Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
156 157
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
o objetivo de relacionar os dados obtidos ao contexto social de estudo, apre- trabalhando os conteúdos acadêmico-científicos a partir desses saberes, e “ja-
sentamos e analisamos os resultados de um survey aplicado aos educadores mais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade” (ibid., p.
da UniFavela, bem como trecho de relato docente sobre o contexto atual da 101). Esse modelo é proposto em oposição ao que Freire cunha como a “edu-
organização e um levantamento das iniciativas tomadas em uma tentativa de cação bancária”, modelo no qual os estudantes são vistos como desprovidos de
superar esses desafios. quaisquer conhecimentos, cabendo ao docente fazer o “depósito” de saberes a
serem reproduzidos, posteriormente, pelos estudantes. Em suas próprias pa-
Considera-se a discussão proposta relevante à comunidade acadêmica,
lavras,
uma vez que o território e a população das favelas, socialmente marginaliza-
dos, sofrem não apenas com a proliferação de discursos estigmatizados, mas [...] a educação libertadora, problematizadora, já não
pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de trans-
com a escassez de efetiva implantação das políticas públicas que garantam o
ferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos
exercício da plena cidadania de seus habitantes, dentre as quais se encontram educandos, meros pacientes, à maneira da educação
as políticas públicas em educação e as de ampliação do acesso às tecnologias “bancária”, mas um ato cognoscente. [...] O antago-
da informação e comunicação. nismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”,
que serve à dominação; outra, a problematizadora,
que serve à libertação, toma corpo exatamente aí.
Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a
A educação popular e o papel dos pré-vestibulares comunitários e contradição educador-educando, a segunda realiza a
sociais superação (FREIRE, 1987, p. 78).
158 159
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
O ideal da pedagogia libertadora e engajada está cada vez mais inserido em 2017 era de 43,2%. Isso significa que a taxa de acesso ao nível superior no
na lógica dos cursos pré-vestibulares comunitários, como uma onda contem- Complexo de favelas da Maré por estudantes que finalizaram o Ensino Médio
porânea não só educativa – com o propósito base de disseminar conteúdos chega a ser mais de vinte vezes inferior à média nacional. Esse é um forte
estabelecidos durante o percurso do educando no Ensino Médio a fim de fa- indicativo de que as ações governamentais e as políticas públicas de ações afir-
cilitar seu acesso às universidades públicas – mas também solidifica-se como mativas vigentes não atendem a essa população.
um dispositivo social de caráter pedagógico e político, movido pelas próprias
massas populares. Dessa realidade, que pode ser extrapolada para demais favelas e periferias
do estado do Rio de Janeiro, emerge a iniciativa da sociedade civil de cons-
Cabe reforçar, contudo, que embora a educação popular como prática pe- tituir pré-vestibulares comunitários e sociais no território da Maré, visando
dagógica engajada seja amplamente adotada pelos pré-vestibulares comuni- minimizar a lacuna deixada pela educação pública, buscando a ampliação do
tários e sociais, suas identidades não são definidas apenas por suas práticas acesso da população favelada e periférica ao Ensino Superior. Hoje, existem
metodológicas, uma vez que cada organização carrega consigo nuances e es- três pré-vestibulares comunitários e sociais que atendem a essa população:
pecificidades únicas, compreendendo o educando nas suas múltiplas relações Curso Pré-Vestibular CEASM, localizado no Morro do Timbau, Curso Pré-
com a sociedade. -Vestibular Redes da Maré, na favela da Nova Holanda, e o Pré-Vestibular Co-
munitário UniFavela atuando também na favela da Nova Holanda, projeto que
tomamos como recorte para o presente ensaio.
A UniFavela: projeto socioeducativo e comunidade de ensino-
Destaca-se, de antemão, que embora o objetivo central dessas organi-
aprendizagem no território da Maré zações seja o ingresso no Ensino Superior, dada a já mencionada funda-
mentação sólida na pedagogia libertadora, crítica e engajada, os cursos pré-
O Complexo da Maré é um conjunto composto por dezesseis favelas, lo-
-vestibulares comunitários e sociais promovem também a formação política
calizado na zona norte do munícipio do Rio de Janeiro, com uma população
e cidadã da população atendida. Entendemos que essas iniciativas possuem
total de quase 140 mil habitantes (REDES DA MARÉ, 2020). Seu território
valor crucial no tecer de saberes democrático e horizontal, como propõe
estrutura-se de modo culturalmente diversificado, visto que o processo de for-
hooks (2013), de modo a agir e refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo,
mação de cada favela foi constituído em época distintas, dando origem a uma
contribuindo para a resistência e autoempoderamento dos moradores das
vasta gama de histórias, identidades e contextos plurais significativos para a
favelas e periferias.
localidade.
O projeto UniFavela – Semeando o ensino popular surge com o sonho e a
No entanto, quando falamos do acesso à educação pública, gratuita e de
missão de promover dentro do Complexo de favelas da Maré um espaço de
qualidade, e da oportunidade de concluir cada etapa da escolarização formal,
trocas e construção de saberes entre estudantes em fase de pré-vestibular e
avançando ao ensino superior, vemos uma tônica alarmante que perpassa de
universitários, majoritariamente moradores da Maré, com foco na ocupação
forma homogênea toda essa população: dos 140 mil habitantes, 23,4% finali-
do Ensino Superior. A UniFavela consiste em uma rede de discentes univer-
zaram o Ensino Médio, sem avançar ao nível superior. Apenas 2,3% da popu-
sitários de múltiplas formações envolvidos na construção compartilhada e
lação do Complexo de favelas da Maré com Ensino Médio completo conse-
inclusiva de conhecimento, tomando como ponto de partida os saberes e as
guiu acesso à graduação de nível superior até 2019, e um número ainda menor,
culturas produzidos nas favelas. Hoje, o projeto conta com uma equipe com-
1,4%, pôde conclui-la (REDES DA MARÉ, 2020).
posta inteiramente por voluntários, dentre eles 36 docentes, coordenadores
Ao compararmos com o percentual nacional, o problema fica ainda mais de área e atuantes na equipe pedagógica, 04 que compõem a equipe admi-
evidente: de acordo com o IBGE (2018), dentre aqueles que finalizaram o En- nistrativa, 01 na orientação institucional e 01 para suporte legal, totalizando
sino Médio, a média nacional de estudantes que avançaram ao nível superior 42 integrantes.
160 161
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
Dessa maneira, a iniciativa busca impactar tanto a formação intelectual e Essa era a dinâmica do projeto UniFavela até o início da pandemia, quan-
cultural dos estudantes quanto buscar espaço acadêmico para contribuir com do, por questões de segurança sanitária, o projeto suspendeu os encontros
pesquisas baseadas em novas epistemologias, através das lentes de saberes pe- presenciais, sendo deixado com o desafio: como adaptar a pedagogia engajada
riféricas e marginalizadas. Tal ação assume um viés de luta em face ao cresci- para o ensino remoto, considerando que apenas 42,4% da população total da
mento da criminalização, da militarização e da segregação geográfica, social e Maré possuía computador em sua residência, a apenas 36,7% tinha acesso à
cultural sofrida pelo Complexo de favelas da Maré e de demais favelas do Rio internet (REDES DA MARÉ, 2020)?
de Janeiro.
162 163
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
Educar num país como o nosso nunca foi um mar de Considerando que todos os docentes voluntários são licenciandos ou li-
rosas. Com a pandemia, torna-se um exercício ain- cenciados na disciplina em que atuam na UniFavela, indagamos se esses sujei-
da mais complicado: temos de nos forçar a lidar com tos haviam tido contato com disciplinas voltadas para a educação a distância
todo cansaço mental que uma crise pandêmica pro-
e o uso educacional de tecnologias digitais ao longo de sua formação inicial
voca e dar conta da responsabilidade que é manter os
alunos ativos e confiantes o suficiente para controlar como docentes. O resultado é inquietante e chama atenção para as lacunas
a evasão. Além de tudo, o maior vestibular do país na formação inicial de professores no que diz respeito a essa temática: 97%
está marcado para uma data que não nos permite dos docentes responderam não ter tido absolutamente nenhuma disciplina na
preparar os estudantes da maneira como queríamos, licenciatura que trabalhasse esses temas.
o que limita ainda mais o aprendizado do aluno, já
meio comprometido pelo ensino remoto emergen- Na sequência, foi perguntado aos educadores de que maneira eles avalia-
cial e particularidades de cada um. No entanto, es- vam seu próprio nível de familiaridade com as tecnologias digitais para dar
tar inserida numa equipe como a da UniFavela faz aulas remotas, com três opções de resposta: baixa, intermediária e avançada.
toda a diferença. A força e perseverança de um grupo Apenas 3% dos docentes afirmaram ter proficiência com essas tecnologias.
que em meio a isso tudo luta por melhores formas
A maior parte dos voluntários, 81%, afirmou ter familiaridade intermediária
de atender aos estudantes e educadores nos inspira e
nos lembra que precisamos respirar e nos alimentar com as tecnologias digitais, enquanto 16% declarou baixo conhecimento so-
da luta. (Relato de uma voluntária, docente de Letras bre como utilizá-las para aulas remotas.
- Espanhol).
Foi questionado, ainda, se os educadores haviam tido alguma experiência
prévia com aulas remotas como docente (por exemplo, em aulas particulares)
e, como resultado, 81% dos educadores responderam não possuir essa expe-
Dado o contexto vivido durante a pandemia, as atividades docentes da
riência.
UniFavela foram suspensas no primeiro semestre de 2020, dando lugar a uma
série de reuniões e encontros virtuais estratégicos para mapear a situação de Ao serem indagados sobre o quão preparados se sentem para conduzir as
seus estudantes e suas necessidades, para além da sala de aula, buscando re- aulas remotamente, em uma escala do tipo Likert, tendo a opção “Totalmente
cursos para agir sobre as demandas que emergiram desse mapeamento. As despreparado. Não entendo nada disso.” na posição de número um, de menor
ações mobilizadas serão apresentadas no próximo tópico. valor, e a opção “Totalmente preparado. É só chegar!” na posição de número
cinco, de maior valor, apenas um docente indicou se sentir totalmente prepa-
Para que fosse possível melhor compreender o contexto dos docentes vo-
rado. A maior parte das respostas se concentrou entre as posições 2, com 31%,
luntários da UniFavela e sua relação com o ensino remoto, aplicou-se um
e 3, com 44% das respostas, totalizando 75% dos docentes não se consideran-
questionário, respondido por todos os docentes da instituição. O foco do
do suficientemente preparados para conduzir as aulas nessa modalidade.
inquérito era o acesso aos recursos digitais, a fluência com esses recursos,
a experiência prévia com aulas a distância e o quão preparados se sentiam Por fim, foi perguntado aos docentes se eles teriam interesse em partici-
para conduzir aulas remotamente. A seguir, detalhamos e comentamos os par de encontros virtuais de formação continuada, com temas voltados para o
resultados obtidos. planejamento didático com uso de tecnologias, tendo 90% dos docentes ma-
nifestado interesse.
O questionário continha uma pergunta estratégica: “Você possui acesso à
internet Wi-Fi em seu domicílio?”. Embora grande parte das respostas tenha Como estratégia para continuar ofertando as aulas, agora de maneira re-
sido positiva, um alento em meio a situação tão delicada, um quantitativo de mota, a equipe da UniFavela optou por uma matriz de encontros de segunda-
7% dos docentes não possuem esse acesso, o que dificulta ou mesmo impossi- -feira a sábado, no horário noturno, a partir do início do mês de agosto, tendo
bilita sua atuação remota com os estudantes. dois voluntários acompanhando todos os encontros, garantindo o suporte
164 165
9 – “A vida não pode parar”: desafios da população periférica no desenvolvimento
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
de comunidades remotas de ensino-aprendizagem
técnico necessário, além de mobilizar a gravação dos encontros, para dispo- baixa renda que integrassem pré-vestibulares comunitários e sociais em todo
nibilização posterior aos estudantes. Dadas as mais dificuldades enfrentadas o território brasileiro (NOSSAS, 2020). Contudo, a ideia inicial de uso de 4G
durante o período de pandemia, apenas 24 docentes se dispuseram a conduzir não se mostrou a mais eficiente para atender aos estudantes, uma vez que a
as aulas remotamente. O mesmo ocorreu com os estudantes: dos 80 estudantes condução de aulas online prevê o uso de plataformas digitais que exigem gran-
matriculados inicialmente, apenas 45 manifestaram interesse em engajar com de consumo de dados.
as atividades online. Ficou acordado entre a equipe que, após um mês de ex-
Dessa forma, a organização, em pleno acordo com a rede NOSSAS, op-
periência remota, haverá um encontro para ouvir os relatos de cada docente,
tou pela instalação dos serviços de internet banda larga oferecidos no territó-
trocar experiências e, caso necessário, buscar novas estratégias para melhor
rio da Maré os estudantes em maior situação de necessidade, assegurando o
atender aos estudantes.
uso do serviço com o aporte dado pelo NOSSAS até dezembro de 2020. Essa
instalação está ocorrendo, já tendo sido feita para alguns estudantes. Como
o valor arrecadado foi superior ao utilizado para as instalações pontuais, o
Ações emergenciais para além da sala de aula projeto UniFavela assumiu dois compromissos com o restante do fundo, cuja
prestação de contas já foi realizada: 1) montar uma reserva para emergências
Dentre as ações tomadas pelo projeto UniFavela buscando mitigar os pro-
futuras com relação ao acesso à internet dos estudantes; 2) doar o restante do
blemas enfrentados durante o período de pandemia, destacamos três cruciais
valor para o pré-vestibular comunitário Construindo Caminhos (Educap), no
para a coletividade, que extrapolam os limites da sala de aula, mas que são vi-
Complexo do Alemão.
tais para que se coloque em prática, de fato, uma pedagogia libertadora, crítica
e engajada. Como acentua hooks (2013, p. 273): Visando ao bem-estar e ao cuidado com a saúde mental de educadores
e educandos, a UniFavela impulsionou, via redes sociais, uma campanha à
A sala de aula, com todas as suas limitações, continua
sendo um ambiente de possibilidades. Nesse campo procura de serviços de atendimento psicológico gratuito ou com preço po-
de possibilidades, temos a oportunidade de trabalhar pular. No fim, estabeleceu-se uma parceria com seis profissionais dispostos a
pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos cama- atender gratuitamente a um total de dezesseis educadores que, no momento,
radas uma abertura da mente e do coração e que necessitavam do atendimento em caráter de urgência. A logística para o aten-
nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo dimento dos estudantes está em fase de desenvolvimento e será implementada
em que, coletivamente, imaginamos esquemas para
ao longo do semestre.
cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação
como prática de liberdade. A distribuição de cestas básicas e álcool em gel para à comunidade teve foco
nos estudantes da UniFavela que se encontravam em situação de emergência
financeira como consequência da pandemia. Foram 45 estudantes atendidos
As ações para além da sala de aula nas quais o projeto UniFavela tomou pela ação, que respeitou todas as orientações de segurança sanitária indicadas
parte foram: a instalação de serviços de internet banda larga para estudan- pelo Ministério da Saúde. As cestas e o álcool em gel foram entregues em dias
tes que não possuíam nenhum tipo de acesso; a mobilização de parceria com separados, separando os horários seguindo a ordem alfabética dos nomes, res-
equipe de psicólogos para atendimento de estudantes e docentes; e a distribui- peitando as orientações de afastamento e o uso constante de máscaras para a
ção de cestas básicas e álcool em gel à comunidade. Comentaremos brevemen- proteção das vias respiratórias.
te cada uma dessas ações a seguir.
166 167
Fraturas expostas pela pandemia: escritos e experiências em educação
Considerações finais
168