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O ENGAJAMENTO DE MULHERES NO MOVIMENTO ABOLICIONISTA

(Recife, 1884 – 1888)1

Jacilene de Lima Leandro


(Mestranda em História – PGH -UFRPE).

Palavras-chave: Mulheres; abolicionismo; Ave Libertas.

Introdução
O movimento abolicionista formulou uma articulação nacional que envolveu
diversos grupos populares, estendendo a participação política para indivíduos antes
distanciados dos debates públicos. A mobilização antiescravista evidenciou que o
trabalho escravo estava presente em todos os âmbitos sociais e influenciava a vida dos
homens e mulheres, por isso todos estariam aptos também a participar da discussão sobre
o fim da escravidão.
Para isso, o movimento elaborou estratégias que ajudassem atingir diversos
espaços, como atividades institucionais, manifestações em lugares públicos,
enfrentamento de normas civis e campanhas diretas de libertação, dessa forma o
abolicionismo concretizou-se como um movimento social (ALONSO, 2014, p. 122). Essa
pluralidade de ações promoveu alternativas para a participação de mulheres na
mobilização presente nas principais províncias do império, principalmente a partir das
atividades culturais e filantrópicas.
Dessa forma, muitas senhoras de elite conseguiam participar dos eventos
abolicionistas, já que eram dispensadas dos serviços domésticos e podiam dedicar-se às
ações de caridade, outras moças e senhoras podiam adentrar no movimento junto a figuras

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES).
masculinas da família, como seus maridos, pais e filhos envolvidos na política. As
mulheres com relações profissionais artísticas também começaram a engajar-se na
mobilização, como cantoras, instrumentistas e atrizes que auxiliavam nas solenidades.
Assim, formavam-se três caminhos para o início do engajamento feminino, segundo
Angela Alonso, a filantropia, o apoio de parentes masculinos e as profissões artísticas.
(ALONSO, 2015, p. 101).
A participação de mulheres ajudou o movimento na utilização do repertório moral
contra os males da escravidão, aproximando a mobilização aos papéis sociais da
feminilidade e afastando do mundo profano da política partidária, proporcionando
também segurança para os eventos abolicionistas (KITTLESON, 2005, p. 109). Para
último ponto, o engajamento feminino foi utilizado como escudo, evitando intimidações,
realizadas pelos escravistas do contramovimento, nas atividades públicas, como as
passeatas, entretanto, essas moças e senhoras logo encontrariam ocupações nos eventos
e, posteriormente, em sociedades abolicionistas.
A historiografia já mostra que as ativistas mulheres não estiveram alheias ao
planejamento da mobilização antiescravista, nem aos problemas enfrentados pelos
apoiadores do abolicionismo. Ao longo das últimas décadas do século XIX, as mulheres
colocavam-se cada vez mais como protagonistas e passaram a mostrar seu engajamento
nas associações consolidadas, em publicações nos jornais e até mesmo criando as
sociedades exclusivamente femininas. Assim, as militantes atuavam em parceria com
grandes figuras do movimento, mas também de forma independente, dirigindo suas
próprias ações.
“Pelo menos 26 sociedades abolicionistas femininas se formaram ao longo da
campanha, situadas em 10 das 20 províncias do Império; 18 delas exclusivamente de
mulheres” (ALONSO, 2011, p. 187). A maioria desses grupos teve sua criação
incentivada pela articulação do movimento cearense que culminou na abolição completa
no Ceará em 25 de março de 1884 e difundiu um associativismo relevante.
Como podemos ver, a atuação de mulheres no movimento abolicionista é
evidenciada nos vestígios da época, contudo, observamos através dos repositórios de
pesquisas acadêmicas que, nos últimos 30 anos, perdurou na historiografia um
silenciamento acerca dessa participação, em que se privilegiava o estudo das figuras
masculinas ilustres. Aspecto que tem sido reduzido, com a realização recente de trabalhos
sobre o tema, que se dedicam a estudar esse engajamento em localidades específicas.
Como as pesquisas de Thiago F. Sant’Anna (2006) com análises acerca das militantes de
Goiás, que atuaram através da música entre 1870 e 1888; as ativistas do Amazonas, que
participaram de sociedades com exclusividade feminina a partir de 1884 e que foram
estudadas por Bianca Sotero de Menezes (2014); os estudos de Wladimir Barbosa Silva
(2014), que analisa o protagonismo feminino e sua relação com a imprensa na década de
1880, com foco no Rio de Janeiro; o trabalho de dissertação da Fabiana Macena (2015),
que investigou a atividade de mulheres na província de Minas Gerais entre os anos de
1850 e 1888;as pesquisas de Karoline Rocha (2015), sobre a inserção política de mulheres
no Espírito Santo por meio do abolicionismo entre 1836 e 1888;além das abolicionistas
da cidade Pelotas estudadas por Etiane Nunes (2020), que analisa, na imprensa local, o
envolvimento de mulheres com a causa abolicionista nos anos de 1881 e 1884,entre outras
investigações que nos ajudam a compreender as possibilidades de apurar a atuação
política feminina no Brasil Oitocentista.
Afim de somar-se a essa gama de pesquisas, nosso trabalho visa investigar o
engajamento feminino na mobilização abolicionista realizada na cidade do Recife, entre
os anos de 1884 e 1888. O local escolhido foi palco das ações da sociedade Ave Libertas,
fundada e dirigida exclusivamente por mulheres, o que abriu espaço para o ativismo
feminino. Nosso recorte temporal se limita aos quatro anos de atuação dessa associação,
entre 1884, seu ano de fundação, até 1888, ano da aprovação legal do fim da escravidão.
As moças e senhoras investigadas em nossa pesquisa conseguiram atravessar as
barreiras presentes em uma sociedade patriarcal. Considerando esse fato, utilizaremos o
conceito de Gênero, para expressar os significados de poder da época, como fundamenta
Joan Scott (1995, p. 86), quando afirma que podemos observar os efeitos do gênero
através de suas construções políticas e sociais, as quais podem ditar as possibilidades
vivenciadas pelos indivíduos.
Ademais, este estudo propõe percorrer as trajetórias de mulheres abolicionistas
através das experiências de resistência, luta e dos seus interesses, construídos mediante
as tradições culturais, como nos indicam alguns conceitos da História Social elaborados
por E. P. Thompson. Como a categoria da experiência histórica que para o historiador
inglês é formadora da consciência de classe e fator fundamental para a dinâmica dos
processos históricos (BERTUCCI, 2010).
Consideramos também alguns estudos que já trataram da mobilização das
pernambucanas retratadas em nossa pesquisa, como o artigo da professora Ângela Grillo
(2005), que apresenta observações acerca das mulheres recifenses que atuaram na
sociedade feminina Ave Libertas. Além disso, o livro organizado pela escritora Luzilá
Gonçalves Ferreira (1999), o qual retrata mulheres que atuaram no movimento
abolicionista nos territórios que compõem o atual Nordeste brasileiro e destinou um
capítulo exclusivo para as mulheres pernambucanas. No referido capítulo, a autora
apresenta documentos relevantes produzidos pelas sócias do grupo Ave Libertas. O estudo
de Celso Castilho (2008); também apresenta o movimento em Pernambuco e apesar de
não ter a participação feminina como tema central, faz reflexões consideráveis sobre o
assunto.
À vista disso, combinamos estudos e métodos para ir ao encontro aos vestígios da
atuação das recifenses, afim de evidenciar a importância da mobilização de moças e
senhoras para o movimento abolicionista presente na província pernambucana.

Mobilização feminina no Recife

Em Pernambuco aconteceu uma forte articulação dos militantes do Recife, o que


permitiu o crescimento do movimento abolicionista e possibilitou colocar em evidência a
mobilização no campo jurídico, social e cultural. A conjuntura social na capital
proporcionou a realização das principais práticas do abolicionismo, por apresentar
estruturas que foram essenciais para o ativismo, como a Faculdade de Direito, que levou
influências para o campo jurídico e parlamentar da província, além de grandes teatros,
como o Teatro de Santa Isabel, que foi palco de festivais e cerimônias abolicionistas, já
que as artes foram usadas como instrumento de engajamento político (ALONSO, 2012,
p. 103).
Com essas e outras instituições e manifestações a mobilização pernambucana
consolidou-se, conquistando liberdade para alguns escravizados, de forma legal e ilegal,
o que propiciou também registros dos agentes que participaram dessas ações. Tendo em
vista isso, buscamos vestígios de mulheres nos documentos elaborados pelos militantes
pernambucanos.
A principal obra consultada foi organizada pelo memorialista e abolicionista
Pereira da Costa (1884), intitulada “Pernambuco ao Ceará: o 25 de Março de 1884”. Nessa
publicação, encontramos uma compilação de jornais em comemoração à libertação do
Ceará, com listas de grupos, senhoras e famílias abolicionistas. A partir da coleção,
conseguimos listar mais de 100 nomes de moças e senhoras, os quais usamos como
palavras-chave em investigações nos jornais presentes no sistema da Biblioteca Nacional
Digital2. Seguimos, assim, orientações do teórico Carlo Ginzburg (1989), quando propõe
o método nominativo (ou onomástico), que orienta o investigador a manusear nomes de
indivíduos como fio condutor para a pesquisa histórica.3
Em consequência desse processo, conseguimos encontrar e analisar ocorrências
jornalísticas que expuseram a atuação das mulheres recifenses de maneira independente,
que se concretizou com a criação da sociedade feminina Ave Libertas em 20 de abril de

2
O acervo que é organizado por décadas, locais e periódicos, nos dá acesso a jornais datados desde o século
XVIII e permite-nos buscar por palavras-chave, localizando assim ocorrências com as expressões
procuradas. Pode ser acessado em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
3
Esse método indica-nos que o nome compõe uma espécie de teia, da qual é possível retirar uma “imagem
gráfica do tecido social em que o indivíduo está inserido”, viabilizando também a reconstituição das
trajetórias dos sujeitos. GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico.
In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A Micro-história e outros ensaios.
Lisboa: Difel, 1989, cap. V, p. 169-178.
1884, quando um grupo de mulheres reuniu-se e convocou outras para a fundação de uma
associação exclusivamente feminina4, que objetivava agregar positivamente ao
movimento na capital pernambucana e ajudar na abolição completa da cidade.
Com influências da abolição cearense, inicialmente, a associação iria se chamar
“25 de março”, mas, por haver outro grupo com o mesmo nome, as associadas escolheram
uma saudação bastante usada nos finais dos textos abolicionistas, Ave Libertas, termo que
advém do latim e pode ser traduzido como “salve a liberdade”.5
Para Castilho (2016, p. 118), a criação dessa sociedade pode ter influenciado
outros grupos masculinos a convocarem oficialmente ativistas femininas, como o Club
Martins Júnior. Dessa forma, a criação da Ave Libertas influenciou na entrada de novas
mulheres no movimento institucionalizado. Notamos que as militantes criaram uma teia
de ativismo, empenhando-se em angariar novas adeptas, sendo que, em suas reuniões, as
sócias efetivas traziam nomes de colegas, amigas e parentes para serem também acolhidas
e iniciarem suas atividades junto à sociedade, assim, o grupo chegou em 1887 com mais
de 60 sócias (Ibidem, p. 150).
Em seu primeiro ano, a sociedade organizou eleições para uma diretoria exclusiva
de mulheres, a qual coordenou as ações do grupo, fortalecendo a autonomia feminina no
movimento recifense. Em pouco tempo de trabalho, a Ave Libertas ganhou prestígio
social, sendo reconhecida e procurada pelos principais líderes abolicionistas e pela
população, resultado de suas ações que revelam as possibilidades favoráveis de uma
articulação feminina. A associação chegou a registrar entre 200 e 300 manumissões,
promovidas com arrecadação monetária e ao negociar com senhores de escravos (Ibidem,
p. 122).
Ao observar essas atividades com resultados concretos, podemos constatar que as
abolicionistas assumiram espaços e atitudes de protagonismo. Dessa forma, as associadas
da Ave Libertas fortaleceram a participação das mulheres na esfera pública e

4
Diario de Pernambuco, 20 de abril de 1884, Número 91, p. 3.
5
Podemos ver a escolha de nomes em: Diario de Pernambuco, 6 de Maio de 1884, Revista Diária, Número
104, p.2.
distanciaram-se à sua maneira das preconcepções de feminilidade respeitável e do caráter
afetivo vinculados às ações femininas.
A direção do grupo e as comissões criadas pelas associadas tinham funções
definidas aos moldes do associativismo abolicionista já existente, assim como seu
estatuto, que pode ser encontrado nos anexos do livro organizado por Luzilá Ferreira
(1999, p. 205). O referido documento permite-nos observar algumas características da
associação, as atribuições de suas sócias e seus objetivos, vejamos:

Art. 1º- Fica criada no Recife uma associação abolicionista com a


denominação de Sociedade Ave Libertas, cujos fins são:

§ 1º- Promover a libertação de todos os escravos do município do Recife


por todos os meios lícitos e legais ao seu alcance.
§ 2º- Proteger a sorte dos mesmos, impetrando de seus senhores, por todos
os meios brandos e suasórios, a cessação de maus tratos, castigos e torturas.
(Ibidem)

Com isso, a sociedade prosseguiu com ações que ajudassem a cumprir essas
aspirações. Para a realização definitiva da abolição no Recife, como apontado no primeiro
parágrafo do estatuto, as abolicionistas buscaram arrecadar fundos para a compra de
manumissões e a utilização da estratégia de libertação por ruas, buscando a emancipação
de forma gradual, com alicerce nos métodos cearenses.6
No segundo parágrafo, vemos que elas priorizaram também lutar pelo fim dos maus
tratos a que os escravizados eram acometidos. Já que essas práticas iam contra os
sentimentos de compaixão, direito e progresso, bastante reforçados pelo movimento
antiescravista, a partir processos judiciais, libertando ou facilitando a compra das alforrias

6
Durante o processo de abolição na província do Ceará, concluída em 25 de março de 1884, os militantes
praticaram a “campanha de libertação de territórios”, indo em buscada libertação de escravizados
gradativamente por ruas, bairros e municípios. A sociedade Ave Libertas chegou a escolher algumas ruas
para utilizar essa prática, como podemos ver nos detalhes de uma de suas sessões: Diario de Pernambuco,
6 de Maio de 1884, Revista Diária, número 104, p.2. Entretanto, esse método de atuar de porta em porta
não teve tanto sucesso em Recife, como nos municípios cearenses, pois as duas províncias dispunham de
circunstâncias sociais e econômicas diferentes.
os militantes tentavam diminuir esses infortúnios (ALONSO, 2015). As denúncias
proferidas pelas militantes da Ave Libertas escancaravam a falta de humanidade presente
na escravidão, trazendo à tona sentimentos de injustiça e indignação.
Esse ativismo judicial era inflado por queixas públicas, realizadas para chamar
atenção não só dos juízes, mas também da população. Nas ações dos militantes
pernambucanos, notamos atividades semelhantes, ao encontrar denúncias de maus tratos
em publicações jornalísticas, como podemos observar na nota a seguir:

Figura 1: Denúncia de maus tratos.

Fonte: Jornal do Recife, sexta 7 de maio de 1886, Número 103, p. 1.

Na publicação anterior, vemos a denúncia de um senhor que maltratava duas


crianças escravizadas. A ocorrência mostra-nos também que a mãe desses cativos já teria
sido resgatada por senhoras da Ave Libertas, afim de libertá-la dos castigos sofridos. Além
disso, a publicação atenta para os problemas causados pela situação dos ingênuos, como
a perturbação dos vizinhos, evidenciando o envolvimento das pessoas próximas e dos
militantes abolicionistas nessas ocasiões. O destaque para a maternidade escrava mostra
que a moralidade familiar colocava as escravizadas em evidência nesse período, já que,
com a falta de efetividade da Lei do Ventre Livre, as mulheres em condição de escravidão
tiveram que ir em busca dos direitos que essa Lei poderia conceder, desse modo,
utilizavam as concepções de maternidade e família como apelo ao Estado Imperial.
(COWLING, 2018, p. 72)
Ao auxiliar na liberdade de mulheres escravizadas e na luta contra maus tratos, as
ativistas da Ave Libertas eram vinculadas a um comodismo, pois, na época, os trabalhos
em caráter filantrópico carregavam esse aspecto, o que fortalecia a imagem afetiva da
feminilidade. Entretanto, essas atividades fizeram com que, além dos abolicionistas
institucionalizados, a população escravizada também reconhecesse o trabalho das
ativistas, algumas notícias evidenciam que esses sujeitos entravam em contato com as
moças e senhoras para solicitar auxílio e assim, alcançar suas manumissões.7
Além disso, algumas de suas sócias auxiliaram na realização de ações de
desobediência civil do Club do Cupim8, principalmente, cedendo suas casas como abrigo
para fugitivos do cativeiro, antes de viajarem para seus destinos (GRILLO, 2005, p. 9-
10). Dessa forma, mesmo que não fossem vinculadas formalmente à sociedade, algumas
senhoras também tinham atividades ilegais, contradizendo alguns objetivos de seu
estatuto, quando se afirma o uso de meios “brandos e suasórios” nas práticas da sociedade,
esse fato amplia a atuação das abolicionistas, evidenciando que elas não restringiam suas

7
Algumas ocorrências jornalísticas mostram escravizados entrando em contato com as sócias da Ave
Libertas, solicitando auxílio em suas manumissões, ver em: Jornal do Recife, 15 de dezembro de 1886,
Gazetilha, Número 286, p. 1.
8
O Club do Cupim foi uma associação abolicionista recifense que atuava por meio da desobediência civil,
com códigos secretos e ações que colocavam em risco suas vidas, muitos sócios eram maridos das senhoras
da Ave Libertas, as quais eram consideradas membros externos.(GRILLO, 2005, p. 9-10); o nome do grupo
fazia alusão ao ato de corroer em silêncio a escravidão, o clube secreto organizava fugas que levavam
ilegalmente escravizados para os territórios já considerados livres do cerará, chegando a libertar milhares
de sujeitos entre 1884 e 1888. (CASTILHO, 2008, p. 150)
ações aos objetivos do seu regimento.
A liberdade dos escravizados que entravam em contato com a Ave Libertas muitas
vezes era negociada, em diálogos diretos entre as mulheres e os proprietários escravistas.
As militantes arrecadavam montantes de diversas formas para que conseguissem
conquistar a compra das cartas de alforria. Grande parte das arrecadações eram feitas nos
eventos da Ave Libertas realizados nos teatros, visto que, neles, as moças e senhoras
vendiam alguns produtos ou até mesmo apuravam doações voluntárias nas portas dos
estabelecimentos.9 Os festivais organizados pela sociedade obtiveram fama positiva, o
que resultou em pedidos frequentes de mais eventos, ajudando também na popularidade
do trabalho das organizadoras.
Além das doações, as cerimônias culturais abolicionistas serviram para que as
mulheres pudessem mostrar suas opiniões. Algumas associadas da Ave Libertas
proferiram discursos nos festivais, tornando-se porta-vozes do grupo. Como a
abolicionista Carlota Vilella que foi localizada em jornais como oradora da sociedade em
algumas celebrações10, e a professora Maria Amélia de Queiroz11 que se consolidou como
conferencista reconhecida entre os abolicionistas, tendo alguns de seus discursos
transcritos e distribuídos.
Alguns discursos da ativista Maria Amélia podem ser encontrados na obra de
Luzilá Ferreira (1999, p. 217, 225), como o texto de sua conferência realizada no Teatro
Variedades em 1887, em que a professora expõe seus conhecimentos históricos e
filosóficos, além de suas indignações políticas e sociais.

É a vós, delicadas pernambucanas, imerecidamente concedida a minha


curta e obscura inteligência, tomo a liberdade de falar.
Eu venho nesta ocasião oportuna [onde] protestamos solenemente contra a

9
Arrecadação feita por moças e senhora na entrada de um evento: Diario de Pernambuco, quarta-feira 15
de outubro de 1884, Número 238 p. 3.
10
Carlota anunciada como oradora da Ave Libertas: Diario de Pernambuco, março de 1886, número 70, p.
4. Carlota Eugenia Vilella dos Santos, também foi 2ª secretária da sociedade e assinou alguns textos e
poesias abolicionistas.
11
Maria Amélia de Queiroz foi poetisa, professora e abolicionista, discursou em grandes conferências
públicas, contribuiu com a imprensa e lecionou em colégios e em casas particulares.
inércia, indiferentismo e desânimo em que até hoje tem vivido a mulher
infelizmente no Brasil.
É preciso, minhas amáveis patrícias, que a mulher se convença de uma vez
para sempre, que já é tempo de levantar um brado de indignação contra o
passado ignominioso de tantas raças malditas.
A mulher também é capaz de grandes e altos cometimentos. (Ibidem, p.
223.)

Nesse trecho, percebemos que Maria Amélia apresenta-se atenta à importância do


papel das mulheres em lutarem por espaço nas discussões políticas. Acusando a
indiferença que envolvia a condição feminina, tendo em vista que as mulheres no século
XIX, que conviviam nas camadas abastadas da sociedade, preservavam uma imagem de
honra, sendo constantemente controladas e submetidas a princípios educativos que
dificultavam a exposição pública, impossibilitando, assim, a atuação política. (MAIA,
2016, p. 64) Expresso isso, refletimos como pode ter sido conflituosa a trajetória da
professora até a ocupação de ambientes masculinos, como aqueles dedicados aos
discursos e a escrita, já que era diminuto, na década de 1880, o número de mulheres
brasileiras que não se empenhavam exclusivamente às funções da maternidade e do
casamento (Ibidem, p. 106)
A abolicionista formou-se em uma Escola Normal para senhoras12, podendo,
assim, dar aulas primárias, além disso, ela também desenhava, escrevia poesias e
contribuía com a impressa. Localizamos Maria Amélia como colaboradora da revista
semanal “A Família”, outras sócias da Ave Libertas também escreveram em alguns
jornais, inclusive um folheto de edição única foi organizado pela associação,
apresentando textos assinados apenas por mulheres.
O jornal intitulado com o mesmo nome da sociedade, composto por quatro
páginas, pode ser encontrado no sistema da Biblioteca Nacional Digital ou também
transcrito na obra organizada por Luzilá Ferreira (1999, p. 211). A capa do folheto traz a

12
Aprovação de Maria Amélia em Língua Nacional na Escola Normal, da Sociedade propagadora da
instrução pública da Boa Vista: Diario de Pernambuco, terça 24 de julho de 1883, Número 168, p. 3.
imagem da presidente eleita, D. Leonor Porto13, que foi costureira e militante renomada,
recebendo esta e outras homenagens ao longo da mobilização abolicionista dos anos 1880.
Os artigos do Jornal Ave Libertas discorrem sobre a escravidão, o abolicionismo, as
mulheres adeptas à causa e as conquistas do grupo feminino.
Os discursos e textos produzidos pelas abolicionistas frequentemente comentavam
sobre a necessidade da participação pública feminina, demonstrando uma tomada de
consciência de gênero, a qual fazia com que as militantes percebessem que elas recebiam
um tratamento diferenciado, tanto por autoridades escravistas que muitas vezes atacavam
o trabalho do grupo, ou dos próprios abolicionistas que romantizavam o engajamento
feminino. Ao analisar o Jornal Ave Libertas, Wladimir Barbosa da Silva (2014, p. 34)
afirma que “as mulheres não se apresentavam e tampouco se viam frágeis perante a
sociedade patriarcal do Império brasileiro.”
Incentivar e fortalecer a participação feminina a partir dos seus textos e discursos
contribuía para que o protagonismo das mulheres se expandisse no movimento
abolicionista. Portanto, mesmo que as mulheres abolicionistas não se empenhassem em
lutar por direitos femininos, como os movimentos sufragistas e feministas, elas abriram
espaços para discussões acerca da participação de mulheres no espectro político de uma
sociedade fortemente hierárquica e patriarcal.

Considerações finais

Percorrendo a trajetória de mulheres que participaram do movimento abolicionista

13
D. Leonor Porto (1840 - 1901) era costureira do estilo modista, que replicava a moda parisiense,
participou também de ações organizadas pelo Club do Cupim, auxiliando nas fugas planejadas, além disso
atuou junto com suas filhas na Sociedade Ave Libertas, Adelaide e Albertina, que eram atuantes nas
comissões e diretoria da associação. Com uma profissão estável e casada com o comerciante Antônio
Augusto dos Santos Porto, constatamos que a costureira e sua família tinham algumas posses e conviviam
em espaços da elite pernambucana. Em anúncios dos serviços da costureira notamos que um de seus
endereços era o mesmo da sede da Ave Libertas o que nos faz crer que a abolicionista cedeu a propriedade
para as sessões do grupo. Anúncio da costureira em: Diario de Pernambuco, domingo 28 de outubro de
1883, Número 249, p. 5; convite da sociedade: Jornal do Recife, terça 2 de setembro de 1884, Número
202, p. 3.
presente na cidade do Recife, constatamos que as ativistas femininas não assumiram papel
como meras observadoras, mas buscaram atuar de maneira ativa, angariando
popularidade, como podemos ver em diversas homenagens realizadas após 1888.
A atuação da Ave Libertas demonstra que as militantes engajaram-se com o
mesmo fervor que os homens abolicionistas, mesmo com mais obstáculos para o exercício
da vida pública. Ultrapassando as construções de gênero ou até mesmo convivendo com
regras sociais, sem deixar que essas visões limitassem seu trabalho, as mulheres
conseguiram libertar escravizados, dirigir associações, discursar e escrever, apresentando
suas ideias. Com isso, ergueram o debate sobre a capacidade feminina em participar
ativamente da política e adentrar em diversos espaços.
As ativistas recifenses utilizaram estratégias adotadas por todo o movimento,
como as manifestações públicas, campanhas de libertação de territórios e de
manumissões, além de auxiliar as fugas organizadas pelo Club do Cupim. Evidenciaram,
assim, que o engajamento de mulheres nas questões públicas podia superar os limites
impostos pela sociedade da época.
Sendo assim, esse empreendimento das abolicionistas revela a importância dos
estudos sobre o trabalho de moças e senhoras, que, mesmo atuando com protagonismo
ficaram por muito tempo invisibilizadas na historiografia. Assim, fica evidente, também,
a relevância em ressaltar os feitos das ativistas pernambucanas e suas contribuições para
a história do abolicionismo.

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