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Um Ensaio Sobre o Homem1

(E. Cassirer)

A ciência representa o ultimo passo no desenvolvimento espiritual do homem e pode ser


considerado como a conquista máxima e mais característica da cultura humana. Trata-se de um
produto verdadeiramente tardio e refinado, que não pode desenvolver-se senão em condições
especiais. Nem sequer a concepção da ciência em seu sentido especifico, existiu antes da época
dos grandes pensadores gregos, antes dos pitagóricos e dos atomistas, antes de Platão e
Aristóteles. E esta concepção primeira pareceu esquecer-se e eclipsar-se nos séculos seguintes.
Teve que ser redescoberta e restaurada na época do Renascimento. Depois deste
redescobrimento o triunfo da ciência pareceu ser completo e indiscutível. Não há nenhum outro
poder em nosso mundo moderno que possa ser comparado com o do pensamento cientifico.
Considera-se como o sumum e a consumação de todas as nossas atividades humanas, como o
ultimo capitulo na história do gênero humano e como o tema mais importante de uma filosofia do
homem.
Podemos discordar no que concerne aos resultados da ciência ou a seus princípios
primeiros, mas parece fora de duvida sua função geral. Podemos aplicar à ciência a conhecida
frase de Arquimedes: dá-me um ponto de apoio e moverei o mundo. Num universo cambiante, o
pensamento cientifico nos fixa os pontos quietos, os pólos em repouso, irremovíveis. Na língua
grega o termo episteme deriva, etimologicamente, de uma raiz que significa firmeza e estabilidade.
O processo cientifico nos conduz a um equilíbrio estável, a uma estabilização e consolidação do
mundo de nossas percepções e pensamentos.
Por outro lado, a ciência não se acha só na realização desta missão. Em nossa
epistemologia moderna, tanto na escola empírica quanto na racionalista, topamos comumente com
a concepção de que os primeiros dados se acham num estado completamente caótico. (...) A
experiência, nos diz, é o primeiro produto, sem dúvida, de nosso entendimento. Mas não é um fato
simples; é um composto de dois fatos opostos, a matéria e a forma. O fator material se nos dá em
nossas percepções sensíveis; o fator formal se acha representado por nossos conceitos científicos.
Estes conceitos, os conceitos do entendimento puro, são os que emprestam aos fenômenos sua
unidade sintética. O que denominamos unidade de um objeto não pode ser outra coisa que a
unidade formal de nossa consciência na síntese do múltiplo de nossas representações. Dizemos
que conhecemos um objeto quando produzimos unidade sintética na multiplicidade da intuição e só
então.

1
Retirado de: CASSIRER, Ernest Um Ensaio Sobre o Homem. Trad: Luís Washington Vita. In: VITA, Luis Washington
(org.) “Momentos Decisivos do Pensamento Filosófico”, São Paulo, ed. Melhoramentos,1964.

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