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coordena~~o, sua responsabilidade foi definida como relacionada a

discuss~ocrítica, tanto do processo quanto de seus produtos.

1 A equipe configurou-se, entáo, nos termos que seguem:

1 Cornissáo técnica
Mana da Graqa Krieger Coordenadora da COG EAM/SEB/
PARA QUE SERVE
Comissao Técnica
(Dicionários)
MEC e UFRGS
UM DICIONÁRIO?
Comissáo lnstitucional
Maria Lucia Castanheira Coordenadora lnstitucional CEALVUFMG
Leitura crítica
Luiz Antonio Marcuschi Leitor crítico UFPE Maria Luiza COROA
Coordenacáo nacional de área Uni.verjidadede Brasilia
Egon de Oliveira Rangel Coordenador Nacional de Área PUC-Sáo Paulo
Marcos Bagno Coordenador Adjunto UnB
Coordenaqoes regionais
Marco Antonio de Oliveira Coordenador Regional - MG UFMG
Orlene Lúcia de Sabóia
Carvalho Coordenador Regional - DF UnB
Maria da Graqa Krieger Coordenador Regional - RS UFRGS
Rodolfo llari Coordenador Regional - SP UNICAMP
Ana Maria de Carvalho Luz Coordenador Regional - BA UFBA
Especialistas
Aurelina A. Domingues Almeida om o seguinte diálogo se inicia uma cr6nica d e L u i z
Carlota Ferreira
Carolina S. Antunes Santos Fernando Veríssimol:
Cleci Regina Bevilacqua
Félix Bugueño Miranda
leda Maria Alves
Juliana Soledade Barbosa Coelho
-Pai, o que é cornita?
Lou-Ann Kleppa
Lúcia Monteiro de Barros Fulgencio
- Como é que se escreve?
Margot Latt Marinho
-Ce, o, erre, ene, i, te, a.
Maria José Bocorny Finatto O pai pensou um pouco. Náo podia dizer que nao sabia. O garoto há muito
Maria Lúcia Souza Castro descobrira que o pai náo era o homem mais forte do mundo. Precisava mostrar
Maria Luíza Gongalves Aragao da Cunha Lima que, pelo menos, náo era dos mais burros. Perpntou como é que a ~alavra
Maria Luíza Monteiro Sales Coroa estava usada.
Marlene Machado Zica Vianna -Aqui diz, "a cornita da igrga ..."- respondeu O garoto.
Milton do Nascimento -Ah, esse tipo de cornita. E um ornamento, na forma de corno, que fica
Neide Aparecida de Almeida do lado do altar.
Patrícia Vieira Nunes Gomes -Pra que serve?
Regina Maria Furquim Freire da Silva -Pra, ahn, nada. É um símbolo.
Sandra Dias Loguercio -Ah.
S6nia Bastos Borba
Vilma Reche Correa
Mesmo sem fazer mencáo ao dicionário, esse pequeno diálogo tra- ticos. Isso se dá em vários níveis: ortográfico, morfológico, sintático,
vado entre pai e filho ilustra bem situacóes de uso de dicionário que semantico, pragmático - e, defendemos aqui, discursivo.
constituem o objeto desta reflexáo. Para organizar a reflexáo que aqui
se propóe, chamernos de "movimentos" de construcáo de significado Para uma perspectiva em que a linguagem é um trabalho interativo,
cada tentativa de buscar interpretacáo para uma palavra. Sem excluir de construcáo social, o dicionário é, portanto, mais do que uma forma
r
OS demais, cada "movimento" estabelece relaqoes próprias entre a lin-
de nomear e classificar as coisas do mundo: é um apoio F:ra a cons-
guagem, o usuário da língua e as coisas do mundo. trucáo de nossa rede de conhecimentos linguísticos3.Assim, os sujeitos

Em primeiro lugar, podemos destacar que, numa perspectiva de


1 náo apenas "dizem" o mundo, mas também o "instauram por meio do
discurso. Como diferentes usos linguísticos marcam diferentes relacóes
o
B
teoria semantica, a pergunta do filho visa obter do pai a resposta para ¡ sociais, o dicionário também apresenta possibilidades discursivas que se
O algo como "a que objeto do mundo se aplica a palavra cornita?". No inserem nas brechas significativas dessa indeterminacáo da linguagem
senso comum, é a esse "movimento" que mais frequentemente se as- - apesar da estabilidade que historicamente traz para a língua.
VI

socia o dicionário. Apesar de outras interpretacóes serem potencial- 1

4 Voltando ao nosso diálogo inicial, tomemos, por exemplo, um dos


u
mente possíveis, como a dúvida sobre ser um adjetivo ou um substan-
W
primeiros "movimentos" do pai na construcáo da significacáo em dire-
tivo, por exemplo, é a essa relacáo de correspondencia com os objetos
$20 ao contexto de uso: pergunta como a palana é usada. A resposta
do mundo que se costuma dar prioridade nas consultas ao dicionário.
8l Nessa perspectiva, o dicionário seria um acervo de nomes para "coisas"
fornece o contexto sintagmático imediato, também chalnado de cotex-
to: a cornita da igreja. Reconhecida na sua importancia, a dependencia
do mundo. Numa sociedade ideal de robos2,em que a hnqáo de uma
contextual é para muitos estudiosos da palavra, bem como para grande
língua seria apenas a de representar o mundo, isso poderia, de fato,
parte dos usuários da língua, fator determinante para a construcáo e
esgotar a funcáo do dicionário. Mas náo vivemos numa sociedade de
o entendimento do significado. No entanto, significados considerados
robos, nem a língua se constitui em mero espelho da realidade, por
equivalentes no dicionário nem sempre preenchem contextos equiva-
isso, nesta proposta, tentamos refletir sobre vários caminhos que um
lentes. Mesmo sinonimos presumidos podem náo ser adequados aos
dicionário percorre para extrapolar essa hncao, apoiando-nos na pers-
fins visados, pois as implicacóes de registro e de marcas de interacáo fa-
pectiva teórica de que, conforme Marcuschi (2004: 268),
zem parte dos sentidos das palavras. Segundo Ilari e Geraldi (1985: 47),
náo há uma relacáo direta entre linguagem e mundo, e sim um trabalho 3
essa escolha traduz frequentemente a preocupaqáo de evocar ou respeitar S
social designando o mundo por um sistema simbólico cuja semiintica vai se
construindo situadamente. um determinado nível de fala, um determinado tipo de interaqáo, ou mesmo
um certo jargáo profissional.
Devido a esse caráter indeterminado da linguagem, o dicionário
Por isso, o contexto é, sem dúvida, muito informativo náo apenas
revela-se náo uma contraparte linguística para objetos do mundo, mas
para a circulacáo social de uma palana, mas também para fÜnq6es tex-
uma intermediacáo simbólica na construcao dos significados linguís-
tuais. Na conversa entre pai e filho, depreende-se também, da estrutura
* sintática em que a palana ocorre, que se trata de um substantivo -um
, .
Como diria Leech (1987:40):"Numa sociedade ideal de robos, em que cada um tem um
papel predeterminado que ele desempenha sem objeqóes, a única funqáo da linguagem seria
mostrar conhecimento e passar informaqáo,de modo a facilitar a cooperaqáo entre os mem- As noqóes de "rede" e de "mobiliário"linguisticos S X O detalhadamente exploradas em Mar-
bros da sociedade". riischi 7.004
nome para algum objeto do mundo que, por sua vez, pertence a igreja ou E m "movimentos" assim, podemos observar como tentamos concep-
nela se encontra. Mesmo sem a necessidade de conhecer a nomenclatu- tualizar4 nossas experiencias de mundo por meio do uso da língua. O u
ra gramatical, o usuário da língua intuitivamente reconhece o compor- seja, apropriamo-nos do mundo de acordo corn certos parametros que,
tamento da palavra quanto a um nome para uma coisa do mundo. Nao de maneira nenhuma, sáo transparentes ou homogeneos. Marcuschi
se levantaria a possibilidade, por exemplo, de considerar cornita como (2004: 269) assim sintetiza esse posicionamento:
uma forma verbal de terceira pessoa do singular, apesar da semelhanca Nao nego que construímos uma certa relag20 entre linguagem e mundo, mas
morfológica corn imitar, agitar ou limitar, por exemplo: ele imita, ele nego que seja uma relag50 transparente, universal, e a mesma para todo o sem-
agita, ele limita. Mas um estudioso da língua -nós, professores -fre- pre. Afirmo que conhecer nao é um ato de identificacao, de algo discreto exis-
tente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade socio- o
quentemente exploramos essas características gramaticais para tentar, 5
cognitiva e uma construqáo produzida na atividade intersubjetiva e recorrente.
corn a ajuda desse contexto sintático, atribuir um significado a palana $
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desconhecida. Mas a inter-relacáo entre sintaxe e semantica também Mas lembremos que o primeiro "movimento" de identificacáo da $
d
pode vir a tona ao buscar diferencas em desinencias morfológicas, como palana, iniciado pelo pai, é quanto ao registro ortográfico: "Como é
5
,z

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emjornaleiro ejornalista, por exemplo (Dicionário CaldasAulete, tipo 3): que se escreve?"Vemos aí uma füncáo também largamente conhecida
W
do dicionário: a grafia das palavras abonada por um sistema linguístico. 6
jornaleiro (jor.na.lei.ro) a.sm. Que ou quem trabalha vendendo J

ou entregando jornais.
No processo de leitura, em que a palavra já está grafada, essa füncáo,
..... naturalmente, é enfraquecida - ocorre geralmente quando alguém se
jornalista (jor.na.lis.ta) s2g. pessoa que é formada em ou exerce o depara corn uma dúvida, uma suspeita sobre a incorrecáo do texto. Por
jornaiismo. isso, é muito mais comum exercitá-la no processo da escrita; buscamos
no dicionário a grafia correta - ou historicamente legitimada - de -.
0
Apesar do nítido parentesco semantico corn jornal, a desinencia
uma palavra. No diálogo da crbnica, tivesse um dos dois recorrido a 3
z
distingue os significados. Podemos entáo dizer que, além da busca da 0
cn
uma consulta ao dicionário5,teria visto que cornita náo recebe registro
correspondencia corn as coisas do mundo, o dicionário também serve 5
em língua portuguesa. Qual seria o próximo passo nessa busca de sig- W
de fonte para informacóes morfológicas implicadas em aspectos se- k
nificago para a palavra desconhecida? Muito provavelmente, a grafia m
U.
W
manticos das palanas. Esse "movimento"fica claro na associacáo que o 5
seria posta em dúvida: cornita ou corneta, por exemplo? Vejamos o que 3
pai faz corn corno, ao mobilizar na sua memória a rede de informacoes 2
encontrariam no Dicionário Caldas Aulete (tipo 3):
que poderia dar pistas para a significacáo de cornita. Tentando mostrar
que "náo era dos mais burros", apenas a partir do contexto imediato corneta (cor.ne.ta) [e] $Instrumento de sopro corn forma de cone.

(OUcotexto), O pai arrisca uma resposta: "É um ornamento, na forma Se a volta ao contexto possibilitaria uma interpretacáo para cornita
de corno". Como o ambiente, igreja, nao conduz facilmente a presenca como um registro errado da palavra, apenas um contexto maior -
de um objeto a que denominamos "corno", é pelo formato que ele faz
a associacáo. E.acrescenta uma localizacáo, para tornar mais plausível a Geoffrey Leech (1987: 24) diz que língua é muito mais do que instrumento de comunica-
invencáo: "Fica do lado do altar". A vontade do falante de ser colabo- qáo: "É o meio pelo quai interpretamos nosso ambiente, pelo quai classificamos ou 'conceitua-
mos' nossas experiencias, pelo qual podemos impor estrutura sobre a realidade".
rativo na construcáo de um significado plausível revela também a ín- O fato de náo terem recorrido também é pertinente nesse contexto: o pai ansiava por
tima relaqao entre o sujeito da linguagem e o próprio fazer linguístico. mostrar conhecimento.
que a cronica náo traz - permitiria aceitar ou rejeitar essa constru$áo s u l t o ~de um erro de impressáo. O aspecto ressaltado na cronica acaba
de significado. A insergáo da palavra no contexto imediato resultaria por ser o exercício do poder, no embate entre o pai e a professora, por
em: a corneta da igreja. A cronica náo fornece, porém, maiores infor- meio do conhecimento linguístico.
macóes para a comprovacáo ou refütaqáo desse uso. Seguindo nesse Essa ilustracáo sobre a diversidade de aspectos envolvidos na cons-
caminho, levanta-se a hipótese de que nao apenas corneta faria parte trucáo de significados da palavra náo objetiva aqui apenas uma refle-
$'2 dessa lista de possíveis palavras para ocupar o lugar de cornita. Outra xáo sobre vocabulário, mas procura direcionar o nosso olhar para além
ii
possibilidade seria cornca, por exemplo. O Dicionário Caldas Aulete do exercício mecinico de fazer corresponder a lista de verbetes de um
8
5 (tipo 3) assim registra: dicionário com os objetos do mundo.
O I
5 cornija (cor.ni.ja) sf. Moldura sobreposta que arremata o alto de A

2 É nesse cenário motivado pelo diálogo da cronica que consideramos


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O paredes, portas etc. como tópico relevante discutir o uso do dicionário nas práticas escolares. 2
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A volta ao contexto imediato, ou cotexto, mostra a plausibilidade Nesse enfoque, propóe-se que a presenca do dicionário na sala de aula
n
CI presta-se mais do que a atividades com uma mera listagem de palavras.
dessa interpretacáo. Mais uma vez, no entanto, a crbnica náo dá infor- 2

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w macóes suficientes para uma decisáo, pois seu foco é outro. O dicionário integra práticas pedagógicas discursivamente situadas. z
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É aí que podemos vislumbrar outro aspecto da construqáo de sig- No paradigma atual de ensino de língua materna, o redirecionamen-
nificados. A continuidade do texto de Veríssimo mostra nao ser de to de abordagens de ensino-aprendizagem decorrente da insercáo do
pouca importancia que nossos personagens náo recorram ao dicioná- texto como foco do processo traz para a sala de aula conceitos e perspec-
rio, especialmente o pai. A razáo é explicitada já no inicio: "Náo podia tivas teórico-metodológicas fundamentadas em perspectivas discursivas
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dizer que náo sabia. O garoto há muito descobrira que o pai náo era o da linguagem. Na producáo de textos, por exemplo, "escolher a palavra Q
2z
homem mais forte do mundo. Precisava mostrar que, pelo menos, náo certa9"jimplica situar-se, a si e a seu interlocutor, num lugar específico, , Q
9
era dos mais burros". Esse é um valor simbólico altamente valorizado que tem implicacóes discursivas e, consequentemente, sociais e ideoló- 0

5
do dicionário em nossa sociedade: o poder representado pelo conhe- gicas. Visto assim, como integrante de práticas discursivas, o dicionário 2
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cimento. Ao se colocar, na prática, no lugar do dicionário para sanar constitui-se em produtivo instrumento do fazer linguístico: é mais um U

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dúvidas de natureza linguística, o pai toma para si valor simbólico que dos elementos simbólicos de que cidadáos leitores e produtores de tex- Q
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um dicionário assume em nossa sociedade. Gnerre (1994: S), citando tos dispóem para construir, e reconstruir, redes de significacóes e cons-
Bourdieu, diz que: "O poder da palavra é o poder de mobilizar a auto- tituir sujeitos. Nada mais lógico do que fazer sua utilizacáo em sala de
ridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato linguístico". O aula corresponder a sua füncáo nas práticas discursivas.
pai coloca-se, entáo, na posicáo de quem detém esse "poder da pala-
Iniciando pelo processo histórico, lembremos que, na história da
vra": admitir desconhecimento seria abrir máo desse poder.
humanidade, o interesse pela palavra se confunde com o interesse pela
Ao receber uma resposta compatível com um contexto possível de própria linguagem. O fascínio que o homem sempre sentiu por sua
uso da palavra, e reconhecendo o poder e a autoridade do pai, o garoto
se dá por satisfeito. Curioso é que o desenvolvimento da cronica mos- Rodolfo Ilari e J. Wanderley G e r d d i discutem, em seu livro Semántica (Sáo Paulo: Ática,
tra que a palavra, de fato, nao está registrada no dicionário e que re- 1985) várias implicaqóes seminticas dessa escolha.
própria capacidade de significar pela linguagem levou-o a colecionar áo significativa que vai além do esclarecimento sobre !grafia,formacáo
palavras - muitas vezes, corn o intuito de controlá-las, "domesticá- de palavras ou significados isolados. Considerá-lo em relagoes de interlo-
-las". Segundo Nunes (2006: 149), cuca0 é situar o dicionário de maneira ativa no processo de construcáo do
evitando ou controlando o silencio, os sujeitos identificam palavras, classi- conhecimento. É faze-lo verdadeiro interlocutor, como se, ao consultar o
ficam-nas, descrevem-nas, organizam-nas em listas que se reproduzem e se dicionário, o leitor chegasse corn uma pergunta para a qual procurasse a
estendem. As listas de palavras, de acordo corn S. Auroux (1992))sáo o mais resposta (o que é....?). Nessa interlocucáo, práticas sociais sáo articuladas:
antigo saber linguístico de que temos notícia. quando e para que alguém precisa saber algo deka de ser urna simples
circunstancia e passa a integrar a própria relacáo significativa: saber algo
Desse modo, inicialmente em forma de mera colecáo de palavras,
é mobilizar sujeitos em redes discursivas e sociais.
depois já revelando sistematizacáo do conhecimento linguístico, os di-
cionários integram a história da humanidade, assim como a história As práticas discursivas estabelecem, assim, corn o dicionário um
da linguagem. "diálogo" significativo em que a experiencia de leitor se articula corn
a informacáo do verbete, construindo a significacáo desejada. Com
As práticas escolares tem, ao longo dessa mesma história, con-
isso, estamos dizendo que uma consulta ao dicionário náo se dá "no
ferido importancia, as vezes maior, as vezes menor, ao dicionário na
vazio", mas numa situacáo concreta, ou situada, de interacáo linguís-
sala de aula. Desde mero repositório dos vocábulos de uma língua a
tica. A "lista de palavras" náo se desliga da noqáo textual. É no texto,
normatizador todo-poderoso de usos linguísticos, o dicionário tem e em tudo o que o envolve, que deve se constituir o sentido para a
constituído referencial para professores, alunos e usuários em geral. forma adequada do item lexical procurado no dicionário. O u seja, é
Mas, entre os dois extremos, as atividades de sala de aula podem fazer para sujeitos da linguagem que um item lexical faz sentido - corn
corresponder a essa constante presenca do dicionário nas nossas vidas todas as suas implicacóes semiinticas, discursivas e ideológicas. Esses
novas interlocucóes nas práticas pedagógicas. A compreensáo desse itens lexicais que, pela própria organizacáo de um dicionário, apare-
valor vem acompanhada da compreensáo de que a língua sign$ca, náo cem separados em ordenacáo alfabética, no texto efetivamente em uso
apenas representa. Como diz Marcuschi (2004: 263): constroem significados, da0 pistas sobre a identificacáo dos sujeitos da
No fundo, o problema da significaqao nao é resolver se as palavras correspon- linguagem, desencadeiam implicacóes e subentendidos etc. Por isso,
de algo no mundo externo e sim o que fazemos do ponto de vista semantico escolher uma das acepcóes listadas num verbete é fazer escolhas mor-
quando usamos as palavras para dizer algo. As relacóes sáo muito mais com- fológicas, sintáticas, semiinticas,pragmáticas, discursivas, ideológicas...
plexas do que uma correlaqáo biunívoca entre palana e referente mundano. É ocupar um lugar específico na rede de significaqóes que determina-
do texto tece. Isso condiz corn a afirmacáo de Marcuschi (2004: 268):
Nesse enfoque, a linguagem é considerada uma atividade, uma acá0
que o indivíduo pratica quando quer fazer alguma coisa significar para O mundo náo é um grande supermercado corn gondolas universais divina-
ele e para os outros. Desse modo, compreender e significar é sempre com- mente mobiliadas, restando aos humanos nomearem esse mobiliário para
preender e sign9car dentro de um contexto, numa cultura e nurn tempo histó- uso coletivo. A contribuiqáo histórica dos humanos para a configuraqao des-
sas gondolas é imensa e nao desprezível, mas ao mesmo tempo táo instável
rico (Marcuschi, 2006: 264). Tal redirecionamento traz para os usuários
e variada que desnorteia. Ao lado disso, a linguagem também náo é um
do dicionário consideráveis consequencias na maneira de chegar até ele instrumento transparente, preciso e claro capaz de etiquetar de forma uni-
e de abordar a língua. Os verbetes do dicionário entram, assim, numa re- versalmente igual cada elemento desse suposto mobiliário.
Dessa maneira, a procura de um significado no dicionário requer truca0 da reflexáo linguística para a articulacáo entre gramática, dicio-
também uma interpretacáo, no tecido textual e contextual, das várias nário e texto. Saber como se comporta um verbo ou um substantivo na
dimensóes de informacáo que compóem esse significado. Entre essas constituicáo de uma oracáo; saber como se flexiona um verbo ou um
informacóes, situa-se também o sujeito que as busca - corn toda a sua adjetivo na concordancia corn o substantivo a que se reporta; saber as
experiencia prévia a respeito do assunto, da língua e da interacáo corn o possibilidades sintáticas de determinadas classes de palavras, saber em
mundo. As etapas de construqáo de significado váo, assim, mostrando que campo semantico determinado item lexical faz sentido sáo habi-
quais das possibilidades fazem mais sentido. O foco do processo de lidades de natureza gramatical que tornam a consulta ao dicionário
ensino-aprendizagem reorienta-se, assim, do código linguístico para as um processo de interlocucáo - colocam o dicionário em sua füncáo
funqóes linguísticas, das estruturas da língua para os sujeitos que nela se discursiva. Esse percurso de busca de significados no dicionário, por
constituem para constituir o mundo. De espelho desse mundo, o dicio-
g
nário passa a ser visto como participante ativo do mundo da linguagem.
sua vez, pode orientar atividades didático-pedagógicas em práticas de 2
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leitura e interpretacáo de textos na sala de aula. A cada aspecto corres- 3
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O exercício motivador desta reflexáo mostra, por exemplo, que a ponderia uma estratégia de ensino-aprendizagem. m
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aplicacáo de conhecimentos sobre ortografia, formacáo de palavras ou U
Nesse processo de aprendizagem linguística, ao aprender novos vo- s
classes gramaticais permite construir, a partir do dicionário, conheci- W

cábulos corn toda a sua carga semantica e gramatical, o aluno passa a $


mentos linguísticos articulados corn o efetivo uso da Iíngua e indicará
adquirir também a capacidade de formar conceitos, desenvolver relacóes
que acepcáo deve ser aceita e que acepcáo deve ser descartada. A bus-
lógicas, observar e prever fenomenos, generalizar ideias - habilidades
ca ao dicionário propicia oportunidades para o professor contemplar
que nao teria se aprendesse apenas pela mera listagem de vocábulos ou
questóes gramaticais, textuais e discursivas nas práticas de sala de aula.
pela memorizacáo de sinonimos e antonimos (Kleiman, 1987). Essas
Por exemplo, a busca ao dicionário se orienta, a partir de uma leitura e.
sáo habilidades que daráo ao aluno independencia de pensamento na 2
textual, por várias indicacóes do contexto: talvez o vocábulo seja um 3
constituicáo e leitura dos textos que compóem nosso mundo social; 0
verbo? O usuário terá, entáo, que saber que nos dicionários os significa-
essas sáo habilidades que conduzem a formacáo crítica do cidadáo. 5
dos dos verbos sáo arrolados pelo infinitivo e aprender como localizá- W
2
los. Se uma primeira tentativa náo der certo, outros sinonimos podem O exemplo tomado de uma situacáo plausível de nossa vida coti- U
VI

ser consultados no dicionário e as tentativas de interpretaqáo seriam diana permite-nos refletir sobre vários desses "movimentos" de cons- 8
d
renovadas num verdadeiro processo de construcáo do conhecimento. trucáo de significados que acompanham o desenvolvimento do nosso S

E m suma: os usos de um dicionário correspondem as habilidades acervo lexical. Tendo como referencia1 teórico que a linguagem é uma
implicadas em todos esses procedimentos de consulta. Sucintamente aqáo social, as formas de lidar corn elementos que viabilizam tal aqáo
podemos dizer que há uma leitura global do texto, no conjunto entre se apoiam em interacóes permeadas por tempo e espaco, mas também
as palavras e o contexto imediato em que ocorre. Há uma busca de em interacQes corn os materiais que (in)formam o conhecimento -
coerencia entre o que diz o texto e o que a experiencia do leitor acres- no nosso caso, os materiais didáticos.
centa de informacáo sobre o mundo. E há, também, um conhecimento Nesse enfoque de prática discursiva, ao assimilar novos significa-
gramatical que nao se restringe mera nomenclatura gramatical, mas dos por meio do dicionário, o aluno nao apenas poderá usá-los na
que, ao envolver especificidades de classes de palavras, conduz a cons- busca de maiores conhecimentos como também aprenderá a conhecer
melhor os processos significativos da linguagem e as implicacóes de
suas escolhas linguísticas. A formacáo desse falante proficiente agrega
ao conhecimento da língua o acompanhamento de como se da0 os
processos de aquisicáo, compreensáo e uso de novas palavras, a consci-
encia sobre o füncionamento da linguagem.

Como participante de práticas discursivas, o acesso ao dicionário


nas práticas pedagógicas representa o alargamento do conhecimento
simbólico da linguagem na formacáo do aluno. Visto assim, como in-
tegrante de práticas discursivas, o dicionário constitui-se em produtivo
instrumento do fazer linguístico de que cidadáos leitores e produtores
de textos dispóem para construir, e reconstruir, redes de significacóes
e para se constituir como sujeitos. A partir de referenciais teóricos
que concebem a linguagem como interaqáo ou aqáo social, objetiva-
se refletir sobre como as formas de lidar corn essa fluidez implicam
lidar corn as interacóes pessoais, permeadas por tempo e espaco, mas
também corn as interacóes corn os materiais que (in)formam o conhe-
cimento - materiais didáticos. Livros didáticos, dicionários e outros
materiais que dáo suporte as atividades didático-pedagógicas trazem
para a sala de aula diálogos corn a história, corn a diversidade social,
corn instituiqoes nacionais e corn experiencias pessoais. Assim utiliza- .
do em sala de aula, o dicionário permite o acesso ao "poder da palavrá'
e corresponde a sua funqáo nas práticas sociais.

Referencias
CaldasAulete: dicionário escolar da Iínguaporttguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
GNERRE, M . Linguagem, escrita epoder. Sáo Paulo: Martins Fontes, 1994.
ILARI,R. & GERALDI, J. W. (1985) Sembntica. Sáo Paulo: Ática.
KLEIMAN, A. Aprendendo palavras, fazendo sentido: o ensino de vocabulário nas primeiras
séries, in Trabalbos de Linguística Aplicada 9. Campinas: Universidade Estadual de Cam-
pinas. Instituto de Estudos da Linguagem, 1987, p. 47-81.
LEECH.G. Semantics - li5e Study ofMeaning. Harmondsworth: Penguin, 1987.
MARCUSCHI, L. A. O léxico: lista, rede ou cogniqáo social?, in NEGRI,L., FOLTRAN, M. J.
& O ~ i v e r i zR.
~ , P., Sentido e sign$capio -Em torno da obra de RodoCfo Ilari. Sao Paulo:
Contexto, 2004, p. 263-284.

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