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A PERCEPÇÃO CONSCIENTE SEGUNDO BERGSON

SOLANGE BITTERBIER1

Resumo: Para Bergson, o corpo é uma imagem que interage com as demais, o
universo é, por sua vez, um conjunto de imagens. Entretanto, a imagem-corpo tem
um “privilégio” porque ela é um centro de indeterminação, ou seja, a resposta do
corpo a um estímulo não é determinada previamente, o que não ocorre com as
demais imagens situadas ao meu redor, imagens que tem “suas ações”
determinadas por leis invariáveis que não lhes permitem outra possibilidade de
agir. Essa condição especial do corpo em relação às demais imagens ocorre, entre
outros fatores, por ele ser capaz de conhecer-se através de afecções. Segundo
Bergson, as afecções estão presentes quando recebemos estímulos e executamos
movimentos, como uma espécie de convite a agir ou de nada fazer. A afecção está
intrinsecamente ligada à percepção que, por sua vez, é voltada à ação. Em torno do
corpo existe uma zona de indeterminação, é necessário “perceber” a que distância
o conjunto de imagens ao redor encontra-se para se saber a intensidade da ação do
corpo sobre elas, ou seja, a percepção faz com que o corpo tenha a noção a priori de
suas relações com as imagens exteriores. A percepção atua como um “medidor” da
indeterminação da ação que será tomada, o corpo decide sobre qual fonte de estímulo
irá agir e como o fará de acordo com as vantagens que pode ter. A partir do momento
que estas observações são feitas e constata-se a possibilidade de hesitação e
conseqüente escolha – indeterminação das ações – temos a percepção consciente.

Palavras-chave: percepção, consciência.

O presente texto tem por objetivo mostrar os argumentos apresentados


por Bergson no capitulo I de seu livro Matéria e Memória, intitulado “Da
seleção das imagens para a representação” – o papel do corpo, que nos

1
Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná.
Solange Bitterbier

permitem apontar um “surgimento” da consciência a partir da


indeterminação das ações. O que pretendemos não é fazer propriamente
uma dedução, pois, nos dizeres do próprio autor, “deduzir a consciência
seria um procedimento bastante ousado”2, mas apenas mostrar as “‘condições
essenciais’ que exigem o surgimento da consciência sem narrar
propriamente esse nascimento”3, ou seja, pretendemos fazer uma análise
da percepção consciente tendo como base uma “percepção pura” – sem
nenhuma influência da memória.
Em Matéria e Memória, Bergson faz uma crítica tanto ao realismo
quanto ao idealismo na medida em que ambos possuem teses igualmente
excessivas quanto à concepção de matéria, que seriam, em sua opinião, os
primeiros empecilhos para que se possa determinar precisamente a relação
entre matéria e espírito.
Bergson faz uma crítica às hipóteses idealistas e realistas sobre a
matéria porque ambas não dão conta das dificuldades engendradas em suas
teses. Buscando superar essas dificuldades, o filósofo propõe uma purificação
da percepção e isso consiste em isolá-la de seu elemento subjetivo: apenas
nos situarmos na presença de um campo de imagens. Mas o que são essas
imagens?
É exatamente pela caracterização de imagem que Bergson pretende
fugir aos equívocos tanto do realismo quanto do idealismo. Por imagem, o
filósofo entende “uma certa existência que é mais do que aquilo que o
idealista chama uma representação, porém menos do que aquilo que o
realista chama uma coisa.”4. A imagem não é apenas uma coisa, à qual o
sujeito não tem acesso em si, tampouco somente uma representação à
maneira de uma “visão mental”, “trata-se de uma realidade a uma só vez
exterior ao sujeito que observa mas compartilhada por ele, penetrada por

2
BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito,
1999, p. 32.
3
PRADO Jr, B. Presença e campo transcedental, 1988, p.139.
4
BERGSON, H. Op. Cit, p.02.

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ele de alguma maneira”5. Essa concepção diferenciada do termo imagem


que permite a Bergson fugir dos problemas tradicionais e dar início a sua
teoria da percepção, mais precisamente da percepção consciente, a qual
trataremos neste artigo.
Inicialmente, com vistas a sua análise da percepção, Bergson sugere
que nos abstenhamos de todo preconceito oriundo de qualquer teoria
metafísica ou psicofisiológica acerca da percepção da matéria e busquemos
uma neutralidade própria ao senso-comum. Para iniciar a sua análise,
Bergson propõe que coloquemo-nos na simples presença de imagens,
“imagens percebidas quando abro meus sentidos, despercebidas quando os
fecho” 6.
Esse colocar-se na presença de imagens tem como objetivo suspender,
inicialmente, as teses sobre a natureza dos objetos numa estratégia para
suspender, também, qualquer tese sobre a natureza do sujeito, chegando,
assim, à formulação de um campo neutro, chamado por Bergson de um
campo de imagens, que pode ser interpretado como um “campo
transcendental ‘pré-subjetivo’”7. Pré-subjetivo porque não temos ainda aqui
um sujeito completamente separado do objeto – não temos um sujeito
“consciente de ser sujeito”. Em outras palavras, “o sistema de imagens
corresponde à idéia de um espetáculo sem espectador; mais exatamente, é
o lugar em que, o espetáculo tornando-se possível, criam-se as condições
de possibilidade de um espectador em geral”8. Sendo assim, o campo de
imagens, do qual parte Bergson em sua análise da percepção, é um campo
de possibilidades, anterior tanto à constituição do sujeito (consciência como
intencionalidade), quanto do objeto propriamente dito, aquele recorte do
campo de imagens que se dá a esse sujeito.
Feitas estas considerações acerca do campo de imagens, voltemos à
teoria da percepção. Ao partir dessa concepção de campo de imagens,

5
PINTO, DM. Consciência e corpo como matéria, 2000, p.31-32.
6
BERGSON, H.Op, cit, p. 11.
7
PRADO Jr, B.Op, cit, p.134.
8
Idem, ibidem, p.146.

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percebe-se que “há uma [imagem] que prevalece entre as demais na medida
em que a conheço não apenas de fora, mediante percepções, mas também
de dentro, mediante afecções: é o meu corpo”9. As afecções seriam o que
me diferencia das outras imagens exteriores, que por sua vez estão
submetidas a leis invariáveis – leis da natureza. Seriam um “convite a agir,
ao mesmo tempo com a autorização de esperar ou mesmo de nada fazer”10.
A partir daí, nasce a possibilidade de hesitação perante algum estímulo e a
conseqüente capacidade de produzir o novo11, o que não ocorre com as demais
imagens que não possuem esse “privilégio” próprio ao sujeito e permanecem
em ações automáticas.
Assim, o indivíduo capaz de escolher entre as ações possíveis foge ao
automatismo e isso o caracteriza como um centro de ação: como um centro
de indeterminação, em outras palavras:

As duas configurações possíveis entre as imagens – uma onde todas


as imagens agem e reagem umas sobre as outras automaticamente
e segundo leis constantes, e outra onde uma imagem em particular
se torna uma espécie de centro, pois é capaz de receber e realizar
ações que escapam a esse automatismo – trazem consigo a “gênese”
da consciência, que se percebe autora das ações oriundas de uma
“decisão” ao ultrapassarem o esquema reflexo.12

Dada essa indeterminação das ações, não vamos nos ater à teoria das
afecções. Basta-nos atentar que a afecção precisa ter como base a ação
possível da imagem-corpo com relação às demais imagens, do contrário,
não haveria hesitação e nem escolha, essa ação possível nos dá a percepção.
A indeterminação das ações será tanto maior quanto maior for o
desenvolvimento do sistema nervoso, pois assim ele poderá responder das

9
Idem, ibidem, p. 11.
10
Idem, ibidem, p. 12.
11
A novidade se produz na medida em que as ações já não são previstas como a
ação de algo submetido a leis físicas por exemplo.
12
PINTO, D.M. Espaço, percepção e inteligência, 1994, p. 79.

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mais variadas formas aos estímulos. O cérebro é “encarregado” de devolver


movimentos recebidos em reações. Mas para isso ocorrer é preciso que ele
“conheça” as vantagens que possa ter das imagens ao redor, “é preciso que
essas imagens desenhem de alguma forma, sobre a face que elas viram
para meu corpo, o partido que meu corpo possa tirar delas” 13. No horizonte
das ações possíveis é preciso que se tenha noção da distância entre o corpo
e a ação possível, conforme a distância é maior ou menor a percepção e,
consequentemente, maior ou menor a possibilidade de ação. É através desta
constatação que chegamos à definição bergsoniana de percepção: “chamo
de matéria ao conjunto dessas imagens, e percepção da matéria a essas
mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma certa imagem
determinada, meu corpo”.14
Deste modo, Bergson

(...) discriminou dois conjuntos ou sistemas de imagens, o primeiro


sendo o campo de imagens em ações e reações contínuas e
indefinidamente repetidas, a matéria; (...) o segundo, um outro
sistema em que se destaca uma certa imagem, o corpo-próprio (o ser
vivo) como centro de ação e, por isso mesmo, as imagens próximas
ou circundantes, que se destacam ou são recortadas a maneira de
uma sombra ou um reflexo pelo desenho das ações possíveis de meu
corpo sobre elas, a percepção da matéria”15.

Esse recorte da percepção é a representação da matéria. Nesse sentido,


nossa representação nada mais é do que a imagem tomada isoladamente,
destacando-se das demais. Nas palavras de Bergson:

O que é preciso para obter essa conversão [a passagem da imagem


para a sua representação] não é iluminar o objeto, mas ao contrário
obscurecer certos lados dele, diminuí-lo da maior parte de si mesmo,

13
BERGSON, H. Op.Cit, p.12.
14
Idem, ibidem, p. 13.
15
PINTO, D.M. Consciencia e corpo como matéria, 2000, p. 40.

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de modo que o resíduo, em vez de permanecer inserido no ambiente


como uma coisa, destaque-se como um quadro16.

Tendo a noção do que é a representação para Bergson, podemos


compreender melhor sua crítica à hipótese neurofisiológica de que o cérebro
seria capaz de produzir representações. Para isso, conduz o leitor
à experiência de imaginar a seguinte situação: ao seccionar-se os nervos
aferentes do sistema cérebro espinhal, o que deixaria de existir seria somente
a percepção, as demais imagens, ou seja, o mundo exterior (material)
continuaria o mesmo. Bergson mostra, através deste exemplo, que a
percepção acaba porque ela é função dos movimentos moleculares que
ocorrem nos nervos, de certa forma, depende da matéria. É ela que
transmite ao corpo suas “ações virtuais ou possíveis”17. Há uma relação de
influência mútua entre o corpo e as imagens exteriores. As imagens
exteriores transmitem movimento ao corpo e ele restitui o movimento a
elas. Nas palavras do próprio autor: “Meu corpo, objeto destinado a mover
objetos, é, portanto, um centro de ação; ele não poderia fazer nascer uma
representação”18. Podemos afirmar, então, a impossibilidade do corpo, sendo
ele uma imagem – ainda que privilegiada perante os demais – de “fabricar”
representações.
Bergson considera que a idéia equivocada de que a percepção possa
traduzir ou “traçar” os estímulos moleculares da substância cortical vem
do fato de que alguns, sejam materialistas ou dualistas, acreditam que o
sistema nervoso e seus movimentos poderiam ser tomados isoladamente,
assim a percepção serviria para complementar essas atividades cerebrais e
dependeria diretamente dos movimentos moleculares existentes no sistema
nervoso. Esta afirmação já pode ser refutada, segundo Bergson, pelo simples
fato de que o sistema nervoso depende do organismo como um todo.
Portanto, as percepções são modificadas pelos movimentos moleculares

16
BERGSON, H. Op. Cit., p. 33-34.
17
Idem, ibidem, p. 16.
18
Idem, ibidem, p. 19.

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que por sua vez também são modificados pelo mundo material. Ela poderia
traduzi-los visto que é também modificada pelos mesmos.
Apesar das profundas diferenças entre os realistas e os idealistas quanto
à percepção da matéria, existe algo em comum aos dois, pois para eles
“a percepção tem um interesse inteiramente especulativo; ela é
conhecimento puro”19. Já podemos perceber este equivoco pela análise do
sistema nervoso de um animal, por mais simples que ele se apresente. Um
animal primitivo reage a uma “excitação exterior” 20, sem que haja
a necessidade de possuir um sistema nervoso desenvolvido. O animal
vertebrado que o possui, por sua vez, muitas vezes diante de um estímulo,
age por causa de uma ação reflexa do sistema medular, não que o cérebro
seja dispensável, mas ele serve como “espécie de central telefônica; seu
papel é ‘efetuar a comunicação’, ou fazê-la aguardar”21. Para conduzir e
selecionar o movimento, não é preciso um conhecimento prévio sobre aquele
estímulo repentino que levou o corpo a reagir. Sendo assim, a idéia de que
a percepção seria um conhecimento puro não faz sentido, ela não é uma
interioridade do sujeito, mas sim é orientada para a ação, o que pode ser
confirmado através de uma simples análise do sistema nervoso.
Desta forma, acreditamos ter percorrido os pontos principais da análise
bergsoniana da percepção, mostrando que se há indeterminação e há escolha
das ações, há uma percepção consciente. Entretanto, é importante ressaltar
que “nascida num campo [transcendental de imagens] anterior à cisão
sujeito-objeto, a consciência não carece de cisão para nascer, nem nasce
para resolvê-la”22. O campo transcendental nos permite revelar o caráter
não intencional da consciência: Bergson não parte de um sujeito “consciente
de si” que distingue os objetos, os descreve e é capaz de fazer relações
entre eles e o corpo, até porque isso implicaria na atuação da memória e,
como foi visto, o filósofo parte de uma percepção pura – isenta de qualquer

19
Idem, ibidem, p.24.
20
Idem, ibidem, p.25.
21
Idem, ibidem, p.26.
22
CHAUÍ, M. Apresentação, 1988 p. 20.

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subjetivismo –, ou seja, faz um retorno a uma “consciência mínima”


exatamente para fugir do dualismo sujeito-objeto.

Referencias

BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o


espírito. Trad. Paulo Neves. – 2ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes,
1999. (Coleção tópicos).

PRADO JR., B. Presença e Campo Transcendental. São Paulo: Ed. da


Universidade de São Paulo, 1988.
PINTO, D. M. Espaço, Percepção e Inteligência: Bergson e a formação da
consciência empírica humana. Tese de mestrado. São Paulo, 1994.

PINTO, D. M. Consciência e corpo como memória: Subjetividade, atenção e


vida à luz da filosofia da duração. Tese de doutorado. São Paulo, 2000.
CHAUÍ, M. “Apresentação”. In: Presença e Campo Transcendental. São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1988.

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