
descontextualizando-o e associando-o, por exemplo, à genialidade ou ao modus operandi de
um artista.
É um lugar comum considerar-se um artista como um louco e simultaneamente um génio,
estando a expressão criativa muitas vezes associada a essa condição.

https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-da-saude/a-relevancia-da-arte-como-terapia-para-pacientes-portad
ores-de-sofrimento-mental-no-seculo-xxi-entre-novos-metodos-terapeuticos-apos-reforma-psiquiatrica-no-brasil
16
Informação retirada do documentário ​Isto é arte - loucura​, disponível em
https://www.ccma.cat/tv3/alacarta/this-is-art/bogeria/video/5715574/
17
Informação retirada do documentário ​Isto é arte - loucura​, disponível em
https://www.ccma.cat/tv3/alacarta/this-is-art/bogeria/video/5715574/
18
​Informação retirada do artigo ​A Brief History of Mental Illness in Art,​ disponível em
https://blogs.scientificamerican.com/brainwaves/a-brief-history-of-mental-illness-in-art-3/

19
Fig. 3: Pintura de Francisco de Goya (1746 - 1838) ​Casa de loucos​, óleo sobre painel,
1812-1819, Academia Real de Belas-Artes de São Fernando, em Madrid.

Mas qual o fundamento dessas associações? Poderá a doença mental estar relacionada
objetivamente com a inclinação para a criatividade artística?
No próximo capítulo, a partir de dois exemplos que assentam nessa mesma ideia, embora de
forma distinta, poderemos esclarecer com maior profundidade essa questão, analisando se
essa tão bafejada associação terá realmente algum fundo de verdade.

2.2 A Arte Bruta e os estudos de Hans Eysenck

É inevitável que ao mencionarmos nomes tão incontornáveis como Van Gogh, Miguel
Ângelo, Ernest Hemingway ou Virginia Woolf, personalidades criativas que se destacaram de
sobremaneira nas respectivas áreas, de imediato os associemos a comportamentos ligados à
doença mental. Mas será essa associação, entre a criatividade artística e a doença mental,
adornada de algum fundo objectivo de verdade?

“(...) the overlap between mental illness in general and bipolar disorder specifically, and
creativity should be mentioned. The number of highly creative artists, politicians, writers,
musicians, performers and renowned leaders that have suffered from mental illness and
bipolar disorder is quite large and includes such figures as Ernest Hemingway, Winston
Churchill, Theodore Roosevelt, Vincent Van Gogh, Virginia Woolf, Michael Angelo,
Ludwig Van Beethoven, Sir Isaac Newton, Judy Garland, Charles Shultz, Robert Schumann
and Andy Warhol to name but a few.”19

19
​Citação trasncrita a partir do artigo ​The relationship between creativity and mood disorders,​ disponível em
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3181877/

20
As primeiras interpretações e abordagens da ligação entre a doença mental e a criatividade
surgiram da antiga Grécia, civilização que, curiosamente, e contrastando a ideia tida nos
séculos posteriores, considerava a loucura como algo de especial e valioso, muitas vezes
associado a uma benção divina. Michel Foucault (1926 - 1984) aborda precisamente essa
ideia no seu livro ​A História da Loucura.​ 20

“Historicamente, na Grécia antiga, a loucura não era designada como uma doença ou um
factor negativo que retirasse do indivíduo a aceitação social. Pelo contrário, ela era
considerada algo de sobrenatural, na qual, por meio do delírio podia-se ter acesso às verdades
divinas, sendo, portanto, considerado um privilégio. Platão referiu-se à inspiração poética
como loucura divina, enquanto Aristóteles chegou a afirmar que nunca houve um grande
génio sem uma dose de insanidade.”21

A mutabilidade do significado dessa associação sentiu-se de forma extremamente vincada ao


longo dos séculos posteriores. Na Idade Média, por exemplo, persistia uma visão esotérica,
que insistia em atribuir a origem de comportamentos desviantes do foro mental a “seres
demoníacos e grotescos.”22 Ainda hoje, existem resquícios dessa visão negativa que muitas
vezes, sobretudo pelo preconceito que acarreta, segrega pessoas com doença mental para
situações de isolamento.
Mas a verdade é que a visão da loucura, enquanto algo de especial e precioso, acabou por ser
um dos incentivos que levou o artista francês do século XX, Jean Dubuffet, a encetar por uma
das mais interessantes pesquisas alguma vez feitas em torno da ligação da arte com a doença
mental.
Apresentando desde cedo uma postura contracultural, assumindo-se constantemente
inconformado com determinados aspectos da sociedade mais elitista, o artista definiu como
uma das suas missões a busca por uma forma de arte “pura”, descontaminada de qualquer
tipo de influências externas.

“Jean Dubuffet was conducting an investigation in the literal sense when he began
prospecting for marginal works of art during the summer of 1945; he was searching for a

20
Informação retirada do artigo ​A relevância da arte como terapia para pacientes portadores de sofrimento
mental no século XXI - entre novos métodos terapêuticos após reforma psiquiátrica no Brasil disponível em
https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-da-saude/a-relevancia-da-arte-como-terapia-para-pacientes-portad
ores-de-sofrimento-mental-no-seculo-xxi-entre-novos-metodos-terapeuticos-apos-reforma-psiquiatrica-no-brasil
21
​Citação trasncrita a partir do artigo ​A relevância da arte como terapia para pacientes portadores de
sofrimento mental no século XXI - entre novos métodos terapêuticos após reforma psiquiátrica no Brasil
disponível em
https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-da-saude/a-relevancia-da-arte-como-terapia-para-pacientes-portad
ores-de-sofrimento-mental-no-seculo-xxi-entre-novos-metodos-terapeuticos-apos-reforma-psiquiatrica-no-brasil
22
Informação retirada do artigo ​A relevância da arte como terapia para pacientes portadores de sofrimento
mental no século XXI - entre novos métodos terapêuticos após reforma psiquiátrica no Brasil disponível em
https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-da-saude/a-relevancia-da-arte-como-terapia-para-pacientes-portad
ores-de-sofrimento-mental-no-seculo-xxi-entre-novos-metodos-terapeuticos-apos-reforma-psiquiatrica-no-brasil

21
true, anonymous type of art, which was still nameless and for which he had not yet come up
with a definition.”23

Surgiu assim, a partir desse princípio, a ​Arte Bruta​. Com vista a aglomerar trabalhos que
pudessem corresponder a essa definição, Dubuffet procurou diversas fontes, cujas
características das obras realizadas correspondessem aos parâmetros por ele estabelecidos.
Um dos sectores que acabou por ser dos que mais contribuiu para tal passou pela produção
artística oriunda de pacientes internados em hospitais psiquiátricos, em contexto de
tratamento de uma doença mental.24

Fig. 4: Exemplo de trabalhos reunidos por Jean Dubuffet, hoje presentes no Museu de Arte
Bruta, em Lausanne, na Suíça. À esquerda, trabalho da autoria de ​Aloïse Corbaz,
(1886-1964), lápis sobre papel cosido, e à direita, trabalho de Goston Savoy (1923-2004),
caneta sobre papel, 1988.

Jean Dubuffet, todavia, não foi o único, nem tão pouco o primeiro artista a procurar essa
pureza na e da arte. Artistas como Delacroix ou Gauguin nutriram um interesse semelhante.
Nas viagens que fizeram a lugares remotos, contactaram com tribos, no seio das quais
florescia uma cultura descontaminada de influências externas.25 Paul Klee procurou
semelhante pureza nos desenhos de crianças, acabando por deles retirar influência para o seu
próprio trabalho. Artistas do movimento surrealista, como Max Ernst ou André Breton,
procuraram na ideia de inconsciente uma forma de pensar e criar arte mais profunda,

23
​PEIRY, ​Lucienne, Art brute: the Origins of Outsider Art​, p. 11
24
​PEIRY, ​Lucienne, Art brute: the Origins of Outsider Art​, p. 23
25
​PEIRY, ​Lucienne, Art brute: the Origins of Outsider Art​, p. 23

22
chegando, inclusive, a procurarem agir como um “louco”.26 E ainda o grupo ​Der blaue reiter
27
, fundamental na pesquisa de Dubuffet, estabeleceu como meta a elevação de um tipo de
arte mais subversiva, como a elaborada por doentes mentais, a um outro patamar.

“to search for artistic works by ordinary people, which bear special qualities of unique
inventiveness, spontaneity and freedom from accepted conventions and customs to attract the
public’s attention to these sorts of woks, to develop an appreciation for them, and to
encourage these works”.28

Dubuffet promoveu regularmente exposições resultantes do trabalho feito por pacientes com
doenças mentais, sobretudo na Suíça, em Lausanne, cidade onde hoje podemos encontrar o
Museu de Arte Bruta.29 A continuada e permanente divulgação dos trabalhos recolhidos pelo
artista apresentou-se como fundamental para a compreensão da ligação da criatividade à
doença mental, representando um espólio extremamente rico e variado. O desenho, sem
dúvida representa uma das principais formas de expressão presentes no mesmo. A exemplo
disso, podemos considerar dois nomes incontornáveis de artistas cujo trabalho de desenho faz
parte dessa colecção, o suíço Adolf Wolfili (1864 - 1930) e o português Jaime Fernandes
(1900-1969), este segundo, bastante conhecido do público português, tendo inclusive sido
feito sobre ele um documentário, de António Reis, ​Jaime.​ 30
Nesse documentário, podemos vislumbrar um pouco daquele que foi o seu o processo
criativo, indissociável da sua esquizofrenia. Os desenhos de Jaime são um reflexo da forma
obsessiva como trabalhava, uma manifestação da vontade instintiva em se expressar,
utilizando para tal os materiais que se lhe dispunham da forma mais imediata possível.

“Limitado no material, servia-se do que o acaso lhe proporcionava: um papel qualquer (a


folha de 35 linhas dava-lhe para fazer, por exemplo, 10 desenhos), esferográficas, lápis e,
uma vez até, mercuro-cromo (...) Jaime trabalhava muito e depressa, utilizando o melhor
possível o escasso e primitivo material de que dispunha.”31

A vontade quase que primitiva de Jaime em se expressar através do desenho, não tendo tido
nenhuma formação artística, nem vontade em fazer carreira nessa área, é um exemplo perfeito
daquilo que Dubuffet procurou com a ​Arte Bruta.

“Jaime Fernandes não foi além de uma instrução primária. Não teve mestres de desenho ou
pintura. Ninguém o ensinou a combinar cores. Não seguiu qualquer escola ou movimento

26
​PEIRY, ​Lucienne, Art brute: the Origins of Outsider Art​, p. 84
27
​PEIRY, ​Lucienne, Art brute: the Origins of Outsider Art​, p. 84
28
​PEIRY, ​Lucienne, Art brute: the Origins of Outsider Art​, p. 23
29
​Mais informação sobre o Museu de Arte Bruta disponível em https://www.artbrut.ch/
30
​Jaime (1974), documentário de António Reis e Margarida Cordeiro,retrata a vida de Jaime Fernandes, doente
mental internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, instituição na qual desenvolveu também o seu
trabalho de desenho e de escrita.
31
​Citação transcrita a partir do artigo ​JAIME​, disponível em
http://antonioreis.blogspot.com/2007/06/155-jaime-reportagem-de-albertino.html

23
artístico e o mais curioso é que, apesar de escrever desde que entrou para o Hospital, só se
tenha iniciado na pintura e desenho nos últimos quatros anos da sua vida.”32

Esse primitivismo do desenho será abordado com maior afinco nos capítulos seguintes pois é
fundamental naquele que é o tema central desta investigação, a sua inserção num contexto de
terapia para pessoas com doença mental. Para já, abordaremos o segundo exemplo referido no
início deste segmento, que ilustra uma outra perspectiva da ligação da arte com a criatividade.
Embora num prisma em muitos pontos divergente do tido através da ​Arte Bruta,​ a pesquisa
do psicólogo alemão Hanz J. Eysenck acabou também ela por contribuir para uma melhor
percepção da relação entre a arte e a doença mental.
Ao longo da sua carreira, Eysenck sempre nutriu um grande interesse na tão afamada e
anteriormente referida ligação entre a criatividade e um possível distúrbio mental. Tentou por
isso perceber se de facto essa ideia generalizada apresentava fundamentos de base científica
na sua génese. Nesse sentido, conduziu uma série de estudos com o intuito de o tentar
comprovar.
A obra do psicólogo Havelock Ellis ​A Study of British Genius​, de 1904, é determinante para a
sua investigação, no sentido em que tenta estabelecer padrões relativamente ao que de facto
são as características comuns da genialidade, analisando para isso dados relativos à raça, à
classe social, à hereditariedade, à idade, à infância, entre outros.33
Eysenck adiciona a essas características exploradas por Havelock a presença de uma psicose,
no sentido de perceber se existe alguma ligação directa entre esse factor e a genialidade. As
conclusões a que chegou, embora não relacionem a psicose de forma directa com a
genialidade, acabaram, ainda assim, por estabelecer um paralelismo com o psicoticismo,
termo que define como uma das três dimensões da teoria de personalidade que o próprio
concebeu.34

“(...) o que está relacionado com o génio não é a psicose (loucura), mas o psicoticismo, que
definiu como uma disposição subjacente a desenvolver sintomas psicóticos.”35

Eysenck conclui também que poderá existir uma base comum para o grande potencial criativo
e o desvio psicológico.36 Com o objectivo de esclarecer e aprofundar essa ideia, Eysenck leva
avante outra série de investigações intitulada ​Creativity and personality: suggestions for a

32
Citação transcrita a partir do artigo ​JAIME​, disponível em
http://antonioreis.blogspot.com/2007/06/155-jaime-reportagem-de-albertino.html
33
​Informação retirada do artigo ​Giftedness and Genius Crucial Differences​, disponível em
https://www.gwern.net/docs/iq/1996-jensen.pdf
34
​Informação retirada do artigo ​Theories of personality​ disponível em
https://www.simplypsychology.org/personality-theories.html
35
​COLLIN, Catherine, VOULA, Grand, BENSON, Nigel, LAZYAN, Merrin, GINSBURG, Joannah, WEEKS,
Marcus, ​O Livro da Psicologia​, p. 320
36
​COLLIN, Catherine, VOULA, Grand, BENSON, Nigel, LAZYAN, Merrin, GINSBURG, Joannah, WEEKS,
Marcus, ​O Livro da Psicologia​, pp. 320-321

24
theory​, através da qual tenta esclarecer a natureza da criatividade e a sua relação com a
doença mental.37

“(...) a criatividade é um traço de personalidade que fornece o potencial para o êxito criativo,
mas a materialização desse potencial depende do psicoticismo, um traço do caráter (na
ausência de psicose). O impulso para traduzir a criatividade em êxito depende de aspectos do
temperamento psicótico, em concreto do estilo cognitivo sobre inclusivo. Eysenck não
sugeria uma relação causal entre génio e loucura, embora ambos tenham um elemento em
comum (o pensamento sobre inclusivo), que ao combinar-se com outros elementos da
genialidade ou da loucura pode dar em resultados muito diferentes.” 38

Embora Eysenck não possa afirmar que a criatividade resulta de uma condição mental em
particular, sobretudo uma ligada à doença mental, não deixa, ainda assim, de considerar que,
como acima foi referido, determinados traços de personalidade a que se refere como
psicoticismo, são, segundo ele, importantes para o êxito criativo.
Essa ideia, no entanto, está longe de ser consensual. Inúmeros outros autores defendem
pontos de vista totalmente diferentes, discordando de sobremaneira com Eysenck, que acabou
por ser considerado um dos mais polémicos psicólogos dos século XX39. Afinal, a
investigação sobre a criatividade envolve um grande número de complicações e incertezas às
quais ainda hoje não existem ideias definitivas. Por não existir consenso, a discussão da
ligação da criatividade com a doença mental persiste, sob diversos prismas, até aos dias de
hoje.40
Apesar de ser impossível e até leviano considerar que uma doença mental, que a “loucura”,
seja uma condição que faz obrigatoriamente parte daquilo que alimenta a criatividade, a
verdade é que podemos afirmar um outro aspecto com um enorme grau de certeza. O
sofrimento, pelo menos na presença de doenças mais graves, acabou por ser uma realidade
para os artistas que tiveram de lidar com as mesmas. Ainda assim, sabemos hoje que alguns
deles encontraram na arte um refúgio, que muitas vezes os ajudou a superar as adversidades
inerentes a essa condição. E se assim foi, podemos colocar uma outra questão, importante
para o segundo ponto central desta investigação, a arte-terapia.
Poderá o referido sofrimento ter sido atenuado pela arte? Poderá o desenho, a pintura,
escultura, terem funcionado como uma terapia?

37
​COLLIN, Catherine, VOULA, Grand, BENSON, Nigel, LAZYAN, Merrin, GINSBURG, Joannah, WEEKS,
Marcus, ​O Livro da Psicologia​, p. 321
38
​COLLIN, Catherine, VOULA, Grand, BENSON, Nigel, LAZYAN, Merrin, GINSBURG, Joannah, WEEKS,
Marcus, ​O Livro da Psicologia​, p. 321
39
​COLLIN, Catherine, VOULA, Grand, BENSON, Nigel, LAZYAN, Merrin, GINSBURG, Joannah, WEEKS,
Marcus, ​O Livro da Psicologia​, p. 321
40
​Citação transcrita a partir do artigo ​A relevância da arte como terapia para pacientes portadores de
sofrimento mental no século XXI - entre novos métodos terapêuticos após reforma psiquiátrica no Brasil
disponível em
https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-da-saude/a-relevancia-da-arte-como-terapia-para-pacientes-portad
ores-de-sofrimento-mental-no-seculo-xxi-entre-novos-metodos-terapeuticos-apos-reforma-psiquiatrica-no-brasil

25
No capítulo 3 iremos tentar percebê-lo, abordando o testemunho de dois importantes artistas
que ainda que tenham construído uma carreira sólida, cujo legado perdura até hoje, viram-se
constantemente atormentados pela respectiva condição mental. A partir desses testemunhos,
tentaremos perceber como a arte começou a ser vista e utilizada enquanto forma de terapia,
finalizando esse capítulo com a análise da importância que tem hoje enquanto ferramenta útil
na terapia para pessoas com doença mental, dando aqui ênfase ao desenho enquanto forma de
expressão incorporada nesse contexto.

26
3. A ORIGEM E O DESENVOLVIMENTO DA ARTE-TERAPIA PARA PESSOAS COM
DOENÇA MENTAL E O PAPEL DO DESENHO NESSE CONTEXTO

Neste segmento, iremos analisar e perceber as origens e o desenvolvimento da arte-terapia


para pessoas com doença mental, particularizando o papel do desenho nesse contexto. Iremos
ainda perceber os benefícios deste tipo de terapia e a preponderância que tem no panorama
actual da saúde mental.
Começaremos por, no capítulo 3.1, analisar o percurso de dois artistas mundialmente
reconhecidos, William Kurelek e Yayoi Kusama, que durante as suas vidas se debateram com
as adversidades das respectivas doenças mentais. O testemunho de ambos será importante no
sentido em que permitirá perceber se, e de que forma, a arte influenciou a maneira como
ambos lidaram com as condicionantes da doença, retirando conclusões quanto à existência de
uma hipotética preponderância terapêutica da mesma, um aspecto fundamental na abordagem
feita à questão da arte-terapia.
De seguida, no capítulo 3.2, faremos uma abordagem à origem da terapia através da arte em
contexto clínico, a partir dos exemplos de duas personalidades pioneiras nesse campo, Nise
da Silveira e Edward Adamson, que a partir dos ateliers de desenho e de pintura que
desenvolveram para pessoas com doença mental, acabaram por contribuir para a
humanização dos tipos de tratamento então praticados. Tanto no caso de Nise, como no de
Adamson será possível constatar que o desenho, pela sua natureza imediata e instintiva,
acabou por ter um papel fundamental enquanto forma de expressão para o contexto específico
em análise.
Posteriormente, de forma a ser percepcionada a relevância que tem no panorama atual da
saúde mental a arte-terapia, partiremos no capítulo 3.3 para uma análise da definição e da
aplicação prática desse tipo de terapia, nos seus mais diversos contextos, baseada numa série
de autores que estão directamente ligados ao meio. Essa análise culminará, no capítulo 3.4,
com a elaboração de uma abordagem à interpretação dos benefícios desse tipo de terapia para
pessoas com doença mental, particularizando o uso do desenho enquanto forma de expressão,
baseando-nos numa série de artigos científicos que se debruçaram em torno desse tipo de
projectos. Esses benefícios acabam por enquadrar tanto participantes directos como
indirectos, pois a comunidade beneficia, no sentido em que a arte permite quebrar barreiras,
nomeadamente ligadas ao estigma decorrente da doença mental.

27
3.1 William Kurelek e Yayoi Kusama

William Kurelek (1927-1977), artista canadiano do século XX, desde cedo se viu confrontado
pela condição mental que o atormentou permanentemente, a mesma que quase o levou ao
suicídio. Aliado a isso, a presença constante, durante a infância, de um pai rígido e
autoritário, levou a que encontrasse na arte um refúgio e uma certeza em relação à sua
vocação, tendo decidido que seria esse o seu propósito de vida.

“The only thing in which I excelled were my school work and at my art work.”41

Apesar dessa certeza, as adversidades por que foi passando ao longo da vida levaram a que
gradualmente o sofrimento de Kurelek se apoderasse dele, acabando por, em 1952, ser
internado no Hospital Psiquiátrico de Maudsley, em Londres, tendo-lhe sido diagnosticada
uma esquizofrenia.
No entanto, é precisamente nessa instituição que encontra uma forma de lidar com a sua
doença. Com o auxílio da terapeuta que então o acompanhava, acaba por encontrar na
religião uma forma de exorcizar e atenuar o seu sofrimento.42 A pouco e pouco vai
melhorando, desenhando cada vez mais, sentindo-se mais confiante e seguro de si, enquanto
homem e artista. A arte, aliada a uma devoção recém adquirida pela religião, são os dois
alicerces que o levam a recuperar, a sair do hospital e a finalmente construir uma carreira
sólida, expondo em inúmeros sítios, sendo o seu trabalho recebido cada vez com um maior
sucesso. ​A Paixão de Cristo43, uma impressionante série de cento e sessenta ilustrações que
desenvolveu com enorme afinco ao longo de vários anos, é disso exemplo.44
Kurelek afirma mesmo que determinados aspectos da sua condição mental acabaram por
influenciar positivamente o seu trabalho, estando longe de serem duas coisas indissociáveis.

“(...) certain aspects of my obsessions picked up in an affection-starved childhood were now


to turned to advantage. My tanacital approach to work, for example, involved me to execute
one painting a week for three years, come hell or high water.”45

Para além do excepcional e inegável valor artístico, o trabalho de William Kurelek é também
um testemunho da forma como o desenho e a pintura acabaram por ter um papel determinante
perante a constante tormenta que a sua doença mental lhe causou ao longo da vida. É certo
que a arte não eliminou a sua esquizofrenia, mas sem dúvida que ajudou a silenciá-la.
Abordaremos agora um segundo testemunho, de idêntica pertinência quanto à sua resiliência
e determinação, o da artista japonesa Yayoi Kusama, (1929 - ).

41
​KURELEK, William,​ The passion of Christ,​ p. 7
42
​KURELEK, William, ​The passion of Christ,​ p. 12
43
​T​ermo ​teológico ​cristão utilizado para descrever os eventos e os sofrimentos - físicos, espirituais e mentais -
de ​Jesus​ nas horas que antecederam seu julgamento e sua execução.
44
KURELEK, William, ​The passion of Christ​, p. 11
45
KURELEK, William, ​The passion of Christ​, p. 11

28
Fig.5: Uma das 160 ilustrações da série​ Paixão de Cristo segundo São Mateus,​ da autoria de
William Kurelek (1927 - 1977), gouache sobre papel, 1960-1963, Museu e Galeria de
Niagara Falls.

Apesar de todo o seu sucesso, tendo sido nomeada a artista mais popular do mundo em 2014,
46
a verdade é que um dos aspectos que associamos de forma mais imediata ao seu trabalho é
precisamente a ligação à sua condição mental, a qual implica uma análise da pertinência da
arte, particularmente dos efeitos benéficos que, segundo a própria artista, acaba por ter.

“Se não fosse a arte, eu ter-me-ia suicidado há muito tempo.”47

Kusama, no decorrer do ano de 1974, a viver e trabalhar desde os vinte anos em Nova iorque,
é obrigada a voltar à sua terra natal, ao Japão, sob a condição de estar a sofrer de uma doença
mental severa. Nos dois anos seguintes, tem várias e graves recaídas e por iniciativa própria
decide permanentemente instalar-se no Hospital Psiquiátrico de Seiwa48 e aí permanecer até
aos dias de hoje, estando o seu estúdio muito perto dessa mesma instituição.49 Essa decisão é
determinante para a sua carreira, mas sobretudo para a sua estabilidade emocional, sendo algo
que acaba por ter um reflexo no seu trabalho. Este, segundo a própria artista, está
intrinsecamente ligado à sua condição mental sendo uma consequência do mesma,

46
Informação retirada do artigo ​The world’s most popular artist in 2014: Yayoi Kusama​, disponível em
https://www.vice.com/en_uk/article/aenkb4/the-worlds-most-popular-artist-in-2014-yayoi-kusama
47
​Citação transcrita a partir do artigo​Yayoi Kusama,​ disponível em https://hardecor.com.br/yayoi-kusama/
48
MORRIS, Frances; APPLIN, Jo; NIXON, Mignon; TAYLOR, Rachel; YAMAMMARA, Nidori, ​Yayoi
Kusama,​ p. 123
49
MORRIS, Frances; APPLIN, Jo; NIXON, Mignon; TAYLOR, Rachel; YAMAMMARA, Nidori, ​Yayoi
Kusama,​ p. 123

29
nomeadamente das suas alucinações, as quais afirma que gradualmente acabou por aceitar e
incorporar no mesmo.50
Os profissionais de saúde que privam com Kusama, corroboram com essa ideia, afirmando
que a ligação da condição mental da artista ao seu próprio trabalho se apresenta com um dos
aspectos mais fascinantes da sua personalidade.51 A própria forma como a artista passa a
trabalhar, obsessivamente, acaba por se transfigurar numa terapia que Kusama utiliza a seu
favor, a nível emocional, silenciando, embora não erradicando, a sua doença.
No entanto, sem o devido acompanhamento por parte de profissionais da área, dificilmente as
adversidade do sua condição seriam alguma vez dobradas. Trata-se, nesse sentido, de um
trabalho que engloba várias partes de um todo, que permitem à artista, ainda hoje,
desenvolver com paixão e afinco as suas instalações, esculturas, pintura e desenhos.52

Fig. 6: Instalação ​Dots Obsession – Love Transformed into Dots,​ da autoria de Yayoi
Kusama, presente na exposição ​Yayoi Kusama: infinity Mirrors,​ no Museu de Arte de Seattle,
2007.
Tanto Kusama como Kurelek dedicaram as suas vidas à arte, assumindo ser essa a sua
profissão e vocação. É natural que neles a expressão artística tenha uma importância que
noutras pessoas não ocorre, que os valoriza como nenhuma outra actividade o poderia fazer.
No entanto, como vimos em capítulos anteriores, a expressão através da arte, do desenho, é
algo que está intimamente ligado à essência do ser humano, não só aos artistas. Poderá por
isso, como ocorreu com Kurelek e Kusama, a arte, pela sua natureza imediata e acessível, ser
uma forma de terapia para outras pessoas, para pacientes com doença mental que não sejam
artístas nem tenham essa pretensão? E como se incorpora o desenho nesse contexto?

50
​MORRIS, Frances; APPLIN, Jo; NIXON, Mignon; TAYLOR, Rachel; YAMAMMARA, Nidori, ​Yayoi
Kusama,​ p. 14
51
​Citação transcrita a partir do artigo​Yayoi Kusama,​ disponível em https://hardecor.com.br/yayoi-kusama/
52
Citação transcrita a partir do artigo​Yayoi Kusama,​ disponível em https://hardecor.com.br/yayoi-kusama/

30
No próximo capítulo, iremos tentar responder a essas perguntas, abordando a origem da
arte-terapia em contexto clínico para pessoas com doença mental, percebendo de que forma o
desenho se insere nesse contexto, e posteriormente, qual a relevância do seu papel nesse tipo
de terapia.

3.2 A origem da arte-terapia e o uso do desenho como forma de expressão nesse


contexto, Nise da Silveira e Edward Adamson

Revoltada com a violência presente nos tratamentos aplicados a pacientes com doença
mental, recusando-se, inclusive, a colocá-los em prática, Nise da Silveira, decidida a procurar
alternativas a essa violência, acabou por tornar-se num nome incontornável da terapia através
da arte.
Nascida em 1905, a médica psiquiatra brasileira criou e desenvolveu ateliês de desenho e
pintura enquanto parte integrante do processo de tratamento dos seus pacientes, algo que
acabou por revolucionar a maneira como a sociedade e a medicina encaravam e se
relacionavam com doentes psicóticos.
Os ​estudos de Carl Jung, que afirmam que um doente psicótico não é uma pessoa indiferente,
hermética ou incapaz de demonstrar afecto, foram muito importantes para o trabalho de Nise.

“Nise tinha uma trajetória política e filosófica antes de encontrar a obra de Jung. Mas ele lhe
ensinou o caminho da mitologia e das artes plásticas pensadas em uma chave criativa e
clínica que era muito avançada para a época.”53

Para além da influência de Carl Jung, o tempo que Nise passou na prisão, consequência da
sua recusa em aplicar os tratamentos praticados na altura, levou a que a médica se
apercebesse que os prisioneiros sucumbiam quando deixavam de estar ocupados, ocorrendo
precisamente o oposto aos que tinham uma determinada tarefa a cumprir e que, por mais
pequena que fosse, acabava por incentivá-los a seguir em frente e a resistir às adversidades da
prisão.54
A personalidade humana e altruísta que caracterizava Nise da Silveira foi fundamental para
que se tivesse mantido fiel aos seus ideais.55 Para a médica, os seus pacientes sempre foram o
foco da sua luta. Felizmente, os resultados do esforço que acarretou acabaram por chegar sob
diversas formas.

53
​Citação transcrita a partir do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/
54
Informação retirada do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/
55
Citação transcrita a partir do artigo ​Nise da Silveira , a mulher que imprimiu um novo rumo à psiquiatria no
Brasil,​ disponível em
https://www.psicologiasdobrasil.com.br/nise-da-silveira-a-mulher-que-imprimiu-um-novo-rumo-a-psiquiatria-n
o-brasil/

31
“Eu pretendia que o paciente na Terapia Ocupacional tomasse conhecimento com a matéria.
E, uma vez, um paciente me mostrou que eu estava no caminho certo, quando me ofereceu
um coração em madeira e no centro do coração havia um livro aberto. Quando me ofereceu
isso, ele me disse: um livro é muito importante, a ciência é muito importante, mas se ela se
desprender do coração, não vale nada. Tudo que eu sei de psiquiatria aprendi com eles.”56

Nise acabou por conseguir introduzir a Seção de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR)
no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1946,57 tendo recebido inúmeros
pacientes nos anos que se seguiram.
O acervo dos trabalhos desenvolvidos nos ateliês da STOR foi apresentado pela primeira vez
em 1950, na ​Exposição de Arte Psicopatológica,​ durante o I Congresso Internacional de
Psiquiatria, em Paris. Uma segunda exposição surgiria em 1957 intitulada ​A Esquizofrenia em
Imagens​, durante o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique. Com o
desenvolvimento do projecto e com o aparecimento deste tipo de exposições e iniciativas, as
quais levaram a que o público tivesse um contacto com o trabalho dos pacientes muito mais
directo, acabaram também por inevitavelmente surgir questões ligadas a pressupostos éticos,
importantes na arte-terapia.58

“À medida que as exposições dos trabalhos da STOR foram sendo organizadas e que a
experiência foi se tornando conhecida nos meios culturais, Nise se deparou com o problema
de acompanhar os pacientes revelados como artistas, lhes oferecer cuidado e cuidar, ao
mesmo tempo, de suas obras.”59

Fig. 7: Nise da Silveira com os seus pacientes, arquivo Nise da Silveira.

56
​Citação transcrita a partir do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/
57
​Informação retirada do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/
58
Informação retirada do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/
59
Citação​ transcrita a partir do artigo ​Nise da Silveira , a mulher que imprimiu um novo rumo à psiquiatria no
Brasil,​ disponível em
https://www.psicologiasdobrasil.com.br/nise-da-silveira-a-mulher-que-imprimiu-um-novo-rumo-a-psiquiatria-n
o-brasil/

32
É a partir dessa necessidade que surge o Museu de Imagens do Inconsciente60, com o intuito
de articular os interesses científico, clínico e artístico do trabalho desenvolvido pelos
pacientes das oficinas de desenho e pintura, e ao mesmo tempo, colmatar a necessidade de
conceber um local onde todo esse trabalho pudesse ser guardado e divulgado.
Os ateliês de Nise revelaram artistas plásticos talentosos. O interesse pelo projecto não se
cingiu somente a investigadores ligados à saúde mental, mas também a críticos de arte, algo
importante para as componentes social e cultural da comunidade à qual os pacientes
pertenciam.61

Fig. 8: Trabalho de Carlos Pertuis, um dos pacientes de Nise da Silveira, de 1949, presente no
Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, Brasil.

O legado de Nise subsiste, mas talvez a sua maior herança, a sua maior conquista, tenha sido
a forma humana como lidou com os seus pacientes, um exemplo marcante e que em muito
contribuiu para abalar as mentalidades da época.

“O maior legado de Nise foi introduzir o afeto como elemento transformador no tratamento.
Até hoje os ateliês de pintura, modelagem e outras atividades continuam a funcionar segundo
sua filosofia. Foi a sua coragem e determinação que sustentaram a sua rebeldia para abrir
novos caminhos no tratamento e no respeito a esses indivíduos marginalizados pela
psiquiatria e pela sociedade.”62

É ainda importante sublinhar o papel do desenho na terapia que Nise desenvolveu. Para além
do enorme acervo que hoje se encontra no museu de imagens do inconsciente, com cerca de

60
Mais informação sobre o Museu de Imagens do Inconsciente disponivel em
http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/
61
​Informação retirada do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/
62
​Citação transcrita a partir do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/

33
350 mil peças, a verdade é que essa forma de expressão, nas próprias palavras da médica,
acabou por ser um meio muito importante para que ela se percebesse que a arte poderia ser
uma forma de terapia para os pacientes.

“Ao desenvolver, inicialmente, os ateliês de bordado, modelagem, encadernação de livros


etc., Nise percebe que os pacientes desenhavam muito no chão e nas paredes. Veio, então, a
ideia de criar um ateliê de pintura e modelagem.”63

Mais à frente, quando aprofundarmos o papel do desenho no contexto de arte-terapia,


analisaremos mais a fundo a importância das respectivas características, e de que forma
podem ser importantes na expressão de pessoas com doença mental. Para já, iremos
prosseguir com um segundo exemplo que, paralelamente ao de Nise da SIlveira, acabou por
ser preponderante no uso da arte enquanto forma de terapia em contexto de doença mental.
Aproximadamente na mesma altura em que os ateliers de Nise da Silveira tiveram início no
Brasil, na Grã Bretanha, o artista britânico Edward Adamson (1911 - 1996), desenvolveu
também ele uma série de projectos em torno da terapia através da arte.
Pouco tempo depois do final da Segunda Guerra Mundial, no ano de 1946, Adamson
voluntariou-se a trabalhar com Adrian Hill64 num programa que pretendia levar avante aulas
de desenho e pintura a doentes com tuberculose.65 Pelo sucesso que essas aulas tiveram,
resultando em melhorias significativas no bem estar dos doentes que nelas participavam, a
iniciativa foi posteriormente alargada a pacientes com problemas mentais, em hospitais
psiquiátricos. Tal como aconteceu com Nise da Silveira, também Adamson se viu
confrontado com o resultado dos tratamentos violentos praticados na altura, com os seus
alunos a aparecerem nas aulas cobertos de ligaduras, cicatrizes, olhos negros, visivelmente
maltratados pelas consequências das cirurgias e práticas desumanas que então envolviam a
doença mental.66
Assim como nas aulas de doentes com tuberculose, também no caso de pacientes com doença
mental foram evidentes as melhorias de quem as frequentou.67 O médico Cunningham Dax,
constatando o sucesso do trabalho desenvolvido nas aulas de Adamson, convida o artista a
juntar-se a uma experiência de grupo, na qual os seus participantes, diagnosticados e em
tratamento de problemas ligados a distúrbios mentais, se expressavam livremente através de
desenho e pintura, no Hospital de Netherne.68 Neste caso, o foco não foi tanto o da didática
artística, como em situações anteriores, mas antes o de dar primazia à expressão criativa mais

63
​Citação transcrita a partir do artigo ​Nise da Silveira,: entre a loucura a rebeldia e a arte,​ disponível em
https://educezimbra.wordpress.com/2018/01/30/nise-da-silveira-entre-a-loucura-a-rebeldia-e-a-arte/
64
​Adrian Hill (1895 – 1977) foi um autor, artista e arte-terapueta Britânico, conhecido por ter registado, através
de desenhos, o conflito na Frente Ocidental durante a Primeira Guerra Mundial.
65
​Informação retirada do artigo Art as Healing: Edward Adamson,​ disponível em
http://www.adamsoncollectiontrust.org/wp-content/uploads/2016/09/2-2011.-DOF-Raw-Vision-for-EAF.pdf
66
​Informação retirada do artigo ​Art as Healing: Edward Adamson,​ disponível em
http://www.adamsoncollectiontrust.org/wp-content/uploads/2016/09/2-2011.-DOF-Raw-Vision-for-EAF.pdf
67
Informação retirada do artigo ​Art as Healing: Edward Adamson,​ disponível em
http://www.adamsoncollectiontrust.org/wp-content/uploads/2016/09/2-2011.-DOF-Raw-Vision-for-EAF.pdf
68
​Hospital Psiquiátrico localizado em Hooley, no Reino Unido, que funcionou entre 1905 e 1994.

34
intuitiva e individualizada. As instruções dadas a Adamson apontaram no sentido de que ele
interviesse o menos directamente possível, sendo a presença do artista focada somente com o
intuito de facilitar na expressão artística dos pacientes através da pintura ou do desenho.
Durante os 35 anos seguintes, Adamson continuou o seu trabalho enquanto orientador
artístico desses e de muitos outros pacientes, guardando e catalogando todo o trabalho
produzido nos ateliês que acompanhou. Em 1970, existiam já cinco estúdios no hospital e
uma coleção com cerca de 60.000 peças, expostas rotativamente numa galeria pertencente a
essa mesma instituição.
Tal como ocorreu nos ateliês de Nise da Silveira, também nos de Adamson o trabalho dos
pacientes adquiriu uma importância que suplantou o próprio contexto de terapia, uma
tremenda conquista quer a nível humano, quer a nível artístico e cultural.

“Adamson saw people recovering something of themselves – ‘healing’, in his terms – through
the act of expressing themselves through art. He continued the ‘non-interventionist’ way of
working, unchanging over his career. He brought a silent presence, providing a sympathetic
atmosphere. He offered people a range of media. The studios were an enabling place for
people surviving in a bleak asylum. Subverting the quasi scientific ‘experiment’ into a
crucible where people excluded so profoundly from society were free to express themselves
without judgement, and to value that expression, was a first step in opening up a dialogue
with those considered voiceless.”69

Fig. 9: Trabalho de autoria desconhecida, pertencente à colecção de Edward Adamson.

69
​Citação transcrita a partir do artigo Art as Healing: Edward Adamson​, disponível em
http://www.adamsoncollectiontrust.org/wp-content/uploads/2016/09/2-2011.-DOF-Raw-Vision-for-EAF.pdf

35
O desenho apresentou um papel determinante no trabalho de terapia de Adamson, a par da
pintura, sendo os dois principais focos dos ateliers que desenvolveu. Curiosamente, e tal
como aconteceu com Nise, o desenho acabou também por ser um dos meios a partir do qual
Adamson se inspirou para explorar o potencial da terapia através da arte, numa visita ao
Hospital de Netherne, num episódio curioso, a partir do qual um paciente lhe ofereceu uma
série de desenhos que fez apenas com os materiais que tinha ao seu dispor, restos de fósforos
carbonizados e papel higiénico.70 Foram estas as primeiras peças que Adamson colecionou. A
natureza imediata do desenho, espelhada neste exemplo, é mais uma vez prova da
importância que tem para este tipo de contexto por estar ligada a uma expressão
extremamente humana, a qual mais à frente abordaremos com maior profundidade.
Tanto Nise da Silveira como Edward Adamson foram pioneiros para que hoje a arte-terapia
se tenha tornado numa realidade relativamente ao tratamento de pacientes com doença
mental. No próximo capítulo desta dissertação, tentaremos perceber qual o verdadeiro
impacto que a arte-terapia tem hoje, esclarecendo os benefícios, as diferentes práticas e
aplicabilidades, constatando a sua evolução e importância dentro do panorama da saúde
mental. Para além disso, será importante perceber o papel particular do desenho, enquanto
disciplina aplicada neste tipo de contexto terapêutico, pelo carácter transversal que apresenta
a inúmeras outras formas de expressão artística como a pintura ou a escultura, entre outras,
bem como pela sua particular natureza, inserida numa ideia de acção imediata e instintiva.

3.3 A definição de arte-terapia e a sua relevância no panorama actual da saúde mental

A definição de arte-terapia está intrinsecamente ligada à expressão criativa. Através de


técnicas artísticas como o desenho, a pintura ou a escultura, os pacientes têm a oportunidade
de se expressar de uma forma que a oralidade ou a escrita não permitem, concedendo aos
arte-terapeutas a possibilidade de examinarem importantes factores psicológicos e emocionais
a partir precisamente desses trabalhos desenvolvidos.71

“(...) expressing oneself through a drawing, painting, sculpture, or collage makes out thought,
feelings, and ideas tangible and communicates what we sometimes cannot say through words
alone.”72

O uso da arte enquanto ferramenta terapêutica tem outro tipo de mais valias para além das
possibilidades comunicacionais. Desde logo, a sua aplicabilidade a um contexto social,
apresenta o poder de desencadear uma sensação de pertença e ligação a uma comunidade e de
valorização perante a mesma, facto esse de enorme importância pela forma precária e muitas
vezes isolada em que muitas pessoas com doença mental se encontram.

70
​Informação retirada do artigo ​Edward Adamson, disponível em
http://www.adamsoncollectiontrust.org/wp-content/uploads/2016/09/Edward-Adamson-Wiki-Sept-16.pdf
71
​Informação retirada do portal “Psychology Today”, disponível em
https://www.psychologytoday.com/us/therapy-types/art-therapy
72
Informação retirada do portal “Psychology Today”, disponível em
https://www.psychologytoday.com/us/therapy-types/art-therapy

36
“​(...) a arte é um mediador pedagógico que potencializa a capacidade de imaginar. A arte, sob
o ponto de vista da psicologia, é um importante recurso para a expressão e a recriação do
indivíduo, ela reflete o mundo de percepções, pensamentos, sentimentos e emoções e revela,
também, seu poder de imaginação. A arte seria, portanto, uma proposta de expressão,
recriação e fortalecimento individual e coletivo.”73

Hoje, existem já instituições próprias de arte-terapia que promovem formações, eventos,


exposições entre outras iniciativas do género. Em Portugal, por exemplo, temos a ​Sociedade
Portuguesa de Arte-terapia.74 A natureza transversal das situações em que a arte-terapia pode
ser aplicada é uma grande vantagem que lhe é atribuída, não se cingindo somente a situações
de pessoas com doença mental, muito embora seja esse o foco desta investigação.
Dentro dos benefícios do uso da arte, podemos considerar as vantagens inerentes ao próprio
processo criativo, que acaba por ser desencadeador de efeitos positivos nos pacientes.

“(...) art therapy programs offer creative activities (...) to help reduce stress and anxiety,
lessen pain and nausea, and empower both the patient and caregiver to express their feelings
and experiences. (...) creative expression has been shown to naturally calm the body, reduce
blood pressure, and even release chemicals in the brain (...) Opening up through artistic
expression can improve one's outlook and mood, but most importantly, it helps us to
communicate our experience of illness, trauma, grief, and loss.”75

É importante considerarmos determinadas características do universo da arte, que extravasam


para fora do contexto clínico de terapia e que devem ser tidas em conta quando abordamos
aquilo que é arte-terapia. Por vezes surgem dúvidas e confusões relativamente à diferença
entre aquilo que deve ou não ser uma forma de intervir nesse tipo de contexto,
particularmente da forma como o elemento artístico deve ou não ser usado. Daniela Martins,
membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Arte-Terapia, na tentativa de esclarecer
essas diferenças, afirma que a arte-terapia implica:

“(...) uma intervenção estruturada de expressão artística com pacientes com doença mental,
que frequentam hospitais ou estão internados (...) é uma actividade continuada, mas não há
exposição das criações. Não é um trabalho artístico, é criativo. (...) o objectivo é que a pessoa
encontre significado para a sua criação. A arte estimula o imaginário simbólico da pessoa.”76

73
​Citação transcrita a partir do artigo ​Arte e saúde comunitária: contribuições para a compreensão do processo
de desinstitucionalização​, disponível em
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-093X2012000200003
74
​A SPAT foi criada em 1996, e ao longo da sua existência tem vindo a ter um desempenho dinâmico em
diversas vertentes, nomeadamente formativa, de divulgação, investigação e clínica.
75
Citação transcrita a partir do portal ​Psychology Today​, disponível em
https://www.psychologytoday.com/us/therapy-types/art-therapy
76
​Citação transcrita a partir do artigo ​A arte é uma terapia. Até é mais, abre a porta para o mundo,​ disponível
em
https://www.dn.pt/portugal/interior/a-arte-e-uma-terapia-ate-e-mais-abre-a-porta-para-o-mundo-9301671.html

37
Sandro Resende, professor de artes e director artístico do Centro Hospitalar Psiquiátrico de
Lisboa, responsável também pelo projecto ​Manicómio​,77 corrobora com a ideia de que a
terapia e as suas aulas, de artes visuais, não são a mesma coisa.

“A terapia ocupacional trabalha com terapêutas, com saúde mental e com técnicos de saúde,
portanto, tem uma preocupação não tão técnica ou artística. Nós não, nem sabemos qual o
diagnóstico do doente. (...) A pessoa, o indivíduo, para nós é o mais importante. E depois o
que a pessoa quer fazer, se se quer dedicar e trabalhar nesta área. Vamos trabalhando todos
em conjunto e crescendo mutuamente, eles como indivíduo e como pessoa, não como
doentes. Então, há uma procura diferente entre nós e a terapia ocupacional que trabalha com
técnicos de saúde.”78

E quanto à possibilidade da arte ter um papel na reabilitação de um doente, Sandro Resende


acredita que sim, muito embora com algumas reticências, fruto das incertezas que decorrem
da eventualidade do trabalho sair para fora do contexto dos ateliers de terapia, quando os
pacientes decidem enveredar por um caminho em que encaram a arte de forma
substancialmente diferente, através de galerias, museus, compradores ou colecionadores.

“(...) Acho que a arte quando levada a sério pode ser muito frustrante e há muitas
dificuldades, tanto aqui quanto na terapêutica. Há muitas formas de trabalhar e de encarar a
arte dentro do hospital e há doentes que podem usar a arte de forma mais terapêutica, onde é
possível alguém ajudar para que a recompensa seja boa. Vamos imaginar um doente que
queira imitar um Van Gogh ou um Monet, ao ajudá-lo a ter essa recompensa é terapêutico,
mas isso não é propriamente arte. Quando o doente quer levar a arte mais a sério pode ser
frustrante como todos os artistas do mundo sabem, dos mais consagrados aos mais
emergentes e nós que trabalhamos com o mercado, sabemos a dureza que isso tem. Ou seja,
pode ser ou não pode ser terapêutico, depende da forma como o indivíduo quer trabalhar com
o objeto de arte.”79

Este ponto, que refere a forma como o doente encara a sua produção artística, é
tremendamente importante, podendo a mesma trazer ou não benefícios. No entanto, e como
Sandro Resende reconheceu, o trabalho artístico, a sensação de conquista que a conclusão de
uma obra, mesmo que seja uma mera cópia de um outro quadro, pode realmente ter efeitos
benéficos tremendos, se o caminho para tal for bem trilhado. A aquisição de competências
artísticas, nas quais está incluído o desenho, pode ser um dos pontos mais importantes a

77
​Projeto de incubadora de artes para pessoas com doença mental, a cargo de Sandro Resende e José Azevedo,
localizado em Lisboa
78
Citação trasncrita a partir da entrevista a Sandro Resende disponível em
https://www.artecapital.net/entrevista-206-sandro-resende
79
​Citação trasncrita a partir da entrevista a Sandro Resende disponível em
https://www.artecapital.net/entrevista-206-sandro-resende

38
explorar na arte-terapia. De certa forma, não é necessariamente um ponto negativo se à
expressão criativa individual aliamos a aquisição de competências mais técnicas.

“Through working with art materials, learning new skills, and developing ideas through
visual media, often people feel a sense of self-satisfaction, personal achievement, and
accomplishment.”80

No entanto, e tal como Sandro Resende referiu, as frustrações que poderão advir de uma
carreira artística, amplamente conhecidas tanto por pessoas do meio como daqueles que não
estão directamente ligados a ele, podem ser um dos pontos negativos da terapia através da
arte. Deve por isso ser algo a ter em consideração, devidamente presente nos profissionais
que lidam directamente com os pacientes. No entanto, nem sempre essa projecção do trabalho
dos pacientes para fora dos ateliers de arte-terapia tem de ser algo negativo. Antes pelo
contrário. Basta para isso considerar os exemplos do trabalho desenvolvido nos ateliês de
Nise da Silveira e de Edward Adamson, que levou a que alguns dos pacientes que os
frequentaram tenham vindo a desenvolver uma carreira artística fora do contexto clínico.
Todavia, o debate relacionado com a exposição dos pacientes e do trabalho desenvolvido em
ateliês de arte-terapia continua a ser pertinente, não devendo ser abandonado.81

“The issue of ethical boundaries in art therapy is a complex question and the subject of recent
communications within the art therapy community, it’s worthy of more discussion. Of equal
importance, exploration of art therapy ethics in a digital age is central to addressing or at least
clarifying the question - is this art therapy or is this an art class?”82

Ainda que estas dúvidas persistam, a verdade é que o uso da expressão artística pode trazer
inúmeros benefícios, como já vimos e referimos acima. A arte-terapia alcança hoje um vasto
e eclético público, transcendendo o contexto clínico com pacientes com uma doença mental,
beneficiando quem dela usufrui a vários níveis, tais como a autoestima, o tratamento de
adições, problemas relacionados com o stress, depressões, entre outros.83
No próximo capítulo, iremos aprofundar a análise dos benefícios da arte-terapia em pessoas
com doença mental, particularizando e percebendo, nesse mesmo contexto, o papel particular
do desenho, a partir de uma análise de vários artigos que incidiram nesse tipo de prática.

80
​Citação transcrita a partir do artigo ​Drawing a Picture of Health: An Art Therapy Guid,​ disponível em
https://www.psychologytoday.com/intl/blog/arts-and-health/201703/drawing-picture-health-art-therapy-guide
81
​Citação transcrita a partir do artigo ​Art Therapy: It’s Not an Art Class​, disponível em
https://www.psychologytoday.com/us/blog/arts-and-health/201807/art-therapy-it-s-not-art-class
82
​Citação transcrita a partir do artigo ​Art Therapy: It’s Not an Art Class​, disponível em
https://www.psychologytoday.com/us/blog/arts-and-health/201807/art-therapy-it-s-not-art-class
83
Informação retirada do portal ​Psychology Today,​ disponível em
https://www.psychologytoday.com/us/therapy-types/art-therapy

39
3.4 Os benefícios da arte-terapia em pessoas com doença mental e o papel do desenho
nesse contexto

Muito embora no segmento anterior tenhamos referido alguns dos benefícios da arte-terapia
para pessoas com doença mental, iremos agora analisar os mesmos com maior profundidade,
a partir de uma revisão da literatura de artigos científicos publicados entre 2000 e 2013 que
incidem precisamente dentro desse contexto.84
Alguns dos transtornos dos participantes mencionados nesses artigos incluem: depressão
maior unipolar, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtornos alimentares, transtorno
obsessivo-compulsivo, transtorno de stress pós-traumático e transtornos de personalidade.85
Os autores desta revisão literária acabaram, de forma a facilitar a respectiva leitura, por
dividir em oito categorias, os benefícios que os vários artigos referem.

“Os efeitos benéficos destacados pelos artigos foram agrupados em oito categorias,
construídas a partir de uma análise de conteúdo dos resultados encontrados: expressividade,
revisão da identidade, ampliação de competências pessoais, empowerment, reconquista da
esperança, concretização de planos, sociabilidade e minimização de aspectos negativos da
doença mental.”86

Os resultados desta revisão literária, quanto aos efeitos benéficos do uso da arte nessas oito
categorias identificadas, foram sem dúvida alguma muito positivos.

“(...) alguns usuários afirmaram que passaram a se sentir no controle da própria vida e viram
a produção artística como algo necessário para lidar com as limitações da doença. (...) a
convivência com pessoas que enfrentavam as mesmas dificuldades e a percepção do usuário
de que ele foi capaz de realizar algo que não conseguia fazer antes. (...) o vínculo entre os
usuários permitiu o compartilhamento de ideias e experiências similares (...) Os usuários
passaram a se sentir socialmente aceites, incluídos e parte da comunidade. A criação de uma
cultura tolerante no grupo de actividades artísticas e a vivência em um ambiente seguro e não
competitivo foram alguns dos mecanismos apontados para a obtenção dos efeitos.”87

84
​Uma metodologia qualitativa ou pesquisa qualitativa de mercado, é um método de pesquisa social que utiliza
técnicas de recolha de dados descritivas e se caracteriza pela sua análise cuidadosa. Costumam considerar-se
técnicas qualitativas todas aquelas diferentes à pesquisa estatística e ao experimento científico.
85
Informação reirada do artigo ​Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação psicossocial de
pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da l​ iteratura​, disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-462X2016000400487
86
​Citação transcrita a partir do artigo ​Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação
psicossocial de pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da ​literatura,​ disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-462X2016000400487
87
​Citação transcrita a partir do artigo ​Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação
psicossocial de pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da ​literatura,​ disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-462X2016000400487

40
As vantagens do uso da arte enquanto veículo de expressão, cujas características divergem da
palavra escrita ou oral, são também referidas e realçadas na forma como ajudam, em certas
situações, à expressão de sentimentos e emoções. Também a aquisição e a exploração de
competências artísticas foram ressalvadas.

“(...) os efeitos mais destacados foram a expressão de memórias e de sentimentos negativos


ou opressivos e a menor dificuldade para falar de si, usando as obras produzidas como
facilitadores. (...) contribuiu para a mudança do modo como se relacionavam com a
comunidade e para a reconstrução de suas vidas. Os efeitos foram atribuídos ao
reconhecimento das conquistas dos usuários pelos pares, por profissionais e pela comunidade,
com a exibição de obras ao público desempenhando um papel importante no processo.”88

É importante ressalvar este segundo ponto mencionado, que atesta o papel da comunidade e
dos pares na aprovação do trabalho desenvolvido a partir de projetos de arte-terapia, algo que
é extremamente importante na ajuda ao combate a um dos maiores flagelos que envolvem a
doença mental, o preconceito, que infelizmente ainda existe com bastante proeminência na
nossa sociedade. Relativamente a esta problemática, o psicólogo José Ferreira Gomes afirma:

“Os problemas do foro psicológico são como uma faca de dois gumes: por um lado temos os
sintomas que impedem ou prejudicam a pessoa no prosseguimento do seu quotidiano, e por
outro temos o estigma que ainda existe na sociedade em relação a este tipo de problemáticas.
Apesar do muito que se tem feito pela saúde mental em Portugal, há ainda uma grande
injustiça social para com as pessoas que sofrem com problemas desta natureza.” 89

Esta ideia justifica-se pela ignorância tida, ainda hoje, em relação às perturbações mentais e
ao seu tratamento. O estigma da doença mental é alimentado por essa visão negativa,
acabando por prejudicar os próprios doentes, que por medo de serem negativamente julgados
perante a sociedade, acabam por não procurar ajuda profissional e consequentemente se
isolam, acabando por piorar. O estigma da doença mental repercute-se de duas maneiras:

“O estigma público tem início em indícios específicos (sintomas, défices de competências


sociais, aparências, rótulos, etc.) que conduzem a estereótipos (i.e., estruturas de
conhecimento aprendidas sobre um determinado grupo social). No auto estigma, o que ocorre
é que as pessoas com diagnóstico tendem a internalizar as crenças que estão associadas à
doença mental e passam a acreditar que têm menos valor do que as outras pessoas devido à
sua condição.”90

88
​Citação transcrita a partir do artigo ​Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação
psicossocial de pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da​ ​literatura,​ disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-462X2016000400487
89
Citação transcrita a partir do artigo ​Estigma da Saúde Mental​, disponuivel em
http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1120.pdf
90
​Citação transcrita a partir do artigo ​Estigma da Saúde Mental​, disponuivel em
http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1120.pdf

41
De forma a combater esse estigma, evitando que os doentes sofram ainda mais, que se isolem
e se afastem, é importante intervir, havendo várias formas de o fazer. A arte, tendo o poder de
chegar de variadas e muitas vezes imediatas formas às pessoas, acaba por adquirir, nesse
sentido, um importante papel, sendo um exemplo desse contacto mencionado. Pode por isso
ajudar na quebra do estigma da doença mental, e na valorização dos próprios pacientes. 91
É por isso importante criar situações em que o trabalho artístico desenvolvido, consequência
das competências artísticas exploradas, possa ser divulgado ao público, seja através de
exposições ou outro tipo de eventos do género. Naturalmente devem ser tidos em conta as
ressalvas mencionadas no capítulo anterior, que implicam evitar determinados sentimentos ou
situações negativas que poderão, em algumas situações, advir desse tipo de exposição
pública. Afinal, uma hipotética carreira artística não se vislumbra como fácil. No entanto,
estas iniciativas podem ser muito importantes.
A título de exemplo, na Hungria, a comunidade criativa ​Budapest Art Brut Gallery​, promove
anualmente uma maratona de Arte, a ​PsyArt 24,​ evento que dá visibilidade ao trabalho
artístico desenvolvido por pessoas com doença mental, levando a que o contacto com o
público, resultante da natureza do evento, seja um factor muito positivo e importante na
valorização desses mesmos pacientes.92 Este é um mero exemplo entre muitos outros,
bastando recuar, mais uma vez, aos exemplos de Nise da SIlveira e de Edward Adamson, que
promoveram o trabalho desenvolvido nos seus ateliers de arte-terapia através de exposições
coletivas.
Relativamente às referidas competências artísticas mencionadas, que são desenvolvidas em
contexto de arte-terapia, é agora importante abordar de forma mais extensa o papel do
desenho, o tema central desta investigação.
Para tal, devemos, em primeiro lugar, esclarecer alguns dos aspectos relativamente à natureza
desta forma de expressão artística, tendo alguns deles já sido parcialmente frisados
anteriormente. A verdade é que, muito embora o desenho tenha surgido aquando do
desenvolvimento inicial da humanidade, sendo uma prática ancestral e interligada à nossa
origem, na sua génese, em muitos aspectos, mantém-se inalterada desde então.

“(...) drawing is as old as mankind. The drawings of animals on the walls of prehistoric caves
are as good as any drawings made in the thousands of years since.”93

Nessa sua natureza ancestral está também presente um ímpeto criativo extremamente
importante em contexto de terapia, pois o uso do desenho não necessita, quando falamos de
expressão livre, desprendida de uma vertente técnica, grandes artifícios. Tal está espelhado
em inúmeros exemplos que abordamos em capítulos anteriores, como é disso exemplo o caso
de Jaime Fernandes e do seu trabalho instintivo, que descrevemos aquando da ​Arte Bruta​, ou
do tipo de trabalhos que Edward Adamson recolheu, desenvolvidos por pacientes, em

91
​Citação transcrita a partir do artigo ​Estigma da Saúde Mental​, disponuivel em
http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1120.pdf
92
​Mais informação sobre este evento disponível em http://artbrut.hu/
93
​LANING, Edward, ​The act of drawing​, p. 12

42
suportes arcaicos e extremamente imediatos. Ora esta abordagem, interligada à natureza
imediata do desenho, naturalmente poderá ser transposta para um contexto clínico,
permitindo assim facilitar a expressão criativa de pessoas com doença mental, que muitas
vezes apresentam enormes debilidades nesse particular campo. Este aspecto é determinante
por estar diretamente ligado às vantagens e diferenças comunicacionais que o desenho
assume comparativamente à comunicação através da palavra, seja escrita ou oral.94

“Both the activity of drawing and the drawing products themselves make it easier for
individuals in therapy to actively and clearly communicate their present levels of functioning,
as well as their underlying conflicts and concerns that otherwise might not be communicated
in a clear manner (...) drawings give clients the opportunity to relate their thoughts and
feelings in a broader and richer fashion than words alone could not express.”95

Esta ideia por detrás da comunicação através do desenho pode ser aplicada, por exemplo, em
casos em que tenham ocorrido eventos de tal forma traumáticos que quem os tenha vivido
não os consiga relatar ou expressar por palavras. Assim, podemos afirmar que o desenho
poderá ser uma forma mais confortável e segura de comunicar, em determinadas situações,
que remetam a eventos mais dolorosos.96

“Drawing helps bring to the surface more relevant issues that are needed for diagnosis and
treatment planning, including therapeutic opportunities for creative interventions. Drawing
can quickly reveal additional and important information on current developmental,
intellectual, and emotional functioning. They can also portray presenting problems that may
not have been assessed through conventional means of psychological testing.” 97

Uma perspectiva interessante relativamente a essas vantagens comunicacionais do desenho


prende-se com a ideia de símbolo, ou melhor, da necessidade do desenho responder a criação
de um, o que não ocorre com as palavras, que remetem de forma menos directa para o seu
significante.

“But there is one radical difference between the forms used in pictorial or graphic
communication (perhaps musical communication as well) and those used in verbal, linguistic
communication, a difference which makes visual aesthetic language easier to learn than
verbal. It is this: verbal linguistic forms have been, back in the remote reaches of the human
past, to render meanings by forms which have a direct resemble to what they mean. (...) with
artistic forms is different. The symbols used in drawing must have a direct resemblance with
what they signify.”98

94
​LANING, Edward, ​The act of drawing​, p. 13
95
​OSTER, Gerald,CRONE, Patricia, ​Using drawing in assessment - a guide to mental health professionals​, p. 1
96
​OSTER, Gerald,CRONE, Patricia, ​Using drawing in assessment - a guide to mental health professionals​, p. 2
97
​OSTER, Gerald,CRONE, Patricia, ​Using drawing in assessment - a guide to mental health professionals,​ p.
12
98
​RAWSON, Philip, ​Drawing - the appreciation of the arts​, p.13

43
É importante também abordar, quando falamos da importância do desenho em contexto de
arte-terapia, a perspectiva ligada à experiência estética, que acaba por englobar o próprio
processo criativo, o qual, como referimos em capítulos anteriores, pode, se o paciente for bem
guiado, trazer inúmeras mais valias para o mesmo. Basta atentar nas palavras do artista
Sandro Resende, que citamos anteriormente, que refere o importante papel da arte quando os
pacientes sentem que dominaram as técnicas e conseguem atingir os objectivos a que se
propuseram, sejam eles a mera cópia de uma outra obra ou até a realização de uma totalmente
original. E é também a partir dessa experiência estética e criativa, das decisões tomadas, seja
a nível do uso do material, do tema, do formato ou da forma de trabalhar, que podem também
ser retiradas importantes considerações quanto ao paciente em questão e à forma de perceber
e possivelmente procurar a melhor maneira de o ajudar a lidar com a sua doença, com o seu
dia-a-dia.

“Health and mental health professionals have also made attempts at understanding the
aesthetic experience, explaining the process involved in producing art, analysing the genius
of certain artists, and exploring the meaning of particular artwork. During the past century,
there has been a burgeoning interest in the interpretation and use of drawing to describe the
emotional and psychological aspects of the art expression of individuals in treatment. These
drawings are thought to reflect the inner worlds of clients, depicting their feelings and
relating information concerning their psychological health, as well as their conflicts and
concerns.”99

Em jeito de conclusão, a importância no desenho num contexto de terapia, para pessoas com
doença mental está diretamente ligado à ideia de ser uma alternativa comunicacional à
palavra escrita ou oral que, em determinadas situações, fruto das debilidades provocadas pela
doença, pode ser muito útil. Tal é grandemente facilitado pela natureza imediata e instintiva
com que usamos o desenho para nos expressar, desde os primórdios na nossa origem e cuja
génese pouco ou nada mudou desde então.100 Para além disso, podemos considerar que essa
facilidade poderá ser útil quando as debilidades inerentes à doença impedem os doentes de
interpretarem actividades mais complexas, o que pode permitir aos terapeutas encontrarem
alternativas, a partir do uso do desenho, para os ajudar. Por último, numa vertente mais
técnica, se o paciente for bem guiado, pode inclusive utilizar essa ferramenta por uma via que
extrapola o próprio contexto de terapia, desenvolvendo-a como qualquer outra pessoa que se
interesse por utilizar esse meio de expressão no respectivo trabalho artístico e quem sabe,
utilizá-la enquanto um meio para uma potencial carreira ligada às artes. Aqui entramos em
mais valias que podem ser consideradas naquilo que é o reconhecimento público dado ao
trabalho artístico que, embora possa ser extremamente positivo, pode também ser igualmente

99
​OSTER, Gerald,CRONE, Patricia, ​Using drawing in assessment - a guide to mental health professionals​, p.
11
100
​LANING, Edward,​ The act of drawing, ​p.13

44
frustrante, o que pressupõe por isso um enorme cuidado por parte dos profissionais que
acompanham pacientes com doença mental que queiram enveredar por esse caminho.

45
4. RELATÓRIO DO TRABALHO PRÁTICO

Neste capítulo, será apresentado um relatório decorrente do projecto de arte-terapia para


pessoas com doença mental intitulado ​Incluir - Oficinas para todos e para cada um​, realizado
pelo autor, em parceria com o Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém.
Neste relatório, que é parte integrante desta investigação de mestrado, foi possível constatar,
para além dos benefícios deste tipo de terapia, a importância do uso do desenho, sendo esse o
tema principal desta investigação.
O projecto ​Incluir assenta no desenvolvimento de oficinas artísticas para pessoas com doença
mental, nas quais os participantes puderam adquirir e desenvolver competências artísticas,
com a ajuda de um artista convidado, formado em belas artes, devidamente acompanhado por
um terapeuta especializado na área da saúde mental. Neste relatório, serão examinadas todas
as fases do projecto, desde a ideia e os objectivos iniciais, até à apresentação dos resultados
finais do mesmo durante as ​Primeiras Jornadas de Saúde Mental Arte e Inclusão​, no Teatro
Sá da Bandeira, em Santarém. Iremos acompanhar todas as decisões tomadas referentes à sua
construção e execução, devidamente justificadas e referenciadas, quando assim se der o caso.
Posteriormente, iremos concluir se os resultados do projecto foram os esperados e se os
objectivos foram alcançados, percebendo ainda o que correu mal, dando sugestões para que
de futuro possam ser evitados eventuais erros que tenham surgido.
No capítulo 4.1, faremos uma primeira abordagem aos primeiros passos do projecto,
nomeadamente as razões e objectivos ligados ao seu aparecimento, o calendário e os
participantes.
Já no capítulo 4.2, iremos explorar as competências artísticas selecionadas pelo professor
convidado para serem desenvolvidas nas oficinas, dando ênfase ao desenho, não só enquanto
ferramenta terapêutica, mas sobretudo como base para as restantes áreas exploradas.
No capítulo 4.3, ainda relativamente ao processo de construção do projecto, trataremos de
analisar as questões práticas decorrentes do financiamento, das infraestruturas, da visibilidade
do trabalho desenvolvido, o ícone do projecto. No capítulo 4.4, abordaremos a monitorização,
avaliação e ainda formas de dar continuidade ao projecto.
De seguida, no capítulo 4.5, iremos analisar a forma como decorreram as oficinas, já após ter
sido iniciado o projecto, dando particular ênfase neste ponto à forma como os participantes
reagiram às diferentes competências artísticas desenvolvidas, nomeadamente o desenho.
No capítulo 4.6, abordaremos o resultado das várias iniciativas tidas em paralelo à
experiência dentro da sala das oficinas, nomeadamente as exposições realizadas, as aulas
outdoor e com convidados. Já no capítulo 4.7, analisaremos os resultados da avaliação
quantitativa do projecto, apresentados nas ​Primeiras Jornadas de Saúde Mental Arte e
Inclusão,​ e que teve a cargo do Departamento de Psiquiatria.
Finalmente, no capítulo 4.8, serão feitas as considerações finais e sugestões para futuros
projectos deste género, dando mais uma vez primazia à análise feita em torno do uso do
desenho e da análise do seu papel num contexto de terapia através da arte para pessoas com
doença mental.

46
4.1 O início do projecto, os motivos, objectivos principais, o calendário e os
participantes

A concretização do projecto ​Incluir passou por diversas fases. A ideia inicial partiu do
Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Distrital de Santarém, tendo a
mesma sido desenvolvida em parceria com o artista convidado para professor das oficinas e
autor desta tese.
O seu aparecimento justificou-se, em primeiro lugar, pela necessidade de colmatar a escassez
de projetos na região de Santarém com poder de combater a exclusão social de pessoas com
doença mental e de, em simultâneo, lhes aumentar a auto estima.101 Como vimos em capítulos
anteriores, muitas vezes ocorrem situações de estigma e preconceito relacionados com a
doença mental, algo com que, infelizmente, estas pessoas têm de se confrontar diariamente,
afectando-as a vários níveis, nomeadamente familiar, laboral, social, afetivo e relacional,
levando a um aumento do isolamento e exclusão social das mesmas102. Estes dados foram
constatados a partir do ​Diagnóstico Social do Município de Santarém103, tendo o mesmo
indicado que:

“(...) a falta de recursos relativamente a uma maior inclusão social na comunidade de pessoas
com doença mental se revela como sendo uma das maiores lacunas do território, havendo
assim necessidade de intervir.”104

Já o ​Relatório da Saúde Mental na Lezíria e Médio Tejo identifica a existência de uma grande
prevalência da doença mental grave no município de Santarém, o que acrescenta ainda mais
relevância à necessidade de serem concebidas propostas que possam actuar no sentido de
melhorar a vida deste sector da sociedade.105
Tendo em conta a relevância destes dados, surge o projecto ​Incluir - Oficinas para todos e
para cada um​, um projecto de reabilitação psicossocial mediado pela terapia através da arte,
assente no reconhecimento do impacto positivo que a expressão artística pode ter nas pessoas
com doença mental. Assim, seriam desenvolvidas oficinas de expressão artística nas quais
seriam exploradas várias áreas artísticas, entre as quais o desenho, e onde seria incorporado
um espírito de inclusão entre os seus participantes, através da partilha de experiências e do
desenvolvimento interpessoal.

101
Informação retirada do artigo Estigma na Doença Mental: estudo observacional e piloto em Portugal​,
disponuivel em http://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
102
​Informação retirada do artigo Estigma na Doença Mental: estudo observacional e piloto em Portugal​,
disponuivel em http://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
103
Informação retirada do artigo Estigma na Doença Mental: estudo observacional e piloto em Portugal​,
disponuivel em http://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
104
​Citação transcrita a partir ​do artigo Estigma na Doença Mental: estudo observacional e piloto em Portugal,​
disponuivel em http://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
105
​O relatório do Estudo da Saúde Mental na Lezíria e Médio Tejo 2015 foi apresentado hoje no Fórum Saúde
Mental​, organizado pela Rede Social – Plataforma Supra Concelhia da Lezíria do Tejo e Médio Tejo, inserido
na Semana da Saúde promovida pela Câmara Municipal do Cartaxo.

47
Apesar do Incluir se tratar de um projeto assente em pressupostos ligados à terapia, a ideia
passaria também por proporcionar aos participantes a possibilidade de adquirirem e
desenvolverem competências artísticas pois essas, como vimos anteriormente, possibilitam a
valorização dos mesmos perante a comunidade, o que consequentemente poderá levar à
diminuição do estigma da doença mental106. O artista convidado, para além de orientar os
participantes durante as oficinas, foi também encarregue de selecionar as competências a
serem desenvolvidas, elaborando para tal um programa que respondesse da melhor forma aos
objectivos do projecto.
Relativamente ao número de participantes e ao calendário, foi estabelecido desde início que o
projecto teria a duração de um ano e que o grupo não poderia exceder os quinze elementos,
de forma a que o acompanhamento do professor pudesse ser permanente, sem prejudicar a
aquisição e desenvolvimento individual das competências artísticas e sem colocar em causa
os benefícios relativos à vertente terapêutica, que requer uma proximidade constante. Nesse
sentido, é importante frisar que o professor estaria sempre acompanhado por um profissional
da área da saúde mental selecionado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital
de Santarém, de forma a assegurar o bem estar dos participantes.
Foi também decidido que seria formado um segundo grupo de quinze participantes, de forma
a beneficiar um maior número de potenciais beneficiários do projecto. Cada grupo
corresponderia a um de dois semestres, inseridos no referido ano de duração. Para além desse
aspecto, e de forma a incorporar na prática um dos pontos fundamentais estabelecidos desde
início, o factor inclusão, cada grupo, embora constituído na sua maioria por pessoas com uma
doença mental, indicadas pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém,
seria também formado por elementos selecionados pela Câmara Municipal de Santarém e
pela Santa Casa da Misericórdia de Santarém, que nesse caso não teriam uma doença mental.
Apesar dessa seleção prévia, as oficinas funcionariam em regime de voluntariado, podendo os
participantes desistir a qualquer altura do projecto, não sendo necessária qualquer aptidão
artística para fazerem parte do mesmo.
As oficinas funcionariam duas vezes por semana tendo cada a duração de duas horas, ficando
a escolha dos dias de acordo com a disponibilidade do artista convidado e da maioria dos
participantes.

4.2 Competências artísticas a desenvolver e lista de material necessário

O artista convidado foi encarregue de definir as competências artísticas a serem


desenvolvidas pelos participantes dos dois grupos, tomando em consideração dois pontos
primordiais: a natureza terapêutica das oficinas, e a inexperiência dos participantes
relativamente a qualquer tipo de expressão plástica.
Assim, os exercícios não deveriam ser demasiado complexos, ao ponto de poderem vir a
frustrar os participantes e os impedir de beneficiar do contexto das oficinas nos vários
objectivos considerados, devendo por isso o programa ser direcionado a alunos de nível

106
​Informação retirada do artigo ​Estigma da Saúde Mental,​ disponuivel em
http://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1120.pdf

48
básico, através de actividades simples a princípio e desafiantes em fases posteriores, mas
nunca demasiado elaboradas, dando primazia a um acompanhamento individualizado e
próximo.
Foi decidido que o desenho seria a base de todas as oficinas, a partir da qual seriam
desenvolvidas as restantes áreas selecionadas, a pintura, a banda desenhada e a escultura.
Foram tidas em conta, para o desenvolvimento do programa das oficinas, as seguintes obras:
Manual do Desenho de 10º e 11º Ano; Oficina de Desenho; Curso de Desenho e Pintura; ​Oil
Painting Techniques;​ ​The New Guide to Illustration; Drawing Varieties: The Varieties of
Graphic Expression;​ ​Pintura a Acrílico;​ ​The Elements of Drawing.​
O desenho, a primeira área a ser abordada, a mais importante das oficinas, teve como
pressuposto na sua escolha a importância que tem enquanto base para qualquer prática
artística.

“O desenho é, sem qualquer dúvida, o mais importante dos procedimentos artísticos e não
somente em relação à pintura; qualquer outra manifestação artística, como a escultura, a
arquitetura e inclusivamente o cinema, tem no desenho a sua base e fundamento.”107

Numa vertente mais focada, mas não apenas, na componente terapêutica das oficinas, deve
ser tido em conta o pressuposto ligado a expressão e comunicação que o desenho
compreende, particularmente considerando que, por vezes, as debilidades provocadas pela
doença mental podem ter consequências na comunicação verbal e até escrita de algumas
pessoa. O desenho pode servir o propósito de ser uma alternativa e uma via de comunicação
mais acessível.

“Desenhar é uma maneira de exprimir e comunicar ideias, intenções, sentimentos. Desenhar


origina um objecto comunicante. No âmbito dos sistemas de transmitir mensagens, o desenho
tem características particulares que o afasta de sistemas codificados e o aproxima da
liberdade de composição das linguagens artísticas.”108

É importante transmitir aos participantes alguns dados relativos à evolução do desenho,


dando ênfase aos períodos mais marcantes em que ocorreram as maiores transições no tipo de
arte praticado.
O desenho requer uma prática constante, prática essa que progressivamente levará os
participantes a desenhar com maior facilidade, muito embora o devam fazer tendo em conta o
ritmo de cada um, pois esse referido ritmo inevitavelmente varia de pessoa para pessoa.109
Foi decidido, com base nesses pressupostos e de forma a que os mesmos pudessem ser
explorados da melhor maneira nas oficinas, que a temática do desenho seria dividida da
seguinte forma: ​introdução ao desenho e aos materiais a utilizar nas oficinas; síntese das
formas; desenho de linha; sombra e luz; desenho a carvão; desenho a pastel de óleo;

107
​BALLESTAR, Vicenç, VIGUÉ, Jordi,​ Curso de Desenho e Pintura​, p. 5
108
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano​, p.178
109
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano,​ p.5

49
desenho ao vivo. ​Esta designação foi criada integralmente pelo artista convidado, muito
embora seja baseada na ordem que a maioria dos manuais básicos de desenho apresentam.
Na ​Introdução ao desenho e aos materiais a utilizar nas oficinas​, relativamente ao material a
utilizar, o professor optou pelo lápis a grafite para a realização da maioria dos exercícios de
desenho.110
Uma das vantagens do lápis a grafite passa pela sua versatilidade, sendo considerado o
material ideal de desenho. Produz uma grande variedade de linhas e de tons, sendo fácil de
transportar e apagar, podendo ser usado em diversos suportes.111
Quanto à ​Síntese das formas​, esta seção foi dividida em duas partes. A primeira, abordaria a
importância das formas geométricas no treino e prática inicial do desenho, através do desenho
de observação e repetição de modelos simples como figuras e sólidos geométricos, de forma
a que os alunos pudessem contactar da forma mais directa e prática com a linha enquanto
elemento de expressão, um dos aspectos essenciais que definem o desenho.112
Já, numa segunda parte desta sub-temática, seria esclarecida a importância que têm as figuras
geométricas enquanto base para a construção base de um desenho.113
No ​Desenho de linha,​ seria importante enaltecer a versatilidade da linha, considerando as
suas diversas aplicações, seja sob a forma de contorno, de preenchimento da forma, ou
mesmo da combinação de ambos.114 A partir do desenho de linha de contorno, seriam
realizados pelos alunos inúmeros exercícios de observação de diferentes elementos.115
No que toca à ​Sombra e Luz,​ foi considerado essencial que os alunos adquirissem importantes
noções relativamente à modelação dos objectos através da luz, nomeadamente os contraste de
tons que permitem a modelação das formas, permitindo assim percecionar a
tridimensionalidade. Também a noção de sombra própria e de sombra projectada deveria ser
considerada,116 ressalvando ainda a diferença de tonalidades resultantes da mancha da
sombra, pois esta não se apresenta como homogénea.117
Relativamente às técnicas do ​Desenho a carvão e do ​Desenho a pastel de óleo​, ambas seriam
tratadas numa perspectiva de experimentação, não sendo aprofundadas as suas componentes
técnicas mais avançadas, não deixando, no entanto, de ser importante salientar algumas das
características principais destes dois materiais.
No desenho a carvão, deveria ser valorizada a importância do gesto, pois tratando-se de um
material que vive muito das intensidades dos diferentes tons, tem aí uma das suas principais
características,118 sendo que o tipo de suporte onde o carvão pode ser aplicado terá influência
no resultado final do desenho.

110
​WATSON, Lucy, ​Oficina de Desenho​, p. 12
111
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano,​ pp. 36-37
112
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano​, p.129
113
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza,​ Manual do Desenho 11º ano,​ p.114
114
​WATSON, Lucy, ​Oficina de Desenho​, p. 42
115
PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano,​ p.131
116
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano​, p.215
117
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano​, p. 218
118
​PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza,​ Manual do Desenho 10º ano​, pp. 38-39

50
Já o uso do pastel de óleo implica que seja dada primazia à questão da textura, da cor, e à
possibilidade de poder ser um material polido, diluído, sobreposto ou raspado, sendo por isso
versátil.119
Finalmente, no último tópico da área de desenho, o ​Desenho ao vivo,​ seria feita uma
consolidação de todos os pontos anteriores. Selecionar-se-iam modelos tridimensionais que
seriam desenhados à vista pelos participantes. O professor deveria distinguir e salientar
previamente as importantes diferenças em relação ao desenho a partir de modelos
bidimensionais, que naturalmente acarreta outro tipo de desafios. Embora de forma ligeira,
deveria ser feita uma abordagem às noções de composição e de profundidade, pois são dois
conceitos importantes na compreensão da tridimensionalidade dos objectos e das formas.120
A segunda temática a desenvolver nas oficinas, a pintura, consistiria na abordagem de duas
técnicas, a ​Pintura a acrílico​ e ​Pintura a óleo​.
Antes do desenvolvimento prático dessas técnicas, no entanto, deveria ser feita uma
introdução geral dos principais conceitos da pintura, dando particular ênfase à importância da
cor, fundamental para qualquer artista, na realização das respectivas pinturas.121

“A cor completa a configuração da forma dos objectos e das imagens, seja pela sua qualidade
estética de informar, quer dizer, como elemento de comunicação, seja pelo valor como signo.
Nas manifestações artísticas as cores submetem-se ao critério pessoal que varia em função
dos interesses pessoais, mais ou menos subjectivos.”

O uso da cor pressupõe a ideia de contraste e interação cromática, tendo esse uso um papel
determinante na composição e dinâmica da própria pintura, nomeadamente os contrastes
obtidos através das cores frias e quentes. Salientar ainda a distinção entre as cores primárias,
secundárias e terciárias e o entendimento do círculo cromático, algo essencial na percepção
da mistura das cores na paleta, e um passo crucial para iniciantes da pintura.122
Relativamente à técnica de pintura a acrílico, o professor faria inicialmente uma
demonstração prática dos materiais e do seu uso, nomeadamente o manuseamento dos pincéis
e das telas, enaltecendo a respectiva variedade e versatilidade.

“Existem muitos tipos diferentes de pincéis, com diversos tamanhos, formas e qualidades.
(...) Todos os pincéis de pêlo natural são adequados para pintar com os acrílicos, de maneira
que, se já tivermos pincéis de pintar com aguarela ou óleo, podemos aproveitá-los(...).”123

119
PORFÍRIO, Manuel, RAMOS, Elza, ​Manual do Desenho 10º ano,​ pp. 43
120
​Informação retirada do artigo ​9 Very Common Figure Drawing Mistakes, And How to Avoid Them d​ isponível
em
https://emptyeasel.com/2010/03/12/9-very-common-figure-drawing-mistakes-and-how-to-avoid-them/
121
​ROIG, ​Gabriel Martín, Pintura a Acrílico​, p. 30
122
​ROIG, ​Gabriel Martín, Pintura a Acrílico​, p. 30
123
​ROIG, ​Gabriel Martín, Pintura a Acrílico​, p. 22

51
O cuidado a ter com os pincéis deve ser realçado.124 A versatilidade do acrílico, os tempos de
secagem e a diluição das tintas seriam características que os alunos deveriam tomar
conhecimento e que, à partida, lhes permitiria obter resultados positivos na pintura. Salientar
ainda a distinção entre tintas opacas e transparentes. Relativamente à quantidade de tinta a
usar, aconselhar-se-ia os participantes a usarem pouca quantidade a início.125 Quanto às cores
a serem utilizadas, seria elaborada uma lista tendo em conta o que a generalidade dos
manuais de pintura indicam para iniciantes.
Na segunda técnica a desenvolver na temática da pintura, a técnica a óleo, seria importante
enunciar alguns aspectos que a diferenciam da técnica a acrílico. Um desses, prende-se com
o tipo de pincéis a usar.

“Good oil painting brushes are made out of bristle or reed stable in two forms: flat and
rounds. Don’s use a synthetic brush with plastic bristles - these are made for acrylic rather
than oil.”126

Seria importante aconselhar os alunos a não usar paletas de plástico pois a terebintina corrói
essa matéria. As tintas de óleo não se dissolvem em água, como no acrílico, mas antes num
médio que pode ser comprado ou feito a partir de uma mistura de terebintina, óleo de linho e
verniz.127
Na demonstração prática, por parte do professor, da pintura a óleo, seria abordada a natureza
da pincelada, tendo em conta o tipo de traço ou mancha pretendido.

“How you hold your brush depends on what kind of brush stroke you’re going to make.
Broad areas and detailed areas demand different treatments.”128

A nível das tintas e do uso da cor, assim como no acrílico, deveriam ser tecidas importantes
considerações relativamente às cores básicas a ter na paleta, o escurecer ou clarear da cor, e
as quantidades adequadas nesta fase inicial.129
Por fim, enunciar os cuidados a ter com os tempos de secagem, bem diferentes dos do
acrílico. A tinta a óleo demora mais tempo a secar, sendo essa uma característica muito
importante a reter, pois esse tempo de secagem influencia bastante a própria execução da
pintura.
Relativamente à terceira temática a ser abordada, a ​Banda desenhada,​ em primeiro lugar seria
muito importante esclarecer algumas das principais características deste universo,
nomeadamente a sua natureza híbrida, relativamente à associação do texto escrito ao texto
icónico. Depois, a banda desenhada apresenta termos específicos que devem ser

124
ROIG, ​Gabriel Martín, Pintura a Acrílico​, p. 23
125
ROIG, ​Gabriel Martín, Pintura a Acrílico​, p. 34
126
LEWIS, David, Oil painting techniques, p.10
127
LEWIS, David, Oil painting techniques, p.13
128
LEWIS, David, Oil painting techniques, p.15
129
LEWIS, David, Oil painting techniques, p.13

52
mencionados, nomeadamente a vinheta, a tira, a prancha, as legendas, os vários tipos de
balões, e ainda as onomatopeias.130
De forma a complementar esta temática, seriam apresentados alguns exemplos de
personagens e de séries icónicas do universo da banda desenhada, nos seus mais
diversificados registos. Mais uma vez, o desenho é a componente mais importante da banda
desenhada, devendo esse aspecto ser enaltecido.
O objectivo principal das oficinas de banda desenhada, sendo esse um dos aspectos definidos
a início entre o professor e o Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém,
seria o de publicar um livro de banda desenhada de histórias integralmente concebidas e
desenvolvidas pelos participantes. Essas histórias seriam compostas por quatro pranchas.
Seria importante abordar a construção de uma banda desenhada, descrevendo os vários
passos para tal, dando particular ênfase à componente narrativa, ao desenvolvimento dos
personagens e à arte final.131
Finalmente, a última temática a ser explorada nas oficinas, a escultura, teria como objectivo
principal o de desenvolver uma peça em grupo, dividida em duas fases, cada uma
correspondente a um dos dois grupos de participantes, ou seja, uma parte em cada semestre.
O professor optou por selecionar para a escultura materiais menos nobres, tendo como base
duas peças que anteriormente o próprio havia desenvolvido132, nas quais foi usado cartão,
plástico reciclado, peças de madeira, cortiça, metal e rede de alumínio. As principais
competências a serem exploradas centrar-se-iam sobretudo nas mais valias do trabalho em
grupo, tentando sempre que cada participante pudesse contribuir individual e colectivamente
para a elaboração da peça final. Seriam tidas as devidas precauções com o manuseamento dos
materiais, pois alguns deles, como o arame ou o alumínio, obrigam a ter cuidados extra. A
componente técnica da escultura foi, pela primazia dada ao trabalho humano mencionado,
colocada, neste caso, em segundo plano, sendo o foco desta temática o do trabalho em
equipa.
Para além do desenvolvimento do programa das oficinas, foi ainda pedido ao professor que
elaborasse uma lista de material necessário para as mesmas, tendo em conta as temáticas
selecionadas, desenho, pintura, banda desenhada e escultura, e de acordo com o número de
participantes dos dois grupos.
Relativamente à área do desenho, o material solicitado foi o seguinte: lápis de grafite, várias
durezas, quinze lápis HB, cinco lápis 4H, cinco lápis 2B, cinco lápis 4B, quatro conjuntos de
dez barras de carvão, duas caixas de dezasseis unidade de pastéis de óleo, folhas brancas de
tamanho A4 e A3, de 80 e 120 gramas, quinze apara-lápis, quinze borrachas e um spray
fixador.

130
​ Informação retirada​ do documento​ A linguagem das histórias em quadradinhos,​ disponuivel em
https://docplayer.com.br/49537726-A-linguagem-das-historias-em-quadrinhos.html
131
​Informação retirada do documento A linguagem das histórias em quadradinhos,​ disponuivel em
https://docplayer.com.br/49537726-A-linguagem-das-historias-em-quadrinhos.html
132
​As esculturas foram realizadas para dois eventos específicos, a primeira, ​A Mãe natureza, p​ ara a exposição
colectiva ​Santarém, Cidade em Crescente e a segunda, ​O pescador, ​para a ​Bienal de Coruche Percursos com
Arte

53
Fig. 10: A escultura ​Mãe Natureza​, presente na exposição colectiva ​Santarém, Cidade em
Crescente,​ em 2017, a partir da qual o professor se baseou para o desenvolvimento da
escultura do projecto ​Incluir.​

Relativamente à área da pintura, foi elaborada a seguinte lista: telas de algodão, tendo sido
estipulado que seriam utilizadas três telas por técnica e por aluno, o que perfez um total de
quarenta e cinco telas para a técnica de pintura a acrílico e quarenta e cinco telas para a
técnica de pintura a óleo, ​de três tamanhos distintos, 40 x 50 cm, 50 x 50 cm e 50 x 30 cm,
pincéis redondos, de números um, dois, quatro, seis, oito, doze e dezasseis, cinco unidades de
cada um desses números, um total de trinta e cinco pincéis, tintas a acrílico, tubos de 120 ml,
dez tubos de branco titânio, quatro tubos de azul ultramarino, quatro tubos de amarelo ocre,
quatro tubos de vermelho médio, quatro tubos de verde sapo, quatro tubos de terra siena
natural, dois tubos de preto marfim, quatro tubos de amarelo, quatro tubos de azul cerúleo.
Relativamente às tintas a óleo, foram selecionados tubos de 60ml, dez tubos de branco
titânio, quatro tubos de amarelo aço limão, quatro tubos de vermelho aço médio, quatro tubos
de azul cerúleo, quatro tubos de terra siena natural, quatro tubos de azul ultramarino, quatro
tubos de verde sapo, quatro tubos de amarelo ocre, quatro tubos de azul ultramarino, um
frasco de 500 ml de terebentina, um frasco de 500 ml de óleo de linho, um frasco de um litro
de aguarrás de limpeza.
O material de banda desenhada seria o mesmo do desenho, não sendo por isso necessário
elaborar uma lista para essa temática.
Relativamente ao material de escultura, foi elaborada a seguinte lista: cartão reciclado, um
número indefinido de caixas, na altura da realização da peça em grupo decidir-se-ia a
quantidade consoante a necessidade, dez rolos de fita cola castanha, dez rolos de arame, de
diâmetro mínimo 0.8mm, cinco rolos de rede mosquiteira de alumínio, pedaços de
automóvei, madeira, cortiça entre outros materiais reciclados a serem escolhidos no decorrer
das oficinas de escultura.

54
4.3 Financiamento do projecto, infra estruturas, exposições, colaborações e o ícone

De forma a obter financiamento para o projecto, o Departamento de Psiquiatria do Hospital


Distrital de Santarém fez uma candidatura ao ​Programa EDP Solidário​, que apoia projectos
que pretendam melhorar a qualidade de vida de pessoas socialmente desfavorecidas, bem
como a integração de comunidades em risco de exclusão social.133
Para essa candidatura, foi necessário enviar todos os documentos elaborados até então,
nomeadamente os objectivos principais, o programa e as competências artísticas a serem
desenvolvidas nas oficinas, que o artista convidado ajudou a conceber.
A candidatura foi aceite e selecionada como uma das vencedoras do concurso, tendo por isso
sido disponibilizado o financiamento no valor de 30000 euros.
Para além deste valor, também a Câmara Municipal de Santarém apoiou o projecto de três
maneiras: através da cedência de um espaço para as oficinas, sendo o mesmo uma sala no
convento de São Francisco, a oferta de quinze cavaletes para uso dos alunos nas oficinas e o
compromisso da compra de 1000 exemplares do livro de banda desenhada das histórias dos
alunos, a ser desenvolvida nas oficinas e posteriormente publicado.
Tendo sido estabelecido desde início que um dos objectivos principais do projecto seria o de
combater o estigma da doença mental, seria importante encontrar vias que permitissem a sua
divulgação e abertura à comunidade. Assim, foi estabelecido que cada grupo faria duas
exposições colectivas, resultando as mesmas do trabalho realizado nas oficinas de desenho,
pintura e banda desenhada. Quanto a possíveis locais para exposição, esses seriam escolhidos
no decorrer do projecto.
Para além das exposições colectivas, seriam ainda realizadas entre duas a quatro aulas fora do
contexto das oficinas, as chamadas ​aulas outdoor, abertas à comunidade. Essas duas
vertentes seriam assim fundamentais na valorização das competências artísticas
desenvolvidas nas oficinas.
Outro forma de divulgar o projecto seria através das redes sociais. Nesse sentido, foi criada
uma página de Facebook, a ser mediada pelo departamento de Psiquiatria do Hospital
Distrital de Santarém, onde seriam regularmente partilhadas imagens e informações
pertinentes relativas às oficinas. O professor criou também um blog, no qual relatava
semanalmente, através de pequenos textos intitulados “diários de bordo”, a sua experiência
no projecto, ao qual chamou de ​A caverna da andorinha.​
As duas mais importantes medidas para divulgar o projecto, no entanto, assentariam na
publicação de um livro de banda desenhada das histórias dos participantes dos dois grupos,
feitas integralmente pelos participantes, bem como a exposição permanente da escultura, feita
em grupo, num local público.
Sempre que se desse o caso, os meios de comunicação locais, nomeadamente os jornais
regionais, seriam convocados de forma a dar visibilidade às actividades a realizar.
Todas estes pontos deveriam ser acompanhados de uma referência de agradecimento pelo
financiamento do projecto ao ​Programa EDP Solidário​ sempre que assim fosse oportuno.

133
​Programa desenvolvido pel EDP desde 2004, mais informção sobre o projecto disponivel em
https://www.fundacaoedp.pt/pt/conteudo/edp-solidaria

55
A divulgação do projecto exigiu a criação de um ícone que melhor o representasse. Esse
processo esteve a cargo do professor convidado, que o concebeu a partir das referências
principais do projecto, a arte e a inclusão. Após alguns esboços, optou pelo pincel como o
elemento principal, por estar associada à vertente artística das oficinas. Humanizou-o, ao
dar-lhe um rosto, cabelo e membros superiores, apelidando-o de ​Tintas.​
Esta figura acompanharia todo o material de divulgação, desde cartazes, panfletos, flyers, ou
qualquer outro documento do género.

Fig. 11: O ícone do projecto ​Incluir​, o ​Tintas.​

4.4 Monitorização e avaliação do projecto e a sua continuação

Muitas vezes, projectos ligados à arte-terapia não apresentam dados qualitativos


relativamente aos benefícios para os seus participantes, um facto que inevitavelmente leva a
que haja menos financiamento e apoio do que à partida seria de supor.134
No sentido de contribuir para que tal ideia se revertesse e de forma a perceber o real impacto
do projecto ​Incluir relativamente aos seus benefícios para os participantes das oficinas e para
a comunidade envolvente, foi decidido que seria feita uma avaliação qualitativa do mesmo
através da realização de um questionário com perguntas estruturadas e com uma pergunta

134
Informação retirada do artigo Efeitos terapêuticos da produção artística para a reabilitação psicossocial de
pessoas com transtornos mentais: uma revisão sistemática da literatura, disponuivel em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-462X2016000400487

56
aberta, onde os participantes das oficinas, diretos e indiretos, poderiam exprimir a sua opinião
sobre a experiência que tiveram durante as mesmas.

“A avaliação quantitativa contemplaria questionários empiricamente validados, de modo a


avaliar os dados sócio-demográficos, o funcionamento global (Escala de avaliação global do
funcionamento - GAF), a auto estima (escala de auto estima de Rosenberg -EAR) e o estigma
(Opinions about mental illness scale - versão portuguesa - Oliveira 2005). A avaliação seria
realizada com uma periodicidade semestral (...) Como forma de monitorizar o
desenvolvimento, decidiu-se a ser elaborado um relatório intercalar no 1ºsemestre para aferir
a concretização dos indicadores.”135

Estes resultados, particularmente importantes nas medidas da autoestima e da quebra do


estigma, revelar-se-iam assim como um dos pontos cruciais do projeto.
A elaboração dos questionários e a sua aplicação estariam a cargo do Departamento de
Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém. Os dados seriam tratados por um professor
convidado da Escola Superior de Gestão do Instituto Politécnico de Santarém, da área de
Estatística.
Esses dados seriam também importantes para ajudar a que o projecto continuasse para além
do seu primeiro ano de duração, sendo esse um dos objectivos pretendidos desde início. Para
assegurar essa continuação, foram ainda implementadas medidas importantes, algumas delas
já mencionadas anteriormente. Desde logo, a venda das pinturas desenvolvidas durante as
oficinas reverteria em 25% a favor do respectivo autor e 75% a favor da continuação do
projecto. Nesse sentido, os participantes assinariam um protocolo no qual se comprometeriam
a ceder todas as obras que realizassem dentro do contexto das oficinas para o projecto.
Relativamente à comercialização do livro de banda desenhada, a totalidade do valor de cada
livro reverteria a favor do projecto. Por fim, as receitas das inscrições nas ​Primeiras Jornadas
de Arte e Inclusão,​ a decorrerem no final do ano estabelecido para o projecto, reverteriam
também para o mesmo, na sua totalidade. Qualquer outra entidade que de alguma forma
quisesse ou pudesse contribuir seria sempre uma mais valia.

4.5 Os resultados do projecto: as oficinas e as competências artísticas desenvolvidas

Neste capítulo, faremos uma descrição da forma como decorreram as oficinas, analisando a
reação dos participantes às competências artísticas adquiridas e desenvolvidas.
Em ambos os grupos, as oficinas tiveram início com uma aula de apresentação na Santa Casa
da Misericórdia de Santarém. Nesta, o projecto e os objectivos a concretizar foram
apresentados, sendo que o professor convidado abordou as competências artísticas a serem
desenvolvidas, descrevendo a forma como as oficinas iriam decorrer.
De seguida, foi entregue aos participantes, por parte do Departamento de Psiquiatria do
Hospital Distrital de Santarém, os questionários referentes à monitorização e avaliação do

135
​Citação transcrita a partir do artigo ​Estigma na doença mental: estudo observacional e piloto em Portugal​,
disponuivel em http://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf

57
projecto, que seriam importantes na obtenção dos dados quantitativos relativos aos benefícios
do mesmo.
Preenchidos esses mesmos questionários, foi pedido aos participantes que se apresentassem e
que falassem um pouco da sua experiência com a vertente artística, bem como as expectativas
que tinham para o projecto.
Após essa primeira aula de apresentação, as oficinas, já na sala do convento de São
Francisco, tiveram início.
É importante esclarecer um ponto prévio. Todos os documentos teóricos e os exercícios
abordados e entregues nas oficinas foram elaborados pelo artista convidado, aquando da
construção do programa relativo ao projecto.
Na primeira oficina, iniciou-se a ​Introdução ao desenho e aos materiais a utilizar nas
oficinas,​ na qual foram abordados os seguintes pontos: a importância da prática do desenho, a
evolução do desenho ao longo da história, as diferentes aplicações do desenho e o material de
desenho a utilizar nas oficinas. Os participantes interiorizaram os tópicos abordados com boa
receptividade.Como a maioria dos elementos dos dois grupos não tinham tido experiência
alguma, ou quase nenhuma, em qualquer das áreas artísticas, abordar o desenho em primeiro
lugar tornou-se fundamental pois tem o papel de ser, entre outras componentes, uma técnica
introdutória das mais variadas práticas artísticas.

Fig. 12: Exemplo de um dos documentos teóricos desenvolvidos pelo professor e entregue
aos participantes, neste caso, referente às características do lápis a grafite.

58
Finda a ​Introdução ao desenho e aos materiais a utilizar nas oficinas,​ deu-se início à
subtemática ​Síntese das formas​, tendo sido abordado o uso de linhas e de figuras geométricas
como modelos de treino simplificados para a elaboração dos primeiros desenhos, bem como a
ideia da necessidade de repetição e treino constante desses exercícios, de forma a que
houvesse uma evolução do traço e uma maior facilidade no desenho. Foram distribuídos aos
alunos exercícios práticos, concebidos pelo professor, com o intuito de consolidar essas ideias
teóricas mencionadas. Nestes exercícios, foi pedido aos participantes que desenhassem
linhas, sólidos e figuras geométricas, de variadas maneiras, através de uma série de repetições
das mesmas, a lápis de grafite, sempre com imagens previamente impressas como referência.
Estes exercícios prolongaram-se para uma segunda oficina.
Já numa terceira oficina, foi iniciada a segunda parte da subtemática ​Síntese das formas​ , na
qual foi abordada a construção de um desenho a partir da síntese das suas formas mais
simples, formas essas que passavam novamente por traços e figuras geométricas. Foi
explicado aos alunos que qualquer elemento desenhado poderia ser reduzido às suas formas
simplificadas e que esse processo poderia ser útil na construção de um desenho mais
complexo. Foi também esclarecida, como complemento a essa informação, a noção de
proporção. De seguida, foram entregues os respectivos exercícios práticos que consistiram
em duas variantes: o desenho das formas simples a partir de um desenho mais complexo
previamente feito, e a construção de um desenho mais complexo a partir das suas formas
simples já desenhadas.
Relativamente à primeira parte da subtemática ​Síntese das formas​, os alunos reagiram
positivamente às respectivas ideias teóricas, interiorizando a importância da repetição do
desenho, bem como do uso da simplicidade das formas geométricas como elemento
facilitador das primeiras abordagens ao traço e ao uso do lápis. De uma maneira geral, os
exercícios foram concluídos com sucesso, ainda que alguns dos alunos, porventura os mais
inseguros, tenham apresentado algumas dificuldades em se libertarem de uma obrigação,
quase que auto-imposta, de terem de desenhar com um traço completamente direito, ficando
frustrados com as irregularidades dos primeiros desenhos, algo natural em pessoas com pouca
experiência. O papel do professor foi muito importante de forma a explicar que nesta primeira
fase é perfeitamente normal que surjam irregularidades e dificuldades no traço e que com o
tempo e a prática, essas irregularidades acabariam por se atenuar. Foi possível constatar,
através da comparação dos resultados finais dos exercícios, quem apresentava maior
facilidade no desenho. Relativamente à segunda parte desta subtemática, a construção de um
desenho a partir das suas formas mais simples, os resultados foram bem menos positivos.
Muitos dos alunos do primeiro grupo não interiorizaram correctamente o que era pretendido,
tendo tido muita dificuldade na realização dos respectivos exercícios, resultando na colocação
de figuras fora do sítio, dúvidas frequentes, surgindo inevitavelmente alguma frustração.
Porventura a explicação e abordagem feita não tenha sido a mais correcta, ou talvez tivesse
sido necessário um maior número de aulas para uma melhor interiorização do que era
pretendido, mas a verdade é que nestes termos a abordagem à construção de um desenho, a
partir das suas formas simplificadas, não resultou. Não tendo o professor, posteriormente,

59
encontrado uma forma de reverter a situação, decidiu-se a eliminar esta segunda parte dessa
sub-temática no segundo grupo.
Finda a abordagem à ​Síntese das formas,​ na quarta oficina do primeiro semestre, deu-se
início ao ​Desenho de linha.​ Foi abordada a importância da linha, nas suas vertentes de
contorno e de mancha. Através do desenho de contorno de observação de imagens, foram
elaborados diversos exercícios, a partir do desenho de elementos tão diferentes como peças
de decoração, edifícios, plantas, animais ou mesmo figura humana. O professor tentou que os
exercícios obedecessem a uma determinada ordem, adequada às capacidades ainda pouco
desenvolvidas por parte dos participantes. Para além desta primeira oficina, os exercícios
prolongaram-se por mais duas, perfazendo um total de três, tendo decorrido até à sexta
oficina.

Fig. 13: À esquerda, um dos enunciados de um dos exercícios práticos da sub-temática


Síntese das formas​, à direita, um desses exercícios já resolvido por um dos alunos.

Os participantes dos dois grupos interiorizaram com sucesso os conceitos e a importância do


Desenho de linha,​ tendo resolvido bem a maioria dos exercícios propostos. No entanto,
alguns revelaram dificuldades em algumas das imagens, por serem de maior complexidade,
como por exemplo no caso da figura humana. De notar dois aspectos importantes. Em
primeiro lugar, a diferença de ritmos, havendo alunos que terminavam os exercícios mais
rapidamente que outros, o que levou a que o professor tenha elaborado exercícios extra para
futuras situações idênticas, pois aconteceu que os participantes que terminaram mais
rapidamente os exercícios propostos ficaram sem nada que fazer, uma situação claramente a
evitar. Em alguns dos participantes, verificou-se alguma frustração e ansiedade relativamente
aos resultados finais dos respectivos desenhos. Mais uma vez, o papel do professor e do

60
terapeuta presente nas oficinas foi muito importante de forma a contrariar esses sentimentos e
incentivar os participantes a prosseguirem.
Terminado o ​Desenho de linha,​ deu-se início, na sétima oficina, à subtemática ​Sombra e luz.​
Foram abordados os conceitos de modelação de um objeto através da luz, da orientação da
luz, a definição de sombra própria e projectada e ainda as diferentes gradações de tonalidade
da sombra. Os exercícios práticos realizados pelos alunos incidiram no preenchimento da
sombra em diversos rostos humanos previamente desenhados, nos quais essa luz era
proveniente de direcções diferentes e ainda exercícios de preenchimento da sombra
projectada e sombra própria. Os exercícios práticos prolongaram-se para uma oitava oficina
tendo perfazendo um total de duas.

Fig. 14: À esquerda, um dos enunciados de um dos exercícios práticos da sub-temática


Desenho de linha,​ à direita, um desses exercícios já resolvido por um dos alunos.

A princípio, alguns dos alunos de ambos os grupo sentiram dificuldades na realização dos
exercícios práticos, pois não interiorizaram na totalidade os conceitos teóricos abordados. No
entanto, de forma geral, essas dificuldades acabaram por ser ultrapassadas com sucesso, tendo
para tal sido importante a perseverança do grupo e o acompanhamento próximo e constante
do professor. Porventura, uma maior simplificação da abordagem teórica poderia ter evitado
que essas dificuldades tivessem inicialmente surgido, nomeadamente na modelação dos
objectos e nas diferentes gradações da tonalidade da sombra. Como em sub-temáticas
anteriores, surgiram algumas diferenças de ritmos na realização dos exercícios por parte dos
participantes.
Na nona oficina do primeiro semestre, deu-se início ao ​Desenho a carvão e ao ​Desenho a
pastel de óleo​. As duas técnicas foram apresentadas e demonstradas aos participantes, tendo
sido enunciadas as suas principais características. No carvão, foram abordadas as variações
de mancha e da linha, as diferentes texturas aplicadas em diferentes suportes, o esbatimento,
diversidade de tons que poderiam ser obtidos e ainda a fixação através de um spray ou laca.
Já no que toca ao pastel de óleo, foram tecidas considerações relativamente à forma como o
material reage ao papel, à linha e à mancha, o uso das cores e a obtenção de cores diferentes
através da sobreposição de manchas de tonalidades diferentes. Os exercícios das duas

61
técnicas consistiram no desenho livre, à vista, a partir de imagens de animais, havendo assim
uma exploração da ideia de experimentação e de alguma habituação às duas novas técnicas.

Fig. 15: Um desenho a carvão de um dos alunos, o André Margalho.

Nos dois grupos, os participantes reagiram muito bem ao uso do carvão, particularmente à
sensação de liberdade que esse material lhes proporcionou, fruto das suas particulares
características, a leveza e versatilidade. A qualidade plástica das obras produzidas a carvão
foi extremamente positiva, resultando em curiosas e ricas interpretações das imagens. Em
relação ao desenho a pastel de óleo, e embora os resultados tenham sido igualmente curiosos
e positivos, a reação ao seu uso não foi tão boa, tendo sentido o grupo menos liberdade e mais
dificuldade no seu manuseamento. Uma das razões dessa diferença poderá ter sido o uso da
cor, um elemento novo que até então os participantes não tinham tido contacto. A natureza
mais rígida do pastel de óleo foi também um ponto menos positivo, resultando assim numa
preferência pela técnica de carvão.
Finalmente, a última sub-temática do desenho, o ​Desenho ao vivo​, iniciada na décima oficina,
no primeiro grupo, teve como premissa a de permitir aos alunos testarem as suas capacidades,
adquiridas ao longo das nove oficinas anteriores, desenhando de uma forma totalmente nova,
através do desenho de observação do real, de objectos tridimensionais que o professor trouxe
para as oficinas e que serviram de modelos. Até então, só haviam desenhado a partir de
imagens impressas, modelos bidimensionais. Foi por isso sido importante que tivessem sido
abordadas as diferenças entre uma e outra formas de desenhar, sublinhando a maior
dificuldade do desenho feito a partir de um modelo tridimensional. Os exercícios práticos
basearam-se na interpretação livre dos modelos dispostos na sala, através do uso de uma ou
mais das três técnicas desenvolvidas anteriormente.
Mas e se a intenção era a de consolidar o que fora aprendido e desenvolvido nas oficinas
anteriores, e que a referida liberdade dada aos participantes pudesse jogar a seu favor, a
verdade é que tal acabou por não se verificar. O primeiro grupo acabou por passar por
tremendas dificuldades no desenho ao vivo. Muitos não interiorizaram alguns dos aspectos

62
indissociáveis do desenho a partir de um modelo tridimensional, como as proporções,
texturas ou distâncias. O professor supôs erradamente que as ferramentas adquiridas nas
oficinas anteriores pudessem ser suficientes para que os alunos tivessem superado os
obstáculos inerentes à transição para o desenho ao vivo, algo que infelizmente acabou por não
se verificar na prática. A sensação de frustração e inadaptação a esta nova situação imperou
na maioria das vezes, na grande maioria do grupo.

Fig. 16: Um dos desenhos de observação de um dos modelos tridimensionais que o professor
levou para aula.

Talvez uma das razões que tenha levado ao aparecimento de tamanhas dificuldades tivesse
passado pela liberdade em excesso dada aos participantes relativamente à realização dos
exercícios propostos nesta sub-temática. Possivelmente um maior foco, a partir da imposição
de algumas regras objectivas, tivesse sido importante neste contexto. Sem dúvida que esta
transição se apresentou como muito difícil de ser posta em prática, mais ainda com
participantes com pouca experiência e em contexto de terapia. Não tendo o professor
conseguido chegar a uma conclusão exata quanto às razões que levaram aos resultados
negativos do ​Desenho ao vivo​, e de forma a evitar os sentimentos negativos sentidos pelos
alunos do primeiro grupo, acabou por eliminar essa sub-temática no segundo grupo, sendo as
duas oficinas em que a mesma seria abordado substituídas por desenho livre a partir de
imagens impressas.
Findas as oficinas de desenho, deu-se início às oficinas de pintura. Na décima primeira
oficina, a primeira desta temática, foi introduzida aos alunos a técnica da grelha de
quadrícula, cujo intuito seria o de facilitar a realização do desenho base das pinturas, um dos
pontos que por vezes levanta mais problemas. Para esta técnica, seria necessário uma régua
ou esquadro, e uma imagem modelo impressa, na qual iria ser feita a divisão em quadrículas,

63
divisão essa que seria, no passo seguinte, transposta para a tela, mantendo o mesmo número
de quadrados feitos na imagem original, facilitando assim o desenho, que seria feito quadrado
a quadrado. Por esta ser uma técnica de interiorização e aplicabilidade algo difícil, foi dito
aos alunos que poderiam recorrer ao auxílio do professor sempre que necessário, estando o
mesmo disponível para a demonstrar e explicar quantas vezes fosse necessário.

Fig. 17: À esquerda, enunciado de um dos passos da técnica da quadrícula, que o professor
abordou nas oficinas, e à direita, enunciado relativo às cores na pintura.

Ainda durante a primeira oficina de pintura, foi introduzida pelo professor a técnica de
Pintura a acrílico​. Foram abordados os materiais de pintura e o seu uso, tendo sido ainda
referida a vital importância da cor, elemento essencial na pintura. Nesse sentido, foi
enfatizada a importância do círculo cromático e feita a distinção entre as cores primárias,
secundárias e terciárias, tendo ainda sido feita referência às misturas necessárias para as
obter. O professor demonstrou, posteriormente, em tela, como utilizar e aplicar a tinta, a
diluição em água, os degrades, a transição do claro para o escuro e o inverso, a aplicação da
tinta mais ou menos pastosa e por último a conservação dos materiais.
A reação dos participantes à introdução da técnica a acrílico foi positiva, tendo sido percebido
o funcionamento dos materiais e os principais aspectos a ter em conta relativamente à
natureza da cor. As dúvidas, no entanto, acabariam por surgir, particularmente nas primeiras
pinturas relativamente à quantidade de tinta necessária e na obtenção das cores. No entanto,
de uma forma geral, todas essas dificuldades iniciais acabaram por ser ultrapassadas, tendo a
técnica a acrílico sido muito bem recebida no primeiro grupo.

64
Foi dada a possibilidade a cada aluno de pintar entre uma a três telas a acrílico, dependendo,
para tal, do ritmo de cada um. Foram dez as oficinas correspondentes à técnica de pintura a
acrílico.
Como modelo para as respectivas pinturas, os participantes poderiam optar entre uma
imagem trazida pelos próprios ou uma do“banco de imagens”, uma seleção prévia feita pelo
professor, que abrangeu uma grande variedade de temáticas.
Os alunos enfrentaram alguns desafios nas primeiras oficinas de pintura a acrílico,
nomeadamente no que toca ao uso do material, que como em qualquer outro processo, requer
algum tempo de habituação, sendo por isso crucial o constante acompanhamento por parte do
professor. Na mistura das tintas, particularmente na obtenção de cores, muitas dúvidas foram
surgindo ao longo das oficinas de acrílico, mas é sabido que, mesmo para pessoas com maior
experiência artística, esse é um desafio constante. Com o avançar das oficinas, os
participantes foram ganhando confiança e autonomia, tendo a maioria requisitado cada vez
menos o auxílio do professor. Foi necessário, com alguns dos participantes, um maior e mais
permanente acompanhamento, sendo natural que em alguns casos essa maior dedicação seja
necessária, particularmente em participantes nos quais a doença mental se manifesta com
maior força, criando consequentemente maiores debilidades e afectando de forma mais
vincada a respectiva autonomia. No entanto, mesmo esses participantes acabaram também
por cumprir com sucesso os objectivos propostos, tendo conseguido desenvolver as suas
pinturas, sentindo por isso um enorme orgulho no trabalho realizado. No geral, os resultados
finais foram extremamente positivos, sobretudo na qualidade plásticas das pinturas finais,
surgindo interpretações muito interessantes das imagens modelo que os participantes
escolheram. A maioria dos participantes concluiu a execução das três telas. Os que não
concluíram as três deveu-se a uma mera diferença de ritmo, algo perfeitamente normal.

Fig. 18: À esquerda, foto da pintura original, ​Dança em Bougival​, de 1883, do artista Jean
Renoir, à direita, a cópia feita por uma das alunas das oficinas, a Mónica, do segundo grupo.

Terminadas as oficinas de acrílico, tiveram início as de ​Pintura a óleo​, na vigésima primeira


oficina. Assim como nas oficinas de acrílico, também nas de óleo foi feita uma demonstração

65
e explicação dos materiais e do seu uso, fazendo para isso as devidas comparações com o
acrílico, salientando as principais diferenças. Foi dado ênfase ao médio utilizado para diluir a
tinta a óleo, uma mistura de óleo de linho e terebintina, a ser feita pelos participantes. Os
tempos de secagem da tinta a óleo, bem como as propriedades da mesma, diferentes das do
acrílico, foram referidos pelo professor. Também relativamente à limpeza dos pincéis, foi
explicado o procedimento a ser feito, sendo que, em vez de água e sabão, como no acrílico,
seria usada aguarrás.
Finda a demonstração prática, os alunos deram início às respectivas pinturas. Tal como
aconteceu com o acrílico, os participantes puderam pintar entre uma a três telas, de acordo
com o ritmo que a execução das mesmas tomasse, sendo igualmente dada a opção de escolha
entre uma imagem que os próprios trouxessem ou de uma das do “banco de imagens” do
professor. Foram dez as oficinas de pintura a óleo, tal como as de acrílico.
Em ambos os grupos, os resultados finais das pinturas foram muito positivos. No entanto,
assim como no acrílico, também na pintura a óleo surgiram dificuldades durante a realização
das pinturas que se prenderam sobretudo com os tempos de secagem e com a correcta
aplicação da tinta na tela. A natureza da tinta a óleo, diferente da tinta a acrílico, trouxe
desafios diferentes aos alunos, sendo o tempo de habituação à técnica superior pela maior
dificuldade do seu manuseamento, mesmo para os participantes mais talentosos e experientes
pois esses, apesar de terem experimentado pintura a acrílico antes do início das oficinas,
nunca o haviam feito com óleo. Ainda assim, os obstáculos acabaram por ser ultrapassados
com sucesso. Os resultados positivos dos trabalhos finais, acima mencionados, foram o
reflexo disso mesmo.

Fig. 19: Duas pinturas originais dos alunos, a óleo, à esquerda ​O guitarrista,​ do André, e à
direita, ​O caminho​, da Maria José.

Apesar dos alunos terem reagido um pouco melhor à técnica a acrílico, comparativamente à
técnica a óleo, no geral, as oficinas de pintura foram um enorme sucesso, sendo a maior

66
prova disso a quantidade, mas sobretudo a qualidade, do trabalho desenvolvido em ambos os
grupos.
Findas as oficinas de pintura, deu-se início, na trigésima segunda oficina, à temática seguinte,
a da banda desenhada. No primeiro grupo, foi feita uma introdução relativamente às
particularidades deste universo, nomeadamente a sua linguagem característica, o
procedimento que envolve a construção de um livro de banda desenhada, tendo ainda sido
abordados exemplos de publicações importantes de banda desenhada nas suas mais variadas
formas e origens culturais. De seguida, foi pedido aos alunos que iniciassem a construção da
respectiva história, sendo esse o objectivo principal das oficinas de banda desenhada. Essa
história seria dividida em quatro pranchas, que respeitariam a linguagem própria da banda
desenhada. O conjunto das histórias seria, no final do ano do projecto ​Incluir​, publicada e
editada.

Fig. 20: À esquerda, uma das páginas originais da história de banda desenhada da Carla, e à
direita, a mesma página já depois de colorida.

O primeiro passo da construção da história consistiu no desenvolvimento da narrativa, a partir


da elaboração de um argumento, tendo sido dada liberdade total aos participantes na escolha
do tema. Depois, tendo como auxílio imagens de variados personagens de outras publicações
que o professor levou para as oficinas, e a partir da narrativa construída no primeiro passo, os
alunos desenvolveram e desenharem os seus próprios personagens. No terceiro passo, as
quatro pranchas foram divididas em vinhetas, correspondentes aos pontos principais da
narrativa, vinhetas essas onde os alunos finalmente puderam desenhar as ilustrações
correspondentes a cada um desses pontos chave da narrativa, incluindo ainda os diálogos e as
caixas de texto. Posteriormente, as histórias foram coloridas digitalmente pelo professor,

67
agrupadas e enviadas para a editora que publicaria o livro. Foram oito o total de oficinas de
banda desenhada.
Os participantes dos dois grupos sentiram dificuldades nas várias etapas correspondentes à
elaboração da respectiva história. É importante frisar que a realização de uma banda
desenhada é um processo extremamente complexo e que, portanto, exigiu uma presença e
acompanhamento constantes por parte do professor e da terapeuta, de forma a evitar que o
alunos ficassem frustrados e até desanimados com essas mesmas dificuldades. Apesar desse
acompanhamento permanente, naturalmente alguns dos participantes sentiram maior
dificuldade em conseguir superar os obstáculos, sobretudo pelas dificuldades que em alguns
casos existiam na expressão oral ou escrita. Apesar de tudo, esses contratempos foram
ultrapassadas. O terceiro passo, a divisão da história nos respectivos momentos chave e a sua
transposição para as vinhetas, foi o que acabou por acarretar maiores dificuldades. Trata-se,
inevitavelmente, de um processo moroso e extremamente complexo.

Fig. 21: Foto de uma das oficinas de banda desenhada, na qual os alunos desenvolveram as
suas histórias.

Ainda que tenham surgido todos esses obstáculos, a verdade é que, excluindo um dos
participantes do primeiro grupo, todos os restantes conseguiram finalizar as respectivas
histórias de banda desenhada. O problema desse participante, que não conseguiu desenvolver
a sua história, prendeu-se sobretudo pela dificuldade em comunicar oralmente, bem como em
elaborar uma narrativa de forma autónoma, não tendo nem o professor, nem a terapeuta,
infelizmente, conseguido encontrar forma de suplantar esses obstáculos. Evitar este tipo de
situações é algo a rever em projectos futuros, pois é um enorme ponto negativo que um dos
participantes tenha ficado de fora, mesmo tendo os referidos problemas de comunicação.
Os resultados finais das histórias foram, sem qualquer dúvida, extremamente positivos, e um
reflexo da forma corajosa como os participantes enfrentaram este desafio. No entanto,

68
poderiam ter sido fornecidas e desenvolvidas outro tipo de ferramentas para que os alunos
não tivessem sentido tantas dificuldades nas várias fases da elaboração das suas histórias.
Talvez o conteúdo teórico apresentado pelo professor pudesse ter sido explorado de forma
mais extensa, ou mesmo pudessem ter sido feitos exercícios práticos mais simples que
servissem de treino para a realização da história final. Todos estas são reflexões a ter em
consideração para futuras iniciativas deste género. No entanto, apesar de todas as
circunstâncias, o livro editado e publicado com as histórias dos alunos foi uma enorme prova
do sucesso do projecto e da resiliência e audácia dos participantes dos dois grupos.
Finalmente, na quadragésima oficina, foi dado início à temática da ​Escultura​.
A peça, idealizada pelo professor, foi inspirada no ícone do projecto ​Incluir​, o ​Tintas.​ Para a
sua construção, foram desde início estabelecidos alguns pontos prévios.
Primeiramente, o professor elaborou o esboço do projecto tendo em conta os materiais a
utilizar, pedaços de metal e de madeira, rede de alumínio, arame, cartão, fita-cola e plástico.
Foi ainda decidido pelo Departamento de Psiquiatria que o local final para a escultura seria o
pátio interior do Hospital Distrital de Santarém.

Fig. 22: Duas das páginas do esquema da escultura desenvolvida em grupo nas oficinas.

A construção da escultura foi dividida em duas fases, cada uma correspondente a um dos dois
semestres e respectivos grupos de participantes.
A primeira parte consistiu na realização da estrutura base da escultura. O projecto foi
apresentado no primeiro grupo tendo sido explicada a ideia e a abordagem que iria ser feita
para a concretização da mesma, em torno do uso dos materiais mencionadas, particularizando
o cuidado a ter no manuseamento de alguns mais perigosos, como metais e arames, que
podiam envolver riscos maiores para os participantes.

69
A estrutura base, em ferro, foi previamente soldada por um profissional da área metalúrgica
que colaborou com o professor, facilitando assim a primeira parte do processo. Com essa
estrutura terminada, deu-se início ao trabalho nas oficinas. O primeiro passo consistiu na
cobertura dessa estrutura de ferro com cartão, fita-cola e plástico, de forma a ser moldado o
corpo principal da peça. O professor organizou uma “linha de montagem”, dando a cada um
dos participantes uma tarefa específica, de forma a facilitar e automatizar eficazmente o
processo. As oficinas, no primeiro grupo, prolongaram-se por mais seis sessões.
Nesta primeira parte, os participantes colaboraram com afinco, tendo tido poucas hesitações
quanto à tarefa de cada um, aceitando as sugestões e indicações dadas. O trabalho em equipa
acabou por ser uma enorme mais valia, tendo sido de uma enorme riqueza constatar a forma
como socialmente o grupo se desenvolveu ao longo das oficinas, criando laços entre eles, um
aspecto extremamente positivo e bem visível nesta fase final do projecto. Não houve nenhum
problema com o manuseamento dos materiais, pois o grupo acarretou com afinco as
precauções verbalizadas pelo professor.

Fig. 23: A escultura final, já no seu local definitivo, no pátio do Hospital Distrital de
Santarém

A segunda parte da escultura, que decorreu já no segundo semestre, com o segundo grupo,
consistiu na sua finalização a partir da incorporação dos restantes materiais, de forma a
conceber os pormenores finais. De novo, o professor montou uma linha de montagem,
atribuindo a cada um dos participantes uma tarefa específica. Nesta segunda fase, os

70
participantes tiveram de ter maiores cuidados no manuseamento dos materiais pois a natureza
dos mesmos era relativamente mais perigosa que os usados no primeiro grupo. A escultura
ficou pronta uma oficina antes do previsto.
Assim como aconteceu no primeiro grupo, os alunos reagiram muito bem às particularidades
das oficinas de escultura, tendo sido mais uma vez constatado o positivo trabalho em equipa,
sendo este um dos grandes pontos positivos de entre todas as temáticas abordados durante os
dois semestres das oficinas. Pode assim dizer-se que, de acordo com os objectivos iniciais da
escultura, os mesmos foram conseguidos e desenvolvidos com enorme sucesso, pois o
pretendido não era o de desenvolver competências artísticas específicas mas antes o de
desenvolver um projecto em grupo, a partir do qual os participantes pudessem interagir e
trabalhar com um propósito comum.
Um último ponto importante, que ocorreu de forma idêntica nos dois grupos, foi o facto dos
participantes se sentirem felizes e valorizados por saberem que a escultura iria estar exposta
num lugar público, de forma permanentes.
Com o final das oficinas de escultura, chegou ao fim o ano de duração do projecto ​Incluir.​

4.6 Exposições realizadas, ​aulas outdoor​ e com convidados

Relativamente ao primeiro grupo, foram realizadas três exposições colectivas, mais uma do
que as duas planeadas antes do início do projecto. Nestas, foram expostas quarenta das
cinquenta telas elaboradas pelos quinze participantes, bem como desenhos e páginas soltas
dos originais das histórias de banda desenhada.
O professor foi o responsável pelo tema das exposições, tendo-lhe sido pedido que
encontrasse forma de unificar as três situações. Os locais escolhidos, todos em Santarém,
foram: o Círculo Cultural Scalabitano, o W Shopping e o Fórum Mário Viegas.
Relativamente ao tema, o professor apropriou-se do símbolo da andorinha, o mesmo que já
havia utilizado no blog onde escrevia e divulgava os diários de bordo relativamente à sua
experiência nas oficinas, ​A caverna da andorinha.​
Assim, surgiu o título ​Uma andorinha em três actos,​ correspondendo cada acto a cada uma
das três exposições diferentes.
A primeira, a decorrer no Círculo Cultural Scalabitano, apresentou trabalhos referentes ao
início das oficinas, os primeiros exercícios práticos, desenhos a carvão e a pastel de óleo, e
ainda alguns materiais utilizados pelos participantes. Esta primeira exposição, correspondente
ao primeiro dos três actos, intitulou-se ​A Caverna da Andorinha,​ título curiosamente idêntico
ao do blog.

71
Fig. 24: Poster alusivo ao ciclo de exposições do primeiro grupo de participantes ​Uma
andorinha em três actos.​

A segunda exposição, que decorreu no W Shopping, foi denominada de ​O voo da Andorinha


e simbolizou a evolução dos alunos ao longo das oficinas, estando por isso expostas obras de
complexidade superior, como pinturas a óleo e acrílico, páginas de banda desenhada, e
pequenas esculturas a pasta de papel do ícone ​Tintas​.
Finalmente, a terceira e última exposição do primeiro grupo, ​O Ninho da Andorinha​, foi
assim chamada por simbolizar o regresso a “casa”, ao “ninho”, tendo decorrido precisamente
no Convento de São Francisco, local onde se encontrava a sala das oficinas. Os trabalhos
expostos, pinturas a acrílico, a óleo e uma escultura de uma andorinha elaborada em grupo,
acabaram por representar os trabalhos mais bem conseguidos, realizados já numa fase mais
avançada do projecto.
A seleção dos trabalhos para cada uma das três exposições foi feita numa parceria entre o
professor e o artista scalabitano convidado para ser o curador das exposições, Mário
Rodrigues.
No segundo grupo, ocorreram duas exposições finais, as mesmas que estavam previstas no
início do projecto. Ao contrário do primeiro grupo, neste caso não houve um tema proposto
pelo professor. Tal aconteceu porque a narrativa do ciclo de três exposições ​Uma andorinha
em três actos,​ no primeiro grupo, originou alguma confusão no público, que não associou de
imediato o título ao projecto ​Incluir.​ Assim, foi dada preferência a um título mais genérico, ​A

72
Arte da Inclusão​, havendo ainda um sub título para cada uma delas, ​Parte 1 e ​Parte 2​,
mantendo-se assim uma neutralidade narrativa e uma ligação mais evidente ao projecto
Incluir.​ A selecção dos trabalhos foi mais uma vez feita numa parceria entre o artista Mário
Rodrigues e o professor. Ao contrário do que aconteceu nas exposições do primeiro grupo,
nas exposições deste segundo não foi feita uma distinção relativamente ao conteúdo presente
nas duas, justificando-se essa mudança, mais uma vez, pela necessidade de manter uma
coerência e neutralidade relativamente a esses aspectos.
A primeira exposição, ​A Arte da Inclusão - Parte 1​, teve lugar no W Shopping, em Santarém,
apresentando trinta pinturas, a óleo e acrílico, bem como algumas páginas das histórias de
banda desenhada.
A segunda exposição, no Centro cultural e Regional de Santarém, apresentou vinte e quatro
obras, a acrílico e a óleo, bem como alguns desenhos realizados nas oficinas, e ainda um
painel onde os visitantes poderiam deixar uma mensagem escrita daquilo que para eles
representava a inclusão.

Fig. 25: Foto da inauguração da exposição ​A Arte da Inclusão: Parte 2​, que decorreu no
Fórum Mário Viegas, em Santarém.

A par das exposições, foram ainda realizadas, nos dois grupos, oficinas fora do sala habitual
do convento, as chamadas ​aulas outdoor​, e ainda oficinas com convidados especiais.
No primeiro grupo, foram realizadas duas aula outdoor e duas aulas com convidados. A
primeira aula outdoor teve lugar no W Shopping, em Santarém e acabou por servir dois
propósitos. O primeiro, o da apresentação do projecto à comunidade, e o segundo, o da
elaboração de um desenho em conjunto entre os alunos e qualquer membro da comunidade
que quisesse participar. Foi disposto um painel, em papel, num dos átrios do Shopping, bem
como uma mesa, com diversos materiais. O painel teve o título de ​O meu Hieronymus Bosch,​

73
numa alusão ao trabalho do famoso artista holandês, conhecido pelas suas complexas obras
recheadas de extravagantes personagens.136 Esta primeira aula outdoor teve uma
receptividade extremamente positiva, tendo tido uma participação acima das expectativas por
parte de vários membros da comunidade que por lá iam passando e que faziam perguntas
sobre o projecto.
A segunda aula outdoor do primeiro grupo teve lugar no dia da inauguração da terceira
exposição do ciclo de três dos trabalhos finais dos participantes, ​O Ninho da Andorinha​,
tendo ocorrido em frente da entrada do Convento de São Francisco. Consistiu na pintura,
mais uma vez em grupo, dando à comunidade a oportunidade de participar também, de um
“ninho” e três “ovos” à escala humana. Tal como aconteceu na primeira aula outdoor, foram
disponibilizados vários e diversos materiais, tendo sido dada a liberdade total quanto ao seu
uso. Tanto os ovos como o ninho estavam cobertos de cola branca e pasta de papel, já
previamente aplicados e secos, sendo esse um suporte ideal para as tintas e as colagens. Esta
aula outdoor serviu também como actividade paralela à inauguração da terceira e última
exposição do grupo, acabando por marcar o encerramento do primeiro semestre do projecto.
Apesar de alguns problemas de logística na colocação dos ovos dentro do ninho, muito por
culpa das condições atmosféricos e de alguns contratempos que o professor não calculou
antecipadamente, de uma maneira geral, os resultados foram muito positivos e as crianças
que por lá iam passando aderiram com uma enorme alegria, afinal, não é todos os dias que
podem pintar ovos maiores do que os próprios.
Foram ainda realizadas duas aulas com convidados especiais, no primeiro grupo. A primeira,
com a ilustradora Ana Xavier, das Caldas da Rainha, que serviu de introdução à temática da
banda desenhada. A Ana apresentou ao grupo exemplos de ilustradores estrangeiros e
portugueses, bem como algum do seu próprio trabalho, nomeadamente diários gráficos e
ilustrações para livros. Abordou ainda a construção de um livro ilustrado, nomeadamente o
processo inerente à ligação da narrativa às ilustrações e personagens. Por fim, foi realizada
uma ilustração em conjunto, na qual o grupo, supervisionado pela Ana e pelo professor, se
inspirou na música da famosa história infantil ​O Pedro e o Lobo137 para construir as suas
próprias personagens a partir da interpretação dessas famosas melodias. Acabou por ser um
exercício livre e interessante, tendo os alunos tido a possibilidade de contactar com uma outra
realidade, a da ilustração.
A segunda aula com convidados no primeiro grupo deu-se com um outro artista convidado, o
escultor scalabitano Mário Rodrigues, o mesmo que, como foi referido anteriormente, foi
também curador das exposições finais dos dois grupos. Esta aula acabou por servir de
introdução à temática da escultura, tendo o artista organizado uma oficina de técnicas em
pedra e em barro. A aula teve lugar fora do convento, na Incubadora de Artes de Santarém138.

136
​BOSING, Walter, ​Bosch,​ pp. 7-9
137
​Pedro e o Lobo,​ história infantil contada através da música, foi composta por ​Sergei Prokofiev​, em ​1936​.
138
​Espaço localizado numa antiga escola da cidade de Santarém e que acolhe projectos, individuais e colectivos,
das mais variadas áreas artísticas, funcionando desde 2016.

74
Fig. 26: Foto de uma das ​aulas outdoor​ que decorreu em frente ao Convento de São
Francisco, com os pequenos artistas a pintarem as paredes do “ninho da andorinha”.

O artista começou por demonstrar como trabalhar cada uma das técnicas através do uso das
ferramentas e da sua correcta aplicação. O grupo foi dividido em dois, para que
alternadamente os participantes pudessem experimentar tanto a escultura em pedra como em
barro. O facto de ter sido dada aos alunos a possibilidade de experimentar essas duas técnicas
foi um ponto bastante positivo. De uma maneira geral, os alunos reagiram muito bem às
mesmas, muito embora tenham sentido maior dificuldade ao trabalhar com pedra.
Já no segundo grupo, foram realizadas duas ​aulas outdoor e uma aula com convidados
especiais.
A primeira ​aula outdoor​, que decorreu numa das ruas do centro histórico da cidade de
Santarém, consistiu na pintura, em grupo, de duas caixas de electricidade da EDP, iniciativa
inserida no programa ​Verão In.Str.​ 139 Mais uma vez, como nas anteriores ​aulas outdoor​, esta
teve como foco principal o de combater a exclusão social e o estigma da doença mental
mostrando à comunidade as capacidades recém-adquiridas pelos participantes nas oficinas, e
incentivando, em simultâneo, à participação dessa mesma comunidade nas actividades. Em
primeiro lugar, foi feito pelo professor um desenho prévio para cada uma das caixas, que
serviu de guia de orientação para os alunos. Depois do desenho ter sido transposto para as
caixas, o grupo passou à pintura final, em acrílico. O processo decorreu em duas aulas, tendo
sido extremamente bem recebido pela comunidade, mas mais ainda pelos participantes, que
se divertiram bastante, não acusando a pressão por estarem num contexto exterior ao da sala.

139
​Iniciativa cultural que acontece anualmente, durante o Verão, em Santarém, que junta projectos de todas as
vertentes artísticas.

75
Fig. 27: Foto da aula de escultura orientada pelo artista Mário Rodrigues, que teve lugar na
Incubadora de Artes, em Santarém.

Todavia, dois dos participantes, precisamente por essa segunda razão, o contacto com o
exterior e com o público, optaram por não participar nessas aulas, tendo comunicado essa
mesma decisão ao professor, que compreendeu a situação. No entanto, para os alunos que
participaram, o facto de sentirem que estavam a fazer algo que ia ficar de forma permanente
num local público valorizou-os tremendamente.
A segunda ​aula outdoor decorreu em paralelo com a primeira das duas exposições finais do
segundo grupo, que teve lugar no W Shopping. Esta, consistiu na pintura de duas telas em
conjunto, de tema livre, a partir das quais, mais uma vez, o objectivo seria o de mostrar à
comunidade as ferramentas adquiridas nas oficinas na área da pintura e do desenho. Esta
iniciativa teve a duração do tempo de exposição, quinze dias, sendo que os alunos iam
participando de forma alternada, pintando as duas telas em grupos de dois. A receptividade
relativamente a esta iniciativa foi bastante positiva e uma enorme vitória os alunos terem
conseguido expor-se dessa forma à comunidade, sendo essa uma das enormes conquistas das
aulas outdoor​ tanto no primeiro como no segundo grupo.

76
Fig. 28: Foto da ​aula outdoor​ em que os alunos pintaram duas caixas de electricidade da
EDP, no centro histórico de Santarém.

A aula especial com convidados do segundo grupo decorreu no ​Dia Mundial da Saúde
Mental​, tendo servido o propósito de o assinalar, através do alerta para o burnout laboral, um
problema que muitas vezes ocorre em vários sectores da nossa sociedade. Nesse sentido,
foram convidados vários trabalhadores da Câmara Municipal de Santarém, que em conjunto
com o grupo do projecto ​Incluir,​ pintaram três telas de grandes dimensões, a partir de
desenhos previamente elaborados pelo professor, desenhos esses que tiveram em conta
factores ligados à inclusão e ao bem estar no trabalho. Os convidados ficaram bastante
entusiasmados com o resultado final das pinturas, e com o próprio decorrer da aula, tendo
elogiado as competências artísticas dos participantes do projecto. Alguns dos trabalhadores
convidados, inclusive, mostraram entusiasmo em que iniciativas como esta, de aulas em
conjunto com este tipo de projectos, pudessem repetir-se futuramente.

4.7 As ​Primeiras Jornadas de Arte e Inclusão e os resultados quantitativos relativos à


monitorização do projecto ​Incluir

As ​Primeiras Jornadas de Arte ​e Inclusão tiveram lugar um mês depois das oficinas terem
terminado, no Teatro Sá da Bandeira, em Santarém, tendo sido organizadas pelo
Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém, no âmbito do Projeto ​Incluir,​
com o objectivo de proporcionar um momento de reflexão, partilha e debate sobre a arte
como instrumento de auxílio à inclusão social, particularmente dentro da área da saúde
mental.140

140
​Mais informação sobre as Primeiras Jornadas de Arte e Inclusão disponíveis em
https://www.arslvt.min-saude.pt/frontoffice/pages/3?event_id=440

77
O ponto mais importante a reter relativamente a estas Jornadas, para esta investigação, e que
de seguida analisaremos com maior detalhe prende-se com os resultados quantitativos do
projecto.
Essa avaliação quantitativa, levada a cabo pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital
Distrital de Santarém, foi feita com uma periodicidade semestral, sendo a forma encontrada
de monitorizar o desenvolvimento do projecto e de o avaliar quanto aos seus benefícios, tanto
nos participantes como na comunidade envolvente. Nesse sentido, foram realizados
questionários que avaliaram quatro factores: os dados sócio-demográficos, o funcionamento
global, a auto estima e o estigma da doença mental. O tratamento dos dados teve a cargo do
professor da Escola Superior de Gestão e Tecnologia de Santarém, Ricardo São João, docente
da área de métodos quantitativos. Os dados resultantes dessa avaliação foram publicados num
artigo científico, disponibilizado posteriormente na internet.141
De uma forma resumida, os resultados apresentados foram relativos a três estudos distintos,
todos eles baseados nos referidos questionários: ​Estigma da doença mental na população​;
Escala da autoestima de Rosenberg:​ ​grupo oficina Incluir vs grupo controlo;​ ​Estigma da
doença mental: grupo oficina Incluir vs grupo controlo.​ 142
Relativamente ao ​Estigma da doença mental na população​, esse primeiro estudo decorreu em
duas fases, com o intuito de analisar os efeitos do projecto ​Incluir relativamente à presença de
estigma da doença mental na comunidade, tendo para tal sido feito um questionário, a uma
amostra da comunidade antes e depois da ocorrência do projecto. Esse questionário
apresentava nove pontos que seriam tidos em conta para a avaliação da presença ou não de
estigma da doença mental relativamente a um caso hipotético de um doente com
esquizofrenia, sendo os mesmos: ​raiva, pena, perigosidade, medo, ajuda, coerção,
segregação, evitação e culpa.​ 143 Os resultados indicaram que somente num deles, ​ajuda,​ não
houve diferença significativa relativas aos dados estatísticos obtidos antes e depois da
ocorrência do projecto ​Incluir,​ o que concluiu que realmente a presença do projecto fez a
diferença, contribuindo para a diminuição do estigma na população.144

141
​O artigo mencionado, de título ​Estigma na doença mental: estudo observacional e piloto em Portugal, está
disponível em https://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
142
​Informação retirada do artigo E ​ stigma na doença mental: estudo observacional e piloto em Portugal,
disponível em https://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
143
​ stigma na doença mental: estudo observacional e piloto em Portugal,
​Informação retirada​ do artigo​ E
disponível em https://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
144
Informação retirada do artigo E ​ stigma na doença mental: estudo observacional e piloto em Portugal,
disponível em https://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf

78
Fig. 29: Cartaz alusivo às ​Primeiras Jornada de Saúde Mental Arte & Inclusão​, que tiveram
lugar no Teatro Sá da Bandeira, em Santarém.

No segundo estudo, ​Escala da autoestima de Rosenberg: grupo oficina Incluir vs grupo


controlo,​ pretendeu-se aferir o contributo das oficinas relativamente à autoestima do grupo de
participantes, a partir da ​escala de auto estima de Rosenberg​. Mais uma vez, os questionários
foram feitos em duas fases, de modo a poder ser feita a comparação e a análise do impacto do
projecto antes e depois da sua ocorrência. Os resultados indicaram que, comparativamente ao
grupo de controlo, o grupo que frequentou as oficinas apresentou uma diferença de melhoria
na autoestima de 48%. Já dentro do próprio grupo de participantes, houve uma melhoria de
autoestima de 23%.145 Tal como no primeiro estudo, houve uma influência positiva e
significativa do projecto ​Incluir​ nos seus participantes, desta feita relativamente à autoestima.
Finalmente, no terceiro estudo, ​Estigma da doença mental: grupo oficina Incluir vs grupo
controlo,​ dividido em duas fases, foi constatado que os resultados foram também positivos,
pois o grupo que frequentou as oficinas obteve uma melhoria de 66% na avaliação do estigma
da doença mental relativamente ao grupo de controlo.146
Para além de demonstrativos da importância do projecto ​Incluir tanto na comunidade como
nos participantes, estes resultados são cruciais no sentido de contribuírem para colmatar uma
enorme lacuna que existe em projectos de arte-terapia deste género, a inexistência de dados

145
​Informação retirada​ do artigo​ E​ stigma na doença mental: estudo observacional e piloto em Portugal,
disponível em https://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf
146
​Informação retirada​ do artigo​ E​ stigma na doença mental: estudo observacional e piloto em Portugal,
disponível em https://repositorio.ipsantarem.pt/bitstream/10400.15/2014/1/406-1044-1-PB.pdf

79
quantitativos que os suportem, quanto aos seus benefícios. Assim, espera-se que este possa
ser um passo importante para que tal venha a ser revertido e que mais projectos como o
Incluir​ possam surgir. 

4.8 Considerações finais e sugestões para o futuro, a importância do desenho no


projecto ​Incluir

Neste último capítulo, iremos tecer algumas considerações finais relativas aos resultados
finias do projecto ​Incluir em todas as suas vertentes, bem como a elaboração de sugestões
para futuras iniciativas de arte-terapia, tendo em conta não só a evidência empírica obtida,
mas também a pesquisa teórica elaborada e abordada na primeira parte desta investigação.
Estas considerações finais e sugestões terão por isso em conta sobretudo aquilo que foi a
experiência do autor enquanto professor das oficinas do projeto, tendo como base de análise
a forma como os participantes reagiram às diversas competências e áreas artísticas que
desenvolveram. Nesse sentido, trataremos também de analisar de forma mais profunda o
papel do desenho neste projecto desenvolvido, visto ser esse o principal foco desta
investigação.
É importante esclarecer que, infelizmente, não foram obtidos dados concretos quanto às
competências artísticas abordadas nas oficinas e à reacção dos participantes às mesmas, o que
de futuro se aconselha vivamente a reverter, a fim de perceber, com dados mais objectivos,
que tipo de técnicas e exercícios são mais indicados para este tipo de situações. Assim, as
considerações que de seguida serão abordadas são baseadas somente na observação e
percepção do artista convidado para professor das oficinas e autor desta investigação.
Começaremos por analisar que competências artísticas que resultaram melhor nas oficinas,
tendo em conta dois aspectos: a reação dos alunos a cada técnica, e o resultado final dos
trabalhos realizados, considerando, para ambos os pontos, os objectivos estipulados no início
do projecto.
As áreas nas quais os resultados obtidos acabaram por ser mais positivos, nas quais os alunos
mostraram maior facilidade na adaptação aos materiais e ao tipo de exercícios propostos
foram: ​Desenho de linha​, ​Desenho a carvão e a ​Pintura a acrílico​. Outras áreas exploradas,
que apesar de não terem sido tão satisfatórias para os alunos, tendo suscitado maiores
dúvidas, obstáculos e frustrações, mas que acabaram, ainda assim, por ter resultados práticos
igualmente positivos, foram: ​Desenho a pastel de óleo​, ​Pintura a óleo e ​Banda Desenhada.​
Por fim, as áreas exploradas decorreram de forma menos positiva foram: a segunda parte da
Síntese das formas​, na qual foi abordada a construção de um desenho a partir das suas formas
simplificadas e o ​Desenho ao vivo.​
Relativamente ao tipo de exercícios elaborados, de uma forma geral, os participantes
reagiram bem aos exercícios de natureza mais simples, com orientações concretas e bem
definidas. Quando os desafios eram relativamente maiores, como no caso de desenhos livres
de observação de imagens que, por exemplo, ocorreram no ​Desenho a carvão e no ​Desenho a
pastel de óleo​, em que as orientações não eram tão definidas, alguns dos alunos revelaram
dificuldades relativamente aos passos a dar, requerindo com frequência o auxílio do

80
professor. No entanto, o sentimento de superação neste tipo de exercícios era
substancialmente maior, comparativamente com os exercícios mais simples, havendo
portanto uma proporção direta entre desafio e superação. No entanto, quando a liberdade dada
era em excesso e as orientações dadas eram escassas, como ocorreu no caso do ​Desenho ao
vivo​, os participantes sentiram-se frustrados e perdidos, algo a evitar futuramente. O
aparecimento de situações novas, como o desenho de um modelo tridimensional, ou a
presença da cor, como ocorreu com o ​Desenho a pastel de óleo, c​ ontribuíram também para
algumas das dificuldades sentidas, sendo importante por isso um acompanhamento constante
por parte do professor quando ocorrem esse tipo de transições.
Relativamente às técnicas abordadas, as mais apreciados pelos alunos foram o carvão e a
pintura a acrílico, justificando-se essa escolha pelo tempo de habituação menor
comparativamente com outras, como o óleo, bem como pela sensação de liberdade que esses
materiais incutiram, a partir das múltiplas formas de poderem ser aplicados. Muito embora
não tenha havido um material que desagradou completamente a nenhum dos participantes, a
técnica abordada que suscitou menos sentimentos positivos foi o pastel de óleo, pois foi
considerado o menos versátil e que menos liberdade proporcionou à maioria dos
participantes.
Relativamente às oficinas de ​banda desenhada​, estas acabaram por trazer inúmeros
obstáculos aos dois grupos de participantes, principalmente em alguns dos passos do processo
de construção da história de cada um. A principal razão para que tal tivesse ocorrido
prendeu-se com a complexidade inerente a esse mesmo processo que envolve uma série de
passos necessários e que à partida nenhum dos participantes está habituado a concretizar,
nomeadamente a construção de uma narrativa e a sua aplicação nas vinhetas e pranchas.
Também a dificuldade de expressão oral e escrita de alguns dos participantes contribuiu para
tal, em alguns casos fruto das condicionantes inerentes à doença mental, o que dificultou
bastante a construção do argumento. Em situações futuras, e de forma a atenuar estas
dificuldades sentidas relativamente à banda desenhada, devem ser adicionados exercícios
práticos mais simples e eventualmente mais algumas aulas teóricas, de forma a colmatar e
atenuar essas dificuldades sentidas, bem como eventualmente a procurar processos que
facilitem a construção das histórias. Todavia, os resultados finais das histórias não podiam ter
sido mais positivos, os alunos sentiram um tremendo orgulho e satisfação por verem o seu
trabalho publicado sob a forma de um livro. É importante que exista uma enorme dedicação e
humanidade no trato com este tipo de participantes, a fim de tentar que se sintam bem, e que
não deixem que a frustração acabe por suplantar a vontade de triunfarem. O livro final de
banda desenhado é o exemplo máximo e objectivo daquilo que o projecto Inlcuir ​prentendeu
fazer.
Já na escultura, muito embora a componente técnica não tenha sido explorada com grande
profundidade, como ocorreu nas outras áreas, a verdade é que houve enormes ganhos a nível
humano, resultado sobretudo do espírito de equipa e de entreajuda demonstrado nos dois
grupos. Os alunos sentiram enorme facilidade em integrar a “linha de montagem” que o
professor acabou por implementar em cada um dos grupos, tendo sido evidente que para além
das competências artísticas exploradas, também a componente social e humana do projecto

81
foi um ganho extremamente positivo. Os laços que os participantes criaram e desenvolveram
entre si foram evidentes. Também a autonomia foi um ganho muito importante na maioria
dos participantes, tendo tal sido constatado não só na escultura, mas também ao longo de
todas as outras áreas e oficinas. O facto da escultura ser instalada num local público, foi
também um factor motivador e enaltecedor para todos os participantes, que se sentiram
valorizados por saberem que o trabalho desenvolvido tinha um fim para além das oficinas.
Tal sentimento foi paralelo quando ocorreram as exposições e quando o livro de banda
desenhada foi lançado. Situações deste género, em que há uma exposição pública do trabalho,
permitiram que as competências que os mesmos adquiriram e desenvolveram durante as
oficinas sejam valorizadas, o que consequentemente acabou por ter sido extremamente
positivo não só para eles mas também para a comunidade envolvente.
Voltando ao desenho, abordando agora com maior detalhe seu papel neste projecto, podemos
afirmar que o mesmo acabou por ser extremamente importante nas oficinas. Em primeiro
lugar, pelo facto de ter servido de base para todas as outras áreas artísticas, sobretudo para a
banda desenhada e para a pintura, tendo sido por isso uma óptima forma de iniciar os
participantes nas aulas, particularmente os que não tinham tido até então contacto algum com
a expressão plástica. Esta ideia está directamente relacionada com um aspecto que já
havíamos referido em capítulos anteriores, a natureza imediata e instintiva do desenho, que
permitiu aos participantes enfrentarem com maior à vontade os exercícios apresentados,
tendo sido os próprios a reconhecerem essa ideia, ao afirmarem que a partir dos exercícios
iniciais e se sentiram mais confiantes e aptos para experimentarem outras técnicas mais
intimidantes.
Já no que toca à componente mais técnica, podemos afirmar que, dentro do desenho, o uso do
carvão foi a técnica melhor aceite e a que de forma consensual os alunos mais gostaram de
utilizar, tendo os resultados finais dos trabalhos sido igualmente positivos. Foi também
importante ter começado pelo uso do lápis a grafite, que ao contrário de outros como o pincel
ou pastel, apresenta uma natureza de adaptação mais imediata e menos intimidante, algo
extremamente importante num contexto de terapia em que se pretende que exista no seio das
oficinas um ambiente calmo e desprovido de sentimentos de frustração e inadaptação.
Outros aspectos importantes do desenho assentam em algumas componentes inerentes ao seu
uso, como o ritmo de trabalho, o tipo de traço, a evolução e adaptação à sua prática, que, em
futuras iniciativas poderão ser importantes para que profissionais de saúde possam retirar
algumas conclusões quanto à natureza do paciente e da doença, percebendo de que forma
ambos os elementos estariam eventualmente ou não interligados, criando estratégias que
ajudem os pacientes. Porventura, em futuras ocasiões tal poderá ser explorado, sendo que tais
conclusões poderão ser úteis no panorama da saúde mental e da ligação da doença à
expressão artística.
Por fim, o poder comunicacional do desenho foi também extremamente importante, pois em
alguns casos, em que os alunos apresentavam maior dificuldade em se expressar, revelou-se
um forma útil de os mesmos o fazerem. Muito embora os resultados finais não tenham sido
interpretados numa perspectiva mais científica, ligada à doença, foi evidente que o desenho

82
suplantou muitas vezes as barreiras existentes que impediam alguns dos participantes em se
expressarem oralmente.
Passando agora a uma breve análise das exposições realizadas, que permitiram que o público
pudesse ter um contacto mais direto com o trabalho desenvolvido pelos participantes nas
oficinas, de uma forma geral, a aceitação das mesmas, tanto no primeiro como no segundo
grupo, acabou por ser extremamente positiva. Os participantes, muito embora a princípio
tenham sentido alguma ansiedade e nervosismo, pois afinal, a maioria nunca até então tinha
tido uma experiência do género, acabaram, no final, por se sentir orgulhosos e felizes pelo
reconhecimento que foi dado ao trabalho que desenvolveram, tendo muitas das obras sido
vendidas tal foi a positiva receptividade por parte do público, um factor que para além de ter
contribuído para a auto estima dos respectivos autores, acabou também por ser uma mais
valia para a continuação do projecto.
Um segundo ponto positivo decorrente das situações de exposição prende-se com
contribuição na diminuição da quebra do estigma da doença mental sentido. Como referimos
em capítulos anteriores, situações de contacto, como é o caso de exposições de arte, em que a
comunidade possa de uma forma mais directa lidar com a doença mental, podem contribuir
para a quebra do estigma que inegavelmente ainda existe na nossa sociedade. Pela forma
como o público aceitou as exposições do projecto ​Incluir​, podemos confirmar que neste caso
tal foi uma realidade.
Quanto às ​aulas outdoor e com convidados, estas trouxeram inúmeras mais valias, tanto para
os participantes como para o projecto. Desde logo, a valorização manifestada pela
comunidade envolvente relativamente às competências artísticas desenvolvidas pelos
participantes nas oficinas, o que não só valorizou a auto estima dos participantes como
também permitiu que o estigma da doença mental fosse combatido, dois dos pontos chave do
projecto. Para além disso, as ​aulas outdoor acabaram por os enriquecer bastante, tanto a nível
artístico como social e humano. Tal ocorreu de igual forma com as aulas com convidados, a
partir dos quais os alunos tomaram conhecimento de realidades distintas de outros artistas e
das respectivas formas de trabalhar.
Apesar do mencionado sucesso, a verdade é que, como em todos os pontos anteriores,
também neste surgiram contratempos e aspectos que podem futuramente ser melhorados e até
encarados de forma alternativa. Desde logo a organização de algumas aulas outdoor exigem
outro tipo de cuidados que algumas vezes não ocorreram, o que veio a manifestar-se através
de alguns contratempos como, por exemplo, não existir suporte para os materiais, ou as
condições atmosféricas não serem as esperadas, ou mesmo os participantes não terem sido
corretamente informados do local e das actividades que iriam desenvolver. Por serem
situações de exposição muito grandes, alturas houve em que alguns dos participantes se
mostraram muito nervosos, tendo, inclusive, optado por não participar em algumas das aulas
outdoor. Futuramente, estes dois aspectos devem ser trabalhados a bem não só dos alunos,
mas também da imagem e das pretensões do projecto relativamente à comunidade envolvente
e à quebra do estigma da doença mental.
Abordaremos agora questões mais gerais que não foram mencionadas anteriormente, e que
podem futuramente ser melhoradas neste tipo situações, de arte-terapia para pessoas com

83
doença mental. Um desses pontos implica algo que foi estipulado desde início, que implica o
facto dos trabalhos desenvolvidos nas oficinas serem cedidos automaticamente ao projecto, a
fim de serem posteriormente expostos e vendidos para assegurar a continuação do mesmo.
Muito embora esse tenha sido um óptimo princípio, a verdade é que a sua execução não foi a
melhor, pois muitas vezes o professor foi questionado pelos alunos quanto à hipótese de
poderem levar algum trabalho consigo para casa, levando ao aparecimento de algumas
confusões com os responsáveis do projecto, que de forma intransigente neste ponto não
abriram qualquer exceção nem mesmo a pequenos desenhos ou rascunhos. Na opinião do
autor, as pessoas poderiam eventualmente sentir-se valorizadas ao mostrar aos familiares
mais próximos ou amigos os progressos feitos, podendo tal contribuir para aumentar a
respectiva auto estima. Outro aspecto implicou o uso do material, que muitas vezes era
doseado em demasia, havendo uma rigidez excessiva na forma como o mesmo era utilizado.
O que acontecia era que os alunos eram obrigados a utilizar menos tinta que a que à partida
necessitavam, mesmo havendo bastantes tubos de reserva, o que, na opinião do autor, poderia
ter sido contrariado a bem de uma maior liberdade criativa. Estas considerações são sem
dúvida especulativas. A verdade é que estes poderão até ser factores determinantes em
contexto de terapia, um contexto dentro do qual o professor não tinha tido qualquer
experiência para além da do projecto ​Incluir.​ Independentemente disso, o protocolo deveria
ter sido transmitido com maior clareza aos participantes pois surgiram inúmeras dúvidas que
suscitaram alguma frustração, um aspecto que poderia ter sido contrariado. No entanto, temos
de ser justos e a verdade é que este contexto, de arte-terapia, foi também uma novidade para o
próprio departamento de psiquiatria, que até então não havia feito nada do género, o que
implica uma aprendizagem constante e uma série de situações novas com as quais tiveram de
lidar.
No que toca às ​Primeira Jornadas de Saúde Mental Arte e Inclusão​, que tiveram lugar no
Teatro Sá da Bandeira, em Santarém, estas representaram o culminar do projecto ​Incluir​,
sendo uma iniciativa extremamente importante no sentido em que permitiu a apresentação do
mesmo à comunidade, particularmente dos resultados dos estudos efetuados. Foi também
possível constatar que este tipo de iniciativas ocorrem com sucesso noutros contextos e
lugares, através dos exemplos abordados, da ​Farpa​, do Hospital Magalhães Lemo e ainda da
Asmal​.
Em relação aos resultados dos estudos efetuados, apresentados nestas jornadas, os mesmos
indicaram importantíssimas conclusões quanto aos benefícios do projecto, nomeadamente a
diminuição do preconceito relativamente a doença mental na comunidade, bem como o
aumento da autoestima dos seus participantes. Estes dados são muito importantes pois um dos
grandes problemas da terapia através da arte para pessoas com doença mental, mencionado
em capítulos anteriores, prende-se com a escassez de dados objetivos quanto aos seus
benefícios. Sem esses, o investimento neste tipo de iniciativas será sempre menor do que
deveria, algo que por isso deve ser gradualmente alterado.
Feitas e dadas as considerações e sugestões finais, resta-nos uma última observação. Temos a
convicção de que o mais importante em projectos como o ​Incluir​, tal como prova o exemplo
do trabalho desenvolvido nos ateliês de Nise da Silveira, é o afeto. Só a partir dele, e através

84
dele, poderão estas pessoas, que muitas vezes são injustamente desconsideradas pela
sociedade, melhorar e mostrar ao mundo que também elas conseguem superar-se diariamente,
seja através da arte, ou de qualquer outra forma de idêntica índole.
Se no início do projecto o autor desta tese assumiu o papel de professor, a verdade é que
gradualmente se viu confrontado com uma enorme mudança nessa mesma assunção,
acabando por ser, na grande maioria das oficinas, quem mais aprendeu, com os seus alunos. E
essa, é a maior e mais eterna lição.

Fig. 30: Os alunos do primeiro grupo do projecto​ Incluir ​na inauguração da segunda
exposição dos trabalhos realizados nas oficinas, que decorreu no W Shopping, em Santarém.

85
CONCLUSÃO

A partir do desenvolvimento desta dissertação foi possível obter uma melhor compreensão do
papel do desenho e da sua aplicação em contexto de arte-terapia para pessoas com doença
mental, tendo para tal sido útil as duas vertentes que compuseram esta investigação, a
primeira parte, uma pesquisa teórica em torno da ligação do desenho com a doença mental e a
contextualização dessa forma de expressão em situações de arte-terapia, e a segunda, assente
num relatório da componente prática, um projecto de arte-terapia para pessoas com doença
mental, feito em parceria com o Departamento de Psiquiatria do Hospital Distrital de
Santarém, no qual o desenho foi uma das competências artísticas exploradas mais
importantes.
Verificamos que a natureza imediata e relativamente instintiva do desenho, enquanto forma
de expressão, acaba por ser importante na sua aplicação em contexto de arte-terapia,
sobretudo porque permite uma aproximação mais fácil que outras formas de expressão não
permitem. Esta ideia apoia-se no princípio de que um contexto de terapia implica que os seus
participantes se sintam confortáveis, logo, é imprescindível que as valências artística
acompanhem esse pressuposto. Para além disso, a premissa tida, de forma generalizada, de
que o desenho é uma base importante para outras formas de expressão, adquire uma
importância que acompanha um dos pontos principais de projectos como o ​Incluir, em que
aliado ao contexto primordial de terapia, está outro, que engloba a exploração e aquisição de
ferramentas artísticas. Verificou-se ainda que o uso do desenho permite contornar obstáculos
comunicacionais em casos onde a doença mental afeta não só a autonomia mas também a
expressão através da palavra oral e escrita, um ponto extremamente útil para o terapeuta ou
um profissional ligado à saúde mental que esteja envolvido no auxílio ao seu paciente.
A abordagem teórica feita na primeira parte desta dissertação implicou uma exploração da
ligação histórica da arte, mais propriamente do desenho, com a doença mental, de forma a
percebermos como surgiu a arte-terapia e qual a importância que hoje apresenta na área da
saúde mental. Primeiramente, pudemos constatar que a forma como a sociedade e a ciência
foram percepcionando a significância da doença mental esteve sempre directamente
relacionada com o tipo de tratamentos praticados em cada época. Os avanços da e na ciência
permitiram o aparecimento de formas de encarar esses tratamento progressivamente mais
humanizados, sendo a arte-terapia uma consequência dessa mesma evolução. A ligação da
arte com a doença mental manifesta-se através de inúmeras situações e teorias que, embora
muitas vezes meramente especulativas, permitem, ainda assim, constatar que a arte tem
realmente propriedades que ajudam e contribuem para melhorias a nível emocional,
psicológico e social não só quem as utiliza de forma directa, mas também indireta.
Já o projecto ​Incluir: oficinas para todos e para cada um,​ permitiu obter várias conclusões
importantes dentro daquilo que é a arte-terapia para pessoas com doença mental e dos seus
benefícios. A análise da reação dos participantes às diferentes formas de expressão artística
abordadas, nomeadamente ao desenho, foi importante e contribuiu de forma crucial para os
resultados benéficos finais do projecto. Verificámos que para os participantes o uso do
desenho foi fundamental não só porque permitiu uma primeira abordagem às oficinas mais

86
imediata e acessível mas também porque foi uma importante base para as restantes
competências artísticas abordadas. É ainda importante frisar um dos objetivos concluídos
com maior sucesso, e no qual o uso do desenho foi primordial, a publicação do livro de banda
desenhada com histórias dos participantes. Tal é um reflexo na plenitude máximo do sucesso
alcançado pelo projecto, bem como um espelho da perseverança e a capacidade de superação
dos grupos, que sentiu enorme orgulho e felicidade por verem manifestar-se na prática todo o
esforço investido durante o tempo que frequentaram as oficinas.
Para além destas implicações diretamente relacionadas com o desenho, é ainda importante
frisar dois importantes resultados, dos quais foram inclusive obtidos dados quantitativos
cruciais, a auto estima dos participantes, que melhorou bastante com o projecto, e a
diminuição do preconceito em relação a doença mental por parte da comunidade envolvente,
dados extremamente significativos e que atestam com maior veemência o papel da arte na
terapia dentro da área da saúde mental.
Apesar destas conclusões importantes, a verdade é que a informação em torno do uso do
desenho em contexto de arte-terapia para pessoas com doença mental é escassa e por vezes
contraditória. Existem poucos estudos que sustentem com dados objectivos as mais valias do
uso da arte como ferramenta terapêutica. É importante reverter essa situação com a aplicação
de ferramentas a partir das quais possam ser obtidos esses mesmos dados em futuras
iniciativas.
É por isso importante que surjam mais iniciativas como o ​Incluir​, mas acima de tudo, e numa
perspetiva mais global, que nunca se abandone a forma humana como devem ser encarados
os tratamentos e a terapia de pessoas com doença mental. Tal pressuposto é sinónimo de uma
consciência colectiva positiva relativamente aquilo que somos e da forma como o mostramos
através dos cuidados que devemos nutrir por quem mais precisa. Não nos devemos esquecer
disso nunca.

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Site do Museu Imagens do Inconsciente disponível em


http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/

Site do ​Programa EDP Solidário disponível em


https://www.fundacaoedp.pt/pt/conteudo/edp-solidaria

92
ANEXOS

93
Documentos teóricos (exemplos)

94
95
96
Enunciados de exercícios (exemplos)

97
98
99
100
101
102
103
Exercícios (resolvidos)

104
105
106
107
108
109
110
111
112
Pinturas finais (exemplos)

113
114
115
116
117
118
119
120

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