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S ER C O N VIVER TRA NSFO RMAR
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2
I
O DE AN
ANOS
AN
20
•
VI ES
DA SIMPL
DEDICO A | PERTENCE A:
@VIDASIMPLES
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32 40
SER • CONVIVER • TRANSFORMAR • 2022 NÚMERO 241
NESTA EDIÇÃO
18 C A PA
Saiba dizer não
O R I ZO N T E S
26 H
A vida na favela
32 C U LT U R A
No mundo dos analógicos
36 E N T R E V I STA
Renato Noguera
40 B E M - E STA R
Outono amado, pode chegar
46 C O M P O RTA M E N TO
Durma bem
TODO MÊS
06 C A RTA A O L E I TO R
18 07 M E N S A G E N S
08 C A L E I D O S C Ó P I O
57 E N T R E N Ó S
58 P O E S I A PA R A O D I A A D I A
COLUNAS
54 CAMINHO
DAS VIRTUDES
Gustavo Tanaka
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CARTA A O LEITOR
PUBLISHER | CEO
Luciana Pianaro
CONSELHO
sou tia há exatos 12 anos. leandro, meu primeiro so- Eugenio Mussak, Fábio Gandour
quando uma demanda extra da chefia apareceu. Lem- EDITOR DE ARTE Tiago Gouvêa
REVISÃO Alexandre Carvalho
bro-me da sensação de medo que eu senti em dizer “in- www.vidasimples.co
felizmente eu não vou conseguir cumprir, já passou do
meu horário e tenho um compromisso – literalmente
– inadiável”. Esbocei as palavras na minha mente, mas
elas nunca encontraram o som da minha voz. O sim do PORTAL E MÍDIAS
medo me silenciou. E o receio de não parecer dedicada EDITORA ONLINE Carolina Vellei
COORDENAÇÃO MKT DIGITAL Amanda Alves
o bastante prevaleceu. Fiquei. Fiz o melhor que pude, o COMUNIDADE Paula Lima
mais rápido que pude, e então fui correndo para a ma-
ÁREAS COMPARTILHADAS
ternidade, na esperança de chegar a tempo de ouvir o CIRCULAÇÃO Andressa Apolinário
chorinho dele pela primeira vez. Mas não deu. Já era tar- DESIGN Ivan Roman
de. Amarguei aquela negativa não dita por muito tempo. DADOS Samara Toralbo
FINANCEIRO Priscila Bispo
Talvez, no trabalho, a demanda pudesse ser tranquila- ATENDIMENTO AO LEITOR Joyce Oliveira e Julia Moss
mente resolvida na manhã seguinte, mas sequer tive
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
coragem de negociar. Eu era um caso clássico de gente Oceano Indústria Gráfica e Editora
que tem medo de falar não e desapontar, entrar em con-
+ VIDA SIMPLES
flito. É assim que as boas meninas são educadas. Dessa
www.vidasimples.co
maneira eu me desrespeitei muitas e muitas vezes, nas
mais variadas circunstâncias. Mas a vida não espera. Ao
longo do tempo, ganhei maturidade (e mais sobrinhos: VIDA SIMPLES ISSN 977167876000, ano 20, edição 241 é uma
Joaquim, o sexto, chegará daqui a pouco!) e aprendi que publicação mensal da Vida Simples Participações Ltda (CNPJ:
30.487.265/0001-27), Av. Brigadeiro Faria Lima, 3729, 5º andar, Itaim
impor limites é como dizer que a gente também impor- Bibi, São Paulo – SP. CEP: 04538-905 • Matrícula no. 151, Livro B, do 3o
ta. Falar não para o mundo às vezes é falar sim para você. Cartório de Títulos e Documentos/SP • www.vidasimples.co
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M E NS A GENS
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C A L E I D O S C Ó P I O
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A VOZ DE
SEMPRE
Fotolivro de Rosa Gauditano
resgata movimentos sociais dos
anos 70 e 80 e mostra que as
mulheres seguem na mesma luta
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CAL EI DOSCÓPIO
EXPRESSÃO
EM COR
Papel, tecido, telas e porcelanas
se transformam em arte sob
o olhar criativo da arquiteta
cearense Cris Arruda
@artesdacrisarruda
AGROTURISMO ECOLÓGICO
para aproximar o campo da cidade, um grupo organizado de agricul-
tores familiares oferece experiências rurais em suas propriedades.
“Eles trabalham em rede para o desenvolvimento do agroturismo ecoló-
FOTOS 1.ARQUIVO PESSOAL; 2.DIVULGAÇÃO
[2]
ACOLHIDA NA COLÔNIA
acolhida.com.br
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VIVER EM
HARMONIA
Conceito valoriza a saúde
e o bem-estar físico e
emocional para nos reconectar
a uma vida mais plena
VIVERT O Vivert Reserva da Mata, localizado no sul de Minas Gerais, foi desenhado para que
@vivertrm | vivert.com.br os moradores possam se reconectar com pilares essenciais para uma vida plena
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CAL EI DOSCÓPIO
GENTE INCRÍVEL
nas imediações da escola onde estudava, Viviana dano, teve a ideia de criar o projeto Solidarieda-
Torrico e os colegas costumavam conversar com de Vegan, que entrega até 500 marmitas vega-
um morador de rua, o único do bairro, em Bue- nas por dia a quem não tem o que comer. Em al-
nos Aires. Um dia, levou-o para casa, para que gumas ocasiões, passa de mil.
ele tomasse banho e fizesse a barba. Apesar da Mas faltava algo que transformasse a vida dos
repreensão que ouviu da mãe por tê-lo recebido moradores de rua: um emprego. Em abril do ano
sozinha, a adolescente de 17 anos ficou satisfei- passado, Vivi criou o Trampolink com a ajuda do
ta com o que fez. Foi o exemplo materno, aliás, sociólogo Paulo Escobar, da publicitária Paula Lu-
que despertou nela a solidariedade. Mesmo ten- na e do padre Júlio Lancellotti. A iniciativa apre-
do dois empregos e cinco filhos para criar sem senta o candidato à vaga, auxilia na elaboração do
nenhuma ajuda, a mulher sempre doava comida. currículo e ensina a ir bem na entrevista. Se ne-
Professora de crianças com deficiência, Vivi es- cessário, dá também dinheiro para o transporte.
pecializou-se em cuidar de adultos com idade “Quando damos um trabalho para uma pessoa, a
mental de até 5 anos. Muitos iam parar na rua mantemos trabalhando e a fortalecemos de tudo
depois que os pais morriam, e ela não se confor- quanto é jeito: com roupas, itens de higiene, apoio
mava com isso. Decidiu se mudar para São Paulo psicológico e moradia. Se precisar, a gente faz um
há 22 anos. Ficou chocada a primeira vez que pi- resgate. E a vida dela muda”, diz Vivi.
sou no centro da capital paulista e viu uma mul- A amizade que tem com muitos é tão forte que
tidão vivendo nas ruas, inclusive idosos e crian- cuida deles como se fossem da família. “O meu
ças. “Não posso me acostumar com isso”, pensou. sonho é amenizar essa desigualdade com um
FOTO VICKY BENEDAN
E não se acostumou. Anos depois, abriu um res- cuidado plural. Não só dar comida, educação,
taurante, e sempre doava comida a quem tinha moradia ou trabalho. Mas tudo isso junto”, diz.
fome. Na pandemia, depois de conversa com o Sonha com o dia em que a solidariedade não será
marido, o músico João Gordo, e o artivista Mun- passageira ou só de alguém. Mas de todo mundo.
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“Com minha arte, busco despertar o sentimento que tenho ao fazer minhas fotos e revelações: o respeito, carinho
e amor que todos nós devemos ter pela natureza”, fala Marina, que também expõe seu trabalho em @jubarte.handmade
marina moreira vive cercada da- mo acontecia”, lembra a artista, que pel ou tecido. “O contato deles com
FOTOS CAIO REMO (@REMOEMFRENTE) E MARINA MOREIRA
quilo que acredita ser o essen- não parou mais de estudar o tema. a luz artificial ou do sol traz o tom
cial para estar bem consigo mesma: “O processo da cianotipia é delicio- de ciano e, após minutos de expo-
fotografia e natureza. E foi da união so. Recolher plantas pelo caminho, sição, vem a parte mais gostosa: la-
disso que ela encontrou a cianoti- colocar na prensa, esperar sema- var e esperar a revelação aparecer”,
pia botânica, um processo criado nas para secar, fazer a seleção, har- diz a fotógrafa de natureza, que tam-
em 1842 pela inglesa Anna Atkins, monizá-las no papel e partir para bém é advogada ambiental e traba-
que documentava samambaias e ou- a revelação”, descreve, como parte lha em projetos de reflorestamento
tras plantas por meio da revelação de sua rotina. Na revelação, Marina no interior de São Paulo. - IDR
fotográfica em tons de azul, o cia- usa dois compostos químicos: o ci-
no. “Fiquei fascinada por aquilo e trato de ferro amoniacal e o ferricia- MARINA MOREIRA
precisava descobrir como era e co- neto de potássio, aplicados no pa- @marinamoreira_fotografia
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CAL EI DOSCÓPIO
BRINCOS DE
AZULEJO
Acessórios do Studio Ímã
são feitos com peças antigas
garimpadas em demolidoras
ou até em margens de rios
studioima.shop
[2]
LA RESERVA FAZENDA ORGÂNICA
@lareserva.fazenda
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REPRESENTATIVIDADE COM ESTILO
Moda feita por mãe e filho em Fortaleza traduz estilo e personalidade
em peças agênero, confortáveis, leves e atemporais
tudo começou há quatro anos, consumimos. É por meio dela que rais. Os tecidos são escolhidos para
com uma camisa feita com as entendemos o que é belo. Duran- trazer conforto, leveza e estilo. E as
sobras de um tecido. Esse foi o start te muito tempo esse espaço nos foi estampas, personalidade. “Desejo
para o gastrônomo e empresário negado", observa Iury. O criador da que a Negro Piche se torne uma re-
Iury Aldenhoff criar a Negro Piche. Negro Piche também deseja que sua ferência de marca construída com
Ao lado de sua mãe e sócia, Ionete marca empodere mais gente: "Que respeito, para jovens negros que
Rodrigues, o jovem desenvolveu a não tenhamos que ocupar só por re- querem empreender”, conta Iury,
marca com o propósito de repre- paração histórica, mas que ocupe- que, ao lado da mãe, sonha ver sua
sentar e empoderar corpos negros. mos pelas nossas qualidades”, diz. A moda em todo o Brasil. – MA
“É se enxergando que criamos no- confecção aposta, também, na mo-
vas possibilidades, espaços e opor- da agênero, para homens e mulhe- NEGRO PICHE
tunidades. A moda é a base do que res, com peças versáteis e atempo- @negropiche
FOTOS MATEUS DIAS
A marca não faz distinção de gênero: assim, o cliente se sente à vontade para escolher as peças de que mais gostar. Além
de levar estilo para diferentes corpos, a Negro Piche quer inspirar pessoas negras a ocupar seus espaços, honrando quem são
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CAL EI DOSCÓPIO
FEITO PARA
DURAR
A Esquiluz cria estojos
artesanais, conectando crianças
à natureza, à criatividade e
despertando o amor e a união
ESQUILUZ "Fazer com as mãos transmite a energia positiva para os nossos produtos e para as
@esquiluz | esquiluz.com.br pessoas", diz Carlos Henrique, responsável por levar o saber do pai para mais gente
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Abra-se para a nova Vida Simples
Aponte a câmera do
seu celular para este
QR code e comece já
a sua nova jornada
SER | CA PA
no lado de fora, o sol do meio-dia brilhava uma profecia: O anel que tu me destes era vi-
com uma força incomum no outono. Dentro dro e se quebrou. O amor que tu me tinhas
do carro, porém, a temperatura emocional de era pouco e se acabou.
Nathalie Ayres era a de um inverno cinzento Cuidar desse sentimento como um cristal
e gelado. Durante o trajeto de cerca de 40 mi- ameaçado deu certo no começo. Para agradar
nutos da zona sul ao centro da capital paulis- o companheiro, Nathalie punha as vontades
ta, as lágrimas da jornalista embaçavam ruas, dele sempre acima das dela. Demorou para
avenidas e a alegria de quem curtia a folga perceber que, ausente de si mesma, tudo o
naquele sábado. Mesmo estando sozinha, as que fazia era acumular incômodos e falhas de
canções vindas do pen drive e a conversa que comunicação que foram desgastando o rela-
ensaiava ter com o namorado quebravam o cionamento até fazer dele um tecido daqueles
silêncio no interior do veículo. que podem rasgar a qualquer momento.
Queria dirigir os passos que daria dali em No carro, ela reconstituía a breve conversa
diante com a mesma prática e segurança com virtual que eles tiveram pela manhã. Planeja-
as quais guiava o Celta vermelho. Mas assu- va vê-lo só à noite. Mas a reclamação de Hen-
mir o volante de suas decisões era algo novo rique, de não ser compreendido, a fez mudar
para Nathalie. Só de pensar, a insegurança de ideia. Lembrou-se também do que uma
batia. Durante dois anos e meio, fez de tudo chefe lhe disse anos atrás, ao observar que
para ser a namorada perfeita. Achava que o ela sempre largava o que estava fazendo, por
sucesso da relação era responsabilidade dela. mais importante que fosse, para acudir quem
“Eu me sentia numa corda bamba. Como se pedia ajuda. “Ser colaborativa é sua grande
fosse uma situação tão frágil, tão delicada, fortaleza e também sua grande fraqueza”, dis-
que um movimento mais brusco, errado, que- sera a diretora da empresa.
braria tudo”, recorda. Dependia de Nathalie, A memória de Nathalie ainda resgatou a
portanto, impedir que os versos da canção pergunta do terapeuta quando ela confessou
popular se cumprissem em sua vida como a dificuldade de trazer seus limites para as
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Entendemos limites como grandes paredões que nos distanciam do outro. Mas, quando permitimos tudo
a todos, uma vegetação densa de desgostos e discórdias invade nossa sensação de bem-estar e autorrespeito
SER | CA PA
relações. “Mas você precisa se impor para Rechaçamos a frustração porque apren-
os outros? Não basta se colocar?” Chegan- demos que ela é fruto da falta de afeto.
do à quitinete de Henrique, pela primeira Sinal de que algo está errado. Um recado
vez o casal teve um diálogo franco, olho no que diz com todas as letras que não gos-
olho, cada um à vontade com sua verdade. tamos o suficiente de alguém, ou que não
nos importamos com a demanda posta.
UM TERRENO QUE PRECISA DE CUIDADOS Dizer “não” assusta muitos de nós porque
O problema é que a conversa terminou em dá a impressão de que vai destruir nossa
discussão. “Não aguento mais. Não preci- disponibilidade, nosso afeto nas relações
so disso”, Nathalie pensou. Recolheu suas mais próximas, nossa competência dian-
coisas e foi embora, surpreendendo o na- te do trabalho. Se não for alimentado por
morado. Se até aquele instante achava que “sins” o tempo todo, temos medo de que
dizer “não” era algo que não combinava tudo vire pó. De que o outro não reconheça
com ela, mudou de opinião a primeira vez o nosso valor e a nossa importância. Pe-
que pronunciou o monossílabo, pois sentiu gando carona nessa ideia equivocada, não
um agradável sabor de alívio. Com tudo às são poucas as pessoas que vivem à procura
claras, o ponto final no namoro cheio de de alguém que as sirva em tempo integral,
idas e vindas era uma questão de tempo. em todas as instâncias da vida.
Foi cimentado por outro desentendimento,
duas semanas depois.
Como a jornalista, muitos de nós conside-
ramos inglória a tarefa de colocar limites
Esquecemos que cercas são necessárias
em nossas relações, quaisquer que sejam: para cultivar um jardim bonito. E que podar uma
amorosas, familiares, profissionais… Ve-
mos as demarcações do nosso espaço como
planta, em vez de machucá-la, faz com que ela
muros que vão ficando mais altos cada vez cresça com mais força e vigor
que a gente frustra, impede a pessoa de fa-
zer o que quiser, não adivinha nem realiza
seus desejos. No afã de deixar o terreno li- Dentro desse lugar, muitos assumem um
vre desses paredões, pouco a pouco o mato papel de servo dos outros. Entregam-se
vai tomando conta. Quando permitimos mais do que podem. E, de alguma maneira,
tudo ao outro, a vegetação densa nasce em acreditam que o seu valor está no sacrifício
forma de discórdias, vazios e desgostos, do quão são capazes de cumprir. “Aqui vem o
além de invadir nossa identidade e bem- enlace preocupante, pois a pessoa que mui-
-estar. Torna-se um lugar sufocante, im- to serve, sem limites, pode estar em busca
possível de se habitar. de um sentimento ilusório de onipotência.
Esquecemos que cercas são necessárias É como se ela sentisse que pode dar tudo ao
para cultivar um jardim bonito. E que po- outro justamente porque é uma espécie de
dar uma planta, em vez de machucá-la, faz supra-humano”, acrescenta Ronaldo. Não
com que ela cresça com mais força e vigor. consegue se descolar dessa imagem heroica
Delimitar o nosso espaço é a poda que cons- porque se sente nua com suas limitações ex-
trói uma convivência saudável. “O limite é a postas. E aí entram sentimentos como medo
condição para uma boa relação. É ele quem da rejeição, medo de perder uma posição ou
define os contornos dela e marca a diferen- ficar sem o amor de alguém.
ça entre o que é bom e o que é ruim, per- Além disso, o medo do rompimento traz
mitindo que seja praticado o que faz bem a consigo um fantasma que diz que vamos
ambos e deixando de fora o que faz mal”, diz ficar sozinhos para sempre. Encolhidos
Ronaldo Coelho, professor de psicanálise. diante dele, mesmo os relacionamentos
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Podemos ser firmes e, ainda assim, gentis, fazendo recusas que ultrapassam o que
a gente dá conta. É dessa maneira que criamos caminhos mais saudáveis entre as relações
SER | CA PA
que fazem mal nos parecem uma alterna- nais que nos afastam dela cada vez mais.
tiva preferível à solidão. Por isso, soltar a Às vezes nem notamos. “Quando ficamos
mão da fantasia de ser perfeito é o primei- muito responsivos, agindo o tempo todo
ro passo para reconhecermos e aceitarmos com objetivo de agradar ao outro, sem nos
nossas limitações. Demanda coragem e dar conta do que queremos e do que real-
uma dose abundante de autoestima, mas mente é importante para nós, não são só
quando ela parte vem a recompensa. É os limites do que é bom ou ruim na rela-
quando percebemos que não é preciso ser ção que se apagam, mas principalmente os
um herói para merecer o bem-querer e o próprios limites do eu”, ressalta Ronaldo.
respeito de quem quer que seja. Em parte, somos responsáveis por isso. Se
dizemos muitos “sins”, somos vistos como
A ARTE DE DIZER “NÃO” alguém que está ali sempre disponível para
O curioso é que impor limites só vai ofen- distribuir favores. “Priorizar os outros
der justamente aqueles que talvez estejam manda uma mensagem para todos ao seu
ultrapassando seus limites. E não é difícil redor de que você não é tão importante”,
entender por que se colocar parece errado. lembra Lidia Weber, professora de psico-
Nem todas as crianças são encorajadas a logia da Universidade Federal do Paraná
expressar sentimentos, vontades e opini- (UFPR). Embora cheguem a nós tarefas
ões. Ao contrário. Desde os primeiros anos
de vida, são censuradas por isso e ensina-
das a obedecer ordens cegamente, mesmo
sem entender o porquê. E, quando falham,
Quando ficamos muito responsivos, agindo o
ainda precisam carregar a culpa. Quem tempo todo com objetivo de agradar ao outro, não
nunca foi acusado da tristeza dos pais por
não arrumar o quarto? À medida que va-
são só os limites do que é bom ou ruim que se
mos crescendo, outras pessoas se encar- apagam, mas os próprios limites do eu
regam de abafar nossas vozes. Na escola,
alunos que aceitam tudo são premiados,
enquanto os que questionam correm o ris- que estão ao nosso alcance e nos enchem
co de receber retaliações. de prazer e sentido, uma porção delas só
Essa toada segue na vida adulta. Mesmo nos fazem atrasar ou roubar a nossa paz.
descontentes ou achando que o trabalho Sem a menor cerimônia, as pessoas pe-
não está sendo feito como deveria, medi- dem o que não queremos ou podemos fa-
mos as palavras para não perder o empre- zer, ou o que vai numa direção oposta ao
go. Não podemos contrariar líderes reli- que acreditamos. Como se elas é que tives-
giosos se não quisermos levar um sermão, sem o controle sobre nossas vidas. Muitas
nem autoridades públicas e políticas, sob vezes com a nossa permissão, quando a
pena de punição. Também evitamos certas vontade de agradar e ser aprovado, o medo
conversas em casa, com os amigos e cole- de desapontar o outro ou a culpa sentida
gas de empresa para evitar confrontos e por histórias passadas parecem maiores
conflitos. Vivemos tentando nos equilibrar do que o abuso. Aí, sem uma bússola emo-
em meio a pressões e regras vindas de to- cional, perdemos a capacidade de meditar
dos os lados, que usurpam o nosso espaço sobre o que nos aproxima ou afasta do
e o nosso ser no mundo. bem-estar e da felicidade. Simplesmen-
Com tantas exigências andando na con- te não percebemos o quanto estamos nos
tramão dos nossos propósitos, a vida que desrespeitando, magoando ou adoecendo.
ansiamos vai ficando para trás. Enquanto Por vezes, cai a ficha de que nos tornamos
isso, nos enchemos de cicatrizes emocio- escravos das expectativas alheias. Te-
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No início, respeitar-se e se priorizar é como plantar uma semente e cultivá-la
de forma amorosa, sabendo que um dia essa mudança interna trará frutos saborosos
SER | CA PA
mos ciência de que os nossos desejos es- igualmente valiosas. A psicóloga sugere le-
tão trancados dentro de nós. Mas, por mais var em conta os valores de vida e avaliar de
que calar nossos sonhos faça mal, não é que maneira o “sim” ou o “não” pode afetar
fácil gritá-los ao vento. A simples ideia de o relacionamento em questão.
estarmos sendo indelicados, agressivos ou Há casos em que o melhor a fazer é não
egoístas nos paralisa. adiar o “não”. Ele deve ser dito na hora, sem
Quantas vezes você ficou desconfortável palavras ásperas que machuquem a outra
para outra pessoa se manter confortável? pessoa. Afinal, podemos ser firmes e ao
Dá trabalho jogar fora todo esse entulho mesmo tempo gentis. E o mais importan-
emocional, mas, quando o nosso espaço te: colocar a autocompaixão na frente de
interior antes preenchido pela escuridão, qualquer situação. Uma lição que Nathalie
é desocupado, ele se enche de luz e o es- aprendeu depois do término do relaciona-
forço vale a pena. “Às vezes uma reflexão mento. Passou a colocar o compromisso
simples não basta. É preciso refletir sobre consigo em primeiro lugar, sem temer os
si mesmo com mais profundidade, sobre o julgamentos. “Percebi que tem um valor
que gosta, o que te faz feliz, sentimentos, meu que preciso me dar se quiser que os
necessidades, o que e quem fazem com que outros também deem. Por que posso me
você se sinta bem ou mal e quais são seus desagradar e não desagradar o outro?”
limites”, enumera Lidia.
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Assim, habitar conscientemente as próprias vontades, reconhecendo esse espaço interno como algo
sagrado, transforma não só a gente, como também permite relações mais verdadeiras e respeitosas
T RAN S FORMA R | HORIZON T E S
A vida na favela
Com olhar de morador, fotógrafo
registra o cotidiano alegre, bonito
e potente dos morros cariocas
TEXTO I ZABEL DUVA RAPOPORT
FOTO BRUNO ITAN
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T RAN S FORMA R | HORIZON T E S
“estávamos na roça, longe da tam não só por infraestrutura, mas brincando, pessoas andando pelas
cidade. O caminho que serpea- também por respeito aos direitos ruas, sorrindo e trabalhando – ce-
va descendo era ora estreito, ora e à vida grandiosa de quem mora nas diferentes daquelas retratadas
largo, mas cheio de depressões e por lá. “O que há de mais lindo na pela mídia. “Só aparecia violência,
buracos. De um lado e de outro, favela é a simplicidade e o poten- caos, tiroteio, e isso me incomoda-
casinhas estreitas feitas de tábua cial de cada morador. Aquele ‘nós va.” Desde então, com a câmera na
e cercados indicando quintais.” Foi por nós’, em que um ajuda o outro mão, Bruno se dedica à beleza das
assim que o jornalista João do Rio quando acontece alguma covardia”, comunidades. E à inversão do olhar
descreveu, em 1911, uma das pri- conta o fotógrafo Bruno Itan, que de quem se deixa tocar.
meiras favelas do Brasil. Ao longo cresceu no Complexo do Alemão.
dos anos, mesmo sem apoio das Em 2008, quando fez um curso de
autoridades, elas foram crescendo, fotografia gratuito no lugar, pas- BRUNO ITAN é recifense e chegou
reunindo famílias, jovens, trabalha- sou a registrar o que via todos os ao Rio de Janeiro aos 10 anos. Hoje ensina
dores e cidadãos que, até hoje, lu- dias: um pôr do sol lindo, crianças outros jovens a fotografar. @brunoitan
Para incentivar a cultura da fotografia dentro das comunidades, Bruno Itan criou o projeto Olhar Complexo (@olharcomplexo),
no qual promove intercâmbios fotográficos. “Levo o pessoal do Alemão para a Rocinha, por exemplo, e vice-versa”
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T RAN S FORMA R | HORIZON T E S
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O dia a dia dos moradores é a grande inspiração de Bruno. “Quero que as pessoas conheçam a realidade das favelas, que
não é só violência. Há gente guerreira aqui dentro e, se não formos nós a mostrar esse potencial, não será alguém de fora”
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CO N VIVER | C ULTURA
tenho, no meu quarto, uma estante cheia de E, por mais que essa magia dos analógicos
livros. Alguns são novos, outros bem mais an- pareça ter desaparecido diante de tecnologias
tigos e, quando a campainha toca com algum e facilidades, alguns deles ainda resistem den-
pacotinho diferente, minha mãe já diz: “apos- tro de nós, contando parte da nossa história.
to que é mais livro”. Meus amigos sabem do Outros têm voltado e ganhado cada vez mais
meu gosto e, por isso, também contribuem espaço nos dias de hoje, como os vinis, as câ-
com ele: me presenteiam com exemplares meras fotográficas com filme e as instantâne-
raros, como uma coleção de romances fran- as, que revelam as imagens na hora, feito má-
ceses com as páginas já amareladas. E uma gica. Afinal, por que esse fascínio ainda existe?
coletânea de cartas do meu escritor favorito, Conversei com a psicóloga Naara Amim
que não se encontra mais para comprar nem para descobrir por que esses objetos conti-
nesses sites de raridades. nuam sendo tão especiais, nos despertando
Sempre gostei de ler assim, no papel, e já as mais variadas emoções. Ela me explicou
tentei me adaptar diversas vezes às telas, mas que é superimportante manter no presente
sem sucesso. Nasci no fim da década de 1980, conexões que nos remetem a boas lembran-
quando nem se pensava em internet ou com- ças. “Alguns objetos do passado podem trazer
putadores, e passei por toda a transição dos essas sensações e nos aproximar mais de nós
analógicos para os digitais, aprendendo na mesmos, das nossas histórias, nossas origens
marra e com todos os desafios que vêm junto e até de algumas referências familiares”, diz.
das novidades. Mas não consigo me desvin- Além disso, essa nostalgia contribui para o
cular de alguns pequenos prazeres que só os nosso corpo liberar endorfina, um hormônio
analógicos me proporcionam: o cheirinho e a presente em nosso cérebro, capaz de inibir a
textura das páginas de um livro físico, as foto- irritação e o estresse. Você sabia disso? A sen-
grafias impressas e a escrita em papel e cane- sação é bem parecida com aquela felicidade
ta. Penso que alguns objetos têm o poder de que a gente sente a ponto de diminuir a velo-
devolver para nós um pouco do que a gente é. cidade de tudo ao nosso redor.
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FOTO UNSPLASH/TAISIIA STUPAK
Embora as novas tecnologias sejam incríveis e nos ofereçam avanços importantes, ainda existe
um mundo encantador nos analógicos, no toque ao papel, na fotografia impressa, na agulha que toca o vinil
CO N VIVER | C ULTURA
Naara diz também que existem várias todas as nossas relações. “O que pode ser
maneiras de liberar a endorfina. Escutar fascinante num primeiro momento também
uma música ou manter contato com ob- pode gerar como consequência relações
jetos e pessoas que também trazem boas descartáveis, superficiais e tóxicas, assunto
lembranças são só alguns exemplos. Outro muito bem refletido no livro Amor Líquido,
ponto positivo dos analógicos é o nosso de Zygmunt Bauman”, pontua Naara.
próprio desenvolvimento motor. Eles es-
timulam o toque, o contato físico e a inte- COLECIONANDO MEMÓRIAS
ração, diferente dos recursos digitais que, Essas relações, um tanto desgastadas pela
na maioria das vezes, nos limitam a sentir falta de contato, se desfazem com mais fa-
tudo só com a pontinha dos dedos. cilidade porque não aprendemos a impor-
tância do cultivo cuidadoso e diário. Nos
CONEXÕES DE AFETO acostumamos a reagir entre urgências e a
Mas, de tudo isso, eu gosto mesmo é do lado descartar facilmente o que nos desagrada.
afetuoso, presente no que a gente chama de “A minha leitura é que as gerações mais jo-
conexões reais. Vivemos em uma época em vens têm uma dependência impressionan-
que tudo é veloz e descartável. Veja só as te, e até preocupante, da tecnologia, de estar
fotografias: podemos tirar várias, de diver- conectado 24 horas por dia e, principalmen-
sos ângulos, com uma porção de efeitos que te, das suas relações com as redes sociais”,
mudam cor, afinam nosso rosto e até dis- diz o historiador Bruno Vinícius de Morais.
torcem um ambiente. “Quem viveu a época Ele é do tempo das locadoras de filmes,
das câmeras analógicas sabe o quanto é im- na rua. Em casa, guarda uma coleção com
portante prestar atenção e aproveitar cada quase 3 mil CDs, que ouve em um discman
instante. Porque os filmes não permitem cinza, desses bem antigos. A relação dele
que a gente tire várias fotos e escolha qual com os CDs começou em 2001, quando
imagem a gente quer. É preciso ter prazo de comprou um acústico da cantora Cássia
sentir”, observou Antônio Barbosa. Eller com o dinheiro do primeiro salário.
Ele passou boa parte da vida revelando Depois, a paixão por esses disquinhos foi
fotografias em laboratórios escuros, e de- só crescendo, a ponto de fazerem parte do
pois, já mais velho, conserta câmeras foto- mestrado e do doutorado do Bruno: ele
gráficas antigas. Um trabalho que, segundo analisou não só as canções, mas os encar-
ele, diminuiu bastante nos anos 2000, mas tes e as mensagens das capas. “Honesta-
voltou a crescer nos últimos tempos. “Mui- mente, sinto falta de poucas coisas porque
tos jovens me procuram com equipamentos ainda tenho acesso a tudo que eu fazia an-
herdados de algum familiar. Ou até mesmo tes, como as estações de rádio”, observou.
comprados nessas lojas de antiguidades. Desfrutar do que a tecnologia nos oferece
Outro dia consertei uma Polaroid 600, des- hoje pode ser um recurso incrível, mas que
sas bem antigas. Fiquei emocionado”, conta. não precisa deixar para trás a graça que um
Na busca por conexões verdadeiras, ten- mundo analógico também tem a nos mos-
demos a nos afeiçoar àquilo que desperta trar. Podemos valorizar a pausa, a presença
nossas emoções e nos proporciona experi- e até outra velocidade de tempo. Agora me
ências mais intensas, marcantes e signifi- conta: qual pedacinho de passado faz parte
cativas. As tecnologias até prometem mais do seu caminho até hoje?
agilidade, eficiência e controle em nossas
ações. E não podemos negar que elas são
essenciais em nosso dia a dia. Mas, ao mes- DÉBORA GOMES não se dá muito bem com
mo tempo, elas tiram da gente essa delica- tecnologias e não se adaptou às chamadas de vídeo.
deza dos sentidos e do “estar presente” em Às vezes, ela acha que nasceu na época errada.
34
FOTO UNSPLASH/GIORDANO ROSSONI
No dia a dia, eles podem nos ajudar a resgatar sentimentos que nos trazem bem-estar, além
de também nos convidar ao toque e à interação, diferente de um mundo na pontinha dos dedos
CO N VIVER | ENTREVIS TA
36
Existe amor pelo coletivo
Somos muito mais amorosos do que o individualismo quer nos fazer crer.
Em tempos críticos, o filósofo Renato Noguera se apoia em saberes
ancestrais para acordar em nós o sentido de comunidade e pertencimento
TEXTO RAPHAELA DE CAMPOS MELLO FOTO MARCELO HALIT (@HALLIT) PARA CASA DO SABER (@CASADOSABER)
ailton krenak, Davi Kopenawa, (Harper Collins), Noguera nos ins- disso, acaba que a valorização do
Mãe Stella de Oxóssi, Nêgo Bispo, pira a pensar o amor por nós, por coletivo, do comunitário, fica muito
Sobonfu Somé e Sandra Benites nossos pares, familiares, pela so- menor. Eu sou fruto de uma história
são alguns dos mestres e mestras ciedade e pela natureza como um familiar que me possibilitou que eu
que fertilizam a mente e o coração exercício elementar, tal qual respi- fizesse alguns esforços individuais,
de Renato Noguera, doutor em filo- rar, comer e beber. Nestes tempos mas dentro de um contexto. Meu
sofia, docente no Departamento de áridos, ele rememora nossa capa- avô me contava histórias do avô
Educação e Sociedade da Univer- cidade de criar o bem maior. dele. Eu não teria esse background
sidade Federal do Rio de Janeiro se eu não fosse da minha família,
(UFRJ) e pesquisador do Labora- A PANDEMIA REVELOU A CRISE DA que é de origem gueroual africana.
tório de Estudos Afro-Brasileiros COLETIVIDADE. COMO NOS TOR- Por isso, tenho sempre que saudar
e Indígenas. Com gratidão e reve- NAMOS TÃO INDIVIDUALISTAS? minha história. Sem essa compre-
rência, ele traz ao centro do debate O individualismo é muito antigo. ensão, perde-se a consciência do
ideias e saberes sobre como pode- Tem uma ideia de self-made man, lugar de cada um no contexto geral
mos viver melhor juntos. Com os daquela pessoa que se faz por si e louva-se a meritocracia.
povos tradicionais, aprendemos só, como se ela não tivesse alguém,
que é possível perpetuar um es- um grupo, uma história, uma an- DAÍ EXPLODE UMA CRISE SANITÁ-
paço ancorado na escuta, na dis- cestralidade, um meio social. Resi- RIA GLOBAL E OS VALORES INDIVI-
cordância, no respeito e, principal- de aí certa ilusão de uma narrativa DUALISTAS PREVALECEM...
mente, na preservação da vida. Em heroica, de uma pessoa que sozi- Gosto de sistemas biocêntricos, em
Por que Amamos: O que os mitos e nha consegue atingir um alvo. En- que a vida está no centro. A vida é
a filosofia têm a dizer sobre o amor tão, quando a gente faz campanha mais importante. A gente não
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CO N VIVER | ENTREVIS TA
come dinheiro, a gente não se ali- que a Terra só pode ser habitada zer, nem que seja para discordar.
menta de ideologia somente. Hoje por poucos. Por isso, tem de haver Quando fazemos pontes, vamos
há uma inversão, a vida passa a fi- muros para proteger os poucos que negociar incansavelmente como a
car menor do que alguns valores, são os puros e têm direitos porque gente preserva e conserva todas as
ela se torna satélite. As pessoas nasceram com eles ou porque, sen- potências da vida. Esse é o parâme-
querem defender certos princípios do muito bem armados, lutaram tro fundamental. Existem muitos
independentemente se eles ser- por eles. A lógica do muro se baseia grupos humanos com várias tecno-
vem ou não à vida. Para ser saudá- no pressuposto de que eu só posso logias para isso. Então precisamos
vel é preciso ter saúde afetiva e em amar o meu grupo, com o resto eu trocar esses saberes e usá-los de
todos os sentidos. Precisamos va- entro em conflito. Mas não se tra- modo colaborativo.
lorizar fundamentalmente a vida. ta disso. A gente não precisa amar
todos os grupos humanos e ter NA ATUAL CRISE BRASILEIRA,
O QUE PRECISA ACONTECER PARA concordâncias com eles, mas tem COMO NÃO SE DEPRIMIR NEM SE
DEIXARMOS DE SER MUROS E NOS de compartilhar o espaço porque o ANESTESIAR FRENTE AO SOFRI-
TORNARMOS PONTES? ecossistema é um só. MENTO HUMANO?
É preciso haver um tipo de senti- Precisamos fazer projetos políti-
mento infantil. Se a gente entra COMO ESSE MODO DE VIVER EM cos. Os modelos do quilombo e da
numa “adultidade”, enquanto um SOCIEDADE SE DÁ NA PRÁTICA? aldeia, por exemplo, não são para-
processo de alteração do nosso As pontes são possíveis nesse sis- ísos, mas são ecossistemas equili-
caráter inventivo da vida, se fecha tema porque todos escutam todos. brados. Na cidade existem pessoas
e passa a acreditar que existem Já no muro não há interesse em desabrigadas. Numa aldeia não faz
poucos recursos. Então achamos escutar o que o outro tem a di- sentido haver uma pessoa que não
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Baseado em saberes ancestrais, Renato
Noguera deseja que, em 2022, possamos
desenvolver a confiança, o amor e a
consciência para um bem-estar coletivo
tenha uma rede onde ela possa se enças, à mudança climática, à in- O QUE SEU CORAÇÃO MAIS ANSEIA
deitar. No quilombo havia negros, segurança alimentar, à circulação PARA A NOSSA SOCIEDADE?
indígenas e pessoas brancas que de bens de consumo, à emprega- Confiança e amor. Existe uma pa-
coabitavam de modo colaborati- bilidade. Isso tem que ser resolvi- lavra em yorubá que é ifé e que
vo, com produção coletiva. Então, do de modo colaborativo, coletivo, significa amor. Coincidentemente,
nós precisamos utilizar essas duas mundial, porque vivemos numa esse radical “fé” remete à noção de
estruturas para implementá-las aldeia global. O que acontece num confiança. Confiança é uma senha
na cidade. Uma mudança simples: lugar gera impactos no mundo in- importantíssima para se estabele-
onde há espaços públicos coletivos, teiro, não há como negar. Atentos cer contrato e acordo, e ela se faz
é preciso ter hortas para que a po- a isso, vamos ter que colaborar com base na possibilidade de nos
pulação possa colher vegetais con- mais. Reconhecendo as diferen- conectarmos. Desejo que as pesso-
forme sua necessidade. Também é ças e sem idealizar o outro nem as tenham conexão com a sua vida
preciso haver espaço de ocupação como anjo, nem como demônio, emocional, com seus sentimentos
para todas as pessoas, bem como e sim como pessoas que têm faci- verdadeiros, para que vivam sem
atividades laborativas das quais lidades e dificuldades. Algumas desfaçatez. Também precisamos
elas extraiam seu sustento. estão numa chave sistemática de evitar as fantasias salvacionistas no
exploração de outras. Vamos ter âmbito da vida pública. Em 2022,
OS DESAFIOS ENFRENTADOS CO- que discutir isso. Alguns grupos precisaremos de consciência e de-
LETIVAMENTE NOS ÚLTIMOS ANOS e países têm mais privilégios no bate qualificado. Enfim, do amor no
APONTAM PARA QUAL DIREÇÃO? cenário internacional. Também seu sentido mais filosófico, aquele
Temos desafios que vão exigir co- vamos ter debater isso e escutar que nos permite projetar um futuro
operação em relação a novas do- outros repertórios. e catalisar o bem-estar.
39
SER | BEM-ESTA R
não é preciso pesquisar muito. Bem antes de “O outono nos convida a um ritmo mais su-
as mãos se cansarem de folhear livro após li- ave, propício ao movimento de desapego, que
vro, chega-se à conclusão de que poetas e es- podemos comparar às folhas secas cumprin-
critores veneram o outono. Nossa, como eles do mais uma etapa e se desprendendo dos ga-
se derramam pela estação em que as folhas lhos. Mas também há os últimos frutos desse
das árvores experimentam a liberdade dos período sendo colhidos de forma generosa,
pássaros. Quer ver só? “Ah, como andei e de- simbolizando a importância de reconhecer-
sandei por aquelas ruas e praças. A folhagem mos e nos sentirmos gratos pelo que plan-
começando a ficar esbraseada”, suspirou Ly- tamos nas estações anteriores”, interpreta a
gia Fagundes Telles ao recordar uma visita ao naturóloga Bruna Vannucchi.
outono sueco. Rubem Braga assim ilustrou a Então também há motivo para festejar,
atmosfera carioca em março de 1935: “As fo- como fazem os herdeiros das tradições pagãs.
lhas secas davam pulinhos ao longo da sarjeta “No Hemisfério Norte, na entrada do outo-
e o vento era quase frio, quase morno”. Mario no, celebra-se a festa do deus galês Mabon, o
Quintana também capturou o espírito deste momento da colheita e armazenamento dos
ciclo. “Há uns salgueiros a pender de sono. alimentos para o inverno, realizando-se um
Sobre um fundo de pálida aquarela. E há (está ritual que deu origem ao Dia de Ação de Gra-
previsto) este abandono.” ças”, conta Cristiane Marino, médica, psicote-
Chega a doer. Despedir-se do êxtase do ve- rapeuta e mentora de círculos de mulheres.
rão pode ser mesmo melancólico, se bem que,
na esteira do frescor, certo alívio nos alcance. REEQUILIBRANDO A VIDA
Se formos honestos, poderemos admitir que A leitura feita pela Medicina Tradicional Chi-
não é fácil dizer adeus ao que quer que seja. nesa (MTC), que entende a natureza como
Talvez por isso, o outono seja tão envolven- energias interdependentes em perene muta-
te. E nos ensina a arte de nos soltarmos sem ção, diz o mesmo, só que valendo-se de um
medo do que precisa ser levado pelo vento. vocabulário próprio. “O outono é uma es-
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A estação pede por reforço no autocuidado. Evite friagem, durma bem e priorize alimentos quentes e da época
SER | BEM-ESTA R
42
Além disso, a chegada da estação traz a chance de olhar para o nosso futuro com sabedoria
SER | BEM-ESTA R
mano”, aponta a naturóloga. E, antes de sair Sim, mesmo nesse ambiente mais agres-
de casa, não se esqueça de aplicar uma bela sivo para as vias aéreas, não só podemos
demão de protetor solar no rosto, que tam- como devemos praticar exercícios físicos.
bém tem propriedades hidratantes, além de De preferência, atividades que promovam
protetor labial com FPS (proteção solar). a respiração coordenada com o movimen-
to. Dentro das práticas corporais da MTC,
SONOLÊNCIA E TRISTEZA? três modalidades seguem essa linha: Ba
Sentindo mais sono que de costume? Não Duam Jim, Chi Kung e Tai Chi Chuan. “To-
lute contra ele. Ao contrário, se organize das trabalham com movimentos lentos e
para que ele seja o mais agradável e repa- contínuos, coordenados com a respiração,
rador possível [Dúvidas sobre como dormir promovendo o fortalecimento dos múscu-
melhor? Veja na página 46]. Agora, se sentir los e tendões, alongando, promovendo o
a melancolia se infiltrando pelas brechas alinhamento articular e o trabalho aeróbi-
do seu ser, procure se aninhar no calor co, diminuindo inflamações e melhorando
dos encontros. Envolva-se com sua família, o sistema imunológico”, afirma o professor.
amigos, comunidade e conhecidos. Tam- Caso não conheça nenhuma delas, tente,
bém injete vida em sua casa. “Se os dias fo- algumas vezes ao dia, inspirar com gosto
rem mais frios e cinzentos, crie em seu lar e expirar lentamente. A leveza dessas prá-
um ambiente aconchegante, com objetos
e flores coloridas para alegrar seus dias”,
orienta Cristiane.
Mas se a tristeza se enraizar mais profun-
É como se a natureza pintasse o outono
damente, pode ser que seja uma manifes- exatamente para que nossos olhos possam vagar
tação da chamada “Depressão Sazonal” ou
“Transtorno Afetivo Sazonal”, mais comum
enquanto também visitamos nossa paisagem
no Hemisfério Norte, onde o outono é mais interior e fazemos nossas reavaliações íntimas
rigoroso. É que o vazio da paisagem e a au-
sência de cor e brilho podem nos amuar
além da conta, provocando mudanças re- ticas nos deixa prontinhos para o deleite
pentinas de humor, vontade de calar-se e da contemplação. Difícil imaginar um ci-
de se afastar do convívio, cansaço, falta de clo mais convidativo para isso do que o
vitalidade e de interesse em realizar as ati- outono. É como se a natureza o pintasse
vidades cotidianas. Se for esse o caso, é re- exatamente para que nossos olhos possam
comendado buscar auxílio especializado. vagar enquanto também visitamos nossa
paisagem interior e fazemos nossas rea-
PULMÕES FORTALECIDOS valiações íntimas. “Inclua momentos de
Tanto do ponto de vista emocional quanto quietude e contemplação, tente observar a
fisiológico, nossos pulmões são bastante de- mudança da luminosidade do dia, das co-
safiados nessa época do ano. De acordo com res das folhas das árvores e do canto dos
a MTC, o fator patogênico associado ao ou- pássaros. Sinta as brisas frescas”, sugere
tono é a secura. Menos chuvas, mais poeira Cristiane. Aproveite também para andar e
e outras partículas no ar. Já viu no que pode desandar por ruas e praças, como fez Ly-
dar, ainda mais em tempos de pandemia. gia Fagundes Telles.
“Isso tudo pode deixar o pulmão suscetível
a muitas dificuldades, tais como inflamação
ou infecção dos brônquios, formação de RAPHAELA DE CAMPOS MELLO é jornalista
muco/catarro, tosse, espirros, resfriados, e se sente acarinhada pelo solzinho do outono
gripes, otites ou pneumonia”, lista Sérgio. nessas bandas do Sul.
44
Os dias mais frios também podem trazer certa melancolia. Esteja com quem te faz bem e aprecie cada dia
CO N VIVER | C OMPORTAM E N TO
Durma bem
Criar uma rotina de sono ajuda a ter noites mais
tranquilas e, mais do que isso: nos permite viver melhor
TEXTO DÉBORA GOMES EDIÇÃO DÉBORA ZANELATO
“lembra que o sono é sagrado, e alimenta Além disso, o sono ajuda a melhorar a nos-
de horizontes o tempo acordado de viver”, sa memória. Enquanto dormimos, o nosso
diz um trecho da canção “Amor de Índio”, cérebro não para de trabalhar. É como se ele
composta por Beto Guedes em parceria com aproveitasse o repouso e a quietude externa
Ronaldo Bastos. A música, de 1978, época em para pegar todas as coisas importantes que
que participavam do Clube da Esquina, car- vivemos durante o dia, processar as informa-
rega em suas estrofes a poesia do bem viver. ções e colocar em pequenas caixinhas. Tudo
A letra, que ganhou corpo também na voz bem organizado, para lembrarmos com mais
de Maria Bethânia, Milton Nascimento, Rou- clareza tempos depois. Com tudo isso, você
pa Nova, nos lembra que dormimos porque pode até se perguntar, assim como eu sem-
o descanso é, também, a fonte da vida. Mas pre me pergunto nas noites de insônia, o que
dedicar-se ao sono nem sempre é reconhe- podemos fazer para dormir bem. Prepare seu
cido como um ritual de cuidado e entrega. travesseiro, pois vamos descobrir juntos.
Nosso estilo de vida, as preocupações diárias,
alimentação e os estímulos luminosos e sen- TEMPO DE QUALIDADE
soriais até altas horas podem estar nos afas- Uma das coisas que Matthew Walker sugere é
tando do (merecido) descanso para nutrir o que a gente durma pelo menos oito horas por
tempo desperto. noite e se atreva a tirar aquela soneca durante
No livro Por Que Nós Dormimos (Intrínse- o dia, de preferência depois do almoço. Segun-
ca), o neurocientista e especialista em sono do ele, isso diminui em mais de 200% a chance
Matthew Walker diz que dormimos “para ter de desenvolvermos algum problema cardio-
saúde e viver mais”. Ele explica que o sono de vascular. Eu também conversei sobre isso com
qualidade ajuda a fortalecer o nosso sistema a Moara Rocha. Ela é fisioterapeuta do sono e
imune e o endócrino. E assim as chances de me disse que, mais do que quantidade, a gente
termos uma vida mais saudável, longe de al- também precisa se atentar ao nosso próprio
gumas doenças, são bem maiores. relógio biológico para alcançar esse sono
46
É comum que os hábitos de muita gente hoje em dia não privilegiem uma boa qualidade do sono
CO N VIVER | C OMPORTAM E N TO
48
Além de estímulos em excesso, uma alimentação inadequada e preocupações interferem no descansar
CO N VIVER | C OMPORTAM E N TO
50
Mas, aos poucos, podemos fazer ajustes na rotina de sono para que o dormir também nos ajude a desfrutar melhor do dia
p e n s a n d o b e m
Influências
Somos formados não apenas pela interação dos códigos genéticos,
mas pelo meio, pela educação e cultura _POR EUGENIO MUSSAK
minha irmã tinha viajado para o Rio de Guerra e Mamma Mia, além de divertir e
Janeiro e me trouxe um compacto de pre- emocionar, faz pensar. Como seria o mun-
sente. Para quem nasceu depois dos anos do sem os Beatles? E como seria eu sem o
1990: compacto era como se chamava um “Love Me Do” da década de 1960?
disco de vinil pequeno, que continha duas Sabemos que a personalidade, o tempe-
ou quatro músicas, divididas em seus dois ramento e o caráter de cada pessoa são
lados. Fiquei feliz, pois estava na fase da formados pela interação dos códigos gené-
adolescência em que a música, principal- ticos individuais com a imensa influência
mente o rock’n’roll, tem mais razão que os do meio, da educação e da cultura de cada
pais e os professores. Mas logo me decep- época. Além, claro, dos acontecimentos po-
cionei, porque o disco não era do Elvis, do líticos e sociais. Eu e meus colegas tivemos
Chuck Berry nem do Bill Haley com seus co- a sorte de crescer em um período de grande
metas. Chamava-se “Love Me Do”, e era de produção musical, e o azar de viver em uma
um quarteto inglês desconhecido, com um ditadura e ver guerras pipocando em todo o
nome que lembrava um coleóptero ou um planeta. Mas o lado bom ganhou, acho...
carro popular alemão. A lista de todas as minhas influências não
Bem, o resto é uma história que nem pre- caberia nesta página... Mas a maturidade me
ciso contar. Logo eu era conhecido na cida- ajuda a selecionar as que me valem no ago-
de como o primeiro a ter um disco dos Be- ra. Com frequência volto aos livros antigos
atles, ainda prensado nos Estados Unidos. e às músicas do passado; escolhas sempre
Depois a Odeon começaria a produzir os conectadas ao meu estado de espírito ou à
lançamentos brasileiros, e a beatlemania situação atual. Venho escutando os Beatles
se instalaria também no Brasil. Décadas de novo, além de Bob Dylan. Na literatura,
depois, assisto ao belo filme Yesterday, com Pablo Neruda (Confesso que Vivi) e Truman
Himesh Patel e Lily James. Ele faz o papel de Capote (Ensaios). E você?
Jack Malik, o único humano que se lembra
das músicas dos Beatles após um estranho
acontecimento cosmológico. O filme combi- EUGENIO MUSSAK
na comédia, love story, realismo fantástico diz que suas influências
e, claro, o êxtase das músicas dos Beatles. transparecem em seus mais
Mas a inverossímil história, escrita pelo de 300 artigos por aqui. E vão
roteirista neozelandês Richard Curtis, que continuar transparecendo.
também nos deu Notting Hill, Cavalo de @eugeniomussak
52
o u t r o s o l h a r e s
Almofada transcendental
Meditar não quer dizer esvaziar a mente, mas observá-la como
se pudesse me ver com os olhos de alguém _POR CRIS GUERRA
em abril de 2020, uma amiga me reco- ajuda a sair um pouco de mim e me ob-
mendou um curso online de meditação servar de fora. Nada de especial acontece.
transcendental. Isso mesmo, esse adjetivo Não alcanço a iluminação, muito menos a
polissílabo, recheado de consoantes. Para imortalidade. Mas encontro, no silêncio e
mim era óbvio que uma coisa dessa natu- na respiração pausada, um oásis para os
reza só poderia ser praticada por seres tão momentos difíceis.
cheios de sílabas quanto gente no mínimo Finalmente entendi que eu não precisava
extraordinária, formidável, espetacular. E esvaziar a mente, pobre de mim. Só preci-
eu era uma simples mortal, me sentindo sava observá-la com certa distância, sem
mais mortal do que nunca; não sabia o que me envolver tanto. Sabe aqueles momen-
temer mais, se morrer do vírus ou do isola- tos em que precisamos pedir emprestados
mento por prazo indeterminado. Se a men- os olhos de alguém que nos ame e conhe-
te é capaz de construir qualquer coisa com ça? Olhar de tão perto embaça e cansa a
o que não aconteceu, que dirá nestes tem- vista. Um bom amigo ou psicanalista aju-
pos de incerteza... Gigantescos moinhos de dam muito, embora sejam estratégias dife-
vento me arremessaram ao que parecia rentes, é bom que se diga.
impossível. Topei, por absoluto desespero. A gente pensa e pensa muito, pensa de-
A técnica criada em 1958 pelo mestre in- masiadamente. A meditação nos ajuda a
diano Maharishi Mahesh Yogi ganhou adep- assumir o papel do outro diante de tanta
tos como os Beatles. O nome remete ao la- imaginação. Distanciados, somos capazes
tim transcendere: atravessar, ultrapassar, de separar e desemaranhar o fio, para en-
transpor. Pronto, ferrou, foi o que pensei. fim relembrar que não somos os nossos
Mas a professora era linda, serena e muito pensamentos. “É preciso sair da ilha para
inteligente. Tratou de mostrar dados com ver a ilha”, disse Saramago. Viver nem sem-
os benefícios comprovados da prática, e pre é simples, mas meditar pode ser.
sem demora provou que sua calma era uma
conquista. Rapidamente soltamos o ar: que
alívio descobrir que ela era gente também. CRIS GUERRA
O segredo para começar foi uma almofa- é mãe, produtora digital,
da no colo durante a prática, minhas mãos podcaster e palestrante.
pousadas sobre ela como se fossem de ou- Lançou seu primeiro
tra pessoa. Incrível como assentar as mãos livro infantil, O Menino
em uma superfície separada do corpo me que Engoliu o Choro.
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c a m i n h o d a s v i r t u d e s
A virtude do discernimento
Ela nos ajuda a entender aquilo que queremos ou devemos
fazer, rumo a escolhas alinhadas ao nosso ser _POR GUSTAVO TANAKA
vivemos tempos difíceis. Parece-me cada Outra forma de praticar essa virtude é
vez mais delicado saber o que é verdade e compreender as minhas vontades e dese-
o que não é, quem está certo e quem está jos, e escolher se vou atendê-los ou não. Eu
equivocado, ou quem tem boas intenções penso que o ser humano é metade animal
e quem está tentando me manipular. Por e metade divino. Nossa metade animal se
isso, é fundamental desenvolver o discer- move por instinto e desejos carnais. A par-
nimento como uma virtude a ser praticada. te divina nos conecta com nossos atos mais
Hoje em dia, é muito fácil cair em julga- elevados. Assim, quando tenho uma vonta-
mentos e tentar encaixar algum fato numa de, me pergunto: “Eu posso fazer isso?” A
crença preestabelecida. Discernir é obser- resposta pode ser sim. Mas aí vou além e
var, compreender e escolher com a força pergunto: “Eu devo?” Esta sempre me aju-
da sua percepção. Observar cada situação da a chegar mais perto da ação correta, ali-
e informação e extrair o que existe de bom nhada com meu espírito.
e desconsiderar o que não é legal. Acredito que fazer escolhas é um dos
Um dos meus aprendizados do momento maiores desafios do nosso tempo. Dessa
tem sido separar conhecimento de com- forma, é fundamental que a gente se aper-
portamento. Como um bom aprendiz da feiçoe na capacidade de escolher. Escolher
vida, gosto de ir atrás de conhecimento e como uso meu tempo, o que consumo, como
aprender com diferentes pessoas. E, nessa gasto meu dinheiro, quando falo ou quando
caminhada, acabo encontrando muita gen- fico em silêncio, com quem quero conversar
te que tem bastante conhecimento, mas e com quem quero aprender. E a virtude do
que não necessariamente tem comporta- discernimento pode ser uma grande aliada.
mentos virtuosos. O meu comportamento Observar o mundo como ele é e se libertar
padrão era desqualificar a informação que das prisões da nossa mente que nos limi-
aquela pessoa tinha para transmitir caso tam e nos impedem de viver em plenitude.
pescasse na sua fala algum comentário
preconceituoso ou um comportamento
que eu não considerasse adequado. GUSTAVO TANAKA
Mas é aí que entra o problema. Meu jul- escreve sobre virtudes
gamento sobre a pessoa me impedia de todos os meses aqui
aprender o que ela tinha para ensinar. Dis- nesta coluna e sobre
cernir é fazer essa avaliação e separar o que masculinidades no portal
devo levar comigo do que devo deixar. vidasimples.co. @gutanaka
54
c l a r o i n s ta n t e
Os ventos da ansiedade
Em tempos tão tormentosos, momentos de observação interna
nos ajudam a encontrar a paz que habita o nosso ser _POR KAKÁ WERÁ
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a f e t o s
Paciência
Lidar com o tempo sem tanta ansiedade e com mais apreciação
é um belo aprendizado – difícil, mas necessário _POR ANA HOLANDA
aprendi a jogar paciência, no baralho, aos de mesa, abre o antigo baralho, coloca uma
17 anos. Foi meu pai quem me ensinou. Eu almofada na cadeira para não incomodar
havia acabado a escola, não tinha passado o quadril já calejado pela velhice e distri-
no vestibular – sequer sabia o que queria bui as cartas para si. Quando o jogo acaba,
fazer – e iria começar, em algumas sema- tudo se repete, numa incansável cadência,
nas, o cursinho preparatório. Aqueles dias que parece driblar os minutos, as horas, as
de espera pelas aulas foi o primeiro mo- rugas, os fios brancos.
mento em que me senti perdida. Havia dei- Eu, todas as noites, me sento na cama, dois
xado um lugar no qual me reconhecia, para travesseiros nas costas, e jogo. Paciência.
começar algo que não tinha a menor ideia Na mesma cadência e com o mesmo dese-
do que era. Isso foi em 1990. Não havia in- jo de driblar, da forma que consigo, o meu
ternet, TV a cabo ou qualquer outra distra- tempo. Ocupar as horas, os dias. Encontrar
ção rápida. A vida seguia um outro tempo, formas de preencher a minha incerteza.
aquele que decantava aos poucos para se Agora não tem a ver com o cursinho. É o
transformar, vagarosamente, em pensa- trabalho, são as escolhas. O baralho sim-
mentos passíveis de serem compreendidos. boliza a nossa espera. Estou aprendendo,
Então, jogar paciência foi a forma que en- aos poucos e com paciência (o sentimento
contrei para gastar meus minutos sem que e o jogo), a perceber que a vida se faz não
a ansiedade se tornasse protagonista. de acordo com as minhas vontades, neces-
Os anos se passaram e me vi novamente, sidades ou desejos. Mas com o tempo das
dias desses, jogando paciência. Viciada. Me coisas. Já para o meu pai, a espera é outra: a
repeti, diversas vezes, que seria melhor de- contagem dos dias. De vida. A que se esvai.
dicar minhas horas livres à leitura, a uma Uma contagem incomodamente regressiva.
série na TV. Mas o pensamento logo se des- Mas que, ainda assim, é preciso ser apre-
fazia. E lá estava eu de novo. Paciência. A ciada. Profundamente e com paciência.
diferença é que, dessa vez, troquei as cartas
reais pela virtual, na telinha do meu celular.
O jogo também é o passatempo predileto ANA HOLANDA
do meu pai, que, nos últimos meses, deixou começou a ler um
de lado a leitura dos livros para dedicar, livro para não ter
cada vez mais tempo, ao baralho – ele pre- o baralho como
fere as cartas de papel. Meu pai passa suas único passatempo.
manhãs na sala de casa. Estende a toalha @anaholandaoficial
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E NTR E NÓ S
LUCIANA PIANARO
Publisher e CEO da Vida Simples.
@lucianapianaro
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PO ESI A PA RA O DIA A D I A
@zackmagiezi
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NOSSO PROPÓSITO
NOSSOS VALORES
TER PEQUENAS ATITUDES SABER OUVIR, AGRADECER ABRIR ESPAÇO PARA O OUTRO.
COLABORA NA SOLUÇÃO E SORRIR PODE MODIFICAR O DIA JUNTOS SOMOS MAIS FORTES
S A I B A M A I S E M : V I D A S I M P L E S . C O / Q U E M -S O M O S /
NA PRÓXIMA EDIÇÃO
OS
EVENT
TA
CI
ÊN
ITA
PE
C
LIC URA
EX
PO
CO
RA
A U D IO
V IS U A NTENT
ED CO
TE
L BRAND
ENTÃO, SE VOCÊ ESTÁ EM BUSCA DE UM
CONTEÚDO PARA SUA EMPRESA QUE TENHA
IÇOS
/ CA
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