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ASSISTINDO AO MEU PRIMEIRO VÍDEO:

A MEMÓRIA FAMILIAR COMPARTILHADA POR YOUTUBERS MIRINS

Hyrlla Tomé

RESUMO

Em tempos de reconfiguração digital, a memória familiar merece também um novo olhar. Neste
artigo, é realizada uma breve reflexão sobre o YouTube enquanto um espaço de memória, tanto
vernacular e cotidiana, transformando-se em uma espécie de arquivo vivo, múltiplo e
desorganizado sistematicamente, enquanto o valor de cada acontecimento publicado é regulado
por quem o consome. A partir dos estudos de Burgess e Green (2009) sobre a revolução digital
do YouTube e das reflexões de Patrícia Lange (2014) sobre crianças que habitam a plataforma,
são analisados vídeos de youtubers mirins de sucesso reagindo aos seus primeiros conteúdos
publicados na plataforma, como meio de explorar as percepções sobre o tempo,
desenvolvimentos de competências técnicas e remediação das memórias audiovisuais a partir de
um momento antes restrito a grupos familiares. Entendendo que essa revisão de identidade a
partir do próprio conteúdo pode ocasionar diferentes reações em cada usuário, pergunta-se aqui
quais são os valores atribuídos por esses youtubers mirins, assistidos por milhões de pessoas, ao
assistirem a seus primeiros vídeos publicados na plataforma. Para responder a este
questionamento, foram escolhidos três vídeos de canais no YouTube distintos: Reagindo ao nosso
primeiro vídeo, do canal Planeta das Gêmeas, Reagindo aos primeiros vídeos do canal - Juliana
Baltar, do canal Juliana Baltar e Reagindo aos meus primeiros vídeos antigos (Muito
Engraçado!!) | Luluca, do canal Crescendo com Luluca.

Palavras-chave: memória; arquivo; home mode video; crianças; YouTube.

Uma reflexão sobre a mídia de memória familiar

Se, para McLuhan (1964), o computador se comporta como uma extensão do cérebro
humano, e, para Foucault (2008), o arquivo define o contorno da memória de um acontecimento,
onde se encontram as memórias no espaço da internet? Quais seus enunciados? Como se
agrupam?
Dentro dessa perspectiva inicial, a resposta natural seria: na própria internet. Em
todos os registros voláteis da existência humana. Por toda a internet, homens e mulheres de todas
as idades deixam seus vestígios, marcas da habitação do ciberespaço. E, como seres sociais,
deixam suas memórias registradas, sem espaço para esquecer, mas sempre com a opção de deletar
e excluir a materialidade cibernética de um acontecimento que não se quer expor, ou sequer
lembrar - ainda assim, com a grande possibilidade da existência dele na memória também
intangível, porém menos controlada, cerebral.
Apesar do controle, o problema da memória disponível na internet é a
desorganização, que torna todas as coisas nela registradas um tanto amorfas. Indefinidas em
montes de domínios, plataformas e redes diversas. A memória se apresenta desorganizada, sem
filtros, vernacular e extremamente heterogênea também nos vídeos publicados no YouTube
(BURGESS; GREEN, 2009, p. 121), um arquivo cultural precário em seu sistema de
enunciabilidade, sem um arquivador catalogador que não seja o algoritmo, ou as escolhas de cada
usuário, que tem um papel central enquanto arqueólogo das pérolas audiovisuais que podem ser
encontradas.
Reafirmando o pensamento de Burgess e Green (2009, p. 120), se o YouTube
continuar se reinventando e seguir consolidando o papel que possui hoje, o resultado dessa
conexão de bilhões de memórias individuais pode ser mais significativo do que um repositório de
vídeos antigos, mas um um registro da cultura popular contemporânea global, que inclui a cultura
vernacular e cotidiana, na forma de vídeo.
E o que rege o arquivo? Quem descreve o valor de cada vídeo? Quem avalia o
significado de cada memória? As escolhas coletivas e individuais da comunidade heterogênea
que compõe o YouTube, claro. Independente de como o conteúdo é apresentado dentro do site e
das tentativas de hierarquia do algoritmo, o filtro que rege o arquivo é o uso de cada vídeo em
suas readaptações e representações em outros lugares (BURGESS; GREEN, p. 122).
Ou seja, o valor de cada uma das mais de 300 horas submetidas ao YouTube por
minuto está sujeito ao momento mediado de cada usuário, que, segundo Lange (2014, p. 27) são
flexionados, com temporalidades distintas e cruciais, que, no caso da produção do YouTube,
absorvem todos os momentos entre o início de uma produção, até a fruição final - o que inclui os
próprios produtores. O significado de cada ação está sempre relacionada ao momento, do tempo
em que está contida.
Segundo a autora, compreender momentos mediados subentende a percepção de
como várias temporalidades cruzadas do passado, presente e futuro moldam as experiências de
conceituar, criar e compartilhar mídia (LANGE, 2014, p. 28).
Muito antes do YouTube ser conceituado como um arquivo cultural, ou, ainda, muito
antes da plataforma ser concebida, pais, mães e amigos utilizavam câmeras para registrar
momentos importantes ou cotidianos de suas famílias. Lange (2014) discute esse aspecto de
registro com base nos estudos de Richard Chalfen (1987), sobre o “home mode video”. Entre as
décadas de 1970 e 1980, Chalfen observou os padrões de comunicação interpessoal de pequenos
grupos centrada em casa, analisando que os momentos mediados a partir dessa mídia doméstica,
era sempre compartilhada pela própria família e amigos íntimos. A autora destaca o fato de que
os criadores dos vídeos e fotografias dispostas em álbuns conheciam as pessoas retratadas e os
acontecimentos registrados, mas esse grupo, tão íntimo, raramente incluiria colegas de trabalho,
pessoas da academia, ou, até mesmo, das escolas. (LANGE, 2014, p. 16).
Em seu trabalho, Patricia Lange discute as abordagens teóricas do “home mode
video” até os dias atuais, entendendo que não há mais um espaço binário de contradição entre o
gênero e o profissionalismo, mas um continuum entre práticas relativamente privadas e mais
públicas:“Por exemplo, como nós chamamos vídeos antigos de crianças que recebem milhões de
visualizações nos quais a mãe se torna uma YouTube Partner? Receber milhões de visualizações
constitui um público significativo” (LANGE, 2014, p. 18). De acordo com a autora, hoje, os
“home mode videos” incluem uma variedade de conteúdos criativos, encantadores, e, às vezes,
perturbadores.
É o caso dos youtubers mirins: crianças que crescem cercadas por ambientes
mediados e são iniciadas durante a infância nas práticas do YouTube. Pais e mães corujas, agora,
podem apoiar-se no slogan da plataforma para seus objetivos: Broadcast Yourself (Transmita-se).
Os vídeos, antes privados, agora contam com milhões de visualizações, como observou Lange.
Crianças de todo o mundo se tornam celebridades, a partir de vídeos compartilhados por seus
pais. Cada dente de leite a menos é registrado e compartilhado1. Os momentos íntimos de
compras de materiais escolares, brincadeiras, aniversários e todo o universo que compõe a vida

1
A MELISSA ARRANCOU O DENTE, do canal Planeta das Gêmeas. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=T_dRgs_MblQ> Acesso em 21 de jul de 2020.
familiar é acompanhado por parentes, amigos e, agora, total desconhecidos de qualquer parte do
mundo.
Dado todo este cenário, o que é inédito é a possibilidade de acompanhar crianças
revisitando suas memórias. O momento mediado de fruição final: o registro de crianças assistindo
a seus próprios vídeos alguns anos mais velhas. Se o valor de cada vídeo é dado pelo modo como
é representado, quais são os valores atribuídos por esses youtubers mirins, assistidos por milhões
de pessoas, ao assistirem a seus primeiros vídeos publicados na plataforma?
Para refletir sobre o tema neste trabalho, foram escolhidos três vídeos de canais no
YouTube distintos: Reagindo ao nosso primeiro vídeo2, do canal Planeta das Gêmeas, Reagindo
aos primeiros vídeos do canal! - Juliana Baltar3, do canal Juliana Baltar e Reagindo aos meus
vídeos antigos (Muito engraçado!!) | Luluca4, do canal Crescendo com Luluca.
Entre as coincidências entre os três vídeos, nas quais estão as razões para serem
escolhidos enquanto objetos recortados nesta breve reflexão, estão os fatos de que 1) todos
protagonizam crianças de canais que figuram entre os 100 canais brasileiros com mais inscritos;
2) todos apresentam crianças que assistem a si mesmas no início de suas carreiras no YouTube e
3) todos os vídeos que são assistidos estão ainda disponíveis em cada respectivo canal - o que
quer dizer que o usuário pode ter, pelo menos, duas diferentes experiências para assisti-los: nos
formatos originais, ou mediados pelas protagonistas de cada vídeo.
Serão destacadas as falas das personagens de cada vídeo de maneira qualitativa e
quantitativa, a partir do que mais chama a atenção em cada vídeo. Foram encontrados momentos
de vergonha e rejeição da autoimagem, como no caso de Juliana Baltar, percepções de
desenvolvimento de competências midiáticas, como nas falas do Planeta das Gêmeas, além das
observações nostálgicas sobre o crescimento e as fases da infância (mesmo que ainda estejam
nela), para que seja discutida a reconfiguração de velhos hábitos, como o folhear em álbuns de
família. Só que, nos casos analisados, na companhia de milhões de usuários.

2
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=2Ts0yltIcP8> Acesso em 30 de mar de 2021.
3
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=IyjmQE0FKOY> Acesso em 30 de mar de 2021.
4
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=MwuXJD-rcQs> Acesso em 30 de mar de 2021.
Referências

BURGESS, Jean; GREEN, Joshua. YouTube e a Revolução Digital: como o maior fenômeno da
cultura participativa transformou a mídia e a sociedade; tradução Ricardo Giasetti - São Paulo:
Aleph, 2009.

LANGE, Patricia G. Kids on YouTube: Technical identities and digital literacies. Routledge,
2014.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo:


Cultrix, 1964. Tradução: Décio Pignatari.

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