Você está na página 1de 25

45º Encontro Anual da Anpocs

GT43 - Transformações rurais no Brasil e no mundo - desafios para a política e


para as ciências sociais

Questões socioambientais experimentadas na reforma agrária


e estratégias de reconfiguração do trabalho e da paisagem:
o caso do PA Nova Tangará em Uberlândia-MG

Inaê Soares de Vasconcellos


Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Universidade Federal de São Carlos
I. Introdução

O Caso Tangará teve repercussão midiática de grandes proporções quando começou o


acampamento, no ano de 1999, no km 33 da Br 497, na zona rural de Uberlândia, Minas
Gerais. A organização do movimento de luta pela terra que iniciou os estudos de
produtividade daquela propriedade e mobilizou centenas de cidadãos das periferias
urbanas de Uberlândia para iniciar a ocupação desta fazenda foi o Movimento de
Libertação dos Sem Terras (MLST), que depois veio a se transformar no Movimento Terra,
Trabalho e Liberdade (MTL). Aquela grande repercussão se deu porque a fazenda Tangará
pertencia a uma família tradicional no município, a qual manteve a disputa judicial por
quatro anos defendendo a tese da produtividade da propriedade, que era dedicada então a
uma plantação de eucalipto e dirigida pela empresa de reflorestamento mais antiga da
região, a CIF (Companhia de Integração Florestal).

O Movimento e as/os advogadas/os dedicadas/os à causa dos sem-terra, no entanto,


conseguiram comprovar a improdutividade da terra segundo os critérios da reforma agrária
(BRASIL, 1993) e venceram definitivamente a batalha judicial quase quatro anos depois,
no ano de 2003. A quantidade de pessoas ali acampadas neste período variou muito,
chegando a aproximadamente setecentas (700) famílias em seu auge (GOMES, 2004).

Entre 1999 e 2003 foram realizadas muitas assembleias entre acampadas/os, advogadas/os,
técnicos do INCRA, para atualizações sobre a luta pelo assentamento e busca de consensos
entre as/os acampadas/os, mas as reuniões não eram os únicos espaços de construção da
coletividade. Também foram construídas cozinhas comunitárias, hortas comunitárias, uma
capela como espaço de oração. Além destes ambientes, foram organizadas visitas coletivas
às periferias urbanas de Uberlândia para se trocarem hortaliças produzidas no
acampamento por alimentos de perecibilidade longa (como óleo de cozinha, arroz, feijão,
macarrão) e produtos de limpeza e higiene.

É necessário destacar esse ponto da construção coletiva da vida no acampamento, pois ali
então se observaram esforços diversos para que as pessoas tivessem suas demandas e
necessidades físicas, políticas e espirituais contempladas. Houve discordâncias, cisões ou
“rachas”, como se repetiu em diversas falas, e seria natural que houvesse. Eram centenas
de atores políticas/os, sob pressão da mídia corporativa, da polícia e de muitos outros
setores poderosos da sociedade; e algumas pessoas que tinham perfil de líderes entre os
acampados.

No período do acampamento, de acordo com a revisão da literatura e as entrevistas com


pessoas presentes desde então, a organização que liderava o movimento falava em unidade
política não só no acampamento e para a conquista da terra, mas em torno de um projeto
coletivo para a ocupação e produção no espaço do assentamento (SILVEIRA, 2008;
PALAFOX, 2018). Consta nestas mesmas entrevistas e leituras, no entanto, a presença
decisiva de conflitos, discordâncias de projetos, dissidências e ainda desconfiança com
relação à organização política que coordenava o acampamento.

Produziu-se, principalmente com esta desconfiança, a atomização e individualização dos


acampados, a partir de diversos fatores (a) externos, como campanhas midiáticas de
difamação dos representantes do movimento, judicialização e processos criminais contra
alguns destes; e (b) internos, tais como os critérios e a transparência em relação à
distribuição dos recursos advindos da venda do eucalipto e a insistência na coletivização
do trabalho e da propriedade que viria a ser conquistada; todos estes conflitos ocorreram
antes mesmo da conquista efetiva da terra e do loteamento, que se dariam em 2003.

De todo modo, de acordo com os trabalhos referentes a esta história (GOMES, 2004;
SILVEIRA, 2008; PALAFOX, 2018; JAIME, 2021) e com as falas ouvidas para esta
pesquisa que relatamos, as divergências não impediram a adesão de todas/os no
acampamento em torno da sobrevivência digna e da conquista do direito à terra. O presente
estudo levantou discursos e informações acerca dos desafios econômicos, políticos e
socioambientais que vivem as famílias e a comunidade das/os assentadas/os do Projeto de
Assentamento Nova Tangará.

II. Métodos e técnicas de pesquisa

Em um primeiro momento, foi feita uma revisão bibliográfica sobre as categorias de


reforma agrária, questão socioambiental no Brasil e relações entre assentamentos e
questões ambientais. Concomitantemente a esta revisão teórica, sobre os conceitos
fundamentais do estudo, houve também a busca por trabalhos acadêmicos, documentos e
notícias a respeito do assentamento Nova Tangará. Com esta prospecção, pôde-se
identificar uma série de problemas e desafios na condução do processo de reforma agrária
pelo Estado e na experiência dos assentados do Nova Tangará.
Referências a pessoas e grupos nos trabalhos acadêmicos e notícias sobre representantes
de movimentos e organizações envolvidas com a história do assentamento foram
fundamentais para se chegar a algumas destas pessoas e entrevistá-las. Buscou-se
concentrar o diálogo acerca de suas respectivas histórias com o lugar e suas visões sobre
dos desafios anteriormente identificados e outros novos, principalmente econômicos e
ambientais, assim como tema de interesse dos entrevistados que emergiam no próprio
contexto das entrevistas. Representantes das associações de moradores e da cooperativa de
produção receberam a pesquisa no assentamento e seus depoimentos coincidiram na maior
parte dos temas.

Em razão da pandemia, a observação de campo que seria centrada na participação em


reuniões, assembleias e eventos públicos da comunidade do assentamento Nova Tangará
está suspensa por enquanto. Esta situação levou a um reforço do instrumento das
entrevistas semiestruturadas, com utilização de gravador de áudio, com os/as
representantes das associações dos/das assentados/as (são quatro) e da cooperativa de
produção sediada neste assentamento. Os nomes das pessoas entrevistadas não serão
textualmente revelados, mas as associações representativas são a AMFT (Associação dos
Moradores da Fazenda Nova Tangará), ATTL (Associação Terra, Trabalho e Liberdade),
a AUTT (Associação União dos Trabalhadores do Assentamento Nova Tangará), e a
Tangará do Cerrado, e a Cooperativa é a COOPERTANG (Cooperativa de Produtores
Rurais do Projeto de Assentamento Nova Tangará). A intenção inicial era ir a campo
participando das atividades coletivas antes de entrevistar as pessoas que lideram ou
representam de alguma forma aquela comunidade. No entanto, as circunstâncias levaram
a que essas pessoas fossem escolhidas a partir da pesquisa bibliográfica e documental
inicial e procuradas em primeiro lugar no trabalho de campo.

III. Elementos estruturantes da vida e da produção no


assentamento Nova Tangará

No ano de 2003, depois de conquistado o direito à terra e loteada a área para o


assentamento, foram selecionadas e indicadas para o assentamento duzentas e cinquenta
(250) famílias. Estas seriam as pessoas que assumiriam lotes para reorganizarem suas
vidas, viver na terra, trabalhar e gerar renda a partir daquilo que produziriam. O perfil
destes assentados era muito diverso sob a maior parte dos critérios de observação: idade,
religião, interesse de produção no lote, bairro ou cidade de origem.

De uma população de 870 (oitocentos e setenta) moradores do assentamento, 609


(seiscentos e nove) eram jovens ou adultos, conforme o Plano de Desenvolvimento
Sustentável do Assentamento, doravante citado apenas como PDA. A profissão anterior
que se apresentou com mais frequência entre os homens adultos era a de lavrador, e a
segunda mais frequente era de pedreiro. Já entre as mulheres, a profissão mais
frequentemente encontrada foi de empregada doméstica, e em segundo lugar, de lavradora.
A maior frequência de escolaridade entre os adultos era de Ensino Fundamental I - antigo
Primário (BRASIL, 2004). Uma coisa em comum entre essas pessoas era o fato de terem
sido, por muito tempo, pobres urbanos, estarem à procura de novas perspectivas e com
pouco a perder, assim como com quase nada para financiar o investimento na nova forma
de viver e trabalhar.

Considerando esse retrato de antecedentes sociais, profissionais e de escolaridade, o PDA


indicava a necessidade de um programa de educação escolar e de estratégias de formação
para as atividades produtivas no assentamento (idem). A despeito de que a profissão
anterior de lavrador(a) fosse muito frequente tanto entre homens como entre mulheres, a
formação para se produzir e administrar uma pequena propriedade e dela tirar o sustento
da família precisaria passar pelo aprendizado de competências diversas. Desde letramento,
operações básicas de matemática até administração de estoques, finanças, negócios,
matemática financeira, legislação ambiental, capacitação técnica e burocrática, entre
outros conhecimentos necessários para a realidade de produtoras/es em lotes de
assentamento.

Seria necessário promover uma formação para pessoas que preparam o solo, plantam, e
irrigam lavouras e hortas, alimentam, dessedentam e tratam de animais com suas mais
diversas necessidades, e que também administram os imperativos (estruturais,
burocráticos, ambientais) e projetos de uma pequena propriedade rural. Esta formação se
deu de maneira fragmentada e incipiente, no entanto, segundo relatos dos representantes
atuais da comunidade. A despeito de terem sido levantadas e documentadas pelo próprio
governo, estas são demandas que até hoje, 17 anos depois da publicação do PDA pelo
INCRA/Governo Federal, não foram solucionadas no Projeto de Assentamento (PA) Nova
Tangará.

A precariedade da formação em conhecimentos básicos, mas também específicos da


relação do pequeno produtor com a própria terra e com o poder público tem impactos
decisivos nos resultados. Assim como o estado da própria terra, seus bens naturais e a
situação de degradação de alguns deles, também tem fortes implicações nas condições de
vida e produção humanas. Em função da monocultura de eucalipto e do manejo inadequado
de espécies que se proliferam de maneira acelerada neste tipo de ambiente - por exemplo
a infestação de cupim (Isóptera) -, e da própria drenagem do solo por esta cultura extensiva
de eucalipto, surgem desequilíbrios ecológicos e ambientais.

A estas e outras condições anteriores à entrada dos assentados nos lotes do Projeto de
Assentamento, chamaremos de passivos socioambientais. São dados da realidade de quase
vinte anos atrás com que se faz necessário lidar e ponderar quando se analisa de maneira
crítica o real presente.

Neste PA, cada um dos 250 lotes distribuídos pelo INCRA em 2003 possuía área média
15ha. Em visitas ao assentamento nestes últimos meses, no entanto, pôde-se observar
diversas placas indicando a divisão e venda destes lotes em propriedades menores,
chamadas de chácaras. A venda é regular, uma vez que a titulação das terras foi obtida em
2018 (DIÁRIO DE UBERLÂNDIA, 2018). A partir deste momento, os proprietários têm
o direito de, cumprindo alguns pré-requisitos legais junto ao INCRA, dispor de suas terras
no todo ou em parte – parte mínima de 2ha para manter-se a definição de propriedade rural
– para quem estiver interessado em comprá-las.

Mas pudemos observar entre as pessoas entrevistadas alguns sinais de cansaço e


desapontamento em relação a esta realidade. É importante lembrar, estas terras têm uma
localização cuja distribuição foi organizada pelo INCRA considerando a necessidade de
estradas e cursos d’água passando por todas as propriedades. Questões como
disponibilidade hídrica, saneamento, escoamento da produção pelas estradas, segurança,
retornam com força ao debate nas associações e na cooperativa. Com um mapa do
assentamento em sua frente, qualquer das lideranças entrevistadas saberia informar os
nomes das/dos proprietários de lotes vizinhos e próximos, no mínimo. Com a divisão para
venda, no entanto, toda essa estruturação do assentamento se torna instável.
Figura 1: Mapa do Assentamento Nova Tangará – Divisão dos lotes

Observando a paisagem e ouvindo líderes da cooperativa de produtores e das associações


de assentados, constatou-se que poucas famílias têm infraestrutura e capacidade produtiva
para preparar e aproveitar esse lote inteiro. De acordo com essas pessoas que atuam na
coordenação produtiva e na representação política dos assentados, nos lotes onde se
trabalha com culturas agrícolas que demandam muita água e/ou manejo, como hortas,
pomares, ou com criações de animais com este mesmo perfil de demanda, por exemplo
galinhas e porcos, ocupam-se no máximo 5ha, ou seja, um terço do lote. Nestes casos, o
restante da terra é ocupado com eucalipto, gado bovino em criação extensiva, ou não chega
a ser utilizado.

Há também uma grande parte dos proprietários de terras no PA Nova Tangará que
trabalham com criação de gado, ocupando o lote inteiro nesta atividade. De acordo com
Jaime (2021), a maior parte, 65% do público pesquisado trabalha no todo ou em parte do
lote com gado bovino, majoritariamente para produção de leite e derivados, como queijo e
doces. Neste contexto, os últimos anos, 2020 e 2021, em função de diversos fatores - entre
eles a alta do dólar, as quebras de safras, consequências da seca ou da geada, a exportação
de grãos que vem sendo priorizada pelos grandes produtores em detrimento do mercado
interno – têm sido de uma piora sensível na realidade destes pequenos produtores rurais.
O aumento do preço da ração tornou a criação de animais, principalmente gado bovino,
uma atividade com rentabilidade duvidosa, e a vida financeira ficou mais difícil para os
assentados desta comunidade, principalmente para aqueles que trabalham majoritária ou
exclusivamente com a pecuária.

Quando as/os assentadas/os se percebem sem alternativas para viver com qualidade,
arrochadas/os com os preços, sem perspectivas de gerar renda com a produção do lote, é
natural que busquem alternativas para sobreviverem de outras maneiras. Principalmente
em casos de quebra de expectativas em relação à produção e renda dela - e como exemplo
de causa para estas adversidades observa-se o aumento do preço do milho e da ração em
aproximadamente 100% -, restam poucas alternativas. A repartição da terra em partes
menores para venda é um meio de gerar renda e reorganizar a produção num pedaço que
tenha ficado sob sua propriedade ou mesmo se mudar para a cidade, buscando outras
formas de viver e trabalhar.

A diversificação da produção é benéfica para os assentados. Esta é uma afirmação tão


genérica quanto acertada, de acordo com a experiência das pessoas entrevistadas no
contexto desta pesquisa no PA Nova Tangará. Aqueles que tiveram condições financeiras,
informação, formação e interesse, organizaram em seus lotes um conjunto de estruturas e
equipamentos nos quais e com os quais plantam hortas, plantas medicinais, frutas, raízes,
tubérculos, criam porcos, galinhas, além do gado bovino, e assim se certificam de garantir
sua segurança alimentar e gerar renda. Atravessar conjunturas as mais diversas e adversas
- como a própria pandemia que ainda vivemos e que tem inviabilizado ou dificultado uma
série de canais de escoamento da produção agropecuária - tem sido menos custoso para
aqueles assentados que têm a capacidade de reorganizar suas prioridades produtivas com
alguma margem de manobra.

Nas entrevistas feitas com representantes da comunidade do assentamento é notório o


consenso de que, quando se conquistou o assentamento, em 2003, faltavam algumas
condições essenciais para um bom recomeço de vida e um bom desempenho produtivo e
financeiro nos lotes distribuídos. Elementos como consciência e formação, da parte das/os
assentadas/os, compatíveis com as necessidades e desafios a serem encarados, são os
primeiros. Estas famílias passariam a viver e produzir para seu sustento e geração de renda
em uma terra que até então era usada para uma plantação de eucalipto.

Para obterem sucesso ou mesmo boas perspectivas neste início, teria sido fundamental
começar a nova experiência sabendo minimamente quais passos seriam os seguintes, tanto
do ponto de vista do trabalho manual quanto do trabalho intelectual - burocrático e político.
Estes últimos seriam necessários para reivindicar assertiva e rapidamente outros elementos
imprescindíveis, como financiamento e assistência técnica, da parte do poder público –
governos, bancos públicos, instituições de assistência técnica e aprendizagem rural.

Uma série de problemas ambientais estão entre aquelas necessidades, e sobre eles também
a formação/capacitação técnica prévia da comunidade do assentamento foi insuficiente.
Além deste, um outro problema relativo à questão socioambiental foi uma ação errática do
poder público. O saneamento rural do assentamento Nova Tangará, por exemplo, não foi
uma questão abordada concretamente até hoje pelos órgãos competentes, nem prefeitura,
nem autarquia de água e saneamento ligada à prefeitura, nem INCRA.

Mesmo os poços artesianos, que foram furados sob a coordenação do INCRA em 2004,
eram inicialmente sete (7), e em sua maioria não foram estruturados para funcionar e
distribuir água. Daqueles sete, apenas dois funcionam e distribuem para os diversos lotes
(PALAFOX, 2018). Um dos poços, que fica próximo à sede da Associação de Moradores
da Fazenda Nova Tangará (AMFT), distribui água para quarenta e cinco (45) lotes,
segundo a presidenta da cooperativa e o presidente desta associação. O outro, que serve a
lotes de membros da Associação União dos Trabalhadores da Fazenda Nova Tangará
(AUTT), só tem água suficiente para atender nove (9) lotes, de acordo com o presidente
desta associação.

Como não foi instalada uma rede de esgotamento sanitário, cada um dos proprietários faz
o possível para manter boas condições de saneamento para sua família. As fossas sépticas
são as mais adequadas, mas são também as mais onerosas quando se pensa no investimento
de um assentado que seria necessário para sua estruturação. Já a água que é distribuída
pelos poços e recebida por menos da metade dos lotes, ademais, é suficiente apenas para
uso doméstico, para beber, cozinhar, lavar louça. Consequentemente, “cada um se vira
como pode”, nas palavras da presidenta da cooperativa de produção sediada no
assentamento. Para obter água para sobreviver - no caso daquela maioria que não é
atendida por nenhum dos dois poços - e suficiente para produzir, cada assentado precisou
furar um poço semiartesiano ou uma cisterna, captando água de um dos dois cursos d’água
principais que atravessam o assentamento, o Córrego do Panga e o Ribeirão Douradinho,
ou de seus afluentes.

Em todas as oportunidades de diálogo com representantes da Cooperativa sediada no


assentamento e das associações dos assentados do PA Nova Tangará, buscou-se captar a
percepção, mais precisamente o conhecimento, a atenção e a prioridade, que se construía
em relação à questão ambiental. Os resultados desta busca são interessantes pelas
ausências. Aqui o chamado passivo socioambiental surge de maneira expressiva pelas
entrevistas, pois situações consideradas dignas de alerta ou risco iminente no debate
público - sobre a questão ambiental e políticas públicas de abastecimento e saneamento -
são tangenciadas ou mesmo desconhecidas nas falas destas pessoas.

Em um dos tópicos abordados nas entrevistas, perguntamos sobre como funciona o


saneamento. Este ponto é sensível numa entrevista faze-a-face, pois há implicações legais
de sanção a determinadas práticas, caso sejam denunciadas, neste caso, a chamada fossa
negra, que consiste num buraco cavado na terra sem revestimento, é proibida.

IV. Reflexões teóricas – A Reforma Agrária que o Brasil construiu

A reflexão sobre a reforma agrária que permeia este trabalho está informada fortemente
pela categoria de conflitualidades, pela qual se evidencia que o desenvolvimento do
capitalismo brasileiro está, desde seu início, atravessado por conflitos em torno da terra
(FERNANDES, 2004). Deste modo, entende-se que estão contraditoriamente imbricadas
a questão agrária e o desenvolvimento, produzindo situações de paroxismo deste problema
justamente em sua maior ilustração, a reforma agrária brasileira e suas debilidades
estruturais.

De maneira genérica, compreende-se a reforma agrária como o esforço público pelo


reordenamento da estrutura fundiária de uma determinada formação nacional, de modo a
sanar problemas como o latifúndio improdutivo e a especulação financeira da terra, que
coexistem com a miséria e a fome de trabalhadores/as rurais sem terra. A desapropriação
por interesse social, com base no Estatuto da Terra (de 1964), passou a ser parcialmente
implementada a partir de 1986, sob a ordem do Plano Nacional de Reforma Agrária, no
governo Sarney (BERGAMASCO & NORDER, 1996).
A definição de que a terra precisa cumprir algum interesse social é até hoje o critério basilar
para a desapropriação de imóveis rurais para a reforma agrária. Aquelas terras cuja função
social não é exercida, ou seja, aquelas que são improdutivas, são elegíveis para a reforma
agrária. Esta decisão se dá com critérios técnicos, sob duas variáveis objetivas: o Grau de
Utilização da Terra (GUT) e o Grau de Eficiência na Exploração (GEE), cujos cálculos
devem ser de no mínimo 80% (oitenta por cento) e 100% cem por cento), respectivamente.
Todo este arsenal de análise é definido de acordo com a Lei 8.629\93, que traz em seu
artigo 9º os requisitos de cumprimento da função social da propriedade, repetindo os
componentes listados na Constituição Federal (BRASIL, 1993).

No Brasil, infelizmente, no entanto, a reforma agrária não se dá por iniciativa da União por
um projeto de desenvolvimento e redistribuição, que já contaria, caso houvesse política de
Estado neste sentido, com os recursos técnicos, burocráticos e tecnológicos para averiguar
a produtividade de imóveis rurais. Ela se dá por provocação da sociedade civil ao poder
público, o que concretamente significa que o conflito em torno da terra precisa estar
deflagrado. A partir do questionamento da sociedade, que principalmente a partir dos anos
1980 é atendido em resposta ao confronto aberto traduzido em acampamentos, o Estado é
mobilizado a fazer os cálculos necessários à definição de elegibilidade de determinado
imóvel rural à desapropriação para reforma agrária (BERGAMASCO & NORDER, 1996).

De acordo com Sérgio Sauer (2010) e Fernandes (2004; 2013), a reforma agrária vem
sendo conduzida desde os anos 1990 no Brasil para atenuar os conflitos e a violência no
campo, ao invés de ser planejada como projeto de desenvolvimento. Além desta
contradição, que expressa a conflitualidade agrária como fator determinante de tal política
constitucionalmente ordenada e tão importante para o país, há outra característica desta
dita reforma que merece uma atenção inicial. A forma como os assentamentos de reforma
agrária são projetados e constituídos ainda hoje é a do parcelamento da terra em lotes para
distribuir àquelas famílias que estavam acampadas, com posterior financiamento via
PRONAF, que gera endividamento e tendências sérias à atomização e à concorrência ao
invés da necessária cooperação nos assentamentos (SAUER, 2010).

Desta maneira, a terra (compreendendo-a sempre como o conjunto dos bens naturais
abrangidos em sua superfície) continua a ser tratada como uma mercadoria como outra
qualquer. Da mesma forma que na estrutura agrária tradicional do latifúndio improdutivo
- mas soberano - que tem o direito à propriedade como anterior a qualquer direito ambiental
ou trabalhista, a reforma agrária tal como se organiza hoje reforça o modelo mercantil de
ocupação e uso da terra (DELGADO, 2014).

De maneira oposta aos acampamentos que organizam e simbolizam a luta pela terra, e que
são organizados em tudo de maneira coletiva, os beneficiários da reforma agrária são
atomizados ao “entrar para os lotes”. Na definição de um lote para cada família - com
títulos de propriedade e direitos plenos de uso e ocupação da terra -, e em todas as políticas
públicas subsequentes para o desenvolvimento do assentamento, a lógica é individual e
mercantil.

Do crédito de habitação rural (Crédito Instalação), passando pelo PRONAF (Programa


Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e pela assistência técnica, pelas
compras institucionais do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e do PNAE
(Programa Nacional de Alimentação Escolar); todas estas políticas públicas que têm como
público alvo os assentados de reforma agrária ou mobilizam diretamente seus interesses
são formuladas para atender individualmente às demandas e receber as ofertas destes
beneficiários.

O paradigma do capitalismo agrário, como afirmava Fernandes, tem a expressão do


campesinato como o problema central a ser solucionado. O trabalho autônomo,
frequentemente coletivizado na forma de mutirões, é próprio de um tipo de organização
territorial e social que nega a relevância das relações capitalistas de trabalho e produção
para sua existência e desenvolvimento (FERNANDES, 2013).

Para a reforma agrária de mercado, executada sob o paradigma do capitalismo agrário entre
as décadas de 1980 e 2010, estas formas de vida são improdutivas e incompatíveis com o
mundo que preconiza concorrência e acumulação sistemática de capital. Neste sentido, e
considerando aquelas políticas públicas individualizantes anteriormente citadas, Fernandes
considerava necessário repensar e superar o paradigma do capitalismo agrário para passar
a desenvolver o paradigma da questão agrária na reforma agrária brasileira (idem).
V. Estratégias de reconfiguração do trabalho e da paisagem para superar os
passivos socioambientais e promover o bem-estar

V.1. O projeto das fossas sépticas do DMAE/PMU (Departamento Municipal de Água


e Esgotos/ Prefeitura Municipal de Uberlândia)

As associações de representação dos assentados percebem a necessidade de tratar destes


temas, e têm se disposto, em várias ocasiões, a embarcar em projetos com as instituições
que dispõem do conhecimento e do orçamento para realizar mudanças positivas em
situações que afetam e/ou oferecem riscos à população. A exemplo disto, em 2014, foi
iniciado um projeto do Departamento Municipal de Água e Esgotos, uma autarquia
vinculada à Prefeitura Municipal de Uberlândia, relacionado ao meio ambiente em
assentamentos de reforma agrária, e o Nova Tangará foi um dos dois assentamentos
contemplados neste projeto (G1, 2015; RADIS, 2015). A proposta era instalar 390 fossas
sépticas em dois assentamentos até o ano de 2016, e algumas foram de fato instaladas, mas
não chegou a tornar-se um projeto ampliado para toda a comunidade.

Ainda que o saneamento básico seja um direito constitucional entre outros como saúde,
segurança alimentar, educação, desde 1988, e especificamente o saneamento rural esteja
normalizado pela Lei 8.171 de 17 de janeiro de 1991 (BRASIL, 1991), sua administração
e sua operacionalização têm sido negligenciadas. Neste ponto é importante salientar que
os direitos básicos apontados acima, garantidos na Constituição de 1988, constituem-se
num pacote de direitos indissociáveis numa democracia. São inseparáveis e inegociáveis,
pois garantem a dignidade humana e a plenitude de condições para que toda a população
brasileira, e cada indivíduo em suas particularidades, possam orientar seus destinos livres
de preocupações como doenças preveníveis e/ou tratáveis, fome ou insalubridade
ambiental.

A desigualdade de condições de vida imposta à população brasileira já é discernível neste


plano tão básico de necessidades – saneamento, alimentação, saúde, educação – e é
discutida há décadas. Estes aspectos estruturais de nossa sociedade, a despeito de já terem
sido legal e normativamente resolvidos no plano federal, são questões sobre as quais até
hoje há muito a se fazer para alcançar as obrigações constitucionais. Contraditoriamente,
ainda são temas a respeito das quais os governos em seus três níveis, federal, estaduais e
municipais, são capazes de operar discricionariamente, ou seja, “com liberdade de escolha
de seu conteúdo, do seu destinatário, tendo em vista a conveniência e a oportunidade de
sua realização” (WIKIPEDIA, 2021).

Uma evidência do argumento acima é justamente a abordagem feita pela Prefeitura e pela
autarquia responsável acerca de um problema elementar nos assentamentos rurais que é o
saneamento: foi elaborado um projeto, com orçamento de R$300.000,00 (RADIS, 2015),
para instalação de 390 fossas sépticas em dois assentamentos rurais do município. Havia,
como há até hoje, a necessidade de que alguma medida fosse tomada para superar
precariedade em relação a saneamento nos assentamentos, pois praticamente todos os lotes
têm seus efluentes depositados em fossas negras (G1, 2014).

O projeto, então, era necessário, já que propunha um início de solução para este problema
tão generalizado quanto grave. Porém, o projeto começou com a instalação de algumas
fossas sépticas e foi interrompido. Assim, não foi cumprido o objetivo de instalar as 390
fossas sépticas nos dois assentamentos, e nem a manutenção das poucas fossas instaladas
é assumida ou facilitada pelo órgão competente.

Segundo os próprios moradores representantes de associações, foram instaladas no


máximo 15 fossas sépticas no assentamento Nova Tangará. De acordo com seus relatos, o
governo municipal daquele período (mandato de Gilmar Machado, do Partido dos
Trabalhadores, de 2013-2016) tinha um perfil de interesse pelas causas dos assentados; já
o atual prefeito, Odelmo Leão (reeleito para o mandato 2021-2024, pelo Partido
Progressistas) não tem o mesmo foco em seu governo.

Este dado da realidade brasileira, a legislação política e eleitoral que possibilita ao poder
executivo discricionariedade exorbitante aos termos constitucionais, é estrutural e
estruturante, e seu tratamento é necessário quando se analisam políticas públicas e sua
efetividade. Neste sentido, o prefeito Gilmar Machado, que tem farta experiência
legislativa como deputado federal pelo mesmo partido, teve um mandato (2013-2016), e
ao longo deste governo iniciou a organização do saneamento rural com a iniciativa descrita
anteriormente. Após o término de seu mandato, não se fala mais no assunto, de acordo com
o representante de uma das associações de moradores do Nova Tangará, cujo lote foi o
primeiro a ser contemplado pela implantação de fossa séptica no âmbito deste projeto. O
mesmo morador informa, inclusive, que hoje não tem condições de fazer a previsível e
necessária manutenção da fossa séptica instalada.
No entanto, uma questão que sobra sem resposta é porque uma situação tão complexa e
urgente como o saneamento rural foi tratada como um projeto no mandato de Gilmar
Machado. O orçamento e o esforço legislativo em relação a esta matéria, de acordo com o
que é informado sobre o projeto no site da Prefeitura de Uberlândia/DMAE (Departamento
Municipal de Água e Esgotos), não foram então compatíveis com as características de uma
política pública de saneamento.

Registra-se, enfim, a relevância desta iniciativa e o seu valor em promoção da educação


ambiental e conscientização sobre a necessidade de superar o estado atual de coisas em
que as fossas negras predominam na zona rural. Por outro lado, questiona-se as motivações
da elaboração de uma iniciativa tão frágil legislativamente para uma matéria de política
pública que necessariamente se estenderia para o longo prazo. Por fim, é importante
questionar o alto grau de arbitrariedade que permitiu ao sucessor no poder executivo
engavetar o projeto das fossas sépticas nos assentamentos rurais sem maiores
consequências.

V.2. O Projeto de extensão da UFU (Universidade Federal De Uberlândia)

Um outro projeto se deu entre os anos de 2015 e 2016 no assentamento Nova Tangará,
também com o objetivo de contribuir para a melhoria de fatores como saneamento, e para
a melhoria da qualidade ambiental em geral. Foi quando o Núcleo de Educação Ambiental
do Centro de Incubação de Empreendimentos Solidários da Universidade Federal de
Uberlândia (NEAM/CIEPS/PROEX/UFU) elaborou e iniciou um projeto de extensão
referente à questão ambiental no assentamento. Tendo em vista a necessidade de contribuir
para a formação da comunidade e para o início da solução de problemas vividos no
assentamento, o projeto “Caminhos do desenvolvimento ambiental: extensão universitária
no campo”, financiado pelo CNPq num ciclo bienal, realizou sua intervenção. Com um
grupo de aproximadamente 30 (trinta) acadêmicas/os, entre estudantes, técnicas/os e
docentes de diversas áreas, as atividades deste projeto foram concentradas em dois temas
principais: manejo e conservação dos recursos hídricos e gestão de resíduos sólidos.
Segundo os autores do projeto, a proposta desta equipe era

Articulada indissociavelmente à prática da pesquisa e do ensino universitários,


a finalidade central da nossa proposta foi dar a conhecer à comunidade o
conceito e as práticas da Qualidade Ambiental enquanto direito de todos,
pesquisar a realidade e definir com a essa mesma comunidade, planos de
intervenção educativa, jurídica e técnico-científicas destinadas a contribuir com
a melhoria da sua qualidade de vida ambiental. PALAFOX, 2018, p. 12.

O trabalho deste grupo fazia uma avaliação da qualidade ambiental do assentamento que
se amparava em pressupostos que envolviam não só os aspectos físicos do território para,
mas analisava também fatores históricos, sociais, culturais da comunidade e da história do
lugar. Neste sentido, entende-se que a qualidade ambiental não é direta e exclusivamente
produzida pela comunidade do território em análise. Portanto, a solução dos problemas
ambientais passa sim por uma formação que faça a comunidade dos assentados
compreender a necessidade e aprender os métodos de promoção da qualidade ambiental -
como preservação de nascentes, de matas ciliares, de cursos d’água e seu manejo adequado,
instalação e manutenção de fossas sépticas. Mas estas iniciativas desacompanhadas de
transformações estruturais na vida política e na organização social e econômica do
município, do estado e do país constituem-se em melhorias pontuais e transitórias.

De acordo com os autores do relatório do Projeto Caminhos do Desenvolvimento


Ambiental, “a existência dos inúmeros problemas inerentes ao meio ambiente nunca
poderá ser enfrentada e resolvida somente pela comunidade diretamente afetada se não
compreendermos o caráter sistêmico dos mesmos” (PALAFOX, 2018, p. 13). Assim, o
projeto de extensão em tela se constituiu numa peça de crítica mais ampla, que cumpriu
um papel prático para a comunidade, promovendo melhorias na qualidade ambiental do
assentamento, mas que sabidamente não seria a porta de saída para os problemas
ambientais ali vividos.

V.3. Os passivos socioambientais no assentamento nova tangará

Foi possível notar, nas entrevistas realizadas com representantes das associações
representativas dos assentados e da Cooperativa, que ambos os projetos implementados no
assentamento não tiveram repercussão geral na comunidade. O coordenador da maior
associação, que conta com 137 (cento e trinta e sete) associadas/os donas/os de lotes entre
as/os 250 (duzentos e cinquenta) proprietárias/os, aparentemente é um líder de referência
a quem os representantes do DMAE e da UFU procuraram e com quem organizavam as
reuniões e atividades dos respectivos projetos. Este assentado, coordenador da AMFT
(Associação dos Moradores da Fazenda Nova Tangará), portanto, sabia descrever nomes
envolvidos e atividades propostas em ambos os casos. Já os demais entrevistados,
entretanto, sabiam pouco ou nada sobre tais iniciativas.
Importante ressaltar, neste ponto, que a AMFT é a única associação que ainda hoje, 18
(dezoito) anos após a entrada para os lotes, mantém rede de contatos, fazia reuniões
mensais antes da pandemia de COVID-19, tem a documentação regularizada para manter-
se representando seus associados. Ou seja, o coordenador geral da AMFT é conhecido
pelas instituições como um agente de referência principalmente porque a associação que
representa está relacionada, com seus contatos, em todos os órgãos de monitoramento,
gestão e políticas públicas voltadas para assentamentos de reforma agrária. Não há indícios
de que seja, portanto, um indivíduo com contatos privilegiados, nesse sentido, por gestões
políticas fisiológicas de nenhuma parte, mas sim um representante legítimo da
comunidade.

Nas entrevistas com representantes das associações, fica patente um conhecimento remoto
sobre estes projetos, do DMAE/PMU e da UFU, da parte de alguns(algumas), e alguma
descrença da parte de outras/os. É como se estivessem desapontadas/os, mas não
surpresas/os, com o fato de os projetos, assim como os contatos com as/os representantes
das instituições proponentes, terem sido encerrados antes de executarem o que propunham
inicialmente.

Uma outra situação observada é de desconhecimento/desinteresse com relação a aspectos


da qualidade ambiental do assentamento que seriam considerados por especialistas fatores
de risco iminente ao abastecimento hídrico e à saúde da comunidade em geral, como no
caso do diagnóstico do Projeto de Extensão da UFU. A questão da disponibilidade de água
e do tratamento do esgoto, assim como a avaliação sobre o estado das nascentes e dos
cursos d’água, são alguns destes pontos sobres os quais as entrevistas foram importantes
para demonstrar uma preocupação leve a moderada.

Já na avaliação do Projeto da UFU, citado anteriormente, de 2015-2015, estes pontos da


qualidade ambiental do assentamento são todos de alta prioridade por haver indícios de
fatores sistêmicos e estruturais de piora nos índices. O aumento dos períodos de córrego
seco, a poluição dos cursos d’água por efluentes domésticos e industriais, a compactação
do solo em áreas de nascentes, poços artesianos e semiartesianos com e sem outorga
pública, o que produz um rebaixamento do lençol freático, entre outros problemas relatados
no relatório do diagnóstico do projeto (PALAFOX, 2018, p. 99-132); são dados levantados
pelo grupo e apresentados à comunidade, pelo menos em parte, que custam a produzir o
interesse e as condições de mobilização comunitária necessários para a reivindicação por
transformações neste nível da estrutura do assentamento.

E neste ponto emerge um flagelo para aquela comunidade que é a fragmentação do


assentamento em pequenas propriedades rurais sem construção coletiva perene, com um
sentido de comunidade fragilizado. As associações representativas dos moradores já não
mobilizam a comunidade como no período do acampamento ou subsequente ao
assentamento.

Um dos representantes de associação, inclusive, informa que não tem mais condições de
exercer a função e precisa “dar baixa” de seu nome na coordenação geral. O mesmo
coordenador também afirma que a associação já não tem mais vida orgânica desde quando
os títulos das terras foram concedidos, o que remete ao ano de 2018 (UBERLÂNDIA,
2018). Desde então, não se organizaram mais reuniões, não existe grupo de mensagens
pelo telefone. Este é também o relato do coordenador da terceira associação entrevistado e
da presidenta da cooperativa. Ou seja, de acordo com estes relatos, as/os assentadas/os têm
vivido cada um/a em seu lote, como se agricultoras/es familiares regulares fossem, vivendo
da melhor maneira possível da alimentação e da renda de sua produção.

Ocorre que um assentamento não se estrutura de maneira a permitir tais escolhas: as áreas
de Reserva Legal, de acordo com o Código Florestal, Capítulo IV, Seção I, Art. 12, Inciso
II, Parágrafo 1º, são definidas de acordo com a área do imóvel antes do fracionamento
(BRASIL, 2012). Ou seja, toda a gestão relacionada à preservação e conservação das áreas
de Reserva Legal, assim como das Áreas de Proteção Permanente, devem ser feitas
coletivamente no assentamento de reforma agrária. A despeito dos interesses particulares,
discordâncias entre associações ou vizinhas/os, descrenças com relação à coletividade
organizada do assentamento, terá de haver consensos sobre o uso e manejo da água e da
terra considerando estes dispositivos legais.

Outro ponto das entrevistas que evidencia as lacunas – e as possibilidades de melhorias -


a respeito da qualidade da representação exercida/possibilitada às/aos assentadas/os do PA
Nova Tangará foi dado à pergunta sobre o Comitê da Bacia (CBH) dos Afluentes Mineiros
do Baixo Paranaíba, o PN3. Questionada/os sobre se teriam informações acerca de reuniões
ou do processo de indicação/escolha de representantes do CBH PN3 - que é o Comitê que
corresponde à bacia que tem afluentes no assentamento, o Ribeirão Douradinho, o Córrego
Panga, e cursos d’água tributários -, a resposta unânime foi o “não”. De fato, na revisão de
literatura a respeito dos assentamentos e seus dilemas ambientais na região do Triângulo
Mineiro, este tema está ausente.

Já no estado de São Paulo existe há alguns anos uma percepção entre as/os líderes
comunitárias/os de assentamentos rurais de que é necessária uma organização mais ampla
para ocupar espaços nos Comitês de Bacias Hidrográficas. Naqueles espaços, de acordo
com a bibliografia consultada, é possível às associações de assentamentos manterem-se
informadas sobre a legislação e obterem atualizações sobre a questão das águas na região.
Além de ambiente para obter informações, é o lugar de disputas para se pleitear que as
necessidades e os interesses/prioridades dos assentamentos também sejam ponderados nos
ambientes de gestão das águas que atravessam os próprios territórios (AGAPTO et. al.,
2012).

Refletindo sobre as respostas dadas com relação às questões estruturais-ambientais do


assentamento, inicialmente se pode ter a impressão de certo desinteresse acerca dos
problemas. Olhando de outro ponto de vista, o de pessoas que têm lutado há mais de duas
décadas para viver da terra com custos incalculáveis de tempo, energia e dinheiro, lidando
com as faltas (de água, de esgoto, de internet) que constituem a vida das/dos lutadores da
terra em suas chegadas aos assentamentos, pode-se supor como seria custoso reorganizar
aquela base coletiva que conquistou a terra para pleitear um novo grande projeto de vida,
que é a qualidade ambiental de sua morada.

V.4. Êxito na construção da coletividade do assentamento e na inclusão produtiva, a


COOPERTANG - Cooperativa de Produtores Rurais do PA Nova Tangará

A Cooperativa de Produtores Rurais do Projeto de Assentamento Nova Tangará,


COOPERTANG, foi fundada em 2015, e tem sido essencial para a melhoria da renda e das
condições de vida, consequentemente, naquela comunidade. Seus trabalhos de coleta e
fornecimento dos alimentos produzidos pelos assentados na cidade começaram em 2016.
Esta iniciativa, de criar a cooperativa e arregimentar os assentados do PA Nova Tangará
em torno de um objetivo que era promover a inclusão produtiva com dignidade, constituiu-
se num marco importante desta comunidade, uma vez que trouxe significativa melhoria
das condições de escoamento da produção de aproximadamente 60 (sessenta) famílias.
Este incremento das condições de produção e renda da população do assentamento se deu
principalmente alavancado pelos preços praticados pela Cooperativa. Ela fornece
praticamente toda a produção entregue pelos(as) produtores(as) ao Programa Nacional de
Alimentação Escolar, e aproveita as potencialidades deste Programa, que objetiva não só
alimentar as crianças e jovens com qualidade como também promover a agricultura
familiar (FREITAS & FREITAS, 2020). Nesse sentido, a COOPERTANG tem a
capacidade de coletar a produção dentro do assentamento, o que favorece muito a inclusão
produtiva sob o aspecto logístico, e ainda paga melhor pela produção do que o CEASA
(Central de Abastecimento) da cidade de Uberlândia.

Atualmente, a Cooperativa enfrenta os desafios multifatoriais da pandemia de COVID-19,


e sua capacidade de entrega está ociosa em aproximadamente 60% (sessenta porcento).
Segundo a presidenta da COOPERTANG, o ano de 2019 foi o auge da produção e das
entregas, e neste ano inclusive o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação, que financia o PNAE) esteve na cidade para fazer reunião com a Prefeitura e as
cooperativas de produtores familiares da cidade, solicitando mais oferta de
alimentos/produção, pois a cota de 30% (trinta porcento) de compras da agricultura
familiar não estava sendo cumprida devido a falta de oferta de produtos pelas/os
produtoras/es.

Este relato está em conformidade com os dados fornecidos pelo FNDE sobre as aquisições
da agricultura familiar no ano de 2017 (dados mais recentes fornecidos pelo Fundo).
Segundo planilha disponibilizada no site do FNDE, o município recebeu para o PNAE, no
ano de 2017, o valor de R$ 6.994.858,00 e comprou da agricultura familiar, naquele ano,
R$39.785,25, o que corresponde a 0,57% do montante recebido (FNDE, 2021). Neste
sentido, ainda havia muito espaço para ampliação da produção da cooperativa, que em
2019 operava entregando ao PNAE de Uberlândia (escolas Municipais e Estaduais) mais
de 10 toneladas de alimentos, segundo a gestora entrevistada.

Percebe-se, a partir destes dados, um espaço para o crescimento da cooperativa, que hoje
conta com 80 (oitenta) cooperados no assentamento Nova Tangará e 120 (cento e vinte)
cooperados ao todo, sendo os demais de outros assentamentos na região, num raio de 25km
(vinte e cinco quilômetros) de distância da sede da cooperativa. Um desafio a ser
enfrentado pela Cooperativa nos meses que vierem após o retorno às aulas presenciais nas
escolas e a consequente retomada da demanda por produtos aos níveis do ano de 2019, no
entanto, é reunir os produtores e suas respectivas capacidades produtivas pré-pandemia.
Muitos deixaram de fornecer para a cooperativa, porque a dinâmica de compra de quites
da agricultura familiar pela prefeitura reduziu em muito as compras e diminuiu bastante
também a diversidade de produtos requeridos pelo PNAE.

Segundo a presidenta da cooperativa, os próximos passos são adquirir um trator - cuja


emenda parlamentar já se encontra em tramitação para compra, e com os serviços à
produção que um/a operador/a em uma máquina como esta pode prestar - atrair de volta os
fornecedores antigos e novos produtores de produtos processados para agregar ao
portifólio da organização. Hoje a cooperativa tem uma pequena agroindústria de produtos
minimamente processados, que seriam hortaliças, verduras, tubérculos, raízes e frutas
descascados, embalados a vácuo, picados. A intenção para mais um degrau de
desenvolvimento da cooperativa é criar e certificar uma agroindústria de produtos
processados derivados do leite, como queijos, requeijões e iogurtes, e ainda doces, pães,
biscoitos, entre outros produtos com maior valor agregado.

O objetivo que está no horizonte desta gestora e de outros membros da cooperativa com
quem conversamos é tornar a organização independente dos programas de compras
institucionais como o PNAE. Tornar-se independente não é deixar de fornecer, até porque
ainda existe um grande espaço para crescer e aumentar a produção fornecendo ao PNAE,
mas é fazer a marca da cooperativa ser reconhecida e consagrada na sociedade de
Uberlândia e região, tendo seus queijos, pães, doces, sendo comprados em mercados e
feiras.

VI. Considerações Finais

Ao longo das entrevistas com os representantes das associações dos assentados do Projeto
de Assentamento Nova Tangará, de Uberlândia, Minas Gerais, observou-se que os efeitos
de uma reforma agrária de mercado como esta que se realizou no Brasil até 2016 se
estendem para muito além da divisão em várias associações. Dizemos que a reforma
agrária de mercado foi realizada no Brasil até o ano de 2016 porque, após este ano, poucos
assentamentos foram criados e, a partir de 2019, no governo Bolsonaro, o INCRA vem
sendo desmontado e utilizado mesmo para a reintegração de posse em áreas de
acampamento dos movimentos de luta pela terra.
Sobre os efeitos do governo Bolsonaro especificamente na dinâmica social, política e
econômica experimentada pelas comunidades assentadas da reforma agrária, urge a
necessidade de estudos de mudanças legislativas e infralegais, assim como levantamentos
sobre orçamento e cobertura mais aprofundados. Apenas para registro de alguns fatos, no
entanto, é patente a redução dos orçamentos e da cobertura do PRONAF (Programa
Nacional de Financiamento da Agricultura Familiar), do PAA (Programa de Aquisição de
Alimentos), do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) neste período, assim
como é pública a desativação dos conselhos de políticas públicas, incluindo o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, cujo papel no monitoramento das políticas
públicas voltadas à inclusão produtiva de assentados era fundamental.

A reforma agrária de mercado, realizada entre os anos de 1990 e 2015, é um modelo que
reforça o individualismo e as soluções precárias e passageiras. Este é projeto de
reordenação da estrutura fundiária por meio da atomização da luta pela terra e repartição
de latifúndios em pequenas propriedades seguindo a mesma lógica de produção
agropecuária convencional. Ele não possibilita soluções consistentes para os problemas
apresentados neste trabalho, tais como as desigualdades estruturais que acompanham os
cidadãos das periferias dos centros urbanos, de onde vem a maior parte dos assentados do
PA Nova Tangará, para seus lotes individuais.

A superação destes passivos socioambientais e a recuperação da qualidade ambiental nos


assentamentos, assim como a inclusão produtiva com independência relativa dos governos
de plantão e suas políticas públicas frágeis, dependeria de um pacto de comunidade entre
as pessoas que estão nos assentamentos. Um novo pacto que, com maior probabilidade de
sucesso, definiria o direito de uso (e a solidariedade intergeracional) como superior ou
substituto do direito de propriedade e de exploração da terra e da água.

Algumas questões que se mantém, que acompanham e se impõem sobre algumas reflexões
e impressões explicitadas neste texto, fruto de um trabalho em andamento, são a respeito
das possibilidades identificadas pelos sujeitos que estão nos assentamentos e das
proposições apostadas pelas organizações e entidades que articulam lutas sociais e que
pretendam ocupar espaços de poder rompendo o ciclo de precariedade e transitoriedade
das soluções.
Do ponto de vista das pessoas que vivem e trabalham para obter não apenas o sustento,
mas a plenitude de suas condições de existência física, emocional, espiritual, o modelo
convencional de trabalho e de produção tem atendido às expectativas? E quanto às
entidades e organizações políticas que pleiteiam as transformações nas estruturas da
questão agrária brasileira, estariam preparadas ou preparando alternativas, modelos
diferentes da reforma de mercado, para subsidiar a luta pela terra e para aquelas pessoas e
coletivos que já se encontram assentadas/os?

Quanto aos problemas mais estritamente acadêmico-científicos da pesquisa nos ambientes


de disputa de terras e nos assentamentos, a pandemia de COVID-19 impôs desafios quanto
às atividades presenciais coletivas e à observação participante como estratégia privilegiada
de pesquisa. Considerando as mudanças vividas pelas comunidades dos assentamentos nos
últimos anos, tanto ainda em função da pandemia quanto pelas mudanças radicais
promovidas na orientação da política agrária pelo governo Bolsonaro, estratégias de
pesquisa quantitativas, com apreensão do maior conjunto de dados possível sobre as novas
realidades vividas seriam relevantes e necessárias.
VII. Referências Bibliográficas

AGAPTO, João Paulo; BORSATTO, Ricardo Serra; SOUZA ESQUERDO, Vanilde


Ferreira; BERGAMASCO, Sonia Maria Pessoa Pereira. Avaliação do Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA) em Campina do Monte Alegre, estado de São Paulo, a
partir da percepção dos agricultores. Informações Econômicas, SP, v. 42, n. 2, mar./abr.
2012.
BERGAMASCO, Sonia Maria & NORDER, Luiz Antônio C. O que são assentamentos
rurais. São Paulo : Brasiliense, 1996. (Coleção Primeiros Passos; 301)
BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Plano de
Desenvolvimento Sustentável PA “Nova Tangará”. Belo Horizonte – MG, 2004.
BRASIL. Casa Civil. LEI Nº 12.651, DE 25 DE MAIO DE 2012 (Código Florestal).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm
Acesso em: 10 de setembro de 2021.
BRASIL. Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos
dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título
VII, da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 26 de fevereiro de
1993, pág. nº 2349.
DELGADO, Guilherme. Questão Agrária Hoje. In: ABRA, Revista da Associação
Brasileira de Reforma Agrária. Questão Agrária e desigualdades no Brasil. Ano 35 Volume
01 Nº 02 • Edição Outubro 2014. P. 27-40
FERNANDES, Bernardo Mançano. Questão Agrária: conflitualidade e
desenvolvimento territorial. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
Biblioteca Digital do Planejamento. Debate com Carlos Enrique Guazinroli e Antony Hall,
em seminários no Lincoln Istitute of Land Policy e na Harvard University. 2004.
Disponível em: https://bibliotecadigital.seplan.planejamento.gov.br/handle/iditem/564
Acesso em 20 de agosto de 2021.
____________________________. A reforma agrária que o governo Lula fez e a que
pode ser feita. In: SADER, E. (Org.). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula
e Dilma. São Paulo, SP: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO Brasil 2013. P. 191-206.
FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Dados da Agricultura
Familiar – Aquisições Agricultura Familiar 2017. Disponível em:
https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/pnae/pnae-consultas/pnae-dados-da-
agricultura-familiar
Acesso em 10 de setembro de 2021.
FREITAS, Alan Ferreira; FREITAS, Alair Ferreira. Análise relacional do Programa
Nacional de Alimentação Escolar: relevando dimensões institucionais dos processos
locais de implementação. Revista Sociedade e Estado – Volume 35, Número 2,
Maio/Agosto 2020.
G1, TV Integração. Fossa negra é substituída por fossa séptica em assentamentos de
MG. Publicado em 6 de maio de 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/minas-
gerais/triangulo-mineiro/noticia/2014/05/fossa-negra-e-substituida-por-fossa-septica-em-
assentamentos-de-mg.html
Acesso em 15 de setembro de 2021.
GOMES, Renata Mainenti. Ofensiva do capital e transformações no mundo rural: a
resistência camponesa e a luta pela terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba.
Dissertação (Mestrado em Geografia), Universidade Federal de Uberlândia, 2004.
JAIME, Clóvis da Silva. Vulnerabilidade social, qualidade de vida e saúde no Projeto
de Assentamento de Reforma Agrária Nova Tangará, Uberlândia, Minas Gerais. 160
f. Dissertação (Mestrado em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador) - Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2021. Disponível em:
http://doi.org/10.14393/ufu.di.2021.267
RADIS, FIOCRUZ. Investimento e planejamento em Uberlândia. Publicado em 1 de
junho de 2015. Disponível em:
https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/reportagem/investimento-e-planejamento-
em-uberlandia
Acesso em 15 de setembro de 2021.
UBERLÂNDIA, Diário de. INCRA entrega títulos definitivos a famílias do Nova
Tangará. Publicado em 14 de março de 2018. Disponível em:
https://diariodeuberlandia.com.br/noticia/16004/incra-entrega-titulos-definitivos-a-
familias-do-nova-tangara
Acesso em: 14 de setembro de 2021.

Você também pode gostar