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ANTROPOLOGIA DA SAÚDE E DA DOENÇA: CONTRIBUIÇÕES PARA A

CONSTRUÇÃO DE NOVAS PRÁTICAS EM SAÚDE

ANTHROPOLOGY OF HEALTH AND DISEASE: CONTRIBUTIONS TO THE


CONSTRUCTION OF A NEW PRACTICE IN HEALTH

Alessandra Carla Baia dos Santos


Andrey Ferreira da Silva

ARTIGO
Danielle Leal Sampaio
Lidiane Xavier de Sena
Valquiria Rodrigues Gomes
Vera Lúcia de Azevedo Lima
Universidade Federal do Pará (UFPA)

Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão sobre as contribuições da antropologia
da saúde e da doença para a construção de novas práticas em saúde. Para
tal, apontamos os conflitos e intercâmbios entre os saberes da biomedicina
e dos terapeutas populares, mostrando a importância da antropologia da
saúde/doença neste debate. A análise aborda também o desenvolvimento
dessa área do conhecimento, e sua contribuição para a prática mais
consciente dos profissionais de saúde, a partir do reconhecimento da saúde
e doença enquanto processos socioculturais. Portanto, a antropologia da
saúde e da doença apresenta possibilidades de se repensar em políticas de
saúde mais humanitárias, além de possibilitar a ressignificação das
atividades cotidianas dos profissionais de saúde.

Palavras-
Palavras-chave: antropologia; profissionais de saúde; política de saúde.

Abstract
This article analyzes the contributions of anthropology of health and disease
for the construction of new health practices. To this end, we point out the
conflicts and exchanges between the knowledge of biomedicine and
popular therapists, showing the importance of the anthropology of health /
disease in this debate. The analysis also addresses the development of this
area of knowledge, and its contribution to practice more conscious of
health, from the recognition of health and disease as sociocultural
processes. Therefore, the anthropology of health and disease can bring new
possibilities to rethink one health policy more human, besides enabling a
new meaning to the everyday activities of health professionals.

Keywords:
Keywords anthropology; health professionals; health care policy.

Rev. NUFEN [online]. v.4, n.2, julho-dezembro, 11-21, 2012. 11


__________________________________________________________________________________________Antropologia da saúde e da doença

Resumen
Este artículo presenta una reflexión de las contribuiciones de la
antropología de la salud y la enfermedad para la construcción de nuevas
prácticas en salud. Para eso, hemos señalado los conflictos y intercâmbios
entre lo conocimiento de la biomedicina y de los terapeutas populares,
mostrando la importância de la antropología de la salud/enfermedad en
este debate. El análisis se centra también el desarrollo en esta área del
conocimiento, y su contribuición para la práctica más conciente de los
profesionales sanitários, a partir de lo reconocimiento de la salud y
enfermedad mientras procesos socioculturales. Por lo tanto, la antropología
de la salud y enfermedad, presenta oportunidades para repensar en
políticas de salud más humano, además para la redefinición de las
actividades cotidianas de los profesionales de la salud.

Palabras clave: antropología; profesionales de la salud; políticas de la salud.

Introdução Medicina do Rio de Janeiro (1829), e da


implantação do ensino médico pelo governo
Durante décadas e até à atualidade, a imperial em 1832 (PIMENTA, 2004).
medicina científica conviveu do lado de No oitocentos, o Grão-Pará foi um dos
práticas populares de cura, tentando impor vários cenários onde se observou os embates
seu saber como o único capaz de explicar a entre agentes de cura que se desvelaram em
etiologia e cura para as enfermidades. meio a epidemias como o da cólera e da
Portanto, médicos, intelectuais e cientistas, lepra. De acordo com Ferreira (2003), ao
conviviam muitas vezes, de forma pouco analisar a ciência dos médicos e a medicina
harmoniosa com práticas populares dos pajés, popular no início do século XIX no Brasil,
benzedeiras, homeopatas, boticários, aponta que durante o oitocentos a disputa
feiticeiros, barbeiros, parteiras, sangradores, entre a medicina acadêmica e as práticas de
espíritas, práticas estas consideradas como cura popular se tornou cada vez mais
“charlatanismo”1 pelos médicos. evidente, sobretudo em determinados
A medicina acadêmica de tradição contextos, como o do combate às epidemias,
europeia que se constrói a partir de meados quando a gravidade da situação expunha a
do século XVIII, e que se baseia no incapacidade da ciência médica de deter a
racionalismo e na observação, era algo propagação das doenças.
bastante “novo” se comparado às outras Todavia, apesar de médicos diplomados
práticas de cura, as quais se baseavam nas e terapeutas populares se afirmarem como
tradições culturais e na experiência empírica saberes opostos, na prática, seus limites não
da população (WITTER, 2001). eram claros, ou seja, o conhecimento desses
No Brasil, a monopolização das artes de agentes de cura se aproximavam e
curar foi empreendimento do início do século interagiam. Para Almeida
XIX a partir da fundação da Sociedade de (http://www.eeh2008.anpuhrs.org.br), há
trocas culturais entre as práticas de cura dos
1
médicos formados e dos terapeutas
O conceito de charlatão não está apenas associado
populares, e que, portanto, há a simbiose de
aos agentes de cura populares, mas é usado também
no interior da classe médica, contra qualquer um que conhecimento de diferentes origens e
demonstrasse uma séria concorrência, o que evidencia tradições.
as divergências entre os tipos de terapêutica médica.

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Em outras palavras, durante o século ouvir o outro, possibilitando através da


XIX, nem as práticas de cura populares nem a comunicação, o conhecimento das reais
medicina acadêmica eram conhecimentos necessidades do indivíduo, considerando que
fechados em si, mas tinham uma dinâmica eles são sujeitos de sua própria história, e
que foi capaz de possibilitar uma constante que, portanto, exercem agência sobre suas
recriação através dos contatos estabelecidos próprias vidas, percebendo e agindo segundo
no cotidiano. suas experiências na vida coletiva (LANGDON,
Atualmente, apesar da biomedicina 2009).
ainda se justificar como saber hegemônico,
foi com o fortalecimento da antropologia da Os agentes de cura
saúde e da doença nas últimas duas décadas
no Brasil que se passou a defender um No tocante ao fenômeno
relativismo relacionado ao processo saúde/doença, atualmente muitos estudiosos
saúde/doença e às práticas de saúde, onde os acreditam que não se pode separar as noções
saberes e práticas de qualquer sistema e práticas de saúde dos outros aspectos da
médico são percebidos como construções cultura dos indivíduos. O modelo biomédico,
socioculturais (LANGDON, 2009). apesar de possuir ainda muitos adeptos, atua
Em outras palavras, o fenômeno saúde- lado a lado com um sistema cultural de saúde
doença não pode ser entendido à luz que inclui especialistas não reconhecidos pela
unicamente de instrumentos anátomo- biomedicina (LANGDON; WIIK, 2010), como
fisiológicos da medicina (MINAYO, 1991), mas por exemplo, benzedeiras, curandeiros,
deve considerar a visão de mundo dos xamãs, pajés, pastores, padres, pais de santo,
diferentes segmentos da sociedade, bem dentre outros, cujas terapêuticas de cura são
como suas crenças e cultura. Significa dizer produtos de variados tipos de bricolage que
que nenhum ser humano deve ser observado têm raízes em práticas milenares de
apenas pelo lado biológico, mas percebido em diferentes tradições filosóficas, teóricas,
seu contexto sociocultural. mágicas e de misticismo (MAUÉS, 2009, p.
Por isto, o presente artigo apresenta 125).
este debate com o intuito de refletir de que Atualmente, apesar dessas práticas
forma a antropologia da saúde e da doença populares de cura ainda não serem aceitas
pode contribuir para a construção de novas pela biomedicina, acredita-se que estes
práticas em saúde. Tendo em vista que boa embates já foram bem maiores no passado,
parte dos profissionais de saúde nos dias de quando agentes populares de cura eram
hoje – seja pela dinâmica nos serviços de proibidos de exercer suas terapêuticas.
saúde, seja pela falta de capacitação ou Segundo Almeida
mesmo pelo descaso com o usuário – ainda (http://www.eeh2008.anpuhrs.org.br), o
reproduzem um ideal positivista, impondo um nascimento das Faculdades de Medicina do
modelo teórico fechado, onde o usuário do Rio de Janeiro e de Salvador em 1832, bem
serviço não participa ativamente do processo, como a transformação da então Sociedade de
além de dissociar a saúde e a doença dos Medicina do Rio de Janeiro em Academia
aspectos e dimensões históricas, sociais e Imperial de Medicina, foram processos
culturais dos indivíduos. decisivos para a institucionalização e
Isso não quer dizer que médicos, fortalecimento da medicina acadêmica,
enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, enquanto saber hegemônico.
terapeutas ocupacionais, dentre outros Nesse contexto, era necessário
profissionais da saúde, tenham que desautorizar qualquer prática de cura
abandonar os modelos teóricos que os realizada por terapeutas populares, os quais
orienta em seus trabalhos, mas precisam não possuíam nenhuma formação científica, e

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por isso, não poderiam atuar como os as regras morais vigentes teriam uma vida
médicos letrados. saudável, sem enfermidades. Enquanto a fala
Um aspecto interessante destacado por dos médicos indicava preceitos, a fala dos
Witter (2005) aponta para a inferioridade do padres indicava a graça alcançada, contudo,
trabalho manual em relação às chamadas ambos tinham o objetivo de desautorizar as
artes liberais. Nos oitocentos, as atividades práticas terapêuticas realizadas por agentes
dos terapeutas populares como os barbeiros populares.
e cirurgiões estavam associadas com o Entretanto, apesar de todos os esforços,
sangue, o corpo e as suas partes “sujas”, o os médicos diplomados não conseguiram
que sempre depreciava o ofício deles. Ao proibir a atuação dos terapeutas populares,
contrário dos médicos que se identificavam pois nos contextos de epidemias como a
com as artes liberais, as quais exigiam maior cólera e a lepra, a prática médica necessitou
estudo e menor grau de trabalho manual. dialogar com terapêuticas populares de cura,
Segundo Francisca Santos (2001), ao pois a etiologia e cura para as enfermidades
tratar sobre o discurso médico-higienista em eram desconhecidas, e, portanto, causavam
Belém do Pará no início do século XX, os medo e insegurança.
médicos acreditavam ter a verdade, e por Foi neste contexto que o processo de
isso, deveriam ensinar tanto ao governo popularização da medicina acadêmica se
quanto à população ignorante, guiando-os intensificou e se destacou após a divulgação
“sob as luzes da razão”, orientando-os para do Dicionário de Medicina Popular em 1842,
terem uma conduta que os levem a alcançar o do médico polonês Napoleão Czerniewicz, ou
progresso da civilização. Nesse sentido, a simplesmente, Dr. Chernoviz (seu nome
política médica vem para efetivar o controle, abrasileirado), no qual há referências a
intervindo na sociedade, policiando todas as inúmeros vegetais e seus respectivos usos no
possíveis causas de doenças, destruindo os tratamento de várias enfermidades, além de
espaços sociais perigosos. difundir saberes sobre higiene, que estava tão
Além de reivindicações ao governo em voga naquele momento (CHERNOVIZ apud
sobre as restrições e a regulamentação do FERREIRA, 2003). Portanto, concomitante a
ofício de curandeiros, os médicos diplomados um conflito social, existe a necessidade de
também contavam com o apoio da igreja dialogar com as práticas populares de saúde.
católica e das Ordenações do Reino. “A igreja Acredita-se que este processo de
estabelecia a fronteira cultural entre o popularização da medicina acadêmica
universo demoníaco e a cura médica perdura até os dias de hoje quando se
associada aos saberes universitários. A observa médicos utilizando determinadas
medicina procurava desvalorizar o ervas, ou indicando ao usuário um tratamento
conhecimento terapêutico popular, espiritual, enfim, as fronteiras entre os dois
distinguindo os procedimentos ‘científicos’ saberes é, e sempre foi bastante tênue no
das crenças consideradas ‘supersticiosas’” sentido de que seus conhecimentos
(EDLER, 2010, p. 21). combinam-se e recriam novos saberes e
Segundo Beltrão (2004, p. 319), até novas práticas em saúde.
mesmo os médicos, com o auxílio da igreja Um trabalho interessante desenvolvido
católica, de certa forma defendiam a por Maués (2009) exemplifica essa realidade.
concepção da doença enquanto punição. Eles Segundo ele, um renomado cirurgião no
acusavam as pessoas de serem “insalubres e campo da biomedicina dizia que ao realizar
imorigeradas”, e atraíam para si as suas cirurgias, além de toda tecnologia que
enfermidades quando não seguiam as tinha a seu alcance, contava com o auxílio de
prescrições médicas. A lógica da concepção um “espírito de luz”. O que demonstra que,
seria a seguinte: caso as pessoas observassem apesar de existirem às vezes tensões entre o

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saber da biomedicina e as práticas de cura inúmeras contribuições que envolvem as


religiosas e espirituais, elas não se anulam, reflexões em torno do processo
mas reinventam-se de acordo com as saúde/doença, cultura e sociedade, bem
necessidades do sujeito. como são fundamentais para se repensar em
formulação de políticas públicas e
Antropologia da saúde e da doença planejamento dos serviços de saúde.
Todavia, esta realidade não foi sempre
Neste contexto, os estudos que vêm assim. Segundo Ibáñez-Novión (1982, p. 18),
sendo desenvolvidos no campo da antes da década de 70 a produção científica
antropologia da saúde e da doença, e que se no Brasil relacionada à antropologia médica,
intensificaram no Brasil nas últimas duas ficava por conta dos chamados folcloristas, os
décadas, trouxeram e trazem contribuições quais quando falavam sobre a saúde/doença
inimagináveis e novos olhares sobre analisavam de forma dispersa e acrítica, além
representações e práticas em saúde/doença. disso, ao tratarem das crenças e práticas
Para Alves e Rabelo (1998, p. 107), estes médicas em sociedades rurais e urbanas
trabalhos, relacionavam-nas ao atraso cultural, à
ignorância e/ou de “sobrevivência” de formas
Têm ampliado nosso entendimento das arcaicas de pensamento e comportamento.
matizes culturais sobre as quais se Do ponto de vista dos folcloristas, a
erguem os conjuntos de significados e
medicina científica se depararia com o estágio
ações relativos a saúde e doença,
característicos de diferentes grupos positivo ou naturalístico, influenciada pelos
sociais, e tem servido, em grande medida, princípios da razão e da ciência,
de contraponto aos estudos características dos estágios mais
epidemiológicos que tendem a tratar o desenvolvidos da civilização. Ao contrário das
tema “doença e cultura” em termos de
práticas populares de cura, as quais eram
uma relação externa, passível de
formulação na linguagem de “fatores consideradas como uma sobrevivência de um
condicionantes”. estágio historicamente menos desenvolvido
da medicina erudita (QUEIROZ, 1980, p. 243).
Conforme Canesqui (1998), a Segundo apontamentos de Oliveira
antropologia feita no Brasil, especialmente na (1985, p. 12), esta visão preconceituosa, em
década de 80 tem produzido conhecimentos que a medicina popular é vista como uma
sobre os temas alimentação, saúde, doença, prática feita por ignorantes, nega qualquer
que afligem principalmente as classes contribuição desta para construção de novas
trabalhadoras ou outras minorias. Isto é, são formas de pensar as doenças e as curas. Para
estudos preocupados em investigar e analisar a autora, quando a medicina popular é
de forma mais conscienciosa os distintos estudada deste modo, não está se levando
saberes e práticas de cura, bem como suas em consideração nem os conhecimentos,
instituições e especialistas, além da muito menos as necessidades sociais e
preocupação em refletir sobre os confrontos estratégias de cura criadas pelas pessoas do
e/ou complementaridade dos cuidados povo.
médicos com outras práticas de cura. Lévi-strauss (1970), ao estudar os povos
Estes estudos são fundamentais para se ditos primitivos, contestando o racismo e a
começar a pensar em práticas de saúde mais noção de primitivo, contribuiu
humanas, e por isso, a antropologia da saúde veementemente para que a ideia de que os
e da doença não pode ficar desvinculada de chamados selvagens são atrasados e "menos
outras disciplinas que compõe a grade evoluídos". Para ele, esses povos apenas
curricular, em especial dos cursos que operam com o pensamento mítico (magia),
formam profissionais de saúde, pois trás que em termos de operações mentais é

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comparável ao pensamento científico, sociedade brasileira. Como aponta Oliveira


diferindo quanto a questões do determinismo (1985), elas devem ser compreendidas
causal, global e integral para o primeiro e em juntamente com outras práticas sociais cujas
níveis distintos, não aplicáveis uns aos outros, determinações são construídas
no pensamento científico (p. 31-32). historicamente e socialmente.
Esta mesma ideia de selvagem Acredita-se, contudo, que não existem
enquanto primitivos e atrasados, a qual Lévi- práticas genuinamente médicas ou
strauss contesta, é aplicada aos agentes de genuinamente mágico-religiosas, mas, no
cura populares por meio dos relatos dos máximo, recursos distintos que se
folcloristas. Porém, não se pode complementam. De acordo com Laplantine
desconsiderar o fato de que são trabalhos (1986, p. 220),
pensados em uma época e em um contexto
histórico bem diferente de hoje, cujos Enquanto a intervenção médica oficial
discursos no meio científico, pelo menos boa pretende apenas fornecer uma explicação
parte deles, estavam voltados a uma ideologia experimental dos mecanismos químico-
biológicos da morbidez e dos meios
de valorização negativa dos saberes e práticas eficazes para controlá-los, as medicinas
populares, mas que apesar disso, não se populares associam uma resposta integral
tornam menos importantes, pois nos a uma série de insatisfações (não apenas
deixaram um rico legado de registros e somáticas, mais psicológicas, sociais,
inúmeros dados que, sujeitos a cuidados, espirituais para alguns, e existenciais para
todos) que o racionalismo social não se
podem ajudar em estudos sobre fontes mostra, sem dúvida, disposto a eliminar.
bibliográficas (IBÁÑEZ-NOVIÓN, 1982).
No Brasil, nos últimos vinte anos, os
Conforme Buchillet (1991), as
estudos e pesquisa sobre saúde, cultura e
interpretações que os agentes populares de
sociedade têm se multiplicado, e na última
cura fazem no tocante às desordens
década, a antropologia da saúde/doença vem
corporais, o fazem sempre em referência às
se consolidando como espaço de reflexão,
regras sociais e culturais, ou seja, cada
formação acadêmica e profissional de
indivíduo, no tocante ao processo
médicos, enfermeiros e outros profissionais
saúde/doença leva em consideração uma
da área da saúde no país (GARNELO;
organização social, religiosa ou simbólica
LANGDON, 2005).
específica da qual faz parte. O que não
Nesta perspectiva, os profissionais de significa dizer que há a ausência de um saber
saúde começam a desenvolver concepções elaborado.
menos preconceituosas em relação às
Em estudo desenvolvido por Wawzyniak
práticas de cura popular, dirigindo cuidados
(2009) com agentes comunitários de saúde
mais responsáveis às pessoas e suas famílias,
(ACS) no Tapajós (Pará), observou-se que
levando em consideração que a atenção à
esses profissionais de saúde lidam com
saúde é um sistema social e cultural2, em sua
comunidades ribeirinhas cujas concepções de
origem, estrutura, função e significados
saúde/doença se relacionam com crenças e
(OLIVEIRA, 2002, p. 68).
imaginários como o “assombro de olhada de
Neste sentido, as práticas de cura bicho” 3, em que um “bicho” ou “assombro de
populares não podem ser vistas isoladamente
de outros fenômenos que se estruturam na
3
“Também conhecido como o “mau olhado de bicho”,
afeta tanto o indivíduo quanto o grupo, uma vez que
2
A cultura oferece uma visão do mundo, ou seja, uma existe a possibilidade de o “mau-olhado atacar” outros
explicação sobre como o mundo é organizado, de membros da família ou da comunidade.
como atuar (...) é a cultura de um grupo que provê aos Frequentemente, é consequência de um
atores sociais definir técnicas, classificar e organizar as comportamento considerado condenável em relação
coisas de um modo geral. Ver: LANGDON; WIIK, 2010. ao uso dos recursos naturais ou da quebra da

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bicho” tem a capacidade de causar doenças profissional, a partir da teoria transcultural do


nas pessoas. Neste trabalho o autor mostra a cuidado. Esta teoria provê uma estrutura
importância da atuação do ACS nessas holística e compreensiva para examinar
comunidades, cujo trabalho transita entre o sistematicamente diferentes dimensões da
modelo biomédico e o sistema terapêutico cultura, dentro de uma perspectiva de
tradicional. Enfermagem (BRAGA, 1997), e foi
desenvolvida a partir da antropologia a qual
A enfermagem transcultural de Leininger trouxe contribuições significativas para o
aprimoramento do cuidar em enfermagem.
A enfermagem como ciência e arte do Para Leininger (1985), há diversidade no
cuidado assume papel fundamental na vida cuidado humano, com características que são
do ser humano, afinal A história da identificáveis e que podem explicar a
humanidade mostra, desde os seus necessidade do cuidado transcultural de
primórdios, que os seres humanos precisam enfermagem. Assim, o profissional enfermeiro
de cuidado para sobreviver, para viver com deve tentar ajustar sua prática cotidiana do
saúde, felicidade e bem estar, e para curar-se cuidar levando em consideração as crenças,
em situações de doenças (PIRES, 2009). valores e modos das culturas para que se
Sabe-se que esse cuidar em possa oferecer um cuidado eficaz e
enfermagem tem o sentido de promover a significativo para os indivíduos.
vida, o potencial vital, o bem estar dos seres O cuidado transcultural se torna ainda
humanos na sua individualidade, mais importante quando nos deparamos com
complexidade e integralidade. Abrange um regiões, como a Amazônia, que apresenta um
encontro entre pessoas com o objetivo complexo e diversificado contingente
terapêutico, de conforto, de cura quando isso populacional e sua diversidade sociocultural.
é possível, mas também de preparo para a São populações tradicionais como, por
morte quando inevitável (PIRES, 2009). exemplo, os indígenas, as populações
Para tanto, esse profissional enfermeiro caboclas, quilombolas, ribeirinhos,
deve ser capaz de considerar os aspectos seringueiros, e imigrantes recentes das várias
socioculturais como imprescindível ao partes do país (CONFALONIERI, 2005). Essa
cuidado humanístico, além de compreender singularidade faz com que essa região se
que o processo saúde-doença é subjetivo e constitua num excelente campo para as mais
que está inserido em diferentes contextos variadas práticas de cura, que incluem
culturais, isto é, a forma que cada indivíduo práticas de terapeutas populares, médicos,
experimenta esse processo está enraizada nos intelectuais e cientistas.
valores, nas crenças, nas práticas, nas Por isso, é de fundamental importância
representações sociais e simbólicas, no que os profissionais enfermeiros, os quais
imaginário, nos significados, enfim, no jeito lidam diariamente com essas populações,
próprio de cada cultura explicar e interpretar possam adotar em suas práticas de saúde um
esse fenômeno (MELO; CABRAL; SANTOS cuidado cultural que seja congruente com as
JÚNIOR, 2009). crenças e padrões de comportamento
Nesse sentido, estudos realizados por relacionados à saúde e doença do cliente e
Madeleine Leininger, enfermeira norte- famílias, conhecendo, compreendendo e
americana, foram essenciais para empoderar prevendo o cuidado terapêutico popular, sem
o corpo da enfermagem no sentido de se prender a um modelo eminentemente
valorizar as crenças, valores e práticas dos biomédico. Leininger, citada por Gualda e
mais diversos povos durante sua prática Hoga (1992),

reciprocidade dos humanos entre si ou com os não-


humanos” (WAWZYNIAK, 2008, p. 32).

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Acredita que a teoria transcultural seja enquanto atores históricos de sua realidade
capaz de predizer e explicar os padrões de cultural.
cuidado humano das diversas culturas,
bem como possibilitar a identificação de
valores, crenças e práticas populares Considerações finais
pelos profissionais de enfermagem.
Acredita ainda que por meio deste A história como filha de seu tempo vêm
conhecimento, as decisões e ações de
enfermagem podem tornar-se
nos mostrando quão complexo é o fenômeno
congruentes e benéficas para aqueles que saúde/doença, o qual deve ser entendido não
são assistidos (p. 70). de forma isolada, mas agregando aspectos
sociais, culturais, políticos e econômicos, bem
Guarda e Hoga (1992), a fim de facilitar como necessita do olhar de diferentes atores
a compreensão do conjunto de elementos sociais em torno de um bem comum:
que estruturam a teoria de Leininger, fizeram assegurar a saúde das pessoas.
a tradução desses conceitos que foram A medicina científica sempre se
elaborados por Leininger. O primeiro deles é a apresentou como detentora do monopólio do
ideia de cultura que envolve valores, crenças, saber médico, tentando desautorizar práticas
normas de comportamento e práticas populares de agentes como benzedeiras,
relativas ao estilo de vida, aprendidos, parteiras, curandeiros, feiticeiras, dentre
compartilhados e transmitidos por um grupo outros. Todavia, médicos diplomados e
específico, que orientam o pensamento, as agentes de cura popular apesar de
decisões e ações dos elementos pertencentes conviverem de forma pouco harmoniosa –
ao grupo. cada um dentro de suas limitações – também
O outro conceito fala da visão de interagem enquanto saber e prática.
mundo que se caracteriza pelo modo como os Atualmente, apesar da grande
indivíduos percebem seu mundo e universo, e intolerância por parte de muitos profissionais
nele inserem sua perspectiva de vida. E a da saúde os quais ainda conservam o modelo
estrutura social que representa um processo biomédico no exercício de suas atividades
dinâmico e de natureza interdependente, cotidianas, as terapêuticas populares, mágico-
compreendendo elementos estruturais ou religiosas, permanecem vivas nas raízes dos
organizacionais da sociedade e o modo como mais variados povos, afinal quem nunca
esses interatuam e funcionam. Incluem os recorreu ao chá de erva-doce ou do boldo a
sistemas religioso, familiar, político, fim de aliviar problemas digestivos ou
econômico, educacional, tecnológico e intestinais? Ou quem nunca recorre à
cultural, delimitados pelo contexto linguístico espiritualidade quando têm algum problema
e ambiental. seja de ordem física, psíquica ou emocional?
Acredita-se que os conceitos e Claramente, vivemos e recriamos crenças e
proposições trazidas por Leininger, reafirmam tradições milenares de acordo com o
o compromisso social que a enfermagem contexto cultural e social em que estamos
deve assumir a cada dia. Portanto, nós, inseridos.
profissionais da saúde, precisamos Nesse sentido, a antropologia da saúde
compreender os contextos sociais e culturais e da doença contribui profundamente para
em que os usuários estão envolvidos, para nossa formação enquanto profissionais da
tanto, não é necessário desconsiderar nossa saúde, uma vez que, proporciona reflexões
formação acadêmica, mas tentar transitar em torno do fenômeno saúde/doença, bem
nestes diferentes contextos (biomedicina e como sua relação com aspectos sociais e
medicina popular), valorizando o saber das culturais dos povos, ressaltando que o
pessoas e atentando para suas subjetividades, conhecimento biológico, por si só, não é

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suficiente para entender a complexidade Braga, C.G. (1997). Enfermagem transcultural


desse fenômeno. e as crenças, valores e práticas do povo
Portanto, o culto dos santos, a fé nos cigano. Rev.Esc.Enf.USP, 31(3), 498-516.
espíritos das florestas e dos rios, nos pajés e Bloch, M. (2001). Apologia da História: ou o
nas parteiras, a confiança nas orações e nos ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge
encantamentos, o conhecimento e fé nos Zahar.
remédios caseiros, enfim, todas as crenças
sobre a saúde e doença mantidas por Buchillet, D. (1991). A antropologia da doença
diferentes povos no mundo, devem ser e os sistemas oficiais de saúde. Em Medicinas
consideradas pelos profissionais de saúde tradicionais e medicina ocidental na
que, dentro de suas possíveis limitações, Amazônia. Belém: MPEG/Edições Cejup/UEP,
precisam recriar sua prática cotidiana, 21-44.
aproximando-se da linguagem e realidade Canesqui, A. M. (1998). Notas sobre a
simbólica dos indivíduos. produção acadêmica de antropologia e saúde
Além disso, a antropologia da saúde e na década de 80. Em Alves, P. C.; Minayo, M.
da doença oferece possibilidades de se C. S. (orgs.). Saúde e doença: um olhar
repensar em políticas de saúde menos antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 13-32.
segregacionistas e voltadas particularmente,
Confalonieri, U. E. C. (2005). Saúde na
às necessidades das classes mais desprovidas.
Amazônia: um modelo conceitual para a
Para tanto, é essencial compreender o
análise de paisagens e doenças. Estudos
contexto social e cultural em que o indivíduo
Avançados, 53 (19), São Paulo.
está inserido, considerando que estes
usuários transitam de forma tranquila entre Chernoviz, P. L. N. (1878). Diccionario de
os diferentes setores de atenção à saúde, seja Medicina Popular e das Sciencias Accessorias.
a biomédica ou a medicina popular. Paris, em casa do autor, vol I, A-F, 5ª edição.
No mais, é essencial resgatar a cultura Edler, F. C. (2010). Remédios de Comadre.
para o centro da relação entre indivíduo e Revista de História da Biblioteca Nacional, 56
profissionais de saúde, observando que é (5), 21-23.
preciso entender e valorizar as práticas
Ferreira, L. O. (2003). Medicina impopular:
populares de cura dentro de seu contexto.
ciência médica e medicina popular nas
Não se trata de desconsiderar a prática da
páginas dos periódicos científicos (1830-
biomedicina, mas de agregar as contribuições
1840). Em Chalhoub, Sidney et. al. (orgs.).
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Recebido em: 13/06/2012
Aceito em: 14/09/2012

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