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Entre 1999 e 2003 foram realizadas muitas assembleias entre acampadas/os, advogadas/os,
técnicos do INCRA, para atualizações sobre a luta pelo assentamento e busca de consensos
entre as/os acampadas/os, mas as reuniões não eram os únicos espaços de construção da
coletividade. Também foram construídas cozinhas comunitárias, hortas comunitárias, uma
capela como espaço de oração. Além destes ambientes, foram organizadas visitas coletivas
às periferias urbanas de Uberlândia para se trocarem hortaliças produzidas no
acampamento por alimentos de perecibilidade longa (como óleo de cozinha, arroz, feijão,
macarrão) e produtos de limpeza e higiene.
É necessário destacar esse ponto da construção coletiva da vida no acampamento, pois ali
então se observaram esforços diversos para que as pessoas tivessem suas demandas e
necessidades físicas, políticas e espirituais contempladas. Houve discordâncias, cisões ou
“rachas”, como se repetiu em diversas falas, e seria natural que houvesse. Eram centenas
de atores políticas/os, sob pressão da mídia corporativa, da polícia e de muitos outros
setores poderosos da sociedade; e algumas pessoas que tinham perfil de líderes entre os
acampados.
De todo modo, de acordo com os trabalhos referentes a esta história (GOMES, 2004;
SILVEIRA, 2008; PALAFOX, 2018; JAIME, 2021) e com as falas ouvidas para esta
pesquisa que relatamos, as divergências não impediram a adesão de todas/os no
acampamento em torno da sobrevivência digna e da conquista do direito à terra. O presente
estudo levantou discursos e informações acerca dos desafios econômicos, políticos e
socioambientais que vivem as famílias e a comunidade das/os assentadas/os do Projeto de
Assentamento Nova Tangará.
Seria necessário promover uma formação para pessoas que preparam o solo, plantam, e
irrigam lavouras e hortas, alimentam, dessedentam e tratam de animais com suas mais
diversas necessidades, e que também administram os imperativos (estruturais,
burocráticos, ambientais) e projetos de uma pequena propriedade rural. Esta formação se
deu de maneira fragmentada e incipiente, no entanto, segundo relatos dos representantes
atuais da comunidade. A despeito de terem sido levantadas e documentadas pelo próprio
governo, estas são demandas que até hoje, 17 anos depois da publicação do PDA pelo
INCRA/Governo Federal, não foram solucionadas no Projeto de Assentamento (PA) Nova
Tangará.
A estas e outras condições anteriores à entrada dos assentados nos lotes do Projeto de
Assentamento, chamaremos de passivos socioambientais. São dados da realidade de quase
vinte anos atrás com que se faz necessário lidar e ponderar quando se analisa de maneira
crítica o real presente.
Neste PA, cada um dos 250 lotes distribuídos pelo INCRA em 2003 possuía área média
15ha. Em visitas ao assentamento nestes últimos meses, no entanto, pôde-se observar
diversas placas indicando a divisão e venda destes lotes em propriedades menores,
chamadas de chácaras. A venda é regular, uma vez que a titulação das terras foi obtida em
2018 (DIÁRIO DE UBERLÂNDIA, 2018). A partir deste momento, os proprietários têm
o direito de, cumprindo alguns pré-requisitos legais junto ao INCRA, dispor de suas terras
no todo ou em parte – parte mínima de 2ha para manter-se a definição de propriedade rural
– para quem estiver interessado em comprá-las.
Há também uma grande parte dos proprietários de terras no PA Nova Tangará que
trabalham com criação de gado, ocupando o lote inteiro nesta atividade. De acordo com
Jaime (2021), a maior parte, 65% do público pesquisado trabalha no todo ou em parte do
lote com gado bovino, majoritariamente para produção de leite e derivados, como queijo e
doces. Neste contexto, os últimos anos, 2020 e 2021, em função de diversos fatores - entre
eles a alta do dólar, as quebras de safras, consequências da seca ou da geada, a exportação
de grãos que vem sendo priorizada pelos grandes produtores em detrimento do mercado
interno – têm sido de uma piora sensível na realidade destes pequenos produtores rurais.
O aumento do preço da ração tornou a criação de animais, principalmente gado bovino,
uma atividade com rentabilidade duvidosa, e a vida financeira ficou mais difícil para os
assentados desta comunidade, principalmente para aqueles que trabalham majoritária ou
exclusivamente com a pecuária.
Quando as/os assentadas/os se percebem sem alternativas para viver com qualidade,
arrochadas/os com os preços, sem perspectivas de gerar renda com a produção do lote, é
natural que busquem alternativas para sobreviverem de outras maneiras. Principalmente
em casos de quebra de expectativas em relação à produção e renda dela - e como exemplo
de causa para estas adversidades observa-se o aumento do preço do milho e da ração em
aproximadamente 100% -, restam poucas alternativas. A repartição da terra em partes
menores para venda é um meio de gerar renda e reorganizar a produção num pedaço que
tenha ficado sob sua propriedade ou mesmo se mudar para a cidade, buscando outras
formas de viver e trabalhar.
Para obterem sucesso ou mesmo boas perspectivas neste início, teria sido fundamental
começar a nova experiência sabendo minimamente quais passos seriam os seguintes, tanto
do ponto de vista do trabalho manual quanto do trabalho intelectual - burocrático e político.
Estes últimos seriam necessários para reivindicar assertiva e rapidamente outros elementos
imprescindíveis, como financiamento e assistência técnica, da parte do poder público –
governos, bancos públicos, instituições de assistência técnica e aprendizagem rural.
Uma série de problemas ambientais estão entre aquelas necessidades, e sobre eles também
a formação/capacitação técnica prévia da comunidade do assentamento foi insuficiente.
Além deste, um outro problema relativo à questão socioambiental foi uma ação errática do
poder público. O saneamento rural do assentamento Nova Tangará, por exemplo, não foi
uma questão abordada concretamente até hoje pelos órgãos competentes, nem prefeitura,
nem autarquia de água e saneamento ligada à prefeitura, nem INCRA.
Mesmo os poços artesianos, que foram furados sob a coordenação do INCRA em 2004,
eram inicialmente sete (7), e em sua maioria não foram estruturados para funcionar e
distribuir água. Daqueles sete, apenas dois funcionam e distribuem para os diversos lotes
(PALAFOX, 2018). Um dos poços, que fica próximo à sede da Associação de Moradores
da Fazenda Nova Tangará (AMFT), distribui água para quarenta e cinco (45) lotes,
segundo a presidenta da cooperativa e o presidente desta associação. O outro, que serve a
lotes de membros da Associação União dos Trabalhadores da Fazenda Nova Tangará
(AUTT), só tem água suficiente para atender nove (9) lotes, de acordo com o presidente
desta associação.
Como não foi instalada uma rede de esgotamento sanitário, cada um dos proprietários faz
o possível para manter boas condições de saneamento para sua família. As fossas sépticas
são as mais adequadas, mas são também as mais onerosas quando se pensa no investimento
de um assentado que seria necessário para sua estruturação. Já a água que é distribuída
pelos poços e recebida por menos da metade dos lotes, ademais, é suficiente apenas para
uso doméstico, para beber, cozinhar, lavar louça. Consequentemente, “cada um se vira
como pode”, nas palavras da presidenta da cooperativa de produção sediada no
assentamento. Para obter água para sobreviver - no caso daquela maioria que não é
atendida por nenhum dos dois poços - e suficiente para produzir, cada assentado precisou
furar um poço semiartesiano ou uma cisterna, captando água de um dos dois cursos d’água
principais que atravessam o assentamento, o Córrego do Panga e o Ribeirão Douradinho,
ou de seus afluentes.
A reflexão sobre a reforma agrária que permeia este trabalho está informada fortemente
pela categoria de conflitualidades, pela qual se evidencia que o desenvolvimento do
capitalismo brasileiro está, desde seu início, atravessado por conflitos em torno da terra
(FERNANDES, 2004). Deste modo, entende-se que estão contraditoriamente imbricadas
a questão agrária e o desenvolvimento, produzindo situações de paroxismo deste problema
justamente em sua maior ilustração, a reforma agrária brasileira e suas debilidades
estruturais.
No Brasil, infelizmente, no entanto, a reforma agrária não se dá por iniciativa da União por
um projeto de desenvolvimento e redistribuição, que já contaria, caso houvesse política de
Estado neste sentido, com os recursos técnicos, burocráticos e tecnológicos para averiguar
a produtividade de imóveis rurais. Ela se dá por provocação da sociedade civil ao poder
público, o que concretamente significa que o conflito em torno da terra precisa estar
deflagrado. A partir do questionamento da sociedade, que principalmente a partir dos anos
1980 é atendido em resposta ao confronto aberto traduzido em acampamentos, o Estado é
mobilizado a fazer os cálculos necessários à definição de elegibilidade de determinado
imóvel rural à desapropriação para reforma agrária (BERGAMASCO & NORDER, 1996).
De acordo com Sérgio Sauer (2010) e Fernandes (2004; 2013), a reforma agrária vem
sendo conduzida desde os anos 1990 no Brasil para atenuar os conflitos e a violência no
campo, ao invés de ser planejada como projeto de desenvolvimento. Além desta
contradição, que expressa a conflitualidade agrária como fator determinante de tal política
constitucionalmente ordenada e tão importante para o país, há outra característica desta
dita reforma que merece uma atenção inicial. A forma como os assentamentos de reforma
agrária são projetados e constituídos ainda hoje é a do parcelamento da terra em lotes para
distribuir àquelas famílias que estavam acampadas, com posterior financiamento via
PRONAF, que gera endividamento e tendências sérias à atomização e à concorrência ao
invés da necessária cooperação nos assentamentos (SAUER, 2010).
Desta maneira, a terra (compreendendo-a sempre como o conjunto dos bens naturais
abrangidos em sua superfície) continua a ser tratada como uma mercadoria como outra
qualquer. Da mesma forma que na estrutura agrária tradicional do latifúndio improdutivo
- mas soberano - que tem o direito à propriedade como anterior a qualquer direito ambiental
ou trabalhista, a reforma agrária tal como se organiza hoje reforça o modelo mercantil de
ocupação e uso da terra (DELGADO, 2014).
De maneira oposta aos acampamentos que organizam e simbolizam a luta pela terra, e que
são organizados em tudo de maneira coletiva, os beneficiários da reforma agrária são
atomizados ao “entrar para os lotes”. Na definição de um lote para cada família - com
títulos de propriedade e direitos plenos de uso e ocupação da terra -, e em todas as políticas
públicas subsequentes para o desenvolvimento do assentamento, a lógica é individual e
mercantil.
Para a reforma agrária de mercado, executada sob o paradigma do capitalismo agrário entre
as décadas de 1980 e 2010, estas formas de vida são improdutivas e incompatíveis com o
mundo que preconiza concorrência e acumulação sistemática de capital. Neste sentido, e
considerando aquelas políticas públicas individualizantes anteriormente citadas, Fernandes
considerava necessário repensar e superar o paradigma do capitalismo agrário para passar
a desenvolver o paradigma da questão agrária na reforma agrária brasileira (idem).
V. Estratégias de reconfiguração do trabalho e da paisagem para superar os
passivos socioambientais e promover o bem-estar
Ainda que o saneamento básico seja um direito constitucional entre outros como saúde,
segurança alimentar, educação, desde 1988, e especificamente o saneamento rural esteja
normalizado pela Lei 8.171 de 17 de janeiro de 1991 (BRASIL, 1991), sua administração
e sua operacionalização têm sido negligenciadas. Neste ponto é importante salientar que
os direitos básicos apontados acima, garantidos na Constituição de 1988, constituem-se
num pacote de direitos indissociáveis numa democracia. São inseparáveis e inegociáveis,
pois garantem a dignidade humana e a plenitude de condições para que toda a população
brasileira, e cada indivíduo em suas particularidades, possam orientar seus destinos livres
de preocupações como doenças preveníveis e/ou tratáveis, fome ou insalubridade
ambiental.
Uma evidência do argumento acima é justamente a abordagem feita pela Prefeitura e pela
autarquia responsável acerca de um problema elementar nos assentamentos rurais que é o
saneamento: foi elaborado um projeto, com orçamento de R$300.000,00 (RADIS, 2015),
para instalação de 390 fossas sépticas em dois assentamentos rurais do município. Havia,
como há até hoje, a necessidade de que alguma medida fosse tomada para superar
precariedade em relação a saneamento nos assentamentos, pois praticamente todos os lotes
têm seus efluentes depositados em fossas negras (G1, 2014).
O projeto, então, era necessário, já que propunha um início de solução para este problema
tão generalizado quanto grave. Porém, o projeto começou com a instalação de algumas
fossas sépticas e foi interrompido. Assim, não foi cumprido o objetivo de instalar as 390
fossas sépticas nos dois assentamentos, e nem a manutenção das poucas fossas instaladas
é assumida ou facilitada pelo órgão competente.
Este dado da realidade brasileira, a legislação política e eleitoral que possibilita ao poder
executivo discricionariedade exorbitante aos termos constitucionais, é estrutural e
estruturante, e seu tratamento é necessário quando se analisam políticas públicas e sua
efetividade. Neste sentido, o prefeito Gilmar Machado, que tem farta experiência
legislativa como deputado federal pelo mesmo partido, teve um mandato (2013-2016), e
ao longo deste governo iniciou a organização do saneamento rural com a iniciativa descrita
anteriormente. Após o término de seu mandato, não se fala mais no assunto, de acordo com
o representante de uma das associações de moradores do Nova Tangará, cujo lote foi o
primeiro a ser contemplado pela implantação de fossa séptica no âmbito deste projeto. O
mesmo morador informa, inclusive, que hoje não tem condições de fazer a previsível e
necessária manutenção da fossa séptica instalada.
No entanto, uma questão que sobra sem resposta é porque uma situação tão complexa e
urgente como o saneamento rural foi tratada como um projeto no mandato de Gilmar
Machado. O orçamento e o esforço legislativo em relação a esta matéria, de acordo com o
que é informado sobre o projeto no site da Prefeitura de Uberlândia/DMAE (Departamento
Municipal de Água e Esgotos), não foram então compatíveis com as características de uma
política pública de saneamento.
Um outro projeto se deu entre os anos de 2015 e 2016 no assentamento Nova Tangará,
também com o objetivo de contribuir para a melhoria de fatores como saneamento, e para
a melhoria da qualidade ambiental em geral. Foi quando o Núcleo de Educação Ambiental
do Centro de Incubação de Empreendimentos Solidários da Universidade Federal de
Uberlândia (NEAM/CIEPS/PROEX/UFU) elaborou e iniciou um projeto de extensão
referente à questão ambiental no assentamento. Tendo em vista a necessidade de contribuir
para a formação da comunidade e para o início da solução de problemas vividos no
assentamento, o projeto “Caminhos do desenvolvimento ambiental: extensão universitária
no campo”, financiado pelo CNPq num ciclo bienal, realizou sua intervenção. Com um
grupo de aproximadamente 30 (trinta) acadêmicas/os, entre estudantes, técnicas/os e
docentes de diversas áreas, as atividades deste projeto foram concentradas em dois temas
principais: manejo e conservação dos recursos hídricos e gestão de resíduos sólidos.
Segundo os autores do projeto, a proposta desta equipe era
O trabalho deste grupo fazia uma avaliação da qualidade ambiental do assentamento que
se amparava em pressupostos que envolviam não só os aspectos físicos do território para,
mas analisava também fatores históricos, sociais, culturais da comunidade e da história do
lugar. Neste sentido, entende-se que a qualidade ambiental não é direta e exclusivamente
produzida pela comunidade do território em análise. Portanto, a solução dos problemas
ambientais passa sim por uma formação que faça a comunidade dos assentados
compreender a necessidade e aprender os métodos de promoção da qualidade ambiental -
como preservação de nascentes, de matas ciliares, de cursos d’água e seu manejo adequado,
instalação e manutenção de fossas sépticas. Mas estas iniciativas desacompanhadas de
transformações estruturais na vida política e na organização social e econômica do
município, do estado e do país constituem-se em melhorias pontuais e transitórias.
Foi possível notar, nas entrevistas realizadas com representantes das associações
representativas dos assentados e da Cooperativa, que ambos os projetos implementados no
assentamento não tiveram repercussão geral na comunidade. O coordenador da maior
associação, que conta com 137 (cento e trinta e sete) associadas/os donas/os de lotes entre
as/os 250 (duzentos e cinquenta) proprietárias/os, aparentemente é um líder de referência
a quem os representantes do DMAE e da UFU procuraram e com quem organizavam as
reuniões e atividades dos respectivos projetos. Este assentado, coordenador da AMFT
(Associação dos Moradores da Fazenda Nova Tangará), portanto, sabia descrever nomes
envolvidos e atividades propostas em ambos os casos. Já os demais entrevistados,
entretanto, sabiam pouco ou nada sobre tais iniciativas.
Importante ressaltar, neste ponto, que a AMFT é a única associação que ainda hoje, 18
(dezoito) anos após a entrada para os lotes, mantém rede de contatos, fazia reuniões
mensais antes da pandemia de COVID-19, tem a documentação regularizada para manter-
se representando seus associados. Ou seja, o coordenador geral da AMFT é conhecido
pelas instituições como um agente de referência principalmente porque a associação que
representa está relacionada, com seus contatos, em todos os órgãos de monitoramento,
gestão e políticas públicas voltadas para assentamentos de reforma agrária. Não há indícios
de que seja, portanto, um indivíduo com contatos privilegiados, nesse sentido, por gestões
políticas fisiológicas de nenhuma parte, mas sim um representante legítimo da
comunidade.
Nas entrevistas com representantes das associações, fica patente um conhecimento remoto
sobre estes projetos, do DMAE/PMU e da UFU, da parte de alguns(algumas), e alguma
descrença da parte de outras/os. É como se estivessem desapontadas/os, mas não
surpresas/os, com o fato de os projetos, assim como os contatos com as/os representantes
das instituições proponentes, terem sido encerrados antes de executarem o que propunham
inicialmente.
Um dos representantes de associação, inclusive, informa que não tem mais condições de
exercer a função e precisa “dar baixa” de seu nome na coordenação geral. O mesmo
coordenador também afirma que a associação já não tem mais vida orgânica desde quando
os títulos das terras foram concedidos, o que remete ao ano de 2018 (UBERLÂNDIA,
2018). Desde então, não se organizaram mais reuniões, não existe grupo de mensagens
pelo telefone. Este é também o relato do coordenador da terceira associação entrevistado e
da presidenta da cooperativa. Ou seja, de acordo com estes relatos, as/os assentadas/os têm
vivido cada um/a em seu lote, como se agricultoras/es familiares regulares fossem, vivendo
da melhor maneira possível da alimentação e da renda de sua produção.
Ocorre que um assentamento não se estrutura de maneira a permitir tais escolhas: as áreas
de Reserva Legal, de acordo com o Código Florestal, Capítulo IV, Seção I, Art. 12, Inciso
II, Parágrafo 1º, são definidas de acordo com a área do imóvel antes do fracionamento
(BRASIL, 2012). Ou seja, toda a gestão relacionada à preservação e conservação das áreas
de Reserva Legal, assim como das Áreas de Proteção Permanente, devem ser feitas
coletivamente no assentamento de reforma agrária. A despeito dos interesses particulares,
discordâncias entre associações ou vizinhas/os, descrenças com relação à coletividade
organizada do assentamento, terá de haver consensos sobre o uso e manejo da água e da
terra considerando estes dispositivos legais.
Já no estado de São Paulo existe há alguns anos uma percepção entre as/os líderes
comunitárias/os de assentamentos rurais de que é necessária uma organização mais ampla
para ocupar espaços nos Comitês de Bacias Hidrográficas. Naqueles espaços, de acordo
com a bibliografia consultada, é possível às associações de assentamentos manterem-se
informadas sobre a legislação e obterem atualizações sobre a questão das águas na região.
Além de ambiente para obter informações, é o lugar de disputas para se pleitear que as
necessidades e os interesses/prioridades dos assentamentos também sejam ponderados nos
ambientes de gestão das águas que atravessam os próprios territórios (AGAPTO et. al.,
2012).
Este relato está em conformidade com os dados fornecidos pelo FNDE sobre as aquisições
da agricultura familiar no ano de 2017 (dados mais recentes fornecidos pelo Fundo).
Segundo planilha disponibilizada no site do FNDE, o município recebeu para o PNAE, no
ano de 2017, o valor de R$ 6.994.858,00 e comprou da agricultura familiar, naquele ano,
R$39.785,25, o que corresponde a 0,57% do montante recebido (FNDE, 2021). Neste
sentido, ainda havia muito espaço para ampliação da produção da cooperativa, que em
2019 operava entregando ao PNAE de Uberlândia (escolas Municipais e Estaduais) mais
de 10 toneladas de alimentos, segundo a gestora entrevistada.
Percebe-se, a partir destes dados, um espaço para o crescimento da cooperativa, que hoje
conta com 80 (oitenta) cooperados no assentamento Nova Tangará e 120 (cento e vinte)
cooperados ao todo, sendo os demais de outros assentamentos na região, num raio de 25km
(vinte e cinco quilômetros) de distância da sede da cooperativa. Um desafio a ser
enfrentado pela Cooperativa nos meses que vierem após o retorno às aulas presenciais nas
escolas e a consequente retomada da demanda por produtos aos níveis do ano de 2019, no
entanto, é reunir os produtores e suas respectivas capacidades produtivas pré-pandemia.
Muitos deixaram de fornecer para a cooperativa, porque a dinâmica de compra de quites
da agricultura familiar pela prefeitura reduziu em muito as compras e diminuiu bastante
também a diversidade de produtos requeridos pelo PNAE.
O objetivo que está no horizonte desta gestora e de outros membros da cooperativa com
quem conversamos é tornar a organização independente dos programas de compras
institucionais como o PNAE. Tornar-se independente não é deixar de fornecer, até porque
ainda existe um grande espaço para crescer e aumentar a produção fornecendo ao PNAE,
mas é fazer a marca da cooperativa ser reconhecida e consagrada na sociedade de
Uberlândia e região, tendo seus queijos, pães, doces, sendo comprados em mercados e
feiras.
Ao longo das entrevistas com os representantes das associações dos assentados do Projeto
de Assentamento Nova Tangará, de Uberlândia, Minas Gerais, observou-se que os efeitos
de uma reforma agrária de mercado como esta que se realizou no Brasil até 2016 se
estendem para muito além da divisão em várias associações. Dizemos que a reforma
agrária de mercado foi realizada no Brasil até o ano de 2016 porque, após este ano, poucos
assentamentos foram criados e, a partir de 2019, no governo Bolsonaro, o INCRA vem
sendo desmontado e utilizado mesmo para a reintegração de posse em áreas de
acampamento dos movimentos de luta pela terra.
Sobre os efeitos do governo Bolsonaro especificamente na dinâmica social, política e
econômica experimentada pelas comunidades assentadas da reforma agrária, urge a
necessidade de estudos de mudanças legislativas e infralegais, assim como levantamentos
sobre orçamento e cobertura mais aprofundados. Apenas para registro de alguns fatos, no
entanto, é patente a redução dos orçamentos e da cobertura do PRONAF (Programa
Nacional de Financiamento da Agricultura Familiar), do PAA (Programa de Aquisição de
Alimentos), do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) neste período, assim
como é pública a desativação dos conselhos de políticas públicas, incluindo o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, cujo papel no monitoramento das políticas
públicas voltadas à inclusão produtiva de assentados era fundamental.
A reforma agrária de mercado, realizada entre os anos de 1990 e 2015, é um modelo que
reforça o individualismo e as soluções precárias e passageiras. Este é projeto de
reordenação da estrutura fundiária por meio da atomização da luta pela terra e repartição
de latifúndios em pequenas propriedades seguindo a mesma lógica de produção
agropecuária convencional. Ele não possibilita soluções consistentes para os problemas
apresentados neste trabalho, tais como as desigualdades estruturais que acompanham os
cidadãos das periferias dos centros urbanos, de onde vem a maior parte dos assentados do
PA Nova Tangará, para seus lotes individuais.
Algumas questões que se mantém, que acompanham e se impõem sobre algumas reflexões
e impressões explicitadas neste texto, fruto de um trabalho em andamento, são a respeito
das possibilidades identificadas pelos sujeitos que estão nos assentamentos e das
proposições apostadas pelas organizações e entidades que articulam lutas sociais e que
pretendam ocupar espaços de poder rompendo o ciclo de precariedade e transitoriedade
das soluções.
Do ponto de vista das pessoas que vivem e trabalham para obter não apenas o sustento,
mas a plenitude de suas condições de existência física, emocional, espiritual, o modelo
convencional de trabalho e de produção tem atendido às expectativas? E quanto às
entidades e organizações políticas que pleiteiam as transformações nas estruturas da
questão agrária brasileira, estariam preparadas ou preparando alternativas, modelos
diferentes da reforma de mercado, para subsidiar a luta pela terra e para aquelas pessoas e
coletivos que já se encontram assentadas/os?