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Título original:
IN HIS IMAGE - THE JEWISH PHILOSOPHY OF MAN AS
EXPRESSED IN RABBINIC TRADITION
Copyright © 1960 by Samuel Belkin
Publicado pela Abelard-Schuman Limited - USA

Direitos de edição desta obra em língua portuguesa adquiridos pela


EXODUS EDITORA

em parceria com a
EDITORA E LIVRARIA SÊFER LTDA.
Alameda Barros, 893 CEP 01232-001 São Paulo SP Brasil
Tel. 3826-1366 Fax 3826-4508 sefer@sefer.com.br
Livraria Virtual: www.sefer.com.br

Tradução Beatriz Telles Rudge e


Derval Junqueira de Aquino Neto
Revisão Técnica Uri Lam
Edição Final Jairo Fridlin
Editoração Eletrônica Eliana Merlino
Capa Dagui Design
Fotolitos, Impressão
e acabamento OESP Gráfica

Nota:: Nesta obra, as citações da Torá foram extraídas do livro TORÁ –


A LEI MOISÉS, do Rabino Meir Matzliah Melamed (Editora Sêfer, 2001).

Observação: Nas palavras transliteradas, adotou-se o “ch”


para o som de “rr”, como carro em português.

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio,


sem a autorização expressa da Editora e Livraria Sêfer Ltda.

2003
ISBN 85-85583-51-7
Printed in Brazil
7

Gostaria de expressar minha gratidão ao Professor


Sidney B. Hoenig e ao Professor David Mirsky, ambos
membros da Yeshiva University. O primeiro assumiu a difícil
tarefa de verificar as referências citadas no livro, o que
contribuiu imensamente para a precisão do texto; também
fez muitas sugestões que considerei muito instrutivas. O
último foi de grande ajuda ao editar e revisar o texto, e
auxiliou-me com preciosas sugestões em matéria de estilo.
Sou particularmente grato a ambos, pois a carga do trabalho
administrativo poderia ter tornado impossível – parti-
cularmente para mim – assumir tarefas que exigem tanta
dedicação. Todavia, nenhum deles deve ser responsabilizado
por qualquer imprecisão aqui escrita. Assim também, com
um profundo sentido de humildade, não espero ser perfeito.

Também sou grato ao senhor Jacob Dienstag, proprie-


tário da Gottesman Library da Yeshiva, por me auxiliar com os
livros necessários; e ao senhor Joseph Ellenberg, Secretário
da Presidência da Yeshiva University, que aliviou-me de uma
série de questões técnicas associadas a esta publicação.

É minha esperança e minha prece – graças ao Todo-


Poderoso – que este livro sirva como um guia para todos os
judeus em seus esforços para compreender e viver de acordo
com os ideais mais elevados do judaísmo e seu estilo de vida.

SAMUEL BELKIN
9

ÍNDICE

Introdução
Judaísmo: uma Teocracia Democrática....................................... 13

1 O Homem e o Mundo................................................................... 19
A Crença no Monoteísmo................................................................ 19
O Propósito das Mitsvot...................................................................21
Justiça Social: um Resultado, Não Uma Causa........................ 23
Mitsvot e Razão...................................................................................26
Eleição e “Pertencer a Deus”..........................................................29
A Crença em Deus como o Man’hig (Dirigente).........................31

2 O Homem e o Pecado....................................................................33
A Relação Íntima do Homem com o Seu Criador......................33
A Confissão como Forma de Expiação........................................ 37
Restituição e Arrependimento....................................................... 39
Punição Corporal e Indenização Monetária..............................41
Restituição: um Ato Moral.............................................................. 43
Restituição Depois de Aquisição Ilegal.......................................45
Crime Contra o Homem, Pecado Contra Deus..........................46
O Sacrilégio do Assassino...............................................................48
Crime: a Negação do Divino...........................................................50
O Arrependimento do Pecador e a Rebelião do Justo............. 53
O Pecador e Sua Penitência.............................................................54
Auto-Exílio do Penitente..................................................................55

9
10 A FILOSOFIA DO TALMUD

3 A Igualdade entre os Homens.................................................. 59


Nenhum Ser Humano é Infalível...................................................59
Igualdade de Responsabilidades..................................................63
Realeza..................................................................................................65
O Rei como Juiz.................................................................................. 71
O Rei e a Lei.........................................................................................72

4 O Ser Humano e sua Credibilidade........................................77


Só Um Pode Julgar Sozinho............................................................77
Maioria de Um....................................................................................78
Maioria de Ações Humanas na Balança Divina......................79
A Honestidade Intelectual de Cada Juiz.....................................80
A Minoria Discordante.....................................................................81
Pela Boca de Duas Testemunhas...................................................82
Os Direitos Legais e a Credibilidade do Homem..................... 85
Garantia de Credibilidade.............................................................. 88
A Credibilidade Presumida de Uma Pessoa..............................90
Fazer Algo Errado Não é Uma Mancha Permanente..............93

5 O Caráter Sagrado da Vida Humana......................................95


O Valor Sagrado do Indivíduo.......................................................95
Teu Irmão Deve Viver Contigo........................................................96
O Dever de Arriscar Uma Vida Para Salvar Outra...................97
O Caráter Sagrado de Uma Vida..................................................100
Corpo e Alma.....................................................................................102
O Direito do Homem à Dignidade...............................................104
O Direito à Liberdade da Pessoa..................................................107
Servidão de Propriedade e de Pessoa.........................................110
Empregador e Empregado..............................................................111

6 A Comunidade................................................................................115
O Indivíduo e a Comunidade.......................................................115
Os Direitos da Comunidade.........................................................117
As Leis das Multas..........................................................................119
Leis e Impostos da Comunidade.................................................121
Direitos dos Vizinhos......................................................................122
O Direito do Homem à Privacidade e à Paz.............................124
ÍNDICE 11

Não Destruirás................................................................................... 126


Kidush Hashem e Chilul Hashem......................................................127

7 O Homem e a Consciência Pública..........................................131


A Solidariedade do Indivíduo com a Comunidade.................131
A Responsabilidade do Homem com o Mundo........................133
Todos os Judeus são Responsáveis uns pelos Outros............ 137
A Responsabilidade Moral dos Líderes da Comunidade......140
A Vontade da Comunidade.............................................................142
Vida Pública e Erudição...................................................................146
Vida Pública em Consideração aos Céus....................................150
Vida Pública não é Profissão..........................................................152
Autocrítica dos Líderes....................................................................154
Responsável por seu Irmão.............................................................156

8 O Homem e sua Família...............................................................159


Pais e Filhos.........................................................................................159
A Lei do Filho Rebelde......................................................................166
Responsabilidade dos Filhos por suas Ações...........................170
O Mérito dos Patriarcas................................................................... 174
Obrigações Legais do Casamento.................................................175

9 O Homem: sua Intenção, Palavra e Ação.............................181


Pureza de Intenção............................................................................181
Intenção Não Cumprida..................................................................183
Intenção Não Revelada....................................................................184
Desejar Aquilo que Pertence a Outro........................................... 187
A Inviolabilidade da Palavra do Homem...................................189
A Palavra Dada.................................................................................. 192
Ação: Direta e Indireta......................................................................196
Articulação e Ação............................................................................ 201
Ações Ilegais sob Coação.................................................................203
Passar Informação sob Coação......................................................204
Omissão sob Coação.........................................................................205
Os Três Pecados Capitais sob Coação......................................... 206
O Homem Sempre é Advertido...................................................... 207
12 A FILOSOFIA DO TALMUD

10 O Homem e a Lei Superior.........................................................211


Conhecimento da Lei........................................................................211
Justiça Estrita e Lei Superior...........................................................213
O Limite da Lei................................................................................... 214
Justiça e Misericórdia....................................................................... 215
Vontade Divina e Consciência Humana.....................................217
Graus nas Leis Superiores.............................................................. 218
A Mishná do Justo............................................................................. 220
Paz e Justiça........................................................................................ 221
Imparcialidade e Paz........................................................................223
Suas Vias são Vias Agradáveis......................................................224
Meio Escravo, Meio Livre................................................................ 225
Tribunais do Homem e Tribunais dos Céus.............................. 226
A Lei Superior do Judiciário e a Prerrogativa............................228
O Homem e o Tribunal Divino.......................................................230
Amor a Deus Através de um Comprometimento Total...........234
Amor Através do Conhecimento...................................................238
Amor ao Homem: A grande Regra da Torá................................ 241

Notas.....................................................................................................247
Sobre o Autor................................................................................... 265
13

INTRODUÇÃO

JUDAÍSMO: UMA TEOCRACIA DEMOCRÁTICA

M uitas tentativas têm sido feitas para formular uma abordagem


coerente e sistemática da teologia judaica. Todavia, todas elas têm
fracassado, pois o judaísmo nunca se preocupou muito com doutrinas
lógicas. Ao invés disso, buscou desenvolver um corpo de práticas e um
código de atos religiosos que estabelecessem um modo de vida religioso.
É verdade que esses atos e práticas derivam de conceitos teológicos e
morais básicos; porém, de forma muito significativa, essas teorias
teológicas judaicas permanecem sempre ocultas, apreensíveis somente
através das práticas religiosas a que deram origem. Por isso, grandes
filósofos e eruditos do Talmud chegaram a um consenso maior em seu
Minian Hamitsvot – a classificação dos 613 mandamentos religiosos que a
Torá coloca para o judeu – do que em suas tentativas de apresentar os
princípios judaicos básicos na forma de artigos de fé. Moisés Maimônides
relaciona treze princípios básicos, porém Iossef Albo estabelece apenas
três1 . Portanto, é inútil tentar descobrir um corpo de doutrinas articulado
e organizado que possa ser caracterizado como uma “Teologia Judaica”
no sentido pleno do termo. No judaísmo, crenças e teorias religiosas não
podem ser separados da prática.
O primeiro judeu a procurar apresentar uma teologia judaica
provavelmente foi o grande filósofo Filo de Alexandria (Philo Judaeus); no
entanto, até mesmo ele estava mais interessado em uma filosofia do
judaísmo – ou melhor, em uma filosofia da prática judaica – do que no
simples dogma teológico. Filo não seguiu nem os estóicos, que consideravam

13
14 A FILOSOFIA DO TALMUD

a teologia um ramo da medicina, nem Aristóteles, que concebia a teologia


como um ramo da filosofia. A seu ver, a teologia é parte do ramo mais
elevado da filosofia – a Ética – e diz respeito ao culto a Deus e à regulamen-
tação da vida humana de acordo com as leis Divinas da Torá.2 Portanto,
em um certo sentido, Filo deu voz ao conceito judaico fundamental de que
a teologia e as regras de conduta humana são praticamente inseparáveis.
Josefo, o grande historiador, ao definir o judaísmo para um mundo
não-judaico, estava tão ciente desse conceito fundamental que sentiu a
necessidade de cunhar um novo termo para expressar a singularidade da
religião judaica. A palavra que escolheu foi “teocracia”, e ele escreveu:
“Algumas pessoas delegaram poderes políticos supremos a monarquias,
outros a oligarquias, e outros ainda às massas. Nosso legislador, Moisés,
não teve atração por nenhuma dessas formas de constituição política,
mas deu à sua constituição a forma que – se nos for permitida uma
expressão forçada – pode ser chamada de teocracia”.3 Isto, ele explica,
significa “colocar toda a soberania nas mãos de Deus”.4
De acordo com os termos da própria definição de Josefo, a
caracterização do judaísmo como uma teocracia é verdadeira. O judaísmo
sustenta que a soberania do homem é dependente da soberania de Deus;
que um homem deveria ver cada ato que desempenha como a realização
do desejo do Reino dos Céus. Este é o significado das sempre repetidas
determinações talmúdicas de que o homem deveria agir “de acordo com
os Céus”, e tomar sobre si mesmo o “jugo do Reino dos Céus”.5
Ao se aceitar isto como um conceito fundamental no judaísmo,
torna-se claro por que é inútil aos pesquisadores do judaísmo histórico
tentar descobrir ou investigar dogmas teológicos abstratos. A pesquisa
deveria, isto sim, buscar desvendar os motivos religiosos que
fundamentam o corpo da prática judaica e o conceito judaico de
moralidade. A filosofia – ou se preferirem, a teologia – do judaísmo está
contida em boa parte na Halachá – o sistema jurídico judaico – que se
preocupa não com a teoria, mas primordialmente com a prática. Portanto,
é na Halachá que a filosofia do judaísmo deve ser procurada.
Infelizmente, esta não é a direção que a pesquisa moderna sobre
judaísmo tem tomado. Ao invés de procurar explorar os motivos
espirituais e religiosos que determinam o pensamento talmúdico, a
erudição judaica moderna tem buscado explicar o judaísmo em termos
que lhe são alheios e que não se aplicam a ele, e tentado enquadrar até
mesmo aquelas práticas e rituais que definem o relacionamento do
INTRODUÇÃO 15

homem com Deus nos moldes das teorias sociológicas e econômicas


atuais. De repente, um Sábio torna-se um “liberal” e outro um
“conservador”; acredita-se que o primeiro tenha um modo de vida
“progressista” enquanto o último é taxado de “reacionário”.
É claro que as divergências entre fariseus e saduceus estavam, de
certo modo, relacionadas à vida social e econômica da comunidade, e o
mesmo vale para as diferenças haláchicas no meio dos Tanaím (Tanaítas),
os Sábios mishnáicos. Entretanto, na maioria das vezes essas divergências
não surgiam de causas sociais ou econômicas, tampouco os que
divergiam estavam interessados em defender uma classe social contra a
outra. Os Tanaím estavam interessados, acima de tudo, em criar um
código de vida através do qual o homem, em suas práticas diárias,
pudesse servir melhor a Deus, segundo um sistema tal que os deveres
do homem para com seus semelhantes fossem parte integrante dos seus
deveres para com seu Criador.
O principal interesse dos nossos Sábios era encontrar um sistema
pelo qual o homem, em sua conduta, pudesse aplicar os princípios
religiosos básicos expostos na Torá. Confrontadas com os conceitos
ocidentais práticos de justiça social, as leis talmúdicas – registradas na
Mishná, na Tossefta, no Midrash Haláchico e na Guemará – parecem quase
impraticáveis. De fato, vistas de um ponto de vista secular e social, muitas
leis talmúdicas são difíceis de entender ou compreender. Porém, isto se
dá apenas porque os princípios fundamentais – e até mesmo as regras
de procedimento da lei talmúdica – provêm de profundos conceitos
religiosos e teológicos e, definitivamente, não se baseiam em teorias
sociais. As leis relativas ao “crime”, por exemplo, resultam muitas vezes
do conceito religioso de “pecado”, e as leis que governam a vida da
comunidade derivam diretamente do conceito talmúdico relativo ao
caráter sagrado da personalidade individual. As leis dos “tribunais do
homem” são vistas como reflexos das “leis dos Céus”, e as normas de
conduta do homem em suas relações com o próximo são governadas
pela relação do homem com Deus. A “praticidade” humana ou social
nunca foi aceita como um fator determinante na lei judaica.
Nossos Sábios ocasionalmente instituíram leis práticas, mas apenas
quando sentiam que as regras fortaleceriam a crença e a prática religiosa,
aproximariam o homem de Deus e o ajudariam a atingir o objetivo final
da penitência. Invocando a autoridade talmúdica, às vezes eles aprovavam
leis para ajudar os pobres ou para assegurar uma conduta correta no mer-
16 A FILOSOFIA DO TALMUD

cado; algumas vezes decretavam leis rigorosas para a proteção das mulhe-
res. Estas leis práticas eram classificadas como tacanót, ou seja, estatutos
necessários para proteger e ajudar os penitentes, os pobres e os fracos. O
exemplo clássico de uma tacaná, o Prosbol,6 foi decretada para ajudar o
devedor necessitado de um empréstimo e não para proteger o credor.
Na medida em que se estuda essas inovações talmúdicas ou tacanót,
torna-se muito claro que os Sábios eram relutantes em decretá-las. Eles
teriam preferido muito mais manter intactas as práticas estabelecidas nas
leis da Torá, e somente decretavam tacanót quando se sentiam obrigados,
sobretudo para apoiar e fortalecer a conduta religiosa da comunidade.
Dada esta compreensão do corpo de práticas judaicas como uma lei
Divina projetada para a proteção e defesa do indivíduo, o judaísmo pode
muito bem ser caracterizado como uma “teocracia democrática”, usando
o termo “teocracia” no sentido que Josefo lhe deu, e não como é entendido
pelos intelectuais de hoje. É uma teocracia, pois a força motriz da
moralidade judaica não é a proteção do Estado ou da comunidade de
forma abstrata, ou de nenhuma forma de governo humana. Todo o sistema
da moralidade judaica deriva e é fundado no conceito da soberania de
Deus. É uma democracia pois, diferente de qualquer outro sistema legal, o
código talmúdico coloca toda a ênfase no valor e caráter sagrado infinitos
do ser humano. No judaísmo, o reconhecimento do demos – o valor
individual e infinito da sua personalidade – é uma conseqüência
necessária da aceitação do theos de Deus (do Seu governo), uma relação
resumida na frase “teocracia democrática”.
Se o segundo elemento na frase deve ser entendido no sentido dado
por Josefo, o primeiro elemento é usado conforme a definição de Filo,
que procurou explicar a constituição política da Torá a um mundo não
judaico. De acordo com Filo, a democracia é “a melhor e a mais tolerável
das constituições”. 7 Deve se entender que Filo não usou o termo
“democracia” no sentido moderno de um governo eleito por toda a
população, em que cada pessoa tem o direito de ter um mandato.8 Para
Filo, a democracia, como uma forma ideal de governo, “honra a igualdade
e tem a lei e a justiça como seus governantes”.9 Pouco importava a Filo
se, na antiga constituição política do judaísmo, o governo funcional
fosse baseado em uma monarquia, em uma aristocracia ou em uma casta
sacerdotal. Para ele, o judaísmo significava a soberania de Deus conforme
revelada na Torá, a constituição Divina que tem como objetivo a extensão
da justiça para todos. Foi neste sentido que Filo caracterizou o judaísmo
INTRODUÇÃO 17

como uma democracia e, como apontou o professor Harry Wolfson, ele


praticamente cunhou o termo “teocracia” mais tarde usado por Josefo
para descrever o Estado Mosaico.10
A filosofia do judaísmo se apóia nestes princípios gêmeos – a
soberania de Deus e o caráter sagrado do indivíduo. Enunciada não
simplesmente como uma teoria, esta filosofia está claramente refletida
na Halachá. De fato, somente através de uma compreensão apropriada
do conceito judaico de Reino Divino e valor humano é que podemos
entender plenamente muitas instituições legais e espirituais do judaísmo.
Também é verdade, porém, que uma vez que o judaísmo está mais
interessado na prática do que na teoria, apenas um exame de perto da
lei judaica pode revelar as suas bases filosóficas.
Este estudo é uma tentativa nessa direção. Ao definir, em termos
“semipopulares”, conceitos talmúdicos básicos, e ao estudar as leis
sancionadas pelos rabinos para governar as várias áreas da atividade
humana, busca-se descobrir as doutrinas religiosas que inspiram as
definições legais de homem e sociedade no judaísmo. Não sendo um estudo
sistemático da lei talmúdica, e longe de ser completo, este trabalho toca
em apenas alguns poucos conceitos fundamentais do modo como são
revelados na literatura talmúdica, para demonstrar como a moral judaica
e os princípios religiosos se manifestam nas regras de conduta e prática
formuladas pela Halachá.
19

Capítulo 1

O HOMEM E O MUNDO

A Crença no Monoteísmo

S ubjacente à estrutura espiritual do judaísmo está a crença firme, mas


não especulativa, no monoteísmo – a crença no Deus que criou o
mundo e que o governa com justiça e retidão. A responsabilidade religiosa
do homem é cultuar o Criador e se recusar a cultuar o que não é o Criador.
O judeu, portanto, não deve venerar as coisas criadas que vieram à
existência. Ele está proibido de adorar qualquer objeto material
inanimado ou ser humano, não importando o grau de grandeza ou de
santidade daquele determinado ser humano. Com efeito, ainda que o
judeu reverencie a Torá que, segundo os Sábios, foi usada por Deus
como instrumento arquitetônico para a criação em geral,1 não lhe é
permitido adorá-la. Além disso, é proibido ao judeu representar Deus
através de qualquer forma ou símbolo material, mas não somente porque
a crença na invisibilidade de Deus negue que Ele possa ser representado
de forma visível; a alma, também, embora invisível, não pode ser objeto
de adoração porque também ela é criada.
Este conceito, incompreensível até mesmo para um amplo segmento
de pessoas religiosas no mundo inteiro, é fundamental no judaísmo. Ele
representa, num certo sentido, a compreensão judaica do que é a crença
no monoteísmo puro: a recusa em cultuar, enquanto essência ou enquanto
símbolo, qualquer coisa que represente aquilo que é criado. O judeu
religioso, portanto, opõe-se ao politeísmo, que nega a existência de um só
Criador e Governante do mundo. Ele se opõe do mesmo modo ao
panteísmo moderno, que dota o mundo físico com a natureza de Deus.
Para o judeu, a Criação não é o Criador. O mundo não é somente a
conseqüência da unidade Divina final, como pensavam os antigos filósofos
gregos, nem Deus e o mundo são uma coisa só.

19
20 A FILOSOFIA DO TALMUD

O judeu rejeita a idéia de que o mundo funciona independentemente


de Deus. Ao mesmo tempo, recusa-se a identificar o mundo com a natureza
de Deus, um ato que seria o mesmo que negar a Ele uma existência indepen-
dente e eterna. No entanto, ele se apega firmemente à crença – e a aceita
como uma premissa fundamental – de que o mundo, enquanto criação do
Eterno, está investido de santidade; e que a pessoa, criada à imagem de
Deus, está investida de uma centelha Divina. O universo, que passou a
existir através do ato livre de criação por parte de Deus, possui necessaria-
mente um caráter sagrado. Além disso, uma vez que o próprio homem foi
criado à imagem de Deus, a pessoa é superior a todas as outras formas de
criação. Portanto, segundo o Sábio mishnáico Shimon ben Azai, o fato de o
homem ter sido criado à imagem ou à semelhança de Deus é o princípio
mais compreensível bem como a principal fonte da moralidade da Torá.1a
Esta premissa também determina a atitude do judeu em relação ao
mundo criado; aceitando-a, o judeu jamais pode olhar o mundo e as coisas
do mundo como más. Ao contrário, ele sempre tenta descobrir como usufruir
as coisas da Criação sem separá-las de seu Criador. Além disso, como o
mundo é criação de Deus, é legalmente propriedade Dele. Todas as coisas
criadas pertencem a Deus. Portanto, é dever básico do homem, que foi
criado à imagem de Deus, lutar continuamente e do modo mais profundo
e intenso para desenvolver um sentimento de pertencer ao seu Criador.
Somente quando o homem compreende que não possui a propriedade
permanente e real tanto de si mesmo quanto das coisas criadas em geral, e
de que todas as coisas criadas pertencem ao Criador, é que ele pode começar
a se relacionar com Deus e estabelecer um relacionamento íntimo com Ele.
Como a pessoa é marcada com a semelhança a Deus, é dever do
homem preservar esta semelhança e mantê-la tanto física quanto
espiritualmente em forma. Hilel Hazakên (o Ancião) percebeu nas
palavras da Torá, “à imagem de Deus Ele criou o homem”,2 uma
determinação ao homem para manter seu corpo limpo através da higiene.
O Sábio ensinou aos seus discípulos: “Se há homens incumbidos de
manter limpas as imagens de reis temporais expostas em locais públicos
e são recompensados por este trabalho, tanto maior é a minha res-
ponsabilidade, que fui criado à imagem de Deus”.3
Além disso, uma vez que a Criação é de propriedade do Criador, a
autodestruição é um sacrilégio – e o assassinato é o maior de todos eles.
Enquanto pode se usar os objetos da Criação em benefício da mesma, é
proibido destruir sem motivo qualquer objeto da Criação, quanto mais
O HOMEM E O MUNDO 21

aquele que está no topo da escala – o homem. O ser humano tem o dever
supremo, portanto, de sempre reconhecer e cultuar o Eterno, e estar
preparado para morrer, ao invés de cultuar qualquer objeto da Criação.

O Propósito das Mitsvot

Uma compreensão desse princípio fundamental do judaísmo nos


dá um verdadeiro vislumbre acerca da natureza e propósito das mitsvot,
os mandamentos que o homem deve cumprir. Quando um judeu cumpre
os mandamentos positivos e negativos da Torá, ele está, de certo modo,
fazendo o seguinte pronunciamento: “Eu não sou o senhor completo do
mundo nem de mim mesmo; eu não possuo autoridade ilimitada sobre
as coisas da Criação e, portanto, tudo o que eu fizer ou deixar de fazer
com as coisas da Criação depende da vontade do dono da Criação – o
próprio Deus”. Esta atitude, traduzida na forma de ação através do
cumprimento das mitsvot, reafirma a crença do homem no governo de
Deus e no caráter sagrado da Criação. Isso o leva indiretamente a um
estado mais próximo do tsadic, o justo.
Este conceito não se limita apenas às coisas materiais, conforme é
indicado pelo comentário dos nossos Sábios sobre os versículos, “Mas a
alma que o fizer propositadamente, do natural e do prosélito, ao Eterno ela
blasfema, e será banida aquela alma dentre o seu povo. Porque a palavra do
Eterno desprezou e Seu mandamento violou...” 4 A Torá não especifica aqui
a ofensa particular cometida. Um Sábio, Rabi Ishmael, interpreta o versículo
como se referindo a quem cultua os ídolos; porém outro, Rabi Meir, diz que
a lei se dirige a uma pessoa que é versada na Torá mas se recusa a passar
o seu conhecimento a outros.5 Este homem é arrogante e despreza Deus,
declara Rabi Meir. A intenção de Rabi Meir é óbvia: ele nos ensina que
nem o próprio conhecimento deve ser considerado como uma aquisição
ou uma realização pessoal, pois este também não passa de uma doação
de Deus; recusar-se a partilhar o conhecimento com os outros é, de fato,
desprezar Deus, a quem pertencem todas as coisas. Filo, que registrou
muitas vezes em seus escritos antigas tradições judaicas, também
reconheceu nestes versículos proibições bíblicas contra a arrogância, que
leva o homem a considerar-se Deus; e contra o egoísmo, que leva o homem
a perceber todos os seus dons naturais, intelectuais e físicos, como bens
pessoais, ao invés de considerá-los como presentes temporários de Deus.6
22 A FILOSOFIA DO TALMUD

Este conceito é a chave para uma verdadeira compreensão das leis


que exigem que o homem pronuncie uma bênção antes de utilizar os
frutos da Criação. O Talmud afirma:

“É vetado ao homem desfrutar qualquer coisa sem pronunciar


uma bênção, e quem quer que desfrute qualquer coisa neste mundo
sem uma bênção, comete uma transgressão contra coisas sagradas
[e]... é tão culpado como se tivesse se deleitado com coisas
dedicadas aos Céus, pois está escrito: ‘Do Eterno é a terra e tudo
que nela existe’. (Salmo 24:1) Rabi Levi levantou a questão: Em
uma parte está escrito, ‘Do Eterno é a terra e tudo que nela existe’,
e em outra parte está escrito, ‘Quanto aos céus – os céus são do
Eterno, mas a terra Ele deu aos filhos do homem’. (Salmo 115:16) A
resposta é que o primeiro versículo se aplica à condição do homem
antes de pronunciar a sua bênção; o segundo se aplica à sua
condição após a pronúncia da bênção”.7

Em outras palavras, para os nossos Sábios, toda a Criação é tão


sagrada quanto as coisas dedicadas aos Céus, pois a Criação pertence ao
Criador. Portanto, um homem deve, antes de usufruir aquelas coisas que
são permitidas para seu sustento e prazer, pronunciar uma berachá
(bênção) sobre elas para reconhecer que todas as coisas pertencem a Deus
e que são usadas somente sob Sua permissão.
Este conceito é ainda mais desenvolvido por Filo. Ele, mais do que
qualquer outro filósofo judeu, expressou o ponto de vista de que a Criação
pertence ao Criador e de que, qualquer que seja o domínio que o homem
tenha sobre a Criação, este é limitado e dependente da vontade de Deus.
De fato, a maior parte do seu tratado De Cherubim é dedicada a este conceito.
Nele, ele escreve:

“Nenhum mortal pode, de fato, ser senhor de coisa alguma...


somente Deus pode alegar com justiça que todas as coisas Lhe
pertencem... dessa soberania do Absolutamente Existente, o oráculo
é uma verdadeira testemunha nestas palavras: ‘E a terra não será
vendida em perpetuidade, porque Minha é a terra, pois peregrinos e
moradores da terra vós sois para Mim’. (Levítico 25:23) Certamente
uma prova clara de que todas as coisas são propriedade de Deus e
que pertencem aos seres criados apenas como empréstimo... Por-
O HOMEM E O MUNDO 23

tanto, aquele que tem o usufruto não se torna com isso o proprietário,
pois há um Deus e Possuidor de tudo que dirá, com absoluta razão,
‘Toda a terra é Minha’, (que é o mesmo que ‘Toda Criação é Minha’),
‘mas vós sois para Mim peregrinos e moradores’.” 8

Assim, a Torá regula o que nós podemos usufruir e o que não


podemos, e sob quais condições nos é possível o uso das coisas deste
mundo. Comentando o mesmo versículo citado por Filo na passagem
acima, nossos Sábios ensinaram:

“A terra não será vendida em perpetuidade” – de forma absoluta,


irrevogável – “pois toda a terra é Minha” – não o vejais com tristeza,
pois “vós sois para Mim peregrinos e moradores”. Não façais de
vós o principal, pois “diante de Ti não passamos de estrangeiros e
peregrinos como todos os nossos pais” (1 Crônicas 29:15). E assim
David declara: “Pois um estrangeiro sou Contigo, residente como
todos os meus antepassados”. (Salmo 39:13) – para nos ensinar
que é suficiente para um servo que ele é como o seu Amo; “Quando
isto for Meu, é teu”.9

Tanto o Sábio quanto o filósofo reconheceram a posse temporária,


pelo homem, da criação de Deus.

Justiça Social: Um Resultado, Não Uma Causa

O grau de penetração deste conceito no judaísmo é indicado pelas


razões dadas por nossos Sábios à Lei do Ano Sabático. A Torá afirma:
“Durante seis anos semearás o teu campo; durante seis anos podarás a
tua vinha e recolherás os produtos dela. Mas no sétimo ano a terra terá
seu descanso sabático, um Shabat (sábado) para o Eterno: não semearás o
teu campo e não podarás a tua vinha”. 10
Nossos Sábios se recusam a designar motivos puramente
econômicos, políticos ou sociais para esta lei. Rabi Abahu responde à
questão: qual é a razão para a lei do ano sabático? Ele afirma: “O
Santíssimo, bendito seja, disse ao Povo de Israel: ‘Semeie durante seis
anos e deixe a terra descansar no sétimo ano, para que saibam que a terra
é Minha!’ ” 11 De fato, uma leitura cuidadosa do capítulo 25 do Levítico
24 A FILOSOFIA DO TALMUD

revela claramente que, por trás de todas as leis do ano sabático e do ano
do Jubileu (durante o qual a propriedade é devolvida aos seus proprietários
originais e os servos são emancipados) está o conceito de que a Criação
pertence ao Criador e de que o homem não pode adquirir a posse
permanente de patrimônio ou de seres humanos.
Enraizadas neste conceito religioso, estas leis devem por si mesmas
assegurar justiça aos pobres, aos servos, aos comerciantes e à comunidade
em geral. Mas este não é o seu principal objetivo: o que faz estas leis vivas
é a crença religiosa de que o homem não adquire a propriedade
permanente de coisa alguma neste mundo, pois este pertence a Deus.
Portanto, ao observar estas leis, o judeu, por meio de suas ações, reafirma
um dos princípios fundamentais da Torá.
Filo também compreendeu este verdadeiro significado das leis
relativas ao Jubileu. Ele escreve: “Não pague o preço da propriedade
completa, mas somente por um número fixo de anos e por um limite abaixo
de cinqüenta. Pois a venda não deve representar a propriedade real, mas
seus frutos... (pois) toda a terra é considerada propriedade de Deus e vai
contra a justiça que a posse de qualquer coisa que seja propriedade de
Deus esteja registrada por outros senhores”.12
De modo semelhante, a Mishná também expressa a idéia de que todas
as coisas da Criação são propriedade de Deus: “Rabi Elazar de Bartota
disse: ‘Dai a Ele o que é Dele, pois tu e o que possuís a Ele pertencem’. Isto
também foi dito por David: “Porque tudo vem de Ti e a Ti sacrificamos o
que recebemos de Tua mão” (1 Crônicas 29:14).13
Este conceito também se aplica à vida humana. Refletido em muitas
passagens midráshicas, encontra uma aplicação precisa e notável na
história da tragédia pessoal de Rabi Meir. Dois dos filhos de Rabi Meir
morreram no Shabat (sábado) enquanto ele estava ocupado com seus
estudos no Beit Midrash. Quando o Sábio voltou para casa no sábado à
noite, sua esposa Beruria, conhecida por sua sabedoria e bondade, não o
informou imediatamente da grande tragédia. Ao invés disso, fez uma
pergunta pontual: “Ontem, um homem me entregou um depósito; agora
ele pede que eu o devolva. Devo fazê-lo?” Rabi Meir respondeu: “Minha
esposa, que pergunta espantosa! Certamente o depositário deve devolver
o depósito”. Porém quando Rabi Meir viu seus dois filhos estendidos
mortos diante dele, ficou desesperado. Beruria então o consolou: “Você
não disse que o depositário deve devolver o depósito ao seu dono? Pois
bem, Deus deu e Deus tomou de volta. Que o nome do Eterno seja bendito!”14
O HOMEM E O MUNDO 25

Parece que era prática corrente consolar os enlutados, lembrando-os


de que a vida é somente um depósito Divino mantido pelo homem e que
Deus, o Depositante, pode requisitar a qualquer momento o resgate do
Seu depósito.15 Para Filo, o pensamento mais consolador possível em
casos de tragédia é o de que a vida é somente um empréstimo que nos foi
concedido por Deus.16 Pelo mesmo raciocínio, ele recorda a tradição judaica
de que a pessoa não deve mergulhar de forma exagerada no pesar. Enlutar-
se pelos mortos mais do que o necessário é sinal de egoísmo, uma
declaração indireta de que a vida humana, particularmente aquela de
parentes próximos, é propriedade de alguém, e não de Deus.17
A importância central desta noção de propriedade Divina no
judaísmo é demonstrada ainda por algumas particularidades do serviço
no Beit Hamicdash (Templo). A tradição registra que todos os dias um
capítulo especial dos Salmos era recitado no Templo. O grande Sábio
Rabi Akiva relatou que no primeiro dia da semana os Levitas liam, como
fazemos atualmente em nossas orações, o Salmo 24: “Do Eterno é a terra e
tudo que nela existe”. Este salmo foi escolhido pois declara que “Deus
adquiriu a possessão do mundo e o destinou à humanidade, mas Ele
permanece sempre o Senhor de Seu mundo”.18
Está claro que o conceito de que a Criação pertence ao Criador não é
um princípio isolado no judaísmo. Com efeito, toda a estrutura do judaísmo
está apoiada nisto. O código moral da Torá, seus pronunciamentos rituais
e a obrigação do homem de observar as leis, saiba ou não as razões para
elas, derivam deste princípio. Deus instruiu o homem, por meio da Revelação,
com respeito ao que lhe é permitido ou proibido fazer com a Sua Criação.
Se o homem possuísse irrevogavelmente as coisas da Criação, se a sua
vida lhe pertencesse, então sua própria razão poderia lhe dizer como usá-
la; ele teria até permissão de abusar dela. Porém, como a Criação é de
Deus, somente Ele pode ditar os termos das posses do homem neste mundo.
O conhecimento da lei de Deus é tão importante que o estudo da
Torá trata em primeiro lugar da questão do tempo de um homem. Este
conceito teve sua expressão máxima através de Rabi Ishmael, que
acreditava que deveria ser o desejo de Deus que o homem dedicasse toda
sua vida ao estudo da Torá e que não se ocupasse com o aprendizado
secular. Questionado se é permitido a um judeu o estudo da “sabedoria
dos gregos”, ele respondeu: “Que a estude durante o tempo que não é dia
nem noite”.19 Ele procurou enfatizar através desta resposta que é do desejo
de Deus que, em Seu mundo, o judeu deveria estudar somente a Torá.
26 A FILOSOFIA DO TALMUD

Mitsvot e Razão

O judaísmo dá uma ênfase especial às Mitsvot Maassiót, ou práticas


religiosas. Embora sejamos proibidos de cultuar as coisas criadas, o uso
das mesmas para o culto do Eterno é visto como a forma mais nobre de
cultuar Deus. Este ponto de vista está por trás da declaração de Maimônides
de que o homem deve cumprir aquelas Mitsvot cujo cumprimento não tem
nenhuma explicação racional aparente:

“Pois até a madeira, a pedra, a poeira e as cinzas se tornam


santificadas pela simples palavra da boca, desde que o nome do
Senhor do universo seja pronunciado sobre elas, e se alguém as
tratar como coisas comuns, estará cometendo uma ofensa contra
Deus; e mesmo que se cometa tal atitude inadvertidamente, exige-
se uma expiação. Ainda mais se isto estiver relacionado aos
mandamentos inscritos para nós pelo Santíssimo, bendito seja, que
um homem não deve rejeitá-los, uma vez que não pode adivinhar a
razão do seu cumprimento”.20

Maimônides declara que, quando alguém dedica um objeto material


ao Templo, ele se torna sagrado e propriedade do Altíssimo, pois
pronunciamos sobre ele o nome do seu verdadeiro Senhor; e, uma vez que
proclamamos que todas as coisas da Criação pertencem ao Criador,
nenhum ato formal de transação é necessário para tornar um objeto
propriedade do Templo. Maimônides argumenta que as leis sobre as quais
Deus pronunciou o Seu nome se tornam ainda mais sagradas.
Torna-se evidente, então, que o propósito dos sacrifícios e das doações
em dinheiro ao Templo era proclamar ativamente, pelo ato de entregar
alguma coisa a Ele, que todas as coisas são de Deus. O sacrifício era
simplesmente um sinal de gratidão a Deus, que permitiu ao homem usar
todas as coisas da Criação, as quais são, propriedade de Deus e investidas
de um certo grau de santidade. O mesmo princípio se aplica às leis dos
dízimos, dos primeiros frutos (primícias), do dízimo dos pobres, e a muitas
outras regras relativas a sacrifícios aos cohanim (sacerdotes), aos levitas e
aos pobres. O homem não podia usufruir nenhum de seus frutos até ter
separado os dízimos necessários. Toda aquisição, mesmo aquela que um
homem recebe pelo trabalho de suas próprias mãos, é sagrada e deve ser
redimida; uma parcela deve ser separada para um propósito sagrado,
O HOMEM E O MUNDO 27

para sustentar o sacerdote, o levita e o homem pobre. Através destas ações,


o homem proclama que a terra e seus produtos não são, de forma alguma,
seus. Eles pertencem primeiramente a Deus, que exige uma parcela não
por necessitar disso, mas para assegurar que os necessitados e aqueles
que se dedicam ao Seu serviço também possam se beneficiar de suas posses.
Filo, ao falar da entrega dos bicurim, os primeiros frutos, segue uma
linha de pensamento paralela:

“É sem dúvida um dever justo e religioso que aqueles que receberam


gratuitamente um suprimento generoso de substância tão
necessária, saudável e também palatável no mais alto grau, não
deveriam de forma alguma desfrutá-lo ou experimentá-lo até terem
levado uma amostra ao Doador, não tanto como um presente, pois
todas as coisas, posses e presentes são Dele; mas como uma
lembrança, por pequena que seja, pela qual eles mostram uma
disposição de agradecimento e de lealdade a Ele quem, apesar de
não precisar de nenhum favor, envia Seus favores em abundância
com uma constância que nunca falha”.21

O Midrash afirma, de forma semelhante, que é costume mundial


quando um homem entrega a sua propriedade para ser administrada por
um supervisor, ele lhe entrega a metade, um terço ou um quarto da sua
produção; porém Deus, que supervisiona toda a Criação e faz a terra
produzir, requisita apenas um décimo da produção.22
Ao comentar o versículo bíblico, “Todos os anos separarás o dízimo de
todo o produto da tua semeadura que o campo produzir” 23, o Midrash afirma:

“Disse o Santíssimo: ‘Eu te ordenei Me honrares, mas não Me dando


o que é teu. Dá-Me o que já é Meu, honra o Eterno com a substância
com a qual Ele te agraciou...’ Se dissesses que te pedi para Me dares
o que é teu, vê o que escrevi para ti: ‘Quando um bezerro, um carneiro
ou cabrito for trazido...’. (Levítico 22:27) Quando deverás oferecer
um sacrifício? Quando Eu primeiro te der”.24

Este Midrash, ao enunciar o significado dos sacrifícios e dízimos


antigos, repete o princípio básico da filosofia religiosa do judaísmo: o
homem deve reconhecer constantemente que as coisas deste mundo
pertencem a Deus. Quando um homem oferece um sacrifício ou entrega o
28 A FILOSOFIA DO TALMUD

seu dízimo com plena consciência de que está devolvendo a Deus o que a
Ele pertence, desempenha um ato religioso genuíno. Se, no entanto, ele
acredita que está dando do que é seu, seu ato é, de certa forma, um sacrilégio.
O sacrifício de um indivíduo que considera a Criação propriedade
permanente do homem, e não como um depósito temporário do Todo-
Poderoso, é de fato uma forma de suborno e um ato de superstição.
Do mesmo modo, ao comentar a ênfase dada ao pronome “a Mim”
em frases como “Toma para Mim três novilhas”,25 e “que eles Me tragam
um sacrifício”,26 Filo declara:

“Ele nos diz: Não possuis coisa boa alguma que seja tua, mas o que
quer que penses possuir, Outro forneceu. Portanto, inferimos que
todas as coisas são propriedade Dele, e não da criatura, do pedinte
que sempre estende a mão para apanhar... mesmo se apanhares,
apanhes não para ti mesmo, mas considera aquilo que é dado como
um empréstimo ou depósito e devolva-o a Ele, quem o confiou e
emprestou a ti, e assim, como é certo e justo, pagando boa vontade
com boa vontade... e assim, no texto Ele diz, ‘Pegue-o para Mim’,
dando assim a Si Mesmo o que Lhe é devido e nos instando a não
adulterar os presentes, e sim guardá-los de um modo digno do
Doador... Ele ‘toma’ para nos treinar para a bondade e para implan-
tar um cuidado sagrado, e para nos incentivar a estar a Seu serviço”.27

Compreender este conceito da posse de Deus nos dá uma idéia da


concepção judaica com relação às obrigações do homem neste mundo.
Prestar culto à Criação é uma forma de idolatria, mas prestar culto a
Deus, o Criador, através da Criação, é a essência do sagrado. Assim, quando
o homem venera seu semelhante, venera aquilo que não é Deus – um ato
de idolatria. Mas quando ele presta ajuda ao próximo, ele está, no sentido
pleno do termo, prestando culto a Deus. Ao estender sua generosidade ao
próximo que, como ele mesmo, é feito à imagem de Deus, o homem imita os
caminhos de Deus, que Se manifesta na extensão contínua da justiça e da
misericórdia pela humanidade. Assim, o Rabi Chama ben Chanina disse:

“Qual é o significado daquilo que está escrito: ‘Atrás do Eterno,


teu Deus, caminharás’? (Deuteronômio 13:5). Acaso é possível
para um homem caminhar atrás da Shechiná (a Presença Divina)?
Não está dito: ‘Pois o Eterno, teu Deus, é um fogo devorador?’
O HOMEM E O MUNDO 29

(Deuteronômio 4:24). Não; [significa] caminharás atrás dos atributos


do Santíssimo. Assim como Ele veste os desnudos, deverás vestir
os desnudos; assim como Ele visita os enfermos, deverás visitar os
enfermos; assim como Ele conforta os enlutados, deverás confortar
os enlutados; assim como Ele enterra os mortos, também tu deverás
enterrar os mortos”.28

Em muitas passagens semelhantes, nossos Sábios exortam o homem


a imitar Deus colocando em prática os seus atributos de “ser misericordioso,
gracioso, lento para a ira, abundante em bondade e verdade, grande em
amor e generosidade, e em perdoar a iniqüidade, a transgressão e os
pecados”. É espantoso notar que estes mestres nunca declaram que o homem
deveria imitar Deus em seu atributo de ser um “Deus zeloso”. A razão
encontra-se na Mechilta: “O Rabi diz: Um Deus acima do ciúme: Eu tenho
regras sobre o ciúme, mas o ciúme não tem poder sobre Mim. Eu tenho
regras para o sono, mas o sono não tem poder sobre Mim”.29 Portanto,
somente Deus, que tem regras para o ciúme, é chamado de um “Deus
zeloso”. O homem, que não tem nenhum poder sobre o ciúme, deve então
imitar Deus em Seu atributo de bondade, e não em Seu atributo de ciúme.

Eleição e “Pertencer a Deus”

Este conceito do domínio de Deus também joga uma luz, para nós,
sobre a idéia da “escolha” de Israel. O conceito da eleição do povo de
Israel, ou “Israel como o Povo Escolhido” é básico no judaísmo,
especialmente na relação do judeu com Deus. Isto implica que os judeus
apóiam a teoria da superioridade racial? Muito pelo contrário, este tipo
de pensamento é estranho à mente judaica. O judeu, seguindo a premissa
de que toda a Criação pertence ao Criador, acredita que foi como um
homem, ou seja, como a forma mais elevada da Criação, que ele fez um
pacto com Deus, seu Criador. O homem promete desenvolver uma grande
parcela de dedicação e um sentido maior de pertencer a Deus. O pacto é
cumprido somente através do cumprimento da lei Divina. É para este
propósito que o judeu é dedicado e escolhido.
Sendo verdade que todas as coisas da Criação são propriedades de
Deus, Ele designou determinadas partes da Criação como suas
propriedades privadas, com o intuito de projetar de forma mais vívida a
30 A FILOSOFIA DO TALMUD

idéia de que a Criação em geral Lhe pertence. Nossos Sábios expuseram


este conceito da seguinte maneira:

“O Santíssimo criou os dias, e tomou para Si o Shabat (Sábado); Ele


criou os meses, e tomou para Si os chaguim (festas judaicas); Ele
criou os anos e escolheu para Si o Ano Sabático; Ele criou os anos
sabáticos e escolheu para Si o Ano do Jubileu; Ele criou as Nações
e escolheu para Si Israel; Ele criou Israel e escolheu para Si os
levitas; Ele criou os levitas e escolheu para Si os sacerdotes; Ele
criou as terras e tomou para Si a Terra de Israel como um grande
sacrifício retirado do meio de todas as outras terras, conforme está
escrito: ‘A terra e tudo o que há nela é do Eterno’.” 30

O Shabat representa a idéia de que Deus é o Criador do mundo. Os


chaguim (festas judaicas), que comemoram as experiências históricas do
povo judeu, ensinam a providência particular e contínua de Deus. Os
anos sabáticos e do jubileu são uma declaração de que nenhum ser humano
tem a posse permanente das coisas criadas. Israel, ao observar a Torá e
através de sua disposição de assumir maiores responsabilidades morais,
torna-se a “porção do Eterno”, a “porção de Sua herança”. Todos os
elementos acima, bem como Érets Israel (a Terra de Israel), cuja produção
deve ser em grande parte dedicada a Deus, apontam para o conceito central
no judaísmo: “A terra e tudo o que há nela é do Eterno”.
É verdade que o universalismo de Deus é a essência do monoteísmo
judaico, mas ao lado deste conceito de monoteísmo puro está a idéia
contida no Midrash citada acima, de que desde que todo o universo é
propriedade de Deus, Ele separou certas coisas criadas como sendo
particularmente Suas. Por sua maior dedicação a Deus e por pressupor
maiores obrigações a Seu serviço, estas porções particularmente eleitas
proclamam continuamente que “A terra e tudo o que há nela é do Eterno”.
Assim, a escolha de Israel está baseada no pacto que Israel fez com Deus,
pelo qual tomou para si cumprir muitas obrigações não exigidas do resto
da humanidade.30a Através destas ações, Israel reafirma constantemente
que somente Deus governa o mundo e é o seu verdadeiro Proprietário.
Filo expressa uma noção semelhante em seu comentário sobre o
versículo, “Tu os conduzirás e plantarás sobre a montanha a Tua
herança”,31 e também em sua interpretação de outros versículos que falam
de Israel como a “porção do Eterno”. Ele comenta:
O HOMEM E O MUNDO 31

“Esta expressão se aplica aparentemente àqueles que estão em uma


posição especial de relacionamento mais íntimo com Ele como seu
Senhor. Assim, os reis são governantes de todos os seus súditos,
porém em um grau eminente de seus servos domésticos, a quem
estão acostumados a se disponibilizar para cuidar das pessoas e
de suas outras necessidades...” 32

Na mente de Filo, o conceito da escolha de Israel é, portanto,


facilmente explicado. Enquanto toda a Criação pertence a Deus, o Povo
de Israel é a porção e a herança de Deus devido à sua dedicação sagrada
como servos de Deus, o Governante de todo o universo.
Nossos Sábios chegam ao mesmo ponto a seu próprio modo. “Cinco
propriedades”, declaram, “o Santíssimo tornou Suas. São elas: a Torá, os
céus e a terra, Abrahão, Israel e o Beit Hamicdash (o Templo Sagrado)”.33
Toda a Criação é, obviamente, propriedade de Deus, porém Abrahão, que
proclamou Deus neste mundo; Israel, que pratica a Torá servindo assim a
Deus; e o Templo, que é dedicado ao serviço de Deus, são as propriedades
especiais de Deus. Ser propriedade especial de Deus exige o total
reconhecimento Dele como Senhor de todas as coisas. A escolha de Israel,
portanto, significa, acima de tudo, a dedicação do Povo de Israel ao serviço
de Deus. Ao reconhecer Deus como seu Senhor, o judeu sente que se torna
Seu servo. É somente neste sentido que os judeus, que buscam alcançar
um sentido mais profundo de pertencer a Deus através do cumprimento
da Sua Lei, são conhecidos como o “Povo Escolhido”.

A Crença em Deus como o Man’hig (Dirigente)

Portanto, a crença em Deus como o Proprietário do Universo pode


ser considerada a pedra fundamental do judaísmo. Muitos intelectuais
judeus – entre eles Maimônides, Iehuda Halevi e Nachmânides – aceitam
o primeiro dos Dez Mandamentos, “Eu sou o Eterno, teu Deus”, como um
mandamento positivo que nos ordena acreditar na existência de Deus.
Sendo apenas um dos 613 mandamentos, este em particular é, de certo
modo, a própria base do judaísmo. Nas palavras de Maimônides:

“O fundamento de todos os fundamentos e o pilar de todas as


formas de conhecimento é a compreensão de que existe um Primeiro
32 A FILOSOFIA DO TALMUD

Ser que trouxe todas as coisas à existência... Este Ser é o Deus do


universo, o Senhor de toda a terra; e Ele é o Protetor da esfera (celeste),
com um poder eterno e ilimitado... E o conhecimento desta verdade é
um mandamento positivo, como é dito, ‘Eu sou o Eterno, teu Deus’.” 34

O dever de reconhecer a existência de Deus, entretanto, não é


cumprida ao se dizer “Eu acredito que Deus existe”. Esta mitsvá exige,
acima de tudo, a crença em Deus como Eterno Proprietário e Dirigente do
Universo. Por isso Maimônides incorpora em sua crença fundamental
não apenas o conceito de Deus como o Primeiro Ser, mas também o conceito
de Deus como o Man’hig, o Dirigente do Universo.
Mais espantoso, porém, é o próprio versículo “Eu sou o Eterno, teu
Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa dos escravos”. 35 Acreditar em
Deus não é simplesmente acreditar na existência de Deus; exige que o
homem tenha fé em Deus como um redentor, um Deus de Quem depende
o nosso destino. A mitsvá de acreditar em Deus não é cumprida
pronunciando-se simplesmente “Eu acredito em Deus, que criou os céus
e a terra”. Exige uma firme crença de que Deus, por Sua própria vontade,
age favoravelmente em prol do homem. Nossa crença em Deus repousa
não apenas na nossa fé em um único ato histórico da Criação; é, acima de
tudo, uma crença Naquele que é Um e que sempre, a cada momento,
continua a guiar nossas vidas: “Mesmo do tempo em que te fiz sair da
terra do Egito, Eu sou o Eterno, teu Deus”.36
Todavia, até mesmo isso é insuficiente. O homem não deve apenas
acreditar em Deus como o Dirigente do Universo, que está direta e imediata-
mente preocupado com o bem-estar de Sua Criação; o homem também deve
moldar para si um modo de vida segundo um padrão ditado por esta crença.
Todas as suas ações e relacionamentos devem ser dirigidos por uma cons-
ciência de Deus como o Proprietário e Dirigente do Universo, motivadas por
um desejo de caminhar por Seus caminhos e cuidar de todo o Seu trabalho.
Em consonância com esta compreensão do homem e do seu lugar no
mundo, nossos Sábios buscaram desenvolver leis relativas a cada ação e
relacionamento humanos. Ao reconhecer a dificuldade que os homens
encontram em traduzir princípios abstratos em ações simples da vida
cotidiana, os Sábios buscaram viabilizar uma legislação que tocasse em
todos os aspectos da vida humana, de modo que todos os atos do homem
pudessem demonstrar a sua aceitação do “Jugo dos Céus”. Esta é a essência
e a intenção da vida haláchica.
33

Capítulo 2

O HOMEM E O PECADO

A Relação Íntima do Homem com Seu Criador

P ara o Judaísmo o monoteísmo tem uma aplicação universal; todas as


bênçãos judaicas, por exemplo, contêm a frase, “Nosso Deus, Rei do
Universo”. Porém Deus, o Rei universal, é ao mesmo tempo o Deus
particular do judeu. Abrahão proclamou um Deus universal, mas o judeu
não fica em conflito por dirigir suas preces ao “Deus de Abrahão, Deus de
Isaac e Deus de Jacob”. Na concepção judaica, Deus não é um Ser absoluto,
distante e inacessível; Ele está próximo de todos os homens.
Nossos Sábios atribuem grandeza a Abrahão, não tanto em
reconhecimento pelo fato de ter sido ele o primeiro a reconhecer a existência
de Deus, mas porque até que Abrahão o fizesse, ninguém chamara Deus
de “Senhor”.1 Do ponto de vista dos nossos Sábios, o que é importante é
que Abrahão reconheceu Deus não apenas como a principal força motora,
o Criador do mundo, mas também como seu Senhor e Soberano permanente.
No Midrash homilético Sifri este ponto é abordado de maneira notável:

“Antes que Abrahão viesse ao mundo, o Santíssimo, bendito seja,


era Soberano apenas nos Céus; nosso patriarca Abrahão (Avraham
Avinu) o fez Rei dos céus e da terra, como está escrito: ‘E te farei
jurar pelo Eterno, Deus dos céus e Deus da terra’ (Gênesis 24:3)”. 2

Para o judaísmo, portanto, o monoteísmo é acima de tudo a crença


na soberania de Deus. Geralmente caracterizada por nossos Sábios como
a crença no Reino dos Céus, ela abarca não apenas a providência universal
mas também a particular. Deus é o Pai nos Céus, e ao observar a Sua lei na
terra, o homem cria um relacionamento de pai para filho entre ele e Deus.

33
34 A FILOSOFIA DO TALMUD

Os judeus helenizados também falaram de Deus como um Pai, mas


ao pensar em termos filosóficos, eles concebiam Deus como o Pai do universo,
o Pai da Sabedoria, o Pai de todas as coisas inteligíveis e sensíveis e o Pai
da humanidade. No entanto, para os judeus de Érets Israel Deus não era
simplesmente o Pai do universo; Ele era, em um sentido amplo, o Pai de
Israel e, em particular, Pai de cada indivíduo judeu. Portanto, eles podiam
se dirigir a Deus em termos íntimos – “Bendito sejas” – e falar Dele sempre
de um modo pessoal – “Nosso Pai nos Céus” (Avinu she Bashamáyim), “Meu
Pai nos céus” (“Aví she Bashamáyim”), “o Pai dele nos céus” (“Avív she
Bashamáyim”).3 Ao comentar o versículo “Vós sois filhos do Eterno, vosso
Deus” 4, Rabi Iehuda disse: “Quando vocês se comportam como filhos, vocês
são filhos, mas quando vocês não se comportam como filhos, vocês não são
filhos”. Rabi Meir, no entanto, declarou que por ser o povo eleito, os filhos
de Israel permanecem Seus filhos mesmo quando não são dignos Dele.5
À luz desta relação íntima entre Deus e o homem – e Deus acessível
ao homem – podemos entender melhor por que é difícil encontrar na
literatura talmúdica referências à necessidade de intermediários entre o
homem e Deus. Um homem que transgredisse um dos mandamentos tinha
que trazer (ao Templo) um sacrifício pelo pecado e confessar a sua
transgressão, mas o sacerdote que sacrificava a sacrifício no altar não era
considerado um intermediário na redenção do pecado nem ouvia a
confissão do mesmo.6 O pecador confessava seu pecado em silêncio e
diretamente a Deus; no momento do arrependimento, ele se colocava em
íntima relação com Deus, como um filho ao confessar seu pecado ao pai
terreno. Por esta razão, a confissão era sempre feita em silêncio.
Mas havia outra razão para a confissão ser sempre feita em silêncio,
resultante da visão judaica da pessoa. A Torá afirma que o sacrifício da
oferenda pelo pecado e a oferenda em holocausto devem ser abatidas no
mesmo local.7 Nossos Sábios dizem que isso era feito de propósito, a fim
de não constranger o pecador, uma vez que ninguém seria capaz de dizer
se o sacrifício estava sendo realizado como uma imolação ou pelo pecado.8
Esta atitude também modelou a interpretação de Filo acerca das leis dos
sacrifícios pelo pecado e dos sacrifícios pela paz. É o desejo de Deus, ele
escreve, “que todo pecado que o penitente tenha cometido previamente
não devesse ser tornado conhecido pelos julgamentos errôneos e línguas
desenfreadas de pessoas maliciosas e cáusticas, e propagado como tema
para conversas reprovadoras, mas ser confinado aos recintos sagrados
que também têm sido a arena da purificação”.9
O HOMEM E O PECADO 35

O mesmo raciocínio vale também para uma das leis da liturgia. A


oração central no serviço judaico, Shemone Esrê (Dezoito Bênçãos)*, é
recitada em silêncio. A razão para isto, dada na Guemará, é evitar cons-
trangimento aos que cometeram transgressões.10 Era desejo de nossos
Sábios não causar vergonha a um pecador sem necessidade. Eles sempre
se esforçaram em preservar a dignidade humana – mesmo a dignidade de
um pecador – sempre que possível, e consideravam que causar vergonha a
alguém em público era moralmente equivalente a um assassinato.
Filo sentia que havia duas razões pelas quais a confissão no
holocausto do sacrifício pelo pecado deveria ser feita em silêncio. Primeiro,
como a confissão era feita diretamente a Deus, que conhece os pensamentos
dos homens, não havia necessidade de uma confissão audível, muito
menos púbica. Em segundo lugar, a confissão silenciosa pouparia o
pecador da vergonha e facilitaria sua reintegração.
Esta confissão como expressão do arrependimento é inques-
tionável. Era também opinião unânime dos intelectuais talmúdicos
que existia um mandamento positivo que exigia a confissão do pecador.
Todavia, parece ter havido uma divergência de opinião entre os
intelectuais talmúdicos quanto a se a confissão (outra além daquela
feita no sacrifício pelo pecado) deveria ser feita em público, ou se a
confissão silenciosa era suficiente.
Rabi Iehuda, em nome de Rav, aponta para a aparente contradição
entre dois versículos da Bíblia: por um lado, o Salmista disse, “Feliz aquele
cuja transgressão é absolvida, cujo pecado é coberto”11; por outro lado
Salomão declarou: “Aquele que encobrir suas transgressões não
prosperará”.12 Esta aparente contradição é resolvida por duas explicações
no Talmud.Em resumo, o Talmud traça a seguinte distinção a respeito da
confissão: se o pecado de um homem for conhecido, então é seu dever
confessar em público; mas se o seu pecado não for conhecido, então ele
pode confessar sem reconhecer sua transgressão abertamente. A segunda
explicação segue uma abordagem diferente. Pecados cometidos contra
Deus não precisam de confissão pública – é suficiente que um homem
confesse silenciosamente a Deus os pecados que cometeu; porém os
pecados cometidos contra um próximo exigem uma confissão pública.13
Estas distinções apontam para a estrutura moral da lei talmúdica.
A segunda afirmação ensina que a relação entre o homem e Deus é de

* Conhecida também como “Amidá” ou “Grande Oração”. (N. do R.)

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