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ANGÉLICA CARLINI

Judicialização da Saúde
PÚBLICA E PRIVADA

A
livraria/
DO ADVOGADO
/ editora
C a p í t u l o 1 - 0 conceito de saúde e a profissão médica
no Brasil

1.1. A construção política e jurídica do conceito médico


de saúde
Saúde é um conceito histórico, político e social construído
principalm ente p o r médicos. 0 aspecto ju ríd ico desse conceito expresso
especialm ente na C onstituição Federal de 1988 é resultado dessa
construção histórica, política e social, bem como da trajetó ria da
M edicina como profissão legalm ente instituída para definir o que é saúde,
o que é doença e o que é tratamento prescrito para uma doença.
No m undo contem porâneo, os médicos quase sem pre são os únicos
autorizados a fixar conceitos de saúde, de doença e, em decorrência
disso, os únicos autorizados a d eterm in ar o tra ta m e n to adequado para as
pessoas.
Quem p re te n d e r realizar tra ta m en to de saúde p o r outros meios que
não pela consulta a um m édico estará sujeito, no Brasil, a ser fiscalizado
pelo Estado, que proíbe a p rática de atos médicos p o r aqueles que não
estejam legalm ente habilitados a exercê-los.
A prática m édica é regulada e fiscalizada pelo Estado, e isso afasta,
desde logo, a possibilidade de o utras práticas altern ativ as à m edicina.
Não há proibição p ara práticas religiosas de cura que, p o r sinal, em
um país de forte sincretism o religioso, são até b astan te com uns. Mas
aquele que p re te n d er se estabelecer como curandeiro e p ro m eter a cura
de doenças por meio de suas práticas estará sujeito à fiscalização do
Estado e será coibido de co n tin u ar a p raticar atos de cura.
Fatores históricos, políticos e sociais justificam que a opinião m édica
seja considerada a única abalizada para d e tec ta r se o indivíduo está ou
não saudável e, se não está, que procedim entos deverão ser adotados.
Esse poder de dizer a saúde e a doença bem como de d eterm in ar o
tra ta m en to a ser seguido foi obtido ao longo de m uitos anos e com
grande protagonism o dos m édicos para conseguir a exclusividade e,
concom itantem ente, afastar os possíveis concorrentes na tarefa de
estabelecer o que é doença e o que é cura.
Joffre M. de Rezende4 relata:
Somente no século V a.C, com o surgimento da medicina hipocrática
na Grécia, foi a mesma separada da religião, das crenças irracionais e
do apelo ao sobrenatural. Desde então, por caminhos tortuosos, com
avanços e recuos, chegou à Idade Média, quando tiveram início os
cursos médicos oficiais. Até então, o ensino da arte médica era informal
e se fazia de mestre e aluno através de gerações, como consta do
juramento de Hipócrates.
Conforme ressaltou Bullough, em seu livro The Development of
Medicine as a Profession, a medicina só foi institucionalizada a partir da
Idade Média, após a fundação da escola de Salerno e das primeiras
universidades europeias. Dentre elas teve atuação destacada a de
Pádua, onde se formaram e ensinaram grandes personagens que
revolucionaram a medicina, como Vesalius, Morgagni, Harvey e outros.
No Brasil, e n tre 1808 e 1828, eram expedidas licenças e cartas para
aqueles que p retendessem exercer algum a atividade relacionada com a
prática da cura. A regulam entação era sem elhante à praticada em
Portugal, e as atividades eram fiscalizadas pela Fisicatura, órgão que
existiu até 1828.
Tania Salgado Pim enta5 afirm a sobre a expedição de cartas e licenças
p ara as atividades de sangradores, p arteiras, curandeiros, curadores de
m oléstias, e n tre outros:
Não obstante a hierarquização, a oficialização das práticas de cura
populares significava o reconhecimento desse saber como legítimo, o
que permitia a inclusão dos terapeutas populares entre as pessoas
autorizadas a exercer alguma atividade de cura. Isso se dava no
contexto de uma sociedade na qual as relações eram traçadas por
meio de redes de dependências pessoais que se construíam a partir de
favores, lealdades, obediências e proteção, materializadas muitas
vezes em nomeações para cargos públicos ou em privilégios em
processos burocráticos.
As práticas de curas dos sangradores e curadores estavam
relacionadas às visões cosmológicas dessas pessoas - na maior parte
africanos e descendentes de africanos em que as doenças eram
associadas a elementos espirituais. O vasto conhecimento que tinham
sobre plantas medicinais, reconhecido pelos médicos acadêmicos,
também estava relacionado às suas crenças religiosas. Ainda que os
curadores tivessem influências de outras tradições culturais, como as
indígenas ou as relativas a setores populares europeus, também
nesses casos existia a crença de que as doenças poderiam ser
causadas por problemas espirituais.
Os médicos diplomados, por sua vez, estavam cada vez mais
afastados dessas concepções e mais envolvidos na luta pelo
monopólio da Medicina. Essa distância acentuada entre as concepções
médicas populares e a acadêmica evidencia-se com a grande
popularidade, nas décadas de 1840 e 1850, da homeopatia, que, como
as primeiras, também se baseava numa visão espiritualizada da
doença e da saúde.
Reforçando essa constatação histórica, m anifesta-se Regina Xavier:6
Os médicos, por sua vez, pareciam buscar causas materiais para as
doenças, temendo os miasmas, a insalubridade, a falta de higiene,
percebendo-os como possíveis causas dos males da população.
Apesar de suas ações serem muitas vezes ambíguas, em nenhum
momento de suas declarações, pelo menos as que encontramos,
manifestam qualquer preocupação em reelaborar essa relação entre o
sobrenatural e os males do corpo. No intuito de se diferenciarem e de
construírem para si um lugar privilegiado de ação, faziam-no em nome
de conhecimentos científicos que tendiam a distanciá-los do resto da
população, muitas vezes mais crédula. Não podiam, portanto, concorrer
com os curandeiros, que tinham outras formas de entender as doenças,
relacionando sua religiosidade com seus tratamentos e garantindo, por
conseguinte, a conquista de espaço social e político.
Os estudos sobre a m edicina e seu papel político e social p ertencem ao
que hoje é conhecido como sociologia do conhecimento médico, que possui
estudos que têm contribuído p ara a com preensão do papel do m édico nas
sociedades contem porâneas, principalm ente em relação ao poder que
exercem para a caracterização do que é doença e do que é saúde e, em
conseqüência, para a definição da aplicação dos recursos públicos e
privados na prevenção e no tra ta m en to de m oléstias, realização de
exam es, utilização de m edicam entos e o u tras terapias de cura.
Esses estudos são essenciais para a com preensão dos problem as
tratad o s nesta reflexão, porque a busca pela proteção jurisdicional para a
obtenção de acesso a tratam en to s de saúde que têm ocorrido de form a
sistem ática na sociedade brasileira contem porânea está sem pre
fundam entada no p arecer do m édico que assiste o sujeito de direitos que
procura a tu tela do Judiciário.
E c o n tra ria r o p arecer técnico do m édico é inviável para os
m agistrados seja pela com plexidade do conhecim ento, seja pela
exclusividade que se atribui ao médico para tra ta r dos assuntos
referen tes à saúde e sua m anutenção. Não raro a opinião de o u tro médico
sobre o m esm o caso é questionada, principalm ente se ele não possuir os
m esm os predicados daquele que form alizou o diagnóstico e prescreveu o
tratam en to .
Freidson7 esclarece que:
A Medicina, entretanto, não é simplesmente a principal profissão de
nosso tempo. Entre as profissões estabelecidas nas universidades
europeias da Idade Média, é a única que tem desenvolvido uma
conexão sistemática com a ciência e a tecnologia. Diferindo do Direito e
do Sacerdócio, que não estabeleceram nenhuma importante conexão
com a ciência moderna e a tecnologia, a Medicina se desenvolveu no
interior de uma complexa divisão de trabalho, organizando um
crescente número de prestadores de serviços e técnicos em torno da
tarefa central do diagnóstico e do tratamento de doenças da
humanidade. Além disso, ultrapassou outras profissões em
preeminência. Isso aconteceu porque, nas sociedades pós-industriais,
a produção de bens e de outras formas reais de propriedade passaram
a ser um problema menor que o bem-estar dos cidadãos. O bem-estar
passou a ser definido em termos exclusivamente seculares e não mais
religiosos; e a noção de doença se expandiu, muito mais do que em
anos anteriores, incluindo muitas outras facetas do bem-estar humano;
a Medicina tirou o Direito e o Sacerdócio de suas posições de
dominância. [...] Como as profissões são empreendimentos humanos
coletivos, além de organizações com os próprios conhecimentos,
crenças e habilidades especiais, a Sociologia pode enfocá-las como
organizações comuns de grupos, separados de seus conceitos
diferentes, provendo aqueles gerais pelos quais as profissões poderiam
ser individualmente comparáveis.
Destaca Freidson:8
Se considerarmos a profissão médica atualmente, fica claro que sua
principal característica é a preeminência. É preeminente não apenas no
prestígio, mas também na autoridade relativa à sua especialidade. Isto
para dizer que o conhecimento médico sobre doenças e seu tratamento
é considerado autorizado e definitivo. Apesar das exceções
interessantes, como a quiroprática e homeopatia, não existem
representantes de ocupações em competição direta coma Medicina
que tenham conseguido posições semelhantes na formulação de
políticas relacionadas à saúde. A posição da Medicina hoje em dia está
próxima das antigas religiões de Estado - ela tem um monopólio
aprovado oficialmente sobre o direito de definir o que é saúde e doença
e de tratá-la. Além disso, ela é altamente reconhecida pelo público, o
que reflete o grande prestígio que possui.
Essa posição de grande im portância e confiabilidade social dos
médicos foi construída ao longo de diferentes períodos históricos, em
especial na Europa.
A p rática m édica se constrói fundam entada em alguns pressupostos
que a caracterizam até hoje: o atrelam en to do saber médico ao saber
científico; a luta pelo reconhecim ento legal e social da exclusividade do
conhecim ento científico da saúde e, consequentem ente, o com bate aos
curandeiros e curadores de qualquer espécie que não os médicos; e a
participação dos m édicos na organização social, inclusive na utilização de
recursos públicos, na arq u ite tu ra dos grandes centros urbanos, na
definição das práticas recom endadas e das vetadas aos trabalhadores e
m em bros das com unidades sociais.
Michel Foucault9 escreve:
A Medicina como técnica geral de saúde, mais do que como serviço
das doenças e arte das curas, assume um lugar cada vez mais
importante nas estruturas administrativas e nesta maquinaria de poder
que, durante o século XVIII, não cessa de se estender e de se afirmar.
O médico penetra em diferentes instâncias de poder. A administração
serve de ponto de apoio e, por vezes, de ponto de partida aos grandes
inquéritos médicos sobre a saúde das populações; por outro lado, os
médicos consagram uma parte cada vez maior de suas atividades a
tarefas tanto gerais quanto administrativas que lhe foram fixadas pelo
poder. Acerca da sociedade, de sua saúde e suas doenças, de sua
condição de vida, de sua habitação e de seus hábitos, começa a se
formar um saber médico-administrativo que serviu de núcleo originário
à “economia social” e à sociologia do século XIX. E constitui-se,
igualmente, uma ascendência político-médica sobre uma população
que se enquadra com uma série de prescrições que dizem respeito não
só à doença mas às formas gerais da existência e do comportamento
(a alimentação e a bebida, a sexualidade e a fecundidade, a maneira
de se vestir, a disposição geral do habitat).
Foucault analisa o ato m édico da Idade Média que foi basicam ente
calcado no isolam ento do doente para longe do convívio social, como
form a de p ro teg er a sociedade do contágio, ou no caso da loucura dos
atos praticados pelos insanos e que poderiam ser prejudiciais.
A m edicina ditou regras para a a rq u ite tu ra das cidades que se
tran sfo rm aram a p a rtir da Idade Média em grandes centros de com ércio
e produção m an u fatu reira. Assim, os grandes centros urbanos se
higienizaram , se purificaram e se tran sfo rm aram por m eio de tais
recom endações m édicas, que estabeleceram o que era bom e o que não
era p ara g a ra n tir a saúde, como deveriam circular as pessoas, como
deveriam m orar, como deveriam circular as águas e o ar. Além disso, o
planejam ento de acesso às fontes de água de beber e o da distribuição das
águas de esgoto, o alargam ento de avenidas p ara a circulação do ar, a
retirad a das casas que estavam construídas sobre pontes p ara que o ar
pudesse circular livrem ente, a construção de cem itérios com covas
individuais e afastados do cen tro das cidades - todos esses aspectos
estiveram p resen tes na história das cidades d u ran te e após a Idade Média
e foram decorrentes da influência dos conhecim entos médicos.
Mas o conhecim ento médico d eterm inou tam bém a necessidade de
exclusão dos doentes para fora do convívio fam iliar e social, para
confiná-los em hospitais, hospícios e colônias de m oradia de leprosos.
F oucault10 afirm a:
Medicalizar alguém era mandá-lo para fora e, por conseguinte, purificar
os outros. A medicina era uma medicina de exclusão. O próprio
internamento dos loucos, malfeitores, etc., em meados do século XVII,
obedece ainda a esse esquema. [...]
O poder político da medicina consiste em distribuir os indivíduos uns ao
lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los uma a um,
constatar o estado de saúde de cada um, ver se está vivo ou morto e
fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido,
inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um
registro, tanto quanto possível completo, de todos os fenômenos.
O apoio político do Estado era fundam ental para que a m edicina fosse
reconhecida como um saber exclusivo na definição de saúde e de
tra ta m en to de doenças. É preciso reconhecer que a prática m édica
sem pre foi obrigada a conviver com inúm eros saberes populares que, não
raro, e até os dias de hoje, recom endam práticas de cura com pletam ente
diferentes daquelas prescritas pelos médicos, p o r vezes até em evidente
agressão ao bom -senso, como acontece com alguns tratam en to s fundados
em crenças religiosas.
Por essa razão, os m édicos tiveram que tra b a lh a r de form a solidária,
organizados em associações ocupacionais para conquistar um espaço
exclusivo de atuação superior à influência das práticas populares e
religiosas. C ontar com o apoio do papel político do Estado foi
fundam ental para a garan tia da exclusividade.
Outro im p o rtan te aspecto p ara a consolidação da exclusividade da
prática m édica foi sua fundam entação científica, conquistada a p a rtir dos
avanços das pesquisas nas áreas da Física, da Química e da Biologia,
principalm ente. N enhum a o u tra profissão se beneficiou ta n to dos
avanços da pesquisa dessas áreas como a M edicina, porque esses
conhecim entos p erm itiram d e te c ta r as doenças com m aior facilidade e
prom over tra ta m en to s mais eficientes em m aior núm ero de casos.
E. F reidson11 constata:
Com o desenvolvimento de uma fundamentação tecnológica ou
científica adequada do trabalho médico, desenvolveu-se uma
fundamentação sociológica para criar uma ocupação tão bem
estabelecida na sociedade que se tornou uma verdadeira profissão de
consulta - comandando os critérios que qualificam os homens ao
trabalho de cura, com exclusiva competência para determinar o
conteúdo correto e o método efetivo de exercer sua atividade, sendo
consultado livremente pelos que necessitam de sua ajuda.
A racionalidade e a objetividade do positivism o contribuiriam ao
longo da H istória para to rn a r a m edicina fundam entada no saber
científico e com provável, um a área do conhecim ento quase indiscutível,
to rn an d o os médicos no im aginário social seres de enorm e credibilidade.
Esse im aginário ainda hoje é cultivado pela população em todos os
extratos sociais, em m uitos países ocidentais.
No Brasil, o Congresso Nacional dos Práticos ocorrido em 1922
m arcou um m om ento im p o rtan te p ara a m edicina em seu cam inho de
construção da exclusividade do saber sobre a saúde.
0 país vivia naquele m om ento histórico m udanças im portantes
porque havia não só superado a dependência colonial após a im plantação
da República como tam bém estabelecido novas form as de produção
econôm ica a p a rtir do fim da escravidão, e estava im plantando a
produção industrial com a chegada dos im igrantes europeus e de seu
conhecim ento tecnológico de produção.
As cidades daquela época se to rn aram centros m aiores de produção,
com ércio, circulação e m oradia de pessoas, o que provocou m aior
preocupação com a saúde pública, sobretudo por p arte do Estado e em
especial na adoção de m edidas de c a rá te r preventivo.
0 poder público se envolve em questões como hábitos de higiene da
população em relação ao seu próprio corpo e à sua m oradia, mas tam bém
se preocupou com a organização dos serviços de assistência m édica
estatal. Enfim, a ideia que p reponderava no início do século XX nas
grandes cidades brasileiras era a de que o desenvolvim ento econômico
tam bém dependia da preservação da saúde dos trabalhadores, razão pela
qual se justificava a presença do Estado p ara g erir os recursos que
pudessem g a ra n tir prevenção e tratam en to .
No en tan to , a disputa e n tre os médicos e os higienistas no debate
sobre qual conhecim ento deveria prevalecer no tra ta m en to das questões
de saúde não tard o u a aparecer. P ereira N eto12 descreve o em bate que
com eçava a se delinear e que atingiu ponto alto no Congresso dos
Práticos, em 1922:
Aos poucos, o mercado de trabalho médico se tornava mais complexo
e a relação assalariada começava a ser introduzida. O médico que
balizava sua relação com seu paciente de forma individualizada e
liberal via seu espaço de prestígio e poder, no mercado de trabalho, ser
ameaçado pelo médico funcionário público, trabalhando em um
hospital. Esta instituição foi deixando, aos poucos, de ser o asilo dos
pobres, imprestáveis e incuráveis, aguardando a morte, para tornar-se
o espaço da ciência, da racionalidade, da capitalização e da
recuperação para vida. A profissão médica integrou desta maneira, o
processo de parcialização do trabalho que se desenvolvia nas demais
atividades produtivas. Começava a se restringir o lugar do médico que
vivia exclusivamente do exercício liberal de sua atividade. [...]
O debate sobre a questão do mercado de trabalho estava organizado
em torno de sua restrição ou ampliação. Para alguns médicos, o
assalariamento era visto como uma ameaça à sobrevivência da
profissão, pois comprometia a liberdade do profissional em estabelecer
o valor da sua consulta. Além disso, os estabelecimentos públicos de
assistência médica eram vistos como agentes captadores de uma
clientela que detinha poder aquisitivo suficiente para ser atendida no
consultório particular. O mercado de trabalho parecia se restringir. Para
outros, a entrada do Estado na organização de uma rede de
assistência médica promovia a ampliação do mercado de trabalho, já
que oferecia seus serviços a uma clientela não alcançada pelo sistema
liberal. Além disso, esta introdução representava uma renda fixa que o
médico passaria a ter. O debate estava claramente instaurado e o
mercado de trabalho começava a se modificar, no início deste século,
de forma significativa.
O resgate histórico do trabalho de P ereira Neto perm ite afirm ar que o
debate em to rn o da m ercantilização da m edicina é m uito a n terio r e
rem o n ta ao início do século XX, e não ao século XXI, quando essa
polêm ica é retom ada pelos estudiosos do fenôm eno de judicialização da
saúde pública e privada. Tam pouco a preocupação da classe m édica com
condições mais rentáveis p ara o exercício de sua atividade profissional é
contem porânea, em bora ten h a se to rnado mais visível na quadra
histórica que vivemos.
No século XX, os m édicos se organizaram em associações e realizaram
congressos não apenas p ara d eb ater a exclusividade da atividade de
caracterização da saúde e do tra ta m en to p ara a doença, m as tam bém
para discutir como seria seu posicionam ento profissional num país que
iniciava de form a m arcan te a form ação de um m ercado para ser o local
da produção, do consum o e das relações de produção.
Esse m om ento m arca o final (ou, pelo m enos, o com eço do fim) da
relação idealizada e n tre m édico e paciente, individualizada, exercida de
form a d ireta e sem interm ediários, na qual a habilidade, a paciência de
ouvir o paciente e suas estórias, e a autonom ia para cobrar as consultas e
recom endar o tra ta m en to eram as características essenciais.
O m édico generalista, capaz de tra ta r qualquer tipo de doença, que
atendia o paciente em seu consultório com disponibilidade de tem po para
ouvir todas as peculiaridades de seus sintom as, que tra ta v a o corpo do
doente como um todo indivisível, que associava prescrição m édica à
recom endação de boas condutas m orais, que era livre p ara receitar e
acom panhar o cotidiano dos pacientes, inclusive em encontros sociais e
eventuais na vizinhança, deixava de ser o perfil m ajoritário.
Temas como mercado e a necessidade de aum ento do conhecim ento
para fazer fren te às novas exigências da área m édica passaram a in teg rar
o cotidiano dos médicos e de suas preocupações profissionais.
A creditar que as controvérsias e contradições que os médicos
vivenciam no século XXI são fruto do aum ento do acesso à tecnologia e
ao desenvolvim ento da farm acologia é ig n o rar que a classe m édica
en frentava no Brasil, desde o início do século XX, problem as na
consolidação de seu espaço no m ercado de trab alh o e que isso se
avolum ou ao longo de todo o século com o surgim ento de novas
tecnologias, com a construção de novos saberes científicos e com a
criação de novas form as de exercício do trabalho, como a saúde
suplem entar e o sistem a de cooperativas m édicas, e n tre outros.
Uma das prim eiras reações organizadas pelos m édicos para fazer
fren te às m udanças que viviam foi cuidar do estabelecim ento de um a
hierarquização en tre as diversas áreas profissionais da saúde de modo a
terem suprem acia sobre enferm eiras, p arteiras e farm acêuticos. Todas
foram consideradas áreas subordinadas aos saberes médicos,
supostam ente m ais abrangentes, científicos e com petentes para
d eterm in ar os estados m órbidos e seus tratam en to s.
Esse fenôm eno não é apenas brasileiro; ao contrário, ocorreu em
vários países do m undo ocidental nos quais a m edicina se firm ou como
área profissional de controle de outras, norm alm ente denom inada de
paramédica.
F reidson13 afirm a que o pessoal não m édico, da área de saúde, possui
capacitação técnica para realizar grande p arte das atividades tradicionais
de cura realizadas pelos médicos. Os critérios técnicos não são, portanto,
o diferencial fundam ental da do m édico em relação aos param édicos. O
controle exercido com exclusividade pelo m édico é, ao con trário do
conhecim ento técnico, o elem ento fundam ental para a diferenciação das
duas categorias profissionais.
Os param édicos são, assim , p arte in teg ran te da equipe que se dedica
ao trabalho de diagnóstico de doenças e prom oção de atos para
recuperação da saúde e de form as científicas de prevenção de males, mas
integram um a equipe de saúde na condição de dependentes da ordem do
médico que chefia essa equipe. Realizam suas atividades a p a rtir do
pedido e da supervisão do profissional médico.
A supervisão e controle dos m édicos em relação aos param édicos não
passa despercebida para a sociedade, que atribui m enor prestígio a eles
que aos profissionais de m edicina, na m edida em que identifica neles a
falta de autonom ia e o aspecto subalterno aos médicos. Desse modo, os
médicos reforçam a ideia de que possuem m aior quantidade e qualidade
de conhecim ento científico.
A h ierarq u ia se estende aos próprios param édicos e suas m últiplas
divisões, enferm eiras graduadas, auxiliares de enferm agem , técnicos em
enferm agem , e n tre outros, criando um rígido sistem a que passa pelo
grau de form ação educacional, m as que, m esm o em casos em que seja
obrigatória a form ação universitária como Enferm agem, N utrição ou
Fisioterapia, há subordinação ao m édico, que é o único autorizado a
d eterm in ar o ato que será praticado no paciente.
Na busca da construção de identidade, autonom ia e prevalência como
prática profissional, os m édicos se adequaram p erfeitam en te ao sistem a
de produção capitalista que m arca de form a expressiva a produção
econôm ica m undial a p a rtir da Segunda G uerra e, de form a hegem ônica,
a p a rtir da década de 90 com o fim do socialismo nos países europeus.
W right, citado por Marcos de Souza Q ueiroz,14 afirm a que, estudando
a m edicina na Inglaterra no século XVII, é possível concluir que ela não
se to rn o u hegem ônica pelo fato de seu conhecim ento ser mais válido ou
sua eficácia terap êu tica m aior. Para W right, a única explicação para o
sucesso histórico dessa forma de medicina se encontra na compatibilidade
cultural com o novo modo de produção capitalista.
Além disso, o poder de d eterm in ar, coordenar e fiscalizar as ações em
prol da detecção dos problem as de saúde e de sua cura avançou com o
acesso a novas tecnologias disponíveis no século XX e no século XXI,
consolidando a posição de que som ente os m édicos podem dizer o que é
doença, o que é saúde e o que é necessário para cu rar - e ninguém mais.
E, ainda, que esse trabalho deverá o co rrer de form a sincronizada com o
m ercado que se desenvolveu no âm bito da saúde e da m edicina.
O século XX e o século XXI estão m arcados pelo avanço científico e
tecnológico e pela necessidade de en fren tam en to das conseqüências
desse avanço.
Em um prim eiro m om ento histórico (que, segundo Ulrich Beck,15
seria até a m etade do século XX), a ciência foi considerada como verdade
inabalável, área de saber especializado em que som ente podiam tra n sita r
aqueles que detivessem conhecim ento suficiente e com provado p ara isso.
Porém , a p a rtir da segunda m etade do século XX, a visibilidade da ciência
se modifica. Beck destaca que a ciência não é mais recebida unicam ente
como fonte de soluções, mas tam bém como fonte de problem as. Os
cientistas foram confrontados com seus êxitos e tam bém com seus
fracassos e os riscos deles decorrentes.
A conseqüência dessa p rática crítica de um a ciência que se
autoquestiona é a produção de m ais ciência, com preendida agora como
espaço que tam bém é capaz de produzir m itos e tabus que devem ser
sistem aticam ente superados. Em o utras palavras, para vencer o tab u de
inalterabilidade do conhecim ento científico, é preciso questionar, checar
e m odificar o conhecim ento de form a in in terru p ta. Explica Beck que
prevalece a m áxim a de que o que por homem foi feito pode também ser por
homem alterado. 16
Tal pressuposto provoca um a desm itificação da ciência e, ao mesmo
tem po, a busca incessante p o r novos estudos e com provações que possam
p erm itir que o conhecim ento se altere e avance sem pre para p e rm itir o
afastam ento da descoberta que não se su sten ta d ian te dos m étodos
científicos cada vez mais rigorosos. 0 tem o r da ciência é produzir o
inquestionável e vê-lo ser superado p o r o u tra pesquisa.
Essa busca in sisten te p o r novos conhecim entos não ocorre, no
en tan to , em condições de neutralidade ou sem pressões do poder
econôm ico e social.
André M artins,17 em estudo sobre biopolítica, ressalta que a m edicina
contem porânea se orgulha de ser científica, m as é necessário d eb ater e
estu d ar o sentido e a extensão da expressão científica. Segundo o autor, a
ciência p reten d e ser um conhecim ento com capacidade de
universalização e, p ara isso, é necessário que o conhecim ento produzido
no estudo de um caso possa ser extensível a vários outros. Nessa m edida,
a ciência reduz a com plexidade do objeto estudado e enseja a solução de
outros casos análogos àquele que foi estudado e que p erm itiu a
construção do conhecim ento
Mas, questiona o a u to r:18
[...] uma pesquisa feita com financiamento de indústrias sobre o que
elas próprias produzem, é isenta? Pesquisas sobre uma suposta não
nocividade do asbesto para trabalhadores, financiada por uma indústria
de amianto, serão científicas? (Bittar, 2000) Uma indústria
farmacológica que faz pesquisas que mostrem os supostos benefícios
de suas drogas sem contextualizar as demais questões envolvidas em
seu uso, estas serão científicas? O problema é que a resposta aqui é:
sim, pode ser científica.
Se os critérios utilizados pela pesquisa forem form ais, reconhecidos
como técnicos pela com unidade científica, ou seja, se houver sido
adotado o m étodo científico, a pesquisa será reconhecida como tal,
em bora nem sem pre seus resultados sejam verdadeiros. A ndré M artins
defende que a cientificidade não é índice de veracidade.
Mas po r ad o tar m étodos rigorosos que podem ser reproduzidos a
qualquer tem po e em qualquer lugar, a ciência contem porânea adquire
características que o m encionado a u to r denom ina de oráculo que revelaria
a verdade do objeto estudado. 19
E afirm a:
Quando a Medicina se arvora em se considerar “científica”, em primeiro
lugar incorre num erro: ela não é científica, mas sim utiliza a Ciência.
Em segundo lugar, em geral considera que está do lado da “verdade”,
que é uma Medicina verdadeira, que seus dados são verdadeiros ou
dizem a verdade, que suas reduções são a verdade (a essência
verdadeira) do objeto em questão. Em terceiro lugar, justamente por
estes dois pontos anteriores, por julgar-se científica e entender que é
verdadeira por isso, em geral a Medicina tende a esquecer que seu
“objeto" é um paciente real, concreto, que ultrapassa em complexidade
os esquemas orgânicos, fisiopatológicos, fisioquímicos, que sua
“ciência” pode abarcar. A Ciência pode ser tida como “exata”, mas o ser
humano não o é nem nunca o será.
E en cerra sua reflexão afirm ando que a m edicina tem tam bém um a
dim ensão terap êu tica e que, ao p re te n d e r tra ta r o paciente apenas com o
viés científico, lim ita a com preensão do processo de saúde e doença.
Além disso, te r conhecim entos sobre a ciência e sua aplicação aos
diferentes estados m órbidos associa a figura do m édico àquele que é o
d e te n to r da verdade, que tem poder absoluto para dizer o que pode e o
que não pode ser feito em um d eterm inado caso concreto, o dono do
corpo e da m en te do paciente que, pelo sim ples fato de estar doente deve
se subm eter in tegralm ente aos com andos do m édico por não te r
condições de avaliar sua situação de form a científica e, supostam ente,
verdadeira.
M arcos de Souza Queiroz20 afirm a que a m edicina, ao en fatizar sua
dim ensão terap êu tica no processo fisiológico hum ano, passou a tra ta r as
doenças por meio de um a e stru tu ra celular, e não m ais patológica, e com
isso transfo rm o u o paciente em um objeto a ser m anipulado, e não em
um caso clínico a ser conhecido e tratad o .
Enquanto se degradam progressivam ente as condições de qualidade
de vida nas grandes concentrações urbanas, com aum ento do desgaste
psicológico, da poluição do ar, m enor espaço físico p ara as m oradias,
redução substancial do tem po e do significado do lazer, m udança
profunda das e stru tu ra s fam iliares, aum ento dos problem as em ocionais
derivados da frustração, da ansiedade e da p erd a de ideologias
m otivadoras, a m edicina contem porânea co n cen tra sua conduta
terap êu tica no resultado de exam es e no estudo de casos paradigm áticos,
priorizando a análise do aspecto científico em d etrim en to de qualquer
outro.
Queiroz conclui:21
A Medicina ocidental moderna desenvolveu-se mudando uma
cosmologia voltada para a pessoa humana para uma cosmologia
voltada para o objeto. Tem havido ganhos e perdas nesse processo.
Por um lado, houve aperfeiçoamento de técnicas terapêuticas e o
desenvolvimento de um corpo consistente de conhecimentos com a
concomitante redução da controvérsia sobre a natureza da doença e de
seu tratamento; por outro lado, a medicina perdeu sua visão unificadora
do paciente em particular e da vida em geral como agentes que
resultam, na saúde e na doença, em fatores ambientais, sociais e
econômicos, além dos fatos biológicos. A Medicina ocidental moderna
necessita recuperar, na sua prática, essa dimensão, porque ela é
teoricamente mais rica, equilibrada e próxima das causas reais que
envolvem a saúde e a doença em seres humanos. Para isso ela
necessita reordenar o enorme conjunto de conhecimentos e
tecnologias até hoje acumulados, como solução para a sua crise e em
alternativa ao seu paradigma mecanicista dominante.
Com o aum ento dos processos tecnológicos aplicáveis à m edicina, em
especial na área de exam es de im agem e com o avanço das pesquisas na
área de fárm acos, a dim ensão terap êu tica desta ciência avança no sentido
de priorizar dados científicos que com provem o estado de m orbidez.
O doente contem porâneo é definido pelo resultado dos exames: as
consultas m édicas são um ritual de pedidos de exam es e análise de
resultados sem disponibilidade de tem po p ara o diálogo, seja no âm bito
do serviço público ou do serviço privado.
No âm bito público não há tem po para o diálogo porque o serviço não
dispõe de núm ero suficiente de m édicos p ara o atendim ento, o que quase
sem pre provoca a concentração de grande quantidade de pacientes para
serem atendidos por um único m édico, que se vê obrigado a dedicar
pouco tem po a cada consulta p ara poder a ten d e r um a quantidade
significativa de pacientes.
No seto r privado as consultas são rápidas porque os valores pagos por
consulta quase sem pre são inferiores àqueles considerados ideais pelos
médicos, sendo obrigados a a ten d e r um núm ero grande de pacientes por
dia para poderem receber um a rem uneração razoável para suas
pretensões ou necessidades.
Em am bos os casos, a redução do tem po de diálogo da consulta parece
ser com pensada pela ap aren te certeza proporcionada pelos resultados
dos exam es, até porque independem do estado em ocional do paciente, de
sua lucidez, da capacidade de descrição dos sintom as. Um exam e, em
tese, é neutro , é científico e, nessa m edida, parece ser sem pre verdadeiro.
Por conseguinte, o conceito contem porâneo de saúde depende dos
resultados dos exam es m ais co rriq u eiram en te realizados, em especial os
exam es laboratoriais e de imagem.
A Lei n° 12.842, de 10 de ju lh o de 2013, norm atizou o exercício da
profissão m édica da seguinte form a:
Art. 1o O exercício da Medicina é regido pelas disposições desta Lei
Art. 2° O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das
coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o
máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem
discriminação de qualquer natureza.
Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no
campo da atenção à saúde para:
I - a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;
II - a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;
III - a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.
Art. 3o O médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo
ou a coletividade atuará em mútua colaboração com os demais
profissionais de saúde que a compõem.
Art. 4o São atividades privativas do médico:
I - (VETADO);
II - indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos
cuidados médicos pré e pós-operatórios;
III - indicação da execução e execução de procedimentos invasivos,
sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos
vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;
IV - intubação traqueal;
V - coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação
mecânica invasiva, bem como das mudanças necessárias diante das
intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da ventilação
mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;
VI - execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia
geral;
VII - emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos
procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames
anatomopatológicos;
V III-(V E TA D O );
IX - (VETADO);
X - determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico;
XI - indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à
saúde;
XII - realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados
os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e
de biologia molecular;
XIII - atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis
seqüelas;
XIV - atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em
localidade em que não haja médico.
§ 1o Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete
0 ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio
da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2
(dois) dos seguintes critérios:
1- agente etiológico reconhecido;
II - grupo identificável de sinais ou sintomas;
III - alterações anatômicas ou psicopatológicas.
O debate que antecedeu a sanção da lei pela Presidência da República
foi intenso e organizado principalm ente p o r entidades rep resentativas
das áreas profissionais de enferm agem , psicologia, fonoaudiologia,
terap ia ocupacional e fisioterapia, além dos acupunturistas. Ao final,
foram vetados pela Presidência da República dez trechos da lei, e os vetos
foram aprovados pelo Senado da República.
Na m ensagem enviada ao Congresso Nacional em que expôs a razão
dos vetos, a Presidência da República afirm a que:
[...] da forma como foi redigido, o inciso impediria a continuidade de
inúmeros programas do SUS que funcionam a partir da atuação
integrada dos profissionais de saúde, contando, inclusive, com a
realização do diagnóstico nosológico por profissionais de outras áreas
que não a médica. É o caso dos programas de prevenção e controle á
malária, tuberculose, hanseníase e doenças sexualmente
transmissíveis, dentre outros.
[...]
Assim, a sanção do texto poderia comprometer as políticas públicas da
área de saúde, além de introduzir elevado risco de judicialização da
matéria”, defende a presidente na mensagem enviada ao Congresso
com as razões dos vetos feitos ao projeto.22
A definição do diagnóstico nos term os da nova lei é trabalho da
equipe de saúde da qual o m édico faz p arte e, ao m esm o tem po, a lei fixa
no § 1° do artigo 4o os critérios necessários p ara a fixação do diagnóstico
nosológico e exige que pelo m enos dois critérios estejam presentes para
que seja definido o diagnóstico.
Perm aneceram privativos do médico a realização de perícia ou
auditoria m édicas, as atividades de ensino de disciplinas especificam ente
m édicas, a coordenação de cursos de graduação em M edicina, dos
program as de residência m édica e dos cursos de pós-graduação
específicos para médicos.
A direção adm inistrativa de serviços de saúde poderá, no en tan to , ser
exercida p o r outros profissionais; mas, cabe com exclusividade ao
médico, a coordenação e supervisão vinculadas, de form a im ediata e
direta, às atividades privativas de médico.
A rigor, o m édico continua tendo a prim azia de d eterm in ar o que é
saúde e o que é doença, bem como qual o tra ta m en to indicado. Essa
p rerrogativa deveria ser exercida em m útua colaboração com os dem ais
m em bros da equipe de saúde que assiste o paciente, o que, na vida
prática, nem sem pre ocorre de form a efetiva. A observação do cotidiano
perm ite co n statar que a opinião do m édico assistente do paciente sem pre
prevalece, p o r vezes até em relação à opinião co n trária de outros
m édicos ou de outros m em bros da equipe de saúde.
A decisão do m édico é tra ta d a como soberana, e o im aginário social
construído ao longo de m uitos anos associa o médico com o único
profissional com petente p ara dizer o que é certo e o que é errad o em
saúde. Essa proem inência da opinião do m édico assistente é reforçada no
Código de Ética Médica, Resolução 1.931, de 2009, que no Capítulo I tra ta
dos Princípios Fundam entais e determ ina:
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo
obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua
consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de
ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência,
quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum
pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer
restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a
correção de seu trabalho, [...j
XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de
instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos
meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o
estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo
quando em benefício do paciente.
XVII - As relações do médico com os demais profissionais devem
basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada
um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente.
A autonom ia como pressuposto essencial da p rática da atividade
m édica é im p o rtan te para g aran tia do m elhor tra ta m en to p ara o
paciente, porque perm ite ao profissional e n fre n tar todo tipo de pressão
seja pela redução de custos no tratam en to , seja pela não realização do
mesmo.
Mas essa é um a face do problem a. A o u tra é que a autonom ia pode ser
utilizada para im por tratam en to s cujos resultados ainda não estão
satisfatoriam ente com provados, m edicam entos de alto custo em lugar de
outros mais baratos, inserção de novas tecnologias sem a necessária
avaliação da relação custo-benefício, prolongam ento de tratam en to s
quando não se têm elem entos científicos que com provem a possibilidade
de m elhoria do quadro e, p o r vezes, a adoção de procedim entos
provindos de pressão da in d ú stria de produção de aparelhos, próteses,
órteses ou de m edicam entos.
Nelson Teich23 afirm a
A percepção pela maioria das pessoas que o aumento dos cuidados
em saúde está diretamente e proporcionalmente relacionado com os
ganhos em saúde, faz com que exista uma enorme demanda por
cuidados em saúde. Essa relação infelizmente não é real, e existem
inúmeros outros fatores que podem estar relacionados com o nível de
saúde de uma pessoa ou de uma população, como educação, hábitos
de vida, fatores genéticos, fatores ambientais, saneamento e nível de
remuneração. [...]
A estrutura da saúde, seja pública ou privada, é baseada em um
modelo onde aquele que paga pelos serviços não é aquele que recebe
o benefício, e os que decidem sobre o uso dos recursos em saúde,
prestador e usuário, não sofrem perdas financeiras com o uso indevido
dos recursos.
O avanço do conhecim ento científico perm itiu o surgim ento de
aparelhos para realização de exam es de im agem que eram inim agináveis
pouco mais de cinqüenta anos atrás. Tomógrafos, ultrassons, aparelhos
de ressonância m agnética e inúm eros outros abriram cam inho para o
surgim ento de tecnologia avançada na área de exam es, contribuindo
certam en te para a precisão dos diagnósticos e, ao m esm o tem po,
aum entando os custos dos tratam en to s de saúde em todo o m undo.
A incorporação de novas tecnologias nessa área é peculiar porque
ocorre de form a cum ulativa com tecnologias já consagradas pelo uso.
Assim, um a lesão em m em bro superior ou inferior poderá ser d etectada
com o uso da radiografia já conhecida há m uitos anos, m as cum ulada com
a realização de ressonância m agnética, que é um a tecnologia bem mais
recente. O m édico poderá exigir a realização de am bos os exam es para
concluir seu diagnóstico e, em princípio, não poderá ser questionado por
isso, em bora o custo seja m aior.
Em um a sociedade como a contem porânea, que se caracteriza pelo
elevado apelo ao consum o e, consequentem ente, pelo extrem ado gosto
por novidades tecnológicas, a área da saúde não escapou ao apelo
com ercial: consum ir novas tecnologias, tratam en to s e m edicam entos é
tam bém símbolo de destaque social, porque essas novas propostas nem
sem pre são acessíveis a todos os estrato s sociais. Nem todos podem pagar
por novidades tecnológicas em qualquer área e, na saúde, isso não é
diferente.
O apelo m ercadológico p erm ite que algum as tecnologias sejam
divulgadas para além do am biente médico, dos congressos, consultórios e
sem inários científicos. As novas tecnologias para exam es e tratam en to s
são divulgadas n a m ídia e anúncios publicitários em jo rn a is e revistas de
grande circulação, exercendo um indiscutível fascínio sobre a parcela da
população que pode te r acesso à realização de novos exam es ou ao uso de
novos tratam en to s. É o que acontece, p o r exem plo, com o uso de
ultrassonografia d u ran te a gravidez. As gestantes são incentivadas pela
publicidade a realizar exam es com im agens em terceira ou q u arta
dim ensão, cujas fotos são transferidas depois para os aparelhos celulares
dos pais, ou como descanso de tela de com putadores.
Na atualidade, existem estudos científicos que discutem a efetiva
necessidade de realização de vários exam es de ultrassom ao longo do
período de gestação. Vejamos, p o r exem plo, o que diz a Organização
M undial da Saúde:24
A Organização Mundial da Saúde salienta que as tecnologias ligadas à
saúde deveriam ser avaliadas com profundidade antes de terem seu
uso extensamente difundido. O exame por ultrassom durante a
gravidez tem atualmente seu uso difundido sem avaliação suficiente. A
pesquisa demonstrou sua eficácia para determinadas complicações da
gravidez, mas o material publicado não justifica o uso rotineiro do
ultrassom em mulheres grávidas. Há também informação insuficiente
no que diz respeito à segurança do uso do ultrassom durante a
gravidez. Ainda não há também qualquer avaliação detalhada,
multidisciplinar do uso do ultrassom durante a gravidez, incluindo:
eficácia clínica, efeitos psicológicos, considerações éticas, implicações
legais, relação custo-benefício e segurança.
A OMS endossa fortemente o princípio de escolha consciente no que
diz respeito ao uso da tecnologia. Os agentes de saúde têm a
responsabilidade moral: de informar inteiramente o público sobre o que
é sabido e não sabido sobre os exames de ultrassom durante a
gravidez; e de informar inteiramente cada mulher antes de um exame
de ultrassom e na indicação clínica do ultrassom, sobre os benefícios
esperados, os riscos potenciais e as alternativas disponíveis, se
houver.
A pesar dessa recom endação, são conhecidos e divulgados na m ídia
casos de celebridades que adquirem seus próprios aparelhos de
ultrassonografia p ara utilizar em casa d u ran te a gestação, p ara poder
acom panhar com frequência o desenvolvim ento do bebê.
Essa aproxim ação en tre novas tecnologias na área da saúde e
produtos e serviços de consum o se estende a hospitais, m edicam entos,
órteses e próteses, e n tre outros recursos de saúde. Alguns hospitais são
referenciados como excelentes pela população em razão da h o telaria que
fornecem , ou pelo fato de serem utilizados p o r pessoas de renom e, como
artistas e políticos.
Os m edicam entos são referenciados como de última geração e atraem a
preferência porque teoricam ente são o que existe de mais novo, mais
m oderno; e, por estarem associados ao novo e ao m oderno, constituem
um referencial im p o rtan te num a sociedade como a nossa, que constrói
sua identidade tam bém pelos hábitos de consum o que possui.
Assim, a incorporação de novas tecnologias na área da saúde não está
relacionada apenas com eficiência e m elhores resultados p ara o paciente,
m as tam bém com os apelos com erciais a que todos se encontram
expostos e sensíveis, tan to os m édicos como os próprios pacientes e,
m uitas vezes, seus fam iliares.
Nesse am biente é que o Direito tem sido cham ado a d eterm in ar quem
pode e quem não pode te r acesso a essas novas tecnologias, ao decidir
pedidos de tu tela antecipada ou de lim inares para que o paciente possa
ser tra ta d o com um a tecnologia ou um m edicam ento ainda não
disponível para todos, porém recom endado pelo médico que o assiste e
considerado im prescindível p ara o êxito do tratam en to .
Cecília M aria Guimarães Figueira25 assinala
A incorporação de inovações tecnológicas na área de saúde é
inevitável e apresenta características importantes:
- é cumulativa - significa que a nova tecnologia se soma, e não
substitui a já existente.
- é assimilada com grande rapidez - decorrente dos intensos meios de
divulgação da indústria responsável pela mesma.
- é incorporada sem avaliação rigorosa - decorrente da pressão da
indústria sobre os organismos responsáveis pelos estudos de
demanda, efeitos colaterais, custo-efetividade, custo-benefício.
- a demanda é induzida pela oferta - é incorporada onde a nova
tecnologia está presente.
- dificuldade de informação objetiva e estruturada sobre a mesma - a
pressão intensa pela liberação da inovação tecnológica impede a
análise mais detalhada da mesma.
O utra característica im p o rtan te que pode ser acrescida a essas é o
fato de que as inovações tecnológicas quase sem pre são de alto custo, o
que im pacta os orçam entos da saúde pública e privada. É nessa m edida
que a opinião m édica adquire na atualidade o u tra dim ensão quase
desconhecida d u ran te a trajetó ria histórica da p rática médica: são as
decisões m édicas que irão d e term in ar os custos dos tratam en to s de
saúde. É a indicação m édica p ara o uso de um determ inado m edicam ento
ou para a realização de um exam e específico de im agem que irá d ecretar
a viabilidade econôm ica do serviço de saúde público ou privado.
Quando o médico apoiado em seu conhecim ento, experiência clínica e
autoridade da qual a profissão é revestida socialm ente, d eterm in a que
som ente um d eterm inado produto m edicam entoso deva ser utilizado por
um paciente ou que som ente a utilização de um a prótese específica
poderá ser benéfica para o u tro paciente, ou, ainda, que som ente um
determ inado equipam ento fabricado p o r um p ro d u to r claram ente
identificado poderá ser utilizado no tra n sp lan te do paciente, ele
tran sfere sua credibilidade h istoricam ente construída para o produto ou
o equipam ento indicado, o qual se to rn a, a p a rtir de então, o único a
m erecer confiança do paciente, de seus fam iliares e p o r extensão, da
sociedade.
As decisões m édicas têm p o r objetivo g a ran tir o m elhor tra ta m en to
p ara a saúde do paciente, mas n a atualidade é inegável que há
repercussão econôm ica dessas decisões, e isso tem m otivado a própria
ciência m édica a ex p an d ir suas áreas de pesquisa e estudo, incorporando
conhecim entos da econom ia para g aran tia da viabilidade da saúde
pública e privada.
O M inistério da Saúde dispõe de um D epartam ento de Economia e
D esenvolvim ento (DESD), ligado à Secretaria Executiva, que é responsável
por subsidiar o M inistério da Saúde no to can te a aspectos econômicos
dos program as e projetos form ulados no seu âm bito de atribuição e na
form ulação de políticas, diretrizes e m etas para as áreas e tem as
estratégicos. O DESD tam bém tem como atribuições institucionalizar e
fortalecer a econom ia da saúde no âm bito do Sistema Único de Saúde
(SUS), bem como acom panhar e consolidar os dados de gastos em ações e
serviços públicos em saúde, das trê s esferas de governo, m onitorando o
financiam ento do SUS, e n tre outras pertinências. 26
O D epartam ento de Economia da Saúde e D esenvolvim ento conta com
o Núcleo Nacional de Economia da Saúde (Nunes),27 que tem como um de
seus objetivos realizar avaliações econôm icas de tecnologias de saúde.
Em 2008, o M inistério da Saúde publicou o fascículo Avaliação
Econômica em Saüde,28 que introduziu um a reflexão a respeito da
im portância dos estudos de econom ia para a saúde, sobretudo em razão
da necessidade de otim ização dos recursos finitos e da racionalização da
utilização para obtenção dos m elhores resultados para toda a população.
Nesse estudo foram apresentadas experiências de outros países do
m undo que tam bém adotaram estudos econôm icos prévios para
d eterm in ar a inserção de um novo m edicam ento na lista de produtos
distribuídos g ratu itam en te à população. A A ustrália foi um dos países a
im plantar esse sistem a e, em bora m uito criticado por a tra sa r a
im plantação de novas possibilidades de tra ta m en to m edicam entoso, os
estudos dem o n straram que, em longo prazo, o resultado foi positivo
porque houve decréscim o ou estabilização dos preços dos m edicam entos
adquiridos pelo governo para serem distribuídos g ratu itam en te p ara a
população. Canadá e Estados Unidos tam bém têm experiências em
econom ia da saúde que são relatados nesse estudo do M inistério da Saúde
do Brasil.
O IPEA - In stitu to de Pesquisas Econômicas Aplicadas - tam bém
realiza estudos na área de econom ia da saúde.
No âm bito privado, existem instituições internacionais dedicadas a
estudos sobre econom ia da saúde como a Sociedade Internacional de
Farm acoeconom ia e Pesquisa de Desfechos (ISPOR), que tem um a unidade
no Brasil.
Tam bém existe a Associação B rasileira de Economia da Saúde,
fundada em 1989, com o objetivo de congregar técnicos, docentes e
outros profissionais com interesse na área da econom ia da saúde e, nesse
cam po, co n trib u ir para o desenvolvim ento, a difusão e a aplicação de
técnicas, m étodos e conhecim entos. Prom ove encontros científicos,
financia program as de capacitação e projetos de pesquisa e de
cooperação com instituições internacionais que se dedicam aos mesmos
objetivos.
Cursos de pós-graduação, especialização e publicações específicas
sobre o assunto, jo rn ais e livros principalm ente, surgiram em grande
núm ero nos últim os anos, evidenciando que o tem a ganha destaque na
área dos estudos e pesquisas de saúde.
Nelson Teich29 esclarece:
[...] economia é uma ciência que estuda as escolhas sobre alocação de
recursos escassos. Ela pode nos ajudar a entender como e porque os
recursos são alocados nas diferentes atividades, quais os racionais que
levaram a tais alocações e como elas deveriam ter sido feitas de forma
a maximizar os benefícios para as pessoas e para a sociedade com os
recursos disponíveis.[...]
Talvez a maior contribuição da economia da saúde para os sistemas de
saúde e principalmente para as pessoas, seja trazer a discussão dos
cuidados em saúde para uma esfera mais técnica. Não se trata de
tentar dar valor à vida, mas sim de entender através de números e
métricas o real benefício para as pessoas do que é oferecido a elas
pelo sistema de saúde.
Entender a importância da educação, dos níveis de remuneração, dos
fatores ambientais e genéticos no nível da saúde das pessoas e da
sociedade é fundamental. Com esse tipo de informação vamos poder
definir onde e como alocar recursos, que sempre serão escassos
quando comparados aos que gostaríamos de ter para investir
simultaneamente em diferentes áreas da sociedade.
0 assunto é polêm ico e provoca incontáveis reações e n tre os
envolvidos: médicos, gestores públicos e privados, pacientes, indústria de
fárm acos e de produtos de saúde, operadoras de saúde suplem entar,
políticos que se dedicam ao tem a da saúde, Judiciário, advogados, e n tre
tan to s outros.
Para alguns, saúde e econom ia são áreas do conhecim ento que não
podem cam inhar ju n ta s porque não se restringem esforços p ara salvar
um a vida. Para outros, saúde e econom ia já cam inham ju n ta s porque os
m édicos e gestores estão sensíveis aos avanços tecnológicos e aos apelos
incessantes do m ercado de produtos farm acêuticos e de produtos p ara a
área m édica. Para m uitos, por fim, é u rg en te rep en sar os conceitos que
nos tro u x eram até esta fase da história da hum anidade, e in troduzir
novas perspectivas de reflexão sobre alocação de recursos n a saúde.
Em en trev ista a Revista Carta Capital,30 o oncologista Stephen Doral
Stefani, do In stitu to do Câncer Mãe de Deus, de Porto Alegre, abordou
aspectos tratad o s no artigo de sua coautoria publicado na revista
britânica The Lancet Oncology. Segundo ele, no Reino Unido, a Agência
National Institute for Health and Clinicai Excellence (NICE) realiza análises de
custo-efetividade para in co rp o rar novas tecnologias. Procedim entos com
valor superio r a 60 mil dólares p ara cada ano de vida adicional do
paciente rara m en te são bancados pelo sistem a público. Os alem ães, por
sua vez, optaram pelo m odelo de orçam ento fixo. Se um a tecnologia é
incorporada, abre-se mão de o utra. O orçam ento é finito. Precisam os
eleger prioridades com vantagens m aior p ara toda a coletividade.
O que se pode co n statar é que o conceito de saúde na atualidade não é
construído pelos médicos apenas a p a rtir de dados clínicos e resultantes
do estudo e da experiência do médico: há um a pressão ex tern a de
m ercado p resen te de form a perm an en te, ta n to na saúde pública como na
saúde privada, e que, p o r vezes, rem ete o paciente p ara o Judiciário,
am parado em um a prescrição de tra ta m en to realizada por seu médico,
para te n ta r o b ter por sentença ou p o r decisão lim inar os meios
necessários e não providos nos âm bitos público ou privado.
Por vezes os recursos buscados no Judiciário são p ara tratam en to s
ainda em fase experim ental ou para m edicam entos ainda não autorizados
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). O utras vezes são
p ara obtenção de recursos para tratam en to s no exterior, ou continuidade
de tra ta m en to quim ioterápico para pacientes em estágio avançado da
doença e p ara os quais não há perspectiva de cura. Existem ainda os
pedidos para obtenção de próteses ou órteses de determ inado fabricante
estrangeiro supostam ente mais eficientes do que as de fabricação
nacional.
A questão da utilização de m edicam entos de alto custo em especial
p ara tra ta m en to oncológico é tão séria que m otivou um debate e n tre as
lideranças m édicas e a rep resen tação da indústria farm acêutica, no
sentido de to rn a r mais tra n sp a re n te o relacionam ento e n tre os médicos e
os rep resen tan tes dos diversos laboratórios de fárm acos.
Em 14 de fevereiro de 2012, foi assinado um protocolo de boas
práticas e n tre o Conselho Federal de M edicina (CFM) e a Associação da
Indústria Farm acêutica de Pesquisa (Interfarm a) para estabelecer
parâm etro s para a relação e n tre m édicos e indústrias.
Os principais pontos firm ados foram 31
Organização de eventos - o patrocínio pela indústria será possível por
contrato escrito com a empresa ou entidade organizadora.
O apoio da indústria não pode estar condicionado à interferência na
programação, objetivos, local ou seleção de palestrantes.
Participação de médicos - A presença de médicos em eventos a
convite da indústria deve ter como objetivo a disseminação do
conhecimento técnico-científico e não pode ser condicionada a
qualquer forma de compensação por parte do profissional à empresa
patrocinadora.
As indústrias farmacêuticas utilizarão critérios objetivos e plurais para
identificar os médicos que serão convidados a participar de eventos,
não podendo usar como base critérios comerciais.
Sobre despesas e reembolsos - As indústrias farmacêuticas que
convidarem médicos para eventos somente poderão pagar as
despesas relacionadas a transporte, refeições, hospedagem e taxas de
inscrição cobradas pela entidade organizadora.
O pagamento de despesas com transporte, refeições e hospedagem
será exclusivamente do profissional convidado e limitado ao evento.
Fica proibido o pagamento ou o reembolso de despesas de familiares,
acompanhantes ou convidados do profissional médico.
Os médicos convidados não podem receber qualquer espécie de
remuneração (direta ou indireta) pelo acompanhamento do evento,
exceto se houver serviços prestados fixados em contrato.
As indústrias farmacêuticas não poderão pagar ou reembolsar qualquer
despesa relacionada a atividades de lazer, independente de estarem
ou não associadas à organização do evento científico.
Brindes e presentes - Os brindes oferecidos pelas indústrias
farmacêuticas aos profissionais médicos deverão estar de acordo com
os padrões definidos pela legislação sanitária em vigor.
Esses materiais devem estar relacionados à prática médica, tais como:
publicações, exemplares avulsos de revistas científicas (excluídas as
assinaturas periódicas), modelos anatômicos, etc.
Os objetos devem expressar valor simbólico, de modo que o valor
individual não ultrapasse 1/3 (um terço) do salário mínimo nacional
vigente.
Produtos de uso corrente (canetas, porta-lápis, blocos de anotações,
etc.) não são considerados objetos relacionados à prática médica e,
portanto, não poderão ser distribuídos como brindes.
Regras para visitação - O relacionamento com profissionais da saúde
deve ser baseado na troca de informações que auxiliem o
desenvolvimento permanente da assistência médica e farmacêutica.
O objetivo das visitas é contribuir para que pacientes tenham acesso a
terapias eficientes e seguras, informando os médicos sobre suas
vantagens e riscos.
As atividades dos representantes das indústrias farmacêuticas devem
ser pautadas pelos mais elevados padrões éticos e profissionais.
Não pode haver ações promocionais de medicamentos dirigidas a
estudantes de medicina ainda não habilitados à prescrição, observadas
as normas do estatuto profissional em vigor.
A p au ta do acordo dá a dim ensão de quanto as relações e n tre as áreas
podem ser com plexas e com objetivos nem sem pre de c a rá te r científico
ou de busca do m elhor tra ta m en to para o paciente.
A relação dos fornecedores de insum os de área m édica como
m edicam entos, aparelhos, próteses, órteses, e n tre outros, não é um a
preocupação só no Brasil. Em fevereiro de 2013, e n tro u em vigor nos
Estados Unidos o Sunshine Act,32 com a intenção de tra z e r à luz potenciais
conflitos de interesse e n tre m édicos e hospitais de ensino com a indústria
de m edicam entos e, dessa form a conseguir red u zir os custos na área de
saúde.
A lei n o rte-am erican a exige que os fabricantes de m edicam entos e
dispositivos farm acêuticos, bem como as entidades que com pram ,
apresentem relatórios m inuciosos p ara re la ta r pagam entos ou
transferências de valor, inclusive refeições e reem bolsos de viagens,
feitas para os médicos norte-am ericanos e p ara hospitais de ensino.33
O Sunshine Act foi aprovado nos Estados Unidos após in ten sa discussão
e n tre todos os interessados e foi objeto de m uitas críticas e elogios,
evidenciando o quanto o tem a é controvertido e causa polêmica.
A realidade é que o avanço da tecnologia na área de saúde, ta n to para
m edicam entos como p ara equipam entos e m aterial de uso m édico e
hospitalar (próteses e órteses, p o r exem plo), não significa
necessariam ente a cura do paciente e nem a m elhora autom ática de seu
quadro de saúde.
Nesse sentido, a p ró p ria classe m édica reconhece na Resolução n°
1.995, de 2012,34 do Conselho Federal de M edicina, quando afirm a:
[...] CONSIDERANDO que os novos recursos tecnológicos permitem a
adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do
paciente em estado terminal, sem trazer benefícios, e que essas
medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo mesmo; [...]
(grifo nosso)
Na concepção ju ríd ica do problem a, aquele que reconhece que as
m edidas são desproporcionais e que prolongam o sofrim ento do paciente
em estado term in al sem tra z e r benefícios, e m esm o assim insiste em
realizá-las, com ete um desrespeito passível de punição. Não há como
ju stificar que o m édico autorize ou recom ende o tra ta m en to com novos
recursos tecnológicos que se constituem , p o r vezes, apenas em m edidas
desproporcionais que prolongam o sofrim ento de um indivíduo que não
dispõe mais de m eios para m anifestar sua vontade.
A Resolução 1995, de 2012, ao fazer a afirm ação tra n sc rita acima
reconhece que, a rigor, podem existir outros interesses a n o rte a r a
conduta m édica que não exatam ente aqueles que beneficiam o paciente,
e isso, com certeza, é aspecto que vai além do debate sobre o testam en to
vital. É debate ético fundam ental para o exercício da atividade m édica, da
atividade de fornecim ento de insum os em área m édica e, para as
definições sobre a utilização de recursos m utuais públicos ou privados
nos tratam en to s.
A realidade é que, na atualidade, esse debate está colocado p eran te o
Poder Judiciário e, p o r conseqüência, não está mais re strito ao âm bito
médico por te r incorporado novos participantes.
O ponto cen tral é propiciar ao Judiciário que participe desse debate
em igualdade de condições de m elhor com preensão do conceito de saúde,
do ato médico, das prescrições e tratam en to s e da incorporação de novas
tecnologias e m edicam entos.
O Conselho Nacional de Justiça ingressou no debate a p a rtir da
Resolução n. 107, de 06 de abril de 2010,35 que in stitu iu o Fórum Nacional
do Judiciário para m o n ito ram en to das dem andas de assistência à saúde.
Em 30 de m arço de 2010, a RECOMENDAÇÃO 3136 recom endou aos
Tribunais a adoção de m edidas, visando a m elhor subsidiar os
m agistrados e dem ais operadores do Direito, para assegurar m aior
eficiência na solução das dem andas judiciais envolvendo a assistência à
saúde.
Foi recom endada a realização de sem inários para estudo e
mobilização na área da saúde com a presença de m agistrados, m em bros
do M inistério Público e gestores, para propiciar m elhor en trosam ento
sobre a m atéria.
Tam bém recom enda o Conselho Nacional de Justiça que o Direito
sanitário seja incorporado como disciplina nos cursos de form ação,
vitaliciam ento e aperfeiçoam ento de m agistrados.
Além desses esforços, o Conselho Nacional de Justiça realizou
encontros nacionais sobre o tem a e publicou um a obra com a
participação de todos os p alestran tes convidados para o prim eiro
encontro nacional.
O debate sobre a saúde e o acesso aos meios de prevenção e
tra ta m en to se alargou m uito na últim a década no Brasil, incorporou
novos particip an tes e colocou o m édico, os gestores e todos os envolvidos
no processo em um cenário em que saúde, direito, gestão e econom ia tem
sido com pelidos a dialogar e co n stru ir soluções.
Por fim, a m edicina brasileira a exem plo de o utras áreas de form ação
profissional com o o próprio Direito se encontram , na atualidade, às
voltas com a reflexão sobre a qualidade dos cursos de graduação
existentes no país. Se d u ran te m uito tem po a discussão girou em to rn o
dos resultados dos exam es obrigatórios que os bacharéis em Direito
devem realizar para o ingresso nos quadros da Ordem dos Advogados do
Brasil, que são resultados preocupantes, na atualidade, o m esm o debate é
realizado sobre a form ação dos profissionais médicos.
Segundo o Conselho Regional de M edicina do Estado de São Paulo,37
que realiza desde 2012 exam e obrigatório para os recém -form ados em
m edicina, na prova de 2013, dos 2.843 candidatos, um total de 1.684, ou
seja, 59,2%, não atingiu o critério m ínim o exigido pela entidade. Segundo
inform ou a entidade, o critério exigido era a c e rta r 60% do conteúdo da
prova.
Embora a prova seja obrigatória para todos os recém -form ados de
escolas públicas e privadas, não é exigida a aprovação p ara o exercício
profissional. Basta que o médico com prove que realizou o exam e para
poder exercer a atividade profissional.
Preocupa em especial o índice de reprovação dos candidatos oriundos
de escolas privadas em que a reprovação foi de 71%, enquanto nas escolas
públicas foi de 34%.
O exam e de avaliação dos recém -form ados, além de não ser pré-
requisito para o exercício da profissão, tam bém não é realizado em nível
federal.

Notas
4 REZENDE. Joffre M. “0 Ato Médico através da História”. In: Â Sombra do Plátano. São
Paulo: UNIFESP, 2009, p. 01-06.
5 PIMENTA. Tania Salgado. “Terapeutas Populares e Instituições Médicas na Primeira
Metade do Século XIX". CHAULHOB, S. et a i Artes e Ofícios de Curar no Brasil Campinas:
UNICAMP, 2003, p. 307-330.
6 XAVIER, Regina. Dos Males e Suas Curas. In: CHALHOUB. S. et a l Artes e Oficios de Curar.
Campinas: Unicamp. 2003, p. 146-147
7 FREIDSON, Eliot. Profissão Médica - Um Estudo de Sociologia do Conhecimento Aplicado. São
Paulo: Unesp. Porto Alegre: Editora do Sindicato dos Médicos. 2009, p. 16-17.
8 Obra citada, p. 25.
9 FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 202-203.
10 Obra citada, p. 88-89.
11 Obra citada, p. 37.
12 PEREIRA NETO. André de F. A Profissão Médica em Questão (1922): Dimensão Histórica e
Sociológica. Cadernos de Saúde Pública v. 11, n. 4. Rio de Janeiro out/dez de 1995, p. 4.
13 Obra citada, p. 68.
14 WRIGHT, P.W.G. Study in the legitimation of knwoledge: the “sucess” o f medicine and
the “failure” o f astrology. Social. Rev. Monog. 27:85-99, 1979. In: QUEIROZ, Marcos de
Souza. “O Paradigma M ecanicista da Medicina Ocidental Moderna: uma Perspectiva
Antropológica”. Revista de Saúde Pública, v. 20, n. 4, São Paulo, agosto de 1986, p. 6.
15 BECK. Ulrich. Sociedade de Risco. São Paulo: 34, 2010, p. 236.
16 Obra citada, p. 238.
17 MARTINS, André. “Biopolítica: 0 poder médico e a autonomia do paciente em uma nova
concepção de saúde”. ín: Interface - Comunicação, Saúde e Educação, v. 8, n. 14, p. 21-32,
setembro 2003, fevereiro 2004, p. 21-32.
18 Obra citada, p. 23.
19 Obra citada, p. 24.
20 QUEIROZ. Marcelo de Sousa. “O paradigma m ecanicista da medicina ocidental moderna:
uma perspectiva antropológica”. Revista de Saúde Pública, v. 20, n. 04, São Paulo, agosto de
1986, p. 6.
21 Obra citada, p. 7.
22 Disponível em <http://noticias.uol.com .br/saude/uItim as-
noticias/red acao/2013/07/1 l/com -dez-vetos-dilm a-sanciona-ato-m edico.htm >. Acesso
em 16.01.2014.
23 TEICH, Nelson. “Economia da Saúde como Instrumento Decisório em Auditoria”. In:
GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde - Vol. I. São Paulo: Farol do
Forte, 2009, p. 33-41.
24 WAGNER. Marsden. U/frassom; mais prejudicial que benéfico? Disponível em:
<http://w w w .am igasdoparto.com .br/ac016.htm l>. Acesso em 21 de agosto de 2011.
25 FIGUEIRA, Cecília Maria Guimarães. “Incorporação de Tecnologias em Saúde”. ín:
GONÇALVES, Viviane Fialho. Fronteiras da Auditoria em Saúde - Vol. I. São Paulo: Farol do
Forte, 2009, p. 65-66.
26 Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portaI/saude/profissional/area.cfm ?
id_area=l001>. Acesso em 21 de agosto de 2011.
27 Disponível em
<http://bvsm s.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestao_econom ia_saude_vl_nucleos_im plantacao.pd:
saúde>. Acesso em 19.01.2014.
28 Disponível em
<http://bvsm s.saude.gov.br/bvs/publicacoes/avaliacao_economica_desafios_gestao_sus.pdf>.
Acesso em 19.01.2014.
29 Obra citada, p. 35-57
30 Revista Carta Capital, Ano XIX, n. 775, 20 de novembro de 2013, p. 39.
31 Disponível em <http://portal.cfm .org.br/index.php?
option=com_content&view=article&id=22679>. Acesso em 16 de jan eiro de 2014.
32 Disponível em <h ttp ://w w w .forb es.com /sites/aroy /2013/02/ll/th e-su n sh in e-act-is-
finally-final/>. Acesso em 24 de jan eiro de 2014.
33 Disponível em <http://w w w .asco.org/about-asco/physician-paym ents-sunshine-act>.
Acesso em 24 de jan eiro de 2014.
34 Disponível em <http://w w w .bioetica.ufrgs.br/l995_2012.pdf>. Acesso em 16 de jan eiro
de 2014.
35 Disponível em <http://w w w .cnj.jus.br/atos-adm inistrativos/atos-da-presidencia/323-
resolucoes/l2225-resolucao-no-107-de-06-de-abril-de-2010>. Acesso em 16.01.2014.
36 Disponível em <http://w w w .cnj.jus.br/atos-adm inistrativos/atos-da-presidencia/322-
recomen dacoes-do-conselho/l2113-recom endacao-no-31-de-30-de-m arco-de-2010>.
Acesso em 16.01.2014.
37 Disponível em <https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NotidasC&id=3122>. Acesso em
02 de fevereiro de 2014.

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