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São
Paulo: Perspectiva, 2007.
Introdução
Tal paradoxo é abordado pela autora por um viés que preocupou imensamente
Benjamin e que continua a preocupar a literatura e a história contemporâneas,
qual seja:
[...] o que é contar uma história? O que é contar a história? (O que isso
significa? Serve para alguma coisa e, se for o caso, para quê? Por que essa
necessidade, mas também, tantas vezes, essa incapacidade de contar? E qual
é esse prazer, que Platão denunciava como perigo, de escutar histórias, uma
história, a história?). (p.02)
Origem (Ursprung)
[...] “O Narrador” coloca alguns marcos tímidos para definir uma atividade
narrativa que saberia rememorar e recolher o passado esparso sem, no
entanto, assumir a forma obsoleta da narração mítica universal, aquilo que
Lyotard chamará de as grandes narrativas legitimantes. (p.62)
Com efeito, ao reler com atenção “O Narrador”, descobrimos que esse tema
essencial não é o da harmonia perdida [...]. Não se trata tanto de deplorar o fim
de uma época e de suas formas de comunicação quanto de detectar na antiga
personagem, hoje desaparecida, do narrador, uma tarefa sempre atual: a da
apokatastasis [...]. O que se opõe a essa tarefa de retomada salvadora do
passado não é somente o fim de uma tradição e de uma experiência
compartilhadas; mais profundamente, é a realidade do sofrimento, de um
sofrimento tal que não pode depositar-se em experiências comunicáveis, que
não pode dobrar-se à junção, à sintaxe de nossas proposições. Esse
sofrimento que a Primeira Guerra revelou (e que a Segunda devia levar ao seu
cume inonimável) não pode ser simplesmente contado, como gostariam de o
fazer acreditar estes romances de guerra que Benjamin rejeita no início de “O
Narrador”. (p.62-63)
Como descrever esta atividade narradora que salvaria o passado, mas saberia
resistir à tentação de preencher suas faltas e de sufocar seus silêncios? Qual
seria esta narração salvadora que preservaria, não obstante, a irredutibilidade
do passado, que saberia deixá-lo inacabado, assim como, igualmente, saberia
respeitar a imprevisibilidade do presente? Uma narração cuja dinâmica
profunda não deixa de lembrar esse movimento paradoxal de restauração e de
abertura que descreve o conceito benjaminiano de origem. (p.63)
Benjamin declara que foi difícil para esse sujeito “acostumado a ficar durante
anos em segundo plano” simplesmente “subir ao palco”. Este sujeito tímido,
continua Benjamin, não tentou protestar ou resistir, mas adotou os desvios do
ardil [...]. (p.74)
[...] o “eu” e o sujeito não são nem idênticos, nem intercambiáveis; não seria
correto confundir o sujeito com este pronome que só faz representá-lo perante
as instâncias do diálogo interpessoal, na oposição tão bem descrita por
Benveniste entre a primeira e a segunda pessoa. Poderíamos ainda nos
arriscar a dizer que esta dialética, no mínimo inabitual, [...] nos sugere que,
aqui, o sujeito é muito mais do que a sua expressão pessoal, que, portanto,
reduzi-lo a isto seria incorreto, como seria incorreto cair na armadilha (Attrape)
do “eu” – uma armadilha à qual Proust soube escapar daí também, segundo
Benjamin, a grandeza da Recherche. (p.74)
Com efeito, Benjamin insiste várias vezes na sua tentativa de captar, de reter
imagens nas quais uma experiência muito maior que o vivido consciente e
individual do narrador se depositou [...]. (p.80)
Proust tenta escapar ao tempo e à morte; Benjamin, por sua vez, busca uma
intensificação do tempo. O passado é salvo no presente porque nele o escritor
descobre os rastros de um futuro que a criança pressentia sem conhecê-lo.
Esta busca de um “futuro anterior” [...] acarreta um olhar sobre o passado, e,
em particular, sobre a infância, onde não há nada de idealizante ou de
estetizante, mas que é, arrisquemos a palavra, profundamente político.
Benjamin busca no passado os signos de uma promessa a respeito da qual ele
hoje sabe se o futuro a cumpriu ou não, a respeito da qual ele se pergunta se
cabe ainda ao presente realizá-la – ou se esta promessa está definitivamente
perdida. (p.89)
[...] o lembrar não visa a descrição do passado “como de fato foi”, mas a sua
retomada salvadora na história do presente. (p.90)