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TOMO I

Medicina de Família e Comunidade


Saúde da Criança e do Adolescente

ORGANIZADORES
Anamaria Cavalcante e Silva
Helena Maria Barbosa Carvalho
Jocileide Sales Campos
Tales Coelho Sampaio

Sociedade Cearense de Pediatria


Associação Cearense de Medicina de Família e Comunidade

Fortaleza, 2008
© 2008 Copyright by Anamaria Cavalcante e Silva,
Helena Maria Barbosa Carvalho, Jocileide Sales Campos e Tales Coelho Sampaio
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Todos os direitos reservados

Designer Gráfico
Roberto Santos

Projeto Gráfico e Capa


Angela Barros e Marcos Silveira

Ficha catalográfica
Carmem Araújo

Tiragem
200 exemplares

Impressão

Gráfica e Editora LCR Ltda.


Rua Israel Bezerra, 633 – Dionísio Torres – CEP 60.135-460
Fortaleza - Ceará
Telefone: 85 3272.7844 - Fax: 85 3272.6069
e-mail: atendimento@graficalcr.com.br

L7841 Livro do médico de família / organizadores Anamaria Cavalcante


e Silva, Helena Maria Barbosa Carvalho, Jocileide Sales
Campos, Tales Coelho Sampaio;
autores Maria Gurgel de Magalhães et al – Fortaleza : Gráfica
LCR
v. p. 562
ISBN - 978-85-86627-73-6
Conteúdo: Tomo I. Medicina de família e comunidade – saúde
da criança e do adolescente.

1. Medicina de Família. 2. Medicina de Família e Comunidade.


3. Saúde da Criança. 4. Saúde do Adolescente. I. Silva, Anamaria
Cavalcante e. II. Campos, Jocileide Sales. III. Carvalho, Helena
Maria Barbosa. IV. Título: Medicina de família e comunidade -
saúde da criança e do adolescente.

CDD – 610.696
Este livro é dedicado:

Ao Médico de Família, porque necessita aprimorar a


percepção desta nova prática.

À Família, porque... “é a instituição mais antiga e be-


néfica da humanidade. Antecede a Sociedade e o Es-
tado. Tem por origem e modelo a relação de amor e
união entre as pessoas...”
D. Luciano Mendes
Organizadores
anaMaria CavalCante e Silva JoCileide SaleS CaMpoS
Pediatra. Mestre em Saúde Pública pela Universidade Pediatra. Mestre em Saúde Pública pelo Istituto
Federal do Ceará. Doutora em Pediatria pela Faculda- Superiore di Sanità, Roma, Itália. Doutoranda em
de de Medicina da Universidade de São Paulo. Profes- Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da
sora Titular da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade
Norte e Faculdade Medicina Christus. Presidente da de Medicina Christus. Presidente do Departamento
Sociedade Cearense de Pediatria. Científico de Cuidados Primários da Sociedade Bra-
sileira de Pediatria.

Helena Maria BarBoSa CarvalHo taleS CoelHo SaMpaio


Pediatra Neonatologista. Mestre em Saúde da Crian- Médico de Família e Comunidade. Especialista em
ça e Adolescente pela Universidade Estadual do Ce- Medicina de Família e Comunidade. Pós-graduado em
ará. Doutoranda em Saúde Pública da Faculdade de Saúde da Família, Saúde do Idoso, Geriatria e Medici-
Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Profes- na de Família e Comunidade. Presidente da Associa-
sora da Faculdade de Medicina Christus. ção Cearense de Medicina de Família e Comunidade.

Comissão Editorial
Álvaro Jorge Madeiro leite JoCileide SaleS CaMpoS
Pediatra. Mestre em Epidemiologia Clínica pela Es- Pediatra. Mestre em Saúde Pública pelo Istituto
cola Paulista de Medicina / UNIFESP. Doutor em Superiore di Sanità, Roma, Itália. Doutoranda em
Pediatria pela Escola Paulista de Medicina / UNI- Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da
FESP. Professor Adjunto da Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade
da UFC. de Medicina Christus. Presidente do Departamento
Científico de Cuidados Primários da Sociedade Bra-
anaMaria CavalCante e Silva sileira de Pediatria.
Pediatra. Mestre em Saúde Pública pela Universidade
Federal do Ceará. Doutora em Ciências pela Faculdade JoSé eduilton girão
de Medicina da Universidade de São Paulo. Professo- Médico. Especialista em Clínica Médica pela AMB /
ra Titular da Faculdade de Medicina de Juazeiro do CFM. Membro da Academia Cearense de Medicina.
Norte e Faculdade de Medicina Christus. Presidente Membro e Fallow da American College of Physicians.
da Sociedade Cearense de Pediatria. Membro do Comitê de Clinica Médica da Secretaria
de Saúde do Estado do Ceará. Membro da Câmara
antônio Carlile Holanda lavor Técnica de Clínica Médica do Conselho Regional de
Médico Sanitarista. Ex-professor da Universidade Medicina do Ceará.
de Brasília. Docente da Escola de Saúde Pública
liduina de alBuquerque r. e SouSa
do Ceará.
Ginecobstetra. Especialista em ultrasonografia gineco-
lógica. Preceptora de Residência Médica em Ginecobs-
gilSon de alMeida Holanda
tetrícia do Hospital Geral Dr. César Cals. Mestranda em
Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria pela PUC-
Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará.
RS. Mestre em Saúde Pública pelo Istituto Supe-
riore di Sanità, Roma, Itália. Doutorando em Saúde taleS CoelHo SaMpaio
Pública da Faculdade de Saúde Pública da Univer- Médico de Família e Comunidade. Especialista em
sidade de São Paulo. Diretor da Escola de Saúde Pú- Medicina de Família e Comunidade. Pós-graduado em
blica do Ceará. Saúde da Família, Saúde do Idoso, Geriatria e Medici-
na de Família e Comunidade. Presidente da Associa-
Helena Maria BarBoSa CarvalHo ção Cearense de Medicina de Família e Comunidade.
Pediatra. Neonatologista. Mestre em Saúde da Crian-
ça e Adolescente pela Universidade Estadual do Ce- verôniCa Said de CaStro
ará. Doutoranda em Saúde Pública da Faculdade de Pediatra. Especialista em Perinatologia e Saúde Re-
Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Profes- produtiva. Mestre em Saúde Pública pela Universi-
sora da Faculdade de Medicina Christus. dade Estadual do Ceará.
Prefácio
Atenção Primária, Medicina promoção do suprimento de alimentos e nutrição
de Família e Comunidade adequada; abastecimento de água e saneamento
básico apropriados; atenção materno-infantil, in-
Paulo Marchiori Buss*
cluindo o planejamento familiar; imunização con-
tra as principais doenças infecciosas; prevenção e
controle de doenças endêmicas; tratamento apro-

A Atenção Primária à Saúde (APS) teve seu


apogeu político no final da década de 70,
quando foi consagrada como estratégia funda-
priado de doenças comuns e acidentes; e distri-
buição de medicamentos básicos. Mas, além disso,
preconizava a ‘ação intersetorial de enfrentamento
mental para que o mundo alcançasse ‘Saúde para dos determinantes sociais e ambientais da saúde’.
Todos no Ano 2000’ (SPT2000). Neste sentido, a Declaração de Alma-Ata
Na XXXI Assembléia Mundial da Saúde especificava que a APS ‘envolve não só o setor de
(MAS) de 1976, o então cinquentão médico dina- saúde, como também todos os setores e aspectos
marquês Halfdan Mahler, recém eleito Diretor relacionados ao desenvolvimento nacional e da
Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), comunidade, especialmente agricultura, criação
preocupado com o caminho da tecnificação cres- de animais, alimentação, indústria, educação,
cente com reduzidos resultados que tomavam habitação, serviço público, comunicação, dentre
os sistemas de saúde do mundo, e entusiasmado outros setores; e presume a coordenação de es-
com o que vira em viagem à China, com os ‘médi- forços entre todos esses setores’.
cos de pés descalços’, convenceu os países mem- Contudo, tais recomendações raramente fo-
bros a apoiarem o lançamento do lema SPT2000 ram convertidas em políticas eficazes; rapidamen-
e a convocarem uma conferência mundial para te uma versão em menor escala da atenção primária
discutir a forma de alcançar tal desiderato. à saúde, a ‘atenção primária seletiva’, disseminou-
Com o UNICEF, a OMS convocou então se. Esta enfatizava um pequeno número de inter-
a I Conferência Internacional sobre Cuidados venções de alta relação custo-benefício e atribuía
Primários de Saúde para realizar-se dois anos menor importância à dimensão social. O exemplo
depois (1978), em Alma Ata, no Cazaquistão, à mais representativo desta tendência foi a estraté-
época uma das repúblicas da URSS. gia GOBI (Growth monitoring [monitoramento do
Mais de 130 paises, cerca de 3000 delegados crescimento], Oral rehydration [hidratação oral],
e 67 organizações não-governamentais interna- Breastfeeding [aleitamento] e Immunization [Imu-
cionais acorrerram ao evento (estranhamente o nização]), dentro da ‘revolução pela sobrevivência
Brasil esteve ausente da Conferência), no qual a das crianças’, proposta pelo UNICEF.
APS é consagrada como a estratégia para alcançar SPT2000, a Conferência de Alma Ata e a
SPT2000. A APS que então foi aprovada tinha estratégia de APS constituem-se num dos mo-
características ‘abrangentes’. Recomendava a ado- mentos mais significativos da saúde pública
ção de um conjunto de oito ‘elementos essenciais’: mundial, na segunda metade do século XX e
educação dirigida aos problemas de saúde preva- exerceram enorme influência em quase todos os
lentes e métodos para sua prevenção e controle; sistemas de saúde do mundo. Também no Brasil,
certamente, onde diversas experiências de APS
*
Médico Pediatra e Sanitarista. Professor Titular da Escola Na- desenvolvem-se mais ou menos ao mesmo tem-
cional de Saúde Pública. Presidente da Fundação Oswaldo Cruz e
Membro Titular da Academia Nacional de Medicina. po, com destaque para os casos de Montes Claros,
Niterói, Londrina e Campinas e, no Ministério comunidade. Reunindo mais de 100 autores, quase
da Saúde, com o PIASS (Programa Integrado de todos oriundos da rica experiência de saúde públi-
Ações de Saúde e Saneamento), todas portado- ca e pediatria do estado, time reforçado por alguns
ras, contudo, de um genuíno ‘sabor nacional’. nomes de outros lugares, enfrentam a difícil tarefa
Este processo desemboca, no Brasil, na em mais de 60 capítulos, com mais de 550 páginas.
VIII Conferência Nacional de Saúde e na Cons- Tal como se preconiza, apresentam uma
tituição Federal de 1988, que consagram o SUS conceituação de saúde da família ‘ampliada’, na
como nossa principal política de inclusão social qual se conjugam APS como ‘nível de atenção’,
verdadeiramente nacional. no ambulatório e no domicílio, com a interação
Diante da devastadora influência do Banco com o conhecimento popular e a saúde pública
Mundial e outras agências do campo econômico num sentido mais amplo, que envolve desde o
sobre a saúde e a atenção médica na década de 90, complexo produtivo da saúde, até as vigilâncias
com as receitas de corte neo-liberal, privatização em saúde e a pesquisa para a geração de evidên-
dos sistemas e serviços de saúde, pacotes clínicos cias, a serem aplicadas no aperfeiçoamento do
mínimos e um extraordinário e proposital des- sistema. Uma APS com características brasilei-
conhecimento dos determinantes sociais da saú- ras de século XXI, diríamos!
de – mas também diante do rotundo fracasso de Na secção dedicada à ‘saúde da criança e do
tais recomendações – a APS renasce globalmente adolescente’ o debate parte da promoção da saúde
neste alvorecer de século XXI. Não só com a ins- e, nela, do papel da puericultura, incluindo os te-
talação da Comissão Global sobre Determinan- mas essenciais do crescimento e desenvolvimento,
tes Sociais da Saúde, em 2005, como com a clara alimentação e nutrição, passando pelas estratégias
definição da nova Diretora Geral da OMS, Mar- de prevenção, na qual o Brasil possui extraordiná-
gareth Chan, em restabelecer a primazia da APS ria experiência com os resultados alcançados pelo
na organização dos sistemas de saúde. Não ape- PNI no controle das doenças controláveis por
nas como ‘nível de atenção’, diríamos nós, mas imunizações. A seguir, numa seqüência lógica, o
por suas características ‘abrangentes’, como es- livro aborda de forma clara e consistente, os prin-
tratégia setorial para a mobilização inter-setorial cipais problemas que afetam a nossa população
para o enfrentamento das verdadeiras ‘causas das infantil e de adolescentes, caso das IRAs, pneu-
causas’, os determinantes sociais da saúde. monias, asma e outras pneumopatias, as doenças
O restante da história da APS no nos- gastro-intestinais e uma profusão de questões
so país, desde a Oitava, quase todos já sabem e clinicas e sociais da mais alta relevância: doenças
grande parte dela vem contada com muitos deta- infecto-parasitárias, câncer, saúde sexual e repro-
lhes nos capítulos que se seguem deste ‘Livro do dutiva, saúde mental, saúde bucal, trabalho infan-
Médico de Família’ brasileiro. Inclusive as expe- til, acidentes e violências Todas tratadas com ele-
riências vitoriosas do próprio estado do Ceará no gância e precisão, incluindo os aspectos de saúde
enfrentamento da mortalidade infantil na déca- individual e coletiva / comunitárias.
da de 80, quando pontificou a então secretária de Portanto, temos com este livro uma lacuna
estado da saúde, a pediatra Anamaria Cavalcante completada. E o Brasil dá mais um exemplo da for-
e Silva, minha querida colega de residência mé- ça do seu movimento da saúde coletiva, que hoje
dica no serviço de pediatria do nosso inesquecí- tanto chama a atenção do mundo, não só pela ori-
vel prof. Luiz Torres Barbosa, no Hospital dos ginalidade do nosso sistema de saúde, como pela
Servidores do Estado, no Rio de Janeiro. riqueza técnica e intelectual dos seus formulado-
Hoje, Anamaria e um grupo de bravos cole- res e atores, o que fica sobejamente comprovada
gas sanitaristas e pediatras do estado do Ceará lan- neste extraordinário ‘Livro do Médico de Famí-
çam este esperado livro de medicina da família e da lia’, de Anamaria Cavalcante e Silva e colegas.
Sumário
Seção 1
10. A construção de novas práticas em saúde
Medicina de Família e Comunidade da família a partir da interação com os
sujeitos populares
vera lúcia de azevedo dantas
andréa de souza Gonçalves Pereira
KilMa Wanderley loPes GoMes .................. 103
1. Família: do resgate histórico às
competências e cuidados 11. A pesquisa na medicina de família e
Maria GurGel de MaGalhães ......................... 21 comunidade
ricardo José soares Pontes
2. Programa Saúde da Família: história, alBerto novaes raMos Junior
princípios, desafios atuais e futuros renan MaGalhães MonteneGro Junior
luiz odorico Monteiro andrade alcides silva de Miranda ............................. 109
roBerto cláudio rodriGues Bezerra
ivana cristina Barreto................................... 31 12. A medicina de família e a tecnologia
da informação
3. Medicina de Família e Comunidade no
Marcello dala Bernardina dalla ............ 117
Brasil: uma aproximação do contexto
histórico 13. Complexo produtivo da saúde
José roBerto Pereira de souza ...................... 45 hésio cordeiro .............................................. 125
4. Competências do médico de família
aline Piol sá 14. Pacto pela saúde: União, Estado e
clóvis de souza BarBoza neto ...................... 53 Municípios
Jurandi Frutuoso silva................................. 135
5. Atenção ao paciente no contexto familiar
tatiana Monteiro Fiuza 15. Epidemiologia, história natural e
Marco túlio aGuiar Mourão riBeiro
prevenção de doenças
adriana valéria assunção raMos
Maria zélia rouquayrol
KilMa Wanderley loPes GoMes .................... 59
Moisés GoldBauM .......................................... 145
6. O Acolhimento e a Estratégia
Saúde da Família 16. Vigilância Epidemiológica
ana cecília silveira lins sucuPira ............... 67 cícera BorGes Machado
dina cortez liMa Feitosa villar............... 165
7. Atenção médica efetiva na prática da
Atenção Primária 17. Vigilância Sanitária e Ambiental
Marco túlio aGuiar Mourão riBeiro diana carMeM alMeida nunes de oliveira
tatiana Monteiro Fiuza ana auGusta Monteiro cavalcante ........... 187
KilMa Wanderley loPes GoMes .................... 81
18. Gestão e Economia de Saúde
8. Atenção Domiciliar na prática do Maria helena liMa sousa
médico de família vera Maria câMara coêlho
tales coelho saMPaio isaBel thoMaz dias ....................................... 199
tãnia de araúJo BarBoza ............................... 89

9. Planejamento das ações e práticas em 19. O futuro da medicina na Atenção Primária


Atenção Primária à Saúde: algumas reflexões a propósito da
Paola colares de BorBa Medicina de Família e Comunidade
roGério saMPaio de oliveira José roBerto Pereira de souza
yana Paula coelho correia saMPaio ........... 95 neuMa soBreira de oliveira .........................209
Coordenadores
antônio Carlile Holanda lavor taleS CoelHo SaMpaio
Médico Sanitarista. Ex-professor da Universidade Médico de Família e Comunidade. Especialista em
de Brasília. Docente da Escola de Saúde Pública do Medicina de Família e Comunidade. Pós-graduado em
Ceará. Saúde da Família, Saúde do Idoso, Geriatria e Medici-
na de Família e Comunidade. Presidente da Associa-
ção Cearense de Medicina de Família e Comunidade.

Colaboradores
adriana valéria aSSunção raMoS ana auguSta Monteiro CavalCante
Especialista em Medicina de Família e Comunidade Nutricionista. Graduada em Ciências da Nutrição pela
pela SBMFC/AMB. Preceptora de Medicina de Fa- Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Espe-
mília e Comunidade e Coordenadora da Regional IV cialista em Ciência da Nutrição e da Alimentação pela
da Residência de Medicina de Família e Comunidade Universidade do Estado de Ghent na Bélgica. Pesqui-
do Sistema de Saúde Escola de Fortaleza. Preceptora sadora Visitante (Visiting Research Fellow) na Unida-
do Internato de Saúde Comunitária da Universidade de de Saúde Pública e Nutrição da London School of
Federal do Ceará. 1ª Secretária da Associação Cea- Hygiene and Tropical Medicine em Londres – Ingla-
rense de Medicina Família e Comunidade. terra. Mestre em Ciências da Nutrição pelo Departa-
mento de Nutrição e Saúde da Universidade Federal
ana CeCília Silveira linS SuCupira de Viçosa – Minas Gerais. Doutoranda do Programa
Pediatra. Médica Sanitarista. Doutora em Ciências de Pós-Graduação em Cirurgia da Faculdade de Me-
pela Faculdade de Medicina da Universidade de São dicina da Universidade Federal do Ceará.
Paulo. Professora do Departamento de Pediatria da
Faculdade de Medicina da USP. antônio Carlile Holanda lavor
Médico Sanitarista. Ex-professor da Universidade de
andréa de Souza gonçalveS pereira Brasília. Docente da Escola de Saúde Pública do Ceará.
Pediatra. Especialista em Saúde da Família. Precep-
tora e Coordenadora da Residência de Medicina de
Família e Comunidade da Secretaria Municipal de CíCera BorgeS MaCHado
Saúde de Fortaleza. Médica Sanitarista. Técnica do Núcleo de Epidemio-
logia da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará.
alBerto novaeS raMoS Junior
Médico. Professor Assistente, Departamento de Saúde ClóviS de Souza BarBoza neto
Comunitária Faculdade de Medicina Universidade Fe- Médico. Especialista em Medicina de Família e Co-
deral do Ceará. Membro do Colegiado de Coordenação munidade. Secretário Geral da Associação Cearense
do Internato em Saúde Comunitária e da Residência de Medicina de Família e Comunidade. Residência
em Medicina de Família e Comunidade pela Univer- em Cirurgia Geral pelo Hospital Getúlio Vargas em
sidade Federal do Ceará. Diretor de Pesquisa da Asso- Recife/PE.
ciação Cearense de Medicina Família e Comunidade.
diana CarMeM a. n. de oliveira
aline piol SÁ
Farmacêutica. Mestre em Saúde da Comunidade.
Médica. Especialista em Medicina de Família e Co-
Coordenadora da Política de Vigilância Sanitária da
munidade. Diretora Científica e de Publicação da As-
Secretaria Estadual de Saúde do Ceará. Graduada em
sociação Cearense de Medicina de Família e Comuni-
Ciências Farmacêuticas pela Universidade Federal
dade. Diretora de Exercício Profissional da Sociedade
do Ceará. Especialista em Gestão de Sistemas de Saú-
Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
de pela Escola de Saúde Pública do Ceará. Mestrado
alCideS Silva de Miranda Community Healthy na Tropical Medicine School at
Médico. Professor Adjunto, Departamento de Saúde Liverpool na Inglaterra.
Comunitária, Faculdade de Medicina, Universidade
Federal do Ceará. Membro do Colegiado de Coorde- dina Cortez liMa FeitoSa villar
nação do Internato em Saúde Comunitária e da Resi- Médica Pediatra. Supervisora de Vigilância Epide-
dência em Medicina de Família e Comunidade pela miológica do Núcleo de Epidemiologia da Secretaria
Universidade Federal do Ceará. da Saúde do Estado do Ceará.
HéSio Cordeiro MarCo túlio aguiar Mourão riBeiro
Doutor em Medicina Preventiva pela Universidade Médico. Especialista em Medicina de Família e Co-
de São Paulo. Coordenador do Mestrado Profissional munidade. Vice-Coordendor Geral e Preceptor de
em Saúde da Família da Universidade Estácio de Sá. Medicina de Família e Comunidade da Residência
de Medicina de Família e Comunidade do Sistema
iSaBel tHoMaz diaS Saúde Escola de Fortaleza. Preceptor do Internato de
Economista. Especialista em Economia da Saúde. Saúde Comunitária da Universidade Federal do Cea-
Mestre em Gestão de Negócios Turísticos. Mestran- rá. Vice Presidente da Associação Cearense de Medi-
da em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde cina Família e Comunidade.
Pública. Gerente do Núlceo Administrativo e Finan-
ceiro da Escola de Saúde Pública do Ceará. Maria gurgel de MagalHãeS
Médica Pediatra. Mestranda em Saúde da Criança e
ivana CriStina Barreto do Adolescente pela Universidade Estadual do Ceará.
Médica. Doutora em Pediatria pela Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo. Mestre Maria Helena liMa SouSa
em Saúde Pública pela Universidade Federal do Economista. Mestre em Saúde Pública. Supervisora de
Ceará. Professora Assistente da Faculdade de Me- Economia da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará.
dicina da UFC.
Maria zélia rouquayrol
JoSé roBerto pereira de Souza Mestre em Epidemiologia pela Tulane University Lou-
Médico. Especialista em Medicina de Família e isiana, EUA. Doutora Livre-docente pela Universida-
Comunidade. Especialista em Ginecologia e Obste- de Federal do Ceará. Professora Titular do Departa-
trícia. Mestre em Saúde Pública pela Universidade mento de Saúde Comunitária da Universidade Federal
Federal do Ceará. Preceptor da Residência de Medi- do Ceará. Professora Emérita da Universidade Federal
cina de Família e Comunidade do Hospital Univer- do Ceará. Epidemiologista da Célula de Vigilância
sitário Walter Cantídio - UFC. Membro da Câmera Epidemiológica da Secretaria de Saúde de Fortaleza.
Técnica de Medicina de Família e Comunidade do
Conselho Regional de Medicina do Ceará. Diretor MoiSéS goldBauM
Financeiro da Associação Cearense de Medicina Fa- Professor. Doutor do Departamento da Medicina
mília e Comunidade. Preventiva da Faculdade de Medicina da Universi-
dade de São Paulo. Ex-consultor Nacional da Organi-
Jurandi FrutuoSo Silva zação Pan-Americana da Saúde (OPAS). Ex-coorde-
Médico. Especialista em Gestão de Sistemas Locais de nador da coordenação dos Institutos de Pesquisa da
Saúde Pública pela Escola de Saúde Pública do Ceará. Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.

KilMa Wanderley lopeS goMeS neuMa SoBreira de oliveira


Médica Pediatra. Especialista em Medicina de Fa- Médica Pediatra. Especialista em Medicina de Família
mília e Comunidade. Mestre em Saúde Pública pela e Comunidade. Mestranda em Administração Pública
Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do pela Universidade Estadual do Ceará. Diretora do Exer-
Programa de Residência em MFC/SMS/Fortaleza. cício Profissional da Sociedade Cearense de Medicina de
Diretora de Residência Médica da Associação Cea- Família e Comunidade. Médica do Programa de Saúde
rense de Medicina Família e Comunidade. da Família de Maracanaú e Intensivista da Unidade de
Terapia Intensiva Pediátrica do Instituto Dr. José Frota
luiz odoriCo Monteiro andrade de Fortaleza. Diretora de Exercício Profissional da As-
Médico. Doutor em Saúde Coletiva pela UNICAMP. sociação Cearense de Medicina Família e Comunidade.
Mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal
do Ceará. Professor Adjunto da Faculdade de Medi- paola ColareS de BorBa
cina da Universidade Federal do Ceará. Médica. Especialista em Medicina de Família e Co-
munidade. Especilista em Gestão de Sistemas Locais
MarCello dala Bernardina dalla de Saúde pela Escola de Saúde Pública do Ceará.
Médico. Especialista em Medicina de Família e Co- Mestre em Nutrição Humana em Saúde Pública pela
munidade. Mestre em educação pela Universidade London School of Hygiene and Tropical Medicine.
Regional de Blumenau – SC. Vice-presidente da SB- Coordenadora do Curso de Medicina da Faculdade
MFC. Coordenador do Internato de Saúde Coletiva de Medicina de Juazeiro do Norte e Professora de
da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Mi- Saúde da Família na mesma instituição. Técnica da
sericórdia de Vitória – ES (EMESCAM). Secretaria de Saúde do Estado do Ceará.
renan MagalHãeS Montenegro Junior tãnia de araúJo BarBoza
Médico. Professor Adjunto do Departamento de Médica. Especialista em Medicina de Família e Co-
Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina, Uni- munidade e em Medicina do Trabalho. Médica do
versidade Federal do Ceará. Coordenador Geral do Programa de Saúde da Família de Caucaia. Diretora
Internato em Saúde Comunitária e da Residência em de Comunicação da Associação Cearense de Medici-
Medicina de Família e Comunidade pela Universida- na de Família e Comunidade.
de Federal do Ceará.
tatiana Monteiro Fiuza
riCardo JoSé SoareS ponteS Médica. Especialista em Medicina de Família e Co-
Médico. Professor Adjunto do Departamento de Saú- munidade. Coordendora da Regional I e Preceptora
de Comunitária da Faculdade de Medicina, Univer- de Medicina de Família e Comunidade da Residência
sidade Federal do Ceará. Membro do Colegiado de de Medicina de Família e Comunidade do Sistema
Coordenação do Internato em Saúde Comunitária e Saúde Escola de Fortaleza. Preceptora do Internato
da Residência em Medicina de Família e Comunida- de Saúde Comunitária da UFC. Diretora de Pós-gra-
de pela Universidade Federal do Ceará. duação da Associação Cearense de Medicina Família
e Comunidade.
roBerto ClÁudio rodrigueS Bezerra
Médico. Doutor em Epidemiologia pela Universida- vera lúCia de azevedo dantaS
de do Arizona. Deputado Estadual do Ceará eleito Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadu-
em 2006. al do Ceará. Doutoranda em Educação pela UFC. Co-
ordenadora de Cirandas da Vida. Preceptora de Edu-
rogério SaMpaio de oliveira cação Popular no Programa de Residência em MFC/
Médico. Especialista em Medicina de Família e SMS/Fortaleza.
Comunidade. Professor da disciplina Saúde da
Família da Faculdade de Medicina de Juazeiro do vera Maria CâMara CoêlHo
Norte e Preceptor do internato em Medicina Co- Economista. Mestre em Saúde Pública. Secretária da
munitária na mesma instituição. Médico do PSF Comissão Intergestora Bipartite-Ceará.
de Juazeiro do Norte.
yana paula CoelHo Correia SaMpaio
taleS CoelHo SaMpaio Médica. Especialista em Medicina de Família e Co-
Médico de Família e Comunidade. Especialista em munidade. Professora da disciplina Saúde da Família
Medicina de Família e Comunidade. Pós-graduado em da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte. Pre-
Saúde da Família, Saúde do Idoso, Geriatria e Medici- ceptora e coordenadora do internato em Medicina
na de Família e Comunidade. Presidente da Associa- Comunitária na mesma instituição. Médica do Pro-
ção Cearense de Medicina de Família e Comunidade. gama de Saúde da Família de Juazeiro do Norte.
Sumário
Seção 2 28. Conduta para a proteção dos contatos
Saúde da Criança e do Adolescente com doenças transmissíveis
eliane cesário MaluF
Jocileide sales caMPos ..................................319

29. Infecções das vias aéreas superiores


verônica said de castro ...............................329
20. Puericultura na promoção da saúde
da criança 30. Pneumonia na infância
Jocileide sales caMPos álvaro JorGe Madeiro leite ........................343
anaMaria cavalcante e silva
João JoaquiM Freitas do aMaral ..................219 31. Bronquiolite viral aguda
Maria das Graças nasciMento e silva
21. Crescimento e desenvolvimento infantil álvaro JorGe Madeiro leite ........................351
Jocileide sales caMPos
álvaro JorGe Madeiro leite 32. Asma
anaMaria cavalcante e silva .......................233 Maria das Graças nasciMento e silva .........355

22. Assistência evolutiva na criança nos 33. Tuberculose na infância


seus primeiros dez anos de vida luiza vieira de castro
JayMe Murahovschi .......................................247 verônica said de castro ...............................361

23. Habilidades de comunicação na 34. Diarréia aguda


consulta com crianças sandra JoseFina Ferraz ellero Grisi
álvaro JorGe Madeiro leite ........................261 reGina lúcia Portela diniz .........................367

24. Alimentação da criança 35. Diarréia persistente


christiane arauJo chaves leite aMália Maria Porto lustosa
Juliana Barros Mendes GuilherMe Porto lustosa.............................373
rui Gouveia soares neto
reGina lúcia Portela diniz .........................271 36. Doença do Refluxo Gastro-esofágico
aMália Maria Porto lustosa
25. Avaliação do desenvolvimento infantil GuilherMe Porto lustosa.............................377
álvaro JorGe Madeiro leite
diva de lourdes de azevedo Fernandes .....283 37. Hepatites virais
christiane araúJo chaves leite
26. Atenção ao recém-nascido Juliana Barros Mendes
João osMiro Barreto roBério dias leite .........................................383
helena Maria BarBosa carvalho ................297
38. Dengue na criança
27. Vacinação – uma medida de proteção roBério dias leite
eliane cesário MaluF christiane araúJo chaves leite ..................389
Jocileide sales caMPos
nilce de Matos nunes 39. Leishmaniose visceral americana – Calazar
anaMaria calvalcante e silva......................305 Maria helena loPes cavalcante.................397
40. Meningites Bacterianas 51. Habilidades de comunicação e
roBério dias leite peculiaridades na consulta com
antônio Francelino de carvalho ................403 adolescentes
alMir de castro neves Filho .......................479
41. Adenopatia na criança e adolescente
Maria da conceição alves Jucá ....................403 52. Problemas clínicos mais comuns na
adolescência
42. Sinais e sintomas precoces: câncer na alMir de castro neves Filho .......................485
infância e adolescência
selMa lessa de castro ..................................415 53. Crescimento e desenvolvimento
do adolescente
43. Infecção urinária na criança e adolescente rita Maria cavalcante Brasil
álvaro JorGe Medeiro leite zenilda vieira Bruno ....................................489
Kathia liliane da cunha riBeiro zuntini.....421
54. Avaliação nutricional na adolescência
44. Glomérulo Nefrite Difusa Aguda alMir de castro neves Filho
pós-estreptocócica virGínia Maria costa de oliveira ................497
Kathia liliane da cunha riBeiro zuntini.....429
55. Aspectos psicossociais do
45. Síndrome nefrótica na infância desenvolvimento e da sexualidade
Kathia liliane da cunha riBeiro zuntini.....437
na adolescência
zenilda vieira Bruno ....................................507
46. Abordagem ginecológica da criança e do
adolescente – principais patologias 56. Saúde reprodutiva na adolescência
Maria de lourdes caltaBiano MaGalhães ....445 zenilda vieira Bruno ....................................513

47. Prevenção do Trabalho Infantil 57. Protagonismo juvenil


ana lúcia alMeida raMalho Francisca Maria oliveira andrade (tati).....521
João JoaquiM Freitas do aMaral ..................453
58. Saúde mental da criança e do adolescente:
48. Prevenção de Acidentes na Infância
principais quadros clínicos e abordagens
antônio carvalho da Paixão
João JoaquiM Freitas do aMaral ..................459 terapêuticas

Gilson holanda de alMeida


49. Assistência multidisciplinar às vítimas
Marcela de cavalcante alMeida.................527
de violência
Maria de lourdes caltaBiano MaGalhães
Maria de FátiMa raBelo Gadelha 59. Doenças da pele na criança e no
luciana saMPaio dióGenes roliM adolescente
veranísia daMasceno rocha tânia Maria Poti sales
rosane Morais Falcão queiroz....................463 hélio alexandrus WaGner Poti sales........533

50. Atenção integral à saúde do adolescente 60. Serviço de Atenção Domiciliar – SAD
alMir de castro neves Filho luís carlos reBouças de França
Francisca leonete BorGes de alMeida cristiane rodriGues de sousa .......................545
helena Fernandes Guedes raFael
Maria antonildes daMasceno caxilé .........471 61. Saúde Bucal
leni lúcia leal noBre
caroline Ferreira Martins lessa ................551
Coordenadores
Álvaro Jorge Madeiro leite alMir de CaStro neveS FilHo
Pediatra. Mestre em Epidemiologia Clínica pela Es- Pediatra. Professor de Pediatria da Faculdade de Me-
cola Paulista de Medicina / UNIFESP. Doutor em dicina da Universidade Federal do Ceará. Médico do
Pediatria pela Escola Paulista de Medicina / UNI- Hospital Infantil Albert Sabin, da Secretaria de Saú-
FESP. Professor Adjunto da Faculdade de Medicina de do Estado do Ceará. Especialista em Medicina do
da UFC. Adolescente. Mestre em Saúde Pública. Doutorando
em Pediatria. Coordenador do Ambulatório de Ado-
lescentes do Hospital Universitário Walter Cantídio,
da Universidade Federal do Ceará.

Colaboradores
alMir de CaStro neveS FilHo antônio CarvalHo da paixão
Pediatra. Professor de Pediatria da Faculdade de Me- Doutor. Professor adjunto do Departamento de Me-
dicina da Universidade Federal do Ceará. Médico do dicina da Faculdade de Medicina da Universidade
Hospital Infantil Albert Sabin, da Secretaria de Saú- Federal de Sergipe, Aracajú-SE.
de do Estado do Ceará. Especialista em Medicina do
Adolescente. Mestre em Saúde Pública, Doutorando antônio FranCelino de CarvalHo
em Pediatria. Coordenador do Ambulatório de Ado- Médico Residente de Infectologia Pediátrica do Hos-
lescentes do Hospital Universitário Walter Cantídio, pital Universitário Walter Cantídio da Universidade
da Universidade Federal do Ceará. Federal do Ceará.

Álvaro Jorge Madeiro leite Caroline Ferreira MartinS leSSa


Pediatra. Mestre em Epidemiologia Clínica pela Esco- Dentista formada pela Universidade de Fortaleza.
la Paulista de Medicina / UNIFESP. Doutor em Pedia- Mestrado em Vigilância em Saúde pela Escola Nacio-
tria pela Escola Paulista de Medicina / UNIFESP. Pro- nal de Saúde Pública - FIOCRUZ. Especialista em
fessor Adjunto da Faculdade de Medicina da UFC. Odontologia em Saúde Coletiva.

aMÁlia Maria porto luStoSa CHriStiane araúJo CHaveS leite


Pediatra. Especialista em Gastroenterologia Pediátrica. Pediatra. Professora Assistente de Pediatria do
Mestre em Farmacologia pela Universidade Federal Departamento de Saúde Materno – Infantil da
do Ceará. Preceptora da Residência Médica do Hospi- Faculdade de Medicina da Universidade Federal
tal Infantil Albert Sabin. Coordenadora do Serviço de do Ceará. Habilitação em Gastroenterologia e Nu-
Gastropediatria do Hospital Infantil Albert Sabin. trologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira de
Pediatria.
ana lúCia de alMeida raMalHo
Pediatra. Coordenadora da Comissão de Atendimen- CriStiane rodrigueS de Souza
to, Identificação e Prevenção de Maus Tratos contra Pediatra. Especialista em Nutrição Clínica na In-
crianças do Hospital Infantil Albert Sabin. Mestre fância pela Universidade Estadua do Ceará. Coor-
em saúde da criança e do adolescente pela Universi- denadora Médica do Programa de Assistência Ven-
dade Estadual do Ceará. tilatória Domiciliar - PAVD do Hospital Infantil
Albert Sabin.
anaMaria CavalCante e Silva
Pediatra. Mestre em Saúde Pública pela Universi- diva de lourdeS de a. FernandeS
dade Federal do Ceará. Doutora em Ciências pela Pediatra. Residência Médica no Hospital Infantil Al-
Faculdade de Medicina da Universidade de São bert Sabin.
Paulo. Professora Titular da Faculdade de Medi-
cina de Juazeiro do Norte e Faculdade de Medici- eliane CeSÁrio MaluF
na Christus. Presidente da Sociedade Cearense de Pediatra. Professora adjunta da Disciplina de Aten-
Pediatria. ção Primária à Saúde - Departamento de Clínica Mé-
dica – Universidade Federal do Paraná. Professora da
Disciplina de Saúde da Família - Curso de Medicina
- Unicenp, Curitiba-PR.
FranCiSCa leonete BorgeS de alMeida (DF). Título de Especialista em Neonatologia. Mestre
Enfermeira. Supervisora do Núcleo de Atenção à em Pediatria pela Universidade Estadual do Ceará.
Saúde do Adolescente da Secretaria de Saúde do Es-
tado do Ceará. Especialista em Educação em Saúde JoCileide SaleS CaMpoS
Pública. Mestranda em Saúde Pública. Pediatra. Mestre em Saúde Pública pelo Istituto
Superiore di Sanità, Roma, Itália. Doutoranda em
FranCiSCa Maria o. andrade (tati) Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da
Pediatra. Mestre em Saúde Pública pela Universida- Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade
de Federal do Ceará. Oficial de Projetos do UNICEF. de Medicina Christus. Presidente do Departamento
Professora licenciada da Faculdade de Medicina de Científico de Cuidados Primários da Sociedade Bra-
Juazeiro do Norte – FMJ. sileira de Pediatria.

gilSon Holanda de alMeida Juliana BarroS MendeS


Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria pela PUC-RS, Médica Residente de Gastroenterologia Pediátrica
Mestre em Saúde Pública pelo Istituto Superiore di do Hospital Universitário Walter Cantídio da Uni-
Sanità, Roma, Itália. Doutorando em Saúde Pública da versidade Federal do Ceará
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo. Diretor da Escola de Saúde Pública do Ceará. KatHia liliane da C. riBeiro zuntini
Pediatra Nefrologista. Mestranda em Saúde da Crian-
guilHerMe porto luStoSa ça e do Adolescente pela Universidade Estadual do
Aluno do Curso de Medicina da Faculdade de Medi- Ceará. Preceptora da Residência Médica do Hospital
cina de Juazeiro do Norte-Ce. Infantil Albert Sabin, Fortaleza-Ce. Diretora Clínica
do Instituto do Rim Ltda – Hemodiálise e Diálise
Helena FernandeS guedeS raFael Peritoneal.
Economista. Assessora técnica da Escola de Saúde
Pública do Ceará. Mestre em Planejamento e Avalia- leni lúCia leal noBre
ção de Políticas Públicas Odontóloga. Especialista em Gestão de Sistemas Lo-
cais de Saúde. Mestre em Educação em Saúde. Dou-
Helena Maria BarBoSa CarvalHo toranda em Saúde Pública. Docente da Faculdade de
Pediatra Neonatologista. Mestre em Saúde da Crian- Medicina de Juazeiro do Norte da disciplina Saúde
ça e Adolescente pela Universidade Estadual do Ce- da Família e da Escola de Saúde Pública do Ceará.
ará. Doutoranda em Saúde Pública da Faculdade de
Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Profes- luCiana SaMpaio diógeneS roliM
sora da Faculdade de Medicina Christus. Psicóloga. Especialista em criança e adolescente pela
Universidade de Fortaleza. Psicóloga Clínica do Cen-
Helio alexandruS Wagner poti SaleS tro de Desenvolvimento Humano. Psicóloga e Asses-
Médico graduado pela Faculdade de Ciências Médi- sora Técnica do Núcleo Estadual de Enfrentamento à
cas da Universidade de Pernambuco. Violência contra Crianças e Adolescentes/Ceará - res-
ponsável pelo Setor de Capacitação.
JayMe MuraHovSCHi
Pediatra. Doutor em Medicina pela Faculdade de Me- luiS CarloS reBouçaS França
dicina da Universidade de São Paulo. Livre-docente Coordenador Médico do Programa de Assistência
de Pediatria Clínica pela Escola Paulista de Medi- Domiciliar (PAD) do Hospital Infantil Albert Sabin
cina. Membro da Academia Brasileira de Pediatria. de Fortaleza desde Julho de 2000. Pediatra do Hos-
Prêmio Nacional de Comunicação Médica. pital Infantil Albert Sabin de Fortaleza. Especialista
em Pediatria pela Sociedade Brasileira Pediatria e
João JoaquiM FreitaS do aMaral Associação Médica Brasileira. Residência Médica na
Mestre. Professor assistente do Departamento de Especialidade de Pediatria no Hospital dos Servido-
Saúde Materno Infantil da Faculdade de Medicina res do Estado do Rio de Janeiro.
da Universidade Federal do Ceará. Coordenador do
Núcleo de Ensino, Assistência e Pesquisa da Infância luiza vieira de CaStro
Cesar Victora, Fortaleza- CE. Pediatra. Mestre em Pediatria pela Universidade de
São Paulo/Ribeirão Preto. Título de Especialista em
João oSMiro Barreto Pediatria pela Sociedade Brasileide de Pediatria. Tí-
Pediatra Neonatologista. Residência Médica em Pe- tulo de Especialista em Pneumologia Pediátrica pela
diatria no Hospital das Forças Armadas em Brasília Associação Médica Brasileira.
MarCela de CavalCante alMeida Preceptora da Residência Médica do Hospital Infan-
MD, Universidade de Chicago, Illinois. Programa de til Albert Sabin. Supervisora da Residência Médica
Neuro-Ciências. do Hospital Infantil Albert Sabin.

Maria antonildeS daMaSCeno Caxilé nilCe de MatoS nuneS


Enfermeira do Núcleo de Atenção à Saúde do Ado- Coordenadora Estadual de Imunizações da Secreta-
lescente da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará. ria da Saúde do Estado do Ceará.
Especialista em Adolescência.
regina lúCia portela diniz
Maria da ConCeição alveS JuCÁ Pediatra. Mestre em Saúde da Criança e do Adoles-
Pediatra. Mestre em Saúde da Criança e do Adoles- cente pela Universidade Estadual do Ceará. Douto-
cente pela Universidade Estadual do Ceará. Título randa em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde
de Espcialista em Pediatria pela Sociedade Brasileira Pública da Universidade de São Paulo. Presidente do
de Pediatria. Coordenadora da Unidade de Pediatria Departamento Científico de Cuidados Hospitalares
Geral do Hospital Infantil Albert Sabin. Preceptora da Sociedade Brasileira de Pediatria.
de Residência do Hospital Infantil Albert Sabin.
rita Maria CavalCante BraSil
Maria daS graçaS naSCiMento e Silva Pediatra. Professora de Pediatria da Faculdade de
Pediatra Alergista e Imunologista. Mestre em Pedia- Medicina da Universidade Federal do Ceará. Mestre
tria pela UNICESP / Escola Paulista de Medicina. em Saúde Materno Infantil e Doutora em Pediatria.
Especialista em Pediatria. Especialista em Alergia e Coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas do
Imunologia. Professora Assistente de Medicina da Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (NU-
Criança e do Adolescente da Faculdade de Medicina TEP), da Universidade Federal do Ceará. Coorde-
de Juazeiro do Norte (CE). nadora dos Cursos de Especialização em Desenvol-
vimento Infantil e em Audiologia do Departamento
Maria de FÁtiMa raBelo gadelHa de Saúde Materno Infantil, da Universidade Federal
Assistente Social. Coordenadora das Ações Interseto- do Ceará.
rias da Secretaria da Ação Social do Estado do Ceará.
Especialista em Planejamento e Gestão de Políticas roBério diaS leite
Públicas. Professor Assistente de Pediatria do Departamento
de Saúde Materno – Infantil da Faculdade de Medi-
Maria de lourdeS C. MagalHãeS cina da Universidade Federal do Ceará. Habilitação
Médica Ginecologista e Obstetra – TEGO. Mestre em Infectologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira
pelo Departamento de Obstetrícia da Escola Pau- de Pediatria.
lista de Medicina da Universidade Federal de São
Paulo. Fellow of the International Federation of roSane MoraiS FalCão queiroz
Pediatric and Adolescent Gynecology –FIGIJ. Do- Bacharel em Ciências Sociais. Especialização em
cente Brasileiro do “Curso de Atualização em Gine- Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes/
cologia Pediátrica e da Adolescência” FEBRASGO/ Instituto de Psicologia/Lacri/USP.
Universidade do Chile. Pós-Graduada pelo “Con-
sejo Superior de la Universidad de Buenos Aires”, rui gouveia SoareS neto
“Sociedad Argentina de Ginecologia Infanto Ju- Residência Médica em Pediatria pelo Hospital Uni-
venil”, Argentina. Especialista em Violência Do- versitário Walter Cantídio - UFC. Preceptor da Resi-
méstica contra Crianças e Adolescência – LACRI dência de Medicina de Família da Prefeitura Muni-
– Universidade de São Paulo. Especialista em Edu- cipal de Fortaleza.
cação Sexual – Sociedade Brasileira de Sexualida-
de Humana. Coordenadora Estadual do Núcleo de Sandra JoSeFina Ferraz ellero griSi
Enfrentamento à Violência contra Crianças e Ado- Professora Titular do Departamento de Pediatria da
lescentes – Secretaria de Ação Social do Estado do Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Ceará. Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de
Obstetrícia e Ginecologia da Infância e da Adoles- SelMa leSSa de CaStro
cência – SOGIA-BR. Pediatra Onco-Hematologista. Doutora em Medici-
na pela Universidad Autonôma de Barcela / Espanha.
Maria Helena lopeS CavalCante Título de Especialista em Cancerologia Pediátria
Pediatra. Mestranda do Curso de Mestrado Profis- pela Associação Médica Brasileira. Coordenadora do
sionalizante da Saúde da Criança e do Adolescente. Serviço de Onco-Hematologia do Hospital Infantil
Albert Sabin. Professora Convidada do Mestrado em virgínia Maria CoSta de oliveira
Saúde da Infância e Adolescência da Universidade Nutricionista. Especialista em Educação e Saúde
Estadual do Ceará. Pública - UNIFOR. Mestre em Avaliação de Políti-
cas Públicas - UFC. Técnica da Secretaria de Saúde
tânia Maria poti SaleS do Estado / Escola de Saúde. Professora da Discipli-
Médica. Especialista em Dermatologia, Medicina So- na Saúde Pública do Curso Ciência da Nutrição da
cial e Preventiva e Nutrologia. Mestre em Dermato- UNIFOR.
logia pela UFF - Universidade Federal Fluminense.
Coordenadora da Pós-graduação em Dermatoses de zenilda vieira Bruno
Interesse Sanitário da Escola de Saúde Pública do Professora de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade
Estado do Ceará. de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Mes-
tre em Medicina e Doutora em Ginecologia. Coorde-
veraníSia daMaSCeno roCHa nadora do Serviço de Adolescência da Maternidade
Assistente Social. Especialista em Saúde Pública. Escola Assis Chateaubriand, da Universidade Fede-
Especialista em Abordagem Sistêmica da Família. ral do Ceará. Diretora da Maternidade Escola Assis
Assessora Técnica do Núcleo Estadual de Enfrenta- Chateaubriand, da Universidade Federal do Ceará.
mento à Violência contra Crianças e Adolescentes/
Ceará – responsável pela administração Master of
Art - Education Midia – Universidade do Missis-
sipi - USA.

verôniCa Said de CaStro


Pediatra. Especialista em Perinatologia e Saúde Re-
produtiva pela Escola de Saúde Pública do Ceará.
Mestranda em Saúde Pública pela Universidade Es-
tadual do Ceará.
Seção 1
Medicina de Família
e Comunidade
Capítulo 1
Família: do resgate histórico Morgan, apud Engels7, documentou uma
às competências e cuidados ordem precisa de desenvolvimento da pré-his-
tória da humanidade, e sua classificação perma-
Maria GurGel de MaGalhães
necerá certamente em vigor até que dados mais
consistentes nos obriguem a modificá-la. As três
“Los doctores son hombres que prescriben medicinas que
conocen poco, curan enfermedades que conocen menos, en seres épocas principais são: estado selvagem, barbárie
humanos de los que no saben nada.” voltaire (1694-1778)
e civilização. Épocas de progresso da humani-
dade que coincidem, de modo mais ou menos
direto, com as épocas em que se ampliaram as
Introdução fontes de existência.
Para Morgan, do estado primitivo de

E ste capítulo objetiva compreender a origem


da família, o seu papel e as suas transfor-
mações temporais. Induz à reflexão sobre o tra-
promiscuidade, provavelmente bem cedo, for-
maram-se a família: consangüínea, punaluana,
sindiásmica e monogâmica.
balho com a família e para a família dentro de
uma percepção sistêmica do seu funcionamento,
como modelo em atenção básica, tendo como lo- A família consangüínea
cal primordial de atuação o seu habitat.
Discute-se ainda, as estratégias de aborda- Nessa forma de família, os ascendentes e
gem dos profissionais da saúde no PSF e suas vin- os descendentes, os pais e os filhos, são os únicos
culações com as famílias, valorizando os cuidados que, reciprocamente, estão excluídos do matri-
não limitados às práticas pontuais e curativas. mônio. Irmãos e irmãs, primos e primas, em pri-
meiro, segundo e outros graus, são todos, entre
si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo maridos e
Origem da família, resgate histórico mulheres uns dos outros.

Os comentários históricos sobre a família


são baseados nos estudo de Engels7 em A Origem A família punaluana
da Família, da Propriedade Privada e do Estado, ao
discorrer sobre as formas primitivas da família, Nessa fase a organização da família con-
apoderando-se principalmente do que escreveu sistiu em excluir também os irmãos das relações
Bachofen em o Direito Materno (1861) e Morgan sexuais recíprocas. Foi um passo muito impor-
em A Sociedade Antiga (1877). tante e difícil, dada a igualdade das idades dos
Segundo Bachofen, apud Engels7, primi- participantes. Cada família primitiva teve que se
tivamente, os seres humanos viviam em pro- separar, a partir de algumas gerações.
miscuidade sexual (heterismo); estas relações
impediam estabelecer a paternidade. A filiação
era definida por linhagem feminina. Como con- A família sindiásmica
seqüência, as mulheres eram os únicos proge-
nitores conhecidos tendo, assim, o domínio e o O homem vivia com uma mulher, e a ele
respeito (ginecocracia). era permitida a poligamia, embora observada ra-

21
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

ramente, por causas econômicas, e terminante- E ainda Engels7 cita o que Morgan relata
mente proibida às mulheres. O vínculo conjugal sobre o progresso da evolução da família:
era frágil, podendo ser desfeito sem dificuldade
“Se reconhece o fato de que a família tenha
por qualquer uma das partes e a guarda dos fi- atravessado sucessivamente quatro formas e se
lhos era da mãe. O matrimônio não era indis- encontra atualmente na quinta forma, coloca-se
a questão de saber se esta forma pode ser du-
solúvel, mas pressupunha a fidelidade. Surgiu
radoura no futuro. A única coisa que se pode
nessa fase uma inovação: junto à mãe foi posto responder é que a família deve progredir na
o verdadeiro pai. Temos ainda nessa fase o des- medida em que progrida a sociedade, que deve
modificar-se na medida em que a sociedade se
moronamento do direito materno e a mulher modifique; como sucedeu até agora. A família
reduzida a instrumento de luxúria do homem e é produto do sistema social e refletirá o estado
reprodução. de cultura desse sistema. Tendo a família mo-
nogâmica melhorado a partir dos começos da
civilização e, de uma maneira muito notável,
nos tempos modernos, é lícito pelo menos su-
A família monogâmica por que seja capaz de continuar seu aperfeiçoa-
mento até que chegue à igualdade entre os dois
sexos. Se, num futuro remoto, a família mono-
A família monogâmica baseia-se na supre- gâmica não mais atender às exigências sociais,
é impossível predizer a natureza da família que
macia masculina. A finalidade da família é pro-
lhe sucederá”.
criar dentro de um padrão em que a paternidade
é indiscutível. Aqui o matrimônio é sólido e só
pode ser rompido pelo homem. Ao homem, con-
A família e sua evolução psico-social
cede-se o direito à infidelidade conjugal (Código
de Napoleão). A mulher infiel é castigada. A mu-
De acordo com Rodrigues21, abordando a
lher legítima deve ser casta e fiel. A monogamia
análise de Roudinesco22, destacam-se três formas
só para a mulher e a existência da escravidão são
de organização familiar em períodos diferentes.
características marcantes dessa fase, o que propi-
A primeira é tradicional, pautada na preocupa-
ciou a figura da mulher abandonada e conseqüen-
ção da transmissão do patrimônio o que vem ao
temente o inevitável surgimento do adultério.
encontro da nota de Engels7:
Para resolver o problema da paternidade o Código
de Napoleão dispôs em seu artigo 312: “L´enfant “Em toda a antigüidade, são os pais que combi-
nam os casamentos, em vez dos interessados; e
conçu pendant le mariage a pour père le mari. estes conformam-se, tranqüilamente. O pouco
(“O filho concebido durante o matrimônio tem amor conjugal que a antigüidade conhece não é
por pai o marido). Nesse período surge ainda um uma inclinação subjetiva, e sim, mais concreta-
mente, um dever objetivo; não é a base, e sim o
elemento novo: o amor sexual individual. complemento do matrimônio. O amor, no sen-
A monogamia foi a primeira forma de fa- tido moderno da palavra, somente se apresenta
mília acostado em condições não naturais, pri- na antigüidade fora da sociedade oficial”.

mitivas e sim tendo como base o interesse eco-


nômico e a propriedade privada. Em um segundo momento, a família passa
Estabelecendo uma relação das três princi- a ser construída como fruto do amor romântico. E
pais formas de matrimônio com os três estágios posteriormente, a família moderna, contemporâ-
fundamentais da evolução humana, temos que: ao nea ou pós-moderna, baseia-se no amor e no pra-
estado selvagem, corresponde o matrimônio por zer, tendo como característica a transitoriedade.
grupos; à barbárie, o matrimônio sindiásmico; e à No relato da mesma autora, a mulher
civilização, a monogamia. Concomitante à mono- emancipou-se progressivamente a partir do final
gamia desponta o adultério e a prostituição. do século XVIII, através de movimentos femi-
nistas políticos e no campo da sexualidade. Ao

22
Capítulo 4 • Família: do resgate histórico às competências e cuidados

dissociar o prazer da finalidade de procriação, • Os membros da família não são substituíveis


deixou de ser apenas esposa e mãe e foi se indi- por pessoas melhores qualificadas, o que motiva
vidualizando. A incorporação tecnológica possi- os programas de adoção trabalharem no sentido
bilitou o controle do número de filhos e a for- de manter os filhos da mesma família unidos;
mação das famílias sem a necessidade do coito, o • Os vínculos familiares são estabelecidos atra-
que ensejou a formação de uma gama crescente vés de afeto, relações biológicas, políticas e
de diferentes tipos de casamentos. históricas, e não em cláusulas contratuais.
A mudança do desenho familiar passou Não são escolhidos, salvo os casos de adoção;
a ser instituição acessível também aos homos- • Na família, a relação de intimidade ocorre por
sexuais até então excluídos. E a partir dos anos existir confiança, e, nesse processo, reconhe-
sessenta passaram também a reivindicar o direi- ce-se no outro a responsabilidade para poder
to a paternidade/maternidade. lidar com segurança com as informações;
Segundo Ariès3, por longo período, as crian- • A geração de filhos acarreta vínculos e respon-
ças eram confundidas com jovens adultos. Do sé- sabilidades, principalmente no inicio da vida;
culo XVI ao XVIII surge um sentimento de fa- • A família é a primeira comunidade moral que
mília, a criança conquistou um lugar junto a seus a maioria das crianças freqüenta;
pais, principalmente nas classes privilegiadas, e as • Os membros de uma família são sempre in-
famílias passam a se organizar em um ambiente fluenciados pela história de seus familiares;
mais íntimo consolidando a separação entre o pú- • Nas famílias, as ações motivadas por dever
blico e o privado. O autor se expressa assim: “a têm menos significado que as motivadas por
criança tornou-se um elemento indispensável da amor. A nossa percepção sobre a motivação
vida quotidiana, e os adultos passaram a se preo- das pessoas pode alterar a nossa avaliação so-
cupar com sua educação, carreira e futuro. Ela não bre as mesmas e suas ações.
era ainda o pivô de todo sistema, mas tornara-se
uma personagem muito mais consistente.” Aristóteles4, na Ética a Nicômacos, afir-
Roudinesco22 lembra que a família “aparece mava que, entre pessoas íntimas, as intenções
em condições de se tornar um lugar de resistência contam muito.
à tribalização orgânica da sociedade globalizada”,
mas ressalta ainda que para tanto a família do fu-
turo precisa ser continuamente reinventada. Família, qual o modelo atual?

“Família é o organismo formado por todas


A Família e sua repercussão na bioética aquelas pessoas ligadas por um vínculo de sangue,
ou seja, todas as pessoas provindas de um tronco
As relações familiares entremeiam-se com ancestral comum,” segundo Freire em Repensan-
a bioética em áreas como: o procedimento de re- do a Família (2002), apud Silva & Santos23.
produção assistida, a doação de gametas, a ma- Segundo Gomes e Pereira11, “a família
ternidade substitutiva; o processo de tomada de constitui-se em uma entidade a situar e legiti-
decisão (nascimento e morte), a autorização para mar o indivíduo em seu espaço social. A família
a realização de procedimentos, participação em é um valor, e, como tal, uma referência essencial
projetos de pesquisa, dentre outros que repercu- para a construção da identidade do indivíduo”.
tem na bioética. A globalização da economia e os ajustes
Um elenco de sete aspectos fundamentais econômicos têm empobrecido a família brasi-
foi destacado por Nelson e Nelson16: leira, modificando sua estrutura, suas relações,

23
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

papéis e representações sociais. As relações de No Brasil, segundo Freyre9, em Casa


poder intrafamiliares sofreram modificações, Grande & Senzala, a família brasileira foi cons-
com divisão de trabalho entre homem e mulher, tituída a partir de 1532, de famílias rurais e se-
adultos e jovens, para garantir a sobrevivência mi-rurais, quer através de gente casada vindo do
e o aparecimento crescente do chefe de família reino, quer das famílias aqui constituídas pela
feminino. Vários são os arranjos familiares, com união dos colonos com mulheres caboclas ou
substituição da família nuclear por mãe e filhos; com moças órfãs ou mesmo à-toa, mandadas vir
unidades familiares múltiplas ou ampliadas com de Portugal pelos padres casamenteiros.
agregados12. Temos, portanto, uma família con-
temporânea, bastante dinâmica, o casal parental
nunca se separa. O casal sexual se separa. A Família e o Programa Saúde da Família
A família é um sistema em constante
transformação. As ligações familiares sofrem in- A Organização Mundial de Saúde e o UNI-
fluências socioeconômico-culturais, dos meios CEF adotaram como estratégia de promoção de
de comunicação, como a televisão e a internet. saúde e desenvolvimento infantil, fortalecer as
A corrida em busca de ajuste financeiro e a in- competências familiares. A proposta foi inserida
dependência feminina cria uma diversidade de em nível de atenção básica, no PSF, com pers-
modelos familiares, além de enormes desigual- pectiva de incentivar a participação comunitária
dades8. Outro agente que também interfere na no sentido de tornar as práticas mais humaniza-
dinâmica familiar é o grau de escolaridade de das e integrais, princípios filosóficos do SUS, e
seus membros. Todos esses fatores favorecem incentivar a autonomia e a participação da famí-
o surgimento de várias formas de organização lia no processo saúde-doença5.
familiar como: família nuclear, monoparental, O Ministério da Saúde do Brasil, em 1994,
casal, homossexual, adotivas, reconstituídas e assumiu o desafio de incorporar, em seu plano
associações diversas (famílias com vários casa- de ações e metas prioritárias, a estratégia de Saú-
mentos, pessoas sem nenhum laço consangüí- de da Família, no sentido de reverter o modelo
neo e ocupando um espaço importante dentro assistencial vigente.
da família, papéis ocupados por pessoas dife- A família passou a ser o objeto principal
rentes daquelas que rotineiramente se esperam, de atenção, entendida a partir do ambiente onde
como, por exemplo, um tio exercendo a função vive, incluindo desde a proteção e a promoção da
de um pai). saúde até a identificação precoce e o tratamento
A transformação da família, às vezes com de doenças. A atenção passa a estar focada na fa-
desagregação das estruturas tradicionais, sem mília, entendida e percebida a partir do seu am-
o sentimento de segurança outrora favorável, biente físico e social, o que vem possibilitando
com escassez de diálogo, torna-a vulnerável e às equipes de saúde da família uma compreensão
impossibilitada de exercer sua ação estruturan- ampliada do processo saúde/doença e das neces-
te no psiquismo e formação de laços protetores. sidades que vão além de práticas curativas.
O processo de individuação fica comprometido, A família constitui o núcleo de ação do
sendo indispensável a abordagem e a interven- PSF. As equipes de saúde em visitas domicilia-
ção na célula-base da sociedade, dada a natureza res conhecem as condições de vida das famílias,
humana que se forma através do convívio e da oferecem assistência contínua e criam vínculos
educação no seio familiar. Todas as relações pos- entre a comunidade e os profissionais. O cuida-
teriores são formadas a partir desta socialização do domiciliar humaniza a atenção, à medida que
e da natureza da formação dos vínculos6. aproxima os profissionais da saúde das pessoas e

24
Capítulo 4 • Família: do resgate histórico às competências e cuidados

induz ao compartilhamento das vivências, ense- econômica, emocional e/ou relacional, que acon-
jando mudanças contextuais. tecem de maneira simultânea e sucessiva, em
Nesse processo há um aprofundamento do vários membros. São as famílias multiproble-
conhecimento sobre a realidade de cada família máticas, cujas vidas se singularizam por múlti-
e a compreensão e identificação das diferenças plos problemas severos, tais como a negligência,
culturais, experiências, saberes, fragilidades, a delinqüência, a depressão, o desemprego e a
força e liderança dos seus membros e das rela- habitação precária. A situação de risco familiar
ções familiares. Apossados desse conhecimento, é encontrada em todos os grupos sociais e eco-
é que podemos trabalhar no sentido de desen- nômicos, mas a sua situação é mais preocupante
volver mais efetivamente as potencialidades de quando associado à pobreza.
cada um dos componentes familiares.
A equipe do PSF tem que estar pronta
para interferir, entendendo a subjetividade do As variáveis de risco mais freqüentes
contexto familiar, as repercussões na saúde de
seus membros, reconhecendo a importância dos Pobreza, família numerosa, precária su-
fatores socioeconômicos e identificar ocorrên- pervisão sobre os filhos, separação dos pais, dis-
cias estruturais que possam intervir na conquis- tanciamento da figura paterna, relacionamentos
ta da sua autonomia. marcados por agressões físicas e psicológicas,
A habilidade técnica aliada à ação de pro- precário diálogo intra-familiar, história familiar
moção, prevenção, tratamento e reabilitação da de agravos à saúde (alcoolismo, seqüela física,
saúde, conjugada à postura ética, maleável e ca- câncer, aids, dependência de drogas), história
tivante, induzem a transformações de comporta- familiar de acidentes e violências (agressões, as-
mento individual, familiar e comunitário. sassinatos, mortes prematuras).
O domicílio representa o sítio ideal para Sousa24 recomenda ainda que os profis-
conhecer e compreender as necessidades das sionais devam reconhecer que eles não são os
pessoas. É o local onde elas são mais espontâne- detentores das soluções dos problemas das famí-
as, suas crenças e valores se manifestam natural- lias, mas deverão ser capazes de ajudá-las a mo-
mente e suas práticas são questionadas. bilizar as suas competências para solucionar os
A ética e a habilidade profissional instru- seus problemas.
mentalizam a escuta da família como estratégia
para reorganizar e reatualizar o núcleo familiar,
buscando envolvê-lo no processo de promoção Formas de abordagens da família
de saúde15.
“Do discurso para a prática, da norma para Ao trabalhar com a família, as oportunida-
a real efetivação das ações há um longo caminho, des como cadastro, consulta, nascimento, morte,
tendo como resultado a reprodução de práticas agravos crônicos ou agudos, visita domiciliar
assistencialistas, compartimentalizadas e medi- devem ser aproveitadas. Nessa ocasião, o profis-
calizantes pelas equipes de saúde da família”1. sional de saúde utiliza o momento para estreitar
o vínculo com o paciente e seus familiares.
A execução do trabalho norteia-se pela re-
Fatores de risco familiar alidade local buscando melhorar os indicadores
de saúde da população atendida e satisfação não
Na opinião de Sousa24, algumas famílias só da comunidade assistida, como também dos
estão expostas a problemas complexos de ordem profissionais envolvidos.

25
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Existem vários formas de abordagem das informações demográficas, situações ocupacio-


famílias, objetivando a identificação do tipo de nais, nível educacional, alcoolismo, drogadição,
família, recursos financeiros, segurança, saúde, desemprego, datas de nascimento, ordem de
suporte emocional, papéis familiares, cuida- nascimento, número de filhos, morte, doença
dores, provedores, lideranças, controladores e crônica, nome dos pacientes, abuso sexual, datas
outros. Alguns instrumentos para esse fim fo- e eventos importantes da história familiar, como
ram sugeridos por Pillitteri17 e foram também o ano do acontecimento, imprescindíveis para a
citados por Starfield18, como o Genograma, o qualidade do trabalho com famílias29.
APGAR da família e o Ecomapa e ainda o guia Quando bem elaborado, o genograma per-
PRATICE27. mite que toda a equipe de saúde possa atender
Os profissionais da Saúde da Família ao ao paciente com uma visão adequada do proces-
utilizar essas ferramentas oportunizam o conhe- so, impedindo paralelismo de ação, facilitando
cimento da família de forma integral, identifi- o plano terapêutico e permitindo à família uma
cando as funções e as necessidades de cada um melhor compreensão sobre suas patologias e, as-
dos seus membros, assim como, os agravos here- sim, otimizando os resultados dos planos tera-
ditários, situações de risco social e interacionais. pêuticos instituídos.
De posse dessas informações desenvolve uma Segundo Wilson & Becker28, em Traba-
assistência mais ampla, não apenas direcionada lhando com Famílias, há situações onde um ge-
ao biológico, mas também ao psico-social e ao nograma detalhado, dito expandido, pode ser
econômico, variáveis que, como é sabido, reper- valioso em prover informações, portanto estaria
cutem sobre a saúde do indivíduo. indicado:
• Avaliações e manejo de visitas freqüen-
tes com os mesmos sintomas.
O Genograma • Quando o grau de incapacidade do pa-
ciente parece desproporcional à severi-
“O genograma é um diagrama que detalha dade da doença.
a estrutura e o histórico familiar, fornece infor- • Diagnóstico e manejo emocional e pro-
mações sobre os vários papéis de seus membros blemas comportamentais influenciados
e das diferentes gerações”20. pela estrutura familiar e seu funciona-
É uma ferramenta simples e objetiva de mento.
acompanhamento nos estudos de famílias que • Lidando com problemas genéticos.
permite a compreensão de suas histórias natu- • Lidando com problemas conjugais e
rais e padrões de adoecer e pode potencializar sexuais.
a ação dos profissionais de saúde. Suas carac- • Quando há uso de drogas ou abuso de
terísticas básicas são: identificar a estrutura produtos químicos.
da família e seu padrão de relação, mostrando Rakel19 ressalta a oportunidade de revisão
as doenças que costumam ocorrer – a repetição dos principais problemas que acometeu deter-
dos padrões de relacionamento e os conflitos minada família por três ou mais gerações, ao
que desembocam no processo de adoecer26. Para mesmo tempo que propicia a relação médico-
Starfield18 o genograma é usado para o propósito paciente, sobretudo no caso de pacientes novos.
específico de identificar predisposições a doen- “As informações obtidas têm valor terapêutico,
ças em famílias. Inclui informação básica da fa- assim como diagnóstico, porque os pacientes
mília e, na sua elaboração, são usados normas e sentem que o médico está verdadeiramente in-
símbolos universais e, ao lado desses, coloca-se: teressado neles e em sua família.”

26
Capítulo 4 • Família: do resgate histórico às competências e cuidados

APGAR da família Questionário de APGAR da Família

O APGAR da família é um instrumento Quase Às Rara-


sempre vezes mente
de avaliação destinado a refletir a satisfação de
Estou satisfeito com a
cada membro e os diferentes escores devem ser
atenção que recebi da mi-
comparados para se avaliar o estado funcional nha família quando algo
da família. O acrônimo APGAR corresponde está me incomodando.
a Adaptação (Adaptation), Participação (Part- Estou satisfeito com a ma-
neira com que a minha
neship), Crescimento (Growth), Afeição (Affec- família discute as ques-
tion) e Resolução (Resolve)20. tões de interesse comum e
Consta da aplicação de um questionário compartilha comigo a re-
solução dos problemas.
que resulta na mensuração do grau de satisfação
Sinto que minha família
do membro da família. À resposta é atribuída a aceita meus desejos de ini-
seguinte nota: 2 para “Quase sempre”, 1 para “Às ciar novas atividades ou de
realizar mudanças no meu
vezes”, e 0 para “Raramente”. O resultado de 7 estilo de vida.
a 10 sugere uma família altamente funcional. O Estou satisfeito com a
resultado de 4 a 6 sugere uma família moderada- maneira com que minha
mente disfuncional. O resultado de 0 a 3 sugere família expressa feição e
reage em relação aos meus
uma família severamente disfuncional. sentimentos de raiva, tris-
teza e amor.
O Questionário avalia: Estou satisfeito com a ma-
neira com que eu e minha
família passamos o tempo
• Adaptação: satisfação com a atenção re- juntos.
cebida, quando recursos familiares são Baseado em Smilkstein (1999)
necessários;

• Participação: satisfação com a recipro-


cidade da comunicação familiar e na re- O Ecomapa
solução de problemas;
É um diagrama onde se demonstra as rela-
• Crescimento: satisfação com a liber- ções entre a família e a comunidade. Facilita a iden-
dade disponível no ambiente familiar, tificação dos apoios disponíveis e as necessidades
para a mudança de papéis e para a con- de implementar suportes. Os membros da família
cretização do crescimento emocional ou e as suas idades são mostrados no círculo grande
amadurecimento; central. Outros círculos menores circundam esse,
representando os equipamentos da comunidade.
• Afeição: satisfação com a intimidade e a
Os apoios são representados pelas linhas. Quando
interação emocional no contexto familiar;
contínuas, representam ligações fortes, enquanto
• Resolução: satisfação com o compro- que linhas pontilhadas traduzem ligações frágeis.
misso que tem sido estabelecido pelos Linhas com barras definem aspectos estressantes.
seus familiares ao compartilharem seu As setas significam energia e fluxo de recursos.
tempo, espaço e dinheiro20. Ausência de linhas significa ausência de relação20.

27
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

A - Affect. Afeto, como a família se com-


porta diante do problema apresentado.
C - Communication. Informa qual o tipo
de comunicação dentro da estrutura familiar.
T - Time in Life Cycle. Menciona em qual
fase do ciclo de vida a família se encontra.
I - Illness in Family. História de doença
na família, passado e presente;
C - Coping with Stress. Como os membros
da família enfrentam o estresse da vida.
E - Ecology. Quais os recursos que a família
possui para enfrentar o problema em questão.

Estratégias para Trabalhar com a Família

• Conscientizar as famílias sobre as suas res-


ponsabilidades, informando-as sobre a pre-
PRATICE venção de acidentes domésticos, segurança
rodoviária, doenças infecto-contagiosas, saú-
A ferramenta PRACTICE20 foi projetada de oral, nutrição, segurança, higiene e saúde
para avaliação do funcionamento das famílias e no trabalho e estilos de vida saudável;
dos pacientes. A sua estrutura básica permite or- • Sensibilizar as famílias para a necessidade da
ganizar de forma esquemática, focando no pro- detecção precoce de situações de abuso ou de-
blema, as informações adquiridas da família, fa- pendência de medicação psicotrópica, tabaco,
cilitando a avaliação familiar, podendo ser usada drogas e álcool;
para itens de ordem médica, comportamental e • Promover a interação entre a família, a escola
de relacionamentos. e o centro de saúde como forma privilegiada
Este instrumento deve ser preenchido de de prevenção e de encaminhamento;
forma objetiva, focando o que se necessita, enfa- • Interceder para facilitar a permanência dos
tizando que nem todos os itens que compõem o pais junto aos filhos em situações de interna-
PRACTICE devem ser vistos em uma interven- mento hospitalar;
ção específica. • Apoiar as famílias que cuidam de doentes ter-
Cada letra do acrônimo corresponde a um minais;
assunto a ser investigado e registrado. É, portanto, • Estimular a auto-estima da família;
uma forma pedagógica que direciona encontros • Investigar as potencialidades do grupo e pro-
com a família, sendo útil a sua utilização nos con- mover o bem estar dos indivíduos, através de
tatos iniciais. Durante uma entrevista, com um fortalecimento e desenvolvimento de habili-
paciente e membro (os) da família, tendo como o dades pessoais;
guia o modelo PRATICE, devemos abordar: • Fortalecer os vínculos familiares;
P - Presenting Problem. Referente ao pro- • Romper com a idéia de família sonhada, ide-
blema apresentado. alizada;
R - Roles and Structure. Referente aos pa- • Olhar a família de forma integral, não frag-
péis de cada membro dentro da estrutura familiar. mentada;
• Ouvir a família.

28
Capítulo 4 • Família: do resgate histórico às competências e cuidados

Conclusão Referências

O Programa Saúde da Família é o modelo 1. Albuquerque PC, Stotz EN. Popular education in
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integral e sistêmica, propiciando o desenvolvi-
artigo1.pdf (acesso em 26 de set. 2006).
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100 compromissos para uma política da família:
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iniciativa apresentada pelo Primeiro-Ministro.
criticidades. A abordagem da família deve ser pla- (acesso em 04 out. 2006). Disponível em:http://
nejada, acostada na participação multidisciplinar www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Governos/Gover-
e intersetorial e incitando a co-responsabilidade nos_Constitucionais/GC15/Ministerios/MSST/
do usuário no processo do cuidado. Os preceitos Comunicacao/Programas_e_Dossiers/200422_
legais e éticos vigentes devem ser observados. MSST_Doss_Familia.htm.
São requeridos estudos a longo prazo, que 3. Ariès P. História social da criança e da família.
identifiquem o impacto deste desenho organiza- Rio de Janeiro: LTC. 1978.
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promoção da Saúde e desenvolvimento infantil:
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Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
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29
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

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http://www.nates.ufjf.br/novo/revista/pdf/v6n2/
Pesquisa3.pdf.

30
Capítulo 2
Programa Saúde da Família: vissareiro na medida em que houve um compro-
história, princípios, desafios metimento de recursos federais para a expansão
da rede assistencial local e uma autonomia mu-
atuais e futuros
nicipal na orientação do programa, entretan-
luiz odorico Monteiro andrade
to é inegável que o PSF também impôs novas
roBerto cláudio rodriGues Bezerra
ivana cristina Barreto responsabilidades de gestão e demanda por pro-
fissionais qualificados e comprometidos com a
filosofia inovadora inaugurada por essa política.
Esse dilema de superar a etapa da expansão
Introdução quantitativa do acesso ao PSF e passar para uma
discussão mais formuladora da consolidação da

O Programa de Saúde da Família (PSF) sur-


giu formalmente no Brasil como política
pública de saúde no ano de 1994. Em setembro
qualidade nas ações do programa e sua respec-
tiva integração com o resto da rede assistencial
do SUS marcam o cerne das discussões teóricas
de 2004, já se contabilizava um total de 21.475 atuais, as quais se traduzem como desafios prag-
equipes de saúde da família cobrindo aproxima- máticos para os gestores de saúde, especialmente
damente 90% dos municípios brasileiros e assis- no nível municipal.
tindo diretamente um universo aproximado de
70 milhões de cidadãos e cidadãs brasileiras1,20. A
decisão política de se reorganizar a rede de assis- Conceitos
tência à saúde através de uma política que apon-
tasse para universalização do acesso da população O Programa de Saúde da Família é con-
brasileira à atenção básica e consolidasse o recen- siderado um modelo de atenção básica à saúde
te processo de descentralização, inaugurado com focado na unidade familiar e construído opera-
o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), foi cionalmente na esfera comunitária15,3. Então,
o norte inspirador da implementação do PSF nos por definição, pode-se considerar a experiência
mais diversos municípios brasileiros. brasileira do PSF como um modelo coletivo de
A inegável expansão de acesso da popula- atenção básica, com a peculiaridade de ser cons-
ção brasileira às ações de saúde primária aconte- truído no âmbito de um sistema de saúde públi-
ceu simultaneamente a um processo continuado co e universal. Essa compreensão do PSF como
de readequação e refinamento do próprio PSF. o componente primário de um sistema público
Esse processo inacabado de discussão e reformu- de saúde de amplitude nacional redimensionam
lação do PSF vem acontecendo nas três esferas sua relevância, pois o próprio impacto do PSF na
governamentais, muitas vezes fomentada pelas saúde dos usuários do SUS vai depender essen-
escolas estaduais de saúde pública e enriquecida cialmente da sua capacidade de integração com
pela experiência dos profissionais de saúde en- os componentes mais complexos do processo de
volvidos, o que vem a definir essa política públi- atenção à saúde, tipicamente caracterizados como
ca como essencialmente dinâmica e coletiva no atendimento à saúde especializado e hospitalar.
seu processo construtivo. Como qualquer outro programa de atenção
Em resumo, a experiência inovadora do básica à saúde, o PSF prioriza ações de promoção
PSF no nível municipal trouxe um impacto al- da saúde, obviamente não excluindo ações assis-

31
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

tenciais de menor complexidade que possam ser profissionais envolvidos na cadeia de assistên-
resolvidas com o aparato físico e humano dispo- cia integral e primária à saúde. Normalmente,
nível no nível comunitário. Entretanto, o papel a equipe de saúde da família é composta de um
fundamental de uma rede de atenção básica é a médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar
coordenação de todo o espectro assistencial em de enfermagem e quatro a seis agentes comuni-
saúde, quando através da atenção básica se iden- tários de saúde que são primariamente respon-
tificam as necessidades de atendimentos mais sáveis pela cobertura de aproximadamente 800
especializados, coordenam-se as referências para famílias (3.450 indivíduos) residentes em terri-
os profissionais adequados e acompanham-se os tório urbano ou rural, com limites geográficos
resultados terapêuticos e evolução clínica dos definidos1,3. Tem existido um esforço governa-
pacientes acompanhados5. Em suma, a existên- mental recente para a inclusão de odontólogos
cia da uma rede de atenção básica permite não nessas equipes para a contemplação de todos os
somente a prevenção de um importante univer- espectros de atenção à saúde bucal.
so de patologias de relevância epidemiológica e Atenção básica à saúde: é aquele nível
a resolutividade direta de até 90% da demanda de um sistema de saúde que oferece a entrada
comunitária1, como também auxilia a condu- no sistema para todas as novas necessidades e
ção clínica e o manejo terapêutico de pacientes problemas, fornece atenção sobre a pessoa (não
com demanda de saúde especializada, os quais à enfermidade) no decorrer do tempo, fornece
são primariamente orientados por profissionais atenção sobre todas as situações de saúde, exce-
de saúde de um nível assistencial mais comple- to as incomuns, e coordena ou integra a aten-
xo. Logo, acredita-se que uma rede universal de ção fornecida em algum outro lugar ou por
atenção básica, como está sendo buscado pelo terceiros30,33. É o tipo de atenção à saúde que or-
modelo brasileiro de PSF, possibilita um melhor ganiza e racionaliza o uso de todos os recursos,
controle do desperdício de recursos de saúde, re- tanto básicos como especializados, direcionados
dução da duplicação da oferta de serviços, esta- para a promoção, manutenção e melhora da saú-
bilidade e confiança na relação entre o usuário e de. Em resumo, pode ser compreendida como
o sistema de saúde e maior eficácia no alcance de uma tendência, relativamente recente, de se in-
resultados de saúde30. verter a priorização das ações de saúde, de uma
Buscando uma conceitualização mais am- abordagem curativa, desintegrada e centrada no
pla dessa política, definimos o PSF como um papel hegemônico do médico para uma aborda-
modelo de atenção básica, operacionalizado atra- gem preventiva e promocional, integrada com
vés de ações primariamente preventivas e pro- outros níveis de atenção e construída de forma
mocionais das equipes de saúde da família, com- coletiva com outros profissionais de saúde. Bár-
prometidas com a integralidade da assistência à bara Starfield, numa adaptação de Vuori, ilustra
saúde, focado na unidade familiar e consistente de forma efetiva as dissimilaridades essenciais
com o contexto sócio-econômico, cultural e epi- entre a atenção básica à saúde e a atenção médica
demiológico da comunidade em que está inseri- convencional30,33.
do. Para a melhor compreensão da organização e
operacionalização desse modelo de atenção bási-
ca, entendemos como fundamental a revisão de
alguns desses conceitos que compõe a essência
da definição do Programa de Saúde da Família.
A equipe de saúde da família: é composta
essencialmente de um grupo interdisciplinar de

32
Capítulo 1 • Programa Saúde da Família: história, princípios, desafios atuais e futuros

Convencional Atenção relações com a comunidade são determinados.


Enfoque
Entre as funções essenciais de uma família es-
Doença Saúde
tão a procriação de crianças e desenvolvimento
Cura Prevenção, atenção e cura do bem-estar físico e mental de seus membros,
Conteúdo as quais estão diretamente relacionadas com as
Tratamento Promoção da saúde necessidades de utilização dos serviços de saú-
Atenção por episódio Atenção continuada de11. Logo, é importante conceitualizar a unida-
Problemas específicos Atenção abrangente
de familiar do PSF numa perspectiva distinta da
Organização
definição restrita de pessoas associadas a uma
Clínicos gerais
Especialistas
Grupos de outros
residência comum e levar em consideração não
Médicos
profissionais só a composição demográfica dos membros da
Consultório individual
Equipe família, como também variáveis que descrevam
Responsabilidade a organização e situação familiar e as caracterís-
Colaboração inter-setorial ticas do ambiente onde a família está localizada.
Apenas setor de saúde
Participação da
Domínio pelo profissional Comunidade: representa a esfera sócio-
comunidade
Recepção passiva
Auto-responsabilidade cultural, delimitada essencialmente por conti-
Tabela 1. Diferenças entre atenção médica convencional e atenção güidade geográfica e primariamente definida
primária à saúde. por aspectos semelhantes da organização da
vida dos indivíduos e dependência comum dos
Integralidade: consiste essencialmente de mesmos equipamentos sociais e governamen-
uma busca por ações de saúde que sejam coeren- tais. Esse processo de identificação e descrição
tes com o próprio processo de saúde-doença, que das comunidades onde as equipes de PSF atu-
demanda uma diversidade ampla de abordagens arão é conhecido por territorialização e adscri-
individuais e coletivas, dependentes primaria- ção de clientela, o qual permite uma melhor
mente da complexidade do tipo de necessidade compreensão das microáreas de risco, identifi-
de saúde34. Assumindo uma perspectiva holísti- cação de localidades com maior densidade po-
ca de saúde, que absorve diferentes dimensões pulacional, da rede de transportes e estradas,
da condição de saúde de um indivíduo tais como da presença de barreiras físicas para o acesso ao
a física, social, emocional e espiritual, compre- atendimento de saúde e dos recursos existentes
ende-se que há uma grande variedade de neces- localmente (e.g. igrejas, escolas, praças, associa-
sidades de saúde. Essas necessidades demandam ções comunitárias...)1,12.
uma ampla gama de ações de saúde, normalmen-
te hierarquizadas pelo nível de complexidade
determinado pelos recursos humanos, físicos e Contexto
financeiros envolvidos nos processos diagnósti-
co e terapêutico. O conceito de integralidade da O PSF surge como uma política nacional
atenção à saúde aqui empregado, consiste então de saúde em 1994 dentro de um contexto rico de
da contemplação de todos os tipos de demanda influências institucionais determinantes de sua
de saúde, independente da hierarquização da incorporação como política prioritária do esta-
complexidade da mesma, de forma organizada e do brasileiro. A evolução do Sistema Único de
sistematizada34,26,32. Saúde (SUS) e suas respectivas contradições e
Unidade Familiar: é compreendida incertezas; as experiências pontuais de modelos
como a célula biológica e social dentro da qual inovadores de atenção à saúde no Brasil; o per-
o comportamento reprodutivo, os padrões de fil epidemiológico brasileiro e a pressão institu-
socialização, o desenvolvimento emocional e as cional internacional por políticas consistentes

33
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

de atenção básica caracterizaram esse contexto formá-los em ação efetiva. O PSF veio essencial-
determinante da implementação do PSF. Uma mente como uma oportunidade de se expandir
discussão mais detalhada do papel de cada um acesso à atenção básica para a população brasilei-
desses elementos institucionais é resumida pela ra, de consolidar o processo de municipalização
tabela 2 e descrita abaixo: da organização da atenção à saúde, de facilitar o
processo de regionalização pactuada entre mu-
Determinante Influência nicípios adjacentes e de se coordenar a integra-
- Necessidade de expandir lidade de assistência à saúde. Em resumo, a de-
aceso à saúde cisão de se implementar o PSF foi coerente com
- Necessidade de consoli-
dar a descentralização os princípios doutrinários do SUS de se alcançar
Evolução do SUS
- Busca da integridade de universalidade de acesso, integralidade de aten-
atenção à saúde
ção à saúde e descentralização do planejamento
- Incorporação efetiva do
controle social do SUS e da gestão política e administrativa de aspectos
- Tensão com o modelo relacionados à saúde dos munícipes1. Destaca-se
Experiências inovadoras
hegemônico de assistên- também o papel fundamental do PSF na organi-
de atenção à saúde
cia à saúde
• Em Defesa da Vida zação dos processos de participação popular e sua
- Amadurecimento de pro-
• Ação Programática em
Saúde
postas centradas numa respectiva influência na consolidação do papel
perspectiva coletiva de moderador e monitorador das comunidades14.
• Silos
atenção básica à saúde
- Necessidade de supera-
ção das desigualdades
regionais relacionadas Experiências Brasileiras Inovadoras de
Perfil epidemiológico
ao acesso à saúde, oferta
brasileiro
de serviços de saúde,
Atenção à Saúde
financiamento da saúde
e indicadores de saúde A gestação do PSF não pode ser grosseira-
- Popularidade de mo- mente simplificada como uma súbita replicação
delos internacionais de de modelos internacionais de saúde da família. A
atenção básica centrados
Contexto internacional na comunidade construção do PSF foi conseqüência de um pro-
- Pressão de financiamen- cesso lento e contínuo de tensão com o modelo
to das agências interna-
cionais de saúde
hegemônico de assistência à saúde (vide tabela
1). Nessa perspectiva exploratória de busca de
Tabela 2. Contexto Institucional que precedeu a implementação
do PSF
modelos assistenciais que superassem a incapa-
cidade do modelo hegemônico tecnicista de res-
ponder efetivamente às demandas individuais
A Evolução do Sistema Único de e coletivas, algumas experiências tiveram uma
Saúde (SUS) discussão teórica e aplicação prática que antece-
deram e inspiraram a discussão do modelo atual
A implementação do PSF no Brasil ocor- de saúde da família.
reu claramente como uma estratégia de consoli- A proposta Em Defesa da Vida surgiu em
dação dos princípios do sistema único de saúde Campinas, ao final da década de 80, por um gru-
(SUS). A breve existência do SUS e os conflitos po de profissionais envolvidos no processo no
filosóficos e pragmáticos advindos dos aspectos Movimento da Reforma Sanitária, que propu-
inovadores incorporados por esse sistema gera- nham um modelo tecnoassistencial baseado na
ram um ambiente propício para a implementa- gestão democrática, saúde como direito de cida-
ção de políticas de saúde que viessem melhor dania e serviço público de saúde voltado para a
estruturar esses princípios organizativos e trans- defesa da vida individual e coletiva16.

34
Capítulo 1 • Programa Saúde da Família: história, princípios, desafios atuais e futuros

Outro grupo paulista, coordenado por pro- O Brasil enfrentava um momento conhecido
fessores do Departamento de Medicina Preven- por transição epidemiológica, caracterizado pela
tiva da USP, propuseram um modelo conhecido crescente importância epidemiológica das doen-
por Ação Programática em Saúde que oferecia ças crônico-degenerativas, típicas do processo
uma perspectiva organizacional e administrati- demográfico de envelhecimento e urbanização
va inovadora em saúde. O foco essencialmente da nação brasileira, enquanto ainda tinha que
coletivo dado à definição conceitual de saúde e lidar com a realidade das doenças infecto-con-
o foco no aprimoramento da sistematização dos tagiosas, especialmente relevantes durante a in-
processos de planejamento, organização, gestão fância21. Associado a esse perfil epidemiológico
e avaliação, em busca de ganho de efetividade, desafiador, os indicadores nacionais de atenção
representaram a peculiaridade desse modelo28,19. básica, tanto os de acesso como os de resultado,
Entretanto foi um modelo conhecido demonstravam a falta de comprometimento po-
como Sistema Locais de Saúde (Silos) que teve lítico com as ações de promoção de saúde22. As
a oportunidade de ser efetivamente operaciona- próprias taxas nacionais de mortalidade infantil
lizado em maior escala com o advento do SUS, e de cobertura vacinal para poliomielite e sa-
de forma mais intensa nos estados do Ceará rampo, apresentadas na tabela 3, ilustram esse
e Bahia. A proposta do Silos foi centrada em quadro de descaso com a atenção básica, onde
formulações-chave como território e problema. faltava um compromisso essencial com as ações
No caso propunha-se que todo o processo de preventivas e assistenciais básicas relacionadas
planejamento e gestão de aspectos relaciona- à saúde da mulher e da criança22. Idealmente, o
do à saúde devesse ser construído localmente país deveria buscar patamares de mortalidade
e operacionalizado para estruturar a oferta de infantil bem mais baixos, pelo menos inferiores
serviços e atender a demanda epidemiologica- a 20 por 1000 nascidos vivos, compatíveis com o
mente identificada18,19. Em resumo, era uma seu nível de desenvolvimento sócio-econômico,
proposta de consolidação da descentralização enquanto as taxas de cobertura vacinal deveriam
preconizada pelo SUS. se aproximar de 100%.
Aliado a esses modelos tecnoassistenciais,
as experiências pontuais de equipes de saúde da Indicador Estimativa
família atuando de forma pouco sistematizada
Resultado
em alguns municípios brasileiros e a implanta-
Taxa de mortalidade in-
ção do Programa de Agentes Comunitários de fantil (mortes < 1 ano de
41.01
Saúde (PACS) desde 199120 serviram de substra- idade por 1.000 nascidos
vivos)
to complementar na discussão e formulação do
Acesso
modelo atual do PSF no Brasil, na medida em
Percentual de cobertura
que informações empíricas adquiridas através vacinal para sarampo
80.36%
da experimentação desses modelos foram absor- Percentual de cobertura
vidas no processo formulador do PSF. vacinal para poliomielite- 65.39%
(VOP)

Tabela 3. Indicadores de acesso e resultado relacionados à atenção


básica no Brasil, ano de 1994
Perfil Epidemiológico

O contexto epidemiológico brasileiro Além dos próprios indicadores desfavorá-


antecedente à disseminação do PSF no Brasil veis de acesso e resultado da atenção básica, o
era típico de um país em desenvolvimento e país enfrentava naquele momento uma profun-
marcado por profundas desigualdades regionais. da desigualdade regional na oferta de serviços de

35
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

saúde, no acesso à saúde, nos investimentos de Contexto Internacional


saúde e nos resultados de saúde, como vislum-
brado na Tabela 4. Quadro esse que se perpetua, A atenção primária tem suas raízes finca-
apesar de suavizado pelas políticas de saúde na das na instituição do seguro nacional de saúde
última década. Para a Organização Panamerica- da Grã-Bretanha que tratava da organização do
na de Saúde, a busca da equidade na prestação sistema de serviços de saúde, definia níveis de
de serviços de saúde e o acesso a estes serviços atenção à saúde e discutia as respectivas fun-
representam uma das ações de saúde de maior ções de cada um deles25. Mais tarde, em 1977,
dificuldade de operacionalização na América a Assembléia Mundial de Saúde definiu como
Latina23,24. O PSF surgia então, naquele momen- meta social prioritária aos governos do mun-
to, como uma proposta tecnicamente viável de do “a obtenção por parte de todos os cidadãos
se focar ações de saúde de custo relativamente do mundo de um nível de saúde no ano 2000
baixo em áreas de risco para a expansão de aces- que lhes permitirá levar uma vida social e eco-
so aos serviços de atenção básica e para supera- nomicamente produtiva”8. Os princípios dessa
ção imediata das iniqüidades de acesso à saúde. assembléia foram enunciados na Conferência de
Alma Ata que representou a primeira iniciativa
Região Estimativa (OPAS, 2001) formal de um organismo de saúde internacional
Oferta de priorizar as práticas de atenção básica como
(Número de leitos do cadastros no SUS / 1000 fundamentais para o alcance de melhores níveis
habitantes; 1992)
de saúde no mundo. Nessa conferência, a aten-
Norte 1.91
Nordeste 2.87 ção primária foi reconhecida como uma porção
Sudeste 3.71 “integral, permanente e onipresente do sistema
Sul 3.85
formal de atenção à saúde em todos os países,
Centro-Oeste 3.82
não sendo a apenas “um componente a mais”26.
Acesso
(Consultas médicas SUS / habitantes; 1995) Alguns países passaram então a reorga-
Norte 1.23 nizar seus serviços de saúde para consolidar os
Nordeste 1.61 aspectos médicos e de saúde da atenção primá-
Sudeste 2.24
Sul 1.94 ria. Por exemplo, em Cuba os novos “médicos
Centro-Oeste 1.88 de família” passaram a ter uma relação mais es-
Resultado treita com as comunidades e passaram a exercer
(Taxa de mortalidade infantil por 1000 nascidos
um papel de agentes de transformação social27.
vivos, 1994)
Nos EUA houve um movimento, primariamen-
Norte 37.73
Nordeste 61.96 te coordenado pelos departamentos locais de
Sudeste 26.56 saúde, chamado de Atenção Primária Baseada
Sul 23.07
Centro-Oeste 26.25 na Comunidade que buscava uma abordagem
Investimento de planejamento e avaliação participativos para
(Gasto médio do Ministério da Saúde por internação as ações de saúde preventiva e promocionais fo-
hospitalar em R$ de 1999; 1995) cados no contexto social e epidemiológico das
Norte 202.07 comunidades-alvo28. Outros países passaram a
Nordeste 298.87
Sudeste 396.08 inverter a lógica de formação especializada dos
Sul 411.36 médicos, optando por investir na formação de
Centro-Oeste 392.94
médicos generalistas, em busca de desenvolver
Tabela 4. Ilustração das iniqüidades regionais relacionadas a ofer- recursos humanos com o perfil adequado para o
ta de serviços de saúde, acesso à saúde, resultados de saúde e inves-
timentos de saúde23. exercício profissional da atenção básica.

36
Capítulo 1 • Programa Saúde da Família: história, princípios, desafios atuais e futuros

Esse processo veio associado a uma busca ecológica, em virtude da grande diversidade de ex-
incessante da compreensão da potencial eficiên- periências e peculiaridade de cada experimento de
cia dos modelos de atenção primária. Uma série implementação. Em resumo, para se compreender
de estudos avaliativos foi então desenvolvida para o modelo de atenção à saúde inaugurado pelo PSF
compreender a extensão do impacto dos inves- no Brasil deve-se inicialmente estar consciente de
timentos em saúde primária nos indicadores de que o PSF de uma comunidade específica é um PSF
acesso e resultado em saúde. Ao mesmo tempo, distinto dos demais, com suas próprias prioridades
as agências internacionais de saúde procuravam de ação, potencialidades e limitações. Em outras
um modelo único de atenção básica que pudesse palavras, o PSF encontrado nas mais diversas co-
ser replicado em países em desenvolvimento a um munidades brasileiras é simplesmente o resulta-
custo de investimento e manutenção comparáveis do do processo de adaptação local do modelo de
à disponibilidade de recursos desses países6. No atenção básica familiar proposto e primariamente
seio desse processo de compreensão e estruturação financiado pelo governo federal. Compreendemos
internacional dos modelos de atenção primária, os que essa diversidade de experiências do PSF nas
quais foram primariamente motivados e fomenta- cidades brasileiras é especialmente resultante da
dos por investimentos de agências internacionais variedade de tempo de implementação, compro-
de desenvolvimento social, se inicia no Brasil uma misso dos gestores, estabilidade de financiamento
discussão a respeito da necessidade de se estrutu- e do nível de apoderamento comunitário.
rar uma rede efetiva de atenção básica consistente Logo, resolvemos simplesmente descre-
com os princípios organizativos do SUS e poten- ver a proposta nacional de atenção à saúde do
cializadora das ações primárias, algumas vezes PSF, mesmo estando conscientes dos riscos de
ainda rudimentares, já existentes no país. Dentro generalização que essa caracterização possa tra-
dessa perspectiva, o PACS passa a ser financiado zer. A organização das ações de uma equipe de
amplamente no Brasil, o que serviu como grande saúde da família é basicamente construída sob
norte orientador da formulação do PSF20. esses onze pilares estruturantes1,29:
• Definição e descrição do território de
abrangência
O Modelo de Atenção • Adscrição da clientela
• Diagnóstico de saúde da comunidade
Como apresentado anteriormente, o PSF • Organização da demanda
encontrado no Brasil atualmente não representa • Trabalho em equipe multiprofissional
um projeto acabado de atenção básica, mas pelo • Enfoque da atenção à saúde da família e
contrário é uma política pública em processo evo- da comunidade
lutivo. Nos últimos anos houve uma expansão re- • Estímulo à participação e controle social
levante do acesso ao PSF, aumento da cobertura do • Organização de ações de promoção de
PSF nas zonas urbanas e em cidades com maior saúde
densidade populacional, uma consolidação da in- • Resgate da medicina popular
terdisciplinaridade das ações de saúde, maior in- • Organização de um espaço de co-gestão
tegração das ações do PSF com as ações de saúde coletiva na equipe
secundárias e terciárias e uma intensificação dos • Identificação dos serviços de referência
processos de participação comunitária1,4. Entretan- no nível secundário e terciário
to, qualquer simplificação da descrição das especi-
ficidades do modelo de atenção à saúde incorpo- Esses pilares estruturantes delimitam
rado pelo PSF seria um típico exemplo de falácia um modelo inovador de atenção à saúde, o qual

37
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

passa a ter um caráter primariamente coletivo • Funcionamento baseado • Funcionamento dos


e integral, construído sob a ação coordenada e na demanda espontânea serviços baseado na
organização da demanda
compartilhada de diversos profissionais de saú- e no acolhimento dos
de, planejado e estruturado no nível local com problemas da população
participação efetiva da comunidade e focado es- adscrita

sencialmente numa perspectiva de saúde inclu- Tabela 5. Diferenças entre o modelo hegemônico de atenção à saú-
de e o PSF brasileiro.
siva e multidimensional. Um resumo didático e
esclarecedor da clara dicotomia entre o modelo
clássico e hegemônico anterior à implantação do
PSF e o modelo proposto pelo PSF brasileiro foi O Modelo de Gestão
apresentado por Andrade e outros1 (Tabela 5).
O PSF brasileiro inaugurou não somente
Modelo Hegemônico PSF
um modelo inovador de atenção à saúde, como
também contribuiu para a consolidação de uma
• Saúde como ausência de • Saúde como qualidade
doença de vida nova perspectiva de gestão de saúde no Brasil, a
• �ase em práticas freqüen-
Base em práticas freqüen- • Prestação de serviços de qual foi iniciada com a fundação formal do SUS.
temente clientelistas, em saúde como um direito O marco regulatório do nosso sistema de saúde
que a prestação de servi- de cidadania
ços de saúde era realizada é representado pela constituição federal brasilei-
como um favor e não ra de 1988, a qual determina a construção de um
como um direito cidadão
sistema único de saúde, caracterizado pelos prin-
• Atenção centrada no • Atenção centrada no
cípios norteadores de universalidade de acesso à
indivíduo coletivo
saúde, equidade de atenção à saúde, hierarquiza-
• Centrado em ações • Centrado na atenção in-
Centrado na atenção in-
curativas tegral à saúde, incluindo ção das atribuições governamentais entre as três
ações de promoção, pro- esferas do poder público, integralidade da atenção
teção, cura e recuperação
à saúde, estímulo à descentralização das ações de
• Hospital como serviço • Hierarquização da rede
de saúde dominante de atendimento, ou planejamento e gestão e controle social das ações
seja, garantindo níveis governamentais de saúde30. A perspectiva inova-
de atenção primária,
dora e a complexidade intrínseca ao conjunto des-
secundária e terciária
articulados entre si ses princípios impõem um grande desafio à opera-
• Serviços de saúde con-
Serviços de saúde con- • Serviços de saúde cionalização efetiva dos mesmos. Especialmente
centrados nos centros distribuídos em todo o em virtude da necessidade de comprometimento
urbanos dos municípios território dos municí-
pios, permitindo acesso de recursos financeiros públicos, de expansão da
de toda a população rede de infraestrutura física de atendimento à saú-
• Predomínio da inter-
Predomínio da inter- • Predomínio da inter-
Predomínio da inter- de, de realinhamento das filosofias de atenção à
venção do profissional venção de uma equipe saúde, de capacitação dos gestores nos três níveis
médico interdisciplinar
de governo e da própria educação e informação do
• Planejamento e progra-
Planejamento e progra- • Planejamento e pro-
Planejamento e pro-
mação desconsiderando gramação com base em usuário, o processo de absorção desses princípios
o perfil epidemiológico dados epidemiológicos e no âmbito do SUS vinha sendo alcançado de for-
da população priorizando as famílias
ou grupos com maior ris-
ma desestruturada e pouco sistematizada, muitas
co de adoecer e morrer vezes tensionada pelo status quo que questionava
• Não-consideração da • Estimulação da participa-
Estimulação da participa- continuadamente a relevância, efetividade e até a
realidade e autonomia ção comunitária, garantin- justiça social de um sistema de saúde com as ca-
local, não-valorização da do autonomia nas ações de
participação comunitária planejamento do nível dos racterísticas organizativas e ideológicas do SUS.
territórios das equipes de Aliado a isso, a falta de profissionalização nos
saúde de família
processos decisórios de seleção e implementação

38
Capítulo 1 • Programa Saúde da Família: história, princípios, desafios atuais e futuros

de políticas públicas de saúde não era incomum. Dimensão


Impacto
Essas políticas eram normalmente motivadas Organizativa
pelo apelo político associado ao programa ou pela Universalização • Expansão disseminada de acesso à
atenção básica
simples disponibilidade de recursos internacio- - Tentativa de superação das
nais para o financiamento das mesmas e muitas iniqüidades de saúde, quando
vezes não seguiam uma coerência mínima com os houve uma oportunidade inicial
de acesso consistente à saúde
princípios estruturantes do SUS. em áreas de risco, especialmente
A opção governamental de se instituir o aquelas geograficamente isoladas
e de difícil acesso rodoviário
PSF foi então essencialmente construída numa
- Tentativa de superação das
perspectiva de superação dessas dificuldades, desigualdades regionais, quando
na medida em que o PSF foi selecionado sob a se possibilitou a implantação de
equipes do PSF compostas tam-
crença do aparente custo-benefício positivo das bém por médicos e enfermeiros
ações de atenção básica e da possibilidade de se em regiões brasileiras histori-
camente menos privilegiadas,
melhor estruturar o SUS1. A sua implementação
como o Nordeste e o Norte.
veio acompanhada de uma ampla transferência
Descentralização • Transferência de autoridade de ges-
Transferência de autoridade de ges-
de responsabilidade e adição de novos atores no tão administrativa/orçamentária ao
processo de decisões de saúde no nível local. As município
• Transferência direta e estável de
equipes de saúde da família passaram a ter um recursos federais para o financia-
papel que extrapolava a tradicional resposta pro- mento do programa
fissional às demandas de saúde e passaram a ser • Delegação da responsabilidade pri-
mária sobre a saúde dos cidadãos
organizadores da demanda local, planejadores das (e.g. planejamento das ações,
ações de saúde, educadores populares e essencial- implementação das mesmas e ava-
liação / monitoramento) ao poder
mente agentes de transformação social31,32. Essa público local
delegação de novas responsabilidades e ganho de • Ganho de autonomia nas decisões
autonomia no processo decisório de saúde pelas de saúde relativas aos Municípios
pelos profissionais de saúde locais
equipes locais aconteceu de forma associada a
Integralidade • Houve uma necessidade de se
uma transferência de autoridade de gestão admi- integrar a rede básica com as redes
nistrativa e orçamentária para o município que secundária e terciária quando PSF
passou a identificar problemas de
passou a ser o responsável primário pela assistên- saúde que não podiam ter resoluti-
cia integral à saúde dos municípios30. A proxi- vidade local. Esse processo acabou
midade desses processos decisórios de saúde da por estimular uma ação mais efeti-
va das redes regionais de atenção à
comunidade acabou por gerar uma maior cons- saúde, fomentadas pela pactuação
ciência e participação dos membros da comuni- entre municípios e o estado
• A própria tendência de se buscar
dade nas discussões de saúde e o próprio papel
interdisciplinaridade nas equipes
regulador da comunidade em relação às ações do do PSF contribuiu para a consoli-
poder público passou a ser mais pró-ativo. dação da integralidade
Logo, a implementação do PSF trouxe Controle Social • Maior consciência das condições
de saúde e participação comunitá-
consigo um importante impacto nos mecanismo ria nas decisões de relevância local
de gestão de saúde no Brasil, especialmente sob • Comportamento regulador mais
os princípios organizativos do SUS de universa- proativo nos conselhos municipais
de saúde, muitas vezes estimulado
lidade, descentralização, integralidade e contro- pelas próprias equipes de saúde
le social. Uma breve discussão da ação do PSF da família
• Algumas e�periências de planeja-
Algumas experiências de planeja-
sob cada uma dessas dimensões organizativas é mento e avaliação participativos
apresentado pela Tabela 6. Tabela 6. Impacto do PSF sob algumas das dimensões organiza-
tivas do SUS.

39
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Impacto Esse modelo sugere que o PSF tem uma


influência positiva na saúde da população não
Acredita-se que a atenção básica à saúde é só de curto prazo, através de uma expansão ini-
uma estratégia eficaz de melhoria dos resultados cial de acesso à atenção básica, mas também
de saúde em virtude do aumento do acesso aos ser- sustentada quando se criam garantias para uma
viços básicos, pelo impacto resultante sob a justiça gestão alinhada com o sistema em que o PSF
social e no processo de apoderamento das comu- está integrado e uma transferência de recursos,
nidades-alvos33. Entretanto para serem efetivos, autonomia de gestão e poder de decisão para as
sistemas de atenção básica devem ser baseados em comunidades, mais especificamente quando são
conhecimento científico acumulado e devem uti- criados mecanismos diretos e indiretos de parti-
lizar métodos socialmente e culturalmente aceitos, cipação comunitária efetiva130. O alinhamento e
que possam estar disponíveis para os indivíduos e consolidação com os princípios de descentrali-
as famílias nas comunidades onde elas residem. zação, integralidade e controle social garantem
Adicionalmente, acreditamos que qualquer polí- uma perspectiva de integração do PSF com o
tica de saúde implementada no contexto de um resto do sistema e possibilita uma atenção à saú-
sistema de saúde deve estar alinhada com os prin- de dos indivíduos e famílias que seja completa,
cípios ideológicos, organizativos e de filosofia de integrada e responsiva às demandas identifica-
atenção à saúde que norteiam esse sistema. das localmente. Enquanto que o apoderamen-
A experiência prática nas lides de gestão do to permite o fortalecimento das comunidades
PSF associada aos modelos de impacto de outras no processo de reconhecimento daquilo que as
experiências de atenção básica nos fez propor um afetam e na capacidade de ter acesso ao poder
modelo de impacto do PSF na saúde da popu- e aos mecanismos que possam transformar suas
lação brasileira que pudesse facilitar as aborda- realidades, assim permitindo a sustentabilidade
gens científico-avaliativas futuras. Esse modelo de programas e políticas considerados efetivos e
teoriza dois níveis de ação positiva do PSF sob a a geração de estratégias próprias de resposta aos
saúde da população, um intermediário (de pro- problemas identificados13,34.
cesso) e um final (de resultado), os quais estariam Esse modelo tem por intenção uma ex-
hierarquicamente associados, na medida em que plicação teórica dos mecanismos sociais que
para que se possa alcançar uma mudança nos in- moderam a ação do PSF sobre a saúde das co-
dicadores de resultado, o PSF teria que necessa- munidades em que as equipes estão inseridas.
riamente exercer algum tipo de influência sob os A busca dessa modelação teórica é fundamental
indicadores de processo. Uma ilustração do mo- para nortear as futuras expedições avaliativas de
delo proposto é apresentada pela Figura 1. larga escala, quantitativas e qualitativas, espe-
cialmente aquelas que permitam uma compre-
Consolidação dos princípios do SUS
- Descentralização, integralidade e controle social ensão adicional às informações descritivas dis-
poníveis atualmente, as quais servem mais como
Aumento de acesso* aos Melhoria dos resultados ilustração do que mesmo verdade científica. Es-
PSF
serviços de atenção básica de saúde da população
ses processos descritivos do impacto potencial
do PSF na saúde da população brasileira, espe-
Apoderamento da Comunidade
cialmente nos indicadores de acesso e resultado
• Edudação/informação a respeito das condições de saúde de saúde, foram discutidos pontualmente por
• Participação nos processos decisórios de saúde
• Ação comunitária organizada outros autores e estão disponíveis nos bancos
*
Superação de barreiras geográficas e culturais de acesso à saúde de dados do Ministério da Saúde, especialmente
Figura 1. Modelo lógico proposto para o impacto do PSF sob os in- no Sistema de Informações da Atenção Básica-
dicadores de processo e resultado de saúde nas comunidades-alvo.

40
Capítulo 1 • Programa Saúde da Família: história, princípios, desafios atuais e futuros

SIAB2236. Os dados descritivos disponíveis, ape- e comunidades;


sar de não definirem o impacto absoluto do PSF • Capacitação dos profissionais de saúde tra-
e uma compreensão dos processos moderadores balhadores das equipes de saúde da família
associados, indicam uma mudança de perfil da e alinhamento das filosofias de exercício
saúde dos brasileiros que coincide com o perí- profissional da atenção básica e da atenção
odo de implementação do PSF nos municípios especializada;
brasileiros nos últimos dez anos, como ilustrado • Mudanças nos cursos de graduação da área de
nas tabelas 7, 8 e 9 apresentadas abaixo: saúde para formação de profissionais genera-
listas, comprometidos com os princípios do
1994 2001 SUS, especialmente nos cursos de graduação
Tipo de Vacina (Percentual de (Percentual de
cobertura) cobertura) em medicina;
DPT 74% 95% • Implementação do artigo 200 do Capítulo de
Aproximadamente Saúde da Constituição Federal, que define
Sarampo 78%
100% que cabe ao setor de saúde regular a formação
Aproximadamente
BCG 94% de recursos humanos para o SUS, adequando
100%
a formação de profissionais de saúde do país
Aproximadamente
Poliomielite 71% às necessidades de saúde da população;
100%
• Investimento na interdisciplinaridade das
Tabela 7. Evolução da cobertura vacinal na população por tipo de
vacina, para os grupos populacionais com necessidade de cobertu- ações do PSF e aprimoramento da integralida-
ra, nos municípios cobertos pelo PSF22.
de para garantia de um PSF mais resolutivo;
• �usca de um conjunto de medidas de quali-
Ano Número de consultas pré-natais dade (e.g. processo e resultado) para que haja
(Em milhões/ano)

1996 4.2 um processo disseminado e consistente de


2001 10.1 monitoramento e avaliação dos programas no
nível local;
Tabela 8. Comparação do número total absoluto de consultas pré-
natais realizadas em 1996 e 2001, nos municípios cobertos pelo • Estabilidade das relações profissionais e de
PSF22. trabalho para que haja continuidade e soli-
dez no estabelecimento das relações entre
Taxa de Mortalidade Taxa de Mortalidade equipes de saúde da família e membros da
Ano
Infantil Materna
comunidade;
1994 41 Não disponível
• Garantia de mecanismos formais de partici-
1995 39.4 Não disponível
pação popular em busca de um PSF mais res-
1996 37.47 Não disponível
ponsivo às necessidades locais;
1997 36.7 61
• Implementação de política de comunicação
1998 33.1 68
social que garanta forte apoio popular ao
1999 31.8 55.8
SUS e ao PSF, dando conhecimento à popu-
2000 28.3 45.8
lação das grandes virtudes do Sistema Públi-
Tabela 9. Evolução das taxas de mortalidade infantil (por 1.000 nas- co de Saúde Brasileiro, apesar dos problemas
cidos vivos) e mortalidade materna (por 100.000 nascidos vivos)22.
existentes.

Desafios Futuros para o PSF e o SUS

• Capacitação dos gestores para o e�ercício de


gestão da atenção básica, focada nas famílias

41
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Referências 13. Lord Dawnson of Penn. Interim report on the


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42
Capítulo 1 • Programa Saúde da Família: história, princípios, desafios atuais e futuros

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43
Capítulo 3
Medicina de Família e Comunidade tegral e coordenada, da saúde das pessoas, indi-
no Brasil: uma aproximação do ferente da idade, sexo ou afecção, considerando
seu contexto familiar e comunitário1.
contexto histórico
Para tanto, o bom exercício dessa especia-
José roBerto Pereira de souza
lidade exige adequada utilização do Método Clí-
nico, do Método Epidemiológico e Social. Isto
porque esse especialista não acompanha apenas
a pessoa enferma, mas também a pessoa saudá-
vel, a que está em risco, a que apresenta seqüelas

E sse trabalho tem o propósito de auxiliar ao


médico cearense, principalmente os neófi-
tos na área de Medicina de Família e Comuni-
e a que vive em sua área de atuação3.
No Brasil, os Programas de Residência em
Medicina de Família e Comunidade são desen-
dade, no entendimento dessa especialidade no volvidos há mais de 25 anos. No início, foram
contexto brasileiro. É uma obra de aproxima- reconhecidos pelo Ministério da Educação, por
ção, sem o caráter de tratado, sem formulações intermédio da Comissão Nacional de Residên-
definitivas que pretenda delimitar de forma ab- cia Médica (1981) com o nome de Medicina Ge-
soluta o tema. Assim, percorrendo alguns mo- ral e Comunitária, tendo seu nome mudado para
mentos da história dessa especialidade médica, o atual em 20021.
apresentando algumas observações, esperando A Sociedade Brasileira de Medicina de
contribuir para que o leitor amplie seu horizon- Família e Comunidade (SBMFC) é a Entidade
te de compreensão sobre a especialidade e, prin- Nacional, com filiadas em 21 estados brasileiros,
cipalmente, perceba que existem muitos tipos que congrega os médicos que atuam em postos e
de médicos de família espalhados pelo mundo outros serviços de Atenção Primária em Saúde,
e pelo Brasil afora, a depender inclusive das ca- incluindo os do Programa de Saúde da Família
racterísticas da população e do sistema de saúde (PSF), prestando atendimento médico geral, in-
em que estão inseridos3. tegral e de qualidade a indivíduos, famílias e co-
Procuramos, pelo restrito objetivo desse munidades. Inclui também professores, precep-
trabalho e o grande risco de não incluir tantos tores, pesquisadores e outros profissionais que
atores principais, não citar nomes de pessoas atuam ou estão interessados nesta área (Estatuto
que contribuíram de forma decisiva para mui- da SBMFC).
tos importantes processos que resultaram em No Ceará a representante oficial da SB-
engrandecimento da especialidade ou da saúde MFC é a Associação Cearense de Medicina de
pública brasileira. Família e Comunidade (ACEMFC), entidade
fundada em 25 de janeiro de 2003.

A Especialidade
Os Primeiros Especialistas
Medicina de Família e Comunidade (MFC)
é uma especialidade médica com foco privilegia- Podemos afirmar que desde muito antes
do na Atenção Primária de Saúde (APS), que se da oficialização da “Medicina de Família e Co-
caracteriza por cuidar de forma longitudinal, in- munidade” (MFC) como especialidade médica,

45
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

existia no Brasil, incluindo o Ceará, experiência espetaculares. A medicina transformou-se assim


de uma prática médica integral, esse era o perfil em uma profissão reconhecida e, até em deter-
do profissional da medicina brasileira da segun- minado ponto, lucrativa”19.
da metade do século XIX7. Nessa época, princi- Reforçado pelo celebre Relatório Flexner
palmente na América e na Europa, encontramos (1910), “com sua ênfase no conhecimento expe-
esse Médico Geral, um “personagem importante rimental de base subindividual, provenientes da
dentro de qualquer comunidade, particularmen- pesquisa básica realizada geralmente sobre doen-
te nos países mais desenvolvidos; um persona- ças infecciosas, o modelo conceitual flexneriano
gem conhecido da comunidade, um conselhei- reforça a separação entre individual e coletivo,
ro, um líder em todos sentidos; incentivava privado e público, biológico e social, curativo e
mudanças socioeconômicas, transformações preventivo”14, a prática médica distanciava-se
comunitárias e ainda, era um epidemiologista cada vez mais do antigo Médico Geral. A Me-
prático...”12. As famílias mais abastadas tinham dicina Interna que se origina no final do século
seu médico, ele geralmente acompanhava todos XIX20, se consolida como especialidade a partir
os membros da família em seus problemas de da prática de clínicos gerais que migram para
saúde, do recém-nascido ao ancião, de ambos os as instituições hospitalares e, mesmo permane-
sexos, atendendo-os ora como clínico, ora como cendo com uma abordagem geral, dedicam-se a
cirurgião, e ainda como parteiro10. uma clientela mais específica (clínica do adul-
Em um período da história da medicina to). Dentro dessas instituições, a depender das
onde os avanços científicos ainda não tinham características da própria instituição, de algum
dado seu salto exponencial, o médico geral era financiamento específico ou do interesse pesso-
capaz de manejar praticamente todo conheci- al, muitos médicos passavam a se dedicar a uma
mento médico-científico existente. “A habili- área específica: a sub-especialidade.
dade e a sensibilidade eram os principais atri- Já em 1923, Francis Peabody mostrava-se
butos para o exercício desta atividade. O clínico preocupado com o exagerado grau de fragmenta-
geral percebia o corpo do paciente como um ção do sistema de tratamento de saúde; exigindo
todo indivisível”15. o retorno daquele médico que forneceria um tra-
tamento personalizado e abrangente17.
Esse movimento de especialização ganha
A Primeira Crise da Especialidade impulso na década de 1950 e 1960, principal-
mente nos EUA e na Europa, uma tendência
A medicina mesmo sendo uma ciência considerada sem volta, exigência dos avanços da
antiqüíssima, a consolidação das múltiplas espe- tecnologia médica. É claro que, no contexto dos
cialidades médicas só se estabelece no final do países ditos “dependentes”, como estava classifi-
século XIX e início do século XX. Esse aconte- cado o Brasil, e das regiões mais rurais, como era
cimento é atribuído a fatores tanto científicos, a realidade cearense, essa transformação se mos-
como sociais e econômicos; nesse sentido foram trou mais lenta, o que fez durar por mais tempo
determinantes os avanços no conhecimento mé- a figura do Medico Geral.
dico, principalmente de anatomia e de patolo-
gia, os avanços nas técnicas do diagnóstico e da
terapia. “Contudo, para chegar no florescimento A Especialidade frente à Medicina Moderna
verdadeiro da medicina especializada também
foram necessárias as expectativas crescentes dos Com a eclosão das especialidades hospi-
pacientes em busca de resultados cada vez mais talares e da biomedicina, os médicos perderam

46
Capítulo 2 • Medicina de Família e Comunidade no Brasil: uma aproximação do contexto histórico

a perspectiva global do antigo Médico Geral, a de pontuar “uma especialidade, que incorporas-
visão da história natural da enfermidade, a pers- se o conhecimento, as habilidades e os ideais que
pectiva dos problemas de saúde no seio familiar eles conheciam como tratamento primário”17.
e social e sua prevalência real, a integração da É assim que, seguindo uma postura con-
dimensão psíquica, física e social do paciente, a tra-hegemônica, em 1947, 147 médicos america-
promoção da saúde e a prevenção das enfermi- nos fundam a Academia Americana de Médicos
dades na atividade da clínica diária, etc16. de Família (AAFP), cuja missão era preservar e
O chamamento para a criação da Medicina promover a ciência e a arte da medicina da famí-
Familiar não significava uma oposição à medici- lia e assegurar o cuidado de saúde de alta qua-
na moderna, com suas múltiplas especialidades, lidade, custo-efetivo para pacientes de todas as
mas, pelo contrário, caracterizava-se como res- idades. Um movimento que se faz em diferentes
posta para garantir uma integração entre os di- regiões do mundo, de tal forma que em 1964, no
versos serviços de saúde, garantindo simultane- Canadá, se realiza a I Conferência Mundial de
amente uma atenção integral e contextualizada Colégios, Academias e Associações Acadêmicas
ao paciente. Vejamos as palavras de Francis Pea- de Médicos de Família7.
body, Professor de Medicina da Havard Medical A especialidade Medicina de Família co-
no período de 1921 a 1927, citado por Rakel17: meça a ganhar adeptos que acreditam em sua
“Nunca o público precisou tanto de con- importância para as futuras gerações e, contan-
selheiros inteligentes e bem treinados quanto do com o apoio de membros da Organização
hoje em dia para guiá-lo através do complicado Mundial de Saúde, se difunde em muitos países
labirinto da medicina moderna. O extraordi- desenvolvidos. De tal forma que em 1972, além
nário desenvolvimento da ciência médica, com da realização da Quinta Conferência Mundial de
sua conseqüente diversidade de especialidades Medicina Familiar, em Melbourne – Austrália,
clínicas e as limitações cada vez maiores na deli- tivemos a fundação da Organização Mundial de
mitação de cada uma dessas especialidades – na Colégios Nacionais, Academias e Associações
realidade, os muitos fatores que estão criando Acadêmicas de Médicos de Família (WONCA)
especialistas, por si só criam uma nova deman- e a realização de sua I Conferência Mundial7.
da, não de especialistas com horizontes estreitos, O momento mais significativo dessas
mas de médicos com muitos horizontes”. primeiras iniciativas no Brasil, provavelmente,
É o que se vê no Brasil, quando em 1967 acontece em 1973 na Faculdade de Medicina de
estrutura-se um modelo hospitalocêntrico, cen- Petrópolis-RJ, com a realização, por iniciativa da
trado na assistência médica especializada e co- Organização Mundial de Saúde (OMS) e da As-
mercializada9. “Na realidade, promoveu-se uma sociação Brasileira de Ensino Médico (ABEM),
completa separação entre o campo da assistência de um seminário intitulado “A Formação do
médica e o da saúde pública, com maciços inves- Médico de Família”2.
timentos no primeiro e o sucateamento do se- Surge, em 1976, os primeiros Programas
gundo. Neste novo contexto, foi implementado de Residência em Medicina Geral Comunitária
um projeto privatizante e medicalizante”11. do Brasil5:
Certamente o percurso transcorrido para o • Centro de Saúde Escola Murialdo (Por-
surgimento da Medicina de Família e Comunida- to Alegre - RS);
de como especialidade médica, não poderia ter essa • Projeto Vitória (Vitória de Santo Antão
mesma trajetória. Assim, nas décadas de 40 a 60, - Pernambuco);
principalmente nos EUA, na Europa e no Canadá, • Serviço de Medicina Integral da UERJ
alguns clínicos gerais reconhecem a necessidade (Rio de Janeiro - RJ).

47
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

A Especialidade no Contexto da Reforma dos consenso, na maioria dos países desenvolvidos,


Sistemas Nacionais de Saúde que o médico geral precisava ter uma formação
especial de pós-graduação em AP, mediante pro-
Principalmente a partir da década de 70, gramas de especialidade em Medicina Geral ou
“na medida que se ampliou a compreensão de Medicina de Família”6.
saúde, ampliou-se também a consciência das No caso específico do Brasil, na década de
limitações dos serviços tradicionais de saúde 80, a especialidade, mesmo com o funcionamen-
para atender às necessidades de saúde de toda a to de alguns programas de residência em Medici-
população”13. Assim, diversas reformas de saú- na Geral e Comunitária, não ganha importância.
de foram introduzidas na maioria dos países, Tanto o modelo assistencial vigente não absorvia
na tentativa de dar uma resposta a uma série de esse novo profissional, já que estava voltado para
questões, “incluindo custos crescentes, serviços uma medicina hospitalar especializada, como
ineficientes e de baixa qualidade, orçamentos também ela não encontrava espaço junto aos que
públicos reduzidos, novos avanços tecnológi- faziam saúde coletiva. Esse último grupo, olhan-
cos, e como uma resposta ao papel do estado em do as práticas vividas por experiências de Medi-
mutação”13. cina de Família em outros países, reclamavam
O maior marco mundial para a explosão de sua fragilidade prático-teórica em responder
dos programas de especialização em Medicina de às realidades sociais, considerando um retroces-
Família se dá aos doze dias do mês de setembro de so aos avanços postos pelo movimento de Medi-
mil novecentos e setenta e oito, na Conferência cina Preventiva e Social brasileira21.
de Alma-Ata, em Kasaquistão na antiga URSS, As discussões na América Latina estavam
quando representantes do mundo inteiro “expres- voltadas para algo além da própria moderniza-
sando a necessidade de ação urgente de todos os ção da medicina ou do sistema de saúde; inse-
governos, de todos os que trabalham nos campos rindo-se em um contexto de iniqüidades cres-
da saúde e do desenvolvimento e da comunidade centes, “elas apontam para a incapacidade das
mundial para promover a saúde de todos os povos sociedades de lidar com as causas subjacentes da
do mundo”18, declaram, entre outras, que: saúde precária e de sua distribuição injusta”13.
“Os governos têm pela saúde de seus po- Acontecimentos que mobilizam, de diferentes
vos uma responsabilidade que só pode ser rea- formas, todas regiões do mundo. Nas Américas,
lizada mediante adequadas medidas sanitárias nas décadas de 1970 e de 1980, haja vista a expe-
e sociais. Uma das principais metas sociais dos riência brasileira, essa crise se intensifica, mui-
governos, das organizações internacionais e de tos países viveram guerra, revolução política e
toda a comunidade mundial na próxima década governo totalitário.
deve ser a de que todos os povos do mundo, até Surgia aí, “uma nova análise dos determi-
o ano 2000, atinjam um nível de saúde que lhes nantes subjacentes do desenvolvimento huma-
permita levar uma vida social e economicamen- no e da saúde” com “uma crescente percepção de
te produtiva. Os cuidados primários de saúde que a saúde deve ter um lugar central na agenda
constituem a chave para que essa meta seja atin- do desenvolvimento. Um maior apoio à saúde se
gida, como parte do desenvolvimento, no espíri- reflete na forma como o desenvolvimento vem
to da justiça social”. a ser definido: uma vez considerado sinônimo
Nesse momento, em países da Europa e em de crescimento econômico, o entendimento pre-
outros países ricos industrializados, a APS foi dominante é agora multidimensional e tem base
vista primariamente como o primeiro nível de na idéia de desenvolvimento humano. Essa nova
serviços de saúde para toda a população13 e “era abordagem reconhece que a saúde é uma capa-

48
Capítulo 2 • Medicina de Família e Comunidade no Brasil: uma aproximação do contexto histórico

cidade humana básica, um pré-requisito para Essas experiências, mesmo pequenas na


os indivíduos alcançarem a auto-realização, um época da construção do Programa Saúde da
elemento da construção das sociedades demo- Família (PSF), tiveram sua importância, haja
cráticas e um direito humano básico”13. vista que quando da construção do programa, o
Poderia até não ser a especialidade “Me- Ministério da Saúde procurou conhecer as ex-
dicina Geral e Comunitária” que estivesse em periências em Medicina Geral e Comunitária
discussão, mas sim o perigo de repetir o mo- (MGC) que aconteciam em Niterói, no Grupo
delo de saúde onde ela foi inicialmente imple- Hospitalar Conceição, ligado ao Ministério da
mentada, respondendo apenas “aos impasses e Saúde, e a da SES de São Paulo8.
questionamentos sobre o modelo dominante de Também ganhou destaque a experiência
atenção médica, sobretudo no que se refere aos que acontecia em Quixadá-Ce, uma experiência
altos custos, sofisticação e superespecialização das mais recentes, mas com um diferencial impor-
do cuidado”14, não respondendo às exigências tante, incorporava uma equipe multiprofissional
sociais colocadas pela sociedade. onde incluia a presença do agente de saúde.
Contudo, para agravar esse conflito, em O Ministério da Saúde estava em busca de
1981, quando da oficialização da especialidade um novo modelo de atenção para comunidades
pela Comissão Nacional de Residência Médica pobres e sem médico, “à semelhança” dos Agen-
e fundação da Sociedade Brasileira de Medici- tes Comunitários de Saúde, considerado pioneiro
na Geral Comunitária (SBMGC), levantaram-se como programa institucionalizado e oficial. Uma
“rumores” de que os programas de residência de resposta a uma demanda dos prefeitos, por apoio
“Medicina Geral e Comunitária” iriam substituir do Ministério da Saúde, para um programa na-
os programas de Medicina Preventiva e Social22. queles moldes. Para muitos, era o quanto se podia
O que se configurou na prática é que, mes- avançar dentro do contexto político da época8.
mo estando reconhecida pelo Conselho Federal “No dia 27 de dezembro de 1993, reuni-
de Medicina desde 1986, o INAMPS, em 1988, ram-se no Ministério da Saúde representantes
corta todas as bolsas de Residência Médica para das experiências acima, mais alguns consultores
Medicina Geral Comunitária do Brasil. “Alguns e, então, foram definidas as bases do que viria a
Programas fecham, outros mudam de nome para ser o Programa de Saúde da Família, mediante
Medicina Preventiva e Social para não fecharem, uma proposta que procurava ser uma síntese de
poucos sobrevivem”5. todas”8, dentro das expectativas do próprio MS.
A partir de 1994, com a implantação do
Programa Saúde da Família (PSF), inicia-se
A Especialidade no Contexto do “Saúde um processo mais estrutural e sistematizado de
da Família” incorporação da APS ao sistema de saúde, pro-
vocando, entre outras coisas, uma demanda por
No contexto da reforma sanitária brasi- profissionais com qualificações específicas, não
leira, mesmo com a participação ativa de vários supridas em quantidade e qualidade pelas facul-
Médicos provindos da Medicina Geral Comuni- dades e programas de residência médica dispo-
tária, a especialidade, de 1988 até o ano de 2000, níveis no país4.
fica restrita a pequenas experiências. A própria O mercado de trabalho para o médico pro-
Sociedade Brasileira de Medicina Geral Comu- veniente da Medicina Geral e Comunitária cres-
nitária (SBMGC) é desativada por falta de pes- ce exponencialmente, trazendo um novo ânimo
soas que estejam dispostas a levá-la à frente5, à especialidade que se revigora. Muitos médicos,
voltando a funcionar apenas em 2001. ainda não especialistas da MGC, ao entrar em

49
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

contato com o PSF passam a estudar as experiên- O 8º Congresso Brasileiro de Medicina de


cias semelhantes e reconhecem a especialidade. Família e Comunidade (8º CBMFC) e o II En-
Em outubro de 2000, no Rio de Janeiro, contro Luso Brasileiro de Medicina Geral Fa-
com o apoio de entidades de Portugal, ocorre miliar e Comunitária, realizou-se na cidade de
o I Encontro Luso-Brasileiro de Medicina Ge- São Paulo nos dias 15 a 18 de junho de 2006,
ral, Familiar e Comunitária, encontro decisivo contando com a participação de cerca de 2.000
para a reativação da SBMGC e para a mudança médicos, onde aconteceu o 4º Concurso para o
do nome da especialidade. Em março de 2001, Título de Especialização em Medicina de Famí-
já com o nome de Sociedade Brasileira de Me- lia e Comunidade.
dicina de Família e Comunidade (SBMFC), a
entidade que representa a especialidade re-es-
trutura-se com uma nova cara e vigor5. A Associação Cearense de Medicina de
Em 2002 a SBMFC se filia à: Família e Comunidade
• Conferência Ibero-americana de Medi-
cina de Família (CIMF); Com mais de três anos da sua fundação, a
• Organização Mundial dos Médicos de Associação Cearense de Medicina de Família e
Família (WONCA). Comunidade vem se firmando na promoção do
desenvolvimento desta Especialidade no Brasil
Em 2003 a SBMFC chegou à sua 10ª So- e, principalmente, no Ceará. Desde sua fundação
ciedade Estadual – na ordem de filiação: RS, em janeiro de 2003, vem se colocando ativamen-
PR, SC, RJ, SP, MG, DF, CE, AM, GO. A sua te na discussão da qualificação dos profissionais
filiação é homolada à Associação Médica Brasi- médicos que trabalham na APS.
leira (AMB) e, em dezembro de 2003, a AMB Tem se apresentado como aglutinadora
aprovou o primeiro Edital para o Concurso para dos interesses dos médicos cearenses no que
o Título de Especialista em Medicina de Famí- se refere ao caráter científico e ao desenvolvi-
lia e Comunidade5. mento da especialidade Medicina de Família e
A primeira prova de título de especialista Comunidade.
em Medicina de Família e Comunidade se reali- Nesses três anos de sua existência, com
zou no dia 03 de abril de 2003, no Rio de Janei- cerca de 200 sócios, dentre eles 47 com títulos,
ro e, para alegria do Ceará, foi o estado que se tem tido um enorme papel na defesa da prática
destacou com as melhores colocações, inclusive médica e no processo de formação de recursos
com o primeiro lugar geral. humanos para o “Saúde da Família” do estado
É nessa época que a SBMFC inicia uma do Ceará. Sua atuação foi bastante promissora
nova faze de diálogo com o MS, obtendo pela na discussão da proposta de ampliação dos Pro-
primeira vez um apoio significativo quando da gramas de Residência em Medicina de Família
realização do 6º Congresso Brasileiro de Medici- e Comunidade e na luta pela desprecarização do
na de Família e Comunidade, evento que contou contrato de trabalho para os médicos do PSF.
coma a participação de 1.700 participantes, pro- Destaca-se também na promoção de even-
venientes de todas localidades brasileiras. tos científicos que difundem a especialidade:
Em Belo Horizonte-MG, acontece o 7º • Dois cursos de Atualização em Medici-
Congresso de Medicina de Família e Comuni- na de Família e Comunidade, com uma
dade e o segundo Concurso para a obtenção de participação de 50 médicos em cada;
título de especialistas, repetindo o sucesso do • I Jornada Cearense de Medicina de Fa-
evento anterior. mília e Comunidade;

50
Capítulo 2 • Medicina de Família e Comunidade no Brasil: uma aproximação do contexto histórico

• Participou ativamente dos dois últimos Referências


Congressos da AMC (Outubro Médico);
• Teve presença marcante no desenvol- 1. Anderson MIP, Gusso G, Castro FED. Medicina
vimento do I Curso de Pós-graduação de família e comunidade: especialidade em inte-
de Medicina de Família e Comunidade gralidade. Rev. APS 2005; 8(1):61-67.
(promovido pelo CREMEC em parceria 2. Campos FE, Belisário SA. O Programa de Saúde
da Família e os desafios para a formação profissio-
com ESP/CE e UFC), capacitando cerca
nal e a educação continuada. Interface - Comunic
de 130 médicos;
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• Realizou no Ceará, em parceria com a
http://interface.org.br/revista9/debates1.pdf.
SBMFC, o primeiro Concurso de Título
3. Confederación Ibero América de Medicina Fa-
de Especialista em Medicina de Família miliar (CIMF), Organización Panamericana de
e Comunidade (TEMFC), contando com la Salud (OPS/OMS) y la Sociedad Española de
a participaçào de cerca de 60 médicos; Medicina de Familia y Comunitaria (sem FYC).
• Realizou juntamente com o Sindicato I Cumbre Iberoamericana de Medicina Familiar.
dos Médicos do Ceará, o I Fórum Cea- Declaración de Sevilla. Comprometidos con la
rense dos Médicos da Atenção Primária. Salud de la población. Sevilla, España, 14-17 de
Mayo, 2002.
Em novembro de 2006, a ACEMFC re- 4. Dalla, MDB. Saúde e educação médica:Voltando
alizou o I Congresso Cearense de Medicina de ao caminho pela Medicina de Família. Revista
Família e Comunidade com a pretensão de in- Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
2004;1(1).
fluenciar, de modo marcante, o rumo da profis-
5. Falk JW. A Medicina de Família e Comunidade e
sionalização e da própria prática médica exerci-
sua Entidade Nacional: História e Perspectivas.
da no Programa Saúde da Família do Ceará, seja
R Brasil Med Famíl Comun. 2004, 1(1).
ensejando o encontro da academia com o serviço
6. Forster AC. Considerações sobre a formação em
ou mesmo, quando propiciou a discussão apro- medicina de família e atenção primária. Medici-
fundada de diversos temas relativos à Medicina na, Ribeirão Preto 2001;34: 202-203.
de Família e Comunidade e do seu reconheci- 7. Gómez GT, Ceitlin J. Medicina de familia: la
mento como especialidade médica de excelência clave de un nuevo modelo. Madrid, sem FYC –
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8. Goulart, FAA. Experiências em Saúde da Famí-
lia: cada caso é um caso? – Rio de Janeiro: 2002.
Comentários finais 387 p.
9. Guimarães R. (org.) Saúde e Medicina no Brasil:
Com esta aproximação, pretendemos tão- contribuição para um debate. Rio de Janeiro: Ed.
Graal, 1978. 279 pp (Coleção Saúde e Sociedade,
somente desvelar um processo de re-incorpora-
v. 2, nº. 2).
ção do “Médico Geral” no Sistema de Saúde Na-
10. Guimarães R. (org.) Saúde e Medicina no Brasil:
cional e do Ceará, principalmente carreada pela
contribuição para um debate. Rio de Janeiro: Ed.
implantação da Estratégia Saúde da Família e
Graal, 1978. 279 pp. (Coleção Saúde e Sociedade,
pela organização das Associações de Especialis- v. 2, nº. 2).
tas em Medicina de Família e Comunidade. Tra- 11. Merhy EE. Queiroz MS. Saúde pública, rede bá-
ta-se de uma leitura parcial dessa rica história, sica e o sistema de saúde brasileiro. Cad. Saúde
mas que certamente motivará novos registros, Pública. 1993;9(2):177-184.
diferentes olhares, construções fundamentais 12. Olmo JD. La medicina familiar en México y en el
para a compreensão dessa trajetória. mundo. Arch Méd Fam 2003;5(4):136-139.

51
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

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Abrasco. 2004;12(92). Disponível em: http://
www.abrasco.org.br/Boletins/bol92/BOLETIM
%2092.pdf.

52
Capítulo 4
Competências do médico paciente, e a quem o paciente pode se dirigir no
de família dia a dia, para as suas consultas de saúde.
Na tentativa de sistematizar as caracte-
aline Piol sá
rísticas da figura do Médico de Família, inicial-
clóvis de souza BarBoza neto
mente deve ficar claro que este profissional deve
reunir um conhecimento amplo e profundo da
Medicina Interna e do manuseio das principais
patologias da Clínica Médica. É necessário sa-
ber bastante de tudo para agir com competência.
Introdução Ao mesmo tempo deve ser um profissional com
permanente atualização nos modernos métodos

O desenvolvimento crescente de políticas de


saúde direcionadas à Atenção Primária tor-
na imperativa e urgente a busca por profissionais
diagnósticos e nos avanços terapêuticos para
conduzir os casos corretamente, oferecendo ao
paciente o melhor possível.
qualificados para exercerem as práticas básicas Não menos importante, deve ser a sua for-
de saúde de forma efetiva e resolutiva. Presen- mação humanística e cultural, permitindo que
ciamos, em pleno século XXI, a revalorização do conserve a visão do homem no seu conjunto,
ser humano, de suas relações interpessoais e de integrado no meio social e familiar. Isto lhe per-
suas emoções. Torna-se tão importante na figura mite levar em conta as peculiaridades de cada
do médico, sua habilidade de relacionar-se com paciente e fornece uma visão ampla, que torna a
o paciente, assim como sua perícia técnica. relação médico-paciente bem mais proveitosa.
Os avanços técnico-científicos na medici- O resgate da figura do Médico de Famí-
na contribuíram para criar uma cultura médica lia traz benefícios substanciais para o paciente.
sedimentada na divisão do homem em partes O mais importante deles é ter um profissional
cada vez menores, criando médicos altamente como médico de referência para os problemas di-
especializados em uma pequena parte do todo. ários de saúde, patologias crônicas e agudas, do
Nesse contexto, paradoxalmente, o homem paciente ou dos familiares. Um médico unifica-
sente a necessidade de ser visto integralmente, dor que organize a desorientação que os variados
inserido em um contexto social, cultural, fami- sintomas produzem no paciente, que estabeleça
liar e afetivo. As pessoas anseiam por um médico as hipóteses diagnósticas principais, programe
de confiança, que entenda seus problemas e as os exames complementares e prescreva, seguida-
orientem quanto a eles. Que administre os outros mente, a terapêutica adequada em cada caso. Que
especialistas a que recorrem em busca de alívio de ordene hierarquicamente os diversos problemas
determinados sintomas, mas que não conseguem médicos que acometem o paciente, estabelecen-
juntar as peças do complexo quebra-cabeça que do a seqüência devida para que os tratamentos
é o ser humano. A expressão antiga – médico de obedeçam às prioridades corretas de acordo com
cabeceira – parece adequada para definir a função as peculiaridades do paciente e que, quando ne-
do Médico de Família. Como um livro de cabe- cessário, solicite a ajuda do especialista, para um
ceira, que se consulta habitualmente para tudo, determinado aspecto.
também o médico deve ser como um vademecum O médico de família é um profissional
– vai comigo – que se adapta às necessidades do capacitado na disciplina da medicina familiar,

53
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

uma especialidade clínica bastante abrangen- A Sra. Maria de Fátima estava preocupada
te, que requer habilidades, conhecimentos e porque o Sr. Antônio Carlos estava muito assustado,
atitudes singulares em sua prática. Fornece pois o médico do hospital disse que seria difícil ele
tratamento abrangente e contínuo, de forma recuperar a fala e a força da perna e que se ele não se
personalizada, aos pacientes de todas as idades cuidasse, poderia ter um outro “derrame” com conse-
e às suas famílias, independente da existência qüências ainda mais graves.
de doença ou da natureza da queixa inicial. O que a Dra. Carolina deverá fazer diante
São responsáveis por todas as necessidades de dessa situação?
saúde de um indivíduo, ao mesmo tempo em Inicialmente, a médica necessita realizar
que mantêm uma relação de confiança e intimi- uma abordagem ampla e objetiva do caso em
dade com ele e sua família. Deve atender com conjunto com toda a sua equipe, avaliando as
qualidade e resolutividade cerca de 80% dos falhas na condução deste (sejam profissionais e/
problemas de saúde do paciente, no âmbito da ou do indivíduo e de sua família em questão);
atenção primária, e selecionar adequadamente objetivando metas para sua condução da melhor
especialistas aptos a solucionar o restante dos forma possível, inserindo a família e a comuni-
problemas, agindo como coordenador de todos dade em que vive, levando em consideração os
os profissionais de saúde envolvidos, manten- seguintes tópicos:
do responsabilidade contínua pelo tratamento • Avaliação do indivíduo como um todo: há-
do paciente. bitos de vida (tabagismo, uso de álcool, dieta
No Brasil, a Medicina de Família e Co- adequada, atividade física regular), acompa-
munidade foi reconhecida como especialidade nhamento com exames laboratoriais de roti-
médica pelo Conselho Federal de Medicina em na, IMC, uso regular dos medicamentos pres-
2003 e em 2004 foi realizada a primeira prova critos, relação com familiares e pessoas de sua
para obtenção de Título de Especialista. comunidade.
• Quais os reais motivos que o fizeram não ade-
rir aos medicamentos regularmente?
Caso Clínico • Qual o tipo de relação que o mesmo possui
com sua família, no seu trabalho e com as pes-
Dra. Carolina é médica de família da co- soas de sua comunidade?
munidade de Nova Vida há 04 anos. Ao chegar em • Como criar as melhores estratégias de aderên-
sua unidade de saúde, na última segunda-feira, foi cia do indivíduo ao tratamento preventivo de
abordada por uma de suas agentes comunitárias de novas complicações e de manutenção de um
saúde, Sra. Maria de Fátima, que a aguardava para quadro clínico estável?
comunicar que o Sr. Antônio Carlos, um paciente de • Comandar sua equipe na conduta de referên-
58 anos, hipertenso, diabético e tabagista, bastante cias específicas (cardiologista, neurologista,
resistente ao tratamento medicamentoso e comporta- fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicólogo, en-
mental, estivera internado no final de semana devido tre outros) para seu quadro clínico, no que
a um Acidente Vascular Cerebral. concerne a seu restabelecimento dos níveis
Informou que o mesmo sofrera um desmaio pressóricos e de sua reabilitação motora e da
na sexta-feira à noite, dando entrada na emergência fala, mantendo um acompanhamento bas-
do hospital municipal com a pressão muito elevada tante próximo através de toda sua equipe de
(230x120mmHg) e que recebera alta no domingo à saúde da família; utilizando todos os dados
noite com “fraqueza” na perna direita e com dificul- de seu prontuário familiar e individual e
dade para falar. procurar saber com detalhes toda sua evolu-

54
Capítulo 3 • Competências do médico de família

ção desde a entrada no hospital até sua alta, te. Trata-se de reunir a ciência com a arte médi-
avaliando e discutindo seu caso com todos os ca, oferecer ao paciente o melhor conforto técni-
profissionais envolvidos no seu período de co e humano possível.
internação. Diversos autores descreveram de formas
• Inserí-lo de volta ao seio familiar, de sua co- diferentes, porém complementares, as compe-
munidade e de seu trabalho da forma mais tências do Médico de Família. Listaremos uma
adequada possível. compilação dessas descrições, tentando abran-
• Organizar os grupos de diabetes e de ajuda. ger todos os aspectos envolvidos.
Impõe-se a necessidade de que o médico con- • Deve o médico possuir um conhecimento
sulte e estude o paciente como um todo, em uni- amplo e profundo da Medicina Interna - da
dade, numa abordagem geral e completa. Clínica Médica, se preferirmos o termo - e do
manuseio das principais patologias, daquelas
O paciente deve ser trabalhado e tratado que têm maior prevalência. O Médico de Fa-
até chegar, quando necessário, ao especialista, a mília não é aquele que sabe um pouco de al-
quem devem ser encaminhados somente os ca- gumas coisas, mas é necessário saber bastante
sos necessários. Isto é administração racional de tudo; do contrário resulta a incompetência
dos recursos, aproveitar o tempo do especialista para a função desejada. Não é alguém que se
para o que é da sua estrita competência. As ques- limita a receitar sintomáticos, nem um palia-
tões ordinárias – ou extraordinárias – de saúde tivo para uma situação que demanda compe-
devem ser consultadas ao Médico de Família. É tência científica.
dele a responsabilidade pelo paciente. É o seu • Deve também procurar uma permanente atu-
médico, aquele que “coordena o caso”, traça os alização nos modernos métodos diagnósticos
programas a seguir e convoca os especialistas e nos avanços terapêuticos para conduzir os
quando necessários. É quem traduz em lingua- casos corretamente, oferecendo ao paciente o
gem compreensível para o paciente, o que com melhor possível. Não ser especialista não sig-
ele está se passando e as perspectivas diagnós- nifica desconhecer os progressos da técnica,
ticas e terapêuticas. O paciente sente-se seguro viver alheio a eles, e tratar os pacientes com
sabendo que alguém cuida dele, que é responsá- terapêutica superadas ou anacrônicas. O per-
vel pelo seu estado e que procurará os melhores fil moderno – fruto dessa constante atualiza-
recursos para atendê-lo. ção e estudo – significa tratar o paciente com
“Tão importante como conhecer a doença os melhores recursos técnicos do momento.
é conhecer a pessoa que tem a doença”. Ou tam- • O esforço por adquirir uma sólida formação
bém: “Não existem doenças, mas doentes”. Sem humanística e cultural que permite conser-
esquecer de William Osler, um grande médico, var a visão do homem no seu conjunto, in-
que afirmava: “Mais importante do que o mé- tegrado no meio social e familiar é elemento
dico faz, é o que o paciente pensa que o médico imprescindível. É preciso levar em conta as
está fazendo”. peculiaridades do paciente, idade, cultura,
dependência. E, sempre, uma perspectiva re-
alista da situação: fazer o que é possível de
Características do Médico de Família fato, sem perder-se em sonhos de possibili-
dades que estão fora do alcance do momento.
Uma função de origem antiga com perfis Uma relação médico-paciente proveitosa de-
modernos. Um papel que requer características pende em grande parte desta preparação do
peculiares, para desempenhá-lo satisfatoriamen- médico que deve ser, além de cientista, um

55
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

acadêmico, um universitário: um homem de vive tempos de vertiginoso progresso técnico.


visão ampla. Paralelamente, nunca se chegou a semelhante
• Ganhar interesse e e�periência na avaliação e nível de despersonalização – de desumanização,
tratamento de pacientes no meio domiciliar. por usar uma linguagem na moda – na hora de
A Visita Médica Domiciliar é prática insepa- tratar o paciente. Parece até que o médico está
rável do Médico de Família. O acompanha- tão preocupado com a doença que se esquece do
mento de doentes crônicos no seu domicílio, paciente que é o portador dessa doença. Não é
fornecendo uma orientação completa – nutri- culpa de ninguém, mas sim uma situação que
cional, comportamental e medicamentosa – é requer um posicionamento novo, para recuperar
fonte contínua de solicitações em Medicina o aspecto humano da medicina, isto é, para co-
de Família. locar o paciente em primeiro lugar. No cenário
• Uma postura profissional aberta e integra- da medicina o paciente sempre é o protagonista,
dora, que lhe permita gerenciar o caso do o ator principal; o máximo que o médico deve
paciente sob os seus cuidados, convocando ser é um bom coadjuvante. O médico de família
quando necessário os especialistas, solici- surge assim como a figura integradora, como um
tando os auxílios específicos. Por isso deve referencial de confiança para que o paciente pos-
saber dialogar, pedir conselho, facilitar o sa consultá-lo nas questões ordinárias de saúde.
trabalho do colega especialista, em atitude Saberá este nosso médico de família – que tem
sinérgica que procura, sempre, o benefício a sabedoria do velhinho, mas com roupa nova,
maior do paciente. sem colete do século XIX – estudar o paciente
como um todo, numa abordagem geral, comple-
É preciso reinstalar a cultura do Médi- ta. Saberá ouvir o paciente, saberá ajudar, cuidar.
co de Família com credibilidade. Não é difícil, Saber-se cuidado é aspecto fundamental na luta
mas requer competência, dedicação, compro- do paciente contra a doença. Um médico que é
misso com um ideal que se resume em “saber técnico, moderno, atualizado; e que é ao mesmo
cuidar, querer cuidar” dos outros. Estar do lado tempo humano, compreensivo, cuidador.
de quem sofre, esforçar-se por entendê-lo, dar O médico de família é um profissional
respostas às dúvidas do paciente, ampará-lo nos centrado na atenção do ser humano. Entende-
seus medos. “Quem tem muitos médicos acaba mos por Médico de Família, o profissional que
não tendo nenhum” – diz um ditado popular. E reúne amplo conhecimento científico, que pro-
é verdade. “Quanto mais médico, pior” – dizia cura permanente atualização nos meios diagnós-
outra paciente, velha conhecida – a gente não ticos e terapêuticos e que possui formação hu-
sabe o que acontece, e acaba tomando um monte manística, antropológica e ética podendo deste
de remédio, fazendo muito exame. modo abordar o paciente – cada paciente – na
A Medicina de Família, especialidade sua integridade. A denominação de Médico de
reconhecida em muitos países, luta por abrir Família foi a mais adequada que encontramos
caminho no nosso Brasil. Um caminho que im- para, trazendo de volta essa figura que o pa-
plica atender às necessidades da população e, ciente procura mesmo sem sabê-lo, significar o
ao mesmo tempo, instalar-se na Universidade, profissional que exerce a Medicina em toda sua
nas faculdades de medicina – que é onde se for- plenitude: aliando ciência e arte.
mam os médicos – para fazer deles profissionais
competentes. Deve ser alguém que incorpore os
progressos da ciência e os faça chegar ao pacien-
te numa linguagem compreensível. A medicina

56
Capítulo 3 • Competências do médico de família

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57
Capítulo 5
Atenção ao paciente no Rute, agente comunitária de saúde, visitou
contexto familiar Fabiana diversas vezes e orientou que ela procurasse
o Centro de Saúde para iniciar o pré-natal. Fabiana
tatiana Monteiro Fiuza
recusou-se, alegando que não vê problemas em não
Marco túlio aGuiar Mourão riBeiro
adriana valéria assunção raMos realizar o pré-natal, pois não o fez em sua primeira
KilMa Wanderley loPes GoMes gestação e João “nasceu normal”.
Ao chegar ao centro de saúde, João foi atendi-
“Não é mais possível exercer uma clínica exclusivamente do como “urgência”, pois estava com febre elevada.
médica, de enfermagem, fisioterápica ou psicológica, quando se O médico diagnosticou amidalite e prescreveu amo-
está em contato com as necessidades de saúde de uma população
ou comunidade. A clínica precisa ser muito mais do que um xicilina de 8/8 horas e dipirona.
profissional fazendo diagnósticos de doenças, prescrevendo
ou administrando medicamentos, orientando normas de vida,
Fabiana deixou o Centro de Saúde com a
exercícios físicos, interpretando comportamentos, solicitando medicação para o tratamento de João, mas an-
ou colhendo exames. Em outras palavras, faz-se necessário
repensar-se a clínica quando se está em contato tão próximo gustiada por ser “sozinha para criar o filho em um
das adversidades da vida e das pessoas, de suas famílias e suas bairro tão violento”. No entanto, não foi “diagnos-
comunidades. Torna-se necessário compreender o todo dos
sujeitos, a singularidade de suas vidas e de suas famílias e sua ticada” mais uma gestante sem acompanhamento
realidade social e comunitária.” Fernando césar chacra pré-natal, mais uma família vulnerável e mais uma
pessoa necessitando de apoio. Fabiana resolveu ad-
ministrar a medicação só à noite, pois, para traba-

O s objetivos deste capítulo são abordar as


concepções de família que embasam a Es-
tratégia de Saúde da Família e discutir aborda-
lhar, precisa deixar o filho sob os cuidados de uma
adolescente de 12 anos.

gens de intervenções no sistema familiar a partir


de uma visão sistêmica da família na perspectiva A família – Conceitos e Significados
de uma clínica ampliada.
A Família constitui um tipo especial de sis-
tema com estrutura e padrões de funcionamen-
Caso Clínico to que organizam a sua estabilidade e relações
de inclusão, controle e intimidade. É o cenário
Fabiana, 21 anos, solteira, vive em uma casa onde seus membros protagonizam o reconheci-
de dois cômodos, alugada, na periferia de Fortaleza. mento da diversidade e do aprendizado quanto
Dona Francisca, mãe de Fabiana, faleceu há dois ao unir-se e separar-se; relacionar-se com outros
anos devido a infarto agudo do miocárdio. Fabia- sujeitos, pensar, sentir, saber e agir. Independen-
na não conheceu o pai. Fabiana procurou o Centro temente de sua constituição, é o lugar onde se
de Saúde, levando seu filho João (4 anos) devido ouvem as primeiras falas, com as quais se cons-
a dor na garganta, febre alta e redução do apetite, trói a auto-imagem e a imagem do mundo exte-
iniciados há dois dias. Fabiana está grávida de seu rior. Assim, é fundamentalmente como lugar de
segundo filho, com 28 semanas de gestação, não está aquisição de linguagem que a família define seu
realizando acompanhamento pré-natal pois “traba- caráter social.
lha como faxineira 8 horas por dia para receber 200 A família, seja como for composta, vivida
reais ao mês e não consegue encontrar o posto de e organizada, é o filtro através do qual se começa
saúde aberto”. a ver e a significar o mundo. Esse processo que

59
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

se inicia ao nascer estende-se ao longo de toda a níveis de vida.” (VIII Conferência Nacional de
vida, a partir dos diferentes lugares que se ocupa Saúde, 1986)
na família. Funciona como espaço privilegiado Entender saúde dentro de um conceito
para a construção de relações entre os indivídu- ampliado, como resultado de interações com-
os e de elaboração das experiências vividas. plexas de determinantes biológicos, físicos, psi-
Cada família constrói uma história que é cológicos, socioeconômicos, culturais, enfatiza a
enriquecida dia a dia com as vivências e leituras unicidade dos vários níveis de organização do
da realidade de cada integrante. A família, como homem: como indivíduo, como parte de uma
o mundo social, não é uma soma de indivíduos, família e como ator social que participa ativa-
mas sim um universo de relações. mente de uma comunidade. Essa visão sistêmica
O termo família foi definido de diversas caracteriza o processo saúde-doença como uma
maneiras, de acordo com a estrutura de referên- ordem dinâmica de partes e processos que per-
cia familiar do indivíduo, o julgamento de valo- manecem em permanente interação recíproca.
res ou a disciplina que o define. Quase todas as Uma visão holística do processo saúde-doença,
sociedades conferem uma posição elevada para o abordando os problemas, incluindo todas as
estado marital e para a família patriarcal, porém, suas conexões importantes, torna-se necessário
na sociedade moderna, é necessária uma defini- que o médico e a equipe de saúde encarem a fa-
ção mais ampla de família. Famílias estendidas, mília do paciente como contexto problema ou
monoparentais, domicílios intergeracionais, recurso terapêutico.
instituições, casamento homossexual, entre ou- Segundo Bastos (1996), análises de práticas
tras conformações familiares, integram a socie- de cuidado à saúde no contexto do PSF apontam
dade contemporânea. na direção de um papel ativo das famílias (das
Para Patterson (1995), família é um grupo mães, particularmente) na administração de cui-
de pessoas vivendo juntas ou em íntimo conta- dados à saúde, mediante a adoção de estratégias
to, que cuidam uns dos outros e proporcionam alternativas que tentam dispensar o recurso ao
orientação para seus membros independentes. sistema oficial de assistência, na medida em que
De uma forma mais importante para um deter- este reiteradamente se revela inacessível, frus-
minado paciente, família é aquilo que ele consi- trante, hostil e ineficaz.
dera como tal. A doença ocorre e frequentemente é re-
solvida no contexto da família. A família ajuda
a definir o comportamento da doença e muitas
A família e o processo saúde-doença – Um vezes, influencia a decisão de procurar cuidados
conceito ampliado de saúde médicos e na adesão ao tratamento. As famílias
podem influenciar a aceitação do quadro e facili-
“Saúde é o estado de completo bem estar tar o tratamento e os esforços de reabilitação.
físico, mental e social, e não apenas ausência de A família compõe uma rede de conexão na
doença.” (OMS). qual, também o processo de produção da saúde
“Saúde como a resultante das condições se realiza. Os diferentes estilos de vida, as rela-
de alimentação, habitação, educação, renda, ções e modos de compartilhar de uma família
meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, podem ser fatores que contribuem na promoção
lazer, liberdade, acesso e posse de terras, acesso da saúde.
a serviços de saúde. É assim o resultado das É imprescindível não simplificar um obje-
formas de organização social da produção, as to tão complexo como a família no momento de
quais podem gerar grandes desigualdades nos definir e avaliar práticas de saúde. É necessário

60
Capítulo 5 • Atenção ao paciente no contexto familiar

perguntar de que família falamos, enfatizando o suem problemas complexos que inúmeras vezes
desenvolvimento de análises sobre práticas cultu- se expressam por sintomas vagos ou indefinidos,
rais e representações sobre saúde-doença no âm- que não conseguem ser explicados pela ciência
bito da família, e de seu próprio modo de vida. médica, porque sua (s) origem está nas dificulda-
des que existem em seu ambiente (ecossistema),
onde a família possui papel central. Esta adquire
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) e a importância fundamental, visto que pode cons-
atenção ao paciente no contexto familiar tituir-se em fonte geradora de problemas e an-
tagonicamente de recursos terapêuticos. O mau
A Estratégia de Saúde da Família é um êxito terapêutico, muitas vezes, é conseqüência
modelo de organização dos serviços de Atenção da não-avaliação da situação problema dentro
Primária à Saúde peculiar do Sistema Único do contexto vivencial familiar.
de Saúde brasileiro (SUS); baseado em equipes Nem sempre os profissionais de saúde es-
multiprofissionais que priorizam ações de pro- tão preparados para lidar com a dimensão subje-
moção da saúde, sem com isto desprezar a clíni- tiva, ou seja, com os sentimentos, sentidos, afe-
ca, visto que a integralidade das ações é um dos tos, medos e emoções. Cada pessoa ou grupo lida
princípios doutrinários do SUS. de maneira diferente com as informações que
O médico de família e comunidade (MFC) recebe no dia a dia, o que interfere nas ações e
é o profissional com formação específica para no modo de compreender o mundo.
atuar na ESF. A Medicina de Família e Comuni- Outro problema é o modelo de atenção
dade (MFC) é uma especialidade médica carac- centrado na relação queixa-conduta, ou seja, a
terizada pela atenção integral à saúde e por levar queixa é o que determina o procedimento e não
em consideração a inserção do paciente na fa- um olhar integral do sujeito. Por exemplo, se o
mília e na comunidade, e que o processo saúde- indivíduo é hipertenso, se é deprimido ou não,
doença é fortemente influenciado pelo contexto se está desempregado ou não, se possui apoio
social e familiar. familiar e social ou não, tudo isto interfere no
O Trabalho em saúde da família deve con- prognóstico da doença e não pode ser deixado de
siderar a família como lócus básico de atenção. lado no atendimento à saúde. Uma pessoa pode
A compreensão da rede social na qual está inse- ser influenciada de várias maneiras, pelas ten-
rida a família permite ao médico de família vis- sões do dia a dia, pelos problemas sociais, eco-
lumbrar os apoios e as crenças da família. Faci- nômicos e familiares. O atendimento deve levar
lita a identificação das pessoas-chave para apoio em conta tudo isso e não somente a queixa do
e em que universo cultural estará interagindo o momento, porque essa queixa pode ser apenas a
paciente e sua família. “ponta do iceberg”.
A visita domiciliar é uma das ações prio-
ritárias da ESF. A incorporação do atendimen-
to domiciliar aponta para uma reestruturação Trabalhando com famílias
e reorganização das práticas de saúde para
além dos muros dos serviços de saúde, deslo- Caso clínico
cando seu olhar para o espaço-domicílio das
famílias e comunidades nas quais as práticas A Senhora SBFF, 64 anos, viúva, aposenta-
estão enraizadas. da, reside sozinha no domicílio, em Patos de Minas
Na prática diária do MFC, muitas são as (MG). SBFF é mãe de quatro filhos, todos homens e
situações que além da doença, os pacientes pos- avó de quatro netos sendo uma menina e 3 meninos.

61
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

A Sra. SBFF vem à unidade de saúde pela sexta pelho da família, apesar de muito ciumento fazendo
vez no último trimestre a procura de consulta médi- com que a Sra. SBFF vivesse mais dentro de casa.
ca. A mesma apresenta-se indiferente, apática, “cara Freqüentava apenas a igreja católica e reuniões fe-
fechada”, “poliqueixosa” e tendo como queixas prin- mininas exclusivas. Há cinco anos descobriu que es-
cipais: “Dores nas pernas e nas costas, dor de cabeça, tava sendo traída pelo Sr. OF, o que culminou com
dor na veia do pescoço à esquerda, dor nos ossos e a separação do casal e com a saída de OF da casa.
braços, enjôo, tonturas, esquecimento, dor nos ouvi- Antes e após a separação ocorreram muitas discus-
dos pulsando e insônia”. Sra. SBFF relata que tudo sões, brigas, agressões físicas e até mesmo ameaças de
em sua vida começou errado, pois o pai faleceu no morte contra Sra. SBFF por OF.
dia do seu nascimento devido a acidente de trabalho. O filho mais velho JC tem bom relacionamen-
Aos nove anos começou a trabalhar como babá em to com a Sra. SBFF sendo casado com D 37 anos
casa de família onde: dormia, comia e trabalhava de tendo dois filhos: T 15 anos e I 14 anos e moram em
segunda a domingo tendo apenas a tarde e a noite do Unaí (MG). O segundo filho EF trabalhava como
domingo para ficar em casa, referindo não ter tido gerente auxiliar em revendedora de veículos, casa-
infância. Aos doze anos passou a trabalhar em ou- do com V 33 anos tendo dois filhos: H 14 anos e V
tra residência novamente como babá, pois o emprego 10 anos. EF, após a separação dos pais, apresentou
anterior explorava a mesma, onde tinha que levantar quadro depressivo, levando à perda do emprego e es-
de madrugada para lavar jardins. Neste novo empre- tando em tratamento psiquiátrico até o momento. EF
go fazia de tudo e estava sempre disponível, pois em tem um bom relacionamento com a Sra. SBFF. O
casa a situação financeira era precária. Estudou ape- terceiro filho WF casado com J 32 anos, advogado,
nas o primeiro ano primário. Apesar do pouco estudo recém formado e desempregado, apresenta dificulda-
apresenta boa comunicação. de de relacionamento com a Sra. SBFF. WF não
A Sra. SBFF devido a preconceito da época, concorda, na maioria das vezes, com a opinião da
pois segundo sua mãe - “Filha de viúva casa cedo mesma, desequilibrando a estrutura familiar e culpa
para não ficar falada”- casou-se aos 16 anos com o o irmão EF pela morte do pai, pois o mesmo permitiu
Sr. OF que veio a falecer há um ano, aos 65 anos, de que o Sr. OF fosse levado para hospital público e não
infarto do miocárdio. particular. O quarto filho UF 24 anos é ex-jogador
O Sr. OF e a Sra. SBFF tiveram quatro fi- de futebol e reside atualmente na Inglaterra. Atual-
lhos: JC 45 anos, EF 43 anos, WF 33 anos e UF 24 mente, após acidente de trabalho onde fraturou a per-
anos. Após o casamento sua vida teve uma pequena na encontra-se impossibilitado de trabalhar e sob os
melhora, pois, OF ajudava em casa e a Sra. SBFF cuidados da namorada G de 32 anos. A Sra. SBFF
não precisava trabalhar fora, ficando por conta do não aprova o relacionamento devido à diferença de
serviço da casa. Quanto aos filhos, puderam estudar idade e acha que o filho ficará com ela apenas por
e com 14 anos o mais velho já trabalhava ajudando gratidão chegando a dizer: “Onde já se viu meu filho
no sustento da casa. tão bonito ficando com uma mulher mais velha”.
OF trabalhava como marceneiro onde foi ví- A Sra. SBFF recebe visitas dos filhos, netos
tima de dois acidentes de trabalho. O primeiro levou e vizinhos, porém gosta de ficar sozinha assistindo
à seqüela com perda praticamente de toda mão direi- novelas e jornais. Não gosta de ouvir rádio prefere
ta. Nesta época a situação ficou precária recebendo conversar com vizinhas no portão.
ajuda dos filhos maiores e dos religiosos capuchinhos No momento, faz uso de Sertralina 50mg e
para o sustento da casa. O Sr. OF se aposentou após Rivotril 5 gotas, referindo melhora com o uso da me-
o acidente. A família “vivia com muita humildade, dicação. A Sra. SBFF não sente angustia pela morte
mas conseguia dar educação a todos os filhos”, exis- de OF e o seu sustento provém da aposentadoria do
tindo um bom relacionamento entre eles. OF era o es- ex-marido e ajuda financeira do filho UF. Hoje, o

62
Capítulo 5 • Atenção ao paciente no contexto familiar

que mais angustia a Sra. SBFF, é a desunião de WF lhora da comunicação e compreensão da origem
e EF e o fato de não poder estar ao lado do filho UF dos problemas pela Sra. SBFF e sua família.
que se encontra no exterior. Para aumentar a efetividade na constru-
É comum, na prática do médico da aten- ção do processo terapêutico, faz-se necessário
ção primária, pacientes com múltiplas queixas que os profissionais da atenção primária à saúde
somáticas, nas quais faltam – ou parece faltar- desenvolvam competências para trabalhar com
uma base orgânica e os fatores psicossociais e famílias. Para isto é necessário que conheçam
familiares são mais relevantes que as condições métodos e técnicas de acolher o paciente e sua
médicas. É comum ao atendimento de pacientes família, de associação a estes; de avaliação da es-
como a Sra. SBFF, que apesar de esforços por trutura, dinâmica e ciclo vital familiar; de edu-
parte do médico e do paciente, o atendimento cação em saúde; para facilitação da comunicação
não alcance os resultados esperados gerando entre seus integrantes e, se necessário, referen-
frustração para ambos e, não raramente, pode ciar o paciente e sua família a níveis de maior
acabar vítima de iatrogenias, por exames com- complexidade.
plementares e/ou prescrição de medicamentos, Doherty e Baird, citado por Duncan Ven-
indicados com pouco ou nenhum critério. tura descreveram cinco possíveis graus de en-
A Sra. SBFF apresentava um padrão de volvimento do médico com as famílias durante
queixas somáticas múltiplas, recorrentes e cli- sua intervenção:
nicamente significativas geradas por múltiplas • Grau 1 - ênfase mínima nos assuntos
causas como: disfunções na conectividade (os familiares. Existem apenas o contato
filhos WF e EF são hostis e não conversam en- necessário por questões práticas ou de
tre si; SBFF não aprova o relacionamento do fi- natureza médico-legal.
lho mais novo); no controle reativo que o filho
WF exerce sobre ela; na dificuldade de SBFF • Grau 2 - colaboração com a família
expressar suas angústias e compartilhar os pro- para trocar informações ou aconselhar.
blemas com os demais membros da família; dos Não requer um conhecimento especial
relacionamentos conflituosos e culpas não su- sobre o desenvolvimento da família ou
blimados. Trata-se de uma família nuclear, em sobre fatores estressores. O profissional
envelhecimento, na qual a comunicação, a solu- deve estar disposto a obter a colabora-
ção de problemas e as atividades rotineiras, com ção da família, informá-la das opções
bastante freqüência, são inibidas ou atrapalha- de tratamento, ouvir suas angústias e
das por conflitos não resolvidos; há dificuldades preocupações.
de se adaptar a situações de estresse e a transi-
ções, como o adultério de OF, a mudança de UF • Grau 3 - abordagem de apoio entendendo
para outro país e a morte de OF. A tomada de os sentimentos da família. O profissional
decisões é só intermitentemente competente e necessita de conhecimentos sobre desen-
efetiva; nessas situações, observa-se a rigidez e volvimento familiar e sobre como as fa-
falta significativa de estrutura. mílias reagem a situações de estresse.
A avaliação da estrutura e dinâmica fami-
liar, utilizando instrumentos de acesso às famí- • Grau 4 – abordagem sistêmica da fa-
lias, ofereceu inúmeras informações fundamen- mília com avaliação sistemática e pla-
tais para o médico de família elaborar um plano nejamento de intervenção. Implica co-
terapêutico mais efetivo, além de melhorar a re- nhecimentos sobre sistemas familiares,
lação médico-paciente. Este foi baseado na me- preparo para convocar e coordenar uma

63
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

conferência familiar, encorajando-a a desenvolver sua tarefa de promover a saúde


externar seus sentimentos. de uma comunidade onde serve, deve ser ca-
paz de buscar associação entre os pacientes e
• Grau 5 – terapia familiar. Exige do pro- suas famílias.
fissional preparo para o tratamento de A relação entre Equipe de Saúde da Famí-
família com padrões disfuncionais de lia e usuários deve ser construída ao longo das
interação. Para Talbot (2001), a terapia ações de saúde, explorando as estruturas da fa-
familiar propõe uma intervenção intensa mília em qualquer oportunidade para, compre-
e por tempo limitado e busca modificar endendo-a, interferir positivamente no processo
os padrões de relacionamento familiar. saúde-doença.

Ressalvamos que classificar uma família • Avaliação da estrutura e dinâmica familiar:


como disfuncional significa não considerar o Para conhecer verdadeiramente uma pessoa,
risco e vulnerabilidade aos quais essa está expos- uma família ou uma população é necessário
ta, sendo uma visão parcial da realidade. Essa conhecer sua história. As vivências de uma
classificação desconsidera os processos socioe- pessoa e sua família explicam, em grande par-
conômicos, sóciopolíticos e socioculturais como te, seu presente. Tudo tem uma origem, um
fatores pré-patogênicos da produção da doença começo, um porquê.
em termos coletivos. O conhecimento da estrutura familiar e
dos papéis desempenhados por seus membros
na dinâmica do cotidiano da família propicia ao
Seis passos para a Atenção ao Paciente no médico de família reconhecer o significado da
Contexto Familiar saúde e da doença para o paciente e sua família.
As linhas de poder e decisão, relações de
• Acolhimento do paciente e sua família: O afeto, comunicação entre seus membros, grau de
acolhimento é um modo de operar os pro- resiliência, formas de reagir ao estresse e modos
cessos de trabalho em saúde de forma a dar de compartilhar da família possibilitam a formu-
atenção a todos que procuram os serviços de lação de planos para uma atenção integral à saú-
saúde, ouvindo e identificando suas necessi- de da família que respeitem suas crenças, cultura,
dades, com escuta qualificada, e assumindo no recursos e apoios internos e comunitários. Essa
serviço uma postura capaz de acolher, escutar abordagem personalizada permite a criação de
e pactuar respostas mais adequadas aos usuá- maior vínculo com o paciente e sua família, faci-
rios. Requer avaliação do contexto familiar e litando o processo de investigação e intervenção.
social da pessoa, para o desenvolvimento das Faz-se necessário uma compreensão do
ações em saúde e definição de um possível ciclo de vida familiar, assim como uma com-
projeto terapêutico, quando necessário. preensão do desenvolvimento individual, para
auxiliar os profissionais de saúde a formularem
• A Associação ao paciente e sua família: A hipóteses sobre os problemas que os pacientes
associação ao paciente e sua família gerando a estão vivendo.
criação de vínculos e relação bilateral de res- O conhecimento da dinâmica do ciclo vital
peito e confiança é um requisito fundamental propicia ao médico de família auxiliar a família
para sucesso no processo terapêutico. Segun- na compreensão das tarefas a serem cumpridas
do Wagner, Oliveira e Talbot (2001), o profis- e, principalmente, facilita a previsão sobre os
sional dos cuidados primários, que pretenda desafios que serão enfrentados e subsidia ações

64
Capítulo 5 • Atenção ao paciente no contexto familiar

profiláticas quanto às disfunções excessivas ge- uma ação em saúde mais integral e mais adequada
radas pelas crises evolutivas. à vida da população, famílias e indivíduos.
Ferramentas como o FIRO (Fundamental
Interpersonal Relations Orientations), o PRAC- • Facilitação da comunicação: Outro passo
TICE, (Presenting Problem [Referente ao prob- importante para a atenção à pessoa no con-
lema apresentado], Roles and Structure [Referente texto familiar é a facilitação da comunicação
aos papéis de cada membro dentro da estrutura fa- entre seus membros, tarefa que necessita uma
miliar], Affect [Afeto, como a família se comporta adequada compreensão da estrutura e dinâ-
diante do problema apresentado], Communica- mica familiar, e da maneira de se comunicar
tion [Informa qual o tipo de comunicação dentro que o agrupamento apresenta.
da estrutura familiar], Time in Life Cycle [Men-
ciona em qual fase do ciclo de vida a família se • Elaboração de um plano terapêutico: A
encontra], Illness in Family [História de doença construção de um plano terapêutico utilizan-
na família, passado e presente], Coping with do a família amplia recursos terapêuticos e
Stress [Como os membros da família enfrentam diagnósticos. Uma estratégia que pode ser uti-
o estresse da vida], Ecology [Quais os recursos lizada é a pactuação de tarefas e/ou metas en-
que a família possui para enfrentar o problema tre paciente, médico e integrantes da família.
em questão]), o genograma são exemplos de ins-
trumentos para avaliação da estrutura e dinâmi-
ca familiar, não sendo objetivo deste capítulo Conclusão
aprofundar na interpretação dessas ferramentas.
O médico de família está em posição única
• Educação em saúde: Todas as pessoas, pelo que de desenvolver uma relação de longo prazo com
fazem ou deixam de fazer, interferem no sentir/ as famílias, podendo observar o funcionamento
pensar/agir de outras pessoas. Por isso todas as daquelas famílias durante este tempo. A partir
pessoas são educadoras. É nesse sentido que se dessa relação e conhecimentos, o médico de famí-
diz que toda relação é, necessariamente, uma lia e a equipe de saúde podem exercer a atenção ao
relação pedagógica. Para o setor saúde, o papel paciente no contexto familiar. Ao identificar difi-
dos pais, principalmente da mãe, é fundamental culdades familiares durante uma consulta, visita
na formação do saber sanitário (Sales, 1999). domiciliar, acolhimento ou qualquer ação em saú-
de, é papel do médico abordá-las com a família.
A educação em saúde, baseada no campo te- Segundo Wagner, Oliveira e Talbot (2001),
órico da educação popular constitui passo impor- “Trabalhar com Famílias” se dá por múltiplas
tante para a atuação dos profissionais de saúde no intervenções curtas ao longo do tempo e va-
contexto da saúde da família. Atuando a partir de lendo-se das estruturas da família; é uma arte
problemas de saúde específicos ou de questões li- desenvolvida através da compreensão do funcio-
gadas ao funcionamento global dos serviços, busca namento sistêmico da família e da aplicação do
entender, sistematizar e difundir a lógica, o conhe- método clínico centrado no paciente.
cimento e os princípios que regem a subjetividade Construir uma atenção integral à família
dos vários atores envolvidos, de forma a superar considerando a diversidade de modelos de famí-
as incompreensões e mal-entendidos ou tornar lia e estilos de vida, através de uma visão antro-
conscientes e explícitos os conflitos de interesse. pológica e dialética, tem trazido desafios teóri-
A partir deste diálogo, soluções vão sendo deline- cos, éticos e práticos, marcantes para as equipes
adas. É, assim, um instrumento de construção de de saúde da família.

65
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Bibliografia

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66
Capítulo 6
O Acolhimento e a Estratégia zes do SUS: universalidade, eqüidade, integrali-
Saúde da Família dade e participação popular.
O que é preciso mudar para se conseguir
ana cecília silveira lins sucuPira
uma atitude diferente, acolhedora para o novo
modelo de atenção que se pretende implantar?
Como está o atendimento nas unidades de saú-
de? A seguir relata-se uma situação que pode ser
identificada, ainda hoje, em muitos serviços de
saúde e expressa o modelo antigo dominante.

O Programa Saúde da Família foi pensado no


início da década de 90, no Brasil, como mo-
delo estruturante para o Sistema Único de Saúde Caso Clínico
(SUS). A proposta tinha como objetivo implan-
tar um novo modelo de atenção à saúde, portan- D. Josefa procurou a unidade de saúde porque
to, mais que um programa tratava-se de uma es- vinha há algum tempo com dor de cabeça e pressão
tratégia – a Estratégia de Saúde da Família.1 alta. Chegou no posto às 5:00h da manhã, mas não
Nessa estratégia, o foco do atendimento conseguiu pegar ficha. Resolveu ficar esperando para
deixa de ser exclusivo na doença, para privile- ver se conseguia falar com um médico. Encontrou
giar a promoção da saúde. Assim, o sujeito não uma senhora que precisava passar pelo médico por-
pode ser visto apenas como uma queixa, mas que queria fazer prevenção de gravidez. Ela também
deve-se procurar entender o indivíduo de ma- não tinha conseguido ficha. As duas estavam desa-
neira integral, no contexto de uma família, com nimadas, mas não haviam desistido de obter o aten-
enfoque preventivo e não apenas curativo. Para dimento. Perguntaram a outra senhora que havia
isso, é preciso repensar o processo de produção conseguido ficha, como ela tinha feito. Essa senhora
da saúde e da doença, os processos de trabalho e respondeu que tinha uma amiga, que conhecia o vigia
a organização dos serviços de saúde. Um modelo da unidade e este havia feito uma reserva para ela.
não mais centrado no médico, mas ressaltando Explicou que estava com o filho de dois anos, com fe-
as responsabilidades de todos os profissionais bre e dor de ouvido há dois dias. Outro senhor já ido-
de saúde, atuando em equipe. O objetivo final é so tentava um atendimento porque sofria de muitas
contribuir para a qualidade de vida com ações de dores no corpo. Hoje, havia chegado antes das 6:00h
promoção da saúde no contexto mais amplo da e não tinha mais fichas. Outra senhora também re-
intersetorialidade. clamava, estava com o filho de 2 anos que tinha um
Uma das características mais marcantes abscesso e mesmo assim não tinha conseguido ficha
dessa estratégia é a necessidade de uma nova ati- para passar no médico, disseram-lhe para procurar
tude do profissional de saúde na sua relação com o pronto socorro. Ela ficou brava porque o filho era
a população. O acolhimento expressa um con- matriculado ali naquela unidade e quando ele ado-
junto de atitudes e ações que devem caracterizar ecia não tinha vaga, além disso o pronto socorro era
essa nova relação desejada para a Estratégia da muito longe da casa dela.
Saúde da Família. Às 7:25h chegou a funcionária da recepção
Na prática a Estratégia da Saúde da Famí- pedindo para aqueles que portavam fichas que fi-
lia visa o cumprimento dos princípios e diretri- zessem uma fila, para que ela pudesse atendê-los.

67
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

A funcionária começou a recolher as fichas, retirar É, portanto, inaceitável a realidade presen-


os prontuários, mandando as pessoas aguardarem o te em muitos dos serviços de saúde, em que ao
atendimento de pé na porta do consultório. Nisso, to- procurar atendimento, a população seja dispen-
cou o telefone e ela interrompeu o trabalho para aten- sada, sem sequer ser ouvida, com a justificativa
der e chamar a pessoa procurada. Voltou 10 minutos de que não há mais vagas ou senhas. Não se pode
depois e continuou a triagem. Muitos prontuários ela admitir a forma como funcionam atualmente
não achava e nesses casos, colocava uma folha de pa- muitos serviços de saúde que obrigam os indiví-
pel, junto com o cartão do paciente. duos a pernoitarem nas filas a fim de conseguir
No final, várias pessoas que estavam sem ficha uma senha para atendimento. É inadmissível o
fizeram movimento para conseguir o atendimento. A fato, ainda observado em muitos serviços de saú-
funcionária avisou bem alto que não dava mais nes- de, de pacientes que sem sequer serem ouvidos,
se dia, porque haviam se esgotado as vagas e, quem são encaminhados para outros serviços porque
precisasse, que voltasse no dia seguinte ou fosse para não há mais senhas para consultas naquele dia.
o Pronto Socorro. As situações acima, que se reproduzem em
Houve um pequeno tumulto para pressionar muitos serviços de saúde, indicam o desprepa-
por consulta, mas ela insistiu que não podia fazer ro dos profissionais de saúde para lidar com o
nada. Para evitar um confronto maior, entrou numa atendimento à população, principalmente com a
sala, fechou a porta e sumiu.* dimensão subjetiva de cada indivíduo que bus-
O que se pode observar na situação des- ca um cuidado de saúde. Além disso, expressam
crita acima é a negação do direito à saúde, a os modelos de gestão e organização dos servi-
negação da universalidade e da eqüidade no ços voltados para o seu interior e governados
atendimento. por uma prática burocratizada e alienante. O
Nas discussões realizadas, pela autora, em resultado são posturas e atitudes que denotam
oficinas de acolhimento, a partir da dramati- um embrutecimento da relação entre os profis-
zação da abertura da unidade numa manhã de sionais e usuários. Os profissionais muitas vezes
segunda-feira, os profissionais identificaram nas não percebem mais a sua própria insensibilida-
situações apresentadas os seguintes aspectos: de. Olham, falam, dão ordens, e não conseguem
tumulto; violência; confusão; burocratização; enxergar aquela pessoa que se lhe apresenta com
negação dos direitos; triagem por ordem de che- um sofrimento, uma solicitação de ajuda. Ten-
gada; impaciência, falta de respeito e agressivi- dem a ver o paciente como mais um que vem
dade tanto dos funcionários como dos usuários; perturbar o serviço.
falta de integração da equipe; impontualidade
dos profissionais, entre outros. Os usuários eram
descritos como agressivos, carentes, confusos, O Acolhimento como parte da Política
autoritários, desrespeitosos. Há uma tendência a Nacional de Humanização na Rede de
culpabilizar os usuários por apresentarem com- Atenção e Gestão do SUS
portamentos inadequados ao que se espera deles
nos serviços de saúde. Com o objetivo de garantir o direito à saú-
As falas da população ao relatarem as di- de e intensificar a implantação dos princípios e
ficuldades para conseguir a consulta, também, diretrizes dos SUS, o Ministério da Saúde vem
expressam a negação do direito ao atendimen- implementando a Política Nacional de Humani-
to no SUS. zação (PNH), o Humaniza-SUS. Trata-se de uma
estratégia de mudança nos modelos de atenção e
*
História criada pela autora com base nas observações de unidades de gestão das práticas de saúde. O grande desafio
realizada em vários municípios brasileiros.

68
Capítulo 6 • O Acolhimento e a Estratégia Saúde da Família

é proporcionar um atendimento de qualidade que já mostram a mudança na atitude e nas re-


com a participação integrada dos gestores, tra- lações entre os trabalhadores e os usuários, em
balhadores e usuários visando a efetivação dos muitos serviços de saúde.
princípios e diretrizes do SUS.
Nas palavras do PNH: “Por humanização
entendemos a valorização dos diferentes sujei- O Acolhimento nas Unidades de Saúde
tos implicados no processo de produção de saú-
de. Os valores que norteiam esta política são a Entretanto, a humanização e o acolhi-
autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a co- mento tomaram diferentes rumos na prática.
responsabilidade entre eles, o estabelecimento Pode-se observar vários entendimentos do que
de vínculos solidários, a participação coletiva no se pretende com a proposta do acolhimento. Em
processo de gestão e a indissociabilidade entre algumas situações o acolhimento se restringe à
atenção e gestão.”2 recepção do paciente, garantindo-se atenção e
De acordo com o PNH, “O acolhimento ambientes agradáveis, característica principal
como ato ou efeito de acolher expressa, em suas dos serviços privados.
várias definições, uma ação de aproximação, um Em outros casos, o acolhimento apare-
‘estar com’ e um ‘estar perto de’, ou seja, uma ceu como uma nova modalidade de triagem.
atitude de inclusão. Essa atitude implica, por Constata-se ainda, entretanto, que em muitos
sua vez, estar em relação com algo ou alguém. serviços a decisão sobre o tipo de atendimento
É exatamente nesse sentido, de ação de ‘estar a ser dado fica a cargo de profissionais que tra-
com’ ou ‘estar perto de’, que queremos afirmar o balham no SAME ou na recepção, tendo como
acolhimento como uma das diretrizes de maior base critérios burocráticos, centrados na queixa
relevância ética/estética/política da Política Na- de doença. Esse tipo de atendimento ao usuário
cional de Humanização do SUS.”3 visa muitas vezes a definir encaminhamentos do
O acolhimento para o PNH é visto como paciente para fora da unidade e da responsabili-
“uma ação tecno-assistencial que pressupõe a dade daquele serviço de saúde.
mudança da relação profissional/usuário através Uma das propostas implantadas foi a cria-
de parâmetros técnicos, éticos, humanitários e ção das Equipes de Acolhimento. Embora essas
de solidariedade. O acolhimento é um modo de Equipes tenham sido pensadas com o objetivo
operar os processos de trabalho em saúde de for- de formar profissionais com a função de reali-
ma a atender a todos que procuram os serviços zar uma escuta qualificada do paciente, algumas
de saúde, ouvindo seus pedidos e assumindo no vezes, o acolhimento tem se restringido a essa
serviço uma postura capaz de acolher, escutar e escuta e a essa equipe.
dar respostas mais adequadas aos usuários. Im- Mais curioso, é a constatação do acolhi-
plica prestar um atendimento com resolutivida- mento transformado em sala de pré-consulta.
de e responsabilização, orientando, quando for o Na porta da sala onde se pesa e se mede a pres-
caso, o paciente e a família em relação a outros são arterial, fica a placa “sala de acolhimento”.
serviços para continuidade da assistência e esta- Por parte da população, essas práticas são per-
belecendo articulações com estes serviços para cebidas, em vários casos, muito mais como mo-
garantir o sucesso desses encaminhamentos.”3 dismos. Segundo a fala dos pacientes: “agora
Nessa perspectiva, o Ministério da Saúde somos obrigados a passar pelo “acolhimento”,
vem desenvolvendo junto aos estados e municí- para poder ser atendido”. Percebe-se a alienação
pios o processo de discussão da proposta para a do trabalhador e do usuário em relação à pro-
implantação do Humaniza-SUS com resultados posta do acolhimento.

69
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Embora seja importante o paciente ser re- dos pelo usuário na unidade de saúde. O acolhi-
cepcionado em um ambiente agradável, ou que mento pode ser entendido de forma mais ampla
haja a necessidade de uma triagem, esses proces- pelo modo como a unidade assume o paciente,
sos têm de estar vinculados a uma proposta mais estabelecendo um compromisso que impõe a
ampla de mudança de atitude e, principalmente, responsabilidade da unidade frente a todas as
das relações entre os trabalhadores e os usuários, suas necessidades de saúde. Nessa perspectiva,
que ampliem a possibilidade de atendimento das insere-se outro princípio do SUS, a integrali-
necessidades de saúde da população, não necessa- dade, significando que ao acolher/assumir o
riamente expressas como doenças e que garantam indivíduo, o serviço de saúde deve dar conta
a responsabilização do serviço por seus pacientes. de atendê-lo em todas as suas necessidades de
Neste texto, o Acolhimento enquanto saúde, seja no próprio serviço ou responsabi-
uma forma de relação, que envolve uma pos- lizando-se pelo encaminhamento e o atendi-
tura ética, de compromisso e respeito, não se mento em outros serviços. Além disso, a inte-
restringe à recepção, mas permeia todos os mo- gralidade significa que é preciso compreender
mentos de atendimento do usuário na unidade e acolher o sujeito que traz uma queixa ou uma
e confunde-se com o processo de humanização necessidade de saúde, na sua totalidade. Dito
do atendimento na unidade de saúde. O acolhi- em outras palavras, para além da queixa que é
mento será enfocado na perspectiva do direito à referida pelo paciente, há um sujeito que sofre
saúde, da qualidade do atendimento e da neces- e precisa ser ouvido, acolhido.
sidade de reformulação do processo de trabalho Essas considerações determinam duas pre-
e da reorganização dos serviços de saúde, tendo missas básicas para o acolhimento à população:
como base a experiência da autora na realização o compromisso dos profissionais com a saúde da
de oficinas de acolhimento em vários municí- população e a qualidade na atenção à saúde.
pios brasileiros. O acolhimento implica uma nova postura
As considerações que serão feitas têm e a construção de novas formas de relação entre
como fundamento a necessidade de reconhe- os gestores e os trabalhadores e entre estes e os
cer o paciente/cliente/usuário como um cida- usuários, visando a autonomia e o protagonismo
dão de direitos. dos sujeitos.
Não se restringindo a um espaço ou a um A Estratégia de Saúde da Família facilita
momento – a recepção – o acolhimento implica em esse compromisso ao delimitar um território de
mudanças nos processos de trabalho e no estabe- responsabilidade da equipe de saúde e permitir
lecimento de novas relações entre trabalhadores a criação de um vínculo entre os trabalhadores
e usuários. É preciso reforçar que o acolhimento da unidade e as famílias. A proposta de mudan-
é um aspecto fundamental para a humanização ça do modelo de atenção nessa estratégia amplia
do atendimento nos serviços de saúde. os objetivos do atendimento, gerando a necessi-
O acolhimento da pessoa que procura o dade de entender o indivíduo na sua totalidade.
cuidado de saúde se expressa na relação entre o Outra condição que se impõe é a necessidade de
usuário e o profissional que o atende. Uma rela- atender não só a demanda programada, como
ção que deve ser pautada pelo respeito, pela soli- também a clientela não agendada que apresenta
dariedade, mas principalmente pelo reconheci- alguma forma de sofrimento ou de necessidade
mento do direito ao atendimento de qualidade. de saúde. O acolhimento passa a ter um sentido
Enquanto uma relação, o acolhimento mais resolutivo, ao se identificar que diferentes
não se restringe à recepção do paciente, mas tipos de queixas necessitam modos diferentes
está presente em todos os momentos vivencia- de atendimento.

70
Capítulo 6 • O Acolhimento e a Estratégia Saúde da Família

No modelo centrado na doença, calcado Na década de 80, Peter Jensen4 comentava em


na relação queixa-conduta, o atendimento se artigo, como era irônico o desencantamento dos
resume a dar uma resposta imediata, visando pacientes com a medicina, justamente no mo-
despachar o mais depressa possível a clientela mento em que o desenvolvimento tecnológico
em função do acúmulo de demanda. O foco é a permitia que a medicina pudesse fazer mais do
doença e não o indivíduo. A baixa resolutivida- que nunca, para prevenir e tratar as doenças mais
de desse modelo faz com que o paciente retorne graves. Esse autor apontava como o aspecto mais
várias vezes ao serviço, aumentando cada vez importante da insatisfação, a falta de atenção no
mais a demanda. Esse é um círculo vicioso que atendimento. Outros autores, como Kasteler e
leva à insatisfação tanto dos profissionais quan- colaboradores, citado por Jensen, apontavam
to dos usuários. que 48% das famílias de renda mais alta e 37%
A segunda premissa, a qualidade do aten- das famílias de baixa renda haviam mudado de
dimento está fundamentalmente relacionada aos médico por causa da insatisfação com a relação
processos de trabalho. pessoal com o profissional.
Todas essas considerações sobre o aco- Um olhar, um toque no ombro, um aperto
lhimento apontam também os caminhos para a de mãos são elementos importantes do acolhi-
qualidade do atendimento. Qualidade que deve mento que expressam atenção, solidariedade e
ser discutida com o usuário. O que vem a ser a respeito por parte do profissional e que contri-
qualidade no cuidado em saúde? Diante de um buem para a qualidade do cuidado. Guimarães5
produto como uma pasta de dente, têm-se vários comenta que uma das expressões de que o profis-
atributos que permitem qualificar esse produ- sional de saúde não dá a atenção desejada pode
to. Pode-se considerar a qualidade do ponto de ser observada na fala dos pacientes ao reclama-
vista da eficiência, do custo/benefício, do tipo rem que “eles sequer olham nos meus olhos.” É
de resultado obtido, enfim, é possível avaliar a comum ouvir a fala dos usuários em relação às
qualidade por meio de critérios objetivos. No várias categorias profissionais: “nem olhou na
cuidado em saúde, essa avaliação é mais com- minha cara”.
plexa. Os critérios de qualidade diferem quando A atenção que deve caracterizar o acolhi-
se pensa do ponto de vista técnico ou a partir do mento interfere também nos resultados obtidos
olhar do usuário. no tratamento, pelo efeito terapêutico da relação
Para os profissionais, a qualidade é vis- profissional de saúde/clientela.6
ta sob o enfoque técnico, ou do ponto de vista O vínculo que a estratégia saúde da fa-
dos efeitos obtidos e do custo/benefício, prin- mília permite consolidar é um fator que possi-
cipalmente no que se refere à incorporação das bilita personalizar o atendimento, dando outra
tecnologias continuamente geradas pelo conhe- qualidade para o acolhimento. Chamar o pa-
cimento científico. Para o paciente, vários estu- ciente pelo nome é uma forma de respeitar sua
dos mostram que a atenção recebida é um dos individualidade, fato que é negado quando ele
pontos mais importantes na avaliação realizada é referido como “mãezinha”, “tio” ou “vovó”,
pela clientela. A atenção que se estabelece na re- categorias formais que despersonalizam o indi-
lação com os trabalhadores da unidade desde a viduo. Para o paciente, é muito importante ser
recepção até a equipe de saúde e que caracteriza chamado pelo nome, assim como saber o nome
o modo como o usuário é acolhido é um fator do profissional que o atende.
importante na avaliação da qualidade do atendi- A satisfação do usuário no atendimento,
mento por parte deste último. A qualidade vai se ou melhor, no modo como ele é acolhido, está
expressar pela satisfação obtida no atendimento. de certo modo, na dependência da satisfação dos

71
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

profissionais no exercício do seu trabalho. Daí a quem deve ter prioridades no atendimento em
importância de se ouvir também o trabalhador função do sofrimento que apresenta é uma das
nas suas necessidades e desejos. propostas colocadas para o acolhimento. Essa
A qualidade do atendimento, mesmo con- proposta tem sido dirigida com maior especifi-
siderada sob o ponto de vista da atenção, de- cidade, para os serviços de urgência, na proposta
pende fundamentalmente da organização dos do PNH de “Acolhimento com classificação de
serviços e dos processos de trabalho resultantes risco”. Entretanto, também na Unidade Básica
dessa organização, como será visto mais adiante. de Saúde o atendimento deve ocorrer em função
É nessa perspectiva que a proposta do Humani- do sofrimento e necessidade apresentados.
za-SUS preconiza mudanças no processo de tra- O atendimento não é um favor que o ser-
balho que garantam “a participação coletiva no viço faz ao indivíduo, mas o cumprimento de
processo de gestão e a indissociabilidade entre uma obrigação desse serviço para com um direi-
atenção e gestão”.7 to da população.
Essas considerações permitem afirmar
que ao se falar em acolhimento nos serviços de
O Acolhimento como expressão do direito saúde, na verdade está se falando de um direito
à saúde da população. A população tem direito a ser aco-
lhida ao procurar os serviços de saúde porque
A saúde é definida, na Constituição de esse direito está garantido na constituição.
1988, como direito de todos e dever do Estado. É preciso ressaltar as diferenças existentes
É por meio do SUS que o Estado cumpre o seu em relação ao exercício dos outros direitos. Ao
dever de garantir a saúde para todos. Apesar se tratar de um direito que diz respeito a ques-
das dificuldades de implantação e das falhas no tões como saúde/doença, vida/morte, o direito à
funcionamento dos serviços, o SUS é reconhe- saúde é exercido por pessoas que se encontram
cido internacionalmente por ser um dos siste- fragilizadas por um sofrimento. Muitas vezes a
mas mais universais do mundo. Enquanto nos insegurança, a ansiedade, o medo diante do que
Estados Unidos mais de 40 milhões de pessoas pode vir a significar aquele sofrimento torna o
não têm direito à assistência à saúde, no Brasil, paciente carente ou impaciente. Outras vezes ele
todos os cidadãos têm direito ao SUS, o sistema se apresenta confuso gerando impaciência nos
de saúde de todos os brasileiros. profissionais que o atendem.
De acordo com o princípio da universali- Outro aspecto importante é o não reco-
dade, o indivíduo que chega a qualquer serviço nhecimento pelos profissionais dos direitos dos
público de saúde tem direito de ser atendido. Isso usuários. A noção da relação de direitos e deve-
não significa consulta médica no mesmo dia. O res que se estabelece entre os trabalhadores da
atendimento deverá acontecer de acordo com as unidade e os usuários determinam muitas das
necessidades de saúde que o indivíduo apresen- práticas de atendimento observadas.
ta, respeitando-se o princípio da eqüidade. Os Os direitos reivindicados pelos profissio-
serviços de saúde devem atender todos e deter- nais da unidade são, muitas vezes, o espelho dos
minar o tipo de atendimento que será prestado deveres deles para com os pacientes. Isso fica cla-
a cada um, considerando que alguns apresentam ro quando um profissional reclama respeito por
necessidades mais urgentes que outros, mas que parte do paciente. É direito do trabalhador ser
todos devem ter alguma forma de resposta a sua respeitado, assim como é seu dever respeitar o
demanda naquele momento. Avaliar os riscos, usuário. Da mesma forma, é dever do usuário res-
por meio da escuta qualificada e determinar peitar o profissional e direito seu, ser respeitado.

72
Capítulo 6 • O Acolhimento e a Estratégia Saúde da Família

Outras relações dialéticas entre direitos e deveres tamento devem ser respeitados pelos profissionais
podem ser apontadas. Os profissionais queixam- que participam do atendimento.
se do atraso dos pacientes, os quais podem ser pu- É preciso reconhecer que o usuário tem
nidos com a perda do atendimento naquele dia. direito a sentar-se quando no consultório, a ter
Entretanto, o dever dos trabalhadores de chegar um biombo ou uma proteção para se despir, a ter
no horário não é sequer comentado. um lençol para cobri-lo durante o exame, enfim,
Acolher com respeito, solidariedade e pequenos detalhes que têm um impacto grande
compromisso passa necessariamente pelo reco- no processo do acolhimento.
nhecimento de que o usuário é portador de di- O usuário tem direito a esperar pelos pro-
reitos. Direito a ser bem atendido; direito a ter cedimentos dentro da unidade em locais confor-
explicações sobre o seu diagnóstico e condutas táveis, sentado e sabendo que não vai demorar
tomadas; direito a discutir as prescrições, En- muito para ser atendido.
fim, o usuário, sujeito de direitos, deve ser pro- A negação dos direitos do usuário se ex-
tagonista do seu atendimento, posicionando-se pressa, também, quando se proíbe o pai de entrar
e construindo junto com a equipe de saúde o seu na consulta do filho, colocando-se uma placa:
processo de saúde. É no exercício desses direitos “apenas um acompanhante por paciente”. Tanto
e no compartilhamento do cuidado que o usuá- o pai, como a mãe, devem ter garantido o seu
rio pode adquirir a autonomia que lhe permita direito de participar da consulta do seu filho.
assumir os cuidados com a sua saúde. Algumas situações observadas são bastan-
O não reconhecimento do usuário como te explícitas na negação do direito ao atendimen-
um sujeito de direitos chega ao extremo de negá- to. A colocação de placas que restringem as con-
lo até enquanto pessoa. A negação dos usuários dições para que a população seja atendida é um
enquanto pessoas, portadoras de subjetividades, desses exemplos. “Marcação de consultas só no
não permite reconhecer nesses indivíduos senti- próximo mês” “pacientes de bermudas ou shorts
mentos, desejos, pudores, sofrimentos. não serão atendidos”. Mas, o mais comum é a
A privacidade do momento da consulta placa “Não há vagas”... Sem qualquer escuta, já
não é considerada como um direito do paciente, se descarta, na porta, qualquer possibilidade de
quando muitas vezes o paciente é examinado na atendimento. Nega-se o direito à escuta. Mesmo
recepção. De um modo geral, as portas fechadas não havendo vagas para consultas, o indivíduo
nas unidades não têm nenhum significado, cons- deve ser ouvido nas suas necessidades.
tituem apenas pequenos obstáculos que podem ser O usuário tem direito a ter um prontuá-
facilmente removíveis. Os trabalhadores, de qual- rio no qual se registre sua história sanitária. Os
quer nível hierárquico, entram e saem nos consul- atendimentos que são realizados devem ser re-
tórios sem a menor manifestação de percepção do gistrados para que o seu atendimento tenha uma
que essa atitude pode significar para o paciente, continuidade. O fato de não ser feita nenhuma
que pode naquele momento estar sendo examina- anotação dos atendimentos realizados represen-
do. Antes de entrar, batem na porta, como se isso ta uma dupla negação: do profissional e do usu-
representasse alguma forma de respeito com quem ário. O profissional nega o seu trabalho na medi-
está sendo consultado, mas não se espera nenhu- da em que não há registro do seu atendimento, o
ma autorização para abrir a porta. Do ponto de qual não pode ser recuperado e há a negação do
vista do paciente, essa falta de respeito representa usuário na medida em que não há registro de sua
um grande sofrimento, por ter sua privacidade in- história sanitária, de sua passagem naquele ser-
vadida. O direito à privacidade tanto na realização viço de saúde.6 O registro é importante para que
da consulta como em relação ao diagnóstico e tra- se possa recuperar a seqüência do atendimento

73
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

proposto. Esse aspecto de continuidade diz res- repensar a estrutura físico-funcional da unida-
peito também à personalização do atendimento, de de saúde, visando a atender tanto as necessi-
pois o usuário sente que seu problema de saú- dades da população como dos profissionais que
de é conhecido pelos trabalhadores da unidade. nela trabalham. Em última instância, essa reor-
Além disso, no modo como se organiza o atendi- ganização visa à humanização do atendimento e
mento nos serviços de saúde, as anotações feitas à efetivação dos princípios do SUS.
no prontuário são importantes para socializar as Para isso é preciso exercitar o olhar e a
informações, uma vez que vários profissionais escuta dos profissionais na sua relação com a
podem atender um mesmo indivíduo. população. Escutar as expectativas, as queixas
A relação de direitos que fundamenta o e o modo como os usuários avaliam a unidade.
acolhimento tem de ser discutida por todos os Olhar também para a unidade e enxergá-la na
trabalhadores junto com os usuários, para que se sua dinâmica de funcionamento.
consiga construir uma relação de respeito entre É fundamental que o profissional de saúde
esses atores. repense o compromisso daquele serviço de saú-
de com a população, e mais especificamente, o
seu compromisso com o trabalho e com a clien-
O Acolhimento e a Organização dos tela. Isso implica refletir sobre a missão da uni-
Serviços de Saúde dade de saúde, na estratégia da Saúde da Família
e no contexto do SUS. Recuperar a história das
As relações entre os trabalhadores, entre unidades de saúde à luz das políticas nacionais
esses e os gestores e, ainda, entre os trabalhadores de saúde e do modo como essas políticas efetiva-
e os usuários acontece em contextos específicos. ram-se no estado e no município.
Não dependem apenas da vontade individual É preciso entender as mudanças pelas
de cada um, mas estão fortemente influenciadas quais a unidade passou ao deixar de ser o posti-
pelas condições objetivas em que essas relações nho, ou a unidade de pronto atendimento, para
ocorrem. Pode-se afirmar, então, que dependem incorporar os princípios que norteiam o mode-
de como os serviços se organizam determinando lo de atenção na estratégia da Saúde da Famí-
processos de trabalho específicos. lia. Constata-se ainda, mesmo nas unidades de
A organização de muitas das unidades de Saúde da Família, o conflito sobre que tipo de
saúde gera processos de trabalho que de formas atendimento deve ser priorizado pela unidade.
sutis ou explícitas negam o direito à saúde e Alguns, ao entenderem que a promoção da saú-
impedem que o acolhimento do usuário ocorra de é a atividade central, não criam as condições
de acordo com os princípios da humanização para o atendimento daqueles que apresentam
que se pretende. queixas e necessidades de saúde não programa-
A rotina diária do trabalho vai impedindo das. Rompe-se assim, o compromisso da unida-
que as pessoas consigam enxergar as situações de em atender a todas as necessidades de saúde
inadequadas de organização da unidade as quais da população, seja diretamente, ou por meio da
comprometem a qualidade do atendimento. Há referência a outros serviços.
uma naturalização dos problemas, tanto estru- Um aspecto importante no repensar a
turais como funcionais, os quais só são percebi- unidade é a reflexão sobre a lógica que rege o
dos por quem está de fora e utiliza os serviços funcionamento da unidade na organização do
da unidade. A discussão da qualidade do aten- atendimento. Identificar se essa lógica é em fun-
dimento e, do acolhimento, remete à reavaliação ção apenas dos funcionários ou contempla as
das condições de trabalho e, necessariamente a necessidades e especificidades de quem procura

74
Capítulo 6 • O Acolhimento e a Estratégia Saúde da Família

o atendimento. O fato de a unidade estar orien- Outra fonte de tumulto é a recepção ocor-
tada basicamente pelos interesses dos trabalha- rer no mesmo local em que está o SAME, no
dores não significa que os processos de trabalho mesmo local onde são fornecidas às informações
tragam satisfação para esses trabalhadores. Uma sobre a unidade, no mesmo local onde são retira-
vez que essa forma de organização do trabalho dos os prontuários, no mesmo local de marcação
não dá conta de atender adequadamente as ne- de consultas para os especialistas, e assim por
cessidades de saúde da população, ela gera in- diante. A confusão se estabelece e algumas vezes
satisfação e conflitos entre os usuários e os tra- saem até brigas.
balhadores. É preciso, portanto, repensar essa É evidente que a recepção é um lugar estra-
organização para contemplar os interesses de tégico e que muitas vezes define a relação que o
todos os sujeitos envolvidos. usuário vai ter nos demais pontos de atendimen-
É comum observar o modo como a orga- to na unidade. Isso porque ao ser mal acolhido,
nização dificulta o acesso aos serviços que ela o usuário pode ficar impaciente, “nervoso” e até
oferece. As filas imensas, as necessidades buro- agressivo. Esses sentimentos são gerados também
cráticas criadas para o atendimento parecem ter nos trabalhadores, dificultando qualquer possibi-
a finalidade de, ao dificultar o acesso, auto-regu- lidade de diálogo. Ter locais diferentes para os di-
larem as filas e a demanda. Ou seja, o tamanho ferentes procedimentos é possível para a grande
da fila e as burocracias tem o efeito de fazer o maioria das unidades. Um local logo na entrada
usuário desistir do atendimento, sem ser neces- da unidade, que se chame de recepção, e que basi-
sário ao serviço negá-lo explicitamente. camente ofereça informações e oriente a clientela
Um dos grandes problemas observados nas para os caminhos que deve seguir na unidade, que
unidades é o fluxo de funcionamento. Às 7 horas encaminhe aqueles sem agendamento para con-
da manhã há super fluxo de usuários, ao passo que sulta, é fundamental para que se possa ter uma
depois das 10 horas o movimento cai bastante. À boa relação de acolhimento com os usuários.
tarde o número de pessoas que buscam algum Em geral, as filas organizam-se pelo cri-
atendimento é bem menor e depois das 16 horas, tério de chegada, supondo-se ser este um pro-
em muitas unidades, praticamente o atendimen- cedimento democrático. Nega-se a equidade, ao
to já se encerrou. A questão é: será que todas as se negar o fato de que todos não têm a mesma
pessoas precisam chegar às 7 horas da manhã? Se chance de serem os primeiros da fila. Aqueles
enumerarmos todos os cuidados e serviços que que moram mais longe, que têm mais filhos ou
são ofertados, veremos que é possível distribuí-los que têm dificuldades de locomoção, com freqü-
ao longo do dia. Na verdade, apenas a coleta de ência, não conseguem chegar primeiro. É pre-
exames, quando o material tem de ser remetido ciso abrir a unidade, para que todos tenham a
para o laboratório, obriga as pessoas a chegarem oportunidade de serem ouvidos e terem suas
cedo. Outras atividades como curativos, exame de demandas e necessidades escutadas. A partir
Papanicolau, aferição agendada de pressão, entre do princípio da equidade é possível organizar
outros, podem ser marcados para depois das 10 e orientar os diferentes modos de atendimento
horas ou mesmo à tarde. Dessa forma, os trabalha- que cada um necessita.
dores rendem muito mais e o tumulto na unidade A implantação da escuta qualificada para os
é evitado. Quem já foi a uma unidade de saúde na usuários, possibilitando identificar os sofrimen-
segunda-feira de manhã, reconhece que no modo tos e as necessidades de atendimento do usuário,
como tais unidades funcionam é muito difícil que permite organizar as diversas formas de resposta
os trabalhadores tenham condições de acolher que podem ser dadas ao usuário, inclusive o en-
bem a clientela em todas atividades que realizam. caminhamento responsável para outros serviços.

75
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Uma forma interessante de realizar essa busca de um cuidado, é preciso que também se
escuta qualificada é por meio da triagem reali- sintam cuidados.
zada por profissionais capacitados e discutida Outros elementos devem ser também
de forma coletiva sobre o caráter da necessidade considerados. A comunicação constitui uma
de atendimento imediato do paciente ou de um das principais tecnologias utilizada no trabalho
atendimento que pode ser marcado para o dia dos profissionais na unidade de saúde, assim, é
seguinte ou para outra semana. Esse processo é preciso comentar os aspectos que compõem os
mais democrático quando feito de forma cole- diferentes modos de comunicação. Inicialmen-
tiva, no qual se discute porque uns deverão ser te, identificar a diferença nos discursos, a qual
atendidos e outros poderão esperar. Além disso, não se trata de um problema semântico, ou seja,
é possível diversificar os profissionais que irão da diferença de compreensão das palavras, mas
fazer atendimento, desfazendo-se assim o mo- de diferentes modos de pensar a sua realidade e
delo centrado no médico. Na medida em que de se expressar sobre ela. No acolher o usuário,
mais profissionais podem participar, amplia-se é preciso considerar as experiências de vida e a
a capacidade de atendimento, o que não ocorre cultura daquela comunidade, como elementos
quando tudo é dirigido para o médico. Experi- importantes na construção da fala da clientela.
ências como o GORD (Grupo de Orientação e Algumas vezes se desqualifica o discur-
Organização da Demanda) que ocorreu em São so do paciente alegando-se exageros na descri-
Paulo no período de 89/92, mostraram como é ção do problema ou da necessidade de saúde.
possível dar conta da demanda, diversificando Exageros na avaliação do profissional, porém,
as possibilidades de atendimento. o modo como o paciente percebe e sente o seu
sofrimento. Não se pode negar a fala do usuário,
mas entender os fatores que estão dando o tom à
A Relação Profissional de Saúde/Clientela descrição de seus padecimentos.
A escuta e o olhar são importantes formas
Para se implementar o acolhimento, pen- de comunicação, assim como a comunicação ges-
sando a qualidade e a satisfação do usuário, é im- tual e corporal, e expressam os diferentes modos
portante analisar aqui os fatores que interferem de acolher o usuário.
na relação entre gestores, trabalhadores e usuá- O diálogo entre trabalhadores e usuários
rios. Para isso, é necessário pensar a democra- reproduz o modo como ambos reconhecem seus
tização das relações de trabalho e a valorização direitos na relação que se estabelece no aten-
dos trabalhadores da saúde, com processos de dimento. Dessa forma, a escuta atenta, o olhar
educação permanente. compreensivo e o toque respeitoso, que expres-
Além disso, é importante a valorização do sam formas de comunicação, devem ser pauta-
ambiente, com espaços de trabalho que sejam dos pelo reconhecimento da presença de direitos
agradáveis e acolhedores. em todos os momentos da relação entre os traba-
De acordo com a PNH, é fundamental lhadores e a clientela.
“ampliar o diálogo entre os trabalhadores, entre A relação profissional/clientela constitui
os trabalhadores e a população e entre os traba- um instrumento importante para a qualidade e
lhadores e a administração, promovendo a ges- o compromisso dos profissionais com a cliente-
tão participativa, colegiada e a gestão comparti- la. As características da relação profissional de
lhada nos cuidados/atenção”.7 saúde/clientela permitem entendê-la como uma
Para que os trabalhadores tenham uma re- relação de poder. Poder que se fundamenta na
lação de respeito para com aqueles que vêm em desigualdade entre os membros da relação tanto

76
Capítulo 6 • O Acolhimento e a Estratégia Saúde da Família

pela diferença dos saberes como pela diferença estudo sobre o modo como os médicos identi-
de classe. Relação de poder que ganha legitimi- ficam a “agenda” de queixas que o paciente traz
dade pela singularidade desse saber que diz res- para a consulta, observaram que o tempo médio
peito à saúde/doença e à vida/morte.8 disponível para o paciente, inicialmente ex-
É possível identificar dois tipos de rela- pressar suas queixas, antes de o médico fazer o
ção de poder: uma relação de autoridade, fun- primeiro redirecionamento da anamnese, foi de
damentada no reconhecimento de que um dos 23,1 segundos. De acordo com esses autores, essa
membros da relação possui um saber que é le- interrupção do paciente ocorre, na maioria das
gitimado como o saber oficial. E a relação auto- vezes (76%), após a primeira queixa. Os médicos
ritária que é sustentada pela diferença de classe comumente redirecionam o foco da entrevista
entre os membros da relação e é legitimada pela clínica antes de dar ao paciente a oportunidade
instituição na qual ocorre a relação. de expressar todas as suas queixas.
A relação de autoridade, necessária para Transformar a consulta, de modo a perce-
se fazer cumprir as regras e a dinâmica de fun- ber o indivíduo, na sua totalidade tem sido um
cionamento do serviço, deve ser conquistada, dos pilares do que Campos10 chama de Clínica
compartilhando-se os saberes, respeitando-se a Ampliada.
cultura e os modos de vida da clientela. Da mes- Na perspectiva da clínica ampliada, o pro-
ma forma, as condutas e as orientações devem fissional tem de acolher o indivíduo procurando
ser discutidas e assumidas por ambos os partici- entendê-lo para além da queixa que ele traz. Não
pantes da relação. se pode restringir o atendimento à doença, mas
Na perspectiva das relações entre trabalha- pensar o sujeito na sua integralidade. Ou seja,
dores e usuários, o acolhimento implica ainda, procurar compreendê-lo na sua subjetividade,
respeitar as especificidades da clientela, enten- na sua singularidade. Entender que o indivíduo
dendo as suas expectativas, temores e desejos. A com uma queixa aparentemente de natureza ape-
compreensão desses sentimentos que podem se nas orgânica, apresenta outros sofrimentos e an-
expressar sob diversas formas de insegurança, gustias, muitas vezes originados por essa suposta
dificuldade de entendimento das orientações ou doença que o fez procurar um atendimento.
mesmo resistência a essas orientações possibilita Inicialmente, é importante identificar as
ao profissional ter atitudes mais compreensivas repercussões da queixa para o paciente. Quais as
e de maior respeito com o usuário. hipóteses diagnósticas que o indivíduo já formu-
lou e que o levaram a procurar ajuda. As pessoas,
ao perceberem alguma alteração no funciona-
Um novo olhar para o atendimento mento do seu corpo, costumam levantar suspei-
tas do que pode ser a causa do problema apresen-
O acolhimento deve fazer parte da consulta tado. É preciso identificar essas suspeitas para
propriamente dita. Consulta que é realizada por que o profissional possa esclarecer as possíveis
diferentes profissionais em função do problema causas, desfazer medos incompatíveis e conse-
apresentado pelo usuário. Escutar o paciente em guir tranqüilizar o paciente. Para saber quais
todas as suas queixas é um procedimento funda- as hipóteses diagnósticas que o paciente já fez,
mental para que o indivíduo se sinta acolhido. é preciso perguntar-lhe diretamente. Quando se
Muitas vezes, só se permite ao paciente colocar pergunta o que o paciente acha que pode ser a
apenas uma queixa, não deixando que ele relate causa dos seus sintomas, em geral, ele responde
todos os seus sofrimentos, dúvidas e ansiedades. que não sabe. Na segunda vez que lhe é feita a
Marvel, Epstein, Flowers & Beckman9, em um pergunta, ele ainda repete que não sabe. É pre-

77
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

ciso, então, mudar a pergunta: o que o senhor(a) ela vai se expressar, tanto em agudizações, como
tem medo que seja? Em geral, na terceira vez que nas diferentes manifestações de complicações.
se indaga, o paciente costuma dizer qual a sua A PNH chama atenção para a capacidade
hipótese diagnóstica, ou os seus receios sobre os do indivíduo de “inventar-se” apesar da doença.
sintomas que tanto o preocupam.11 “É muito comum nos serviços ambulatoriais que
A compreensão que o paciente tem da sua o descuido com a produção de vida e o foco ex-
doença/sofrimento indica ao profissional que cessivo na doença acabe levando usuários a tor-
tipo de explicações deverão ser dadas e a forma narem-se conhecidos como ‘poliqueixosos’ – com
como essas informações devem ser repassadas. muitas queixas – ou ‘refratários’, pois a doença
O modo como cada um reage diante de (ou o risco) torna-se o centro de suas vidas”.12
uma queixa é bastante diverso e é determinado Na Estratégia da Saúde da Família, é pos-
pelas experiências anteriores de doenças, pelo sível pensar um modelo de atenção diferente que
grau de instrução e informação sobre as doen- contemple os principais pontos aqui abordados
ças e pela estrutura psíquica do indivíduo. Por- para que realmente o usuário se sinta acolhido.
tanto, uma mesma doença pode se expressar por A perspectiva de um trabalho em equipe permite
vários tipos de queixas e com diferentes graus de que diferentes olhares (do médico, da enfermei-
sofrimento. É preciso entender que o problema ra, dos auxiliares de enfermagem e dos agentes
expresso na queixa deve ser compreendido para comunitários de saúde - ACS) enxerguem dife-
além da dimensão física, nos seus aspectos psi- rentes aspectos da realidade das famílias aten-
cológicos, sociais e culturais. Além disso, muitos didas. As visitas domiciliares feitas pelos ACS,
problemas de ordem psicológica expressam-se trabalhadores que são parte da comunidade, per-
por meio de sintomas que podem sugerir doen- mitem ampliar a anamnese incorporando infor-
ças. Dessa forma, no modelo “queixa conduta”, mações preciosas que os interrogatórios feitos
o reducionismo que leva o médico a já fazer um no momento do atendimento da consulta não
diagnóstico, a partir da queixa inicial, e insti- conseguem identificar. Pode-se dizer que tais vi-
tuir imediatamente o tratamento, não permite sitas constituem uma extensão do olhar sobre o
realmente conhecer não só o diagnóstico, mas paciente. Um exemplo disso pode ser observado
principalmente, o paciente e os demais aspectos quando um usuário com problemas respirató-
ligados a essa queixa, contribuindo para a pouca rios procura atendimento. Toda a investigação
resolubilidade da consulta. feita na unidade e os tratamentos prescritos se
A PNH destaca, entre seus princípios, a completam com a visão do domicílio que a equi-
“clínica ampliada”, que tem como um de seus pe pode ter. Visões diferentes que privilegiam
aspectos fundamentais a capacidade de equi- aspectos diferentes no que se refere aos possíveis
librar o combate à doença com a produção de fatores intervenientes no problema
vida. Nessa perspectiva, “a clínica ampliada pro- O vínculo entre a equipe e a família possi-
põe que o profissional de saúde desenvolva a ca- bilita o conhecimento mais profundo de cada um,
pacidade de ajudar as pessoas não só a combater de tal modo que a equipe pode estender seu olhar
as doenças, mas a transformar-se, de forma que para além da queixa e considerar os determinan-
a doença, mesmo sendo um limite, não a impeça tes dos sofrimentos que cada um apresenta.
de viver outras coisas na sua vida”.12 Um novo olhar, que se expresse em uma
Isso é particularmente importante quando nova atitude diante do usuário, que lhe garanta
se lida com doenças crônicas ou muito graves. É ser acolhido, é possível esperar desse novo mo-
sabido que o modo como o indivíduo vivencia delo de atenção à saúde que se pretende para a
sua doença é determinante para a forma como Estratégia Saúde da Família.

78
Capítulo 6 • O Acolhimento e a Estratégia Saúde da Família

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79
Capítulo 7
Atenção médica efetiva na – Uma espinha em meu nariz, logo hoje que...
prática da Atenção Primária – sendo interrompido pelo Dr. Augusto.
– Há quantos dias surgiu? Já usou algum
Marco túlio aGuiar Mourão riBeiro
tatiana Monteiro Fiuza medicamento? Tem história familiar de “espinhas”?
KilMa Wanderley loPes GoMes É diabético ou hipertenso? Fuma? Consome bebidas
alcoólicas?
– Não tenho nenhum problema de saúde, que eu
saiba. Mas hoje eu teria um encontro e esta espinha...
Após examinar Sr. Saul:

O objetivo desse capítulo é realizar uma refle-


xão sobre as competências necessárias para
que o médico da atenção primária, particularmen-
– Sr. Saul, trata-se de acne grau 2 e seu Índi-
ce de massa corporal é 30, ou seja, o Sr. está obeso!
Somando a isto o sedentarismo, o Sr. tem grande
te o médico de família e comunidade (MFC), seja risco para desenvolver doença cardiovascular.
efetivo em sua prática. É importante ressaltar que – Sim Dr., mas a espinha e o encontro hoje à
o MFC deve atuar de forma integral com os demais noite... – novamente interrompido pelo Dr. Augusto:
profissionais da atenção primária à saúde, enfati- – Estou prescrevendo Tetraciclina em pomada,
zando os médicos especialistas em Pediatria, Clí- mas a espinha não irá melhorar de hoje para ama-
nica Médica, Ginecologia, Obstetrícia e Cirurgia nhã. Não manipule a pústula e lave o rosto várias
Geral que devem compor as equipes matriciais. vezes ao dia. Faça dieta para emagrecer 10 Kg.
– Mas a Vera, o encontro e a espinha...
– interrompido pelo Dr. Augusto:
Caso Clínico – Procure um endocrinologista para ajudar
com a dieta. Bom dia.
Sr. Saul, 50 anos, viúvo há 10 anos, técnico
em informática, vive só, em casa própria, na periferia
de Fortaleza. Sr. Saul trabalha 10 horas por dia, es- Situação 2
tando sedentário. Por estar ansioso e triste, aumentou
a ingesta calórica e engordou 12 kg nos últimos dois – Bom dia Sr. Saul, qual o problema?
anos. Não fuma, não consome bebidas alcoólicas. – Uma espinha em meu nariz, logo hoje que
Sua vida social resume-se a almoçar com o filho um eu teria um encontro com a Vera. Ando muito so-
sábado ao mês e freqüentar a igreja nas tardes de do- litário, comendo muito chocolate pois fico ansioso e
mingo. Procurou a Unidade de Saúde devido a uma triste. Não tenho mais caminhado por que me falta
“espinha que surgiu em seu nariz, justo hoje, dia que companhia. Não bebo, não fumo e dançar era meu
ele iria se encontrar a primeira vez com a Vera!”... único “vício”. Não tomo nenhum remédio. Hoje, eu e
Foi atendido pelo Dr. Augusto: a Vera iríamos sair para dançar e surgiu esta espinha
que me deixou ainda pior!
Após examinar Sr. Saul:
– Fora esta espinha e uns quilinhos a mais
Situação 1 o exame físico está normal. O coração, os pulmões
e os pés estão prontos para dançar. Este encontro é
– Bom dia Sr. Saul, qual o problema? importante?

81
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

– Muito! A Vera é maravilhosa, compreensi- altos custos, sofisticação (tecnológica) e superes-


va, educada e gosta de dançar como eu. Acho que ela pecialização do cuidado.
também gosta de mim. Deve-se alertar para o fato de que a opção
– Infelizmente não existe um remédio que tra- por um dado modelo de atenção, não está isenta
tará esta espinha até hoje à noite. Estou prescrevendo de finalidades e valores, explícitos ou implíci-
Tetraciclina em pomada e evite espremer a espinha tos, quanto ao significado e sentido das práticas
para não infeccionar. Lave o rosto com água e sa- de saúde. Um mesmo rótulo ou proposta pode
bão várias vezes ao dia, para reduzir a oleosidade da expressar-se, concretamente, em práticas dis-
pele. Quanto ao excesso de peso, dançar é uma ótima tintas. Assim o médico de família pode compor
atividade física. uma equipe de saúde para assegurar qualidade,
– Pensando bem, a Vera não iria deixar de integralidade e efetividade ao primeiro nível de
gostar de mim por causa de uma espinha! Se estou atenção (atenção primária) ou visar a um aten-
bem para dançar é isto que importa. dimento tecnologicamente simples e pobre para
– Boa sorte e retorne para conversarmos me- gente pobre e simples (“atenção primitiva de saú-
lhor sobre uma dieta e outros assuntos importantes de”), impedindo o consumo de outros níveis de
para melhorar sua saúde. atenção; ou, então objetivar, fundamentalmente,
uma ação “triagista” ou de screening para a redu-
ção de custos seja de empresas, seja do Estado.
Introdução Muitas vezes nos perguntamos o que na
verdade é saúde da família. Em que isto real-
Campos4 expôs o desafio epistemológico- mente difere da prática convencional? Quais os
organizacional da atenção primária a saúde. A conhecimentos, habilidades e atitudes necessá-
APS deve encarregar-se de 80% dos problemas rios para que um médico de família seja efetivo
de saúde da população e “resolver” 95%. Para em sua prática?
isto, deverá reformular e integrar três campos Antes de respondermos essas questões,
de prática em saúde – a função clínica, a função faz-se necessário revermos alguns conceitos fun-
saúde coletiva e a função acolhimento. damentais para a compreensão das competências
A Portaria de Diretrizes e Normas para a necessárias ao médico para atuar de forma eficaz
Atenção Básica do Ministério da Saúde, aprova- na Atenção Primária.
da pela Comissão Intergestores Triparte, inte-
grada paritariamente por representantes do Mi-
nistério da Saúde e dos órgãos de representação Eficácia, efetividade e eficiência
dos Secretários Estaduais de Saúde – CONASS e
do conjunto dos Secretários Municipais de Saú- A eficácia é o grau em que uma determi-
de – CONASEMS em fevereiro de 2006, criou a nada intervenção, procedimento, regime ou ser-
Política Nacional da Atenção Básica. Esta Porta- viço podem gerar um resultado sanitariamente
ria define que a Estratégia de Saúde da Família desejável, em condições ideais.
(ESF) é estruturante do SUS e modelo de orga- A efetividade é o grau em que se alcança
nização da atenção primária. um resultado positivo em uma ação em condi-
Paim, citado por Rouquayrol, afirma que ções reais. Segundo Rouquayrol, efetividade é o
a medicina familiar foi reconhecia como movi- grau em que se alcança um determinado impac-
mento ideológico visando a responder aos im- to, resultado, benefícios ou efeito real por causa
passes e questionamentos sobre o modelo médi- da aplicação prática de uma ação habitual. O
co hegemônico, sobretudo no que se refere aos nível de efetividade pode depender do espaço

82
Capítulo 7 • Atenção médica efetiva na prática da Atenção Primária

e do tempo; sua determinação não tem caráter profissionais, dentro e fora do setor saúde, cuja
universal. atuação conjunta deverá potencializar a integra-
A eficiência é um princípio, é a relação lidade da atenção à saúde.
existente entre os resultados obtidos em uma
atividade e os recursos empregados.
Atenção Primária em Saúde (APS)

Saúde Os dados disponíveis demonstram que um


nível de atenção primária bem organizado cons-
Antes de comentar sobre os demais temas, titui pré-condição para o funcionamento de um
é importante apresentar o conceito de saúde de- sistema de saúde eficaz, eficiente e eqüitativo.
finido pela VII Conferência Nacional de Saúde: A Conferência Internacional sobre Cuida-
“Em sentido mais abrangente, a saúde é a re- dos Primários de Saúde, reunida em Alma-Ata, no
sultante das condições de alimentação, habita- mês de setembro de 1978, expressou a necessidade
ção, educação, renda, meio ambiente, trabalho, sentida pelos governos, profissionais da saúde e
transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso a comunidade mundial de rever o conceito de saú-
posse da terra e o acesso a serviços de saúde. É de e promover a saúde de todos os povos do mun-
assim, antes de tudo, o resultado das formas de do. Concluiu que era possível “saúde para todos
organização social da produção, as quais podem no ano 2000” com os conhecimentos e recursos já
gerar grandes desigualdades nos níveis de vida”. disponíveis e formulou a seguinte declaração:
Esse conceito ampliado de saúde redefine a “Os cuidados primários de saúde são cui-
compreensão do processo saúde-doença e é fun- dados essenciais de saúde baseados em métodos
damental para o desempenho dos profissionais e tecnologias práticas, cientificamente bem fun-
dentro do Sistema Único de Saúde. damentadas e socialmente aceitáveis, colocadas
Segundo Barreto e Monteiro, a saúde é per- ao alcance universal de indivíduos e famílias da
cebida e concebida como um objeto complexo, comunidade, mediante sua plena participação e
cuja construção requer uma abordagem transdi- a um custo que a comunidade e o país possam
ciplinar, intersetorial e multiprofissional: manter em cada fase de seu desenvolvimento,
no espírito de autoconfiança e automedicação.
• Transdiciplinar: pelo fato de a saúde Fazem parte integrante tanto do sistema de saú-
ser produzida socialmente, inserindo em seu de do país, do qual constituem a função central
processo de produção múltiplas dimensões e e o foco principal, quanto do desenvolvimento
requerendo, portanto, a incorporação dos olha- social e econômico global da comunidade. Re-
res, saberes e práticas dos diferentes campos de presentam o primeiro nível de contato dos indi-
conhecimento; víduos, da família e da comunidade com o siste-
ma nacional de saúde, pelo qual os cuidados de
• Intersetorial: por necessitar da inter- saúde são levados o mais proximamente possível
venção integrada, e não justaposta, dos vários aos lugares onde as pessoas vivem e trabalham, e
setores junto aos determinantes da saúde, no constituem o primeiro elemento de um continu-
sentido de transformação positiva do processo ado processo de assistência à saúde.”
saúde-doença; Mais recentemente, as conclusões das
conferências internacionais sobre promoção
• Multiprofissional: por requerer co- da saúde, realizadas em Ottawa (1986), Ade-
nhecimentos e tecnologias das várias categorias laide (1988), Sundsvall (1991), Bogotá (1992),

83
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Jakarta (1998) e México (2000) apontam na Organization of National Colleges Academies


mesma direção. and Academic Associations of General Practi-
A prática da atenção primária é, portan- tioners/Family Physicians (WONCA, 2002).
to, o exercício de estar à porta de entrada de um Segundo a WONCA, a definição para a
sistema de saúde, de ser o primeiro contato de medicina geral e familiar é:
indivíduos, famílias e comunidades com uma • Primeiro contato com o sistema de saúde,
complexa rede de serviços, tratando enfermida- prestando um acesso aberto e ilimitado e li-
des, prevenindo os agravos, promovendo a saú- dando com todos os problemas de saúde, in-
de e a reabilitação. Os profissionais de saúde da dependentemente da idade, sexo ou qualquer
atenção primária devem atuar estimulando a au- outra característica da pessoa.
tonomia e o autocuidado do indivíduo, próximo • Utiliza eficientemente os recursos de saúde
ao cenário onde ele vive. através da coordenação de cuidados do traba-
A APS utiliza “tecnologias leves” para lho com outros profissionais no contexto dos
executar ações de saúde complexas. cuidados primários e da gestão da interface
No Brasil, os profissionais médicos res- com outras especialidades, assumindo sem-
ponsáveis pela atenção primária são: pre que necessário um papel de advocacia
• Médicos especialistas das grandes áreas pelo paciente.
(Pediatria, Clínica Médica, Ginecologia • Desenvolve uma abordagem centrada na pes-
e Obstetrícia e Cirurgia Geral); soa, orientada para o indivíduo, para sua fa-
• Médicos não especialistas; mília e para a comunidade.
• Médicos de família e comunidade. • Possui um processo de condução da consulta
singular, estabelecendo uma relação ao longo
do tempo, através de uma comunicação efeti-
O Médico de Família e Comunidade (MFC) va entre médico e paciente.
• É responsável pela continuação da prestação
A Medicina de Família e Comunidade de cuidados longitudinais, conforme a neces-
(MFC) é a especialidade médica da integralidade sidade do paciente.
que atua no campo disciplinar da APS. • Possui um processo próprio de tomada de
A história da medicina de família como decisões, o qual é determinado pela preva-
especialidade começa nos EUA em 1960 como lência e pela incidência da doença na co-
contraponto à super-especialização existente. munidade.
No Brasil, foi reconhecida pelo Ministério da • Gere simultaneamente problemas de saúde
Educação, por intermédio da Comissão Nacio- agudos e crônicos...
nal de Residência Médica em 1981, com o nome • Promove a saúde e o bem estar através de uma
de Medicina Geral e Comunitária. Em 2002 intervenção apropriada e efetiva e possui uma
adqüire nova nomenclatura por intermédio de responsabilidade específica pela saúde da co-
uma resolução conjunta do Conselho Federal munidade.
de Medicina, Associação Médica Brasileira e
Comissão Nacional de Residência Médica em No SUS, onde as políticas de saúde priori-
proposta da Sociedade Brasileira de Medicina zam a atenção primária, está a exigir um número
de Família e Comunidade (SBMFC): Medicina cada vez maior de profissionais com formação
de Família e Comunidade. em medicina de família e comunidade, com
A definição de princípios da Medicina Fa- competências específicas e complexas para pres-
miliar só foi definida recentemente pela World tar uma atenção primária à saúde de qualidade.

84
Capítulo 7 • Atenção médica efetiva na prática da Atenção Primária

O Programa de Saúde da Família (PSF) foco de atenção, compreendendo que os indiví-


duos fazem parte de uma família e que, por sua
Embora rotulado como um programa, o vez, esta está inserida em uma comunidade, são
PSF, por suas especificidades, foge à concepção pré-requisitos para a efetividade da ESF.
usual dos demais programas concebidos pelo
Ministério da Saúde, já que não é uma interven-
ção vertical e paralela às atividades dos serviços Humanização
de saúde. Pelo contrário, caracteriza-se como
uma estratégia que possibilita a integração e Entende-se humanização como a valoriza-
promove a organização das atividades em um ção dos diferentes sujeitos implicados no proces-
território definido, com o propósito de propi- so de produção da saúde. Hoje, entendida com
ciar o enfrentamento e resolução dos problemas política de saúde – Humaniza SUS – tem como
identificados... valores norteadores a autonomia e o protagonis-
A Estratégia de Saúde da Família (ESF) é mo dos sujeitos, a co-responsabilização entre
um modelo de organização da APS peculiar ao eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a
Sistema Único de Saúde Brasileiro, que assenta- participação coletiva do processo de gestão e a
se em equipes de saúde, em vez da figura do mé- indissociabilidade entre atenção e gestão.
dico de família, ou seja, no trabalho multipro-
fissional e interdiciplinar. As equipes de saúde
da família são compostas por, no mínimo, um Acolhimento e oferta organizada
médico generalista ou, preferencialmente, um
médico de família e comunidade, um enfermei- O significado de Acolhimento, descrito
ro, um auxiliar de enfermagem, 6 a 19 agentes por Bueno & Merhy (1999), entendendo-o como
comunitários de saúde, responsáveis pela aten- uma diretriz operacional do modelo, que traz
ção integral e contínua à família de cerca de 800 em si uma resignificação da relação com o usuá-
famílias, o que corresponde a aproximadamente rio. Entendendo-o como sujeito, e portanto, al-
3450 pessoas. O número de famílias sob a res- guém que procura os serviços sendo portador de
ponsabilidade sanitária de cada equipe deve ser algum problema de saúde, e além disso, de uma
inversamente proporcional ao risco e vulnera- história de vida que contribui para formar sua
bilidade do território-processo e sua população. subjetividade, trazendo consigo um modo cultu-
As Equipes de Saúde da Família podem ser com- ral, relações sociais e a origem em determinado
pletadas por Equipes de Saúde Bucal, compostas meio ambiente. É também, portador de direitos
por um odontólogo(a) e um auxiliar de consul- de cidadania, principalmente para o caso de ser
tório dentário, podendo contar também com um assistido e ter sua necessidade de saúde atendi-
técnico de higiene dental. da. Considerando isso, o Acolhimento é uma
A ESF orienta-se pelos princípios doutri- diretriz que só se encaixa em um modelo que
nários do SUS da Universalidade, Integralidade opera centrado na pessoa e no seu problema de
e Eqüidade. Esta estratégia também mantém saúde. O Acolhimento significa que a porta de
coerência com os princípios organizativos do entrada da Unidade de Saúde deve ser alterada,
SUS: acessibilidade, resolubilidade, regionali- para eliminar qualquer aparato que signifique
zação, descentralização, hierarquização e parti- dificuldade de acesso dos usuários.
cipação popular. A oferta organizada baseia-se no estabele-
O trabalho em equipe multiprofissional e cimento do equilíbrio entre a demanda espon-
a atuação da equipe tendo o coletivo como seu tânea e a demanda programada, baseado em um

85
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

diagnóstico de saúde da comunidade e do pla- rapêutico é fundamental para a resolução de pro-


nejamento das ações em saúde pela equipe de blemas complexos. Tanto pode significar ações
saúde da família. intersetoriais (por exemplo, priorizar ações de
saneamento em um local de risco ou promover
ações sinérgicas com área da educação) quanto
Clínica Ampliada pode significar a construção de uma rede de ação
composta por familiares, vizinhos, trabalho, ou-
Nas práticas clínicas institucionalizadas tros serviços de saúde, outras instituições, etc.
tradicionalmente as doenças são o foco do tra-
balho (modelo de atenção biomédico). Toma-se
a pessoa por sua doença, ou seja, ela parece não O Método Clínico Centrado na Pessoa
possuir uma história, uma personalidade e um
corpo. Assim, João, Bruno ou Maria desapare- O método clínico centrado na pessoa se
cem e no seu lugar temos um diabético, um hi- opõe ao modelo tradicional cujo foco é a doen-
pertenso e um deprimido. ça. A relação profissional-pessoa é fundamental
Para que a clínica seja ampliada é impor- para o desempenho do MFC.
tante compreender que as pessoas e suas enfermi- O método clínico centrado na pessoa pos-
dades acontecem dentro de uma dada realidade sui seis componentes:
e levar em conta o contexto onde se encontram • E�plorar tanto a doença como a e�peri-
as pessoas para compreender sua doença, suas ência pessoal de adoecer (illness);
necessidades, dificuldades e desejos. • Compreender a pessoa de forma inte-
A avaliação de risco permite que o serviço grada, como um todo;
de saúde estabeleça como critério para definição • Encontrar e estabelecer um campo co-
de prioridade de atendimento o agravo à saúde mum entre médico e paciente: desen-
e/ou grau de sofrimento-individual, familiar, volver um plano de manejo efetivo re-
social e não mais a ordem de chegada. Os pro- quer que o médico e o paciente alcancem
tocolos técnicos, preferencialmente construídos concordância em três pontos chaves:
levando em conta as características locais dos - A natureza do(s) problema(s) e prio-
serviços e feitos sob a ótica da intervenção mul- ridades;
tiprofissional, podem contribuir para a defini- - Objetivo(s) do tratamento;
ção de prioridades. - O papel do médico e do paciente.
Projeto terapêutico é um plano de ação,
elaborado pela equipe de saúde, que considera • Incorporar a prevenção e a promoção de
todos os fatores envolvidos no processo de ado- saúde ao contexto da consulta “de de-
ecimento, formulando uma estratégia de inter- manda”;
venção, pactuada com o usuário, que vai além do • Melhorar a relação médico-paciente;
medicamento, do encaminhamento ou solicita- • Ser realista: médicos freqüentemen-
ção de exames, mas que considera o ambiente, a te têm demandas competitivas de seu
família, o trabalho, os recursos da comunidade e tempo e energia, devendo aprender a
outros aspectos relevantes. O projeto terapêuti- manejar o tempo efetivamente e com
co deve ser singular para uma pessoa, para uma o máximo benefício de seus pacientes.
família ou para um grupo. Finalmente, os médicos devem res-
A construção de uma rede de apoio, bus- peitar seus próprios limites de energia
cando outros atores para ajudar no processo te- emocional.

86
Capítulo 7 • Atenção médica efetiva na prática da Atenção Primária

Educação permanente nidade. O MFC deve ser um clínico qualificado,


porém conectado a outros princípios como ser
“Ninguém educa ninguém, ninguém se educa responsável por uma população definida, ser in-
sozinho, os homens se educam entre si, medializados fluenciado pela comunidade e aplicar o método
pelo mundo.” Paulo Freire. clínico centrado na pessoa.
A medicina de família possui um campo
A educação permanente baseia-se na de conhecimentos extenso. Atualmente as con-
aprendizagem em trabalho, ou seja, ela acontece dutas clínicas sofrem constantes modificações,
no cotidiano das pessoas e das organizações. Ela gerando diariamente incertezas na prática mé-
é feita a partir dos problemas enfrentados na re- dica. Logo, espera-se desse profissional a habi-
alidade e leva em consideração os conhecimen- lidade de saber buscar o conhecimento em li-
tos e as experiências que as pessoas já têm. vros-texto, diretrizes clínicas, revistas médicas,
internet e outros, e adequar condutas à realida-
de da pessoa e do serviço, baseado nas melhores
Conclusão evidências disponíveis.

O médico da APS para ser efetivo em sua


prática deve conhecer e atuar em consonância
com os princípios doutrinários e organizativos
da APS e do SUS. O MFC necessita, para ser
efetivo, de competências para atuar na atenção
primária. Essas são o somatório de habilidades,
atitudes e conhecimentos gerais e específicos
para esta especialidade.
Para ser hábil e lidar com a complexidade
dos sujeitos e a multicausalidade dos problemas
de saúde necessita a prática de uma clinica am-
pliada valorizando o trabalho em equipe.
O médico de família para ser efetivo ne-
cessita saber ouvir, através de uma escuta quali-
ficada. Necessita entender que a história clínica
faz parte de uma “história de vida” mais abran-
gente e muitas vezes mesclada com fatos objeti-
vos e subjetividades.
A “consultagem” entre médico e pes-
soa, com troca de conhecimentos e estabele-
cimento de um contrato, baseado na parceria
e busca de construção do cuidado, através de
ações dentro e fora do consultório, de ambas as
partes, possibilita estabelecer uma boa relação
médico-paciente.
O MFC adquire sua identidade através de
um corpo de conhecimentos próprio, baseado
nos princípios da medicina de família e comu-

87
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

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88
Capítulo 8
Atenção Domiciliar na prática efetivação desse elo ESF e família assistida. Para
do médico de família tornarmos o capítulo mais facilmente compreen-
sível, vamos avaliar a necessidade da visita domi-
tales coelho saMPaio
tãnia de araúJo BarBoza ciliar dentro dos diversos ciclos de vida.

“(...) cuidar de nossa saúde significa manter nossa visão integral,


buscando um equilíbrio sempre por construir entre o corpo, Visita à criança
a mente e o espírito e convocar o médico (corpo), o terapeuta
(mente) e o sacerdote (o espírito) para trabalharem juntos visando
a totalidade do ser humano.” leonardo BoFF, 2004 O cuidado com a criança pela ESF é de
extrema importância, pois este se constitui em
grupo de extrema vulnerabilidade, principal-
Introdução mente quando se enquadra em um grupo de ris-
co. São considerados grupos de risco:
• Crianças de zero a um ano;
A visita domiciliar consiste na assistência
ao usuário dentro de seu domicílio devi-
do à incapacidade do mesmo em comparecer à
• Crianças de zero a cinco anos que apre-
sentem algum atraso neuro-psico-motor
UBASF por motivos de saúde agudos ou crôni- e afetivo;
cos ou mesmo por dificuldades ou incapacidade • Crianças de um a três anos avaliadas como
física e/ou instrumental, por causas diversas. desnutridas ou em risco nutricional;
Propicia o acompanhamento continuado do • Crianças de dois a cinco anos com índi-
usuário, não quebrando assim a assistência an- ce da relação peso/altura abaixo de um
teriormente prestada. desvio padrão.
A visita domiciliar no contexto da saúde A primeira visita domiciliar à criança deve
da família, é instrumento de capital importância se realizar na primeira semana de vida pelo en-
para a Equipe de Saúde da Família (ESF) por fermeiro e/ou médico, para todo o recém- nascido
gerar a possibilidade do conhecimento da famí- que apresentou risco de vida ao nascer e/ou pelo
lia assistida no seu contexto rotineiro, em seu ACS se não houve tal risco. Esta é a oportunida-
lar, permitindo que a equipe se familiarize com de segura para se estimular o aleitamento mater-
a vida familiar, seus hábitos e rotinas. Uma ESF no, observando as dificuldades apresentadas pela
atenta pode extrair de uma visita feita criteriosa- mãe e ajudando-a nesse processo. São importan-
mente, informações acerca da dinâmica familiar, tes também as orientações acerca dos cuidados
sua hierarquia, seu padrão social, a qualidade do de higiene e cuidados com o coto umbilical, ba-
seu convívio e relacionamentos, seus hábitos hi- nhos de sol, a verificação e orientação sobre o ca-
giênicos e alimentares e outras informações que lendário vacinal e sobre a utilização do cartão da
lhe aprouverem. Tal prática também leva ao for- criança, o esclarecimento sobre a importância do
talecimento das relações de empatia e confiança teste do pezinho e quando este deve ser realizado.
entre ESF e família assistida. Nunca se deve esquecer de elogiar e estimular a
A necessidade de realização de uma visita mãe. Nesta oportunidade já deve ser agendada a
domiciliar se apresenta em várias etapas de vida, primeira consulta médica ambulatorial.
desde a visita ao recém-nascido até a visita ao ido- A partir dessa primeira visita, deve-se
so, gerando assim diversas oportunidades para a orientar a mãe sobre a importância das consultas

89
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

de puericultura e sua periodicidade estimulando da pelo enfermeiro e/ou médico de acordo com
a mesma a aderir a este acompanhamento. Uma o diagnóstico situacional discutido pela equipe.
outra visita domiciliar deve ser feita caso haja É importante que a ESF saiba ouvir, não cri-
falta a estas consultas, ou se houver atraso do ticar, respeitar a privacidade do adolescente, e
esquema vacinal. Também devem ser lembradas reconhecer os dois momentos da consulta, um
as crianças de risco, que devem ser monitoradas onde há a participação dos pais e outro com o
mais amiúde pelo ACS e se necessário for, por adolescente sozinho, onde ele terá a liberdade e
visitas do enfermeiro e/ou do médico. oportunidade de externar preocupações íntimas
Toda criança até cinco anos que apresen- e solicitar orientações, nunca esquecendo do si-
tar internamento hospitalar também deve ser vi- gilo profissional, e garantindo o mesmo ao ado-
sitada nas primeiras 72h após a alta, pelo médico lescente assistido, conforme as normas éticas.
e enfermeiro da ESF. Sabemos que as doenças
diarréicas e as infecções respiratórias são doen-
ças prevalentes nesta faixa etária, e a visita se Visita ao adulto
torna imprescindível para a avaliação do estado
atual da criança, a orientação sobre a medicação A oportunidade de realizar a visita domi-
em uso ou se necessário for, realizar a prescri- ciliar ao adulto ocorre em situações diversas tan-
ção de medicamentos e/ou solicitação de exames to patológicas como também fisiológicas.
complementares, orientando também sua ali-
mentação e cuidados higiênicos.
Atualmente é responsabilidade da ESF a Hipertensos e diabéticos
detecção de crianças vitimas de maus tratos. A
equipe deve estar familiarizada e treinada para A alta prevalência da doença hipertensiva
a abordagem de tal problema, fazendo visita do- e do diabetes e sua elevada morbimortalidade,
miciliar para confirmar a suspeição dos mesmos atingindo principalmente adultos em fase de
e comunicar aos órgãos competentes para que vida produtiva, gerando afastamento do traba-
atitude imediata seja tomada. lho, aposentadorias precoces e o uso extenso dos
serviços hospitalares, demonstraram o quão im-
portante se torna a intensificação das ações que
Visita ao adolescente venham detectar tais problemas precocemente e
de se atuar na sua prevenção e também evitan-
A adolescência é uma faixa etária extre- do suas complicações. O aumento da população
mamente vulnerável a várias intercorrências obesa devido aos maus hábitos alimentares, que
que levam ao sofrimento e morte, sendo de ca- inclui aumento da ingestão de açúcares, sal e
pital importância àqueles adolescentes vitimas gorduras saturadas, vem antecipando cada vez
de exploração sexual, órfãos, moradores de rua, mais a ocorrência do diabetes não insulino- de-
portadores de necessidades especiais, grávidas pendente, aumento dos níveis tensionais e au-
e usuários de substâncias psico-ativas. É neces- mento das taxas do colesterol, que já atingem
sário que a ESF adeque os serviços da UBASF crianças e adolescentes.
às necessidades do adolescente para que estes se Por se tratar de doenças assintomáticas
sintam mais propensos a recorrer a ela. ou paucisintomáticas, é difícil que tais usuários
A visita domiciliar ao adolescente é reali- venham à UBASF, dificultando seu diagnóstico
zada pelo ACS que vai verificar se há a necessi- precoce. Devido a isso, é necessário haver grande
dade de consulta ou que uma visita seja agenda- habilidade por parte das ESF para a busca e detec-

90
Capítulo 8 • Atenção Domiciliar na prática do médico de família

ção destes casos. Outra dificuldade por que passa introdução da infecção pelo HIV, aumentando a
a equipe é a aderência ao tratamento, pois tais pa- preocupação do serviço de saúde em diagnosticar
cientes devem ser convencidos quanto à mudança e tratar o mais precocemente possível os novos
radical de seu estilo de vida, devendo haver gran- casos. A população jovem ainda apresenta cer-
de capacidade de convencimento pela ESF. ta resistência ao comparecimento ao serviço de
A visita domiciliar se fará necessária em saúde, para tanto, é necessário que haja um bom
quatro momentos: treinamento dos ACSs para que saibam detectar
• No caso do acompanhamento dos hiperten- os sintomáticos respiratórios em seu domicílio e
sos e diabéticos que faltarem à consulta médi- estes sejam precocemente encaminhados à con-
ca. A visita deve ser realizada pelo ACS, que sulta médica. Se houver resistência a este com-
vai detectar o motivo do não comparecimen- parecimento, uma visita deve ser agendada pelo
to e agendar uma nova consulta. Se houver enfermeiro para que o devido esclarecimento
qualquer problema que não possa ser resol- seja feito para toda a família e a captação deste
vido pelo ACS, este agendará uma visita pelo usuário seja garantida.
enfermeiro e/ou médico, após a avaliação do Nos novos casos, se não houver o compa-
problema detectado. recimento de todos os contactantes à consulta
• Pós alta hospitalar: naqueles usuários inter- após a sua solicitação, cabe novo agendamento
nados por doenças cardiovasculares ou co- de visita para uma busca ativa dos mesmos.
morbidades de uma das doenças. Deve ser Faz-se também necessária uma visita
realizada pelo médico e/ou enfermeiro, que domiciliar nos casos dos faltosos à consulta de
avaliará o estado atual do usuário, dará expli- acompanhamento na UBASF, inicialmente pelo
cações sobre a medicação em uso e fará altera- ACS que vai avaliar o motivo do não compare-
ções, se necessário. cimento e agendar uma nova consulta o mais rá-
• No acompanhamento de usuários que não pido possível, alertando ao restante da ESF se se
têm acesso à UBASF por dificuldade de loco- faz necessário ou não uma visita pelo enfermeiro
moção. Tais visitas serão realizadas pelo mé- e/ou médico.
dico e/ou enfermeiro, para acompanhamento Na abordagem da Hanseníase, sabemos
periódico do usuário, com todas as orienta- que o principal contágio se dá dentro do domi-
ções cabíveis para o controle da doença. cílio. Após o diagnóstico da mesma, é impres-
• �usca ativa de casos – deve ser realizada em cindível que o ACS, assim como nos casos de
todo usuário que não tiver comparecido a Tuberculose, visite periodicamente a família,
consulta agendada pelo ACS como suspeito. orientando e reforçando a necessidade de agen-
Pode ser realizada pelo auxiliar de enferma- damento de consulta médica caso haja a percep-
gem e/ou enfermeiro que monitorarão os ção de qualquer suspeita da doença.
níveis tensionais, de glicemia capilar, peso, Deve ser agendada consulta para todos os
altura e IMC e darão orientação acerca da im- contactantes e uma busca ativa aos faltosos, atra-
portância da consulta e, se necessário, sobre vés de visita domiciliar, deve ser implementada.
mudanças do estilo de vida. Também se faz necessária a visita nos casos de
falta à consulta médica com reforço à orientação
dada preliminarmente.
Tuberculose e hanseníase Atualmente, ambas as doenças estão
sendo acompanhadas pela Estratégia do Tra-
A tuberculose acomete preferencialmente tamento Supervisionado (DOTS), o que vem
adultos jovens, e seu incremento ocorreu com a reduzindo cada vez mais as taxas de abandono

91
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

do tratamento (apesar de mais laborioso) e vem Em relação ao puerpério, faz-se necessá-


melhorando o controle e acompanhamento de ria visita domiciliar pelo médico e/ou enfermei-
ambas as patologias. ra na primeira semana após alta hospitalar, sen-
do realizada orientação da mãe, exame clínico
e agendamento de consulta na UBASF após 45
Gestantes dias do parto. Nesta mesma visita, faz-se a pri-
meira consulta ao RN, como já mencionamos
A toda gestante deve ser assegurado o anteriormente.
acompanhamento pré-natal, devendo este ser
iniciado no primeiro trimestre de gestação, pois
sabe-se que um pré-natal de boa qualidade pode Doente mental
reduzir de forma significativa as principais cau-
sas de mortalidade materna. É importante que, A doença mental, principalmente quando
através de educação continuada, todas as mulhe- inserida em populações de baixa renda e naque-
res em idade fértil sejam orientadas sobre este las que moram no interior, com dificuldade de
aspecto, e um agendamento de consulta seja es- acesso aos serviços de saúde, muitas vezes é es-
timulado em caso de suspeita de gestação o mais tigmatizada e muitos doentes padecem de maus
precocemente possível. cuidados e abandono.
Cabe ao ACS a busca ativa das mulheres Cabe ao ACS a identificação dos casos
em idade fértil, suspeitas de estar grávidas, em de doença mental e discussão com o restante
sua área de abrangência, e o agendamento de da equipe da necessidade de acompanhamen-
consulta na UBASF. A visita domiciliar pelo to domiciliar até ser possível a inclusão desde
enfermeiro e/ou médico, será reservada àquelas usuário no atendimento na Unidade. Na visita,
mulheres resistentes ao comparecimento e às será avaliada a necessidade de um atendimen-
mal esclarecidas, para que sua captação seja ga- to especializado, garantindo ao usuário o meio
rantida, e já nesta oportunidade, o teste de gra- para fazê-lo.
videz seja solicitado.
É competência do ACS realizar a visi-
ta periódica às gestantes, sempre reforçando a Portadores de necessidades especiais
necessidade de comparecimento às consultas e
orientando sobre o esquema de vacinação, opor- Aqui é vista uma abordagem bastante di-
tunamente verificando o uso das medicações ferenciada pelos diversos PSF, diferindo de lo-
prescritas, especialmente nas gestantes de risco, calidade para localidade. Muitos usuários porta-
como as adolescentes, hipertensas e diabéticas. dores de necessidades especiais não conseguem
É importante ressaltarmos mais uma vez se locomover até a UBASF devido a falta de apa-
a importância do acompanhamento das ado- relhos ortopédicos e/ou falta de meios de trans-
lescentes grávidas, que muitas vezes, por medo porte, atualmente ainda não disponíveis a todos,
e insegurança, não comparecem a UBASF ou apesar de já garantidos pela legislação vigente.
comparecem tardiamente, dificultando a rea- O ACS deve reconhecer todos os porta-
lização de um pré-natal de boa qualidade. Para dores de necessidades especiais de sua área e se
essas, é necessário um acompanhamento mais houver tal dificuldade de acesso, agendar uma
amiúde da equipe, apoiando, respeitando e es- visita pelo enfermeiro e/ou médico, quando se
tando sempre disponível ao diálogo, sem repri- fizer necessário. A visita deve ser realizada, mes-
mendas ou censuras. mo sem necessidade aparente, àqueles que esti-

92
Capítulo 8 • Atenção Domiciliar na prática do médico de família

verem em idade ou apresentarem fatores de risco aqueles com doenças graves e progressivas, que
para doenças crônicas degenerativas, garantindo necessitam de um acompanhamento mais in-
assim uma abordagem precoce e eficaz. tenso, havendo necessidade da programação de
visitas mais freqüentes por parte da equipe, mui-
tas vezes com aplicação de medicações, curati-
Visita domiciliar ao idoso vos, monitoração e orientações indispensáveis
ao cuidador. A ESF deve estar bem integrada e
Como causa do envelhecimento popu- fazer um planejamento de suas ações para que
lacional, observa-se um número crescente de não altere sua rotina, pois outros programas e
condições crônicas coexistentes entre as pesso- atividades devem ser cumpridos. Nestes casos,
as idosas. Geralmente tais patologias necessi- deve haver interação entre a ESF e a assistência
tam de acompanhamento permanente para seu social, o hospital e outros níveis de assistência
controle, e muitas vezes levam à incapacidade que se fizerem necessários.
e comprometimento do nível de independência
do geronte.
Todo idoso que apresentar dificuldade ou
impossibilidade de locomoção por doenças crô-
nico degenerativas deve ser acompanhado roti-
neiramente em seu domicílio pela ESF. Nesta
consulta domiciliar deve-se realizar a avaliação
global do idoso, inclusive no que tange à sua au-
tonomia, ou seja, sua capacidade de se autocui-
dar e de atender às denominadas necessidades
básicas diárias, ou seja, as Atividades de Vida
Diárias (AVDs). Assim será possível avaliar este
idoso quanto à sua dependência, e então traçar
um plano para seu acompanhamento.
Deve-se ser cauteloso e minucioso com as
devidas orientações sobre os cuidados pessoais,
alimentares, prescrição dos medicamentos, soli-
citação de exames, pareceres especializados e te-
rapêutica complementar. Deve ser monitorada a
pressão arterial, os níveis glicêmicos, peso, IMC,
e exame clínico minucioso deve ser efetuado. É
importante o apoio aos familiares, que muitas
vezes se sentem aturdidos com a situação vigen-
te, devendo a ESF buscar alternativas possíveis
para facilitar o cuidado e valorizar o cuidador.
O objetivo em foco deve ser a manutenção da
autonomia do idoso e melhoria de sua qualidade
de vida dentro do quadro atual.
Muitas vezes a ESF se depara com condi-
ções delicadas dentro da necessidade de cuidado
domiciliar no que tange o paciente terminal e

93
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Bibliografia

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serviço/Paola Colares de Borba, Rogério Sampaio
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Secretaria da Saúde do Estado. Metodologia de
melhoria da qualidade da atenção à saúde: instru-
mento de avaliação e supervisão. Fortaleza; 2002.

94
Capítulo 9
Planejamento das ações e qualidade de vida, a atenção humanizada e a parti-
práticas em Atenção Primária cipação individual responsável e autônoma7.
Assim, os sistemas de saúde modernos e
Paola colares de BorBa
roGério saMPaio de oliveira mais efetivos concebem a organização do serviço
yana Paula coelho correia saMPaio sob a ótica da atenção primária em saúde (APS),
que coordena uma rede integral de assistência.
A proximidade com o usuário permite que a
APS seja a porta de entrada para o serviço, que
organize o cuidado às pessoas, que identifique
Introdução e proponha intervenções para o enfrentamento
de fatores de risco, permitindo uma visão global

S egundo Last3, serviços de saúde são aqueles


oferecidos por profissionais de assistência em
saúde ou por outros sob sua coordenação, com o
dessas pessoas, assistindo-as com base em evi-
dência científica, proporcionando resposta ade-
quada a um custo aceitável9.
propósito de promover, manter ou restabelecer a A organização da APS tem sido um grande
saúde. Ou seja, além da assistência individual, o desafio, principalmente por estar, ainda, pelo me-
serviço de saúde deve incluir, também, ações de nos em países como o Brasil, em um nível de dis-
proteção e promoção da saúde e de prevenção de cussão ideológica e conceitual, apesar dos avanços
doenças. Essa definição é abrangente e coerente políticos operacionais. Em outras palavras, no
com o princípio da integralidade que pressupõe Brasil, a APS vem sendo construída através de um
uma rede de serviços de saúde integrada e re- processo político-ideológico caracterizado pelos
solutiva, que inclui desde o serviço de atenção seguintes marcos: criação do Sistema Único de
primária, de tecnologia mais leve e abrangente, Saúde (SUS) na Constituição de 1988; publicação
ao serviço mais especializado, que utiliza tecno- das leis 8.080/90 e 8.142/90 que definem a organi-
logia mais densa e específica. zação do SUS, seus princípios, a participação so-
O grande desenvolvimento tecnológico e a cial e a transferência de recursos entre as instân-
tendência desordenada para as especialidades mé- cias federal, estaduais e municipais; publicação
dicas gerada pela Reforma Flexneriana marcam das Normas Operacionais Básicas (NOBs: 91, 93
profundamente o serviço de saúde no Brasil, de e 96); implantação do Programa Saúde da Famí-
forma que a percepção desse serviço está, via de re- lia (PSF) como estratégia de organização da APS;
gra, voltada para organizações hospitalares ou am- publicação das Normas Operacionais da Assistên-
bulatoriais com foco nas doenças. No que pesem cia à Saúde (NOAS: 2001 e 2002) e; publicação do
os benefícios inegáveis da evolução tecnológica Pacto da Saúde, em 2006, que reitera e reorien-
para a medicina, os altos custos daí advindos de- ta diretrizes importantes para a consolidação do
terminaram propostas de mudanças na lógica da SUS. Essa é uma situação concreta e operacional,
organização dos serviços de saúde, inicialmente, porém, na prática, a organização da atenção tem se
em países desenvolvidos e, posteriormente, em vá- dado de forma diversa e nem sempre satisfatória.
rios outros países, sob a motivação da Conferência Parece haver uma dissonância entre o que se sabe
Internacional de Alma Ata, em 1978. Essa confe- em teoria e as habilidades desenvolvidas pelos
rência disseminou discussões em torno de valores profissionais de saúde ao longo do seu processo de
cada vez mais importantes e prioritários como a formação. A lógica curativo-assistencial tende a

95
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

prevalecer sobre a vigilância à saúde, voltada para vesse sendo assistida por equipes do PSF, o PAB
a proteção e promoção da saúde, prevenção e tra- variável seria repassado pelo valor máximo. Ha-
tamento das doenças e reabilitação das pessoas. via, portanto, interesse em instalar um número
As ações governamentais advindas da nova de equipes que se aproximasse desse percentual.
política de saúde resultaram em considerável ex- Em 2003, duas novas equipes foram for-
pansão dos serviços de saúde, principalmente dos madas para atender a duas áreas no Bairro Vila
serviços de atenção primária a partir da implan- Alta, ambas com situações demográfica e sócio-
tação do Programa de Saúde da Família (PSF). econômica similares. No dia anterior ao início
Tal expansão permitiu maior acesso ao serviço das atividades, os profissionais (médicos e en-
pela população, melhoria de alguns indicadores fermeiros, pois ainda não havia infra-estrutura
básicos de saúde e também grande visibilidade do para a saúde bucal nas unidades de saúde dessas
serviço1. A lacuna de conteúdo voltado para a vi- duas equipes) participaram de uma reunião com
gilância à saúde na formação da maioria dos pro- o Coordenador da Atenção Básica para que lhes
fissionais desse serviço tem resultado em inade- fossem repassadas as instruções de trabalho. Em
quação de sua funcionalidade, contribuindo para aproximadamente meia hora, os profissionais
a manutenção da visão distorcida sobre a efetivi- ouviram as seguintes orientações:
dade da atenção primária e, portanto, do PSF4. • Carga horária a ser cumprida;
O presente Capítulo tem o propósito de • Prazos para a entrega dos consolidados
provocar uma reflexão em torno da organização dos programas e outras informações;
do serviço por uma equipe de PSF. Para tanto, • Os indicadores de saúde que não po-
serão inicialmente apresentadas duas situações dem cair;
reais de equipes de PSF que tiveram abordagens • Prioridade para o atendimento à po-
diferentes na organização das ações e práticas pulação.
(o nome do município e do bairro de ocorrên- Uma profissional pediu a palavra e expli-
cia dessas situações são fictícios). A seguir, se- citou sua intenção de fazer o reconhecimento da
rão abordados elementos para a organização das área e o esclarecimento da população sobre a pro-
ações e práticas de trabalho que podem contri- posta de trabalho da equipe, porém foi desacon-
buir para a implementação de uma atenção pri- selhada a fazer isso, pois era preciso dar resposta
mária efetiva e de qualidade. No final do Capítu- à população que pressionava muito por atendi-
lo, as duas situações apresentadas anteriormente mento, especialmente o atendimento médico.
serão revistas, dois anos mais tarde. No dia seguinte as novas equipes inicia-
ram seu trabalho.

Caso para Reflexão


Situação 1
Esperantina é um município de médio
porte, com um sistema de saúde historicamen- Os membros da equipe chegaram à unida-
te centrado na atenção hospitalar. As primeiras de de saúde, conheceram as instalações, escolhe-
equipes do PSF foram implantadas em 1998, ram o local de trabalho de cada um e se instala-
após a publicação da NOB 96 que trouxe uma ram. A enfermeira, que havia levado um modelo
nova lógica de financiamento da atenção primá- de cronograma já utilizado por outras equipes,
ria com o Piso de Atenção Básica (PAB) fixo e va- sentou com a auxiliar de enfermagem para com-
riável, este último vinculado à existência do PSF binarem a forma de agendamento dos grupos
no município. Se 70% ou mais da população esti- específicos para depois comunicarem a decisão

96
Capítulo 9 • Planejamento das ações e práticas em Atenção Primária

aos agentes de saúde. O médico começou logo a • Trabalho em equipe;


atender, pois o número de pessoas que acorreu à • Acolhimento;
unidade para atendimento já era considerável. • Planejamento:
- Análise da situação;
- Elaboração do cronograma;
Situação 2 - Previsão de monitoramento e avalia-
ção das ações.
A médica e a enfermeira da equipe, ao lon- • Educação em saúde;
go do caminho, conversaram sobre suas expec- • Sistema de registro de informações do
tativas em relação ao novo trabalho. A médica, serviço;
recém-saída da Residência em Medicina de Fa- • Sistema de referência e contra-refe-
mília e Comunidade voltou a comentar sobre sua rência.
intenção de reconhecer a área, analisar a situação
e procurar estabelecer um vínculo com a comuni- O objetivo principal de qualquer sistema de
dade e sentiu uma boa receptividade da colega de saúde é melhorar o estado de saúde da população
equipe. (no SUS, isso corresponde ao princípio do Impac-
Assim, ao chegarem à unidade, convoca- to). Saúde é aqui entendida como uma condição
ram uma reunião com todos os demais membros positiva decorrente do bem estar ambiental, so-
e após as apresentações, solicitaram que as agen- cial, orgânico e de relacionamentos, além do aces-
tes de saúde falassem um pouco sobre a população so ao serviço de saúde9. O objetivo a ser alcançado
e as condições de saúde da área de abrangência da é, portanto, complexo, exigindo complexidade de
equipe. Discutiram questões relacionadas à cons- conhecimentos de domínios diversos. Em outras
trução de um time de trabalho, ao acolhimento palavras, em praticamente todos os serviços de
das pessoas que buscam os serviços da unidade de saúde o trabalho multiprofissional, com a utiliza-
saúde, ao planejamento das atividades do serviço, ção de diferentes expertises, é requerido, em espe-
à orientação educacional participativa, à assistên- cial, nos serviços de atenção primária à saúde.
cia domiciliar, ao monitoramento das atividades Dessa forma, embora não seja fácil, o tra-
desenvolvidas com co-participação comunitária e balho em equipe eficiente na APS é de funda-
à avaliação crítica dos indicadores no nível local mental importância para o alcance do objetivo de
e central. A seguir, conversaram sobre a situação melhorar a saúde da população. Os maiores desa-
de cadastramento das famílias e combinaram que fios desse trabalho talvez sejam a comunicação e
realizariam uma análise de situação geral da área a transferência de informações necessárias para a
nos próximos 15 dias. Antes, porém, fariam uma coordenação da atenção. Reforçando a dimensão
reunião com representantes da comunidade para desse desafio, a Dra Barbara Starfield9, citando
apresentação da equipe e negociação em relação Stott11, diz que o número de linhas de comunica-
às atividades iniciais, necessárias para o bom fun- ção no trabalho em equipe é descrito pela equação
cionamento da unidade. (n2 – n) ÷ 2, onde n = número de membros da
equipe. Segundo Stott11, citado por Starfield9 a to-
mada de decisão em equipe fica otimizada com seis
Organizando as Ações membros e improvável com 12 ou mais membros.
No Brasil, uma equipe do PSF é formada
A organização das ações e práticas de uma por um médico, um enfermeiro e um auxiliar de
equipe de PSF deve ser pautada no desenvolvi- enfermagem, um dentista, um atendente de con-
mento e apropriação dos seguintes elementos: sultório dentário e um técnico de higiene dental,

97
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

um auxiliar de serviços gerais e 3 a 6 ACS. Em conceito e considerar que a noção de problema ou


alguns municípios há, também, a figura do auxi- necessidade de saúde que as pessoas da comuni-
liar administrativo e a equipe de saúde bucal se dade têm, pode não coincidir com aquela dos pro-
divide entre duas equipes do PSF. Na opinião dos fissionais da unidade, e isso não deve ser descon-
autores deste Capítulo, o ponto de partida para a siderado. Todos os membros da equipe precisam
formação de uma boa equipe de trabalho no PSF estar sensibilizados para o fato de que as pessoas
é o entendimento claro de que o desenvolvimento procuram a Unidade de Saúde para aliviar um
pleno das potencialidades de cada um dos mem- problema e a equipe de saúde precisa dar uma res-
bros da equipe só se dá no trabalho colaborativo. posta. Resposta, no entanto, não significa sempre
Se esse entendimento não for uniforme, estraté- uma consulta ou um remédio. As necessidades e
gias simples podem ser utilizadas no sentido de problemas são diferentes e devem ter abordagens
promover o conhecimento dos membros entre si, distintas. A questão é como diferenciar os tipos de
de oportunizar o conhecimento de informações necessidades, como selecionar os problemas dife-
sobre a saúde da população da área, de provo- rentes e como definir as abordagens necessárias.
car desafios, de disseminar elogios, etc. Alguns O primeiro passo é discutir em equipe a or-
exemplos: definir horário para o cafezinho ou ganização de um acolhimento – alguns chamam
lanche; afixar na unidade de saúde informações de triagem – entendido como um atendimento
sobre a análise de situação ou sobre indicadores inicial. Para isso devem ser definidos local e horá-
mensais disponíveis no Sistema de Informações rio de realização, profissional responsável, instru-
da Atenção Básica (SIAB) ou outro sistema de mento e critérios a serem utilizados. Todos esses
informações; repassar elogios ou comentários aspectos devem ser baseados na realidade local e é
positivos feitos por pessoas da área sobre algum sempre importante envolver a comunidade nesse
membro da equipe ou sobre a equipe como um processo de discussão e implementação. Esse aco-
todo. Um clima amistoso cria oportunidade para lhimento deve selecionar (por isso, às vezes con-
a implementação de reuniões sistemáticas para fundido com triagem) as pessoas que precisam de
análise das ações desenvolvidas, para o planeja- um atendimento médico ou de enfermagem no
mento e para reflexões sobre o trabalho em equi- mesmo dia e o serviço precisa garantir essa con-
pe. As reuniões da equipe se prestam, também, sulta. Os outros não podem ficar sem resposta. As
para resolver desentendimentos ou conflitos. possibilidades são variadas (agendamento para
A acessibilidade ao serviço de saúde, consulta médica ou de enfermagem, para parti-
como já dito anteriormente, é um determinante cipação de grupos específicos, para reuniões de
importante do estado de saúde de uma popula- educação em saúde ou para uma visita domici-
ção e também um princípio do SUS. No Brasil, liar) e cada caso deve ser analisado isoladamente
o ponto de entrada para o sistema de saúde é o entre o profissional e o usuário, tornando-o um
PSF, definido como estratégia de organização participante ativo nesse processo de decisão.
da atenção primária que, na ótica da vigilância Esses dois elementos do processo de or-
à saúde, deve “reorganizar todos os níveis de ganização das ações e práticas de uma equipe
atenção, alcançar todos os recursos do sistema de PSF – trabalho em equipe e acolhimento –
[...]”5, ou seja, o pleno acesso à rede de serviços têm governabilidade interna, não dependem de
de saúde deve se dar a partir da APS. equipamentos ou infraestrutura especial, mas
O acesso ao serviço, por sua vez, depende de precisam de determinação e persistência para
vários fatores, dentre eles, o tipo de acolhimen- seu bom desenvolvimento. O gestor municipal,
to dispensado pela equipe de saúde à população6. no entanto, pode (e deve) colaborar através de
Portanto, a equipe de PSF deve discutir sobre este ações simples como apresentar os membros da

98
Capítulo 9 • Planejamento das ações e práticas em Atenção Primária

equipe entre si, explicitar sua expectativa em dos problemas priorizados e a elaboração de um
relação aos resultados esperados, vinculando plano para seu enfrentamento.
esses resultados à integração interdisciplinar e Especificamente para a organização do ser-
também promovendo encontro da equipe com a viço no PSF, a equipe pode começar com a análise
comunidade para as devidas apresentações. da situação para a definição de um cronograma
Planejamento é um processo de organi- de trabalho coerente com as necessidades da po-
zação das atividades desenvolvidas por um de- pulação. As informações básicas são encontradas
terminado grupo de trabalho. Na área da saúde na Ficha A do SIAB ou Cadastro Familiar, de res-
e, mais especificamente, na atenção primária, ponsabilidade dos ACS. A equipe pode solicitar
a organização das atividades deve ser feita em à Coordenação da Atenção Básica da Secretaria
conjunto com os membros da equipe e repre- Municipal de Saúde, o relatório consolidado da
sentantes da comunidade da área de abrangên- Ficha A (Relatório das Condições Sócio-Econô-
cia. Essa atividade – a de planejamento – não micas) ou, se houver possibilidade, pode proces-
foi ainda incorporada na rotina de trabalho das sar os dados dos cadastros no Programa de com-
equipes do PSF, provavelmente pelos motivos, putador Epi-Info para consolidação dos dados2.
ainda atuais, listados por Rifkin e Annett8 em As seguintes informações são essenciais para o
notas sobre a metodologia de estimativa rápida: conhecimento mínimo da população:
o lapso desse conteúdo no processo de formação
dos profissionais; a falta de hábito de trabalhar • Distribuição da população por sexo e faixa
em equipe; a sobrecarga de trabalho gerada pela etária: identificação do quantitativo das pes-
visão pouco abrangente em relação às novas prá- soas pertencentes a grupos de risco: crianças
ticas de saúde; a falta de divulgação de experiên- menores de 2 anos, mulheres em idade fértil,
cias bem sucedidas com a utilização de métodos idosos (> 60 anos). Essa informação permite
de planejamento participativo disponíveis e; a à equipe pensar em termos de capacidade de
dificuldade que a própria comunidade tem para cobertura da assistência e da necessidade de
se envolver em ações com as quais não foi acos- redefinir critérios de priorização.
tumada. Planejar foi, por muito tempo, função
técnico-administrativa e dos gestores de instân- • Agravos e condições referidas: análise da
cias centralizadas, como as estadual e federal. percepção que a população tem sobre o seu
Hoje, porém, o planejamento das atividades próprio estado de saúde. Com esse conheci-
a serem desenvolvidas por uma equipe de PSF é mento a equipe poderá refletir sobre a abor-
imprescindível para a organização da atenção de dagem que precisará ter para a identificação
forma eficiente, integral e eqüitativa. A percepção de doenças crônicas e das condições que exi-
cada vez maior das equipes a respeito da necessi- gem acompanhamento contínuo.
dade de planejamento, as discussões em torno do
tema em cursos e treinamentos para profissionais • Índice de alfabetização da população maior
da atenção primária e a disponibilidade de infor- de 15 anos: a relação entre alfabetização e cuida-
mações têm, de certa maneira, diminuído o misti- dos com a saúde já está bem estabelecida, sendo
cismo em torno das dificuldades de planejar. o analfabetismo um fator de risco geral. Em po-
Um bom planejamento pressupõe um pro- pulações socioeconomicamente desfavorecidas,
cesso mais ou menos sistematizado de passos. O o analfabetismo tende a aumentar com a idade.
primeiro deles é a análise da situação, depois a Esse dado é importante para que a equipe fique
identificação dos problemas, a seguir, a prioriza- atenta à assistência ao idoso, principalmente no
ção desses problemas e, finalmente, a explicação que diz respeito ao auto-cuidado.

99
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

• Condições de moradia e saneamento: in- aferição de resultados e, portanto, a avaliação do


cluem: tipo de casa, existência de energia alcance dos objetivos traçados pela equipe.
elétrica, tipo de abastecimento de água e de O prontuário familiar é a principal base de
tratamento de água no domicílio, destino do registro das informações sobre as famílias e indi-
lixo e de dejetos. Com essas informações a víduos acompanhados. Porém, a equipe deve estar
equipe discute de forma mais apropriada as sensibilizada para a importância da alimentação dos
ações de educação em saúde e as demandas sistemas de informações. Há uma tendência, entre
intersetoriais para a área. alguns profissionais do PSF, de considerar o preen-
chimento dos vários formulários como mera tarefa
Outras informações serão adquiridas ao burocrática, porém isso se dá, geralmente, pela falta
longo do tempo, discutidas nas reuniões regula- de uso regular das informações geradas pela própria
res da equipe e poderão contribuir para mudanças equipe. O médico sem formação em atenção primá-
que se fizerem necessárias. Feita a análise inicial ria parece ser o profissional mais resistente à atuali-
da situação, é preciso discutir e priorizar proble- zação de formulários de registro de informações.
mas, com base em diretrizes políticas nacionais, Outra prática importante é o uso de ca-
regionais e locais, na percepção da população dernos ou formulários para registro nominal das
a respeito de necessidades em saúde e também pessoas acompanhadas em grupos específicos.
com base na capacidade instalada da equipe, que O registro pode ser separado, por exemplo, por
deve, assim, definir objetivos claros e factíveis. agente de saúde, com identificação do agenda-
De uma maneira geral, o cronograma de mento mensal ou conforme definido em proto-
atividades contempla as seguintes atividades: colos próprios. Essa prática permite uma visão
atendimento geral (demanda espontânea e con- coletiva da situação e possibilita a pronta iden-
sultas agendadas), atendimento a grupos específi- tificação das pessoas faltosas e a organização de
cos (pré-natal e puerpério, planejamento familiar, busca ativa para uma assistência apropriada.
prevenção do câncer ginecológico, puericultura, Finalmente, para assegurar que a assistên-
hipertensos e diabéticos), visitas de captação, cia aos usuários seja garantida integralmente na
visitas domiciliares, atividades de educação em rede de serviços de saúde, a equipe deve buscar
saúde e reuniões da equipe. A boa cobertura de na Secretaria Municipal de Saúde, informações
acompanhamento aos grupos específicos depen- sobre a Programação Pactuada e Integrada (PPI)
de do conhecimento da realidade local e também para identificar os serviços de referência nas di-
de conhecimentos epidemiológicos e de parâme- versas áreas da atenção. Tanto quanto possível,
tros sobre a população esperada. O atendimento a o profissional médico deve conhecer esses ser-
pacientes portadores de tuberculose ou hansení- viços e interagir com os demais colegas da rede,
ase não precisa constar no cronograma, podendo demonstrando competência e compromisso com
ser feito através de agendamentos individuais. os pacientes referenciados, incentivando, assim,
Vale salientar que além dos grupos cita- o encaminhamento da contra-referência, tão im-
dos, muitos outros, de acordo com a realidade portante para a continuidade da atenção.
epidemiológica e a capacidade da equipe, podem
ser incorporados ao cronograma.
O sistema de registro das informações é tam- Reflexões sobre as Situações Apresentadas
bém um elemento crucial para o desenvolvimento
das ações e práticas na APS. É útil como fonte de Dois anos depois do início das atividades
informações para o planejamento, contribui para das duas equipes do Bairro Vila Alta, as situa-
a qualidade da assistência individual, permite a ções se apresentam como se segue:

100
Capítulo 9 • Planejamento das ações e práticas em Atenção Primária

Situação 1 ção, remarcaram sua vinda para dois dias de-


pois, após o atendimento da puericultura. O Sr.
A enfermeira da equipe se sente cansada Antônio chegou à unidade por volta das 16h00
e sobrecarregada de serviço, mas mesmo assim, e foi atendido depois das crianças. Ao final da
procura se capacitar, participando de cursos e consulta, a médica explicou-lhe que estava tudo
treinamentos em atenção primária. Muitas ve- bem, mas tinha encontrado uma discreta dimi-
zes se sente mais angustiada porque, ao mesmo nuição do pulso (pedioso) do lado direito e por
tempo em que adquire novos conhecimentos so- isso estava prescrevendo esse novo medicamen-
bre a organização do serviço e sobre a atenção to (AAS). Depois disso, travou-se o seguinte di-
à população, não encontra motivação ou apoio álogo entre o Sr. Antônio e a médica:
dos demais membros da equipe. A supervisão – A senhora me desculpe, mas eu vou fa-
dos ACS, praticamente, se limita à prestação de zer um comentário. A senhora consulta muito
conta dos consolidados mensais. bem, diferente da sua colega.
A auxiliar de enfermagem não conseguiu – Como assim? Perguntou a médica.
estabelecer uma boa relação com a população e, – Ela (se referindo à enfermeira) é uma pes-
com uma freqüência razoável, recebe ameaças soa boa. Conversa, explica bem direitinho, mas
dos usuários e pressão de líderes comunitários, não examina feito a senhora, que examinou o meu
incluindo o vereador eleito pela população do pescoço e até descobriu esse problema do pulso...
Bairro, para marcação de consultas à revelia do – Veja bem, Sr. Antônio, o senhor foi aten-
cronograma estabelecido. dido por ela nos últimos 7 meses porque esta-
O médico tem uma relação cordial com os va com a pressão controlada e sem problemas...
membros da equipe, porém, profissionalmente [apontando para anotações no prontuário] ela ava-
se mantém isolado. Atende 20 pessoas agenda- liou sua pressão, seu peso, o uso da medicação,
das por turno, mas sempre se mostra disponível fez orientações, está tudo escrito aqui. Na última
para atender algumas pessoas que não consegui- vez que lhe atendeu, ela agendou sua próxima
ram “ficha”. É muito elogiado pelo Secretário consulta para mim porque achou necessário en-
Municipal de Saúde. caminhar. Como sou médica, essa é a minha fun-
ção: lhe examinar de forma mais detalhada pelo
menos uma vez por ano.
Situação 2 O Sr. Antônio pediu desculpas e a médi-
ca disse que não se preocupasse, pois, afinal, ela
Essa equipe enfrentou e superou muitos de- é que tinha que agradecer a opinião dele. Após
safios, incluindo problemas com a Coordenação uma pequena pausa, ele disse:
da Atenção Básica, com o Secretário Municipal – Eu agradeço muito a sua explicação, por-
de Saúde e com a comunidade. Com persistência que agora entendo o papel de uma e de outra...
e forte sentimento de integração, os membros da E o Sr. Antônio saiu da unidade, visivel-
equipe se fortaleceram com as reflexões feitas a mente, satisfeito. Na próxima reunião da equi-
cada conquista. O relato a seguir talvez retrate pe, a médica contou o ocorrido e todos vibraram
bem o nível de desenvolvimento do trabalho da com a demonstração de integração da equipe e
equipe e da satisfação desta e da população. com a oportunidade de aprender, mais uma vez,
No dia de atendimento de hipertensos de com a população.
sua microárea, a agente de saúde veio conversar
com a médica e disse-lhe que o Sr. Antônio não
poderia vir naquele dia e, após rápida negocia-

101
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Referências

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11. Stott NC, William PL. When something is good,
more of the same is not always better. Br J Gen
Pract 1993; 43(371):254-8.

102
Capítulo 10
A construção de novas práticas processo permanente, onde a categoria experi-
em saúde da família a partir da ência se constitui como aspecto fundamental.
Diante disso, a educação popular se apre-
interação com os sujeitos populares
senta como um campo de práticas dialógicas que
vera lúcia de azevedo dantas
potencializa a inclusão dos movimentos de orga-
andréa de souza Gonçalves Pereira
KilMa Wanderley loPes GoMes nização popular, partindo das práticas de âmbito
local, articulando-as e transformando essa parti-
cipação popular em espaços de controle social.
A educação popular oferece um instru-

A o considerar a saúde coletiva como um cam-


po interdisciplinar, articulado a uma totali-
dade social, é fundamental compreendermos a
mental teórico fundamental para o desenvolvi-
mento de novas relações, “através da ênfase ao
diálogo, a valorização do saber popular e a bus-
importância de se tentar construir um marco ca de inserção na dinâmica local” (Vasconcelos,
teórico que referencie a mudança das práticas de 2001), tendo a identidade cultural como base
saúde, de forma a contemplar sua historicidade. do processo educativo, e compreendendo que o
Espera-se dessa forma contribuir para a criação “respeito ao saber popular implica necessaria-
de espaços de interlocução com outros saberes e mente o respeito ao contexto cultural”6.
práticas, de forma a fortalecer o processo eman-
cipatório dos sujeitos sociais, ampliando as pers-
pectivas de atuação e reflexão sobre a realidade Saber popular e saber da ciência: uma
e buscando formas de atuação que permitam convivência possível?
encontros entre os diversos atores institucionais
e comunitários, potencializando a humanização No cotidiano do trabalho em saúde sur-
da atenção sob a ótica da integralidade. gem situações conflituosas, onde é comum a
Desencadear processos no campo da saúde negação do “saber da experiência” em prol do
coletiva, onde profissionais e população possam enaltecimento do “saber da ciência”. Esta situa-
interagir e descobrir, juntos, formas coletivas de ção é fruto da desigualdade no acesso ao conhe-
aprendizagem e intervenção nos contextos con- cimento e do descrédito em relação ao saber que
cretos, pressupõe a análise e compreensão desses vem do povo, levando ao monopólio dos profis-
contextos em sua complexidade. Deste modo, sionais sobre o saber referendado pela ciência.
torna-se possível devolver aos sujeitos-atores Alguns autores buscam reduzir essa distância,
das práticas educativas o lugar de partícipes do falando da importância do saber popular ao tra-
processo de construção do conhecimento coleti- zer a experiência vivida, seu intercâmbio, seus
vo, protagonizando ações para o enfrentamento mitos e problemáticas incorporadas através dos
dos seus problemas cotidianos. meios de comunicação de massas5. A partir de
Para isso, compreendemos a importância uma visão de mundo com base na ação, no prin-
de que esses processos estejam embasados em cípio da criatividade e das responsabilidades
uma visão de conhecimento como produção so- individuais, vinculadas às trajetórias e experi-
cial e coletiva, necessariamente transformadora ências de vida10, é possível promover o elo com
das condições que geram a pobreza e a opressão a educação, cujo destino é a transformação do
e centrados em uma visão de educação como um conhecimento em consciência2.

103
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

A formação no campo da saúde tem se • Como envolver os profissionais, junto à po-


configurado a partir de uma matriz biomédi- pulação, na elaboração do diagnóstico de saú-
ca, hospitalocêntrica e medicalizadora, no geral de, planejamento e avaliação das ações?
distanciada dos problemas e necessidades da • Como estabelecer relações e ações comunica-
população, o que dificulta a aproximação, a es- tivas que promovam o contato com a cultura
cuta e o envolvimento dos profissionais com os local e o imaginário popular, aspectos essen-
itinerários percorridos pela população, na busca ciais para o conhecimento da comunidade e a
da saúde. Assim, fica difícil o reconhecimento definição das formas de atuação?
das experiências populares existentes no tecido
comunitário, como espaços privilegiados para a
compreensão dos processos de adoecer e viver SUS e Educação Popular: caminhos e
dos atores-sujeitos populares. cenários
A estratégia saúde da família surge como
possibilidade de reorientação das práticas de São muitos os desafios que se apresentam,
saúde, na perspectiva de organizar a atenção se considerarmos a diversidade de culturas e
sob a ótica do cuidado, pautada nos desejos e contextos em um país de dimensões continen-
necessidades da população. Isso pressupõe ce- tais e onde a desigualdade social se configura na
nários de encontros entre profissionais, popu- regionalidade, no acesso aos bens materiais e no
lação e gestores que apontem para a inclusão conhecimento.
social e a promoção da vida, numa perspectiva Alguns personagens vêm compor esse
de romper com a idéia de ação centrada na do- cenário, mostrando de forma concreta os desa-
ença, para a possibilidade de produção de saúde fios postos aos que abraçarem a saúde da família
e co-produção de autonomia, entendida como a como caminho de construção das práticas de saú-
capacidade de pessoas e coletividades compre- de, como se vê nas situações figuradas a seguir.
enderem e agirem sobre si mesmas e sobre os Assim é que encontram-se Esperança, Co-
contextos cotidianos. ragem e Desafio, que atracam às margens de um
caudaloso rio da região amazônica e vão deparar-
se com barreiras geográficas, como: mudança
Problematizando a partir de algumas constante no fluxo de água dos rios, ausência de
questões norteadoras estradas por terra, trabalho escravo, invasão de
áreas indígenas, pistolagem e grilagem de terras.
Ao incorporar o conceito de território As comunidades a serem atendidas compõem-
vivo trazido por Santos11, o trabalho na perspec- se majoritariamente de caboclos que detêm pro-
tiva da saúde da família coloca em pauta algu- fundos conhecimentos tradicionais acerca do
mas questões desafiadoras para os profissionais aproveitamento dos recursos naturais dos quais
de saúde: dependem para sobreviver.
• Como estruturar processos de trabalho com Em outro ponto do Brasil, Cuidado e Per-
base em problemas que consideram o contex- severança chegam a uma região periférica de
to e as noções de risco e vulnerabilidade nas uma grande metrópole e encontram casas de pa-
diversas realidades brasileiras? pelão, que abrigam pessoas expostas a riscos e
• Como estimular a autonomia e a emancipa- vulnerabilidades, como o tráfico de drogas e o
ção dos atores sociais para a construção de re- desemprego. A fome é a realidade cotidiana de
lações interpessoais e políticas públicas mais muitos homens e mulheres, estando a maioria
humanizadas? destes fora da escola. À falta absoluta de sanea-

104
Capítulo 10 • A construção de novas práticas em saúde da família a partir da interação com os sujeitos populares

mento se juntam a diarréia, a tuberculose, a han- das pessoas, “em roda”, para tratar de temas pre-
seníase. As oportunidades de acesso ao esporte e viamente acordados, de acordo com os interesses
ao lazer também são quase inexistentes, mas par- dos participantes e da coletividade. Numa equi-
te dos jovens se reúne nos grupos de “hip-hop” pe de saúde da família devem fazer parte da roda
como estratégia de resistência. Muitos buscam todos os membros da equipe e representantes
nas igrejas evangélicas, católicas e nos terreiros da comunidade, elegendo-se um coordenador-
de umbanda e candomblé, ajuda para os proble- mediador, que deve garantir a participação igua-
mas do corpo e da alma. As famílias dessa comu- litária de todos e um relator, com a função de
nidade apresentam estruturas muito diversas, registrar falas e encaminhamentos, que devem
mas um traço importante é ter as mulheres como ser realizados com a participação dos sujeitos
chefes de família e a presença de agregados. envolvidos, conforme calendário estabelecido.
Diante de realidades tão diversas, pensar A roda trabalha as dimensões político-adminis-
as singularidades e semelhanças entre os cami- trativa, pedagógica e terapêutica, pela explici-
nhos a serem trilhados por esses personagens, tação de interesses, conflitos, desejos, relações
nos remete a algumas reflexões sobre a constru- interpessoais e necessidades sociais de pessoas e
ção dos processos de trabalho dos profissionais instituições, pretendendo construir a democra-
de saúde da família, de forma sintonizada com cia institucional, a descentralização do poder e a
seu território de atuação, sob a ótica dos princí- criação de espaços de participação dos profissio-
pios orientadores desse campo da saúde coletiva nais e usuários, garantindo a interação do saber
e do Sistema Único de Saúde. popular com as aspirações dos profissionais de
saúde da família, bem como a co-participação no
processo de gestão4.
A co-construção da autonomia dos sujeitos Nesta mesma perspectiva, há a idéia de
um olhar ampliado sobre a clínica, apontada por
Para Campos3 a autonomia poderia ser tra- Campos, no seu Método Paidéia, onde se obje-
duzida como “um processo de co-constituição de tiva articular clínica, saúde pública e gestão em
maior capacidade dos sujeitos de compreende- busca de uma síntese representada pelo respeito
rem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto, ao saber técnico e ao popular, mas considerando
conforme objetivos democraticamente estabele- sobretudo os interesses e os desejos dos agrupa-
cidos”. Ou ainda, como a capacidade do sujeito mentos. Dessa forma é possível combinar lógi-
de lidar com sua rede de dependências. De vá- cas distintas, colocando os objetivos institucio-
rios fatores dependem o grau de autonomia de nais em questão, mas nunca paralisando a ação
um indivíduo ou de um grupo, como: o grau de social, assumindo, portanto, a defesa da vida e
informação, as leis que o(s) regem, os valores cul- ampliando a análise e a intervenção dos indiví-
turais, a capacidade crítica e o poder de interferir duos e agrupamentos envolvidos nas ações das
diante das situações do quotidiano, entre outros. organizações de saúde.
O exercício na construção de um processo
de trabalho, de fato coletivo, deve estar presente
no modo de vivenciar o trabalho da equipe de Trilhas a percorrer: profissionais e
saúde da família. Na perspectiva de construir o comunidade compartilhando saberes e
fortalecimento e a autonomia das pessoas e dos tecendo redes no campo da saúde
grupos, tornando-os capazes de conhecer seus
problemas e agir sobre eles, vem sendo utilizado Atualmente, a prática diária dos pro-
o Método da Roda. Este preconiza o “encontro” fissionais de saúde da família, em sua grande

105
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

maioria, está limitada à tentativa de resolução vem construindo como possibilidades de trans-
das demandas clínicas dos usuários que conse- formação da vida do lugar com base nas poten-
guem ter acesso às unidades de saúde, onde não cialidades locais. As situações-limite6, são aqui
há espaço para a compreensão das histórias de entendidas como aquilo que dificulta a concre-
vida, riscos e vulnerabilidades, ou sua forma de tização dos sonhos, desejos e necessidades e que
integração na comunidade. Além do mais, tam- propõe uma ação compartilhada, onde atores
bém não é habitual a inserção do profissional sociais e institucionais constroem co-respon-
na comunidade, de forma que são perdidas mui- sabilidade social, em um processo que inclui a
tas oportunidades de saber como estas pessoas discussão, a reflexão crítica e a possibilidade de
vivem, trabalham, adoecem, produzem saúde, ajudar a resolver.
privando os profissionais de um olhar mais am- Essa retomada crítica das lutas da comuni-
plo sobre a comunidade e seu contexto sócio- dade, entendidas como as respostas aos desafios
político-cultural. Desta forma, se constroem mais prementes da realidade, as festas populares,
indicadores e análises equivocadas da realidade, a arte e a cultura em suas celebrações, potencia-
que muitas vezes vão constituir barreiras para liza o compartilhamento de saberes e incorpora
intervenções mais efetivas. a visão da integralidade a partir do trabalho com
As justificativas para este modo de fazer a memória social, buscando construir imagens
saúde vão desde a demanda excessiva, a quanti- de transformação e uma análise coletiva sobre o
dade insuficiente de profissionais com formação processo, onde as potencialidades e as subjetivi-
em saúde da família, as dificuldades na organiza- dades possam ter espaço e onde atores diversos
ção dos serviços até o modelo de formação atual, podem tecer redes de solidariedade e trilhar ca-
centrado na doença e voltado para o consumo de minhos de interdisciplinaridade, propiciando na
serviços e insumos, que desconsidera os contex- prática a descentralização das ações de saúde e
tos sociais e as noções sobre território. conferindo aos sujeitos coletivos populares, voz
Torna-se imprescindível despertar os pro- e espaço de reflexão-ação (práxis), continuados.
fissionais de saúde à incorporação de um olhar Esse processo de aproximação tem na
ampliado sobre a comunidade, bem como de fer- observação participante um dos instrumentos
ramentas necessárias para a compreensão da di- fundamentais para os profissionais por enfatizar
mensão do contexto comunitário e do território as relações informais do profissional no campo
como um espaço de superação de situações de considerando sua implicação com a comunida-
risco, conflito e vulnerabilidades, aproximando de, já que a proposta de atuação da saúde da fa-
os serviços de saúde das reais necessidades da mília implica a longitudinalidade e a construção
comunidade. de vínculos. Barbier1 discute a implicação “sob
A Política Nacional de Humanização tem o ângulo da vida psico-afetiva do sujeito e de seu
apontado alguns dispositivos como o acolhi- imaginário”. Para ele, implicar-se consiste em
mento, a ambiência, a clínica ampliada e a gestão reconhecer simultaneamente que, à medida que
compartilhada, que direcionam para práticas de alguém implica o outro, também é implicado
saúde pautadas na ótica do cuidado e do prota- por ele. A implicação promove o engajamento
gonismo dos diversos atores do campo da saúde, profundo, uma espécie de radiografia do ser, par-
inclusive o usuário9. ticularmente, quando o profissional está lidando
Diante disso, um ponto de partida é a re- cotidianamente com pessoas em situação-limite.
constituição da história coletiva da comunidade, Neste contexto, a implicação de que falamos está
suas lutas, as situações – limite que vivencia e ligada à interação dos sujeitos-atores na sua rela-
as estratégias de resistência que historicamente ção com as suas realidades concretas.

106
Capítulo 10 • A construção de novas práticas em saúde da família a partir da interação com os sujeitos populares

Nesse percurso uma outra ferramenta fissionais e população, através dos corpos, falas,
importante diz respeito aos testemunhos e nar- culturas, que são matrizes fundamentais da nos-
rativas de vida que trazem as possibilidades de sa identidade e que por sua capacidade de per-
um saber coletivo carregado de historicidade, manecer vinculada às fontes da vida e da morte
subjetividade e sentidos. As narrativas incor- das comunidades, podem estimular a criação
poram a oralidade e potencializam a atualiza- de laços solidários e comprometidos com a li-
ção temporal e espacial desses atores-sujeitos bertação, constituindo-se como elo que articula
em seus discursos. saberes diferenciados, sensibiliza os diferentes
Trabalhar com as narrativas e a observação atores envolvidos e exprime as representações
participante pressupõe uma escuta sensível que, que o homem constrói a partir da sua leitura do
segundo Barbier1, está ligada à compreensão “do mundo na perspectiva de conhecer e intervir so-
universo afetivo, imaginário e cognitivo do ou- bre a realidade7.
tro, reconhecendo-o e respeitando-o, entretan- Nesse sentido, Merhy8, traz à cena a noção
to, sem aderir às suas opiniões, apoiando-se na de “trabalho vivo em ato” onde o conjunto de
empatia e na totalidade complexa da pessoa”. atores sociais possam, efetivamente, instituir-
Essas ferramentas vão potencializar a se como construtores e produtores de saúde,
construção de uma abordagem multi-referencial permitindo-se e permitindo a criação de novos
dos acontecimentos, situações e práticas indivi- processos de trabalho a partir da convivência e
duais e coletivas1 que permitirá a construção de complementaridade de saberes.
interfaces com os diversos campos e setores que Finalmente não podemos esquecer que o
atuam no âmbito do território. território vivo em sua complexidade traz consi-
A construção dessas trilhas pelo universo go uma trama complexa de cenários e contextos,
de comunidades tão singulares em suas culturas de micro-poderes constituídos, de concepções
implica uma aproximação com essas dimensões de mundo e de saúde, com as quais será neces-
tão significativas para a compreensão dos pro- sário contracenar, explicitando situações confli-
cessos do adoecer e do viver daqueles com quem tuosas e aprender cotidianamente a enfrentá-las
os profissionais trabalham sua ação cotidiana. de forma coletiva, tentando fazer uma suspen-
Nesse sentido, as várias linguagens da arte, são crítica sobre a realidade, tecer conexões en-
da comunicação popular, as práticas populares tre os micro-universos das comunidades e seus
de cuidado, a caminhada dos grupos e movi- sujeitos-atores, buscando fazer o movimen-
mentos organizados, permitem tocar dimensões to dialético de desvelar o mundo partindo da
mais totalizadoras do sujeito e, em geral esqueci- ação-reflexão-ação que nos remete à percepção
das nos processos de conhecer, como a do corpo, da nossa incompletude6.
da estética, da ética, da espiritualidade, da afeti-
vidade – em um construto que vincula desejo e
cognição, intuição e sensibilidade e nos remete
a algumas questões chave para a construção das
práticas de saúde: a humanização e o nosso pa-
pel como educadores.
Para Freire6, educar é tornar os sujeitos
mais humanos e humanizar seria situar os pro-
cessos e práticas de saúde nos anseios e nas lutas
dos setores populares partindo do diálogo, da
convivência e interação de saberes entre pro-

107
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Referências
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ciedade no início do Século XXI. Rio de Janeiro.

108
Capítulo 11
A pesquisa na medicina de dos bem definidos, estruturados a partir de teorias
família e comunidade e de hipóteses, com a finalidade de explicar fatos.
Essa sistematização de teoria e de hipóteses em
ricardo José soares Pontes
alBerto novaes raMos Junior um sistema de proposições descritivas da realida-
renan MaGalhães MonteneGro Junior de é que dá corpo e constitui a teoria científica.
alcides silva de Miranda O objetivo maior não é saber como os con-
textos realmente são, mas sim o de desenvolver ex-
plicações que auxiliem em uma interação dinâmica
com o mundo, seja a partir da previsão (o que vai
Introdução à pesquisa acontecer), seja da ação (como se pode intervir).
De uma forma geral, pode-se classificar a

D e forma bem simples e objetiva, de acordo


com as concepções dominantes, pesquisar
significa, em última análise, procurar respostas
pesquisa em pura ou básica, quando os conheci-
mentos gerados não necessariamente geram uma
aplicação prática prevista, e em pesquisa aplicada,
para questões que se apresentam em uma dada onde os conhecimentos são utilizados para apli-
“realidade”, gerando a construção de conheci- cação prática no sentido da solução de problemas
mentos que ajudem na compreensão e/ou inter- concretos. De forma complementar, costuma-se
venção sobre o mundo, entendido aí, de forma identificar tipos de pesquisa, segundo a área da
indissociável, como o mundo do humano e o ciência (teórica, metodológica, empírica, prática),
mundo natural (“o real”). Por sua vez, conheci- a natureza (trabalho científico original, revisão
mento pode ser entendido como sendo o proces- sistemática), os objetivos (exploratória, descriti-
so intelectual de representação subjetiva da rea- va, explicativa), os procedimentos (pesquisa de
lidade interior e exterior. Pode ser classificado de campo, pesquisa de dados secundários), o objeto
diversas formas como: conhecimento religioso, (bibliográfica, de laboratório, de campo) e a for-
filosófico, popular e científico – cada um deles ma de abordagem (quantitativa ou qualitativa).
toma corpo a partir do modo ou método utiliza-
do para sua construção, por exemplo, a revelação Tipos de
Abordagem
no caso do conhecimento religioso; o raciocínio pesquisa

puro na filosofia; a tradição e a observação/ex- • Pesquisa teórica: dedicada ao


processo de estudo de teorias
perimentação empírica assistemática no conhe- científicas.
cimento popular; e a observação/experimentação • Pesquisa metodológica: ocupada
com os modos de fazer ciência.
sistemática com a formulação de enunciados teó- Quanto à área da
• Pesquisa empírica: dedicada a
ricos no caso do conhecimento científico. ciência
decodificar os aspectos mensurá-
Quando se fala em pesquisa científica veis da realidade social.
• Pesquisa prática: voltada a inter-
Pesquisa prática: voltada a inter-
reconhece(m)-se o(s) caminho(s) para se chegar a venção direta na realidade social
novos conhecimentos com vistas à ampliação da (pesquisa-ação).
base já existente. Alguns tipos de pesquisa pos- • Trabalho científico original:
pesquisa realizada pela primeira
suem um caráter exploratório e são realizadas para
vez, na maioria das vezes com
gerar hipóteses ou pressupostos de investigação. Quanto à natureza
dados primários, e que contribui
No geral, as pesquisas representam um processo para a evolução do conhecimento
da ciência.
de verificação sistemática, com objetivos e méto-

109
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

• Pesquisa e�ploratória • Revisão de literatura;


- Proporcionar uma aproximação • Justificativa;
com o problema a ser estudado.
- Levantamento bibliográfico ou
• Formulação do problema;
entrevistas. • Determinação de objetivos;
- Pesquisa bibliográfica ou estu- • Definição dos métodos;
do de caso.
• Pesquisa descritiva • Coleta de dados;
- Os contextos são observados, • Organização/tabulação dos dados;
registrados, analisados, classifica-
• Análise e discussão dos resultados;
Quanto aos dos e interpretados, idealmente
objetivos sem interferência do pesquisador. • Conclusão;
- Utilização sistemática de técnicas • Redação e apresentação dos dados e das
padronizadas de coleta de dados
(questionário e observação). informações da pesquisa.
• Pesquisa e�plicativa A escolha do tema a ser pesquisado repre-
- Identificar fatores determinan- senta um aspecto ou uma área de interesse de
tes e condicionantes para a ocor-
rência dos eventos e fenômenos. um assunto que se deseja provar ou desenvolver
- Ciências naturais: método e que necessariamente seja de interesse do pes-
experimental; ciências sociais
(método observacional).
quisador. Essa questão de pesquisa não necessa-
• Pesquisa de campo: observação e riamente deve ser original, sendo múltiplas as
coleta de dados diretamente no local fontes indutoras: vivência diária, questões polê-
Quanto aos
onde se dá a ocorrência dos eventos. micas, reflexões, leituras, conversações, debates
procedimentos
• Pesquisa de fonte de papel: pes-
Pesquisa de fonte de papel: pes-
quisa bibliográfica e documental. ou discussões. A revisão de literatura subsidia o
• Pesquisa bibliográfica: elaborada pesquisador a ampliar a apropriação do tema de
a partir de material já publicado pesquisa bem como a verificar a existência de tra-
(livros, artigos de periódicos etc.)
• Pesquisa de laboratório: pesquisa-
Pesquisa de laboratório: pesquisa-
balhos semelhantes ou idênticos, bem como de
dor procura refazer as condições de pesquisas e publicações na sua área de interesse.
Quanto à natureza
um fenômeno a ser estudado, para A construção da justificativa referenda as
do objeto
observá-lo sob controle estrito.
• Pesquisa de campo: constru-
Pesquisa de campo: constru- razões da pesquisa, indicando potenciais vanta-
ção de um modelo proposto da gens e benefícios que a pesquisa irá proporcio-
realidade a partir de formas de
observação definidas.
nar. Nesse momento, o pesquisador já tem sub-
• Pesquisa quantitativa
sídios para estar reformulando o problema de
- Traduz em número as opiniões forma clara, delimitando-o em termos de tempo
e informações para que estas e de espaço.
sejam classificadas e analisadas.
- Técnicas estatísticas são a A determinação de objetivos indica o que
base analítica da abordagem se pretende alcançar com a pesquisa, sendo que o
Quantitativa
objetivo geral indica qual o propósito da pesquisa
Quanto à forma • Pesquisa qualitativa
de abordagem - Caráter descritivo. e os objetivos específicos, a abertura do objetivo
- As informações obtidas não são geral em outros menores, mais específicos, e que
quantificáveis.
- A análise é indutiva. direcionarão a abordagem metodológica. Nesse
- A interpretação dos fenômenos sentido, os métodos tornam evidentes como se
e a atribuição de significados são procederá a pesquisa, indicando os caminhos
baseadas no processo da pesquisa
qualitativa das ciências sociais. para se chegar aos objetivos propostos: qual o
tipo de pesquisa? Qual o universo (população e
O processo de desenvolvimento de pesqui- local) da pesquisa? Será utilizada a amostragem?
sas passa necessariamente por etapas definidas: Como será o processo de coleta de dados? Quais
• Escolha do tema e do objeto do estudo; os instrumentos de coleta de dados? Como fo-

110
Capítulo 11 • A pesquisa na medicina de família e comunidade

ram construídos os instrumentos de pesquisa? dos países em desenvolvimento; a crescente par-


Qual a forma que será usada para a organização/ ticipação dos setores privado e filantrópico no
tabulação de dados? Como interpretará e anali- financiamento e execução da pesquisa em saúde
sará os dados e informações? através de parcerias público-privadas; a baixa
A partir daí o pesquisador estrutura a participação dos países menos desenvolvidos na
conclusão da análise dos resultados, sintetizan- produção mundial do conhecimento científico
do os resultados obtidos inserindo as evidências e tecnológico; o fenômeno do brain-drain, que
obtidas com o estudo e as limitações com re- drena os já escassos recursos humanos em saúde
considerações que se fizerem necessárias. Nes- dos países pobres, contribuindo para o aumen-
se momento, aponta-se também a relação entre to da desigualdade; as dificuldades que têm as
fatos verificados e teoria e as contribuições da populações menos favorecidas em ter acesso aos
pesquisa para o meio acadêmico, empresarial ou medicamentos, vacinas e diagnósticos que ainda
desenvolvimento da ciência e tecnologia. se encontram sob a proteção de patentes, confi-
De posse do trabalho concluído procede- gurando tanto uma deficiência dos mecanismos
se à redação e apresentação dos dados da pesqui- de livre mercado quanto uma falha das políticas
sa, seja por meio da construção de relatórios de públicas de saúde; a recente ênfase internacio-
pesquisa, artigos científicos, trabalhos em even- nal nas áreas de bioterrorismo e biodefesa, rele-
tos científicos, monografia, dissertação ou tese, gando a um segundo plano questões urgentes de
segundo normas pré-estabelecidas. saúde pública.
No contexto da pesquisa em saúde, a sua
aplicação se dá no processo de definição e de di-
Pesquisa em saúde mensionamento de fatores considerados como
determinantes ou condicionantes da saúde com
Reconhece-se a crescente conscientização vistas à melhoria da qualidade de vida do ser
do papel central da saúde, da ciência e da tec- humano e da sua relação com o ambiente. Esse
nologia como requisitos para o desenvolvimento processo, porém, não se limita ao setor saúde:
econômico e social, e não apenas como suas con- partindo-se do entendimento ampliado de saú-
seqüências e, por sua vez, do desenvolvimento de, outros setores como educação, trabalho, ha-
como motor e propulsor de liberdade. bitação, ambiente etc, devem necessariamente
Entretanto desigualdades globais também ser incorporados.
se expressam dentro do processo de pesquisa e Nesse sentido, a tomada de decisões cons-
reforçam prioridades e lutas por diferentes mo- cientes em saúde, seja na clínica, seja na saúde
tivos: necessidade de melhoria das condições pública, deve basear-se no entendimento da re-
de saúde das populações pobres e marginaliza- lação existente entre uma determinada ação e o
das; forte dissociação entre a carga de doenças seu resultado na saúde. Assim, o acesso e o uso
das populações excluídas e a concentração do de resultados de pesquisas são fundamentais.
investimento global em pesquisa em saúde nos A situação de saúde pode ser realmente
problemas do mundo industrializado; a exigüi- transformada por meio de atividades de promo-
dade de recursos para a pesquisa em saúde rela- ção da saúde, de prevenção de doenças e agra-
cionada com as doenças da pobreza; a aceleração vos, bem como por intervenções direcionadas
das descobertas e avanços científicos no campo para a cura e redução da carga das doenças. Des-
biomédico, notavelmente na ciência genômica, sa forma, podem ser identificadas quatro áreas
e seu imenso potencial de aplicação em saúde potenciais para intervenção e para a pesquisa:
humana e animal e na resolução de problemas 1) o ambiente (incluindo moradia, família e co-

111
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

munidade) onde a exposição da população a ris- de qualquer associação estatística (acaso, viés,
cos pode ser minimizada ou onde capacidades confusão) e julgar se a associação estatística en-
individuais ou coletivas podem ser potencializa- contrada representa uma relação de causa-efeito.
das; 2) o sistema de saúde (incluindo serviços
sociais e de saúde); 3) outros setores (trabalho,
educação, judiciário, ambiente etc) e 4) políticas Pesquisa no contexto da atenção básica
macro-econômicas.
Ao longo dos últimos 16 anos, o Fórum A Medicina de Família é uma especiali-
Global de Pesquisas em Saúde define como dade médica que privilegia a Atenção Primária
prioridades de pesquisa em saúde o estudo de de Saúde que tem a responsabilidade de lidar
determinantes/condicionantes e fatores de risco com questões e problemas que envolvem gran-
à saúde: sistemas e políticas de saúde; sistemas de complexidade. É de esperar, portanto, que a
de informação em saúde; desigualdades econô- formação de especialistas e a pesquisa nessa área
micas e de gênero; eqüidade em saúde; finan- envolva aspectos igualmente complexos.
ciamento e custo em saúde, desenvolvimento de No Brasil, o Programa Saúde da Família
capacidades para políticas de saúde; pesquisa (PSF) surge como uma estratégia de reorientação
em saúde mental; impacto do desenvolvimento do modelo assistencial a partir da atenção básica,
de outros setores na saúde; sustentabilidade e em conformidade com os princípios do Sistema
desenvolvimento da pesquisa em saúde; degra- Único de Saúde (SUS). Traduz uma nova manei-
dação ambiental; pesquisa em nutrição infantil; ra de trabalhar a (e na) saúde, tendo a família
segurança alimentar; educação formal; gestão de como centro de atenção e não somente o indi-
alimentos e água; pesquisa em justiça social; saú- víduo doente. Espera-se que as equipes de PSF,
de do trabalhador; reprodução e contracepção e funcionando adequadamente, tenham uma reso-
dinâmica populacional. Esse mesmo fórum defi- lubilidade de aproximadamente 85% em termos
niu como prioridades de pesquisa em doenças e dos problemas de saúde em sua comunidade.
agravos: doenças tropicais (malária, leishmanio- O PSF propõe, portanto, uma nova dinâ-
ses, doença de Chagas, esquistossomose, hanse- mica para a estruturação dos serviços de saúde,
níase etc); co-infecção tuberculose-infecção pelo promovendo uma relação dos profissionais mais
HIV; doenças infantis (respiratórias e diarréi- próximos do seu objeto de trabalho. Essa relação
cas); doenças sexualmente transmissíveis; den- é estruturada a partir do compromisso de pres-
gue; mortalidade materna; câncer e diabetes; tar assistência integral e resolutiva a toda popu-
doenças cardiovasculares; transtornos mentais lação, a qual tem seu acesso garantido por meio
e neurológicos; acidentes-violência e seqüelas; de uma equipe multiprofissional e interdiscipli-
doenças crônico-degenerativas em geral. nar, que presta assistência de acordo com as re-
Do ponto de vista da pesquisa epidemioló- ais necessidades dessa população, identificando
gica, parte-se de uma suspeita em relação a uma os fatores de risco aos quais ela está exposta e
possível influência de um fator na ocorrência de neles intervindo de forma apropriada.
uma doença (prática clínica, análise de padrões Nessa perspectiva abrem-se inúmeros
da doença, observações laboratoriais ou especu- espaços para o desenvolvimento de pesquisas.
lações teóricas) para a partir daí formular uma Dentro da Política Nacional de Atenção Básica
hipótese específica e testá-la por meio de estudos de 2006, definiu-se que cabe ao governo federal
epidemiológicos que incluem grupos adequados promover o intercâmbio de experiências e esti-
de comparação. A idéia é determinar a existência mular o desenvolvimento de estudos e pesquisas
de uma associação estatística, avaliar a validade que busquem o aperfeiçoamento e a dissemina-

112
Capítulo 11 • A pesquisa na medicina de família e comunidade

ção de tecnologias e conhecimentos voltados à coletivo, mas também de contextos de organiza-


Atenção Básica. Obviamente não se restringem ção e planejamento da atenção primária. Possibi-
as possibilidades nesse contexto, mas na reali- lita de forma clara a ampliação da capacidade do
dade ao se definir a pesquisa como ação dentro profissional de comunicar-se, tomar decisões e de
de uma política nacional, garante-se o seu papel liderar processos a partir do desenvolvimento de
transformador potencial. maior autonomia e segurança em suas decisões.
A dimensão do trabalho na atenção básica Da mesma forma, fortalece o campo da Medicina
por si só já caracteriza a complexidade da ação, de Família e Comunidade configurando maior
necessitando de pesquisas com diferentes abor- legitimidade no meio acadêmico bem como reite-
dagens. Abrem-se possibilidades para estudos ra o espaço de atuação da atenção primária como
desde a relação entre os membros de uma equipe campo de pesquisa de alta complexidade.
e deles com a comunidade até pesquisas sobre: Os usos do método epidemiológico na
métodos de definição de prioridade, políticas e atuação do Médico de Família e Comunidade
questões transversais que afetam a saúde; de- podem incluir: descrição de síndromes clínicas
terminantes/condicionantes e fatores de risco; e das doenças e sua história natural, geralmente de
doenças e agravos (tanto no âmbito individual questões com elevada prevalência na comunida-
como coletivo). Questões como a análise dos da- de; a identificação de fatores de risco de doenças
dos do Sistema de Informação da Atenção Bá- e grupos de indivíduos que apresentam maior
sica (SIAB) e de outros sistemas de informação risco de desenvolver determinado agravo; a ava-
em saúde, inserem-se nessas possibilidades. liação do quanto os serviços de saúde respondem
Partindo do pressuposto que os processos aos problemas e necessidades das populações; o
saúde-doença não ocorrem ao acaso e que, por- teste da eficácia, da efetividade, da eficiência e
tanto é possível identificar fatores causais e pre- do impacto de estratégias de intervenção, assim
veníveis por meio de investigações sistemáticas, como a qualidade, acesso, satisfação e disponi-
o método epidemiológico torna-se pilar para as bilidade dos serviços de saúde para controlar,
atividades de pesquisa. A necessidade de obten- prevenir e tratar os agravos de saúde na comu-
ção de respostas relacionadas ao processo saúde- nidade. Insere-se dentro das possibilidades de
doença por meio da quantificação de medidas de pesquisa o estudo de como pacientes, famílias,
freqüência de doenças ou da análise qualitatitiva comunidade e sociedade em geral lidam com as
de contextos torna-se possibilidade. Na realida- questões relativas ao processo saúde-doença e o
de, do ponto de vista quantitativo, estima-se a estudo de satisfação do usuário com a rede de
ocorrência de problemas de saúde em populações serviços de saúde.
humanas considerando-se a natureza amostral Nesse cenário, a pesquisa em Medicina de
da quase totalidade dos estudos epidemiológi- Família e Comunidade lança mão de uma série
cos. A partir da descrição de processos incorpo- de métodos oriundas das ciências biomédicas,
rando variáveis relacionadas à pessoa, ao lugar e da saúde pública, das políticas e gestão e das
ao tempo, realiza-se uma análise no sentido de ciências sociais em um sentido interdisciplinar
explicar/elucidar esses determinantes/condicio- baseado no(a) cidadão(ã) e na comunidade.
nantes para, a partir daí, predizer e controlar.
A pesquisa para o Médico de Família e Co-
munidade constrói-se, portanto, de questões que Considerações Finais
surgem da relação com os seus pacientes e comu-
nidades. Pode cobrir um espectro amplo de pro- Tão importante quanto definir e desen-
blemas clínicos, sob o ponto de vista individual e volver pesquisas prioritárias em saúde é garantir

113
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

que o conhecimento gerado e as intervenções Bibliografia


sanitárias resultantes sejam efetivamente incor-
porados em políticas e ações de saúde pública. Alves VS. Um modelo de educação em saúde para
A transformação da pesquisa em ações de saúde o Programa Saúde da Família: pela integralidade
é um processo complexo, árduo, dispendioso, e da atenção e reorientação do modelo assistencial.
algumas vezes extremamente demorado. Interface – Comunic, Saúde, Educ (Botucatu)
2005; 9(16):39-52.
De qualquer forma, a capacidade de olhar
criticamente a realidade que se apresenta e de Anderson MIP, Demarzo M, Rodrigues RD. A
levantar questões com vistas a entender e a medicina de família e comunidade, atenção Pri-
transformar a realidade que se apresenta em mária à saúde e o ensino de graduação: recomen-
busca de um bem comum deve necessariamen- dações e potencialidades. [acesso em 22 jun 2006].
te estar presente em todo profissional médico, Disponível em: http://www.sbmfc.org.br/mostra/
site/download/MFCGraduacao.pdf. Acessado em
inclusive o Médico de Família e Comunidade.
22/06/2006.
Para tanto, ações de educação permanente e de
fortalecimento da construção de programas de Bessa O, Penaforte J organizadores. Médico de
pós-graduação (residência médica, mestrado, família: formação, certificação e educação conti-
doutorado e pós-doutorado) podem contribuir nuada. Conferências do Seminário Internacional
para o reconhecimento da especialidade e cons- sobre Saúde da Família. Fortaleza: Escola de Saú-
de Pública do Ceará; 2002.
trução de ações baseadas em pesquisas dentro
do contexto brasileiro. Além disso, a reestrutu- Blasco PG. Medicina de família: ciência e arte
ração dos currículos médicos traz à tona a ne- com metodologia acadêmica. [Acesso 28 ago
cessária incorporação da Medicina de Família 2006]. Disponível em:http://www.sobramfa.com.
na formação médica. br/publicacoes _ver.php?num_not=37.
Crevelim MA. Participação da comunidade na
equipe de saúde da família: é possível estabelecer
um projeto comum entre trabalhadores e usuá-
rios? Ciênc. Saúde Coletiva 2005; 10(2):323-331.
Duncan BB, Schmidt MI, Giugliani E cordenado-
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primária baseadas em evidências. 3. ed. Porto Ale-
gre: Artmed, 2004.
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saúde: municípios do Brasil 2005: atenção básica.
Rio de Janeiro; 2005. 55 p.
Galliano AG. O Método Científico – teoria e prá-
tica. São Paulo: Harbra, 1986.
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família: sinergias e singularidades do contexto brasi-
leiro. Cad. Saúde Pública 2006; 22(6):1171-1181.
Medronho R editores. Epidemiologia. São Paulo:
Atheneu; 2002, 493 p.
Ministério da Saúde (BR) Conselho Nacional de
Saúde. Normas para pesquisa envolvendo seres

114
Capítulo 11 • A pesquisa na medicina de família e comunidade

humanos: (resolução CNS nº 196/96 e outras). Sala A, Simoes O, Luppi CG, Mazziero MC. Ca-
Brasília, DF; 2003. 106 p. dastro ampliado em saúde da família como ins-
trumento gerencial para diagnóstico de condições
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de vida e saúde. Cad. Saúde Pública 2004; 20(6):
Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamen-
1556-1564.
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prioridades de pesquisa em saúde. Brasília, DF; Sociedade Brasileira de Medicina de Família e
2005. 63 p. Comunidade. Formação e qualificação do Médico
de Família e Comunidade através de Programas
Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Ciência,
de Residência Médica no Brasil, hoje: Conside-
Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departa-
rações, Princípios e Estratégias. [Acessado em
mento de Ciência e Tecnologia. Diretrizes técni-
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Disponível em http://www.paho.org/portuguese/
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Ribeiro EM, Pires D, Blank VLG. A teorização
sobre processo de trabalho em saúde como ins-
trumental para análise do trabalho no Progra-
ma Saúde da Família. Cad Saúde Pública 2004;
20(2):438-446.

115
Capítulo 12
A medicina de família serviços de saúde. O que pode parecer uma re-
e a tecnologia de informação dundância contempla, na verdade, objetivos di-
ferentes. Só o direito conquistado não garante
Marcello dala Bernardina dalla
que a informação vai estar disponível de forma
facilitada. Ainda impera o desafio de se atender
plenamente aos princípios citados.
Historicamente as medidas do estado de
saúde da população não são novidade, reporta-
se inicialmente ao registro de dados de mortali-
Introdução dade e de sobrevivência (estatísticas vitais), mas
que hoje se ampliou com a melhor compreensão
Vive-se na era da informação, o que não do processo saúde – doença – cuidado, buscando
necessariamente significa estar na era da comu- mensurar os complexos aspectos desse trinômio.
nicação. O uso da informática, apesar de inten- Nesse sentido o SUS pode ser entendido como
sificado nos últimos anos, não resolveu eternos um grande sistema de informação com vários
problemas inerentes à espécie humana. Moder- subsistemas, que contempla desde a circulação
namente passa-se a idéia de que basta ter um de recursos financeiros como dados demográfi-
computador e todos os problemas estão resolvi- cos e epidemiológicos.
dos. A saúde, como área de conhecimento hu- Os registros do Departamento de Infor-
mano, não foge dessa constatação. mática do SUS (DATASUS), que integram em
Os recursos da tecnologia da informação rede Sistemas de Informação em Saúde (SIS),
mais conhecidos, acessíveis pela Internet, são as têm servido de fonte de dados para produção
bibliotecas virtuais, bases primárias de informa- cientifica de ótima qualidade, como monogra-
ção médica, revistas eletrônicas, a telemedicina, fias, dissertações de mestrado, teses de doutora-
sítios especializados em medicina baseada em do e artigos científicos, mas não têm sido uma
evidências ou de especialidades médicas, listas ferramenta cotidiana para as equipes que atuam
e fóruns de discussão. Várias são as possibilida- em atenção primária.
des, o que tem estimulado o exercício do bom
senso na busca de informação adequada para
tomada de decisão, tanto clínicas como para o Situação Problema
planejamento em saúde.
Uma das expressões mais marcantes do O Dr. Ricardo foi convidado para ocu-
uso da tecnologia de informação é o próprio par um tempo numa reunião da associação de
Sistema Único de Saúde (SUS), cuja implanta- moradores da comunidade em que atua como
ção conciliou o forte desejo de abertura políti- médico de família e comunidade. O Presiden-
ca e liberdade de expressão de idéias em todos te adiantou para ele que gostaria de algumas
os meios e o momento de ampliação do uso da informações sobre a saúde daquela população,
informática em todo o mundo. Democratizar as especialmente se morrem muitas crianças, se as
informações atende a dois princípios do SUS; mulheres fazem preventivo, se as crianças estão
um deles é o direito à informação e outro a di- vacinadas e do que ficam doentes as pessoas da-
vulgação de informações sobre o potencial dos quela comunidade.

117
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Para contextualizar melhor o Dr. Ricardo, • Revistas eletrônicas: Entre as nacionais


terminou sua residência em Medicina de Família citam-se a Revista de Saúde Pública (www.
e Comunidade (MFC), numa capital do Sudeste fsp.usp.br/rsp), Cadernos de Saúde Pública
do Brasil, e foi atuar num município de 35 mil ha- (www.ensp.fiocruz.br/csp) e a Revista Inter-
bitantes no interior de um estado do Nordeste. A face (http://www.interface.org.br/). Entre as
mudança dele atrasou e o computador ainda não internacionais a revista British Medical Jour-
chegou, e ele nem teve tempo de conseguir uma nal (www.bmj.com), que oferece acesso livre
alternativa, pois o acesso à Internet só é possível aos artigos e tem um interessante recurso de
no município vizinho, que é um pouco maior. O pesquisa simultânea em várias revistas (sear-
responsável pelo Sistema de Informação da Aten- ch across multiple journals).
ção Básica (SIAB) no seu município está doente
e não tem ido trabalhar há dois dias e deve ficar • Telemedicina: Aplicação da medicina à dis-
afastado mais uma semana. A reunião com a as- tância facilitando o contato imediato entre
sociação de moradores é daqui a 36 horas. profissionais situados em pontos distantes,
podendo compartilhar on-line registros,
Questão – Como o Dr. Ricardo poderia imagens e demais informações que possam
atender essa demanda em tão pouco tempo? As facilitar o atendimento de pessoas em pontos
respostas sugeridas estão no final do capítulo. remotos do Brasil e do mundo. Alguns servi-
ços chegam ao ponto de realizar procedimen-
tos cirúrgicos à distância, mas ainda em fase
Recursos da tecnologia da informação a experimental.
serviço da medicina
• Forças - tarefa: Os dois mais citados são o
São várias as possibilidades do uso da tec- US TASK FORCE (www.ahrq.gov/clinic) e o
nologia e no momento em que está se escrevendo CANADIAN TASK FORCE, (www.ctfphc.
esse capítulo outras estão surgindo. Destacam-se org) que disponibilizam recomendações para
alguns recursos accessíveis pela rede mundial de prevenção baseadas em evidências.
computadores:
• Sítios de especialidades médicas: O Sítio da
• Bibliotecas virtuais: Como a Biblioteca Vir- Sociedade Brasileira de Medicina de Família
tual em Saúde – BVS (http://www.bireme.br/ e Comunidade (www.sbmfc.org.br) pode ofe-
php/index.php), com acesso a várias publi- recer alguns recursos como artigos escritos
cações e bases de dados brasileiras, latino- por especialistas da área e listas de discussão.
americanas e de outros países, como SCIE- O sítio da Sociedade Brasileira de Cardiolo-
LO (www.scielo.org), COCHRANE (http:// gia (www.cardiol.org.br), que disponibiliza
cochrane.bireme.br). consensos e um espaço para leigos buscarem
informações sobre a própria saúde.
• Outras bases primárias de informação: Des-
taca-se o PUBMED (http://www.ncbi.nlm.
nih.gov/entrez/query.fcgi?DB=pubmed), que Os sistemas de informação e o DATASUS
tem ferramentas de busca adequadas à práti-
ca de MFC e uma ampla base de dados, cuja O DATASUS é um órgão da Secretaria
única limitação é a necessidade de domínio Executiva do Ministério da Saúde que disponi-
da língua inglesa. biliza dados e informações de fácil acesso pela

118
Capítulo 12 • A medicina de família e a tecnologia de informação

rede mundial de computadores, pode oferecer Apesar de pouco utilizado e de não desa-
subsídios para análise objetiva da situação sani- gregar informações até o ponto de atuação das
tária, tomada de decisões baseadas em evidên- equipes de saúde, o DATASUS, como pode ser
cias e programação de ações de saúde; quando visto, oferece um amplo leque de possibilidades
utilizado racionalmente trata-se de uma excep- para o médico de família. Um exemplo extre-
cional ferramenta para a realidade do médico mamente útil são os Cadernos de Informação
de família brasileiro disponibilizando dados para Saúde organizados em planilhas, séries
de morbidade, demográficos, rede assistencial, históricas e gráficos, em que se disponibilizam
condições ambientais e de vida da população dados demográficos, saneamento, rede assis-
proporcionando a possibilidade de construção tencial (ambulatorial e hospitalar), dados sobre
de indicadores que instrumentalizam o planeja- assistência e morbidade hospitalar, informações
mento em todos os níveis de atenção. sobre nascimentos, mortalidade e imunizações.
Suas principais linhas de atuação são: Há uma planilha específica sobre atenção básica
• Manutenção das bases nacionais do Sis- usando o SIAB como fonte. Inclui dados de co-
tema de Informações de Saúde; bertura de PACS, PSF, visitas domiciliares, co-
• Disseminação de Informações em Saú- bertura vacinal, aleitamento materno, cobertura
de para a Gestão e o Controle Social do de pré-natal, mortalidade infantil por diarréia,
SUS bem como para apoio à Pesquisa prevalência de desnutrição, hospitalização por
em Saúde; pneumonia e desidratação, além desses, infor-
• Desenvolvimento de sistemas de infor- mações sobre pagamentos e transferências, e or-
mação de saúde necessários ao SUS; çamentos públicos. (vide o passo-a-passo para o
• Desenvolvimento, seleção e dissemina- acesso aos Cadernos de Informação na resposta à
ção de tecnologias de informática para a situação problema no final do capítulo)
saúde, adequadas ao país; Entre os serviços oferecidos encontram-
• Consultoria para a elaboração de siste- se Cursos à Distância (disponíveis em outubro
mas do planejamento, controle e opera- de 2006):
ção do SUS; • Análise da Situação de Saúde.
• Suporte técnico para informatização dos • Noções básicas sobre Tabwin.
sistemas de interesse do SUS, em todos • Sistemas de Informações em Saúde - SIS.
os níveis; • Informação no Planejamento e no Con-
• Normatização de procedimentos, sof- trole Social do SUS.
twares e de ambientes de informática • Capacitação em Tutoria e Monitoria.
para o SUS;
• Apoio à capacitação das secretarias esta- É oferecido no espaço ambientes colabo-
duais e municipais de saúde para a ab- rativos os seguintes grupos (disponíveis em ou-
sorção dos sistemas de informações no tubro de 2006):
seu nível de competência; • Manejo Clínico
• Incentivo e apoio na formação da RNIS • Multiplica SUS
- Rede Nacional de Informações em • Informações em Saúde
Saúde na Internet, e outros serviços • Curso �ásico sobre o SUS
complementares de interesse do SUS • DST/AIDS - Aconselhamento
como redes físicas (InfoSUS), BBS e • Ambiente Tecnologias em EAD
vídeo-conferência. • Vigilância ambiental

119
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Por que os sistemas de informação não são todos os níveis de gestão e gerência, seguindo
uma ferramenta de trabalho no cotidiano a lógica do “médico tem que atender”.
das equipes?
• Registro médico: Os vícios observados em
• Educação: Os currículos de graduação não prontuários escritos acabam por se repetir
enfatizam o acesso a tecnologias de informa- nos eletrônicos, exceto pela legibilidade. Os
ção como relevantes para a prática médica. registros dos serviços de saúde são muito pre-
Há ausência, em grande parte, das institui- cários, ininteligíveis e há uma diversidade de
ções de Ensino Superior (IES), de labora- formatos, o que torna impossível a compre-
tório de informática em número suficien- ensão. A rotatividade dos profissionais das
te, e usados em momentos inadequados da equipes de PSF favorece a desorganização
formação, geralmente em fases iniciais do pela variação de registro em um mesmo pron-
curso de medicina, dissociando-se da prá- tuário. O resultado é a impossibilidade em se
tica clínica. Assim, o aluno acaba por não realizar qualquer análise ou estudo tomando
enxergar as tecnologias como ferramentas por base o prontuário escrito.
de uso cotidiano. Nas fases mais avançadas
exalta-se a atenção ao paciente e pratica- • Falta de investimento em informática: De
mente não existem atividades programadas um modo geral não há computadores em
nos laboratórios. Unidades de Saúde, e quando existem, não
se disponibiliza acesso à Internet de maneira
• Desinteresse por parte dos profissionais: adequada, ou só pode ser utilizada pela coor-
Há uma aversão ao uso da informática pelo denação das equipes e em alguns raros casos
profissional de saúde, do qual espera-se dedi- para registro em prontuário eletrônico.
cação apenas à atenção e quando tenta ampliar
seu papel, acaba divergindo dos interesses da • Falta de retorno de relatórios: Invariavelmen-
equipe e das gerências, invariavelmente foca- te não há retorno de relatórios dos sistemas de
das na manutenção da produtividade. informação, e quando acontece, os relatórios
ficam em poder da coordenação, não chegando
• Desarticulação das esferas municipal, es- ao profissional que os produziu. Entre as vá-
tadual e federal: A maior parte dos sistemas rias repercussões ocorre a frustração por “pre-
de informação em saúde (SIS) federal foram encher tanto papel e não saber para onde vai”.
concebidos sem a participação efetiva dos
municípios e estados o que pode contribuir • Entendimento de pesquisa como exclusiva
historicamente para a divergência de interes- da academia: De fato, torna a produção de
ses e entendimento de processo de dimensão informação como uma ação distante do mé-
nacional e a sua integração crescente. dico que atua em APS. As unidades de saúde
foram concebidas como local exclusivamen-
• Enfoque na atenção: O profissional de saúde te de trabalho, não há espaço adequado para
não está preparado para planejar sua prática, estudo individual ou em grupo, o que reflete
busca em geral dar conta da demanda de con- uma prática superada em grande parte pelos
sultas, sobretudo em municípios de pequeno hospitais ao se criar centros de estudo. A di-
porte em que o gestor exerce ainda uma função ficuldade para o uso dos sistemas de informa-
patriarcal sobre os serviços de saúde, compor- ção pode afastar ainda mais o profissional de
tamento reproduzido hierarquicamente em pesquisas para compreensão de sua realizade.

120
Capítulo 12 • A medicina de família e a tecnologia de informação

• Defasagem e erros dos dados: Um dos moti- de equipamentos podem ser proporcionadas
vos do uso incipiente das tecnologias de infor- pelos gestores estadual ou municipal. Outra
mação pelas equipes de saúde é o argumento possibilidade é a aquisição de quantidades
de que os dados são defasados e incorretos, maiores quando compradas em grupo, o que
esquecendo-se que são disponibilizados o que pode baratear o custo, mas não dispensa o
municípios e estados informam, e após revisão gestor de disponibilizar equipamentos nas
em vários níveis dos sistemas, minimizando as Unidades de APS.
falhas. Os argumentos dos erros e da desatu-
alização são utilizados por empresas privadas • Aproveitar aqueles que se interessam pelo
da área de informática, que não têm a mesma uso da informática como multiplicadores:
responsabilidade dos gestores do sistema e que Alguns profissionais avançam no conheci-
invariavelmente não conseguem dar continui- mento da informática e do Sistema de In-
dade a sistemas alternativos implantados. formação e podem ser úteis para os demais
colegas, desde que dispostos a compartilhar
conhecimentos e tendo tempo garantido pe-
Como superar essas limitações? los gestores e gerentes para tal função.

• Inserir na graduação e pós-graduação: A per- • Garantir a digitação das bases de dados


manente associação do uso de tecnologias de do DATASUS nas Unidades de Saúde de
informação e o uso do laboratório de informáti- APS: Pode ser uma forma de gerar relatórios
ca deve ser intensificada e ampliada para todas rápidos para subsidiar o planejamento, o que
as fases do curso de medicina, buscando sobre- não dispensa o retorno dos dados sob forma
tudo a associação com o raciocínio clínico. de relatório para as Unidades de APS. O aces-
so rápido à base de dados pode favorecer a
• Uso intensivo do DATASUS e SIS: Podem produção de relatórios rápidos para detectar
não ser sistemas perfeitos, mas suprem gran- tendências e mudanças nas ações planejadas.
de parte da necessidade de informação para
as equipes, além das possibilidades de acesso • Utilizar a lógica dos observatórios, produ-
a produtos como cursos, grupos de discussão ção de informação rápida com o objetivo de
e publicações e suporte técnico para estados planejamento: A produção de relatórios para
e municípios. uso interno da equipe pode ser ferramenta
útil para o planejamento local mesmo que
• Incentivo governamental para implantação não publicados e com um desenho metodo-
de salas de estudo nas unidades de APS: lógico simplificado, podem suprir a contento
Dessa forma pode-se estimular os municí- a dificuldade em se produzir informações na
pios a adotarem política de uso racional da própria Unidade. Além disso, ao detectar mu-
informática e da informação, com a evidente danças no perfil epidemiológico, pode servir
cobrança de resultados pactuados entre as es- de subsídio para estabelecer parcerias para
feras governamentais. estudos e pesquisas mais detalhados.

• Incentivo para implantar e democratizar o • Formação de redes: No momento em que


uso da rede mundial de computadores: Para cada profissional e sua equipe começam a uti-
aqueles que desejam seu computador pesso- lizar os recursos das tecnologias da informa-
al, as linhas de financiamento para aquisição ção com inteligência, automaticamente surge

121
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

a percepção da inexistência da distância físi- vimento das comunidades em que atua, mesmo
ca e a facilidade em comunicar-se com outros que não se esforce para isso, pois seu papel trans-
profissionais, formando-se uma rede que atua cende o de atender doenças. Em outras palavras,
de forma sistêmica e ganha vida própria. Tra- a demanda por ferramentas de informática pode
ta-se de uma revolução invisível e silenciosa ajudar a encontrar alternativas que em pouco
que, como qualquer uma por que passaram os tempo trarão benefícios para todos.
seres humanos, corre o risco das exclusões. Apesar do tempo curto, é importante que
Somente democratizando o acesso às tecnolo- o Dr. Ricardo não esqueça de utilizar seu pa-
gias e ao seu uso racional e pacífico é possível pel de comunicador com a população, e mesmo
superar esse limite. que não consiga as informações necessárias é
importante que diga a verdade. Mesmo assim,
• Informação como ferramenta de decisão o que o presidente da Associação solicita é fun-
política: O uso adequado da informação faz damental para pactuar determinadas ações com
parte do processo de amadurecimento dos a comunidade.
gestores e conselhos de saúde. Quanto mais Caso seja possível o acesso à Internet e ao
democrático o processo de tomada de deci- DATASUS, vale lembrar que o Sistema acessa-
são mais sentir-se-á a necessidade de deci- do pela rede não permite a desagregação além
dir sustentado em evidências e informações do município; mas pode ser útil como primeira
apropriadas. apresentação, sugerindo-se na reunião a neces-
sidade de se aprofundar as informações sobre a
O uso intensificado das tecnologias de comunidade local. Usar os dados do município
informação vem demonstrando que não é uma para comparação e demonstrar a diversidade
panacéia, mas um dos grandes aliados na prática das populações num mesmo município e dentro
do médico de família e comunidade. Além dis- de um mesmo bairro, pode facilitar o entendi-
so, quanto mais se incorpora tecnologias duras mento sobre micro áreas de risco no processo de
à prática clínica, mais se exalta a necessidade territorialização e definir prioridades no plane-
de médicos que tenham sua prática centrada na jamento local.
pessoa. Desse profissional contemporâneo exi- Seria importante que, mesmo sem a pre-
ge-se um amplo leque de conhecimentos, mas sença do responsável pela digitação dos dados, o
que precisa, sobretudo, saber onde buscá-los Dr. Ricardo estivesse apto a retirar relatórios do
de forma eficiente para ser cada vez mais reso- SIAB ou dos outros sistemas implantados, e nem
lutivo. Nesse sentido, o exercício do bom senso sempre é preocupação nos cursos de residência e
na tomada de decisões vem sendo revalorizado, pós-graduação a inclusão desse conteúdo.
pois nada substitui a sensibilidade humana na No Site www.datasus.gov.br, acesse na bar-
interação pessoa-pessoa. ra de rolagem Informações de Saúde, depois In-
dicadores de Saúde, selecione a opção Caderno
de Informações De Saúde, clique em OK, e es-
Sugestão de resposta para “situação problema” colha entre as opções descritas (Brasil, Regiões
do Brasil ou o Estado) ou clique no MAPA do
Primeiramente esse tipo de situação é mais BRASIL o estado sobre o qual deseja informa-
comum do que se imagina, mas a necessidade ções. Ao clicar em um Estado, abrirá nova janela
faz com que o Médico de Família possa ser reco- em que se pode escolher o Caderno do Estado ou
nhecido como um recurso para a comunidade, por Município. A fonte de dados é o SIAB.
e a sua atuação pode potencializar o desenvol-

122
Capítulo 12 • A medicina de família e a tecnologia de informação

Bibliografia Lima MV. A informática médica na atenção pri-


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123
Capítulo 13
Complexo produtivo da saúde os grupos médicos. Neste complexo de relações
hésio cordeiro caberá, ainda, analisar o papel das empresas de
seguro privado como segmento do capital finan-
ceiro articulado aos grupos médicos, a níveis na-
cional e internacional.
Finalmente, o recorte analítico das em-
presas médicas deverá levar em conta as relações
fundamentais que se estabelecem com os demais
segmentos do complexo médico-empresarial e
Introdução estatal, tais como hospitais particulares, labora-
tórios e clínicas de imagem.
Os estudos sobre as articulações entre a Ao definir tal objeto procuramos dar ma-
prática médica e outras práticas sociais na socie- tizes ao que habitualmente tem sido chamado de
dade capitalista brasileira têm indicado uma ten- medicina privatizada ou medicina empresarial.
dência a subordinar as prestações de serviços de O conceito aqui estudado presume a existência
saúde às relações sociais de produção, às práticas de formas ou “modos” diversos de prestação de
ideológicas e políticas em uma perspectiva de assistência médica, cuja unidade e heterogenei-
transversalidade. Estas pesquisas ora se voltam dade traduzem processos contraditórios de su-
para o processo de “privatização” cujo motor bordinação da prática médica ao Capital.
principal tem sido o neoliberalismo que a partir Para se entender o processo de subordina-
dos anos 90 substituiu as políticas previdenciá- ção deve-se estudar o papel das políticas estatais
rias dos anos 60-8417,12, ora se dirigem à análise de saúde e a influência dos organismos inter-
das transformações do processo de trabalho mé- nacionais de cunho multilateral na difusão das
dico que envolvem relações entre os agentes do políticas neoliberais dos países “centrais” aos
trabalho médico, os meios de trabalho e o objeto periféricos,em desenvolvimento ou de desenvol-
da intervenção médica14. vimento capitalista tardio4.
O objeto central de nossas reflexões é um Outro aspecto é a dinâmica endógena do
aspecto particular da penetração das relações processo de constituição e expansão das empre-
capitalistas na prática médica: o surgimento e sas médicas, procurando identificar suas estraté-
desenvolvimento das empresas médicas. Tais gias de consolidação e desenvolvimento.
empresas têm como expressão mais destacada os Os primeiros grupos médicos foram or-
grupos médicos ou Medicina de Grupo concei- ganizados nos Estados Unidos da América, na
tuada como o modo de prestação de cuidados de segunda metade do século XIX. Iniciaram-se
saúde mais tipicamente capitalista10. Este setor com o atendimento a empregados das compa-
médico-empresarial apresenta múltiplas e com- nhias ferroviárias que faziam a ligação da costa
plexas facetas que representam, talvez, formas do Atlântico à do Pacífico, o que implicou em
de transição de um processo de subordinação deslocamentos de grande massa de trabalhado-
formal à subordinação real19 da prática médica res para regiões inóspitas e carentes de recursos
no capitalismo. As formas mencionadas são as médico-assistenciais.
cooperativas médicas e os hospitais privados lu- A adoção deste modelo assistencial con-
crativos ou filantrópicos, aos quais se acoplam teve, desde seu inicio, o financiamento dos cui-

125
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

dados à saúde através dos sistemas de pré-paga- to de serviços médicos. Para o atendimento dos
mento, estipulado a partir de cálculos atuariais, assalariados urbanos ligados ao complexo agro-
segundo os riscos da população a ser atendida. exportador pareciam suficientes os hospitais das
Posteriormente esta modalidade foi incorporada Santas Casas de Misericórdia que se concentra-
pelos setores industriais de ponta, constituindo vam nas áreas mais ativas do complexo cafeei-
uma alternativa às mutualidades operárias e à ro, bem como o atendimento médico dirigido
previdência estatal. Durante quase toda a primei- à burguesia comercial e financeira, à oligarquia
ra metade do século XX, a medicina de grupo nos rural, a assalariados e funcionários públicos de
EEUU sofreu críticas e pressões políticas por par- renda mais alta.
te da Associação Médica Americana, em virtude A etapa correspondente a um novo padrão
do assalariamento do trabalho médico que vio- de acumulação levando ao aumento da popula-
lentava a ideologia liberal e a prática autônoma ção assalariada no setor industrial e no comer-
da Medicina. Somente em 1943 a Suprema Corte cio e outros serviços resultou em concentração
Americana estabeleceu o reconhecimento legal nos principais centros urbanos. Assim há duas
da Medicina de Grupo, normalizada e reconheci- hipóteses possíveis: a) o movimento do capital,
da pela Associação Médica apenas em 197311. ao subordinar a prática médica, decorreria de
No Brasil, Barbosa3 relata que as primei- investimentos oriundos dos lucros obtidos por
ras empresas de Medicina de Grupo foram or- capitalistas dos setores produtivos ou da esfera
ganizadas entre 1925 e 1935 tendo à frente Luiz de serviços? Ou b) existiriam outras formas que
Gonzaga Vianna Barbosa (Instituto de Medicina desencadeariam a capitalização da prática médi-
e Cirurgia, em Campinas e Beneficência Médica ca, preparando as condições para uma penetra-
Brasileira S/A, em São Paulo, João Penido Bur- ção intensiva do capital no emergente complexo
nier (Instituto Penido Burnier, em Campinas) e médico-empresarial?
Leonel Tavares Miranda de Albuquerque (Insti-
tuto Clínico de Madureira, no Rio de Janeiro).
Contudo, os grupos médicos só viriam a O conceito de serviços e os serviços de saúde
se consolidar como modalidade assistencial após
1956 quando foi criada, em São Paulo, a Policlí- Os serviços podem ser diferenciados em
nica Geral. O hiato identificado necessita de um dois ramos de atividades: 1) aqueles relaciona-
trabalho de pesquisa para estudar as razões da dos diretamente a esfera da circulação de bens
não persistência dos “precursores” e a transição materiais como os serviços bancários envolvidos
para o surgimento dos grupos médicos em plena na circulação do capital-dinheiro como meio
etapa desenvolvimentista e de expansão da in- circulante e meio de pagamento7,26; 2) o con-
dustrialização pesada do país. junto de serviços “strictu sensu” ou serviços de
Como enunciado geral, carente de compro- consumo como propôs Singer28. Os serviços de
vação histórica, podemos sugerir que os primei- consumo englobariam uma heterogeneidade de
ros grupos médicos não encontraram condições práticas tais como serviços prestados por empre-
adequadas para se consolidar dada a inexistência gados domésticos, os de reparação de bens du-
de grandes massas operárias e de outras catego- ráveis, de consumo, de lazer, de educação e de
rias assalariadas vinculadas a setores industriais saúde, entre muitos outros.
ou de serviços, o florescimento das Caixas de Em ambos inclui-se um conceito abs-
Pensões e Aposentadorias após 1923 e a carência trato que diz respeito ao conjunto de práticas
de excedentes capitalistas que pudessem ser ca- que permita ou facilite o consumo de qualquer
nalizados pelas próprias empresas para contra- valor de uso, ou seja, que “constitua a efetiva

126
Capítulo 13 • Complexo produtivo da saúde

realização da utilidade das mercadorias ou da balho de prestação de serviços. Esta contradição,


utilidade do trabalho”22. de acordo com Castells8, está na base das lutas
O resultado da produção dos serviços não sociais urbanas, de composição pluriclassista,
constitui, em sentido restrito, um valor de troca: unificando as reivindicações das camadas assala-
não entra, portanto, no processo de circulação riadas urbanas frente às políticas sociais dirigi-
que é uma esfera particular do processo global das à alocação e distribuição dos equipamentos
de produção de mercadorias. O processo de tra- coletivos de consumo no espaço urbano.
balho compreendido no serviço “strictu sensu” O processo de concentração de capital
produz um determinado valor de uso que ao ser resulta na formação de unidades de produção
despendido é imediatamente consumido: é in- complexas, na concentração urbana da força de
capaz de criar mais valia. trabalho e na concentração e distribuição desi-
O serviço de saúde é, desta forma, o resul- gual dos serviços de consumo.
tado do trabalho de profissionais da saúde, en- Considerando-se a distinção entre os
volvendo uma utilidade para o cliente ou usuário consumos produtivo e individual, este último
decorrente do efeito que possa produzir. Não está apresenta o conjunto de práticas de reprodu-
à margem das relações capitalistas de produção ção da força de trabalho que se realiza fora do
ou que seja uma prática residual oriunda de mo- processo de trabalho, ou seja, fora do tempo
dos de produção anteriores. O que há é uma situ- comprado, pelo salário, mas que decorre do
ação singular deste tipo de serviço que se define uso do salário como renda monetária ou dos
pelo lugar que ocupa na totalidade das práticas chamados salários indiretos corresponden-
de uma formação social capitalista. A identidade tes aos serviços prestados e financiados pelos
com os artigos de consumo deve ser considerada aparelhos estatais ou por instituições indireta-
como uma identidade aparente, oriunda do efeito mente ligadas ao Estado.
ideológico gerado na esfera da circulação, onde as O consumo médico inclui-se entre as prá-
trocas entre “coisas” ocultam as relações sociais, ticas de consumo individual enquanto se realiza
transmutadas por relações entre homens iguais. como apropriação de valores de uso. Embora seja
Esta identidade aparente decorre de que, ao lado um ato individual, o consumo de ações de saúde
de artigos de consumo existentes sob a forma de decorre, cada vez mais, de prestações através dos
mercadorias, há uma quantidade de outros arti- equipamentos coletivos de saúde que represen-
gos de consumo sob a forma de serviços22. tam um processo crescente de divisão social do
Na análise das práticas dos serviços de con- trabalho no espaço urbano9.
sumo se impõe, ainda, outra distinção: a de que O processo de concentração de capital
no modo capitalista de produção ocorre a separa- resulta na formação de unidades de produção
ção entre o consumo dirigido à produção de mer- complexas, na concentração urbana da força de
cadorias e o consumo necessário à manutenção, trabalho e na concentração e distribuição desi-
reposição e reprodução da força de trabalho18. gual dos serviços de consumo.
Como parte do processo de urbanização e A compreensão do processo de transfor-
de divisão social do trabalho no espaço urbano e mação do setor serviços e de seu lugar na divisão
de penetração das relações capitalistas nos servi- social do trabalho deve ser buscada nas situações
ços de consumo emerge a contradição entre o ca- concretas do movimento de reprodução do capital
ráter crescentemente socializado das práticas de que envolvem um conjunto articulado de práticas
consumo das parcelas assalariadas da população econômicas e político-ideológicas. Oliveira25 assi-
e a apropriação privada dos meios de trabalho e nala que não se deve analisar a expansão do setor
da mão-de-obra envolvidos no processo de tra- terciário nas sociedades dependentes ou de desen-

127
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

volvimento capitalista tardio como uma “incha- produtivos, nos quais o capital pode trabalhar
ção” patológica do setor. Ao contrário, é a forma novamente as diversas etapas de desenvolvi-
histórica em que se estabeleceram as relações en- mento, até que também começa a explorar-se
tre as esferas de produção, da circulação e do con- em escala social, esses novos ramos da atividade.
sumo nos ciclos de desenvolvimento capitalista. É esse um processo contínuo. Simultaneamente,
Portanto, o setor serviços não deve ser compre- a produção capitalista tende a conquistar todos
endido como um setor extra-econômico que não os ramos industriais dos quais até agora não se
guarde nenhuma relação com a produção. apropriara e nos quais ainda existe a subordina-
As atividades não-produtivas que o cons- ção formal.”
tituem não nos autorizam a excluí-las da esfera A preocupação de Marx estava centrada no
das práticas econômicas, situando-as exclusiva- movimento do capital em relação à produção de
mente como práticas político-ideológicas diri- mercadorias, à circulação, às transformações do
gidas ao controle social e à instauração de uma capital mercantil e financeiro, com indicações
hegemonia de classe27. As transformações capi- bastante gerais sobre a subordinação às relações
talistas da prática médica representam uma situ- sociais capitalistas no setor serviços de consu-
ação peculiar das transformações do serviços na mo, um das quais destacamos:
sociedade brasileira. “A produção capitalista, por um lado à
produção dos produtos como mercadorias e, por
outro, a forma do trabalho como trabalho assa-
Subordinação formal e subordinação real lariado se absolutizam. Uma série de funções
da prática médica e atividades, envoltas outrora por uma auréola
e consideradas como fins em si mesmo, que se
No ramo dos serviços de saúde constata- exerciam de maneira honorária ou se pagavam
se, pelo senso comum, uma heterogeneidade obliquamente (como todos os profissionais...
aparentemente caótica de formas de organiza- médicos, advogados... se transformam direta-
ção da Medicina caracterizada pela coexistência mente em trabalhos assalariados...)19.
de clínicas de médicos autônomos, de hospitais A extensão da apropriação, privada a to-
privados lucrativos e filantrópicos, estatais, de dos os meios de produção, ampliando a subordi-
empresas de pré-pagamento e de operadoras de nação real dos processos de trabalho e tendendo
seguro-saúde. Na realidade, esta multiplicidade a liquidar as formas de subordinação formal,
de organizações representam um corte, em dado tem como conseqüência a generalização do tra-
momento, da dinâmica contraditória do proces- balho assalariado. Este mesmo processo colocou
so de subordinação da prática médica às relações para Marx a necessidade de distinguir, entre os
sociais capitalistas. diversos trabalhos assalariados, aqueles direta-
O movimento de subordinação dos modos mente ligados à produção de valor, a geração de
de prestação de serviços ao capital já fora indica- mais-valia.
do por Marx19 como uma tendência do capitalis- Daí a distinção entre o trabalho produtivo
mo em expandir-se a todas as esferas da produ- e o trabalho improdutivo. O caráter indicativo
ção e circulação: desta distinção provoca, ainda hoje, uma infin-
“Precisamente a produtividade do traba- dável polêmica que inclui a natureza do trabalho
lho, a massa da população e a massa da superpo- médico.1 Dentre os diversos autores que aborda-
pulação, desenvolvidas por este modo de produ- ram o tema aderimos à proposição de Gonçal-
ção, suscitam incessantemente – com o capital ves14 que esclarece que o trabalho empregado na
e o trabalho agora disponíveis – novos ramos produção de serviços médicos não deriva seu lu-

128
Capítulo 13 • Complexo produtivo da saúde

cro de uma função econômica imediata mas sim neração dos serviços médicos, subsídios, etc)
o obtém pela repartição e transferência para sua quer indireta (incentivos fiscais a capitalistas
órbita de uma parcela da mais-valia global pro- para deduzir do imposto de renda de pessoa ju-
duzida, a título de remuneração de serviços, não rídica os gastos de assistência médica). Também
gerando, portanto, mais-valia. decorre das possibilidades de barganhas diretas
Assim o trabalho médico em si mesmo im- com empresários, valendo-se de pressupostos
produtivo, cumpriria certas funções no processo ideológicos de que a compra de serviços médicos
de acumulação e reprodução ampliada do modo reduz o absenteísmo, aumenta a produtividade
de produção. Dentre elas, permitiria a redução e promove a paz social. Naturalmente que o su-
dos custos da reprodução da mão de obra tan- cesso deste “marketing” das empresas médicas
to dos trabalhadores do setor produtivo quanto dependerá da situação econômico- financeira
do improdutivo, mas todos necessários à repro- dos setores aos quais dirige suas propostas, tais
dução do modo de produção. Também permite como a capacidade de endividamento, lucros
a realização da mais-valia gerada pelos capitais médios e outros.
industriais cujos produtos são consumidos ex- As taxas de lucro das empresas médicas
clusiva ou preferencialmente pelos serviços mé- poderão ser reduzidas pela capacidade de reivin-
dicos (medicamentos e equipamentos). dicação dos assalariados deste setor para evitar a
Outra função seria a de aumentar a pro- tendência à diminuição real dos salários.
dutividade da força de trabalho com redução do O movimento do capital para os serviços
absenteísmo, maior higidez do trabalhador, con- médicos depende de forma considerável da taxa
tribuindo para o aumento da mais-valia relativa. de lucro do setor situar-se acima da taxa geral de
Esta função tem uma importância relativa quan- lucro médio, o que não é a regra geral. Disto decor-
do comparada com o processo de automação que re um processo mais lento e tardio de subordina-
está sendo crescente nos diversos ramos da pro- ção da prática médica comparativamente a outros
dução e dos serviços. Além disso, o investimento serviços e explica, em parte, porque tal prática não
de capitais particulares na produção de serviços assume necessariamente a forma empresarial.
médicos preserva o capital do setor produtivo A penetração das relações capitalistas nos
das funções improdutivas referentes à prestação serviços de saúde e no setor serviços em geral
direta ou indireta dos serviços médicos. provoca uma crescente divisão social do traba-
Concordamos com Nogueira22 quando ele lho e a reprodução da divisão social entre traba-
diz que o empresário dos serviços médicos, ao lho intelectual e o trabalho manual e essa mes-
fazer circular a força de trabalho e ao transfor- ma divisão dentro da categoria de trabalhadores
má-la em produtora de valores de uso, age como intelectuais, traduzindo-se em uma hierarquia
qualquer empresário produtor da circulação de de trabalhos e em uma distribuição desigual de
mercadorias. Portanto o capital nos serviços poder em favor de categorias de trabalhadores
médicos é uma variedade do capital mercantil. em que há maior componente intelectual. Há
Como tal, uma parcela do lucro dos capitalistas concentração do saber técnico-científico ou dos
do complexo médico-empresarial origina-se da saberes normativo e administrativo em segmen-
baixa remuneração dos assalariados do setor. tos deste corpo social, transformando-se em
Além disso, a taxa média de lucro das empresas “trabalho intelectual em cadeia”26.
médicas dependerá da capacidade dos empresá- O trabalho médico, por exemplo, se fra-
rios do setor de garantir a repartição das parce- ciona em atividades político-administrativas de
las adequadas dos lucros globais do capital, quer gestão, supervisão e controle, e em atividades
seja através da intervenção estatal direta (remu- diretamente ligadas à prestação do cuidado mé-

129
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

dico. Há um processo de parcialização do cuida- emergências, supervisores-administradores, etc).


do médico entre os diversos agentes, o que leva Na rede do complexo se identificam vários tipos
à necessidade de múltiplas ações a um mesmo de instituições que se especializam como canais
usuário, transformando-o em diferentes “obje- de consumo sanitário de diversos grupos sociais
tos” de trabalho. e de grupos de patologias, de acordo com o grau
Outra conseqüência da reprodução da di- de complexidade tecnológica requerida. São
visão social do trabalho intelectual é o processo diversos “modos” de prestação de serviços va-
de qualificação-desqualificação do trabalho. Nos riando desde as formas tipicamente capitalistas,
segmentos desqualificados acentua-se o caráter como as empresas médicas ou instituições com
rotineiro do processo e se intensifica a jornada de finalidades econômicas até formas autônomas,
trabalho com remuneração mais baixa e pauperi- passando por instituições filantrópicas.
zação relativa destes segmentos. Uma evidência é A articulação impõe um duplo processo
a incorporação da mulher para executar trabalhos de subordinação: formal (dos segmentos de prá-
menos qualificados e de remuneração mais baixa. tica autônoma, entidades filantrópicas e benefi-
Mais recentemente observa-se a formação centes) e real , dos ramos que se constituem em
de um “exército de reserva de intelectuais”, par- empresas capitalistas.
ticularmente de jovens com situações de desem-
prego camuflado, tais como trabalhos temporá-
rios, trabalhos clandestinos e sub-contratação A Tecnologia e as transformações capitalistas
para a prestação de serviços em empresas ou para dos cuidados de saúde
outros trabalhadores autônomos. Na prática mé-
dica é notória a expansão da Residência Médica Donnangelo e Pereira13 propõem que não
como forma de desemprego camuflado e a sub- se concebam as relações entre a Ciência e as prá-
contratação de médicos jovens por médicos au- ticas de saúde como uma decorrência natural do
tônomos de prestígio com grande clientela e que desenvolvimento de um campo específico do
concentram os credenciamentos do SUS. saber – as ciências biológicas. Enquanto práti-
A reprodução da divisão social do traba- ca social a medicina instaura relações entre os
lho também repercute no aparelho escolar. Des- médicos e os objetos de suas práticas, no qual os
qualificam-se os diplomas de cursos superiores instrumentos técnicos, como parte dos meios de
exigindo-se novos títulos e certificados de pós- trabalho, são indicadores da historicidade destas
graduação. A Residência Médica e a Residência relações. Para a autora, o meio de trabalho mé-
multiprofissional são um bom exemplo da re- dico é a clínica, entendida como um conjunto
percussão na prática em saúde. articulado de procedimentos, determinada pelas
O papel da propaganda médica induz a pa- relações entre os agentes e objeto desta prática.
drões de trabalho médico em relação à incorpora- Os recursos tecnológicos materiais são apenas
ção de novos medicamentos que encontram no mé- um dos componentes dos meios de trabalho em
dico uma população-alvo para assegurar o sucesso saúde. Admitimos que a dominância da tecno-
de investimentos em inovações terapêuticas2. logia material nas práticas de saúde tende a re-
Em síntese, há reprodução da divisão forçar a visão do senso comum que a Medicina é
social do trabalho de assalariados em práticas exclusivamente uma prática técnica.
de saúde em diversas categorias (médicos, en- A incorporação de uma tecnologia médica
fermeiros, fisioterapeutas, técnicos, etc), como avançada implica na reestruturação da Medicina
dentro de uma certa categoria (médicos espe- enquanto prática social16. As condições necessárias
cialistas, médicos de atendimento primário, de para a incorporação de determinadas inovações

130
Capítulo 13 • Complexo produtivo da saúde

tecnológicas somente ocorrem sob certas relações do como elos unificadores o Sistema Único de
sociais. Por exemplo, o extraordinário avanço tec- Saúde e as operadoras de seguro-saúde regula-
nológico ocorrido após a II Grande Guerra, no das pela Agência Nacional de Saúde Suplemen-
campo da Medicina teve como marco histórico o tar (ANS). As políticas de saúde mobilizam os
desenvolvimento da indústria farmacêutica e de recursos humanos, tecnológicos, financeiros e
equipamentos, especialmente os elétricos e eletro- organizacionais para fazer com que tais elos te-
eletrônicos, viabilizada a incorporação pela forma- nham certa coerência no funcionamento do sis-
ção de novos conglomerados médico-hospitalares, tema de saúde.
de diagnóstico e tecnologias de tratamento. A in-
corporação de novos instrumentos diagnósticos e
terapêuticos determina a elevação dos custos de Políticas de saúde e o complexo estatal e
aquisição e manutenção, com rápida obsolescência empresarial da saúde
do setor relacionada às estratégias de acumulação
no segmento mencionado20. É responsável pelos O movimento de formação e desenvolvi-
custos elevados acompanhada de dificuldades de mento do complexo produtivo de saúde, denomi-
substituição de peças de reposição. nação que vem sendo crescentemente mais usada
Estas transformações levaram a que a inclusive pelo BNDES não é o resultado natural,
prática médica concentrasse em determinado decorrente de exigências técnicas da base econô-
momento os procedimentos mais complexos mica da sociedade. É um processo dinâmico, polí-
nas unidades hospitalares públicas (anos 50-60) tico-jurídico (SUS), ideológico (Reforma Sanitá-
mais recentemente com a abertura econômica ria) e econômico (complexo médico-empresarial
(anos 90) no setor privado. anteriormente assim denominado), envolvendo
Com o recente desenvolvimento da mi- interesses e lutas de grupos sociais, apoios em
crotecnologia e futuramente da nanotecnologia, oposições às políticas transformadoras no seio da
há tendência de desconcentração em unidades sociedade civil e do Estado. Até 1988 as políticas
ambulatoriais ou eventualmente nas unidades de assistência médica se concentravam no apa-
de saúde e residências. De qualquer modo a mo- relho previdenciário. Com a aprovação da nova
bilização dos recursos tecnológicos não depende Constituição Federal neste ano, embora aprova-
de uma decisão isolada do médico no colóquio do no texto constitucional a criação da Segurida-
singular, mas sim de um conjunto complexo de Social, a sua implementação não ocorreu e o
de procedimentos e protocolos onde intervém motor do SUS deslocou-se para o Ministério da
o “trabalhador coletivo de saúde” com diver- Saúde e de seus complexos processos decisórios
sos graus de especialização. Há um progressivo com o Ministério da Fazenda e do Planejamento.
deslocamento do espaço hospitalar tecnificado O papel do Ministério da Previdência Social foi
e racionalizado para uma rede de unidades de encolhendo progressivamente perdendo impor-
complexidade tecnológica variável. tância na dinâmica do complexo.
Nos setores estatais dirigidos ao atendi- Estas indicações apontam para uma ques-
mento das camadas de população de baixa renda tão teórico-metodológica: os aparelhos de Esta-
e nas empresas médicas especializadas para a co- do não são locais neutros a serem ocupados por
bertura destas camadas assalariadas (tipo convê- uma ou outra fração de classe ou grupo social em
nio - empresa) identificam-se unidades hospita- uma dada conjuntura. O Estado não pode ser
lares com menor grau de densidade tecnológica. reduzido a aparelhos, pois são também relações
Ao interior do complexo médico-empre- sociais, ideológicas, jurídico-políticas e econômi-
sarial se estabelecem funções especializadas ten- cas, simultaneamente, a partir de um conceito de

131
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

transversalidade institucional. De acordo com a com concentração do poder com os grupos mais
conjuntura, as lutas políticas pelo controle dos identificados com as ideologias da racionalização
centros de decisão geram modificações, transmu- e do tecnocratismo. Entre estes destacavam-se a
tações, duplicações, deslocamentos e contradi- Federação Brasileira de Hospitais, a Associação
ções na implementação e nos resultados das po- Brasileira de Medicina de Grupo e a Associação
líticas públicas, ainda que a burocracia estatal as Médica Brasileira.
justifique como necessidades técnicas neutras. A comparação que era feita entre o regime
A burocracia de estado não se constitui autoritário brasileiro e outros regimes da Amé-
em uma fração de classe, nem dispõe do poder rica Latina destacam que a dominação de classe
de Estado. O peso político que possa ter tido ou não pode ser entendida apenas pela repressão
ainda tenha deve ser entendido dentro dos limi- no caso brasileiro mas sim que são ações auto-
tes específicos da autonomia relativa do Estado protetoras, preventivas, não predominando um
frente às classes sociais. sistema de violência orgânica permanente. Há
No período de hegemonia do modelo pre- coerção e consenso, as políticas sociais assu-
videnciário com INAMPS, o limite de ação da mindo o papel de legitimação e normalização
burocracia se alargaria ou se reduziria sob a for- das relações sociais, segmentando as massas
ma de um leque de alternativas de políticas de populares ao identificar seus interesses com os
assistência médica, dependendo da articulação de interesses gerais da sociedade24,1. Constatam-se
interesses, das pressões e dos compromissos sela- estas funções com a expansão das empresas mé-
dos entre os vários segmentos da medicina priva- dicas, com a prestação de serviços aos setores
da, das frações da massa de trabalhadores segu- mais diferenciados e especializados dos traba-
rados e da burocracia previdenciária. A relativa lhadores do ABC de São Paulo, com a criação
estabilidade deste quadro ao longo da história da do Plano de Pronta Ação (PPA) da Previdência
Previdência Social correspondeu a uma certa ho- Social e a cobertura dos trabalhadores rurais
mogeneidade político-ideológica deste grupo, o pelo FUNRURAL10.
que lhe assegurou alguma autonomia e preservou A expansão das políticas sociais, com au-
o aparelho previdenciário como campo de sua mento do gasto público real foram criadas bre-
prática social e base de sua reprodução material6. chas estruturais entre receitas e despesas estatais,
Como propõe Cardoso6 os quadros buro- gerando uma situação latente de crise fiscal no
cráticos funcionavam no período nacional-po- sistema previdenciário e de saúde que se prolon-
pulista como um sistema difuso, segmentado, gou desde 1990 a 2006. As crises fiscais tendem a
articulando interesses múltiplos em anéis que resultar em decisões estatais que visam transfor-
entrelaçavam os interesses civis através de suas mar as despesas sociais em despesas de capital
organizações devido à inexistência de Partidos social23,5. O Estado intervem no sentido de pro-
e de organizações classistas. Daí pode-se enten- mover a penetração do capital em novos ramos
der que a persistência de tais quadros nas crises do sistema produtivo e de serviços de consumo,
políticas e mas mudanças de cúpula preservava daí ocorrendo a formação e desenvolvimento do
os anéis de interesses bem articulados inclusive complexo produtivo de saúde.
nos níveis intermediários de decisão. Com a ilusão da igualdade e com a eficiência
Somente após o movimento militar de empresarial há reivindicações de cuidados médi-
1964 e com a exclusão das massas populares cos em moldes de autonomia ou empresariamento
viria ocorrer uma reestruturação dos aparelhos porém com padrões de hotelaria e de atendimento
institucionais do Estado. Ocorreram processos das classes médias. É uma malha de dispositivos
de centralização e racionalização autoritários não-estatais de fixação do trabalhador ao sistema

132
Capítulo 13 • Complexo produtivo da saúde

produtivo, como técnicas de controle do corpo so- segundas seriam as de porte menor, de origem
cial que entrelaçam, em um duplo movimento, o quase-familiar ou vinculadas às instituições fi-
público e o privado, daí podendo resultar a priva- lantrópicas ou beneficentes.
tização das políticas públicas. Ao mesmo tempo Algumas interrogantes são apontadas por
em que se concentram os núcleos de decisão sobre Braga e Barros Silva4 a respeito da lucratividade
os investimentos e financiamentos das políticas das empresas do setor saúde, industriais e de ser-
estatais, amplia-se a capacidade normativa sobre viços, comparada a outros setores no Brasil e em
os capitais particulares que se movem no comple- outros países. Como os recursos do SUS em ní-
xo produtivo da saúde. veis federal, estadual e municipal se repartem no
O processo da Reforma Sanitária brasileira pagamento das prestações de serviços de saúde
e a criação do Sistema Único de Saúde modificou dos diversos segmentos do complexo produtivo.
profundamente o quadro que se desenhava com A regulação pelo Estado das prestações
a hegemonia do setor médico-hospitalar priva- médico-assistenciais em termos normativos ou
do, estabelecendo um novo equilíbrio entre os diretamente na realização dos cuidados de saú-
diversos segmentos do setor. A reforma tem sido de. O modelo regulatório do Estado brasileiro
estudada internacionalmente15 e nacionalmen- em relação ao SUS envolve as comissões bipar-
te21, indicando as características dos processos, tites nos municípios e estados e a comissão tri-
os desafios ainda presentes, particularmente em partite incluindo a União (Ministério da Saúde),
relação à qualidade dos cuidados de saúde e os secretarias estaduais de saúde e secretarias mu-
matizes da descentralização. nicipais de saúde. O Conselho Nacional de Saú-
de, até então presidido pelo Ministro da Saúde,
tem um limitado poder regulatório. As entida-
Conclusões provisórias des profissionais como os Conselhos Nacionais
das diversas profissões (Medicina, Enfermagem,
O complexo produtivo da saúde, em seu Fisioterapia, etc) têm poder auto-regulatório das
componente médico-assistencial, pode caracteri- práticas profissionais. A Agência Nacional de
zar nos ramos do capital monopolista a formação Saúde Suplementar é uma inovação no campo
de conglomerados financeiros e de internacio- dos mecanismos regulatórios do setor privado
nalização, traduzindo-se no chamado processo relacionado às operadoras de seguros-saúde20.
de globalização. Ao tempo em que instituiu o Estas estruturas, para a compreensão mais
direito à saúde como direito universal criou-se a detalhada de seus papéis e limites de abrangência,
partir desta conquista social, uma retradução do remetem a campos de pesquisa de dentro das es-
“Estado acima das classes sociais” que em con- pecificidades nacionais, regionais e locais da saú-
fronto com o não cumprimento destes direitos de sugerem uma agenda de temas de pesquisa.
poderá provocar um confronto direto entre as Não é nossa intenção considerar nesse
massas populares e o Estado. momento os componentes relacionados às ino-
Supõe-se um processo de concentração e vações e à indústria de medicamentos e de equi-
unificação com tendência à formação de gran- pamentos sugerindo para isto a obra de Negri e
des empresas médicas, coexistindo com em- Di Giovanni21, organizadores de uma profunda
presas menos dinâmicas. As primeiras parti- análise destes aspectos como parte do complexo
ram de maiores investimentos em capital fixo produtivo da saúde.
(hospitais, ambulatórios complexos, unidades
com maior densidade de equipamentos) que se
articulam com ramos do setor financeiro. As

133
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

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Universidade de São Paulo; 1979.
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ping Health care in Latin America - a comparati-
ve analysis of Health Care Reform in Argentina,

134
Capítulo 14
Pacto pela saúde: União, Estados coletiva, auxiliando-os na tomada de decisão, por
e Municípios meio da disseminação das definições dos papéis
e responsabilidades das três esferas de gestão do
Jurandi Frutuoso silva
SUS quanto a: Regionalização, com ênfase na
conformação de redes de atenção à saúde; Planos
Diretores de Regionalização (PDR); Planos Dire-
tores de Investimento (PDI); o Financiamento; a
Programação Pactuada e Integrada (PPI); a Re-
gulação Assistencial; o papel das Secretarias Es-
Introdução taduais na coordenação das referências intermu-
nicipais e da Gestão dos Prestadores de Serviços.

O Sistema Único de Saúde (SUS), nova formu-


lação política e organizacional, com a finali-
dade de reordenar os serviços e ações de saúde, foi Histórico, conceitos e desdobramentos do
estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e, pacto pela saúde
regulamentado pelas Leis 8.080 e 8.142 de 1990.
O SUS se constitui na mais ousada proposta de Entre o movimento sanitário iniciado na
reforma do Estado brasileiro; por ser complexo e década de 70 e o Pacto pela Saúde em 2006, mui-
novo é um sistema em permanente construção. tas alterações e aprimoramentos foram necessá-
As constantes revisões da política de saúde rios na tentativa de adaptar o sistema às novas
e dos instrumentos normativos do SUS buscam realidades. Foram lançadas as NOBs – Normas
o aprimoramento pela adaptação necessária aos Operacionais Básicas, que efetivaram a munici-
movimentos de deslocamento de forças e com- palização e as NOAS – Normas Operacionais de
plexidades emergentes. Estas novas situações Assistência à Saúde, que viabilizaram a regiona-
necessitam da cooperação de todos para o ama- lização e, por fim, a necessidade de enfrentar a
durecimento das decisões e tomadas de posição normatização excessiva, substituindo as men-
que enfrentem as dificuldades e busquem, com cionadas Normas Operacionais pela gestão soli-
lógica aplicável, a competente solução. dária e cooperativa, introduzindo a Gestão por
É fundamental que os gestores e os pro- Resultados, formalizada nos Termos de Com-
fissionais de saúde empenhem seus esforços na promisso, faz nascer o Pacto pela Saúde.
qualificação do processo de gestão, melhorando
o rendimento e a efetividade da administração Saiba mais!
pública, de forma a conseguir implementar polí- Para aprofundar seus conhecimentos sobre:
Lei 8.080 e Lei 8.142
ticas que impactem positivamente sobre o perfil NOBs - Norma Operacional Básica do Sistema Único de
da saúde e na qualidade de vida da população. Saúde - SUS.
NOAs - Norma Operacional de Assistência à Saúde.
O objetivo deste capítulo é apresentar as
• Consulte os sites:
diretrizes do Pacto pela Saúde, enfocando pon- - www.conselho.saude.gov.br/legislação
tos relevantes que devem ser observados pelos - www.saude.gov.br/noas/legislação
profissionais de saúde atuantes na Estratégia Saú-
de da Família, visando contribuir com a prática Os trabalhadores da saúde precisam, mais
preventiva e a promoção da saúde individual e do que produzir serviços, engajar-se intensamen-

135
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

te na defesa do SUS fortalecendo o compromisso outros atores envolvidos conheçam e compreen-


com a formação do sistema de saúde, participan- dam as mudanças propostas.
do diretamente de todas as etapas de construção, e
assim, garantir sua sustentabilidade e princípios.
O envolvimento dos profissionais de saúde Pacto pela Vida
com as questões centrais do sistema, indo além das
obrigações com a assistência, levará à maior eficá- O Pacto pela Vida, enquanto instrumento
cia pelo compromisso, à otimização dos recursos do Pacto pela Saúde 2006, representa uma mu-
pela eficiência e ao fortalecimento do sistema pelo dança radical na forma de estabelecer acordos e
engajamento político, dando ao povo as condições compromissos no âmbito do SUS, vigente até ago-
objetivas de emponderamento e, conseqüente- ra. Isso ocorre porque rompe com o processo an-
mente, priorização das políticas públicas de saúde. terior de implementação do SUS, que desde 1990
Fortalecido, o SUS merecerá maior atenção dos era regido por normas operacionais, as NOB’s e a
governantes e servirá a todos competentemente. NOAS. Com o Pacto pela Saúde, o SUS será im-
plementado a partir de compromissos sanitários,
constantes dos planos de saúde dos entes federa-
Pacto pela Saúde dos, assumidos e avaliados anualmente pelos ges-
tores. Desse modo, o Pacto reforça o movimento
O Pacto pela Saúde é um conjunto de re- da gestão pública e a ação prioritária no campo
formas institucionais do SUS pactuado entre as da saúde e deverá ser focada em resultados que
três esferas de gestão (União, Estados e Municí- deverão estar atrelados à explicação inequívoca
pios) com o objetivo de promover inovações nos dos compromissos orçamentários e financeiros
processos e instrumentos de gestão, visando al- direcionados ao alcance dos mesmos.
cançar maior eficiência e qualidade das respostas Além disto, existe a necessidade imperiosa
do SUS. Ao mesmo tempo, o Pacto pela Saúde que as Comissões Intergestores Bipartite (CIBs)
redefine as responsabilidades de cada gestor em analisem a situação de saúde do Estado e defi-
função das necessidades de saúde da população nam metas e objetivos alcançáveis no período
e na busca da eqüidade social. previsto de um ano.
O Pacto pela Saúde está fundamentado O Pacto pela Vida definiu seis prioridades
em três eixos: e sobre estas estabeleceu as metas nacionais para
• Pacto pela Vida o ano de 2006, as quais servirão de balizador
• Pacto em Defesa do SUS para os pactos estaduais e municipais. Portanto,
• Pacto de Gestão os estados, regiões e município devem especifi-
A introdução da Gestão por Resultados, car consensualmente as ações necessárias para o
tendo os Termos de Compromisso como instru- alcance das metas e dos objetivos propostos.
mento de avaliação do Pacto, trará importantes
mudanças na gestão e na assistência e impactará
fortemente nos resultados a serem alcançados, Metas Nacionais estabelecidas no Pacto pela
trazendo importantes benefícios à saúde do Vida para o ano de 2006
povo brasileiro. O principal desafio dos gesto-
res é incorporar essas mudanças ao dia-a-dia da Saúde do Idoso
gestão do SUS. Entretanto, para implementá-lo,
é preciso que gestores, profissionais de saúde, São considerados idosos as pessoas aci-
conselheiros, prestadores de serviços, usuários e ma de 60 anos. O Ministério da Saúde, que pela

136
Capítulo 14 • Pacto pela saúde: União, Estados e Municípios

Portaria GM 1395, de 10 de Dezembro de 1999, foi alcançcada em 2005, mas o componente neo-
criou a Política de Saúde do Idoso, instituiu, natal, que responde por mais de 60% destes óbi-
recentemente, a Atenção Domiciliar à Pessoa tos, precisa ser mais trabalhado, melhorando a
Idosa. No Ceará, foi de 14% o aumento desse qualidade do pré-natal e a assistência ao parto.
seguimento populacional nos últimos 10 anos. A meta estruturante para a Razão de Mor-
Isto evidencia a necessidade de implementação talidade Materna no Ceará para 2006 é de 63 por
de políticas voltadas para esta área. 100.000 nascidos vivos. Observa-se a permanên-
• Melhorar o acolhimento da pessoa idosa nas cia da razão elevada de mortalidade materna nos
unidades de saúde; últimos 10 anos. A vigilância epidemiológica da
• Instituir a Caderneta da Pessoa Idosa; mortalidade materna e a capacitação de profis-
• Instituir a atenção domiciliar à pessoa idosa sionais na assistência ao parto tem sido a estraté-
(já implantada). gia fundamental para implementação das inter-
venções de atenção à saude materna objetivando
Saiba mais!
População cearense de idosos: 713.515 (8,8% da popu- a sua redução.
lação). • Reduzir, em 2006, a mortalidade neonatal
Doenças prevalentes: Acidente Vascular Cerebral, In-
farto Agudo do Miocárdio e Diabetes Melitus.
em 5%;
Expectativa de vida em 2005: 67 anos. • Reduzir, em 2006, em 50% a mortalidade infan-
til por doença diarréica e 20%, por pneumonia.

Controle do Câncer de Colo de Útero Saiba mais!


No Ceará:
e de Mama TMI: 18.27%0 NV
Taxa de Mortalidade Infantil por Diarréia: 0,73%0 NV.
A Portaria GM/MS-1101 estabelece o pa- Taxa de Mortalidade Infantil Neonatal: 11,9%0 NV.
Taxa de Mortalidade Infantil por Infecção Respirató-
râmetro de um mamógrafo para 240.000 habi- ria Aguda: 0,67%0 NV.
tantes. No Ceará a baixa cobertura se dá por con- Razão de Mortalidade Materna em 2005: 76,7/100.000
NV.
ta da insuficiência de teto financeiro destinado a
este procedimento.
• Cobertura de 80% para e�ame preventivo do
câncer do colo de útero; Fortalecimento da capacidade de respostas
• Ampliar para 60% a cobertura de mamografia. às Doenças Emergentes e Endemias, com
ênfase na Dengue, Hanseníase, Tuberculose,
Saiba mais! Malária e Influenza
No Ceará:
Cobertura de exame preventivo de Câncer de Colo
Uterino nas mulheres de 25 a 59 anos em 2005: 72% A tuberculose foi declarada pela Organiza-
Mamógrafos existente: 47
ção Mundial da Saúde em estado de emergência
Cobertura por habitantes: 01 mamógrafo/170.000 habi-
tantes. mundial, em 1993, por seu recrudescimento em
Onde estão instalados: Canindé, Crateús, Cascavel, função da co-infecção pelo vírus HIV e também
Fortaleza, Iguatú, Itapipoca, Juazeiro, Limoeiro, Russas
e Sobral. pelo agravamento da situação socioeconômica
da população, além da dificuldade de alguns
serviços de saúde desenvolverem com eficiência
Redução da Mortalidade Infantil e Materna ações de controle da doença. Quanto a Hanse-
níase a taxa de detecção encontrada no Ceará
A mortalidade infantil vem sendo reduzi- revela-se, segundo parâmetro da OMS/MS, de
da progressivamente. A meta de 20%o em 2006, alta endemicidade, com taxas de detecção em
2005 de 3,37 por 10.000 habitantes. Entretanto,

137
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

a taxa de prevalência classifica o Estado como de Nacional de Promoção da Saúde foi implantada
média endemicidade. em 30 de Março de 2006, pela Portaria GM/MS
• Atingir a meta de menos de 1 caso de Hanse- 687 de 30 de Março de 2006.
níase por 10 mil habitantes em todos os mu-
nicípios;
• Atingir pelo menos 85% de cura de casos novos Fortalecimento da Atenção Básica
de Tuberculose diagnosticados a cada ano;
• Reduzir em 15% a malária na região da Ama- • Consolidar a Estratégia da Saúde da Famí-
zônia Legal, em 2006. lia como modelo de atenção básica à saúde,
tornando-a o centro ordenador das redes de
Saiba mais! atenção à saúde do SUS, devendo o seu de-
Porque se Tuberculose e Hanseníase ainda persistem senvolvimento considerar as diferenças entre
como doenças preocupantes?
Tuberculose as regiões;
• 1/3 da população mundial está infectado com o bacilo • Ampliar as áreas estratégicas da atenção �ási-
da tuberculose;
• 45 milhões de brasileiros estão infectados;
ca (Saúde da Criança, Saúde da Mulher, Saúde
• No Ceará: do Idoso, Controle de Tuberculose, Elimina-
- Incidência de TB pulmonar 2005 foi de 30,5/1000.000 ção da Hanseníase, Controle de Hipertensão,
(3.974 casos novos)
- Prevalência no Ceará em 2005 foi de 3,7/10.000 ha- Controle de Diabetes Mellitus, Saúde Bucal e
bitantes Ações de Promoção da Saúde e Eliminação da
- Número de pacientes que abandonaram o tratamento
em 2005: 16 pacientes
Desnutrição Infantil), na busca de assegurar o
acesso da população às ações e serviços resolu-
Hanseníase tivos, impactando de maneira positiva na re-
• Prevalência no Ceará em 2005: 1,75/10.000 habitantes
• Pacientes em abandono de tratamento no ano de 2005: dução dos problemas de saúde da população;
1.272 (32%) • Consolidar e qualificar os profissionais da
atenção primária atuantes na Estratégia da
Onde encontrar o IDB? www.saude.ce.gov.br/informa-
ções em saúde/publicações Saúde da Família por meio programas de
Onde encontrar o Plano Nacional de Saúde? www.portal. educação permanente.
saude.gov.br

Equipes qualificadas de Saúde da Família, Saúde


Bucal e Agentes de Saúde, no Brasil, Nordeste e
Promoção da Saúde Ceará, até Setembro de 2006
ESF ESB ACS
Um dos principais objetivos desta meta Brasil 34.459 18.108 262.757
era elaborar e implementar a Política de Promo- Nordeste 14.492 8.790 105.062
ção da Saúde sob a égide e responsabilidade dos Ceará 2.034 1.342 12.327
três gestores em nível federal, estadual e muni-
Fonte: Secretaria da Saúde - Ceará
cipal, com ênfase na adoção de hábitos saudá-
veis por parte da população brasileira. Tendo em
vista internalizar a responsabilidade individual
Em 2006, a Secretaria da Saúde do Ceará,
quanto a importância de mudanças comporta-
em parceria com os municípios, realizou Con-
mentais como a prática da atividade física, hábi-
curso Único de Base Local para o Saúde da Fa-
tos saudáveis de alimentação e vida, controle do
mília com adesão de 118 municípios, para mé-
tabagismo, controle do uso abusivo de bebida al-
dicos, enfermeiros e dentistas. Apesar da boa
coólica e cuidados especiais voltados ao proces-
cobertura, o Estado do Ceará necessita qualifi-
so de envelhecimento, dentre outros. A Política

138
Capítulo 14 • Pacto pela saúde: União, Estados e Municípios

car melhor seus profissionais para fazer frente às • Elaborar e divulgar a carta dos direitos dos
dificuldades ainda existentes para consolidar o usuários do SUS.
modelo de organização da atenção básica.
Saiba mais!
Saiba mais! Leia a Portaria GM/MS 675 (30 de Março de 2006), que
Leia a Portaria GM/MS 1.097 (22 de Maio de 2006), que lança a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde.
define o processo de Programação Pactuada e Integrada www.saude.pb.gov.br/web_data/saude/copasems/
- PPI e aponta seus objetivos e eixos orientadores, bem portaria_675.doc
como os parâmetros para programação das ações priori-
tárias da Atenção Básica.
www.saude.pb.gov.br/web_data/saude/copasems/
Gastos do SUS por entes federados em valores no-
portaria_1.097.doc
minais totais e percentuais, 2000 a 2004
*
Em R$ milhões nominais

União Estados Municípios Total


Pacto em Defesa do SUS
Total 20.351,5 6.313,4 7.392,5 34.057,4
2000
% Total 59,8 18,5 21,7 100,0
O principal objetivo do Pacto em Defesa Total 22.474,1 8.269,8 9.284,9 40.028,8
2001
do SUS é levar a discussão sobre a política pú- % Total 56,1 20,7 23,2 100,0
blica de saúde para a sociedade organizada, ten- 2002
Total 24.736,8 10.078,5 12.005,0 46.820,3
% Total 52,8 21,5 25,6 100,0
do o financiamento público e a defesa do SUS
Total 27.181,2 13.193,5 13.578,3 53.953,0
como um dos pontos centrais. O maior desafio 2003
% Total 50,4 24,5 25,2 100,0
dos gestores do SUS é convencer outros setores Total 32.703,5 16.797,1 16.055,0 65.555,6
2004
de que a saúde pública precisa de mais recursos % Total 49,9 25,6 24,5 100,0
financeiros para garantir o direito do cidadão Var% 60,7 166,1 177,2 92,5
previsto na Constituição, como a integralidade Fonte: DES/SCTIE/MS
e a universalidade da assistência à saúde. A de- *
Dados preliminares sujeitos a revisão
fesa do SUS pela população está condicionada
ao conhecimento dos seus princípios diretivos e
de seus direitos garantidos em Lei. A gestão do Pacto de Gestão
SUS tem se aprimorado muito, mas sem novos
aportes de recursos financeiros será difícil avan- O Pacto de Gestão pretende minimizar/
çar. (Gastos per capita em saúde no Brasil em eliminar as competências concorrentes entre os
2003 foi de U$: 212) gestores do SUS, definindo quando define os pa-
Para reforçar a luta para vencer este desa- péis e as responsabilidades de cada um, fortale-
fio, uma das ferramentas previstas no Pacto é a cendo, assim, a gestão compartilhada e solidária.
mobilização social, que tem a finalidade de: Ressalta a necessidade de avançar na regionali-
• Mostrar a saúde como direito de cidadania e zação do SUS, a partir da proposição de algumas
o SUS como sistema público universal garan- diretrizes com diversidade operativa e respeito
tidor desses direitos; às singularidades regionais.
• Alcançar, no curto prazo, a regulamentação Sendo assim, a principal finalidade do
da Emenda Constitucional Nº 29, pelo Con- Pacto de Gestão é estabelecer as diretrizes para a
gresso Nacional, garantindo a vinculação de gestão do SUS, com ênfase na descentralização,
recursos no orçamento; regionalização, financiamento, programação
• Aprovar o orçamento do SUS, composto pelos pactuada e integrada, regulação, planejamento,
orçamentos das três esferas de gestão, explici- gestão do trabalho e educação na saúde e partici-
tando o compromisso de cada uma delas; pação e controle social.

139
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Descentralização que isso ocorra, será necessário que o processo de


regionalização se faça sobre territórios sanitários
A proposta é que, gradativamente, respei- mais que sobre territórios políticos-administra-
tadas as diretrizes e normas pactuadas na Co- tivos, o que implicará no uso de metodologias
missão Intergestores Tripartite (CIT) e aprova- que incorporem operacionalmente os conceitos
das no Conselho Nacional de Saúde, os Estados, de economia de escala, os fluxos viários e os flu-
em parceria com os municípios, nas Comissões xos assistenciais.
Intergestores Bipartite (CIB’s) e com aprovação Da mesma forma, permanece o Plano Di-
nos Conselhos de Saúde, definam os modelos retor de Investimentos (PDI) que deve expres-
organizacionais a serem implantados de acordo sar os recursos de investimentos para atender às
com a realidade de cada estado e região do país. necessidades pactuadas no processo de planeja-
mento regional e estadual.
As Regiões de Saúde são recortes territo-
Regionalização riais inseridos em um espaço geográfico contí-
nuo, identificadas pelos gestores municipais e
A Regionalização é uma diretriz do SUS e estaduais a partir de afinidades culturais, eco-
um eixo estruturante do Pacto de Gestão e deve nômicas e sociais, de redes de comunicação e
orientar a descentralização das ações e serviços infra-estrutura de transportes compartilhados
de saúde e os processos de negociação e pactu- do território e devem organizar suas redes de
ação entre os gestores. Os principais instru- ações e serviços de saúde a fim de assegurar o
mentos de planejamento são o Plano Diretor de cumprimento dos princípios constitucionais de
Regionalização – PDR, o Plano Diretor de In- universalidade do acesso, eqüidade e integrali-
vestimento – PDI e a Programação Pactuada e dade do cuidado.
Integrada da Atenção em Saúde – PPI.
Saiba mais!
Saiba mais! As regiões de saúde podem ter os seguintes formatos:
Para aprofundar seus conhecimentos sobre: - Intraestaduais: compostas por mais de um município,
Plano Diretor de Regionalização – PDR dentro de um mesmo estado;
Plano Diretor de Invertimento – PDI - Intramunicipais: organizadas dentro de um mesmo
Programação Pactuada e Integrada da Atenção em Saú- município de grande extensão territorial e densidade
de – PPI populacional;
• Consulte o site: - Interestaduais: conformadas a partir de municípios
www.saude.ce.gov.br limitrofes em diferentes estados;
- Fronteiriças: conformadas a partir de municípios limi-
trofes com países vizinhos.
O que se pretende é melhorar o acesso a
serviços de saúde, respeitando os conceitos de
economia de escala e de qualidade da atenção, Financiamento
de forma a se desenvolver sistemas eficientes e
efetivos. E ao se construir uma regionalização A principal mudança no Financiamento,
eficaz, criam-se as bases territoriais para o de- relativo ao custeio das ações e serviços de saúde,
senvolvimento de redes de atenção à saúde. é a alocação dos recursos federais em cinco blo-
O Pacto não propõe nenhum desenho ou cos. As bases de cálculo que formam cada blo-
modelo padrão de Região de Saúde. Cada CIB co e os montantes financeiros destinados para
deverá estabelecer qual o desenho mais apro- os estados, municípios e Distrito Federal serão
priado para garantir o acesso com qualidade às compostos por memórias de cálculo, para fins
ações e aos serviços de saúde. No entanto, para de histórico e monitoramento. Desta forma, es-

140
Capítulo 14 • Pacto pela saúde: União, Estados e Municípios

tados e municípios terão maior autonomia para A regulação assistencial não é prerroga-
alocação dos recursos de acordo com as metas e tiva de uma esfera de governo, exclusivamen-
prioridades estabelecidas nos respectivos planos te. Nessa premissa, é relevante o papel funda-
de saúde. mental das Secretarias Estaduais na garantia
Os recursos de cada bloco de financia- do acesso do cidadão às ações e aos serviços de
mento devem ser aplicados exclusivamente nas saúde. O Pacto de Gestão fortalece o papel do
ações e serviços de saúde relacionados ao bloco. estado de coordenador do processo de organi-
Aos recursos oriundos da prestação de serviços zação da rede de serviços, de forma a garantir
de média e alta complexidade ambulatorial e a atenção integral ao indivíduo. A regulação
hospitalar resultante da produção das unidades das referências intermunicipais é responsabi-
públicas não se aplica essa restrição. No bloco lidade do gestor estadual, que é exercida na co-
de financiamento da assistência farmacêutica, ordenação do processo de construção da PPI,
os recursos devem ser aplicados exclusivamente de regionalização e no desenho das redes de
nas ações definidas em cada componente. A uti- atenção à Saúde.
lização dos recursos federais deve obedecer ao
planejamento dos projetos/atividades constan-
tes do Plano Municipal de Saúde aprovado pelo Termo de Compromisso de Gestão
Conselho Municipal de Saúde.
A União, os Estados e os municípios vão
Saiba mais! formalizar suas responsabilidades e atribuições
Os blocos de financiamento para o custeio são: a respeito das metas e dos resultados estipula-
- Atenção Básica
- Atenção de Média e Alta Complexidade dos pelo Pacto pela Vida e de Gestão por meio
- Vigilância em Saúde de um instrumento público chamado de Termo
- Assistência Farmacêutica
- Gestão do SUS
de Compromisso de Gestão que consubstanciará
O uso dos recursos federais para o custeio fica restrito os indicadores de monitoramento e avaliação,
a cada bloco, atendendo as especificidades previstas nos devidamente regulamentados em cada esfera de
mesmos, conforme regulamentação específica.
O repasse, fundo a fundo, é definido como modalidade governo, considerando as pactuações realizadas
preferencial de transferência de recursos entre os gestores. nas CIBs e aprovação nos Conselhos de Saúde.
O financiamento de custeio com recursos federais são
constituídos, organizados e transferidos, em blocos de
recursos. Saiba mais!
Conheça na íntegra a Portaria nº 699 GM, de 30 de Mar-
ço de 2006, que regula as diretrizes operacionais do Pac-
to pela Vida e do Pacto de Gestão.
Regulação da Atenção à Saúde e Regulação site: www.saude.ce.gov.br/sas/portarias/port2006/gm-699
Saiba como entender o Pacto pela Vida no site: www.
Assistencial conass.com.br

Uma das mudanças explicitadas no Pacto de


Gestão, que rompe com a rigidez normativa ante- Considerações Finais
rior é de que a regulação dos prestadores de servi-
ços não está necessariamente vinculada à gestão. O momento histórico vivido pelo Brasil
Conforme explicitado nas diretrizes a exige de todos: capacidade de articulação; firme-
regulação dos prestadores não tem um mode- za na condução técnica e política para fortalecer
lo único para o país. Cada CIB poderá definir a interlocução; discernimento nos momentos
o modelo que melhor se adapte à realidade do de decisão e maturidade para saber conciliar na
estado e municípios envolvidos. adversidade. É superlativo reunir inteligência,

141
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

conteúdo e muita dedicação para vencer os de- ensejando uma maior aproximação às realidades
safios que a gestão da saúde impõe. regionais e, conseqüentemente, das necessida-
O SUS, por ser amplo, suprapartidário e des de saúde da população.
aberto tem favorecido o surgimento de práticas Nesta perspectiva, a Estratégia Saúde da
inovadoras capazes de impactar positivamente a Família é entendida, como um movimento dina-
saúde da população, mostrando que é possível mizador e de reorientação do modelo assistencial
termos um sistema descentralizado e gerido com do SUS, operacionalizada mediante a implanta-
responsabilidade. O seu futuro reside no cum- ção de equipes multiprofissionais em unidades
primento de um ajustado Pacto Federativo; na básicas de saúde, constituindo uma estratégia
busca do fortalecimento e qualificação da Aten- estruturante dos sistemas municipais de saúde.
ção Primária; na regulamentação da Emenda A velocidade de expansão da ESF compro-
Constitucional número 29; na destinação de re- va a adesão de gestores estaduais e municipais
cursos necessários para atender os princípios da aos seus princípios. A consolidação dessa estra-
integralidade e da universalidade no sistema de tégia precisa, entretanto, ser sustentada por, no
saúde; numa nova política de alocação de recur- mínimo, três processos que envolvem os profis-
sos que contemple a redução das desigualdades sionais de saúde atuantes nos programas, quais
regionais e sociais; na imediata pactuação das sejam: a constante aquisição de conhecimento
responsabilidades referentes ao programa de técnico-científico atualizado; a substituição da
medicamentos de dispensação em caráter excep- visão curativa pela visão prognostica, no sentido
cional e na efetivação do Pacto pela Saúde 2006, da prevenção e promoção da saúde individual e
com o fortalecimento do papel das secretarias coletiva e, por último, a capacidade de produ-
municipais, das secretarias estaduais e das Co- zir resultados positivos que impactem sobre os
missões Intergestores Bipartite. principais indicadores de saúde e de qualidade
A mudança do enfoque para resultados, de vida da população.
conforme estabelece o Pacto pela Vida, fortale-
ce a capacidade de gestão e permite o alcance
de respostas efetivas, uma vez que as metas se-
rão definidas considerando as realidades locais
e regionais.
O Termo de Compromisso de Gestão deve
expressar os compromissos sanitários dos gesto-
res da saúde federal, estadual e municipal e as
metas definidas e pactuadas nas CIBs que terão
papel fundamental na consecução do pacto pela
saúde, pois passam a definir os modelos orga-
nizacionais a serem implementados de acordo
com as realidades de cada estado; analisar os
processos administrativos de credenciamentos
de serviços e estabelecer critérios para a alocação
de recursos financeiros, entre outros. O fortale-
cimento das CIBs, portanto, é fundamental com
a constituição de câmaras técnicas para apoiar
este processo de descentralização, que incorpora
um novo processo de aprimoramento do SUS,

142
Capítulo 14 • Pacto pela saúde: União, Estados e Municípios

Bibliografia

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culose associada à AIDS: características demográficas,
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Ministério da Saúde (BR). Manual para organização da


atençãobásica. Brasília, DF, 1999. p. 42.

143
Capítulo 15
Epidemiologia, história natural • Proporcionar dados essenciais para o planeja-
e prevenção de doenças mento, execução e avaliação das ações de pre-
venção, controle e tratamento das doenças,
Maria zélia rouquayrol
bem como para estabelecer prioridades.
Moisés GoldBauM
• Identificar fatores etiológicos na gênese das
enfermidades.”

Uma definição precisa do termo epide-


miologia não é fácil: sua temática é dinâmica e
Conceito de Epidemiologia seu objeto, complexo. Pode-se, de uma maneira
simplificada, conceituá-la como: ciência que es-

A epidemiologia é o eixo da saúde pública.


Proporciona as bases para avaliação das me-
didas de profilaxia, fornece pistas para diagnose
tuda o processo saúde-doença em coletividades
humanas, analisando a distribuição e os fatores
determinantes das enfermidades, danos à saúde
de doenças transmissíveis e não-transmissíveis e e eventos associados à saúde coletiva, propondo
enseja a verificação da consistência de hipóteses medidas específicas de prevenção, controle, ou
de causalidade. Além disso, estuda a distribuição erradicação de doenças, e fornecendo indicado-
da morbidade e da mortalidade a fim de traçar o res que sirvam de suporte ao planejamento, ad-
perfil de saúde-doença nas coletividades huma- ministração e avaliação das ações de saúde.
nas; realiza testes de eficácia e de inocuidade de Esta definição pode ser aclarada pelo
vacinas; desenvolve a vigilância epidemiológica; aprofundamento de algumas concepções nela
analisa os fatores ambientais e socioeconômicos expressas:
que possam ter alguma influência na eclosão de • A priori, independente de qualquer análise,
doenças e nas condições de saúde; constitui um pode ser dito que a atenção da epidemiolo-
dos elos de ligação comunidade/governo, esti- gia está voltada para as ocorrências, em escala
mulando a prática da cidadania através do con- maciça, de doença e de não-doença envolven-
trole, pela sociedade, dos serviços de saúde. do pessoas agregadas em sociedades, coleti-
A Associação Internacional de Epidemiolo- vidades, comunidades, grupos demográficos,
gia (IEA)5, em seu “Guia de Métodos de Ensino”5, classes sociais ou quaisquer outros coletivos
define Epidemiologia como “o estudo dos fatores formados por seres humanos;
que determinam a freqüência e a distribuição das • O universo dos estados particulares de ausên-
doenças nas coletividades humanas. Enquanto a cia de saúde é estudado pela epidemiologia
clínica dedica-se ao estudo da doença no indiví- sob a forma de doenças infecciosas (sarampo,
duo, analisando caso a caso, a epidemiologia de- difteria, malária etc.), não-infecciosas (diabe-
bruça-se sobre os problemas de saúde em grupos tes, bócio endêmico, depressão etc.) e agravos
de pessoas – às vezes grupos pequenos –, na maio- à integridade física (acidentes, homicídios,
ria das vezes envolvendo populações numerosas”. suicídios);
Ainda segundo a IEA, são três os objetivos • Considerando o conjunto de processos sociais
principais da epidemiologia: interativos que, erigidos em sistema, definem
• “Descrever a distribuição e a magnitude dos a dinâmica dos agregados sociais, um em es-
problemas de saúde nas populações humanas. pecial constitui o campo sobre o qual trabalha

145
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

a epidemiologia: é o processo saúde-doença. Muitas doenças, cujas origens até bem re-
Segundo Laurell30, o processo saúde-doença centemente não encontravam explicação, têm
da coletividade pode ser entendido como “o tido suas causas esclarecidas pela metodologia
modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, epidemiológica, que tem por base o método
o processo biológico de desgaste e reprodu- científico aplicado da maneira mais abrangente
ção, destacando como momentos particulares possível a problemas de doença ocorrentes em
a presença de um funcionamento biológico nível coletivo.
diferente, com conseqüências para o desen- Hiroshi Nakajima, então diretor da Orga-
volvimento regular das atividades cotidianas, nização Mundial de Saúde, por ocasião da 12ª
isto é, o surgimento da doença”. Reunião Científica Internacional da Associação
Internacional de Epidemiologia (1990)40, ana-
Colocada neste contexto, a expressão lisando o alcance da epidemiologia e concen-
saúde-doença é um qualificativo empregado trando seus comentários sobre a epidemiologia
para adjetivar genericamente um determinado na AIDS, comenta que: “O descobrimento des-
processo social, qual seja o modo específico de ta enfermidade devemo-lo à epidemiologia! A
passar de um estado de saúde para um estado de AIDS foi reconhecida pela primeira vez como
doença e o modo recíproco. Descontextualizada, uma enfermidade em 1981, antes que o vírus da
a expressão saúde-doença refere-se a uma ampla imunodeficiência humana, dois anos mais tar-
gama que vai desde “o estado de completo bem- de, fosse identificado, ou que se suspeitasse que
estar físico, mental e social” até o de doença, era o agente causador da AIDS. A observação
passando pela coexistência de ambos em propor- epidemiológica anotou a prevalência de uma
ções diversas. A ausência gradativa ou completa combinação curiosa e inexplicável de manifes-
de um destes estados corresponde ao espaço do tações clínicas de outros estados patológicos:
outro e vice-versa; astenia, perda de peso, dermatose, deterioração
• Entende-se por distribuição o estudo da va- do sistema imunológico e o sarcoma de Kapo-
riabilidade da freqüência das doenças de si, assim como a presença de ‘infecções oportu-
ocorrência em massa, em função de variáveis nistas’, como a pneumonia por Pneumocystis
ambientais e populacionais, ligadas ao tempo carinii. Ainda hoje em dia, é este complexo de
e ao espaço; sinais clínicos, em combinação com o resulta-
• A análise dos fatores determinantes envolve a do positivo da prova de HIV, o que define um
aplicação do método epidemiológico ao estu- ‘caso de AIDS’. Pode-se ser HIV positivo e,
do de possíveis associações entre um ou mais ainda assim, não ser portador da AIDS. Ade-
fatores suspeitos e um estado característico mais, foi através da análise epidemiológica que
de ausência de saúde, definido como doença; inicialmente a síndrome foi relacionada com
• A prevenção visa empregar medidas de profi- certos grupos de população e comportamentos
laxia a fim de impedir que os indivíduos sa- de risco conexos. Se enfocamos a AIDS como
dios venham a adquirir a doença; o controle uma epidemia mundial, ela se nos apresenta
visa baixar a incidência a níveis mínimos; a como algo novo e súbito; porém, se o nosso
erradicação, após implantadas as medidas de ponto de vista é a AIDS como doença, e o vírus
controle, consiste na não-ocorrência de do- como sua causa, concluímos que nenhum dos
ença, isto significa permanência da incidên- dois são novos; pelo menos datam dos anos 50.
cia zero (a varíola está erradicada do mundo Fizeram falta as ferramentas da epidemiologia
desde 1977 e a poliomielite está erradicada do para nos dizer que enfrentávamos uma patolo-
Brasil desde 1990). gia discreta e letal.”

146
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

Leucemia na infância, provocada pela ex- Outros autores, especialmente latino-ame-


posição aos raios X durante a gestação; trombo- ricanos, entre os quais se salientam Uribe54, Lau-
se venosa relacionada ao uso de contraceptivos rell29, Tambellini52, Arouca4, Cordeiro18, Breihl13,
orais; ingestão de talidomida e o aparecimento de Rufino & Pereira48, Luz34, Garcia23, Barata8, Mar-
numerosos casos de focomelia; hábito de fumar e siglia36, Carvalheiro15, Possas44, Goldbaum24 e
câncer de pulmão; cegueira em crianças nordes- Loureiro33, avançam em direção a uma nova epi-
tinas subnutridas e sua relação com a avitamino- demiologia cuja visão dialética se posiciona con-
se A; mortalidade infantil e classes sociais; são tra a fatalidade do “natural” e do “tropical”. Dá-
alguns dentre os inúmeros exemplos de associa- se ênfase ao estudo da estrutura socioeconômica
ções estudadas pelo método epidemiológico. a fim de explicar o processo saúde-doença de
Ainda, segundo Nakajima40: “A epide- maneira histórica, mais abrangente, tornando a
miologia não se limita a avaliar a situação sani- epidemiologia um dos instrumentos de transfor-
tária e socioeconômica existente (ou passada). mação social. Essa nova epidemiologia, também
Se aceitarmos o critério mais amplo do Prof. chamada de epidemiologia social, no conceito
Cruiskshank, teremos de insistir na necessida- de Breihl14, “deve ser um conjunto de conceitos,
de de avaliação das tendências futuras, isto é, métodos e formas de ação prática que se aplicam
uma ‘epidemiologia prospectiva’. A pergunta ao conhecimento e transformação do processo
é: o que nos dizem as tendências atuais sobre saúde-doença na dimensão coletiva ou social”.
a provável situação futura para a qual teremos Por outro lado, mostrando ser a epidemio-
de fazer planos e tomar (ou não tomar) medidas logia uma ciência viva, em fase de crescimento
corretivas? Qual será o provável resultado ama- e transformação, rica internamente em diversi-
nhã? Por conseguinte, estamos presenciando o dades criativas, alguns autores têm se dedicado
surgimento de uma nova dimensão na ciência da à sua crítica sob o ponto de vista epistemológi-
epidemiologia, que será muito importante para co, buscando estabelecer fundamentos e analisar
o planejamento, a dotação dos recursos, o mane- conceitos básicos2,3,26,19,6.
jo e a avaliação de saúde, e que poderia afetar o
curso futuro da história humana.”
Autores norte-americanos, europeus e lati- História Natural da Doença
no-americanos, entre os quais se destacam Mac-
Mahon35, Leavel & Clark31, Barker9, Lilienfeld32, “Sob o ponto de vista do bem público,
Forattini21, Belda12, Mausner & Bahn37, Rojas46, uma das implicações práticas da epidemiologia
Colimon17 e Jenicek & Cleroux28, definem epi- é que o estudo das influências externas torna a
demiologia de modo bastante semelhante, tendo prevenção possível, mesmo quando a patogê-
como ponto comum “o estudo da distribuição das nese da doença concernente não é ainda com-
doenças nas coletividades humanas e dos fatores preendida. Mas isto não quer dizer que a epi-
causais responsáveis por essa distribuição”. demiologia seja, de alguma maneira, oposta ao
Esse conceito toma por base relações exis- estudo de mecanismos ou, reciprocamente, que
tentes entre os fatores do ambiente – físicos, quí- o conhecimento do mecanismo não seja às vezes
micos e biológicos – do agente e do hospedeiro crucial para a prevenção”1. O autor, embora sem
ou suscetível. Dentro desta concepção, os fatores se referir explicitamente, opina que a prevenção
culturais e socioeconômicos são partes integran- se faz com base no conhecimento da história
tes do sistema, contribuindo à sua maneira, as- natural da doença.
sociados a outros fatores causais, para a eclosão História natural da doença é o nome dado
em massa de doenças e agravos à saúde. ao conjunto de processos interativos compreen-

147
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

dendo “as inter-relações do agente, do suscetível Na expressão história natural da doença,


e do meio ambiente que afetam o processo glo- o “natural” não pode e não deve ser entendido
bal e seu desenvolvimento, desde as primeiras como uma declaração de fé de ordem filosófica,
forças que criam o estímulo patológico no meio negando o social e privilegiando o natural. Na
ambiente, ou em qualquer outro lugar, passando verdade, não há como se negar que, na história
pela resposta do homem ao estímulo, até as alte- da doença, o social e o natural têm, cada qual,
rações que levam a um defeito, invalidez, recu- sua hora e sua vez.
peração ou morte”31. Ao tratar a história natural de uma doença
A história natural da doença, portanto, em particular como sendo uma descrição de sua
tem desenvolvimento em dois períodos seqüen- evolução, desde os seus primórdios no ambiente
ciados: o período epidemiológico e o período biopsicossocial até seu surgimento no suscetí-
patológico. No primeiro, o interesse é dirigido vel e conseqüente desenvolvimento no doente,
para as relações suscetível-ambiente; no segun- deve-se ter um esquema básico, de caráter ge-
do, interessam as modificações que se passam no ral, onde ancorar as descrições específicas. Este
organismo vivo. Abrange, portanto, dois domí- esquema geral, arbitrário, é apenas uma aproxi-
nios interagentes, consecutivos e mutuamente mação da realidade, sem pretensão de funcio-
exclusivos, que se completam: o meio ambiente, nar como uma descrição da mesma (Fig. 2-1).
onde ocorrem as pré-condições, e o meio inter- A história natural das doenças, sob este ponto
no, locus da doença, onde se processaria, de for- de vista, nada mais é do que um quadro esque-
ma progressiva, uma série de modificações bio- mático que dá suporte à descrição das múltiplas
químicas, fisiológicas e histológicas, próprias de e diferentes enfermidades. Sua utilidade maior
uma determinada enfermidade. Alguns fatores é apontar os diferentes métodos de prevenção e
são limítrofes. Situam-se, de forma indefinida, controle, servindo de base para a compreensão
entre os condicionantes pré-patogênicos e as pa- de situações reais e específicas, tornando opera-
tologias explícitas. São anteriores aos primeiros cionais as medidas de prevenção.
transtornos vinculados a uma doença específi-
ca, sem se confundir com a mesma e, ao mesmo
tempo, são intrínsecos ao organismo do susce- Período de Pré-Patogênese
tível. Em uma situação normal, em ausência
de estímulos, jamais se exteriorizariam como O primeiro período da história natural
doenças. Em presença destes fatores intrínse- (denominado por Leavell & Clark31 como pe-
cos preexistentes, os estímulos externos trans- ríodo pré-patogênico), é a própria evolução
formam-se em estímulos patogênicos. Dentre das inter-relações dinâmicas, que envolvem,
as pré-condições internas, citam-se os fatores de um lado, os condicionantes sociais e am-
hereditários, congênitos ou adquiridos em con- bientais e, do outro, os fatores próprios do sus-
seqüência de alterações orgânicas resultantes de cetível, até que se chegue a uma configuração
doenças anteriores. favorável à instalação da doença. É também
O homem se faz presente em todas estas a descrição desta evolução. Envolve, como já
etapas. É gerador das condições socioeconômi- foi referido antes, as inter-relações entre os
cas favorecedoras das anomalias ecológicas pre- agentes etiológicos da doença, o suscetível e
disponentes a alguns dos agentes diretamente outros fatores ambientais que estimulam o
responsáveis por doenças. Ao mesmo tempo, é a desenvolvimento da enfermidade e as condi-
principal vítima do contexto de agressão à saúde ções socioeconômico-culturais que permitem
por ele favorecido. a existência desses fatores.

148
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

A Fig. 2-1A mostra esquematicamen- mínimo. Em termos de probabilidade em ad-


te que, no período de pré-patogênese, podem quirir doença, no outro extremo, encontram-se,
ocorrer situações que vão desde um mínimo de por exemplo, os usuários de drogas injetáveis
risco até risco máximo, dependendo dos fatores que participam coletivamente de uma mesma
presentes e da forma como estes fatores se estru- agulha; para estes, os fatores pré-patogênicos
turam. Pessoas abastadas adoecerem de cólera é estruturados criam uma situação de alto risco,
um evento de baixa probabilidade, isto é, para favorável à aquisição do HIV.
os que dispõem de meios, a estrutura formada As pré-condições que condicionam a
pelos fatores predisponentes à cólera é de risco produção de doença, seja em indivíduos, seja

Fig. 2-1. História natural da doença

em coletividades humanas, estão de tal forma go uma maior ou menor incidência de doenças,
interligadas e, na sua tessitura, são tão interde- modificações na variação cíclica e no seu caráter,
pendentes, que seu conjunto forma uma estru- epidêmico ou endêmico.
tura reconhecida pela denominação estrutura San Martin50 põe em relevo o sistema forma-
epidemiológica. Por estrutura epidemiológica, do pelo ambiente, população, economia e cultura,
que tem funcionamento sistêmico, entende-se designando este conjunto de sistema epidemiológi-
o conjunto formado pelos fatores vinculados ao co-social. Segundo esse autor, qualidade e dinâmica
suscetível e ao ambiente, incluindo aí o agente do ambiente socioeconômico, modos de produção
etiológico, conjunto este dotado de uma orga- e relações de produção, tipo de desenvolvimento
nização interna que define as suas interações e econômico, velocidade de industrialização, desi-
também é responsável pela produção da doen- gualdades socioeconômicas, concentração de ri-
ça. É, na realidade, um sistema epidemiológi- quezas, participação comunitária, responsabilidade
co. Cada vez que um dos componentes sofrer individual e coletiva são componentes essenciais e
alguma alteração, esta repercutirá e atingirá os determinantes no processo saúde-doença.
demais, num processo em que o sistema busca Pode-se entender esse sistema a partir do
novo equilíbrio. Um novo equilíbrio trará consi- detalhamento dos fatores que o compõem.

149
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Fatores Sociais ção responsáveis pela posição de segmentos da


população na estrutura social”.... “Na explicação
O estudo em nível pré-patogênico da pro- do processo epidêmico, fica mais clara a limita-
dução da doença em termos coletivos, objeti- ção teórica que representa a utilização do ‘social’
vando o estabelecimento de ações de ordem pre- como categoria composta por fatores relaciona-
ventiva, deve considerar a doença como fluindo, dos causalmente com a produção de doenças. A
originalmente, de processos sociais, crescendo perspectiva de pensar o ‘social’ sob a forma mais
através de relações ambientais e ecológicas des- totalizante – uma estrutura social particulariza-
favoráveis, atingindo o homem pela ação direta da em conjunturas econômicas, políticas e ideo-
de agentes físicos, químicos, biológicos e psico- lógicas – que condiciona uma dada situação de
lógicos, ao se defrontarem, no indivíduo susce- vida de grande parcela da população e um agra-
tível, com pré-condições genéticas ou somáticas vamento crítico do seu estado de saúde, dá ao
desfavoráveis. estudo do processo epidêmico sua real dimensão
Modernamente, os condicionantes sociais enquanto fenômeno coletivo.”36
da doença considerada em nível coletivo têm Um dos aportes da ciência moderna foi ter
sido tratados a partir de dois pontos de vista; percebido a complexidade em intuir totalidades.
quais sejam: Com vistas a ultrapassar a deficiência da com-
Segundo uma forma de ver, o componen- preensão humana em captar o todo, a ciência
te social na pré-patogênese poderia ser definido passou a fracionar a realidade circunstante em
como uma categoria residual: conjunto de todos fatores componentes, de limites mais ou menos
os fatores que não podem ser classificados como arbitrários, a analisar a contribuição de cada um
componentes genéticos ou agressores fisicos, dos fatores artificialmente isolados e, finalmen-
químicos e biológicos. Os fatores que consti- te, a tentar organizar as conclusões parciais e
tuem esse componente social podem ser agru- incompletas em um todo coerente. Na verdade,
pados, didaticamente, com vistas a uma melhor este processo de se buscar o conhecimento da
compreensão, em quatro tipos gerais cujos limi- realidade circunstante é dialético: da percepção
tes não se pretende que sejam claros ou finamen- de uma realidade parte-se para o conhecimento
te definidos: de seus componentes, deste volta-se novamente
• Fatores socioeconômicos. ao todo, buscando a sua compreensão. Esta com-
• Fatores sociopolíticos. preensão da totalidade do real percebido, mes-
• Fatores socioculturais. mo que precariamente explicado, determina um
• Fatores psicossociais. novo conhecimento das partes e daí uma nova
compreensão do todo, partes e todo formando
Segundo outra forma de ver, e graças aos uma unidade dialética.
esforços dos novos epidemiologistas, vem se fir-
mando uma maneira diferente de trabalhar o
social. “Nesses trabalhos, o ‘social’ já não é apre- Fatores Socioeconômicos
sentado como uma variável ao lado dos outros
‘fatores causais’ da doença, mas, antes, como um Existe uma associação inversa, que não é
campo onde a doença adquire um significado somente de ordem estatística, entre capacidade
específico. O social não é mais expresso sob a econômica e probabilidade de adquirir doença.
forma de um indicador de consumo (quantida- Esta percepção não é recente. Já os trabalhos de
de de renda, nível de instrução etc.). Ele aparece Villerme56, Virchow57 e Chadwick16 apontam di-
agora sob a forma de relações sociais de produ- ferenças consideráveis entre grupos sociais em

150
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

termos de morbidade e de mortalidade. Os gru- Victora et al55, estudando a determinação


pos sociais economicamente privilegiados estão do socioeconômico no processo saúde-doença,
menos sujeitos à ação dos fatores ambientais assim se expressam:
que ensejam ou que estimulam a ocorrência de “Relativamente à utilização de outras va-
certos tipos de doenças cuja incidência é acin- riáveis socioeconômicas, o uso da inserção de
tosamente elevada nos grupos economicamente classe em estudos epidemiológicos apresenta
desprivilegiados. Segundo Renaud45, os pobres: vantagens e desvantagens. Sua principal vanta-
• São percebidos como mais doentios e gem é o fato de ser explicativa, isto é, de – em
mais velhos; larga parte – determinar uma série de variáveis
• São de duas ou três vezes mais propen- intermediárias, como renda, escolaridade, ní-
sos a enfermidades graves; vel de consumo etc., que, por sua vez, influen-
• Permanecem doentes mais amiúde; ciam o processo saúde-doença. Este mesmo as-
• Morrem mais jovens; pecto é uma de suas desvantagens: sendo um
• Procriam crianças de bai�o peso, em determinante distal, cuja ação é mediada por
maior proporção; uma série de variáveis que possuem certa au-
• Sua ta�a de mortalidade infantil é mais tonomia, as relações estatísticas entre inserção
elevada. de classe e o processo saúde-doença podem ser
algo enfraquecidas.”
A título de exemplo, pode ser lembrado “Uma segunda – e talvez a mais impor-
que a desnutrição, as parasitoses intestinais, tante – desvantagem da utilização da inserção
o nanismo e a incapacidade de se prover estão de classe é sua difícil operacionalização, como
sempre onde a miséria se faz presente. já foi notado anteriormente. O conceito de clas-
Como já deve ter ficado bem claro, moder- se social apresenta dimensões econômicas, ide-
namente, na epidemiologia, o componente so- ológicas e jurídico-políticas; por dificuldades
cioeconômico é visto segundo duas óticas alter- operacionais, as classificações existentes têm-se
nativas. Por um lado, fatores socioeconômicos concentrado na dimensão econômica, ignoran-
perfeitamente definíveis e metodologicamente do as demais. A simplificação, no entanto, é um
isoláveis são associados aos diferenciais de mor- processo inerente à pesquisa quantitativa em
bidade e mortalidade. Sob outro ponto de vista, Epidemiologia; por exemplo, para classificar
o conceito de classe social, como uma totalidade uma criança como desnutrida, utiliza-se uma ou
ao mesmo tempo econômica, jurídico-política duas medidas-peso e/ou altura – entre dezenas
e ideológica, é o que procura explicar, de forma de medidas possíveis, compara-se esta medida
mais abrangente, o processo saúde-doença como com um padrão de referência mais ou menos
processo biopsicossocial. arbitrário e decide-se sobre um ponto de corte
De acordo com o primeiro modo de ver, a também arbitrário. Nesse processo simplificató-
intervenção com vistas à prevenção se consubs- rio, é inevitável que se perca informação e que
tanciaria na remoção de fatores sociais preju- ocorram erros de classificação, mas a própria
diciais ou na introdução de fatores percebidos coerência dos resultados empíricos obtidos pode
como ausentes, mas necessários. Na segunda servir para avaliar até que ponto a simplificação
abordagem, a intervenção preventiva verda- pode ter sido excessiva.” ... “Assim, embora ide-
deiramente eficiente seria realizada com mo- ologicamente conveniente para algumas entida-
dificação das estruturas socioeconômicas, com des, não é lícito esperar que simplesmente atra-
conseqüente alteração de todos os fatores sociais vés de programas para aumentar a escolaridade,
contribuintes, conhecidos e desconhecidos. na ausência de mudanças mais profundas, seja

151
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

possível melhorar substancialmente os indica- subdesenvolvidas da África e do Brasil, que


dores de saúde infantil.”55 conservam o hábito de defecar na superfície do
solo, nas proximidades de mananciais. Este tra-
ço cultural foi no passado e continua sendo, no
Fatores Sociopolíticos presente, um dos fatores contribuintes para a
disseminação da esquistossomose, cuja endemi-
Identicamente ao que acontece com os cidade é alimentada pela permanência de uma
fatores econômicos, os fatores políticos são in- pobreza cronificada. Um outro exemplo de pa-
dissociáveis da totalidade que os condiciona. Se, drão externo de comportamento, com influência
em estudos analíticos de pré-patogênese, esses quase que direta na difusão de doença, vem da
fatores, pela própria natureza do proceder cien- larga expansão que nas últimas décadas tiveram
tífico, são isolados e desta forma analisados, isto as doenças de transmissão sexual entre os jo-
jamais poderá ser mal interpretado e confundi- vens, fenômeno que deve ser associado às atuais
do como se tratasse de uma forma de traduzir liberdade e promiscuidade sexuais.
a realidade, reconhecendo-a como resultante da A par destes e de uma infinidade de ou-
interação dos fatores que serviram à sua análise. tros comportamentos externos pré-patogênicos
As categorias de análise não podem ser confun- do mesmo jaez, bem mais aproximados aos
didas com as categorias de realidade. agentes ambientais do que à estrutura social, é
Sob o nosso ponto de vista, são os seguin- mister apontar fatores culturais de natureza bem
tes alguns dos fatores políticos que devem ser diversa, de cuja ação mais distante e mais abran-
fortemente considerados ao se analisarem as gente, os resultados são menos previsíveis. São
condições de pré-patogênese ao nível do social: os padrões conceptuais de comportamento, que
• Instrumentação jurídico-legal; poderíamos imaginar (só imaginar!) sob a forma
• Decisão política; de um gigantesco superego cultural, determi-
• Higidez política; nando o pensar e o fazer coletivos. Como fatores
• Participação consentida e valorização na pré-patogênese estes comportamentos esta-
da cidadania; riam mais adequadamente inseridos no sistema
• Participação comunitária efetivamente de valores internalizados de natureza cultural/
exercida; social/econômica/política do que entre os com-
• Transparência das ações e acesso à infor- portamentos externos ou as condutas biossociais
mação. inconvenientes.
Quer-se referir à:
• Passividade diante do poder e�ercido
Fatores Socioculturais com incompetência ou má fé;
• Alienação em relação aos direitos e de-
No contexto do social, devem ser cita- veres da cidadania;
dos preconceitos e hábitos culturais, crendices, • Transferência irrestrita, para profissio-
comportamentos e valores, valendo como fato- nais da política, da responsabilidade
res pré-patogênicos contribuintes para a difu- pessoal pelo social;
são e manutenção de doenças. Vale a pena citar • Participação passiva como beneficiá-
como exemplo de padrão externo de comporta- rios do paternalismo de estado ou oli-
mento, com características pré-patogênicas cuja gárquico;
influência se faz sentir quase que diretamente, • Incapacidade de se organizar para rei-
o proceder das populações rurais em regiões vindicar.

152
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

Esta tem sido a essência de nossa cultura que abrange todos os seres vivos, inclui também
política, bem como a de outros povos subdesen- a sociedade envolvente, sede das interações so-
volvidos, reforçada através de nossa história pe- ciais, políticas, econômicas e culturais.
los estratos político e econômico, em benefício Agressores ambientais são agentes que, de
de alguns, com prejuízo para o todo. Têm sido forma imediata, sem mais intermediações, po-
pré-patogênicos na medida em que a sociedade dem pôr-se em contato direto com o suscetível.
abrangente se vê frustrada em controlar e fisca- Quanto à sua forma de surgimento ou por sua
lizar os investimentos públicos. A Constituição presença, podem ser inseridos em uma das se-
de 1988 gerou possibilidades de participação da guintes categorias:
comunidade na gerência das ações e serviços • Agentes presentes no ambiente de forma ha-
públicos de saúde. Agora, há que se lutar por bitual, em convivência natural ou tradicional
desenvolver, como padrões de comportamento, com o homem;
atitudes de comprometimento e participação. • Agentes pouco comuns e que, mercê de situ-
ações novas, alterações impostas por novos
hábitos ou por modificações na maneira de
Fatores Psicossociais viver, por má administração ou manipulação
inábil de meios e recursos, por importação,
Dentre os fatores psicossociais aos quais passam a se fazer presentes de forma percep-
pode ser imputada a característica de pré-pato- tível, como agentes, em algum evento epide-
gênese, encontram-se: marginalidade, ausência miológico;
de relações parentais estáveis, desconexão em • Agentes que e�plodem em situações anormais
relação à cultura de origem, falta de apoio no de grande monta como são as macropertur-
contexto social em que se vive, condições de tra- bações ecológicas, os desastres naturais e as
balho extenuantes ou estressantes, promiscuida- catástrofes.
de, transtornos econômicos, sociais ou pessoais,
falta de cuidados maternos na infância, carência São componentes do ambiente físico: si-
afetiva de ordem geral, competição desenfreada, tuação geográfica, solo, clima, recursos hídricos
agressividade vigente nos grandes centros urba- e topografia, agentes químicos e agentes físicos.
nos e desemprego. Estes estímulos têm influên- Em situações ecológicas desfavoráveis,
cia direta sobre o psiquismo humano, com con- algumas produzidas por fatores naturais, outras
seqüências somáticas e mentais danosas. produzidas artificialmente pela ação do homem,
algumas permanentes, outras contingentes, têm
desenvolvimento os fatores físicos, químicos e
Fatores Ambientais biológicos que, por terem acesso à organização
interna de seres vivos, podem funcionar, para
Para efeito de análise estrutural epide- estes, como agentes patogênicos.
miológica, por ambiente deve ser entendido o Modernamente, o estudo da influência
conjunto de todos os fatores que mantém re- exercida pelos fatores naturais do ambiente fí-
lações interativas com o agente etiológico e o sico na produção de doenças tornou-se menos
suscetível, incluindo-os, sem se confundir com importante do que o conhecimento da ação de-
os mesmos. O termo tem maior abrangência do senvolvida pelos agentes aí agregados artificial-
que lhe é dado no campo da ecologia. Além de mente. O progresso e o desenvolvimento indus-
incluir o ambiente físico, que abriga e torna pos- trial criaram problemas epidemiológicos novos,
sível a vida autotrófica e o ambiente biológico, resultantes da poluição ambiental. O ambiente

153
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

físico que envolve o homem moderno condicio- ros meses da gestação. Estudos em animais con-
na o aparecimento de doenças cuja incidência firmaram a ação teratogênica da talidomida38.
tornou-se crescente a partir da urbanização e da Estrógenos de diferentes estruturas quí-
industrialização. As doenças cardiovasculares, micas podem causar tumores em animais de
as alterações mentais e o câncer pulmonar estão experimentação. Embora a importância desta
também associados a fatores do ambiente físico. observação para o homem não tenha sido deter-
Publicação da Organização Pan-america- minada com clareza, convém advertir que alguns
na de Saúde41 menciona que, com a industria- informes epidemiológicos indicam que a admi-
lização crescente e a modificação dos costumes, nistração de estilbestrol a mulheres grávidas au-
há um grande número de substâncias carcino- menta de maneira considerável o risco de que
gênicas que se ingerem, inalam, absorvem por suas filhas venham a ter adenocarcinoma vagi-
via cutânea ou que se introduzem no organismo nal27. Além desses fatos publicados, há inúmeros
como medicamento ou por acidente. casos encobertos, não notificados, decorrentes
No estudo de fatores agressivos presentes do uso indiscriminado de medicamentos.
no ambiente físico e aí colocados através de ati- Sob o ponto de vista da estrutura epide-
vidade do homem, não deve ser esquecido o uso, miológica, o ambiente biológico está constituí-
às vezes exagerado, de pesticidas na proteção dos do por todos os seres vivos que possam ter in-
cultivos. Os alimentos, tanto os vegetais quanto fluência sobre o agente etiológico e o suscetível.
os de origem animal, veiculam estas substâncias Ecologicamente, fazem parte da biota. Para efei-
em concentrações mínimas. O seu acúmulo gra- to de análise, são colocados em destaque e tra-
dual no organismo humano, devido à sua relativa tados como elementos interagentes no sistema
estabilidade, pode trazer sérios danos para a saú- ambiente-agente-suscetível.
de dos consumidores. Outro problema bastante A influência mais geral que qualquer fator
sério são os aditivos alimentares, sob forma de biológico possa ter sobre o estado de saúde ou
sabores artificiais, corantes, conservantes e até de doença das populações humanas se faz sobre
hormônios sintéticos. Seus efeitos, a longo pra- seu estado nutricional. Solo, clima e recursos hí-
zo, por exposição contínua, podem ser nocivos. dricos confluem para a riqueza de recobrimento
Não seria demais lembrar que o ambiente físico vegetal e esta será propícia à abundância da vida
dos locais de trabalho, pelos fatores presentes, animal. O homem depende tanto dos animais
está associado à produção de doenças. quanto dos vegetais para sua sobrevivência. Co-
No ambiente humano (OPS, 1962), o uso munidades relativamente saudáveis são aquelas
de medicamentos é outro fator importante que que, em princípio, dispõem de capacidade para
pode compor a estrutura epidemiológica de do- produção de alimento em seu próprio benefício.
enças não-infecciosas. As características normais No outro extremo da rede de influências e
do feto poderão sofrer alterações se uma nova de ações que se centram no ambiente biológico,
droga passar a ser comercializada sem provas estão os microssistemas bioclimáticos propícios
suficientes de sua inocuidade. Tal fato aconte- à manutenção dos vetores e dos reservatórios de
ceu. A partir de 1959, observou-se que, repetidas bioagentes patogênicos.
vezes, em vários consultórios pediátricos, uma
síndrome fora do comum, a focomelia, anterior-
mente um fato raro, passou a ser notificada de Fatores Genéticos
modo inusitado: 30 a 70 vezes mais. Em um es-
tudo com 46 mães chegou-se à certeza de que 41 Os fatores genéticos provavelmente de-
delas havia feito uso de talidomida nos primei- terminam a maior ou menor suscetibilidade das

154
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

pessoas quanto à aquisição de doenças. O fato é ciação dos fatores é sinérgica, isto é, dois fatores
que, em relação à incidência de doenças, perce- estruturados aumentam o risco de doença mais
be-se que, quando ocorre uma exposição a um do que faria a sua simples soma. O estado final
fator patogênico externo, alguns dos expostos provocador de doença é, portanto, resultado da
são acometidos e outros permanecem isentos. sinergização de uma multiplicidade de fatores
políticos, econômicos, sociais, culturais, psicoló-
gicos, genéticos, biológicos, físicos e químicos.
Multifatorialidade O agregado total resultante da estrutura-
ção sinérgica de todas as condições e influências
Ao serem consideradas as condições para indiretas – próximas ou distantes – socioeconô-
que a doença tenha início em um indivíduo sus- micas, culturais e ecológicas, e pelos agentes que
cetível, é necessário ter-se em conta que nenhuma têm acesso direto ao bioquimismo e às funções
delas será, por si só, suficiente. A eclosão da doença vitais do ser vivo, perturbando-o, constituem o
é, na verdade, dependente da estruturação dos fato- ambiente gerador de doença.
res contribuintes, de tal forma que se possa pensar São denominados agentes patogênicos os
em uma configuração de mínima probabilidade ou que levam estímulos do meio ambiente ao meio
mínimo risco e em uma configuração de máxima interno do homem, por sua presença ou ausên-
probabilidade ou máximo risco, e, entre elas, es- cia, como verdadeiros mensageiros de uma pré-
truturações de fatores cujo risco varia entre os dois patologia gerada e desenvolvida no ambiente e
extremos. Quanto mais estruturados estiverem os como iniciadores e mantenedores de uma patolo-
fatores, maior força terá o estímulo patológico. gia que passará a existir no homem. São de natu-
reza física, química, biológica ou psicológica. Os
bioagentes, os fatores nutricionais e os fatores ge-
néticos estão na categoria de agentes biológicos.
O estudo das diarréias propicia uma boa
ilustração da estruturação sinérgica dos fatores
que conduzem à doença e a mantêm (Fig. 2-2).
Destaca-se em posição central a interação sinér-
gica entre a síndrome diarréica e a desnutrição.
Behar11 chama a atenção para a magnitude
desse problema, dando ênfase ao fato de que as
infecções entéricas constituem fatores precipi-
tantes e agravantes da desnutrição e esta, por sua
vez, influi na patogenia dos processos diarréi-
cos. Segundo este autor, essa interação explica a
razão pela qual as doenças diarréicas constituem
a causa básica mais importante da mortalidade
na infância de regiões subdesenvolvidas.
Fig. 2-2. Sinergismo multifatorial na produção e manutenção das
Na figura apresentada, a seta bissagitada
doenças diarréica. («) indica que um dos fatores, além de produzir
efeito por si, age ainda dando realce à contribui-
A estruturação de fatores condicionantes ção causal do outro fator e vice-versa, comple-
da doença, denominada multifatorialidade, não tando o mecanismo sinérgico. Assim, dentro de
é um simples resultado de justaposição. A asso- um mesmo nível, seja socioeconômico, cultural

155
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

ou ambiental, os fatores são estruturados e agem rios para a sua ocorrência estão presentes. Al-
sinergicamente na produção tanto da diarréia guns fatores agem predispondo o organismo à
quanto da desnutrição. O mútuo realce dos fa- ação subseqüente de outros agentes patógenos.
tores existe também entre os níveis. O socioe- A má nutrição, por exemplo, predispõe à ação
conômico, o cultural e o ambiental também se patogênica do bacilo da tuberculose; altas con-
sinergizam na produção da doença. O entendi- centrações de colesterol sérico contribuem para
mento da existência do sinergismo multifatorial o aparecimento da doença coronariana; fatores
é importante, mas não deve obnubilar a causa genéticos diminuem a defesa orgânica, abrindo
mais profunda da manutenção do status quo da a porta do organismo às infecções.
morbidade por diarréias, a qual reside no desní- Algumas doenças são resultado da ação
vel econômico existente entre as classes sociais. cumulativa de fatores de naturezas diversas. O cân-
cer de pulmão, por exemplo, tem sua probabilidade
bastante aumentada por ação do asbesto associada
Período de Patogênese à ação dos componentes da fumaça de cigarro.

A história natural da doença tem segui-


mento com a sua implantação e evolução no ho- Alterações Bioquímicas, Histológicas e
mem. É o período da patogênese. Este período se Fisiológicas
inicia com as primeiras ações que os agentes pa-
togênicos exercem sobre o ser afetado. Seguem- Neste estágio, a doença já está implantada
se as perturbações bioquímicas em nível celular, no organismo afetado. Embora não se percebam
continuam com as perturbações na forma e na manifestações clínicas, já existem alterações his-
função, evoluindo para defeitos permanentes, tológicas em nível de percepção subclínica de
cronicidade, morte ou cura. caráter genérico. Estas alterações não são per-
Colimon17 divide o período de patogênese ceptíveis. Porém, ainda neste estágio, a doença
em três etapas: subclínica, prodrômica e clínica. já está presente e pode ser percebida através de
Mausner & Bahn37 propõem os seguintes estágios: exames clínicos ou laboratoriais orientados.
pré-sintomático, clínico e de incapacitação. Lea- Denomina-se “horizonte clínico” a linha
vel & Clark31 vêem o período de patogênese como imaginária que separa este estágio do seguinte.
se desenvolvendo nos seguintes estágios: intera- Abaixo dessa linha se processam todas as mani-
ção estímulo-hospedeiro, patogênese precoce, do- festações bioquímicas, fisiológicas e histológicas
ença precoce discernível e doença avançada. que precedem as manifestações clínicas da doen-
Neste texto, serão considerados quatro níveis ça. É o chamado período de incubação.
de evolução da doença no período de patogênese: Algumas doenças não passam desta etapa.
• Interação estímulo-suscetível. Devido às respostas dadas pelas defesas orgânicas,
• Alterações bioquímicas, fisiológicas e podem regredir deste estágio patológico ao de saúde
histológicas. inicial. Em outros casos, a progressão se dá direta-
• Sinais e sintomas. mente para uma etapa menos favorável (Fig. 2-1B).
• Defeitos permanentes, cronicidade.

Interação Estímulo-suscetível Sinais e Sintomas

Nesta etapa a doença ainda não tomou Acima do horizonte clínico os sinais ini-
desenvoltura, porém todos os fatores necessá- ciais da doença, ainda confusos, tornam-se níti-

156
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

dos, transformam-se em sintomas. É o estágio blica como uma tecnologia, mais do que como
chamado de clínico, iniciado ao ser atingida uma ciência, isto é, adaptando Winslow, saúde
uma massa crítica de alterações funcionais no pública é técnica e é arte.
organismo acometido. A evolução da doença Por outro lado, parece-nos que saúde pú-
encaminha-se então para um desenlace; a doen- blica e epidemiologia são indissociáveis quanto
ça pode passar ao período de cura, evoluir para a seus objetivos sociais e quanto à sua prática,
a cronicidade ou progredir para a invalidez ou sendo a epidemiologia o instrumento privile-
para a morte (Fig. 2-1B e C). giado para orientar a atuação da saúde pública.
Se a saúde pública é a face tecnológica, a epide-
miologia será a face científica. A saúde pública
Cronicidade intervém buscando evitar doenças, prolongar a
vida e desenvolver a saúde física e mental e a
A evolução clínica da doença pode pro- eficiência. A epidemiologia persegue a observa-
gredir até o estado de cronicidade ou conduzir ção exata, a interpretação correta, a explicação
o doente a um dado nível de incapacidade física racional e a sistematização científica dos eventos
por tempo variável. Pode também produzir le- de saúde-doença em nível coletivo, orientando,
sões que serão, no futuro, uma porta aberta para portanto, as ações de intervenção.
novas doenças. Do estado crônico, com incapa- A prática da saúde pública, ao contrário,
cidade temporária para desempenho de alguma apesar de assentar grande parte de suas decisões
atividade específica, a doença pode evoluir para sobre o conhecimento epidemiológico, não dei-
a invalidez permanente ou para a morte. Em ou- xa de ser uma prática de intervenção social pla-
tros casos, para a cura. nejada e, como tal, uma parte ponderável de suas
ações é resultante de decisões pessoais ou cole-
giadas, é limitada pela estrutura socioeconômica
Prevenção então vigente e é determinada por uma multipli-
cidade de fatores não-científicos, entre os quais
Winslow, citado por Leavel & Clark31, de- se alinham a ideologia, a decisão política, as con-
fine: “Saúde pública é a ciência e a arte de evitar veniências contingentes, o nível de autoridade
doenças, prolongar a vida e desenvolver a saúde de pessoas ou de grupos, a experiência de vida de
física e mental e a eficiência, através de esforços seus agentes e a falta ou presença de bom senso.
organizados da comunidade para o saneamento
do meio ambiente, o controle de infecções na Técnica e Arte
comunidade, a organização de serviços médicos MEDICINA
PREVENTIVA
e paramédicos para o diagnóstico precoce e o
tratamento preventivo de doenças, e o aperfei-
çoamento da máquina social, que irá assegurar a
MEDICINA MEDICINA
cada indivíduo, dentro da comunidade, um pa- PREVENTIVA PREVENTIVA
drão de vida adequado à manutenção da saúde.” DE SAÚDE INDIVIDUALIZADA
Aprofundando a definição formulada por PÚBLICA

Winslow, comparando-a com o pensamento de


outros autores e com definições dadas a termos Ciência Ciência
correlatos, isolando e analisando os conceitos PATOLOGIA
EPIDEMIOLOGIA
embutidos em cada um de seus termos funda-
mentais, somos levados a considerar a saúde pú- Fig. 2-3. Epidemiologia: suporte científico básico das ações de
saúde coletiva.

157
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Assim considerada a Saúde Pública, seus termos genéricos, na sua vertente de promoção
pressupostos e a sua prática podem e devem ser ex- da saúde, com vistas a uma sociedade sadia, só
ternamente e internamente criticados, ponderados parcialmente depende da ação dos especialistas.
e até mesmo contestados a partir de pontos de vista No coletivo, a ação preventiva deve começar ao
– inclusive não-científicos – de caráter opinativo, nível das estruturas socioeconômicas e políticas.
filosófico, ideológico e científico e de vivências. Antes que haja uma prevenção primária,
A Epidemiologia é a ciência que estabelece há de haver uma prevenção de caráter estrutu-
ou indica e avalia os métodos e processos usados ral. A prevenção deve anteceder a ação dos es-
pela saúde pública para prevenir as doenças. pecialistas em saúde. Deve começar ao nível das
Por outro lado, a saúde pública como tecno- estruturas políticas e econômicas. Também as
logia pode ser inserida como parte em uma tecno- ações dos especialistas devem andar pari passu
logia mais abrangente, a medicina preventiva. Esta às situações sociopolítico-econômicas. Ao pro-
última, se definida como a técnica e a arte de evitar fissional de saúde é importante fazer prevenção
doenças, prolongar a vida e desenvolver a saúde a partir do nível de conscientização da comuni-
física e mental e a eficiência, deverá abranger tam- dade envolvida. À comunidade como um tudo
bém o componente preventivo da medicina indi- cabe perguntar se suas instituições sociais e eco-
vidualizada (Fig. 2-3). Nessa figura, a medicina nômicas são favorecedoras de saúde ou de doen-
preventiva, abrangente, envolve a saúde pública e ça. É a ela que cabe rever-se, propor e lutar pelas
a medicina individual. Esta, a clínica, tem como soluções políticas abrangentes sem as quais, às
ciência básica primordial a patologia. O suporte vezes, as soluções preventivas nos âmbitos eco-
científico da saúde pública é a epidemiologia. lógico e médico não são mais do que paliativos.
A prevenção é abrangente, incluindo a Prevenir e prever antes que algo aconteça,
ação dos profissionais em saúde, mas não só. A ou mesmo cuidar para que não aconteça. Preven-
estes cabe uma importante parcela da ação pre- ção em saúde pública é a ação antecipada, tendo
ventiva: a decisão técnica, a ação direta e parte por objetivo interceptar ou anular a evolução de
da ação educativa. O sucesso da prevenção em uma doença.

HISTÓRIA NATURAL E PREVENÇÃO DE DOENÇAS (*)


Inter-relação entre Morte
Defeito, invalidez
AGENTE, SUSCETÍVEL E
HORIZONTE CLÍNICO Alterações de tecidos
AMBIENTE que produzem
Alterações de tecidos Recuperação
ESTÍMULO à doença
INTERAÇÃO SUSCETÍVEL-ESTÍMULO REAÇÃO
Período de Pré-patogênese Período de Patogênese

PROMOÇÃO
DE SAÚDE
PROTEÇÃO
ESPECÍFICA
DIAGNÓSTICO REABILITAÇÃO
PRECOCE E
TRATAMENTO LIMITAÇÃO DE
IMEDIATO INCAPACIDADE

Prevenção Primária Prevenção Secundária Prevenção Terciária


NÍVEIS DE APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PREVENTIVAS
(*) Leavel & Clarke, 1976.

Fig. 2-4. História natural e prevenção de doenças e agravos à saúde.

158
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

Conforme foi visto em parágrafos anterio- • Escolas.


res, há uma prevenção que pode ser conseguida • Áreas de lazer.
através das correções introduzidas, por via políti- • Alimentação adequada.
ca, no status quo socioeconômico que, a um dado • Educação em todos os níveis.
momento, funciona como uma das pré-condições
de doenças, via pobreza e ignorância. É um tipo
de prevenção cuja importância nunca é demais Proteção Específica
reiterar. Interessa, por outro lado, ao nível da prá-
tica de saúde pública, analisar as ações preventivas • Imunização.
que têm por fim eliminar elos da cadeia patogê- • Saúde ocupacional.
nica, ou no ambiente físico ou social ou no meio • Higiene pessoal e do lar.
interno dos seres vivos afetados ou suscetíveis. • Proteção contra acidentes.
A prevenção pode ser feita nos períodos • Aconselhamento genético.
de pré-patogênese e patogênese. O conhecimen- • Controle dos vetores.
to da história natural da doença favorece o do-
mínio das ações preventivas necessárias. Se um
dos fundamentos de prevenção é cortar elos, o Prevenção Secundária
conhecimento destes é fundamental para que se
atinjam os objetivos colimados. Devem ser co-
nhecidos os múltiplos fatores relacionados com Diagnóstico Precoce
o agente, o suscetível e o meio ambiente, e com a
evolução da doença no acometido. • Inquéritos para descoberta de casos na
A prevenção primária que se faz com a in- comunidade.
tercepção dos fatores pré-patogênicos inclui: a) • E�ames periódicos, individuais, para
promoção da saúde; b) proteção específica. detecção precoce de casos.
A prevenção secundária é realizada no indiví- • Isolamento para evitar a propagação de
duo, já sob a ação do agente patogênico, ao nível do doenças.
estado de doença, e inclui: a) diagnóstico; b) trata- • Tratamento para evitar a progressão da
mento precoce; c) limitação da invalidez (Fig. 2-4). doença.
A prevenção terciária consiste na preven-
ção da incapacidade através de medidas desti-
nadas à reabilitação. Assim, o processo de ree- Limitação da Incapacidade
ducação e readaptação de pessoas com defeitos
após acidentes ou devido a seqüelas de doenças é • Evitar futuras complicações.
exemplo de prevenção em nível terciário. • Evitar seqüelas.

Prevenção Primária Prevenção Terciária

• Reabilitação (impedir a incapacidade


Promoção da Saúde total).
• Fisioterapia.
É feita através de medidas de ordem geral: • Terapia ocupacional.
• Moradia adequada. • Emprego para o reabilitado.

159
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Em alguns países subdesenvolvidos, as pulacionais, as suas modernas concepções, rela-


condições socioeconômicas aí vigentes, mantidas tadas extensamente na literatura biomédica, têm
por uma perversa concentração de renda, pela imprimido à metodologia epidemiológica carac-
má distribuição da propriedade fundiária e pela terísticas peculiares que se, de um lado, têm con-
falta de visão dos detentores do poder econômi- tribuído decisivamente para o aprimoramento
co e político, fazem com que as classes pauperi- das pesquisas em clínica médica, reorientando
zadas sejam incapazes de se prover em termos de as condutas voltadas para o indivíduo, buscan-
alimentação, moradia, educação, saúde e lazer. do uma melhor racionalidade técnico-científica
O cidadão pauperizado torna-se cliente e depen- da atenção médica individual, de outro lado,
dente do Estado e este, por não ser competente acompanhando a crise da saúde pública41,42, não
naquilo que lhe é específico, torna-se paterna- se tem renovado de forma adequada a respon-
lista por incompetência. À sociedade cabe a pre- der eficazmente às novas demandas postas pela
venção ao nível das estruturas. Às organizações atenção à saúde coletiva, cujos limites de atua-
políticas, às organizações civis não-estatais cabe ção vêm sendo registrados na literatura nacional
a ação preventiva mais abrangente de remover e internacional, Barreto10, Shy51, gerando os de-
estruturas arcaicas impeditivas de se promover safios referidos por Barata7.
a saúde em todos os níveis. A Lei Orgânica da O tradicional uso que a clínica promove
Saúde (1990), preconiza o controle social como a da metodologia epidemiológica, aliás as concep-
condição sine qua non para o desenvolvimento ções de seu mais costumeiro objeto – a doença
da saúde coletiva. – por ela definido3, viu-se bastante aprimorado
com os avanços alcançados pelos métodos quan-
titativos e pelo aperfeiçoamento de desenhos de
Considerações sobre as concepções atuais estudos epidemiológicos, em especial os estu-
dos caso-controle47. Os avanços alcançados por
O modelo da História Natural da Doença, essa articulação ocupam boa parte da literatura
explicado em detalhe neste capítulo, é uma pro- médico-científica e constituem-se em material
posta que busca estabelecer ou reconhecer um bastante utilizado para o estabelecimento de
conjunto de processos interativos dos diferentes orientações diagnósticas, prognósticas e tera-
fatores que explicam a ocorrência das doenças. pêuticas no cuidado sistematizado com con-
Entretanto, a complexidade crescente própria juntos de indivíduos identificados e agrupados
do campo da epidemiologia, evidenciada na ex- através de determinada doença22,49. Os resulta-
posição sobre o seu conceito, tem trazido desa- dos alcançados têm levado a posições extremas
fios marcantes para o seu pleno desenvolvimen- ao considerar que os avanços no conhecimento
to. Esses desafios, segundo Barata8, localizam-se epidemiológico devem estar fundamentados nas
nos seus diferentes planos de atuação, quais se- observações colhidas, exclusivamente, a partir
jam, nos planos de seu desenvolvimento teórico, das manifestações individuais e que o ensaio clí-
no plano ético e no plano de sua prática. nico é o modelo paradigmático da pesquisa epi-
Devem ser destacadas as tendências hege- demiológica39, descaracterizando ou desvalori-
mônicas observadas no crescimento da discipli- zando as observações geradas a partir de estudos
na e as repercussões por elas geradas. Embora de base populacional.
a epidemiologia se constitua em um dos eixos Ao lado do inegável avanço anteriormen-
da saúde pública e, conseqüentemente, como se te referido, e a despeito dos limites que se tem
viu, tenha contribuído decisivamente para o co- mostrado para a sua aplicação53, observa-se um
nhecimento e controle de doenças em bases po- movimento de recuperação do tradicional pa-

160
Capítulo 15 • Epidemiologia, história natural e prevenção de doenças

pel exercido pela epidemiologia no campo de Referências


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163
Capítulo 16
Vigilância Epidemiológica to de informações para melhor desempenho do
cícera BorGes Machado profissional médico, como integrante do SNVE.
dina cortez liMa Feitosa villar Neste capítulo, ao mesmo tempo em que é apre-
sentado ao profissional quais são as funções da
VE, procurou-se mostrar a importância da atua-
ção dele no sistema.

Conceitos em Vigilância Epidemiológica


Introdução
A vigilância epidemiológica (VE) com-

O Sistema Nacional de Vigilância Epidemio-


lógica – SNVE foi criado em 1975 pela Lei
nº 6.259, tendo definição ampliada na Lei Orgâ-
preende a realização de uma série de atividades
por profissionais da área da saúde, de maneira
contínua, nas instâncias federal, estadual e mu-
nica da Saúde, Lei n.º 8.080/90. O SNVE “é um nicipal, dirigidas às doenças e agravos prioritá-
subsistema do Sistema Único de Saúde, basea- rios com a finalidade de controle, eliminação ou
do na informação-decisão-controle de doenças erradicação. Essas atividades começam com o
e agravos específicos. Seus principais objetivos atendimento ao paciente, quando o profissional
são elaborar, recomendar e avaliar as medidas suspeita de uma dessas doenças e faz a notifica-
de controle e o planejamento”8. O Ministério da ção ao responsável pela função de receber a noti-
Saúde e as Secretarias Estaduais e Municipais ficação na unidade de saúde de atendimento ou
de Saúde, como componentes do SNVE, coor- na Secretaria da Saúde do município.
denam a Vigilância Epidemiológica em suas res- Conceituando, segundo a Lei Orgânica da
pectivas esferas. Saúde,9 Vigilância Epidemiológica é “O conjun-
A Vigilância Epidemiológica de Doenças to de ações que proporciona o conhecimento,
de Notificação Compulsória é o principal obje- a detecção ou prevenção de qualquer mudança
tivo do SNVE, que vem se aperfeiçoando para nos fatores determinantes e condicionantes da
dar respostas às doenças transmissíveis, embora saúde individual ou coletiva, com finalidade de
com preocupação atual também com as doenças recomendar e adotar as medidas de prevenção
e agravos não transmissíveis. e controle das doenças ou agravos”. Sintetizan-
A base do Sistema de Vigilância Epide- do, pode-se definir a Vigilância Epidemiológica
miológica – VE é a notificação de casos e de como “informação para ação” e todos que fazem
óbitos suspeitos e ou confirmados de doenças parte do sistema de VE devem estar sensibiliza-
de notificação compulsória. Ao longo dos anos, dos para tornar o sistema eficiente e efetivo.
vem-se observando que mesmo com a notifica- Portanto, a vigilância epidemiológica fun-
ção obrigatória, ocorre sub-registro, baixa quali- ciona como um sistema, onde todos os profis-
dade no preenchimento dos impressos e atraso sionais e as esferas municipal, estadual e federal
na notificação, repercutindo nas ações de pre- estão inseridos.
venção e controle a serem adotadas. Com a redução da incidência das doenças
Com o objetivo de implementar as ações imunopreveníveis, responsáveis por epidemias,
de VE no País, está sendo ofertado esse conjun- seqüelas e mortalidade elevadas até a década de

165
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

1980, a VE passa a focalizar as doenças emergen- medidas de controle são adotadas. A ênfase, por-
tes e reemergentes, além de manter o controle tanto, deste documento é na coleta dos dados, pois
das demais. Lembrando, as doenças emergentes a equipe do Programa de Saúde da Família (PSF)
“são as que surgiram recentemente (nas últimas deve ser capacitada para notificar o caso suspeito,
duas décadas) numa população ou as que ame- ou confirmado, ou surto e, participar da investi-
açam se expandir num futuro próximo”14. Ex.: gação epidemiológica, com a finalidade de tomar
AIDS, hantavirose, Doenças de Chagas (emer- medidas oportunas de prevenção e controle.
gindo em áreas anteriormente livres da doença).
Doenças infecciosas reemergentes “São aquelas
causadas por microorganismos bem conheci- Normatização
dos que estavam sob controle, mas tornaram-se
resistentes às drogas antimicrobianas comuns A VE segue as normas do MS que constam
(por exemplo, malária, tuberculose) ou estão se no Guia de Vigilância Epidemiológica (BRA-
expandindo rapidamente em incidência ou em SIL, 2005a). Para cada doença ou agravo, o Guia
área geográfica (cólera nas Américas)”14. traz características clínicas e epidemiológicas,
aspectos clínicos e laboratoriais, vigilância epi-
demiológica e medidas de controle.
Funções ou atividades da Vigilância Na normatização da VE, o enfoque do Guia
Epidemiológica é para a definição de caso (suspeito, confirmado,
descartado), notificação, investigação, análise de
A operacionalização da VE consiste em dados e normas para procedimentos laboratoriais.
uma série de atividades ou funções específicas e É muito importante observar as definições de ca-
intercomplementares, realizadas de modo con- sos suspeitos no Guia para uniformização de con-
tínuo. Essas atividades possibilitam o conheci- ceitos. Essas definições, no entanto, podem sofrer
mento do comportamento da doença ou agravo alterações dependendo do momento epidemioló-
objeto da VE, a cada momento, para que medi- gico, ou seja, se a VE precisa de uma definição mais
das de intervenção pertinentes sejam desencade- sensível ou mais específica. Por exemplo, a defini-
adas17. Essas funções são: ção de caso suspeito de sarampo em 1992, com a
• Coleta dos dados; implantação do Plano de Eliminação do Sarampo,
• Processamento de dados coletados; era mais sensível (paciente com febre e exantema)
• Análise e interpretação dos dados pro- para se detectar o maior número de casos possí-
cessados; vel. Hoje, a definição é mais específica (todo pa-
• Recomendação das medidas de controle ciente que, independente da idade e situação vaci-
apropriadas; nal, apresentar febre e exantema máculo-papular,
• Promoção das ações de controle indi- acompanhados de um ou mais dos seguintes sinais
cadas; e sintomas: tosse, coriza e conjuntivite).
• Avaliação da eficácia e efetividade das Quanto às medidas de controle, a equi-
medidas adotadas; pe do PSF deve observar quais as doenças que
• Divulgação das informações pertinentes. precisam de tomada de medidas de controle
junto aos contatos, familiares ou não, depen-
Essas funções são competências dos níveis dendo da doença e da situação. São exemplo de
municipal, estadual e federal, embora as ações medidas de controle, segundo algumas doenças
executivas sejam inerentes ao nível municipal. É transmissíveis: difteria (vacinação de bloqueio
neste nível que são produzidos os dados e onde as e quimioprofilaxia), doença meningocócica

166
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

(quimioprofilaxia), meningite por hemófilo apresentadas serão destacadas, neste documento,


(quimioprofilaxia), sarampo (vacinação de blo- a notificação e a investigação epidemiológica.
queio), rubéola (vacinação de bloqueio), entre as
principais. Portanto, o Guia deve estar acessível
a cada equipe do PSF para que os profissionais Notificação compulsória de doenças e agravos
sigam, dentro do possível, as normas atualiza-
das. (acesso ao Guia de VE em http://portal.sau- A notificação é definida como: “comunica-
de.gov.br/portal/svs/default.cfm). ção da ocorrência de determinada doença ou agra-
vo à saúde, feita à autoridade sanitária por profis-
sionais de saúde ou qualquer cidadão, para fins de
Coleta de dados adoção de medidas de intervenção pertinentes”9.
A notificação é obrigatória e acima de tudo impor-
A vigilância epidemiológica, apesar de tante para o desencadeamento das medidas perti-
trabalhar com vários tipos de dados (demográfi- nentes. É dever da VE manter sigilo das informa-
cos, ambientais, socioeconômicos, morbidade e ções coletadas de interesse da Saúde Pública.
mortalidade), tem como principal fonte, a notifi-
cação de casos suspeitos e ou confirmados de do-
enças ou agravos objeto de notificação compul- Doenças de notificação compulsória
sória (DNC). A qualidade e a representatividade
desses dados dependem da sua coleta, onde os A lista de Doenças de Notificação Com-
eventos estão ocorrendo, ou seja, no atendimen- pulsória (DNC) consta na Portaria nº 5, de 21 de
to à população, pelos profissionais de saúde, em Fevereiro de 2006 a seguir apresentada.
especial o médico, responsável pelo diagnóstico. Anexo I - Lista Nacional de Agravos de Notificação Compulsória
O fato de registrar os dados necessários e com • �otulismo
letra legível é o primeiro passo e um dos mais • Carbúncio ou “Antraz”
importantes para a vigilância epidemiológica. • Cólera
• Coqueluche
São consideradas fontes de dados para a • Dengue
VE: a notificação (Sistema Nacional de Agravos • Difteria
• Doença de Creutzfeldt-Jacob
de Notificação – Sinan), outras bases de dados • Doenças de Chagas (casos agudos)
importantes (SIM, SIH, SI-PNI, Sinasc)1, labo- • Doenças Meningocócica e outras Meningites
ratório, investigação epidemiológica, imprensa, • Esquistossomose (em área não endêmica)
• Eventos adversos pós-vacinação
estudos epidemiológicos (inquéritos, levanta- • Febre Amarela
mentos) e sistemas sentinelas. Os estudos epi- • Febre do Nilo Ocidental
• Febre Maculosa
demiológicos são tidos como fontes especiais, • Febre Tifóide
mas a principal fonte de dados para a vigilân- • Hanseníase
cia epidemiológica é a notificação de doenças e • Hantaviroses
• Hepatites Virais
agravos. Ressalta-se ainda a importância de ou- • Infecção pelo vírus da imunodeficiência humana
tras fontes tais como: de laboratório, de uso de (HIV) em gestantes e crianças expostas aos risco de
transmissão vertical
produtos farmacológicos e biológicos, rumores
• Influenza humana por novo subtipo (pandêmico)
vindo da comunidade, notícias de jornais, inter- • Leishmaniose Tegumentar Americana
net e outros meios de comunicação. • Leishmaniose Visceral
• Leptospirose
Das fontes de dados apresentadas serão • Malária
destacadas, neste documento, a notificação e a in- • Meningite por Haemophilus influenzae
vestigação epidemiológica. Das fontes de dados • Peste

167
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

• Poliomielite de disseminação, transcendência, severidade,


• Paralisia Flácida Aguda relevância social, relevância econômica, vulne-
• Raiva Humana
• Rubéola
rabilidade, compromissos internacionais, regu-
• Síndrome da Rubéola Congênita lamento sanitário internacional, ocorrência de
• Sarampo epidemias, surtos e agravos inusitados à saúde.
• Sífilis Congênita
• Sífilis em gestantes Esses critérios estão comentados a seguir17.
• Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) • Magnitude: doenças que afetam grandes
• Síndrome Febril Íctero-hemorrágica Aguda
• Síndrome Respiratória Aguda Grave
contingentes populacionais, traduzida por
• Tétano altas taxas de incidência, prevalência, morta-
• Tularemia lidade e anos potenciais de vida perdidos. Ex.
• Tuberculose
• Varíola dengue, tuberculose, hanseníase.
• Potencial de disseminação: doenças de alta
As doenças de notificação compulsória es- transmissibilidade, seja por meio de vetores
tão descritas no Guia de Vigilância Epidemioló- ou por outras fontes de infecção, colocando
gica do MS, com orientações sobre diagnóstico, em risco a saúde coletiva. Ex: dengue, saram-
tratamento e medidas de controle a serem ado- po, cólera.
tadas. Estão incluídas como Síndrome Febril Íc- • Transcendência: doenças que apresentam
tero-hemorrágica Aguda as doenças como: febre características especiais, como: severidade,
amarela, malária, hepatites virais, febre tifóide, medida por taxas de letalidade, de hospitali-
febre hemorrágica da dengue, leptospirose, me- zação e de seqüelas; relevância social, avalia-
ningococemia, hantaviroses, sepse. O Guia e a da subjetivamente pelo valor que a sociedade
Portaria8 podem ser acessados no portal do MS: imputa à ocorrência do evento, como sensa-
http://portal.saude.gov.br/portal/svs/default.cfm. ção de medo, repulsa; relevância econômica,
Da lista de doenças acima apresentada, avaliada por prejuízos decorrentes de restri-
nunca foram registradas no Brasil: febre do ções comerciais, redução da força de trabalho,
Nilo Ocidental, influenza humana por novo tipo absenteísmo escolar e laboral, custos assisten-
(pandêmico) e tularemia. Não foram registradas ciais e previdenciários. Ex: Aids, meningite,
no Brasil nos anos recentes: peste, sarampo, car- raiva, hanseníase, dengue.
búnculo ou antraz e poliomoelite. As demais do- • Vulnerabilidade: doenças para as quais há
enças da lista têm sido registradas, destacando- disponibilidade de instrumentos específicos
se as de maior incidência no ano de 2004, por de prevenção e controle, permitindo a atuação
ordem decrescente: malária (464.4111 casos), concreta dos serviços de saúde sobre os indiví-
dengue (117.519 casos), tuberculose (80.909 duos e a coletividade. Ex: doenças imunopreve-
casos), hanseníase (49.384 casos), leishmaniose níveis (poliomielite, tétano, sarampo, rubéola,
tegumentar (28.712 casos), Aids (13.933 casos), difteria, coqueluche, hepatite B, febre amarela,
hepatite B (13. 582), hepatite C (14.358) e hepa- meningite por haemophilus influenzae).
tite A (14.350 casos). • Compromissos internacionais: referem-se
ao cumprimento de metas continentais ou
medidas de controle, de eliminação ou de er-
Critérios para a seleção de doenças de notificação radicação de doenças, previstas em acordos
compulsória firmados pelo governo brasileiro com organis-
mos internacionais. Ex: erradicação da pólio,
As DNC são selecionadas de acordo com eliminação do sarampo nas Américas, elimi-
alguns critérios, como: magnitude, potencial nação da hanseníase e do tétano neonatal.

168
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

• Regulamento Sanitário Internacional nesse processo. Toda unidade de saúde deve ter
(RSI): estabelecido no âmbito da Organiza- um setor responsável pela notificação de doen-
ção Mundial de Saúde tem como finalidade ças ou agravos de notificação, que não só notifi-
“prevenir a propagação internacional de do- que, nas participe ativamente das investigações
enças, proteger contra esta propagação, con- epidemiológicas juntamente com a equipe de
trolar e oferecer uma resposta de saúde públi- VE da SMS. É fundamental a participação ativa
ca proporcionada e restrita aos riscos para a do médico nesse processo.
saúde pública e evitando, ao mesmo tempo, as
interferências desnecessárias com o tráfego e
comércio internacional”10 (BRASIL, 2005b). Instrumento de coleta de dados
São de notificação compulsória internacional
pelo RSI: cólera, peste e febre amarela. O Sinan tem dois instrumentos de cole-
• Ocorrência de epidemias, surtos e agravos ta de dados que são a base do sistema: a ficha
inusitados: todas as suspeitas de surtos, epi- de notificação e a ficha de investigação. A ficha
demias e agravos inusitados devem ser noti- de notificação deve ser preenchida em todas
ficados pelo meio mais rápido de notificação as doenças ou agravos, com exceção de: Aids –
aos níveis hierárquicos superiores, para que adulto e infantil –, hepatite B e C, hanseníase,
sejam realizadas investigação e medidas de gestante HIV e crianças expostas, tuberculose e
controle e prevenção necessárias. leishmaniose tegumentar americana. Nestes ca-
sos, preenche-se apenas as fichas de investigação
específicas. Os instrumentos de coleta de dados
Fluxograma da notificação (fichas de notificação e investigação) podem ser
acessados em: www.saude.gov.br/svs na opção
O médico, ao atender o paciente com do- sistema de informação link Sinan.
ença suspeita de DNC, comunica ao responsável
pela vigilância epidemiológica da unidade de
saúde, que notificará para a Secretaria Munici- Periodicidade da notificação
pal de Saúde – SES. Nos municípios do interior
do Estado, as SMS notificam para as Células A notificação deve ser feita semanalmente,
Regionais de Saúde – CERES, seguindo poste- por meio do Sistema de Informação de Agravos
riormente para a Secretaria de Saúde do Estado de Notificação – SINAN, exceto para as doenças
– SESA e desta para a Secretaria de Vigilância e agravos de notificação imediata, que constam
em Saúde do MS. No caso do município de For- no anexo II da Portaria de DNC, a seguir espe-
taleza, entre as unidades de saúde e a SMS exis- cificadas. Essas doenças devem ser notificadas
tem as Secretarias Executivas Regionais – SER. imediatamente, pelo meio de comunicação mais
Neste caso, as unidades de saúde notificam para rápida, aos níveis hierárquicos superiores e, in-
as SER, seguindo o fluxo semelhante ao interior cluídas no Sinan para a notificação semanal.
do estado, posteriormente.
Toda unidade de saúde deve ter um setor
responsável pela notificação de doenças ou agra- Notificação negativa
vos de notificação, que não só notifique, nas par-
ticipe ativamente das investigações epidemioló- A unidade notificante deve acompanhar
gicas juntamente com a equipe de VE da SMS. sistematicamente a ocorrência ou não de casos
É fundamental a participação ativa do médico de DNC, encaminhando a notificação negativa,

169
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

quando não ocorrer nenhum caso de DNC na se- • Peste


mana. A notificação negativa segue o mesmo flu- • Poliomielite
xo das fichas de notificação individual de casos. • Raiva humana
• Sarampo*
• Síndrome Febril Íctero-hemorrágica
Notificação imediata Aguda
• Síndrome Respiratória Aguda Grave
Em caso de doenças ou agravos que necessi- • Varíola
tam de ação de controle e investigação imediata, a • Tularemia
notificação deve ser via FAX, telefone ou e-mail.
A SMS e as unidades de saúde com o SINAN II. Caso confirmado de:
implantado devem também fazer a digitação da • Tétano Neonatal
doença ou agravo e transferir imediatamente por
meio magnético. Nos finais de semana e feriados, III. Surto ou agregação de casos ou de óbi-
notificar para o plantão diurno da SESA, que tos por:
funciona no Núcleo de Epidemiologia (fone: 85 • Agravos inusitados
3101.5214 / 5215). No período noturno, diaria- • Difteria
mete, notificar para o Centro de Informações Es- • Doença de Chagas Aguda
tratégicas em Vigilância em Saúde – Cievs, que • Doença Meningocócica
tem plantão 24 horas (fone: 0800.6646645). • Influenza Humana
É importante fazer a notificação imedia-
ta para que os responsáveis pela vigilância epi- IV. Epizootias e/ou morte de animais que po-
demiológica possam colaborar na elucidação dem preceder a ocorrência de doenças em humanos:
diagnóstica, bem como, nas ações de controle e • Epizootias em primatas não humanos
prevenção da doença junto à comunidade. Para • Outras epizootias de importância epi-
o diagnóstico laboratorial a VE conta com uma demiológica
rede de laboratórios de âmbito nacional, alta-
mente qualificada podendo ser acionada sempre São de notificação imediata para o Estado
que necessário. Os laboratórios de referência do Ceará além das doenças acima citadas, os ca-
constam no item Investigação epidemiológica/ sos suspeitos de: Dengue Hemorrágica, Doença
laboratórios de referência. Meningocócica, Meningite por Hemófilos, Dif-
São de notificação imediata segundo a teria, Melioidose, Paralisia Flácida Aguda, Sa-
Portaria nº 5, de 21 de fevereiro de 2006, anexo rampo, Rubéola e Tétano Neonatal.
II: São de notificação imediata segundo a Porta- Na investigação epidemiológica, há neces-
ria nº 5, de 21 de fevereiro de 2006, anexo II: sidade do apoio do médico e da equipe que aten-
deu o paciente, fornecendo os dados importan-
I. Caso suspeito ou confirmado de: tes que serão anotados em ficha de investigação
• �otulismo específica para cada caso. Esses dados, inclusive,
• Carbúnculo ou antraz devem estar registrados com letra legível nos
• Cólera prontuários e fichas de atendimento médico.
• Febre amarela Diante de casos suspeitos de doenças ou
• Febre do Nilo Ocidental agravos de notificação imediata, o médico, junta-
• Hantaviroses
*
Em indivíduo com história de viagem ao exterior nos últimos 30
• Influenza humana por novo subtipo (trinta) dias ou de contato, no mesmo período, com alguém que
(pandêmico) viajou ao exterior.

170
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

mente com o responsável pela VE na unidade de Difteria • Notificar imediatamente


saúde, deve tomar algumas providências no caso • Caso suspeito de difteria por fax, telefone ou e-mail
Todo indivíduo com qua- para a SMS, SESA e MS.
das doenças selecionadas no quadro a seguir. dro agudo de infecção de • Realizar medidas de
orofaringe com placa bran- controle (vacinação de blo-
Doenças de Notificação Compulsória – Providências co-acizentada sem amígda- queio e quimioprofilaxia
iniciais diante da suspeita las e/ou outras áreas com para os comunicantes/Guia
comprometimento do esta- de VE).
O que o médico deve do geral e febre moderada. • Participar da investiga-
Doenças / caso suspeito
fazer? ção epidemiológica.
Botulismo • Notificar imediatamente • Solicitar coleta de mate-
• Caso suspeito de botu- por fax, telefone ou e-mail rial para diagnóstico (antes
lismo (alimentar e por fe- para a SMS, SESA e MS. do uso de antibiótico):
rimento) • Solicitar o soro antibotu- - Colher amostra de ma-
Indivíduo que apresen- línico - SAB. terial nasofaríngeo para
te paralisia flácida aguda, • Participar da investiga- realização de cultura, an-
simétrica e descendente, ção epidemiológica. tes do uso de antibiótico
com preservação do nível • Solicitar coleta de mate- (quadro em anexo)
de consciência caracteriza- rial para diagnóstico antes
do por um ou mais dos se- da aplicação do SAB: Encaminhar ao Laborató-
guintes sinais e sintomas: - Colher soro, fezes ou rio Central de Saúde Pú-
visão turva, diplopia, tosse conteúdo intestinal, la- blica - Lacen (telefones em
palpebral, boca seca, disa- vado gástrico, exudato anexo).
tria, disfagia ou dispnéia. do ferimento para detec- Fonte: Guia de Vigilância Epide-
ção de toxina botulínica miológica - MS/SVS (Brasil, 2005)
e cultural do Clostridim
Febre Amarela • Notificar imediatamente
botulinum (quadro em
• Caso suspeito de febre por fax, telefone ou e-mail
anexo)
amarela para a SMS, SESA e MS.
Encaminhar ao Laborató-
Todo paciente residente e/ • Participar da investiga-
rio Central de Saúde Pú-
ou procedente de área en- ção epidemiológica.
blica - Lacen (telefones em
dêmica para febre amarela, • Solicitar coleta de mate-
anexo).
Fonte: Guia de Vigilância Epide- com quadro clínico suges- rial para diagnóstico:
miológica - MS/SVS (Brasil, 2005) tivo (febre de até sete dias, - Colher material (óbitos,
de início súbito, acompa- formas graves ou oligos-
Cólera • Notificar imediatamente
nhada de icterícia e mani- sintomáticos):
• Caso suspeito de cólera por fax, telefone ou e-mail
festações hemorrágicas), - isolamento viral (san-
Qualquer indivíduo, in- para a SMS, SESA e MS.
não vacinado contra febre gue) crianças: coletar
dependentemente da fai- • Participar da investiga-
amarela ou estado vacinal de 2 a 5ml e no adulto
xa etária, residente ou ção epidemiológica.
ignorado. coletar 10ml do 1º ao
proveniente de áreas com • Solicitar coleta de mate-
5º dia da doença;
ocorrência de casos de có- rial para diagnóstico antes
- Sorológico (sangue),
lera que apresente diarréia da aplicação do SAB:
na criança coletar de
aquosa aguda até o décimo - Colher amostra de fezes
2 a 5ml e no adulto
dia de sua chegada. por meio de swab retal,
10ml, do 1º ao 7º dia
Todo indivíduo com mais swab fecal, fezes in natura
da doença (S1); no 14º
de 10 anos de idade que ou papel de filtro (quadro
ao 21º dia da doença
apresente diarréia súbita, em anexo)
(S2); amostra única
líquida e abundante. A pre- Encaminhar ao Laborató-
após o 7º dia.
sença de desidratação rápi- rio Central de Saúde Pú-
- Histopatologia ou
da, acidose e colapso circu- blica - Lacen (telefones em
imu nohistoquímica
latório reforçam a suspeita. anexo).
Fonte: Guia de Vigilância Epide- (tecido) logo após o
miológica - MS/SVS (Brasil, 2005) óbito ou no máximo
de 12h após o óbito.

Enviar o material para o


Lacen.
Em caso de óbito, enviar o
corpo para o SVO.
Fonte: Guia de Vigilância Epide-
miológica - MS/SVS (Brasil, 2005)

171
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Febre Hemorrágica do • Notificar imediatamente Meningites • Notificar imediatamente


Dengue - FHD por fax, telefone ou e-mail • Caso suspeito de Me- por fax, telefone ou e-mail
• Caso suspeito de FHD para a SMS, SESA e MS. ningite para a SMS, SESA e MS.
Paciente com febre (39ºC a • Participar da investiga- Crianças acima de 1 ano e • Em caso de suspeitos de
40ºC), cefaléia, prostração, ção epidemiológica. adulto com febre, cefaléia doença meningocócita e
mialgia, artralgia, dor re- • Solicitar coleta de mate- intensa, vômitos, rigidez da meningite por hemófilo,
troorbitária, exantema ma- rial para diagnóstico: nuca, outros sinais de irri- realizar a quimioprofila-
culopapular, acompanhado - isolamento viral - cole- tação meníngea (Kerning, xia para os comunicantes,
ou não de prurido, náuseas, tar até o 5º dia de início Brudzinski), sonolência e segundo normas do MS/
vômitos e diarréias associa- dos sintomas (5ml de convulsões. Guia VE.
das à presença de hemorra- sangue); Crianças abaixo de 1 ano • Participar da investiga-
gia espontânea e/ou provo- - Sorológico após o 6º dia de idade, principalmente ção epidemiológica.
cada (prova do laço). do início dos sintomas as menores de 9 meses, que • Solicitar coleta de mate-
(5ml de sangue); apresentam febre, vômitos, rial para diagnóstico (antes
- Detecção de antígenos sonolência, irritabilidade do uso do antibiótico):
virais pelo imuno - his- aumentada (choro persis- - Cultura (líquor) 20 a 30
toquímica de tecidos tente), convulsões e, prin- gotas no 1º dia do aten-
(óbito); cipalmente, abaulamento dimento;
- Diagnóstico molecular de fontanela. - Contra-imunoeletro-
feito pelo PCR (5ml de forese - CIE (líquor) 1 a
sangue). 2ml no 1º dia do atendi-
Em caso de óbito, encami- mento;
nhar o corpo para o SVO. - Aglutinação pelo Látex
- Coletar sangue por (sangue) 5ml no 1º dia
punção cardíaca para o do atendimento;
isolamento viral e/ou so- - Hemocultura (sangue) 10
rologia; amostras de teci- a 20% do volume total do
dos para isolamento viral frasco no 1º dia do atendi-
e imunohistoquímica. mento (2 amostras);
- Citobioquímica e bac-
Fonte: Guia de Vigilância Epide- terioscopia (líquor) 2ml
miológica - MS/SVS (Brasil, 2005) no 1º dia do atendimen-
Melioidose • Notificar imediatamente to, realizado no hospital
• Caso suspeito de melio- por fax, telefone ou e-mail de atendimento.
idose para a SMS, SESA e MS. Enviar amostras para o
Paciente com febre e disp- • Participar da investiga- Lacen.
néia e/ou hipotensão arte- ção epidemiológica. Em caso de óbito, encami-
rial, podendo ser acompa- • Solicitar coleta de mate- nhar o corpo para o SVO.
nhada de dor abdominal rial para diagnóstico: Fonte: Guia de Vigilância Epide-
miológica do Ministério da Saúde/
e/ou dor torácica e/ou tur- - Cultura (sangue, escar- SVS (Brasil, 2005)
gência jugular e periféri- ro, exsudato purulento
ca e, que seja procedente das lesões de pele ou Paralisia Flácida Aguda - • Notificar imediatamente
ou tenha frequentado os qualquer espécime clí- PFA por fax, telefone ou e-mail
municípios de Tejuçuoca, nico), colher antes da • Caso suspeito de PFA para a SMS, SESA e MS.
Banbuiú ou Aracoiaba ou administração de antibi- Todo caso de deficiência mo- • Participar da investiga-
tenha tido exposição recen- óticos; tora flácida (de membros), ção epidemiológica.
te a solo ou semanas após as - Sorológico (aguardar o de início súbito, em meno- • Solicitar coleta de ma-
chuvas nestes municípios soro para exame poste- res de 15 anos de idade. terial para diagnóstico em
ou em qualquer outra área rior); até 14 dias do início dos
no Estado do Ceará. - Outros: hemograma, sintomas:
glicemia, gasometria ar- - Colher uma amostra
terial, provas de função de fezes nas primeiras
renal, proteína C reativa 48h e encaminhar para
quantitativa, transamí- o Lacen. A amostra é
nases, VHS, Rx de tórax. oportuna até 14 dias do
Encaminhar o material início dos sintomas, po-
para o Lacen. dendo ser colhida até 30
Em caso de óbito, encami- dias depois, em casos de
nhar o corpo para o SVO. notificação tardia.
Fonte: Adaptado do Guia de Vigi-
lância Epidemiológica do Ministé-
Fonte: NUEPI/COPOS/SESA-CE rio da Saúde/SVS (Brasil, 2005)

172
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

Peste • Notificar imediatamente Investigação epidemiológica de doenças e agravos


• Caso suspeito de peste por fax, telefone ou e-mail
Paciente que apresenta para a SMS, SESA e MS.
quadro agudo de febre em • Participar da investiga-
A investigação epidemiológica de casos,
área pertencente a um foco ção epidemiológica. surtos e epidemias é uma atividade que deve ser
natural de peste, que evo- • Solicitar coleta de mate- iniciada imediatamente após o recebimento da
lua com adenite (“sintomá- rial para diagnóstico:
tico ganglionar”). - Cultura, bacterioscopia, notificação pela vigilância epidemiológica. A
Paciente proveniente de hemocultura (aspirado investigação epidemiológica de casos, surtos e
área com ocorrência de do bubão, escarro, san-
epidemias é uma atividade que deve ser iniciada
peste pneumônica (de 1 gue) esorologia.
a 10 dias) que apresente O meio de cultura encon- imediatamente após o recebimento da notifica-
febre e/ou manifestações tra-se disponível no Lacen ção pela vigilância epidemiológica.
clínicas da doença, espe- (se necessário, solicitar a
cialmente sintomatologia ida de técnico para a reali- A investigação epidemiológica é definida
respiratória. zação da coleta da cultura). como: “Um estudo de campo realizado a partir
Importante: Em caso de de casos notificados (clinicamente declarados
óbito, encaminhar o corpo
ao SVO. ou suspeitos) e seus contatos, que tem como
Fonte: Guia de Vigilância Epide-
principais objetivos: identificar fonte e modo
miológica MS/SVS (Brasil, 2005) de transmissão, grupos expostos a maior risco e
Sarampo e Rubéola • Notificar imediatamente fatores determinantes, confirmar o diagnóstico
• Caso suspeito de Sa- por fax, telefone ou e-mail
rampo para a SMS, SESA e MS. e determinar as principais características epide-
Todo paciente que, inde- • Recomendar vacinação miológicas. O seu propósito final é orientar as
pendente da idade e situ- de bloqueio para suscetí-
medidas de controle para impedir a ocorrência
ação vacinal, apresentar veis em até 72h após a no-
febre e exantema máculo- tificação (seguindo as nor- de novos casos”9,17.
papular, acompanhados de mas do MS). Portanto, na investigação epidemiológica
um ou mais dos seguintes • Participar da investiga-
sinais e sintomas: tosse, co- ção epidemiológica. a VE procura responder a questões para as quais
riza e conjuntivite. • Solicitar coleta de mate- é imprescindível a colaboração do médico que
rial para diagnóstico: atendeu o paciente e da unidade de saúde onde
• Caso suspeito de Rubéola - Colher amostras de san-
Todo paciente que apresen- gue para realização de o mesmo foi atendido. A VE precisa investigar
te febre e exantema mácu- sorologia e encaminhar e conhecer17 :
lo-papular, acompanhada amostras para o Lacen.
de linfoadenopatia retroau- Importante: Os casos que
• Confirmar o diagnóstico;
ricular e, occipital e cervi- atenderem a todos os crité- • Características biológicas, ambientais e
cal, independente da idade rios de suspeição de saram- sociais;
ou situação vacinal. po, não vacinados e que
ainda esteja nos 5 primeiros • Fonte de infecção;
dias do início do exantema, • Modo de transmissão;
colher urina ou material de
• Determinação da abrangência da trans-
nasofaringe para isolamen-
to viral. missão;
Fonte: Guia de Vigilância Epide- • Identificação de novos casos, contatos,
miológica MS/SVS (Brasil, 2005) comunicantes;
Tétano Neonatal • Notificar imediatamente • Identificação de fatores de risco;
• Caso suspeito de tétano por fax, telefone ou e-mail
neonatal para a SMS, SESA e MS. • Determinação do período de transmis-
Todo recém-nascido que • Participar da investiga- sibilidade;
mama e chora normal- ção epidemiológica.
mente nos primeiros dias
• Se e�iste agregação espacial e ou tem-
Fonte: Guia de Vigilância Epide-
de vida e posteriormente miológica MS/SVS (Brasil, 2005)
poral e
apresenta dificuldade de • Evitar a propagação (medidas de con-
mamar, choro excessivo,
rigidez muscular e con- trole apropriadas).
vulsão.

173
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

O processo de investigação epidemiológica nais, além de consultar prontuários, fichas de


atendimento, laudos laboratoriais, declaração
Ao notificar o caso suspeito ou confirma- de óbito, se ocorrer, dentre outros. Lembrar que
do, o médico terá apoio da vigilância epidemio- a VE precisa responder às questões acima referi-
lógica não só em termos de recursos para con- das. A VE colabora também para que os exames
firmar o diagnóstico (laboratórios de referência laboratoriais sejam realizados oportunamente.
– tipo de exames disponíveis, técnicas de coleta
do material clínico, acondicionamento, conser-
vação e transporte) bem como para a assistên- Laboratórios de referência
cia médica adequada ao paciente. É papel da VE
certificar-se das condições de atendimento do O Laboratório Central de Saúde Pública do
paciente, visando diminuir a gravidade da doen- Ceará – LACEN, classificado como de biossegu-
ça e a redução dos riscos de transmissão. Como rança3, realiza análises nas áreas de microbiologia,
exemplo, em uma suspeita de botulismo, doença biologia molecular, imunohematologia e virologia
considerada uma emergência médica e de saúde (em anexo). O Lacen descentraliza as sorologias
pública, o médico notifica imediatamente (SMS, para dengue e rubéola para os Laboratórios Regio-
SESA, MS. Ver telefones em anexo) e a VE lo- nais localizados nos municípios de Senador Pom-
cal aciona os níveis hierárquicos superiores para peu, Crato, Juazeiro do Norte, Tauá e Icó.
conseguir o mais rápido possível o soro antibo-
tulínico; busca articulação com os responsáveis Os laboratórios nacionais de referên
pela rede de assistência à saúde, para que seja ofe- -cias são:
recido o tratamento em hospital com unidade de • Instituto Evandro Chagas – IEC/PA (arbovi-
terapia intensiva; comunica-se com a vigilância roses, vírus respiratórios agudos, hantavírus,
sanitária para investigar os alimentos suspeitos hepatites virais);
e evitar a ocorrência de novos casos; contacta o • Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães –
laboratório (Lacen) para o encaminhamento das CpqAM/PE (peste, filariose);
amostras clínicas e bromatológicas para o labo- • Instituto Adolfo Lutz – IAL/SP (meningites
ratório nacional de referência, no caso de botu- bacterianas, vírus respiratórios agudos, han-
lismo, o Emílio Ribas em São Paulo. Esse exem- tavirus, coqueluche, difteria);
plo mostra a importância da VE e da integração • Fundação Ezequiel Dias – Fundep/MG (do-
de todos os setores envolvidos com a investiga- ença de Chagas, leishmaniose visceral);
ção epidemiológica. Portanto, trabalhando in- • Instituto Pasteur/SP (raiva);
tegrado com a VE, o médico muito contribuirá • CRPHF/RJ (micobactérias)
para a saúde da população. O seu papel não é só • Fiocruz/RJ (sarampo/rubéola, hepatites,
notificar; é muito mais, é sentir-se inserido no leishmaniose tegumentar, enteroviroses, vi-
sistema, contribuindo não só para a saúde do seu brios e outras enterobactérias, vírus respira-
paciente, mas de toda a comunidade. tórios agudos, leptospirose e hanseníase).
A equipe de VE tem um roteiro de inves-
tigação, buscando a coleta de dados, a busca de
pistas e a busca ativa de casos. Na coleta de da- Processamento, análise e divulgação da
dos, a VE utiliza a ficha de investigação específi- informação
ca para cada doença que deve ter preenchimen-
to completo e correto e para isso entrevistará o Quando se divulga que houve registro de
paciente, familiares, médicos e outros profissio- 601 casos de Aids no Ceará em 2005, esse núme-

174
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

ro é decorrente da notificação de casos e poste- objetivo da vigilância epidemiológica. A infor-


rior investigação pela vigilância epidemiológica. mação para a ação visa, portanto, a redução da
Se esse número representa a ocorrência real, de- morbimortalidade pelas doenças alvo da VE. O
pende do compromisso dos médicos e unidades Guia de VE traz a conduta a ser adotada para o
de saúde que atendem pacientes com Aids, fa- controle de cada doença.
zendo o registro completo e notificando à VE.
É a partir dessas informações que se conhece o
comportamento epidemiológico dessa doença, Vigilância sentinela
se programa medidas e estratégias de prevenção
e controle, inclusive orçamento para a aquisição Consiste na seleção de estabelecimentos
de medicamentos. Esse comentário é valido para de saúde para a obtenção das informações epide-
todas as doenças. miológicas desejadas, ou seja, não é um sistema
Outro aspecto a ser considerado é a quali- universal como o adotado para a VE de doenças
dade dos dados. Cada deve ter o seu registro que de notificação compulsória. É uma estratégia
contemple informações clínicas e epidemiológi- utilizada em situações especiais ou para com-
cas. Por isso, antes da consolidação dos dados, o plementar o sistema de notificação de rotina.
técnico da VE deve certificar-se de que foi reali- Exemplos de VE sentinela:
zada a crítica de consistência, que é composta por • Monitorização das Doenças Diarréicas
análise do preenchimento das fichas epidemio- Agudas – MDDA: A MDDA é uma atividade
lógicas, correção de dados, busca de informações já realizada por unidades de saúde considera-
incompletas nas diversas fontes anteriormente das sentinelas em todos os municípios, com
citadas e, exclusão de notificações duplicadas. o objetivo de acompanhar o comportamento
Os dados podem ser analisados segundo das diarréias, detectar surtos, priorizar ações
as variáveis de pessoa, tempo, lugar, além dos as- de prevenção e controle da doença.
pectos clínicos, epidemiológicos e laboratoriais • Vigilância sentinela da influenza: Atual-
(com o objetivo de subsidiar a hipótese diagnós- mente, o Hospital Infantil Dr. Albert Sabin
tica), fonte de transmissão, potenciais de riscos e a unidade básica de saúde Irmã Hercília
ambientais, efetividade das medidas de controle participam ativamente da vigilância do vírus
e qualidade do atendimento prestado. São cons- da influenza, coordenado pelo Ministério da
truídos indicadores epidemiológicos de morbi- Saúde. O objetivo é monitorizar as cepas dos
dade e mortalidade de interesse sanitário. vírus da influenza que circulam nas regiões
A divulgação da informação – boletins, in- brasileiras e, ainda, responder a situações
formes epidemiológicos e outros – é realizada por inusitadas, avaliar o impacto da vacinação
meio da internet, meios de comunicação em mas- contra a doença, acompanhar a tendência
sa, reuniões, seminários, contatos pessoais, eventos da morbidade e da mortalidade associadas à
científicos etc.8 Acesso em: www.saude.ce.gov.br e doença e, produzir e disseminar informações
http://portal.saude.gov.br/portal/svs/default.cfm. epidemiológicas.

Recomendação e promoção das medidas Vigilância epidemiológica hospitalar


de controle
Com o surgimento das doenças emer-
Prevenir, controlar, eliminar ou erradicar gentes e reemergentes, as unidades de saúde
doenças, bem como evitar óbitos e seqüelas é o hospitalares passaram a ter grande importância

175
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

na detecção oportuna desses eventos. Com essa A vigilância epidemiológica hospitalar


preocupação, o Ministério da Saúde instituiu os das doenças crônicas fornece informações sobre
Núcleos Hospitalares de Epidemiologia – NHE o perfil de pacientes hospitalizados: suas carac-
através de Portaria n.º 2.529/GM, de 23 de no- terísticas e situação, as abordagens terapêuticas
vembro de 2004, com regulamentação estabele- utilizadas e as condições de alta, com o objetivo
cida pela Portaria n.º 1/SVS, de 17 de janeiro de de observar e avaliar os resultados obtidos.
2005. São 190 NHE no Brasil e oito no Ceará, No nível da atenção primária – Programa
que passaram a compor o Subsistema Nacional de Programa de Saúde da Família, o enfoque
de Vigilância Epidemiológica Hospitalar. São prioritário em relação às DANT é na promoção
eles: Hospital São José, Hospital Geral de For- da saúde e na prevenção secundária. Na promo-
taleza, Hospital Infantil Albert Sabin, Instituto ção da saúde, o PSF trabalha com a população
Dr. José Frota, Hospital Geral Dr. César Cals, os fatores de risco para essas doenças e agravos.
Hospital Universitário W. Cantídio, Santa Casa Na prevenção secundária, o mais importante é o
de Misericórdia de Sobral e Hospital-Materni- diagnóstico e tratamento precoce de patologias
dade SãoVicente de Paulo de Barbalha. como diabetes e hipertensão, câncer de colo de
útero, dentre outros. São medidas capazes de
evitar complicações que levem à incapacidade e
Vigilância das doenças e agravos não à morte precoce.
transmissíveis (DANT)

O envelhecimento da população, associa- Sistemas de informações em saúde


do à redução da morbimortalidade por doenças
infecciosas e parasitárias, contribuiu para a mu- Os sistemas de informações mais relevan-
dança do perfil epidemiológico da população a tes para a VE são: Sistema Nacional de Agravos
partir da década de 1980. As doenças do aparelho de Notificação – SINAN, Sistema de Informa-
circulatório, o câncer e as causas externas passa- ções sobre Mortalidade – SIM, Sistema de In-
ram a ter importante papel no quadro sanitário, formações sobre Nascidos Vivos – SINASC,
responsáveis pela principais causas de morte. Sistema de Informações Hospitalares – SIH e
Em face de tais mudanças, a Secretaria Sistema de Informações do Programa Nacional
da Saúde do Estado do Ceará, sob assessoria do de Imunização – SI-PNI. O Sistema de Informa-
Ministério da Saúde, está implantando no âm- ções da Atenção Básica - SIAB também tem sido
bito estadual e nos municípios com mais de 100 citado como fonte de dados para a VE. Muitas
mil habitantes, (Fortaleza, Caucaia, Maracanaú, informações estão disponíveis em: www. data-
Crato, Juazeiro do Norte, Sobral e Itapipoca), a sus.gov.br e www.saude.gov.br/sinanweb. Serão
Vigilância Epidemiológica das Doenças e Agra- destacados neste capítulo apenas os sistemas:
vos Não Transmissíveis – DANT. SINAN, SIM e SINASC.
Nesse sentido, a Secretaria da Saúde do Es-
tado do Ceará recomenda aos hospitais o monito-
ramento das doenças não transmissíveis e agra- Sistema de Informações de Agravos de
vos visando, não somente o acompanhamento Notificação – SINAN
do comportamento epidemiológico destes, como
também com o objetivo de melhorar a qualidade O SINAN foi implantado no Ceará em
das informações, tanto dos prontuários como da 1995 e tem como objetivo coletar, transmitir e
Autorização de Internação Hospitalar - AIH. disseminar dados gerados rotineiramente pelo

176
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

Sistema de Vigilância Epidemiológica das três conseqüente suspensão do repasse dos recursos
esferas de governo. Utilizando uma rede infor- do Teto Financeiro de Vigilância à Saúde.
matizada, apóia o processo de investigação e de Os dados do Sinan originam os indicado-
subsídios à análise das informações de vigilân- res de morbidade (incidência e prevalência) e
cia epidemiológica das doenças de notificação as informações sobre a caracterização clínica e
compulsória10. comportamento epidemiológico das doenças ou
São utilizadas fichas de investigação epi- agravos, objetos da vigilância epidemiológica.
demiológica padronizadas para cada doença.
Antes da digitação, o técnico faz a análise do
preenchimento das fichas de notificação e de Sistema de informações sobre Mortalidade – SIM
investigação epidemiológica, corrigindo dados
e buscando completar informações, caso ainda O Sistema de Informação sobre Mortali-
estejam incompletas. As fichas devem ser digi- dade (SIM), foi implantado pelo Ministério da
tadas até no máximo 15 dias após a notificação, Saúde em 1975, para aprimorar as estatísticas de
contendo informações clínicas, epidemiológicas mortalidade. O instrumento de coleta de dados
e laboratoriais. do SIM é a Declaração de Óbito - DO (anexo),
O caso é encerrado com o preenchimento, padronizada para o País.
nas fichas, do diagnóstico final e da data do en-
cerramento. O encerramento das investigações
referentes aos casos notificados como suspeitos Tipos de óbito
e/ou confirmados deverá ser efetuado até o prazo
máximo de 60 dias da data de notificação, exceto Por ocasião do preenchimento da DO é
para os casos de: importante haver distinção entre óbito fetal e
• Hanseníase e Tuberculose; não fetal, considerando que um erro desta natu-
• Síndrome da Rubéola Congênita, reza poderá originar problemas no Direito das
Leishmaniose Tegumentar Americana Sucessões como também afetar os indicadores
e Leishmaniose Visceral - o prazo para de saúde que, na sua estrutura de cálculo, utili-
encerramento será de 180 dias, após a zam esses tipos de óbitos (fetal e não fetal). Na
notificação; análise das estatísticas de mortalidade, é reali-
• Sarampo e Rubéola - o prazo para encer- zado um estudo em separado dos óbitos fetais e
ramento será de 30 dias, após a data da não fetais.
notificação; • Óbito fetal: é a morte de um produto da con-
• Hepatites Crônicas (�, C e D) - o pra- cepção antes da expulsão ou de sua extração
zo para encerramento será de 240 dias, completa do corpo materno, independente da
após a data da notificação. duração da gravidez. Indica o óbito o fato de
depois da separação, o feto não respirar nem
A falta de encerramento, na proporção de apresentar nenhum sinal de vida, como bati-
80%, em 60 dias e, na proporção de 100%, em mentos do coração, pulsações do cordão um-
120 dias, dos casos de DNC nacional, excluídas bilical ou movimentos efetivos dos músculos
as exceções no 1 e 2, citadas no parágrafo an- voluntários.
terior, ensejará a suspensão das transferências • Aborto: é o fim da gravidez, com a extração do
dos recursos do Piso de Atenção Básica – PAB embrião ou feto morto (que não respire ou dê
e o cancelamento da certificação para gestão das qualquer outro sinal de vida) antes da 20ª se-
ações de Epidemiologia e Controle de Doenças e mana de gestação ou abaixo de 500g de peso.

177
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

• Natimorto: é o óbito fetal intermediário (20 a • Em caso de mortes violentas ou não natu-
28 semanas) ou tardio (28 semanas ou mais), rais: A declaração de óbito deverá obrigatoria-
ou seja, o óbito antes da expulsão ou extração mente ser fornecida pelos médicos legistas.
completa do corpo materno, de um produto • Em caso de óbito hospitalar: É da compe-
da concepção que tenha alcançado 20 semanas tência do hospital o fornecimento de atesta-
completas ou mais de gestação (no momento dos para todos os casos de óbito hospitalar,
da extração o natimorto não deve respirar ou definido pelo Ministério da Saúde como
dar qualquer outro sinal de vida). “óbito que se verifica no Hospital após o
• Peças anatômicas: retiradas do ser humano registro do paciente” ou seja, mesmo que o
vivo na ocasião do ato cirúrgico ou membro paciente tenha se internado há menos de 48
amputado. Não preencher DO, pois não se horas, não elimina a competência do hospital
trata de um óbito, mesmo que o destino des- no fornecimento do documento. Se o óbito
tas peças seja o enterramento. Neste caso, o ocorre na ambulância do hospital, o médi-
hospital deverá elaborar um documento, se- co do hospital que encaminhou o paciente
melhante a um laudo em papel timbrado do preenche a DO. A ambulância é considera-
hospital, relatando o procedimento realizado, da uma extensão do hospital e o doente da
o qual deverá ser levado ao cemitério. responsabilidade do hospital5. Onde existe
o SVO, os hospitais devem encaminhar os
óbitos por morte natural que têm causa mal
Responsabilidade do preenchimento da DO definida para investigação da causa.

Compete ao médico preencher completa-


mente a DO, com especial atenção na parte VI Como preencher a DO
da DO “condições e causas do óbito”, segundo
as normas da Resolução do Conselho Federal de • Considerações gerais: A DO deve ser preen-
Medicina – CFM , nº 1.601/00 de 9 de agosto chida em três vias. Recomenda-se:
2000, art. 2. - Preencher a DO em letra de forma, com ca-
• Em caso de morte natural: Morte com assis- neta esferográfica;
tência médica: - Evitar uso de siglas, emendas e rasuras. Se
- A declaração de óbito deverá ser fornecida ocorrer emenda ou rasuras, o médico deve
sempre que possível pelo médico que venha preencher outro formulário, encaminhando
prestando assistência. a DO danificada para a SMS para controle;
- A declaração de óbito do paciente internado - Preencher todos os campos; nenhum cam-
sob regime hospitalar deverá ser fornecida po deve ser deixado em branco; colocar
pelo médico assistente e na sua falta por mé- ignorado ou um traço (-), se não tem in-
dico substituto pertencente à instituição. formação ou quando não se aplicar ao item
• Em caso de morte fetal: Em caso de morte correspondente.
fetal, os médicos que prestaram assistência à • Devem constar na DO:
mãe ficam obrigados a fornecer a declaração - Quando o fumo, álcool e drogas contribuí-
de óbito do feto, quando a gestação tiver du- ram para a morte;
ração igual ou superior a 20 semanas ou o feto - Óbitos de mulheres grávidas ou no período
tiver peso corporal igual ou superior a 500 de 42 dias pós-parto, mesmo que a morte
(quinhentos) gramas e ou estatura igual ou não tenha sido conseqüência de complica-
superior a 25 cm. ção da gravidez ou puerpério;

178
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

- Causa ignorada, desconhecida ou sem as- O médico deve declarar a causa básica na
sistência médica e não sintomas e modos última linha da parte I e acima dela as complica-
de morrer se o diagnóstico não é conhecido ções ou causas intervenientes.
pelo médico que atesta; A causa básica de óbito é definida como: a
- Quando a morte ocorrer por complicações doença ou lesão que iniciou a sucessão de even-
tardias ou efeito tardio de uma lesão con- tos mórbidos que levou diretamente à morte, ou
seqüente de acidente, declarar o que tenha “as circunstâncias do acidente ou violência que
decorrido entre o acidente e a morte. Exem- produziu a lesão fatal”.
plo: Septicemia oriunda de broncopneu- Em caso de óbito fetal, anotar a causa do
monia devido à tetraplegia em decorrência óbito e não especificar “natimorto”.
de acidente automobilístico há cinco anos; - Parte II - causas que contribuíram para a
- As mortes em conseqüência de complica- morte, mas não relacionadas com a doença
ção de fraturas de fêmur ou colo do fêmur que a produziu, chamadas de causas contri-
necessitam ser bem esclarecidas, com a fi- buintes.
nalidade de ter o conhecimento da causa:
conseqüência de queda ou decorrente da
fragilidade óssea, devido a osteoporose. Anemia
• Variáveis: A DO é composta por nove blocos
e sessenta e duas variáveis, a seguir descritas: Exemplos de preenchimento com casos
- Bloco I – Destinado ao Cartório; clínicos5 (Laurenti; Mello Jorge, 2004):
- Bloco II – Identificação do falecido (se óbito
fetal, no item 11 (nome do falecido), anotar • História clinica: masculino, 8 meses.
“natimorto” ou “nascido morto de (nome da “Dia 3/12 começou a apresentar diarréia
mãe)”, pois a mãe é paciente do hospital); e vômitos de moderada intensidade até o dia 6,
- Bloco III – Local de residência do falecido; quando o quadro se intensificou e foi internado
- Bloco IV – Local de ocorrência do óbito; no Pronto Socorro. Estava desidratado (2º para
- Bloco V – Óbito fetal ou menor de um ano o 3º grau) e apresentava sinais de desnutrição
(deve ser obrigatoriamente preenchido). São moderada. No dia 7 apresentou aspiração de
informações sobre a mãe (idade, grau de es- vômitos, tendo desenvolvido quadro típico de
colaridade, ocupação, gestação, tipo de par- broncopneumonia, comprovada pelo RX, dia 8.
to) e peso do filho ao nascer - dez variáveis; O quadro se agravou, apresentando-se febril e
- Bloco VI – Condições e causas do óbito diarréico. Faleceu no dia 10.”
(preencher em caso de óbito fetal e não fe-
tal). É o atestado médico da DO, constituí- Desnutrição moderada
do por duas partes I e II;
- Bloco VII – Identificação do médico que Atestado original
assina;
- Bloco VIII – Causas externas; I – a) Desidratação
- Bloco IX – Localidade sem médico. b) -
• Como preencher o Bloco VI – atestado c) -
médico d) -
- Parte I – linhas: “a”, “b”, “c” e “d”. II -
- Sob as linhas “a”, “b” e “c” está escrita a Obs: o médico não declarou a causa básica
frase: “devido ou como conseqüência de”. (gastroenterite).

179
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

• Masculino, 3 horas me físico apresentava sinais característicos de


“Criança nascida de parto normal, em pre- broncopneumonia; criança em péssimo estado
cárias condições (Apgar 2). A gestação havia sido geral, desidratada ++, ofegante, batimento de
normal até mais ou menos os 8 meses, quando a asas de nariz, temperatura 39,5ºC. Nessas condi-
mãe começou a apresentar hemorragia vaginal, ções, foi internada de urgência: feita radiografia,
não procurando médico nas primeiras 24 horas. que confirmou o diagnóstico de broncopneumo-
Quando foi levada ao hospital já estava em pré- nia. Faleceu 2h após a internação.”
choque. Foi diagnosticado desprendimento pre-
maturo de placenta. A criança nasceu cianótica, Atestado original
com sinais e sintomas de anóxia, falecendo três
horas após o nascimento. Intervalo
Obs: o médico não declarou a causa básica I – a) Parada cardíaca
(desprendimento prematuro da placenta). b) -
c) -
• Feminino, 42 anos. d) -
“Há dois anos, nódulo na mama esquerda.
Na ocasião da consulta apresentava grande au- II -
mento da mama, mamilo retraído e gânglios axi- Obs: não se recomenda escrever “parada
lares palpáveis. Foi levada à cirurgia (maio) com cardíaca”.
diagnóstico de câncer de mama com metástases
ganglionares, o que foi confirmado pela cirurgia
e biópsia. Passou bem quatro meses, quando o Codificação das causas de óbito
estado geral começou a piorar, aparecendo fíga-
do aumentado de volume, nodular, ascite e icte- As doenças são classificadas segundo um
rícia. Dois dias antes do óbito entrou em coma sistema de categorias, constituindo a Classificação
hepático, clínica e laboratorialmente bem com- Internacional de Doenças – CID. O propósito da
provado. Faleceu em janeiro do ano seguinte. CID é “permitir a análise sistemática, a interpre-
Não foi realizada autopsia. tação e a comparação dos dados de mortalidade e
morbidade coletados nos diferentes países ou áreas
Atestado original e em diferentes épocas”12. No caso da classificação
de mortalidade, CID-10, as causas consideradas
Intervalo pelo médico na DO (bloco VI, atestado médico)
I – a) Neoplasia são codificadas por codificadores treinados, utili-
b) Neoplasia zando regras e disposições para selecionar a causa
c) Neoplasia básica da morte, já definida anteriormente.
d) - O médico, ao declarar o óbito pode contri-
buir muito para a correta seleção da causa bási-
II – (Ca. de seio) ca, escrevendo a causa básica, as conseqüências
Obs: neoplasia pode ser maligna ou be- e fatores que contribuíram para a morte, confor-
nigna e as mais variadas localizações. me demonstrado anteriormente.
• Feminino, 10 meses. Óbitos por causas mal definidas
“Há 5 dias, febre moderada e um pouco de
tosse e inapetência, não aceitando praticamente Exemplificou-se anteriormente situações
nada. Há 2 dias, febre alta e muita tosse. Ao exa- de DO com causas mal definidas. No Ceará, em

180
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

2005, a proporção de óbitos por causas mal de- • Quando há suspeita de melioidose: aspirar
finidas foi de 25%. Reflete não só a baixa qua- pus ou secreção do pulmão, colocar em frasco
lidade da informação sobre mortalidade, como estéril sem conservante, enviar imediatamen-
também dificuldade de acesso da população à te para a microbiologia do Lacen, juntamente
assistência médica. O médico precisa conscien- com relatório de necropsia.
tizar-se da importância legal e epidemiológica
da Declaração de Óbito (DO), esforçando-se
para preenchê-la completa e corretamente. Se Sistema de Informação sobre Nascidos
o médico vinha acompanhando o paciente e Vivos - SINASC
este morre no domicílio, não havendo suspei-
ta de morte violenta, a causa do óbito pode ser O Sistema de Informação sobre Nascidos
descrita na DO. No entanto, esses óbitos terão Vivos foi implantado oficialmente no Brasil em
melhor esclarecimento se encaminhados ao 1990 e no Ceará em 1993. O Sinasc capta dados
Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), a se- sobre as condições da gravidez, parto e nasci-
guir descrito. mento. Tem como documento padrão a Decla-
ração de Nascido Vivo – DN, elaborada pelo
Ministério da Saúde, previamente numerada,
Serviço de Verificação de Óbito – SVOS contendo três vias.

O SVO foi implantado no Ceará em ju-


lho de 2005 e tem como finalidade esclarecer Definições
a “causa mortis” de óbitos por morte natural que
têm causa mal definida (com ou sem assistência • Nascidos Vivos, segundo a Organização Mun-
médica). Encaminhar para o SVO: dial de Saúde - OMS é a expulsão ou extração
• Óbito domiciliar sem assistência médica; completa do corpo da mãe, independentemen-
• Óbito hospitalar com menos de 48 horas de te da duração da gravidez, de um produto de
internação; concepção que depois da separação, respire ou
• Óbito hospitalar solicitado pelo médico, com apresente qualquer outro sinal de vida, tal como
causa mortis indefinida; batimentos do coração pulsações do cordão um-
• Óbito de interesse da Vigilância Epidemioló- bilical ou movimentos efetivos dos músculos de
gica Estadual. contração voluntária, estando ou não, cortado o
cordão umbilical e desprendida a placenta.
O SVO é solicitado a colher os seguintes Considerar:
exames de interesse da Vigilância Epidemioló-
gica do Estado:
• Colher amostra por punção cardíaca, 5 a 10ml Responsabilidade do preenchimento da Declaração
de sangue total, colocar em tubo estéril, sem de Nascidos Vivos – DN
conservante;
• Colher amostra de líquor, 5 a 10ml, em tubo O preenchimento da DN deve ser feito
estéril, sem conservante; no hospital/estabelecimento de saúde para os
• Colher 2 fragmentos de 1cm dos seguintes ór- partos ali realizados e nas unidades de emer-
gãos: fígado, pulmão, cérebro e baço: gência dos estabelecimentos de saúde. Pode ser
- 1ª amostra (formol); preenchida não só por médico, mas também
- 2ª amostra (sem conservante). por membro da equipe de enfermagem da sala

181
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

de parto ou do berçário, ou por outra pessoa • Colaborando na investigação epidemiológica,


previamente treinada para tal fim. Não é obri- prestando informações verbais e colocando à
gatória a assinatura do médico responsável pelo disposição da VE prontuários e outros docu-
recém-nascido. mentos como fontes de informações clínicas
e epidemiológicas;
• Acompanhando o paciente com DNC, após
Qualidade da informação alta hospitalar, nas doenças recidivantes e de
difícil controle;
A qualidade da informação tem sido ava- • Colaborando com o seu conhecimento cien-
liada pela cobertura do dado e pelo preenchi- tífico específico, nas investigações epidemio-
mento das variáveis dos instrumentos de coleta lógicas, no esclarecimento de hipóteses diag-
de dados (DO, DN, fichas de investigação, for- nósticas;
mulários e outros, dependendo do sistema de • Indicando medidas profiláticas (vacinação de
informação). bloqueio, quimioprofilaxia e outros) para os
Portanto, se o sistema é universal, todos os contatos ou comunicantes dos pacientes, de
eventos (nascimento, doenças notificáveis, óbi- acordo com as normas do Ministério da Saú-
tos) devem ser notificados às autoridades sanitá- de – Guia de VE;
rias. Quanto ao preenchimento dos instrumentos • Analisando os dados juntamente com a VE
de coleta de dados, as fontes de coleta (prontuá- (distribuição de casos segundo característi-
rios, fichas de atendimento etc.) devem estar com cas clínicas, epidemiológicas e fatores con-
as informações requeridas registradas, conferin- tribuintes);
do confiabilidade, consistência e completitude às • Realizando estudos clínico-epidemiológicos;
informações, garantido a sua qualidade. • Integrando-se não só com a VE mas com ou-
No caso do Sistema de Informação sobre tros setores importantes para o controle de
Mortalidade, a proporção de óbitos por causas doenças como, laboratório, vigilância sanitá-
mal definidas é um importante indicador da ria, vigilância ambiental etc.
qualidade da informação e também do acesso da
população à assistência médica (óbito sem assis-
tência médica).

Atribuições do médico no Sistema Nacional


de Vigilância Epidemiológica

O médico está inserido no Sistema Nacio-


nal de Vigilância Epidemiológica e participa ati-
vamente ao realizar as seguintes atividades:
• Diagnosticando e tratando precocemente os
casos de DNC, com redução da letalidade e da
transmissão de doenças;
• Notificando para a Vigilância Epidemiológi-
ca os casos suspeitos ou confirmados de casos
e surtos de doenças ou agravos de notificação
compulsória ou de agravos inusitados;

182
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

Anexo
Exames laboratoriais de interesse da saúde pública realizados no Lacen/laboratório de referência nacional
Suspeita clínica Material Técnicas
Aids/Infecção por Soro • Elisa, IFI, Western �lot, CD4, CD8, carga viral e genotipagem
HIV
Botulismo Soro • Detecção de to�ina botulínica por meio de bioensaio em
Fezes ou conteúdo intestinal camundongo e outras;
Lavado gástrico • Isolamento de Clostridium botulinum de cultura das amostras.
Exudado do ferimento
Citomegalovirose Soro • Sorologia (IgM, IgG)
Cólera Fezes • Coprocultura para Vibrio cholerae
Conjuntivite de Raspado conjuntival • Imunoflorescência direta
inclusão do adulto
e recém-nascido
(Tracoma)
Coqueluche Soro • Cultura (pesquisa de Bordetella pertusis)
Dengue Soro • Sorologia (MAC - Elisa)
Vísceras • Cultura de células
• PCR
• Imunohistoquímica (envia para o Lab. de Referência – Insti-
tuto Evandro Chagas)
Difteria Secreção naso e orofaringe • �acterioscopia e cultura (bacilo diftérico)
Doença de Chagas Soro • Hemaglutinação e Elisa
• Xenodiagnóstico (UFC)
• Outras técnicas de diagnóstico: Imunofluorescência indireta,
pesquisa de tripomatigota em gota espessa e em creme leucocitário
DST • �acterioscopia (pesquisa de Trichomonas, Candida e Gardnerela)
Síndrome de corri- Secreção vaginal • Cultural (pesquisa de gonococo, Clamídia)
mento vaginal • IFD (Clamídia)
Síndrome de corri- Secreção, uretral • PCR (Clamídia e gonococo protocolos de pesquisa)
mento uretral
• VDRL, FTA-A�S, TPHA
Sífilis Soro
Bacterioscopia: pesquisa de H. ducreyi (gram); herpes simples
Lesões ulceradas Raspado da lesão (giemsa), T pallidum (campo escuro)
Febre amarela Soro e vísceras IEC, MAC - Elisa, inibição de hemaglutinação teste de neu-
tralização e imunohistoquímica RT - PCR e isolamento viral
(Laboratório de referência - Instituto Evandro Chagas)
Febre Tifóide Sangue • Hemocultura
Aspirado de medula óssea • Mielocultura
Fezes • Coprocultura
Soro • Sorologia - Reação de Widal
Gastroenterites Fezes • Coprocultura (pesquisa de: Salmorella, Vibrio Shigella, E. coli,
Aeromonas, Yersinia)
Hantavirose Soro e víceras • Elisa-IgM, Elisa-IgG (pareado), RT-PCR, imunohistoquímica
Em caso de óbito, sangue do serão encaminhados aos laboratórios de referências.
coração, inclusive coágulos
Hepatite Soro • Hepatite A, � e C (IgM, IgG-Elisa)
• Hepatite � (HbsAg, HbeAg, Anti-H�s, Anti-H�c total, anti-Hbe)
• Hepatite C (PCR e genotipagem)
Infecção sistêmica Sangue • Hemocultura
bacteriana

183
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Leishmaniose Papel de filtro impregnado IFI e Elisa


canina com sangue
Leishmaniose Vis- Material aspirado dos órgãos Pesquisa de Leishmania na medula óssea, baço, fígado, gânglio
ceral Humana (Giemsa)
Cultura
Leishmaniose Soro IFI
Tegumentar Esfregaço da lesão Pesquisa do parasita no esfregaço após coloração
Leptospirose Soro • Sorologia (Elisa)
Malária Sangue total Gota espessa
Esfregaço de sangue periférico (Giemsa)
Meningite Líquor • Citobioquímica (local de origem)
bacteriana • �acterioscopia
• Cultura
Sangue • Contraimunoeletroforese - CIE
• Hemocultura
Meningite fúngica Líquor • Pesquisa de Criptococcus (tinta nanquim)
• Cultura para fungos
Meningite viral Líquor, fezes • Cultura
• PCR
Soro Soroneutralização (enterovírus) Elisa (outros vírus) amostras
pareadas - Lab. de referência)
Peste Soro • Hemaglutinação
Sangue, escarro, exudato do • Cultura
bubão, medula da falange do • �acterioscopia (Gram ou azul de metileno)
dedo indicador (cadáver)
Poliomielite Fezes É enviado para o Laboratório de Referência - Fundação Osvaldo
Cruz - RJ
Rubéola Soro • Sorologia (IgM, IgG)
Sarampo Soro • Sorologia (IgM, IgG)
Sífilis congênita Soro, líquor • VDRL, testes treponêmicos
Placenta, lesões cutâneas • Pesquisa direta, Imunofluorescência direta
Síndrome de Soro • MAC-Elisa
Rubéola Congênita Secreção de nasofaringe Cultura, PCR (Encaminha ao Lab. de referência)
Toxoplasmose Soro • Sorologia (IgM, IgG)
Tuberculose e Líquor, escarro, lavado gástri- • �aciloscopia
outras micobacte- co, lavado brônquico e urina • Cultura
rioses • Teste de sensibilidade às drogas
Vírus respiratório Secreção nasofaringe • IFI
(Influenza)
Fonte: Ceará, 2005

Exames laboratoriais de interesse da saúde pública realizados no laboratório do Ministério de Agricultura/Fortaleza


Suspeita clínica Material Técnicas
Raiva Impressão da córnea, rapado Imunofluorescência indireta (Lab. do Ministério de Agricultura)
da mucosa lingual (swab),
biopsia de pele da nuca
Post - mortem - Sistema ner- Imunofluorescência direta (Lab. do Ministério de Agricultura)
voso central (cérebro, cerebelo
e medula) conservados em
geladeira.
Fonte: Ceará, 2005

184
Capítulo 16 • Vigilância Epidemiológica

Exames laboratoriais realizados no LACEN


Suspeitas de Surtos de Doenças Transmitidas por Alimentos - DTA

Microorganismo
Material Referência Método Legislação
(patógenos)
AOAC Internacional, 17th ed.,
Salmonella sp 2000. Staphylococcus aureus in foo-
ds, Vol I, Chapter 17, p 52 and 53.
Escherichia coli
International Comission on
Clostridium perfringes Microbiological Specification for RDC nº 12, DE
Alimento Cultura
Foods. Microorganisms in foods 02/01/01
Sthaphylococcus 2: sampling for microbiological
aureus analysis - principals and specifi-
cal applications. 2 ed. Toronto:
Bacillus cereus University of Toronto Press,
1986, 293p.
Fonte: Ceará, 2005

mesmos. A busca ativa pode ser restrita a um


Glossário domicílio, rua ou bairro, unidades de saúde,
ou ainda, ultrapassar barreiras geográficas de
• Agravo: [...] danos à integridade física, men- municípios ou estados, conforme as correntes
tal e social dos indivíduos, provocados por migratórias ou características dos veículos de
doenças ou circunstâncias nocivas, como aci- transmissão9.
dentes, intoxicações, abuso de drogas e lesões • Controle: quando aplicado a doenças trans-
auto ou heteroinfligidas missíveis e algumas não transmissíveis, im-
• Biossegurança: condição de segurança al- plica em operações ou programas desenvolvi-
cançada por um conjunto de ações destinadas dos com o objetivo de reduzir sua incidência
a prevenir, controlar e, reduzir ou eliminar e ou prevalência a níveis muito baixos. Ex. a
riscos inerentes às atividades que possam maioria das DNC9.
comprometer a saúde humana, animal e ve- • Erradicação: cessação de toda transmissão
getal e o meio ambiente. da infecção pela extinção artificial da espécie
• Biossegurança 3: existem quatro níveis de do agente em questão no planeta; pressupõe
biossegurança (NB - 1, NB - 2, NB - 3 e NB a ausência completa de risco de reintrodução
- 4) crescentes no maior grau de contenção e da doença, de forma a permitir a suspensão
complexidade do nível de proteção. O nível de toda medida de prevenção ou controle. Ex.
de biossegurança 3 é aplicável aos locais onde erradicação da varíola9.
forem desenvolvidos trabalhos com OGM • Eliminação: ou erradicação regional, é a sus-
(organismo geneticamente modificado) re- pensão da transmissão de determinada infec-
sultantes de agentes infecciosos Classe 3 (ele- ção em ampla região geográfica ou jurisdição
vado risco individual e risco limitado para a geopolítica. Ex. eliminação do sarampo nas
comunidade), que podem causas doenças sé- Américas9.
rias e potencialmente letais, como resultado • Morbidade: variável característica das comu-
de exposição por inalação nidades de seres vivos, se refere ao conjunto
• Busca ativa: a busca ativa consiste em visi- dos indivíduos que adquiriram doenças num
tas periódicas aos domicílios e unidades de- dado intervalo de tempo. Denota-se morbida-
tectando casos que não chegaram aos servi- de ao comportamento das doenças e dos agra-
ços ou que deixaram de ser notificados pelos vos à saúde em uma população exposta4,2.

185
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

• Mortalidade: variável característica das 10. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilân-
comunidades de seres vivos, referem-se ao cia em Saúde. O novo Regulamento Sanitário
conjunto dos indivíduos que morreram num Internacional. In: Boletim Epidemiológico Ele-
dado intervalo de tempo4,2. trônico 2005b 5(2).
• Piso da Atenção Básica (PAB): um instru- 11. Mota E, Carvalho DM. Sistemas de informação
em saúde. In: Rouquayrol MZ, Almeida FIlho
mento importante para dar suporte ao PSF
N. Epidemiologia & saúde. Rio de Janeiro: Med-
foi criado, em 1998, pelo governo federal, Piso
si. 2003. p.605-628.
Assistencial Básico (PAB), uma estratégia de
12. Organização Mundial de Saúde. CID-10. Tradu-
financiamento da atenção primária à saúde6. ção Centro Colaborador da OMS para a Classifi-
cação de Doenças em Português. 5 ed. São Paulo:
Referências Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
13. Secretaria da Saúde do Estado (CE) Manual de
1. Almeida Filho N, Rouquayrol MZ. Elementos vigilância epidemiológica hospitalar. Fortale-
de metodologia epidemiológica. . In: Rouquayrol za; 2005.
MZ, Almeida Filho N. Epidemiologia & saúde. 14. Rouquayrol MZ, Façanha MC, Veras FMF. Aspec-
Rio de Janeiro: Medsi. 1999. p. 149-177. tos epidemiológicos das doenças transmissíveis. In:
2. Barbosa, LMM. Glossário de epidemiologia & Rouquayrol MZ, Almeida Filho N. Epidemiologia
saúde. In: Rouquayrol MZ, Almeida Filho N. & saúde. Rio de Janeiro: Medsi. 2003. p. 229-288.
Epidemiologia & saúde. Rio de Janeiro: Medsi. 15. Rouquayrol MZ, Goldbaum M. Epidemiologia,
1999. 707p. p. 649-686 história natural e prevenção de doenças. In: Rou-
3. Conselho Federal de Medicina. Resolução quayrol MZ, Almeida Filho N. Epidemiologia &
n°1601/00 de 9 de agosto de 2000. Dispõe sobre saúde. Rio de Janeiro: Medsi. 2003. p. 17-35.
a responsabilidade médica no fornecimento da 16. Tauil PL. Controle de agravos à saúde: consis-
declaração de óbito. Brasília, DF: Diário Oficial tência entre objetivos e medidas preventivas.
União; 2000. In:Informe epidemiológico do SUS. Brasília:
4. Kerr Pontes LG, Rouquayrol MZ. Medida da Fundação Nacional de Saúde, 1998. 104 p.
saúde coletiva. In: Rouquayrol MZ. Almeida Fi- 17. Teixeira MG, Risi Jr JB, Costa MCN. Vigilância
lho N. Epidemiologia & saúde. Rio de Janeiro: epidemiológica. In: Rouquayrol M. Z, Almeida
Medsi. 2003. p. 37-82. Filho N. Epidemiologia & saúde. Rio de Janeiro:
5. Laurenti R, Mello Jorge MHP. O atestado de óbi- Medsi; 2003. p. 313-356.
to. 5. ed. São Paulo: Centro da OMS para classifi- 18. Universidade Federal de São Paulo. Escola Pau-
cação de doenças em português. 200. 97 p. (Série lista de Medicina. Níveis de biossegurança e
Divulgação nº 1). processamentos laboratoriais. [Acesso em 1º nov.
6. Mendes EV. A atenção primária à saúde no SUS. 2006]. Disponível em: http://www.unifesp.br/rei-
Fortaleza. Escola de Saúde Pública do Ceará, toria/orgaos/comissoes/cibio/nivel.htm.
2002. 92p.
7. Ministério da Saúde (BR). Fundação Nacional de
Saúde. Manual de instruções para o preenchimento
da declaração de óbito. 3ª ed. Brasília; 2001. 44 p.
8. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilân-
cia em Saúde. Curso Básico de Vigilância Epide-
miológica. 2005c. [Acesso em 30 out. 2006]. Dis-
ponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/svs/
default.cfm.
9. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilân-
cia em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica.
6ª ed. Brasília, DF; 2005a. 815p.

186
Capítulo 17
Vigilância Sanitária e Ambiental de protocolos existentes sobre as ações de ins-
diana carMeM alMeida nunes de oliveira peção sanitária no Brasil e, particularmente, no
ana auGusta Monteiro cavalcante estado do Ceará.

Conceitos

Conceito e Bases Legais da Vigilância Sanitária


Introdução
Vigilância Sanitária é um conjunto de

O propósito deste capítulo é auxiliar profis-


sionais médicos, participantes das equipes
da Estratégia Saúde da Família, a se familiariza-
ações no âmbito das práticas de saúde coleti-
va, assentada em várias áreas do conhecimento
técnico-científico e em bases jurídicas que lhe
rem com as áreas de atuação e com o importante confere o poder de normatização, educação, ava-
processo de vigilância sanitária, a fim de parti- liação e intervenção, capazes de eliminar, dimi-
ciparem no cumprimento destas ações e, dispo- nuir ou prevenir riscos à saúde, visando garantir
nibilizar conhecimentos, visando subsidiar os a qualidade do processo de produção, distribui-
mesmos sobre o conjunto de ações que constitui ção e consumo de bens e serviços relacionados
a Vigilância Sanitária - VISA. à saúde, e das condições de vida e trabalho dos
Neste capítulo, o processo de vigilância cidadãos, abrangendo:
contínua e segura, por meio de informações re- • O controle de bens de consumo que, direta
sultantes de investigação sobre as ações, progra- ou indiretamente, se relacionem com a saúde,
mas e estratégias de Vigilância Sanitária, estará compreendidas todas as etapas e processos da
disponível e contemplará as ações de inspeção produção ao consumo;
sanitária, disponibilizando referencial biblio- • O controle da prestação de serviços que se rela-
gráfico, conceitos, programas desenvolvidos e cionam direta ou indiretamente com a saúde.
estratégias. Também visa contribuir com a práti-
Saiba mais!
ca preventiva e a promoção da saúde individual
São bens e produtos submetidos ao controle e fiscali-
e coletiva, auxiliando na tomada de decisões dos zação sanitária:
profissionais médicos frente às demandas coti- • Medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas
e demais insumos, processos e tecnologias;
dianas de suas ações no âmbito de sua atuação • Alimentos, inclusive bebidas, águas envasadas, seus
na família e na comunidade. insumos, suas embalagens, aditivos alimentares, limites
Este capítulo contempla as áreas de Vigi- de contaminantes orgânicos, resíduos de agrotóxicos e
de medicamentos veterinários;
lância Sanitária e Vigilância Ambiental e é sub- • Cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes;
sidiado pelo conhecimento técnico-científico • Saneantes destinados à higienização, desinfecção ou
desinfestação em ambientes domiciliares, hospitalares e
atualizado, pesquisa bibliográfica, articulações coletivos;
com todas as áreas de atuação da VISA, além de • Conjuntos (kits), reagentes e insumos destinados a
direcionar os caminhos para o aprofundamento diagnóstico;
• Equipamentos e materiais médico-hospitalares, odon-
dos profissionais para consultar as normas, le- tológicos, hemoterápicos e de diagnóstico laboratorial e
gislações, publicações e procedimentos básicos por imagem;

187
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

• Imunobiológicos e suas substâncias ativas, sangue e ter acesso ao conjunto da legislação de vigilância
hemoderivados; sanitária, é um instrumento de fundamental im-
• Órgãos, tecidos humanos e veterinários para uso em
transplantes ou reconstituições;
portância para todas as organizações do Sistema
• Radioisótopos para uso diagnóstico in vivo, radiofár- Nacional de Vigilância Sanitária, para o setor
macos e produtos radioativos utilizados em diagnóstico regulado e para a sociedade.
e terapia;
• Cigarros, cigarrilhas, charutos e qualquer outro produ-
to fumígero, derivado ou não do tabaco; Saiba mais!
• Quaisquer produtos que envolvam a possibilidade de Consulte a legislação em vigilância sanitária – VISA-
risco à saúde, obtidos por engenharia genética, por outro LEGIS
procedimento ou ainda, submetidos a fontes de radiação. Base de dados com legislação relacionada à Vigilância
Sanitária nos âmbitos federal, estadual e municipal, ali-
São serviços submetidos ao controle e fiscalização sa- mentada e atualizada pela ANVISA e pelas Vigilâncias
nitária: Sanitárias Estaduais e Municipais.
• Aqueles serviços voltados para a atenção ambulatorial, Disponível nos sites:
sejam de rotina ou de emergência, os realizados em re- www.anvisa.gov.br/e-legis
gime de internação, os serviços de apoio diagnóstico e www.saude.ce.gov.br/nuvis
terapêutico, bem como aqueles que impliquem a incor-
poração de novas tecnologias;
• As instalações físicas, equipamentos, tecnologias,
ambientes, inclusive os do trabalho, e procedimen- Sistema de Vigilância Sanitária
tos envolvidos em todas as fases de seus processos de
produção dos bens e produtos submetidos ao controle
e fiscalização sanitária, incluindo a destinação dos res- Compreende o conjunto de instituições,
pectivos resíduos.
políticas e métodos que formam a estrutura
organizacional-administrativa da área governa-
Em nível estadual estão os órgãos de co- mental de Vigilância Sanitária.
ordenação estadual, suas regionais e os municí- A Vigilância Sanitária é uma atividade
pios, que seguem as estruturas de organização multidisciplinar que regulamenta e controla
existentes que variam nas diferentes unidades a fabricação, produção, transporte, armazena-
da federação. gem, distribuição e comercialização de pro-
Dentro dos preceitos do SUS, que privi- dutos e a prestação de serviços de interesse da
legia o município como o espaço de ação das saúde pública.
práticas de saúde, a Vigilância Sanitária deve ser Instrumentos legais, como notificações e
descentralizada e municipalizada. multas, são usados para punir e reprimir práticas
Municipalizar as ações de Vigilância Sani- que coloquem em risco a saúde dos cidadãos. As
tária significa adotar uma política específica com ações de vigilância sanitária são importantes na
a finalidade de operacionalizá-la recorrendo-se a medida em que fiscalizam e protegem a popula-
novas bases de financiamento, criação de equi- ção das situações de risco extremo a que a saúde
pes e demais infra-estruturas, visando o controle individual, coletiva e ambiental são expostas, in-
dos riscos sanitários. cluídos também, usuários dos sistemas de saúde
Como prática de saúde do Sistema Único público e privado, garantindo a qualidade dos
de Saúde – SUS, e por referência ao preceito ins- produtos e serviços que são disponibilizados à
titucional de equidade, isto é, princípio de igual- população em geral.
dade, a Vigilância Sanitária insere-se no espaço Fica a cargo do município, de acordo com
social que deverá abranger uma atuação sobre o as suas possibilidades financeiras, recursos hu-
que é público e privado, indistintamente, na de- manos e materiais, e segundo o quadro epide-
fesa do cidadão e da população em geral. miológico-sanitário existente, definir as ações
A base da atuação da Vigilância Sanitária que ele vai implementar e as que serão compar-
é a norma legal que fundamenta cada ato. Assim, tilhadas ou complementadas pelo Estado.

188
Capítulo 17 • Vigilância Sanitária e Ambiental

As ações de VISA compreendem três níveis, Com o processo de descentralização as


segundo a complexidade do risco envolvido: ações de VISA passaram para a competência e
• Alta comple�idade; execução da esfera municipal. Entretanto, como
• Média comple�idade; esse processo demanda certo tempo e, para que
• �ai�a comple�idade; essas ações não sofram descontinuidade, as ativi-
Estes níveis podem ser modificados frente dades são transferidas gradativamente e de forma
ao Pacto de Gestão. integrada com o NUVIS - Núcleo de Vigilância
Sanitária, para as Secretarias Municipais de Saú-
de, permanecendo, as de alta e média complexi-
Responsabilidade por Níveis Hierárquicos dade sob inteira e exclusiva responsabilidade do
NUVIS da Secretaria de Saúde do Ceará.
• Nível Municipal: Coordenar, programar e
executar procedimentos básicos de Vigilância Saiba mais!
Sanitária. Para saber mais sobre a Vigilância Sanitária, acesse
os sites:
- Nível Municipal em Gestão Plena de Aten- www.saude.ce.gov.br
ção Básica: Coordenar, programar e exe- www.anvisa.gov.br
www.bireme.br
cutar procedimentos básicos de Vigilância
Sanitária.
- Nível Municipal em Gestão Plena do Sis-
Objetivo da Vigilância Sanitária
tema Municipal: Coordenar, programar e
executar procedimentos básicos de Vigilân-
O objetivo da Vigilância Sanitária é pro-
cia Sanitária e pactuar ações de alta com-
teger a saúde e evitar a ocorrência de agravos à
plexidade e o Programa Desconcentrado de
saúde através do acompanhamento do cumpri-
Ações de Vigilância Sanitária.
mento de padrões adequados aos grupos de fa-
• Nível Estadual: Coordenar o Sistema Esta-
tores de risco. As ações de vigilância sanitária
dual de Vigilância Sanitária, executar ações
contemplam todas as ações de saúde, desde a
e implementar serviços de Vigilância Sanitá-
promoção, passando pela proteção, recuperação
ria, em caráter complementar e prestar apoio
e reabilitação da saúde:
técnico-financeiro aos municípios.
• Ações de normatização e controle da presta-
- Nível Regional: Coordenar, assessorar,
ção de serviços e atividades que direta ou in-
supervisionar e executar, transitória e com-
diretamente se relacionam com a saúde.
plementarmente, procedimentos básicos
• Ações de normatização e controle da indus-
de Vigilância Sanitária.
trialização, transporte, comercialização e uso
- Nível Central: Coordenar, assessorar, su-
de produtos de interesse sanitário.
pervisionar e executar, transitória e com-
• Ações de normatização e controle sobre o
plementarmente, ações de Vigilância Sani-
meio ambiente e as condições de trabalho.
tária de alta complexidade e do Programa
• Ações da gestão da informação e do conheci-
Desconcentrado de Ações de Vigilância
mento.
Sanitária.
• Nível Federal: Coordenar o Sistema Nacio-
nal de Vigilância Sanitária, prestar coopera-
Áreas de Atuação da Vigilância Sanitária no Ceará
ção técnica e financeira aos Estados e Mu-
nicípios e, executar ações de sua exclusiva
• Vigilância dos Produtos: Refere-se ao con-
competência.
trole e fiscalização de bens de consumo, que

189
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

se relacionam direta ou indiretamente com a • Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân-


saúde, considerando todas as etapas e proces- cia dos Riscos Sanitários dos Hospitais de
sos que envolvem a produção, armazenamen- Pequeno Porte.
to, circulação, transporte, comercialização e • Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân-
consumo, incluindo matérias-primas, coad- cia dos Riscos Sanitários dos Hospitais “Saú-
juvantes de tecnologias e equipamentos. de Mais Perto de Você”.
• Projeto de Implantação da Gestão de Risco
Atua ainda sobre o controle e fiscalização em Serviços de Saúde.
dos processos referentes ao registro, produção, • Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân-
distribuição e comercialização dos produtos cia dos Riscos Sanitários dos Hospitais Priva-
saneantes utilizados no tratamento da água, dos com UTIs.
higienização e desinfecção, a fim de garantir a • Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân-
identidade, eficácia, qualidade e segurança apro- cia dos Riscos Sanitários dos Hospitais Pú-
priadas para o uso pretendido e requerido pelo blicos ou Privados com Serviços de Pediatria,
registro. Obstetrícia, Urgência e Emergência.
A atuação da Vigilância dos Produtos • Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân-
ocorre por meio da implementação e desenvol- cia dos Riscos Sanitários dos Hospitais Pri-
vimento de diversos programas: vados com Serviços de Psiquiatria.
• Programa de Ações Desconcentradas. • Programa de Descentralização de Serviços de
• Programa de Controle de Qualidade de Saúde.
Produtos. • Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân-
• Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân- cia dos Riscos Sanitários das Unidades As-
cia dos Riscos Sanitário de Produtos. sistenciais da Rede da SESA – Secretaria da
• Programa de Avaliação da Gestão e dos Servi- Saúde.
ços de VISA. • Programa de Regulação, Avaliação e Vigilân-
• Programa de Cooperação Técnica/Assessoria/ cia dos Riscos Sanitários nos Serviços de Alta
Articulação. Complexidade.
• Projeto de Organização das Câmaras Técni- • Programa Nacional de Avaliação de Serviços
cas Setoriais e Controle Social. de Saúde – PNASS.
• Projeto de Vigilância dos Riscos Adversos e
Queixas Técnicas.
Vigilância de Meio Ambiente e Saúde do
Trabalhador
Vigilância de Serviços de Saúde
Age sobre o controle e fiscalização do
Refere-se ao controle e fiscalização dos meio ambiente e ambiente de trabalho bus-
serviços de saúde, visando controlar o funciona- cando evitar os riscos ao ambiente e à saúde de
mento dos serviços, a prestação de serviços, os profissionais expostos e população, decorrentes
riscos físicos, químicos, biológicos e iatrogenias, da produção, transporte, guarda e utilização de
e assegurar o exercício de boas práticas na aten- substâncias, produtos e equipamentos.
ção à saúde dos pacientes. A atuação da Vigilância de Meio Ambien-
A atuação da Vigilância de Serviços de te e Saúde do Trabalhador ocorre por meio da
Saúde ocorre por meio da implementação e de- implementação e desenvolvimento de diversas
senvolvimento de diversos programas: atividades, programas e um projeto:

190
Capítulo 17 • Vigilância Sanitária e Ambiental

• Projeto: O Desafio da Ação Intersetorial para Os alimentos, assim como seu processo de
a Saúde, o Trabalho e o Ambiente: Construin- produção, são submetidos ao controle e fiscali-
do Rede e Tecendo Nós. zação referentes ao registro, produção, distribui-
• Programa de Vigilância da Qualidade da ção e comercialização, incluindo as bebidas, a
Água de Consumo Humano. fim de garantir a identidade, eficácia, qualidade
• Atividade de Vigilância Ambiental para Me- e segurança apropriadas para o uso pretendido,
lioidose. necessários ao sustento e nutrição humana.
• Programa de Vigilância de Solos Contaminados.
• Programa de Fiscalização dos Ambientes do Saiba mais!
Trabalho. Resolução – RDC Nº 216, de 15 de Setembro de 2004
Dispõe sobre Regulamento Técnico de Boas práticas
para Serviços de Alimentação.

Resolução – RDC Nº 218, de 29 de Julho de 2005


Vigilância do Controle da Infecção Hospitalar Dispõe sobre Regulamento Técnico de Procedimentos
Higiênico-Sanitários para Manipulação de Alimentos e
A sua atuação é desenvolvida principal- Bebidas Preparados com Vegetais.

mente sobre o controle de infecções hospitala- Fonte: ANVISA/MS


res, com a finalidade primordial de minimizar a
incidência e a gravidade das infecções, concen- • Medicamentos e Entorpecentes: As pre-
trando suas atividades na melhoria da atuação parações farmacêuticas são drogas dirigidas
das comissões de infecção hospitalares atuantes para uso humano ou veterinário, apresenta-
nas unidades de saúde do estado do Ceará. das em sua formulação final. Estão incluídos
A atuação do Programa de Controle da aqui os materiais usados na preparação e/ou
Infecção Hospitalar ocorre por meio da imple- na formulação final.
mentação e desenvolvimento de atividade de in-
vestigação e um programa de controle: Tanto as preparações como as substâncias
• Atividade de Investigação de Surtos farmacêuticas utilizadas para manipulação es-
• Programa para o Uso Racional de Antimicro- tão sujeitas ao controle das ações de inspeção
bianos sanitária. O controle e fiscalização do uso de
drogas e entorpecentes são regulamentados por
meio de acordos internacionais e sistemas insti-
As Estratégias e as Intervenções tucionais. Isto inclui regulamentação referente
à fabricação, dispensação, aprovação e marke-
ting de drogas.
Vigilância dos Produtos O processo de manipulação de medica-
mentos com qualidade se constitui exigência da
• Alimentos e Bebidas: Considera-se alimento ANVISA e envolve a implantação das Boas Prá-
todo o material nutritivo introduzido em um ticas de Manipulação e o Controle de Qualidade.
organismo e que preenche as necessidades de No Ceará, as ações são desenvolvidas pelo NU-
manutenção, crescimento, trabalho e restau- VIS seguindo a RDC 33/00 para manutenção da
ração de tecidos e as bebidas são líquidos que integridade do medicamento e proteção dos usu-
são apropriados para beber. ários. Controle de qualidade são procedimentos
A produção de alimentos engloba um con- para verificar a conformidade das preparações,
junto de operações e processos efetuados para principalmente sobre o controle microbiológico
obtenção de um alimento acabado. e teor de princípio ativo, essenciais para o de-

191
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

sempenho adequado relacionado à segurança, Saiba mais!


eficácia e aceitabilidade. O que notificar para ajudar a VISA?
• Reações Adversas a Medicamentos (RAM): Qual-
quer efeito nocivo, não internacional e indesejado, de
Atenção! um medicamento, observado em doses terapêuticas in-
São considerados medicamentos e entorpecentes: dividuais, em seres humanos para fins de tratamento,
•Medicamentos homeopáticos profilaxia ou diagnóstico
•Medicamentos de referência • Queixa Técnica de Medicamento: Alterações físico-
•Medicamentos genéricos químicas, adulterações, falsificações, problemas de rotu-
•Medicamentos fitoterápicos lagem e inefetividade terapêutica.
•Medicamentos a base de ervas
•Medicamentos prescritos ou não prescritos Fonte: Manual de Vigilância Epidemiológica Hospitalar, 2005.
•Medicamentos à base de vitaminas e minerais
•Drogas lícitas
•Psicotrópicos • Hemovigilância: Consiste na identificação,
•Entorpecentes análise e prevenção dos efeitos indesejáveis,
•Insumos farmacêuticos
imediatos e tardios, advindos do uso de san-
gue e seus componentes.
Saiba mais!
Segurança dos Medicamentos
Um guia para detectar e notificar reações adversas a me- Saiba mais!
dicamentos. Organização Pan-Americana de Saúde / Mi- O que notificar para ajudar a VISA?
nistério da Saúde, 2005. Brasília – DF. Eventos adversos envolvendo incidentes transfusicio-
Boas Práticas de Manipulação e o Controle de Qualidade nais imediatos do receptor ocorridos durante a transfu-
www.anvisa.gov.br são ou até 24 horas.
Consulte a legislação em Vigilância Sanitária – VISA- Incidentes transfusicionais tardios do receptor ocorri-
LEGIS dos após 24 horas da transfusão
www.anvisa.gov.br/e-legis
Fonte: Manual de Vigilância Epidemiológica Hospitalar, 2005.

• Tecnovigilância: As Boas Práticas de Fabri-


Notificação de Eventos Adversos
cação e Controle constituem os requisitos que
devem ser adotados pelas empresas fabrican-
• Fármacovigilância: Segundo a definição da
tes e importadoras de produtos correlatos,
Organização Mundial da Saúde, fármacovigi-
visando garantir a qualidade do sistema de
lância compreende a ciência e as atividades
produção e fornecimento de seus produtos.
relacionadas à detecção, avaliação, compreen-
A verificação da conformidade das Boas Prá-
são dos efeitos adversos ou outros problemas
ticas de Fabricação e Controle de produtos
relacionados a medicamentos.
correlatos com os requisitos previstos na re-
gulamentação é realizada pelos inspetores da
A competência da Vigilância Sanitária do es-
vigilância sanitária.
tado do Ceará é monitorar estes eventos ad-
versos associados a medicamentos, priorita-
Saiba mais!
riamente por meio do sistema de notificação Para saber mais sobre Legislações específicas sobre
espontânea e, complementarmente, através Boas Práticas de Fabricação e Controle (Sistema de
Qualidade dos Fornecedores), acesse o site: www.an-
de métodos epidemiológicos, integrando o visa.gov.br
Programa Nacional de Fármacovigilância co- Resolução RDC Nº 56, de 06 de Abril de 2001: Dis-
ordenado pela ANVISA, com vistas a preve- põe sobre os requisitos essenciais de segurança e eficácia
aplicáveis aos produtos para saúde, referidos no Regula-
nir riscos e danos, somando esforços com as mento Técnico anexo a esta Resolução.
políticas de promoção e proteção à saúde da Resolução RDC Nº 25, de 15 de Setembro de 2001:
Dispõe sobre a importação, comercialização e doação de
população. produtos para saúde usados e recondicionados.

192
Capítulo 17 • Vigilância Sanitária e Ambiental

• Saneantes: Os saneantes são substâncias ou As ações de vigilância estendem-se ainda


preparações destinadas à higienização, desin- sobre a fiscalização e o controle das instalações,
fecção, desinfestação, desodorização e odoriza- arquitetura, projetos de interiores e exteriores,
ção de ambientes domiciliares, coletivos e/ou construção dos serviços de saúde e centros, in-
públicos, para serem utilizadas por qualquer cluindo também as instituições que não sejam
pessoa, para fins domésticos, ou para aplica- hospitais ou centros de saúde, como as escolas
ção ou manipulação por pessoas ou entidades de odontologia, escolas de medicina, ambula-
especializadas, para fins profissionais. tórios e unidades especiais de uma instalação
de saúde.
Atenção!
São classificados como saneantes:
•Produtos de limpeza em geral;
•Produtos de ação antimicrobiana; Gestão de Resíduos nas Unidades de Saúde
•Desinfetantes.
A produção de resíduos hospitalares só-
Os saneantes são submetidos às ações lidos, semi-sólidos e líquidos a partir das ativi-
de inspeção sanitária visando o controle e fis- dades médico-assistenciais tem se constituído
calização dos processos referentes ao registro, em um dos sérios problemas a ser gerenciado
produção, distribuição e comercialização dos pelas empresas prestadoras de serviços de saúde
produtos saneantes utilizados no tratamento da e, circunstancialmente, pelo Poder Público lo-
água, higienização e desinfecção, a fim de garan- cal. Parte destes produtos, pelas características
tir a identidade, eficácia, qualidade e segurança patogênicas que apresentam, requer cuidados e
apropriadas para o uso pretendido e requerido técnicas especiais em todas as fases do seu ma-
pelo registro. nuseio, a fim de evitar os efeitos nocivos de sua
decomposição, causando danos ao meio ambien-
te e à qualidade de vida da população.
Vigilância de Serviços de Saúde
Saiba mais!
Refere-se a todos os aspectos da provisão São consideradas instituições de saúde sujeitas a re-
gulamentação, fiscalização e controle da Vigilância
e distribuição de serviços de saúde a uma po- Sanitária:
pulação. •Hospitais
São consideradas instituições de saúde • �ancos de espécimes (sangue, leite, pele)
•Centros independentes de assistência à gravidez e ao
aquelas que provêem serviços médicos e de saú- parto
de a uma população e buscam realizar os proce- •Laboratórios
•Centros de controle de into�icações
dimentos e padrões previamente estabelecidos •Farmácias
por órgãos governamentais como a ANVISA e o •Consultórios médicos
Ministério da Saúde, ou outras instituições que •Consultórios odontológicos
•Instituições privadas de saúde
elaboram protocolos de condutas hospitalares • Recursos humanos em saúde
com base nos padrões sanitários vigentes. •Instituições não-governamentais (ONGs) de assistên-
cia à saúde de grupos populacionais
A fiscalização e o controle das instalações
dos serviços de saúde buscam avaliar se os pro- Para saber mais!
cedimentos e padrões previamente estabelecidos Resolução RDC nº 306, de 07 de dezembro de 2004. Dis-
põe sobre o Regulamento Técnico para o Gerenciamento
e os protocolos de condutas hospitalares estão de Resíduos de Serviços de Saúde, www.anvisa.gov.br
sendo praticados, visando o aprimoramento
operacional e a proteção da saúde do usuário.

193
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Vigilância do Meio Ambiente e Saúde do Dicas!


Trabalhador Como Proceder nas Orientações Básicas para Limpe-
za de Reservatórios (Cisternas e Caixas d’água)
1. Inicialmente, feche o registro geral da caixa ou amarre
Meio Ambiente a boca, impedindo a entrada de água no reservatório;
2. Utilize normalmente a água armazenada nas ativida-
des de rotina até que o reservatório fique quase vazio;
Refere-se à vigilância e ao controle de to- 3. Tampe a boca do cano de distribuição de água para o
dos os processos, influências e fatores físicos, interior do reservatório com um pedaço de madeira (ba-
toque) ou panos limpos, para evitar entrada de sujeira na
químicos e biológicos que exercem ou podem
tubulação;
exercer, direta ou indiretamente, efeito signifi- 4. Para facilitar o acesso à caixa d’água use uma escada,
cativo sobre a saúde e bem-estar físico e mental firmando-a bem no chão, observando as medidas de se-
gurança necessárias;
do homem e sua sociedade. 5. Atenção aos fios de energia por perto para evitar cho-
ques elétricos;
A área de Vigilância do Meio Ambiente 6. A água que resta no reservatório será usada na limpeza
do mesmo;
desenvolve diversos projetos que têm a finali- 7. Escove as paredes, tampa e o fundo do reservatório
dade de, na prática, auxiliar a população a ter utilizando somente escovas macias, panos limpos ou es-
ponjas;
acesso a serviços e produtos de qualidade. Den- 8. Enxágüe as paredes e o piso, deixando a água escorrer
tre estes projetos se encontra o Construindo até a tubulação de descarga;
Redes e Tecendo Nós* que ensina, por meio 9. Abra o registro e retire a água e qualquer outro resí-
duo acumulado com pá e panos úmidos, deixando a caixa
de medidas simples e eficazes, como obter água limpa;
com qualidade, visando a promoção e proteção 10. Concluído o processo de lavagem.
da saúde humana.
A vigilância ambiental refere-se ao con- Dicas!
Processo de Desinfecção da Água
trole de todos os processos, influências e fatores Recomenda-se a utilização de solução de hipoclorito de
físicos, químicos e biológicos que exercem ou sódio (água sanitária), uma vez que esta se apresenta na
podem exercer, direta ou indiretamente, efeito forma líquida e se encontra comercialmente disponível
em embalagens de 1 litro (1L), o que facilita o manuseio
significativo sobre a saúde e bem-estar físico e e a medição da dosagem para preparação da solução de-
mental do homem e sua sociedade. Com esta pre- sinfetante.
missa, atua também no monitoramento da água,
Quantidade de hipoclorito de sódio para promover a
solo, ar, controle de pragas e gerenciamento de desinfecção da água
resíduos, por meio de medidas rotineiras de ín- - Para cada litro d´água utilize 1 colher de sopa de hi-
poclorito;
dices relativos à qualidade do meio ambiente, - Aguarde pelo menos uma hora e então utilize a água.
seu registro, reunião e interpretação.

As ações de vigilância ambiental abran- Saúde do Trabalhador


gem as muitas áreas, podendo-se citar:
- Programa de Vigilância da Qualidade A Vigilância em Saúde do Trabalhador,
da Água de Consumo Humano. enquanto campo de atuação distingue-se da vigi-
- Vigilância Ambiental para Melioidose. lância em saúde em geral e de outras disciplinas
- Vigilância de Solos Contaminados. no campo das relações entre saúde e trabalho,
por delimitar, como seu objeto específico, a in-
Saiba mais! vestigação e intervenção na relação do processo
Vigilância da Água
*
Projeto Construindo Redes e Tecendo Nós de trabalho com a saúde.
Disponível no site: www.saude.ce.gov.br/nuvis Por sua vez, a saúde dos trabalhadores
constitui um dos objetos integradores das ações

194
Capítulo 17 • Vigilância Sanitária e Ambiental

de saúde pública por seu potencial articulador Alvará Sanitário


das ações de vigilância sanitária, de vigilância
epidemiológica e de serviços de saúde, as três Também é da competência e responsabili-
grandes áreas de atuação do setor saúde. dade da Vigilância Sanitária a licença, autoriza-
As ações de vigilância em saúde do traba- ção e registro dos estabelecimentos ou empresas
lhador abrangem a vigilância dos riscos à saúde que comercializam medicamentos, água, ali-
do trabalhador e, visando este controle, desen- mentos, transportadoras de medicamentos, água
volve o Programa de Fiscalização dos Ambien- e alimentos, terapia nutricional, cosméticos, far-
tes do Trabalho. O controle e a fiscalização do mácias de manipulação, produtos de saúde, pro-
meio ambiente e ambiente de trabalho buscam dutos saneantes, dentre outros.
evitar os riscos ao ambiente e à saúde, decorren- O Alvará Sanitário é o documento de
tes da produção, transporte, guarda e utilização autorização de funcionamento ou operação de
de substâncias, produtos e equipamentos, dos serviço, prestada pela autoridade sanitária lo-
profissionais expostos e da população. cal, também chamada de licença ou permissão
sanitária.
Para se obter o Alvará Sanitário deve-se
Vigilância do Controle da Infecção iniciar o processo de habilitação. A habilitação
Hospitalar é um procedimento executado pela autoridade
sanitária jurisdicional que autoriza o funciona-
O Programa de Vigilância e Controle de mento de um estabelecimento, sob condições
Infecções Hospitalares (PCIH), objetiva princi- estabelecidas em leis e regulamentos. Normal-
palmente minimizar a incidência e a gravidade mente é realizado antes do início do funciona-
das infecções hospitalares. No ano de 2005 o pro- mento do estabelecimento, definindo as con-
grama concentrou suas atividades na melhoria da dições do espaço físico, de recursos humanos e
atuação das comissões de infecção hospitalares equipamentos do estabelecimento em questão. É
em 184 unidades de saúde do estado do Ceará. formalizado através de documento de autoriza-
ção sanitária: alvará de funcionamento ou alvará
Saiba mais! sanitário, o mesmo que licença.
O Programa de Avaliação e de Vigilância das Infec-
ções Hospitalares trabalha rotineiramente as seguin-
tes atividades Saiba mais!
- Inspeções periódicas às Instituições de Saúde do Esta- Alvará Sanitário
do, com aplicação de roteiro para avaliação do cumpri-
mento das ações de controle das infecções; Como obter informações, registros, formulários, guias
- Treinamento dos PS integrantes das comissões de con- e endereços?
trole de Infecção das unidades de saúde do interior e ca- Informações disponíveis:
pital do Estado; SESA – Secretaria de Saúde do Estado do Ceará
- Incentivo para implantação de novas comissões e reati- Núcleo de Vigilância Sanitária
vação das CCIHs já existentes; Av. Almirante Barroso, 600
- Elaboração de pareceres e relatórios frente a situações Praia de Iracema
vivenciadas na prática do controle das infecções; 60.060-440
- Participação, com os demais setores envolvidos, na ela- Fortaleza/CE
boração de programas de qualidade, tratamento de resí- Fone: (85) 3101 5286 / 5287
duos e controle de contaminação ambiental; www.saude.ce.gov.br/nuvis
- Elaboração de materiais educativos para serem distri-
buídos nas visitas e treinamento em serviço; SER – Secretarias Executivas Regionais
- Assessoria as Unidades de Saúde do Estado e Municípios; Município de Fortaleza/CE
- Curso Básico em Controle de Infecção Hospitalar em
parceria com a Escola de Saúde Pública (ESP), para os Secretarias Municipais de Saúde
PS do interior do Estado.

195
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Outros Avanços envasadas. Esta é uma experiência pioneira, com


resultados positivos no processo democrático de
Uma nova proposta de Vigilância Sani- articulação.
tária tem-se instalado neste início de século no A Agência Nacional de Vigilância Sani-
estado do Ceará, principalmente após a 1ª Con- tária criou, em 2001, um instrumento de gestão
ferência Nacional de Vigilância Sanitária, ocor- denominado Termo de Ajuste e Metas – TAM,
rida em novembro de 2001. Um novo marco, o que possibilitou o repasse para os estados e mu-
Ceará optou por realizar pré-conferências nas nicípios de recursos financeiros fundo a fundo,
vinte e uma (21) Células Regionais de Saúde, regular, mensal e automático. Esta estratégia de
na expectativa de colocar a Vigilância Sanitária financiamento tem proporcionado à Vigilância
mais uma vez em evidência e, poder aproveitar Sanitária Estadual, investir na organização do
o momento para conseguir uma melhor resposta serviço com relativa autonomia, o que possibi-
no processo de descentralização. litou a criação de ambientes de trabalhos mais
A 1ª Conferência serviu para colocar em estruturados e, inclusive, contratação de profis-
discussão as questões de vigilância sanitária e, se sionais para ampliação do seu quadro funcional,
não as resolveu, propiciou uma reflexão sobre o tanto em número como em especialidades.
papel das vigilâncias sanitárias no contexto da Tem-se investido, de forma permanente,
vigilância da saúde e da implementação do pró- na capacitação, tendo sido realizados quatro cur-
prio Sistema Único de Saúde, nos municípios. sos de especialização e trinta básicos em vigilân-
Atualmente no estado do Ceará quarenta e oito cia sanitária, através do convênio com a Escola
municípios estão habilitados no Sistema Único de Saúde Pública do Estado, visando formar pro-
de Saúde em Gestão Plena do Sistema Municipal fissionais que possam atuar nos municípios, com
e, cento e trinta e seis em Gestão Plena da Aten- competência técnica e maior poder resolutivo.
ção Básica Ampliada. Todos os municípios fazem
algumas ações básicas de Vigilância Sanitária,
além de terem acordado na Comissão Intergesto- Considerações Finais
res Bipartite a Programação Pactuada Integrada.
Com a estratégia de trabalhar a interse- A Estratégia Saúde da Família, como um
torialidade com as Células Regionais de Saúde programa estruturante dos sistemas municipais
o Núcleo de Vigilância Sanitária Estadual tem de saúde, tem provocado um importante movi-
conseguido se relacionar com os municípios, po- mento com o intuito de reordenar o modelo de
dendo compartilhar o processo da implementa- atenção no SUS. Na busca de maior racionalida-
ção das ações de vigilância sanitária nesse nível de na utilização dos demais níveis assistenciais,
de governo. tem produzido resultados positivos nos princi-
Objetivando-se o estabelecimento de par- pais indicadores de saúde das populações assis-
ceria com o setor regulador, o Núcleo de Vigi- tidas pelas equipes saúde da família.
lância Sanitária do Estado tem trabalhado com Com base neste desempenho, que a cada
a instalação de câmaras setoriais, que tratam de ano vem se consolidando, a Estratégia de Saúde
equacionar os problemas específicos e acordar da Família é um projeto dinamizador do SUS,
termos de ajustes de condutas, para melhoria da condicionada pela evolução histórica e organi-
qualidade dos serviços e produtos ofertados. Até zação do sistema de saúde no Brasil. Este capí-
o momento, já foram instaladas três câmaras se- tulo procurou, por meio da descrição sucinta
toriais: nas áreas de farmácia com manipulação; das ações desenvolvidas pelas áreas de atuação
cosméticos e saneantes domissanitários e águas pela Vigilância Sanitária, disponibilizar aos pro-

196
Capítulo 17 • Vigilância Sanitária e Ambiental

fissionais médicos, participantes das equipes da Organização Pan-Americana de Saúde. BIREME.


Estratégia Saúde da Família, ferramentas, com Biblioteca Virtual em Saúde. Pesquisa nas bases
as quais possam participar do importante pro- de dados. Disponível em: www.bireme.br.
cesso de trabalho da Vigilância Sanitária. Organização Pan-Americana de Saúde. BIREME
– Biblioteca Virtual em Saúde. Pesquisa nas bases
A participação destes profissionais é fun-
de dados. www.bireme.br.
damental na perspectiva de melhorar a cons-
Organização Pan-Americana de Saúde. Segurança
trução e efetivação do sistema estadual de Vigi-
de medicamentos: um guia para detectar e noti-
lância Sanitária, nos 184 municípios cearenses, ficar reações adversas a medicamentos. Brasília,
para assim, consolidar as políticas de promoção DF; 2005. 18 p.
e proteção à saúde e o próprio SUS. Sousa LV, Herculano GMRN, Oliveira DCAN,
Neste entendimento, a Vigilância Sani- Cruz SMM, Guerino SS, Castro MGGM, Monte
tária deverá, dentro da Estratégia Saúde da Fa- VG. A vigilância da qualidade da água como es-
mília, inserir-se no espaço social familiar e co- tratégia para a promoção e proteção da saúde hu-
mana. Série 2; Cartilha 1: Limpeza e Desinfecção
munitário, alcançando indistintamente todos os
de Reservatórios de Água. Saúde do Trabalhador
cidadãos, como prática de saúde e por referên-
e Meio Ambiente. Fortaleza: Secretaria da Saúde
cia ao preceito institucional do próprio SUS de do Estado Ceará. 2005.
eqüidade, igualdade e universalidade. Secretaria da Saúde do Estado (CE). Núcleo de
Vigilância Sanitária. Relatório de Gestão 2005.
Fortaleza; 2006. 33 p
Bibliografia

Memória AMF, Machado CB, Vilar DCLF, Gon-


çalves VF. Manual de vigilância epidemiológica
hospitalar. Secretaria da Saúde do Ceará. Fortaleza:
Secretaria da Saúde do Estado Ceará 2005. 84 p.
Ministério da Saúde (BR). ANVISA. Boas prá-
ticas de manipulação e o controle de qualidade.
[acesso em 13 out 2006]. Disponível em: www.
anvisa.gov.br.
Ministério da Saúde (BR). Portal do Conheci-
mento em Vigilância Sanitária. [acesso em 23 out
2006]. Disponível em:www.visa-ce.bvs.br.
Ministério da Saúde (BR). ANVISA. Resolução –
RDC Nº 216. Dispõe sobre Regulamento Técnico
de Boas Práticas para Serviços de Alimentação.
Brasília, DF; 2004.
Ministério da Saúde (BR). ANVISA. Resolução
– RDC Nº 218. Dispõe sobre Regulamento Téc-
nico de Procedimentos Higiênico-Sanitários para
Manipulação de Alimentos e Bebidas Preparados
com Vegetais. Brasília, DF; 2005.
Ministério da Saúde (BR). ANVISA. Vigilância
Sanitária. [acesso em 11 out 2006]. Disponível
em: www.saude.ce.gov.br / www.anvisa.gov.br.
Ministério da Saúde (BR). ANVISA. VISALE-
GIS. [acesso em 10 out 2006]. Disponível em:
www.anvisa.gov.br/e-legis.

197
Capítulo 18
Gestão e Para a Organização Mundial da Saúde
Economia de Saúde (OMS), a aplicação da economia da saúde tem
por objetivo quantificar, por períodos de tempo,
Maria helena liMa sousa
os recursos empregados na prestação de serviços
vera Maria câMara coêlho
isaBel thoMaz dias de saúde, sua organização e financiamento, a efi-
ciência com que se alocam e utilizam esses recur-
sos para fins sanitários, e os efeitos dos serviços
de saúde para a provisão, a cura e a reabilitação
na produtividade individual e nacional19.
Introdução

A base legal para garantir as ações e serviços


de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS)
brasileiro é constituída por: Constituição Fede-
Financiamento da Saúde

A legislação que institui o Sistema Único de


ral de 19881, Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/902, Saúde – SUS, Constituição Federal 1988 e as Leis
Lei Complementar nº 8.142/19903 e a Emenda Orgânicas da Saúde nº. 8.080/90 e nº. 8.142/901,2,3,
Constitucional nº 29/20005. As diretrizes e res- assegura as ações e serviços de saúde como direitos
ponsabilidades sanitárias sobre a Gestão e o Fi- universais, cabendo à sociedade, de forma direta
nanciamento das ações e serviços de saúde estão e indireta, financiá-las através dos Orçamentos da
definidas no Pacto pela Saúde, portaria GM União, dos Estados e dos Municípios.
nº 399/20064. As bases do financiamento do Sistema, as
A economia é um instrumento valioso responsabilidades, os critérios de distribuição de
que pode ser utilizado para tornar a gestão da recursos e os mecanismos de transferências de
saúde eficiente e eqüitativa. Em termos gerais recursos entre o nível federal e os estados e mu-
se utiliza a noção de eficiência para designar nicípios, são estabelecidas na referida legislação.
a relação existente entre os resultados obtidos
em uma atividade dada e os recursos utilizados, Leia os Artigos 31, 32 e 33 da Lei nº. 8.080/90 e os Ar-
sendo convencionalmente dividido por eco- tigos nº. 2, 3 e 4 da Lei nº. 8.142/90

nomistas em eficiência técnica, eficiência de


gestão e eficiência econômica16. Para Médici14, Na prática o financiamento do SUS, por
eficiência significa fazer mais com os mesmos quase doze anos, foi orientado por normas ope-
recursos, ou reduzir os recursos gastos para racionais editadas pelo Ministério da Saúde e
fazer a mesma coisa. Independentemente da por acordos com a área econômica do Governo
leitura que se faça, só se pode medir a eficiên- Federal, gerando um sub-financiamento públi-
cia quando se consegue ter uma idéia de duas co na saúde brasileira.
variáveis básicas: o produto do setor saúde e o Os recursos para garantir o financiamento
custo deste produto. adequado dessas ações e serviços de saúde, só fo-
Já a eqüidade garante a redução das desigual- ram parcial e transitoriamente definidos, através
dades, compreendida como tratamento igual para da Emenda Constitucional - EC nº 29/20005.
iguais (eqüidade horizontal ou igualdade) e trata- A EC nº 29/2004 define a aplicação dos
mento desigual para desiguais (eqüidade vertical). recursos dos Orçamentos da União, Estados e

199
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Municípios para área da saúde a partir de 2000 armazena e processa as informações referentes
até 2004, e estabelece que as três esferas devam aos gastos em saúde das três esferas de governo.
elevar seus gastos com ações e serviços de saúde As diretrizes para a sua operacionalização foram
de forma gradativa. definidas pelo Ministério da Saúde através da
No caso da União, ficou definido, para o Portaria GM nº 2.047/02. A questão maior, hoje,
ano de 2000, o montante empenhado em ações é a definição do que são ações e serviços de saúde
e serviços de saúde no exercício financeiro de para efeito do cálculo dos recursos aplicados de
1999, acrescido de no mínimo 5% (cinco por conformidade com a EC nº 29/2000.
cento), para os anos 2001 a 2004, o valor apurado Com o objetivo de orientar os gestores do
no ano anterior, corrigido pela variação nominal SUS, o Conselho Nacional de Saúde – CNS, atra-
do Produto Interno Bruto (PIB), assegurando a vés da Resolução nº 316/03, definiu diretrizes
correção dos recursos para saúde com base no em relação à base de cálculo para definição dos
crescimento nominal da economia. recursos mínimos a serem aplicados em saúde,
No caso dos Estados e Municípios, eles aos instrumentos de acompanhamento, fiscali-
devem destinar, no primeiro ano, pelo menos 7% zação e controle, e às ações e serviços públicos
(sete por cento) das receitas de impostos, com- em saúde consideradas elegíveis para apuração.
preendidas as transferências constitucionais, Estas diretrizes são vistas como recomendações
sendo que esse percentual aumentará anualmen- essenciais para operacionalização da Emenda,
te, em pelo menos 1/5, até atingir, em 2004, 12% que de certo modo esclarecem alguns textos que
para os estados e 15% para os municípios, como deixam dúvidas na interpretação.
o é atualmente. E determina que as três esferas No Ceará, o Tribunal de Contas dos Muni-
de governo não possam diminuir o percentual cípios, através da Instrução Normativa nº 03/01,
de aplicação dos seus recursos. Corrigindo, em dispõe sobre a orientação e fiscalização da apli-
parte, o problema de retração no aporte de re- cação dos recursos mínimos no financiamento
cursos financeiros para a saúde, em especial nos das ações e serviços públicos de saúde, para os
governos estaduais. municípios cearenses. Dentre outras, definem
A referida Emenda define a base de cálcu- as despesas com ações e serviços de saúde para
lo para efeito da apuração dos recursos gastos em efeito de apuração dos percentuais de gastos.
ações e serviços públicos em saúde pelos Estados Tramitou no Congresso Nacional o Subs-
e Municípios. titutivo do Projeto de Lei Complementar nº
01 de 2003, de autoria do Deputado Roberto
Conheça as receitas de impostos dos estados e muni- Gouveia e relatoria do Deputado Guilherme
cípios, para calcular os percentuais de vinculação dos Menezes, com o objetivo de regular o percen-
gastos com saúde, lendo a Emenda Constitucional nº
29/2000, no endereço: www.saude.gov.br tual mínimo de 10% das receitas correntes da
União para ações e serviços públicos de saúde,
Um aspecto que merece ser destacado é a e manter a mesma definição (EC nº 29) para os
fiscalização da aplicação da Emenda Constitu- Estados e Municípios, 12 e 15% respectivamen-
cional 29, de responsabilidade dos Conselhos te. Em termos monetários, tomando como base
de Saúde, das Assembléias Legislativas, das Câ- o exercício financeiro de 2002, isso representa
maras Municipais, dos Tribunais de Contas e do cerca de 34 bilhões de reais, valor superior se
Ministério Público. E para o acompanhamento adotado como base de cálculo o percentual de
dos gastos públicos com saúde, deverá ser uti- 11,5% sobre o total de receitas de impostos e
lizado o Sistema de Informações sobre Orça- contribuições descontadas as transferências
mentos Públicos em Saúde – SIOPS, que coleta, constitucionais da União (28 bilhões de reais).

200
Capítulo 18 • Gestão e Economia de Saúde

Definem ainda, o critério básico para nortear a de pela população do município fornecida pelo
distribuição dos recursos a “necessidade de saú- IBGE. Atualmente, o valor mínimo do PAB -
de” e que o rateio dos recursos deve ser definido Fixo é de R$ 15,00 (quinze reais) e o máximo é
pelas instâncias gestoras do SUS: Comissão In- de R$ 18,00 (dezoito reais) / habitante por ano.
tergestores Tripartite e Comissões Intergestores O PAB – Variável é composto pelos incenti-
Bipartite. Estabelece a delimitação do campo a vos das estratégias: Saúde da Família, Agentes Co-
que corresponde às ações e serviços públicos de munitários de Saúde, Saúde Bucal, Compensação
saúde. No tocante à fiscalização e controle da de especificidades regionais, Fator de incentivo da
aplicação dos recursos são propostas medidas Atenção Básica aos Povos Indígenas, e Incentivos
que incluem a divulgação das informações para à Saúde no Sistema Penitenciário. Esses recursos
a população. serão repassados aos municípios mediante adesão
às estratégias específicas a que se destina.
Destacam-se os incentivos da Saúde da
Financiamento da Atenção Básica de Saúde Família que são organizados em 02 (duas) moda-
lidades de financiamento. Na modalidade 1 (R$
As ações e serviços básicos de saúde são 8.100,00): são enquadradas as Equipes de Saú-
financiados com recursos federais, estaduais e de da Família cadastradas por municípios que
municipais. Os recursos federais para o custeio possuem o Índice de Desenvolvimento Humano
deste nível de atenção só podem ser gerenciados (IDH) igual ou inferior a 0,7 e população de até
pelos municípios, cujos recursos são transferidos 30 mil habitantes, exceto os municípios da Ama-
mensalmente, de forma regular e automática, do zônia Legal que é de 50 mil habitantes; ou as que
Fundo Nacional de Saúde - FNS para o Fundo estiverem implantadas em municípios que inte-
Municipal de Saúde - FMS. gram o Programa de Interiorização do Trabalho
O Pacto Pela Saúde 2006 estabelece a em Saúde (PITS); ou as que atendam à popu-
organização e a transferência dos recursos fe- lação remanescente de quilombos ou residente
derais de custeio, através de blocos de finan- em no mínimo 70 (setenta) pessoas, respeitando
ciamento, e cria 05 (cinco) blocos: Atenção o número máximo de equipes por município,
Básica, Atenção de Média e Alta Complexidade de conformidade com as normas específicas vi-
Ambulatorial e Hospitalar, Vigilância à Saúde, gentes. Na modalidade 2 (R$ 5.400,00) são en-
Assistência Farmacêutica, e Gestão do SUS. Os quadradas as equipes implantadas nos demais
recursos de cada bloco só devem ser aplicados, municípios brasileiros, que não se enquadram
exclusivamente, nas ações e serviços de saúde na modalidade 1.
relacionados ao bloco. Os incentivos dos Agentes Comunitários
de Saúde – ACS são calculados com base no nú-
Leia a Portaria GM nº399 de 22/02/2006 que divulga o mero de ACS, registrados no Sistema de Infor-
Pacto Pela Saúde 2006 mação de Atenção Básica-SIAB, multiplicado
pelo valor unitário estabelecido. É importante
O bloco da Atenção Básica é composto de destacar que este incentivo é o único que o Mi-
dois componentes; o Piso de Atenção Básica - nistério da Saúde repassa uma parcela extra, no
PAB Fixo e Piso da Atenção Básica Variável - último trimestre da cada ano.
PAB Variável. As Equipes de Saúde Bucal são financia-
O PAB - Fixo é um montante de recursos das em função da sua composição. As que dis-
destinados ao custeio da Atenção Básica, e são põem de no mínimo um cirurgião – dentista e
calculados pela multiplicação do valor per capi- um auxiliar de consultório, são enquadrados na
ta definido por portaria do Ministério da Saú-

201
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

modalidade 1 (R$ 1.700,00), e na modalidade 2 cas demográficas, as condições socioeconômicas


(R$ 2.200,00) as que possuem um cirurgião – e o perfil epidemiológico de uma dada região.
dentista, um auxiliar de consultório e mais um Dentre as características demográficas de-
técnico de higiene dental. Estes incentivos serão ve-se observar a quantidade de pessoas residen-
acrescidos de 50% quando o município se en- tes em uma dada região, sexo e idade. Ademais,
quadra nas normas específicas sobre o assunto. as condições socioeconômicas como educação,
renda, água potável, saneamento básico, são ex-
Leia as Portarias GM nº 648 de 28/03/2006 que apro- ternalidades que podem influenciar a demanda
va a Política Nacional de Atenção Básica; nº 650 de por serviços de saúde da população de uma dada
28/03/2006 que define o financiamento do PAB FIXO
e PAB Variável; nº 2.133 de 11/09/2006 que fixa o valor região. Além disso, o perfil epidemiológico da
do PAB Fixo. região, que mostra como as pessoas estão ado-
ecendo e morrendo, pode ser trabalhado pelas
políticas de saúde, conjuntamente com os ou-
Alocação dos Recursos: Que critérios devem ser tros indicadores, utilizando o recurso estatísti-
observados para se alocar recursos para a Saúde? co, para promover uma fórmula que contribua
para reduzir as desigualdades em saúde. Todos
Alocar recursos implica escolher entre esses fatores devem ser avaliados de conformi-
prioridades, portanto, é o processo pelo qual os dade com o objeto em estudo, ou seja, ao se alo-
recursos são distribuídos entre usos alternativos. car recursos para a atenção primária da saúde, os
Esta distribuição deve ser feita segundo critérios indicadores propostos devem ter uma correlação
que melhor possam atingir um maior contin- direta ou indireta com este nível de atenção.
gente populacional, segundo as necessidades de A Inglaterra é a pioneira na tentativa de
saúde identificadas. Portanto, toda alocação de distribuir os recursos utilizando uma proxy de
recursos corresponde a um processo de decisão necessidade, através de uma fórmula conhecida
onde se devem alocar os recursos disponíveis. como RAWP (Resourse Allocation Working Part)
Carr-Hill7 recomenda que sejam trata- desde 1976. De lá para cá o método sofreu mo-
das, de modo especial, as seguintes questões: dificações mas considerando o mesmo princípio
primeiro que seja reconhecido que existe um da eqüidade e é exemplo para todos os países que
problema de (des)igualdade; segundo, que seja querem incorporar métodos eqüitativos na dis-
desenvolvida uma metodologia adequada para tribuição dos recursos para a saúde.
avaliar as desigualdades em saúde; terceiro, que No Brasil, esta questão entrou em pau-
os recursos sejam alocados eqüitativamente e, ta apenas nos últimos anos, o que implica que
por último, que sejam realizadas intervenções há um longo caminho a percorrer para que os
de promoção de saúde para resolver as desigual- recursos da saúde sejam distribuídos com eqüi-
dades em saúde. dade, diminuindo assim as desigualdades em
Os critérios utilizados comumente por saúde. Entretanto, para que isto aconteça é ne-
gestores da saúde para alocar recursos são os cri- cessário que se amplie a discussão entre gestores
térios tradicionais, ou não-explícitos, geralmente e técnicos da saúde, num mix de sensibilização
fundamentados no padrão histórico dos gastos. para a problemática e conhecimento de métodos
Esta modalidade privilegia a rede instalada e o que possam contribuir para uma etapa de mais
quadro de pessoal disponível8. Esta modalidade critério técnico e menos político no modo de
aprofunda as desigualdades em saúde existentes alocar recursos.
na medida em que não levam em consideração Dentre alguns estudos realizados no Ce-
critérios de necessidades como: as característi- ará para alocar recursos da saúde, consta uma

202
Capítulo 18 • Gestão e Economia de Saúde

proposta de alocação de recursos para a aten- que faz o elo de ligação entre as ações de planeja-
ção primária com recursos do Tesouro do Es- mento e as funções executivas da organização.
tado (TE). Atualmente a Secretaria de Saúde Para Premchand18, nos anos mais recen-
contribui no financiamento da atenção básica, tes, alguns países têm superado as emergências
principalmente por meio do pagamento dos fiscais da década passada. Entretanto, têm man-
Agentes Comunitários de Saúde nos municí- tido a preocupação por um uso mais eficiente
pios cearenses, exceto Fortaleza. Reconheci- dos recursos públicos e em conter a expansão
damente, esta não é a maneira mais adequada do Estado. Em tais circunstâncias, o orçamento
para distribuir recursos. tem sido visto como um exercício compreensi-
A proposta desenvolvida por Dias & Sou- vo de alocação de recursos e de gestão pública,
9
sa para esses municípios propõe que 50% dos enfatizando-se a análise de custos e desempenho
recursos do TE sejam distribuídos de acordo de programas governamentais.
com o número de ACS nos municípios e que os Como orçamento integrado ao orçamen-
outros 50% sejam alocados segundo um índice to público, o orçamento da saúde deve estar
de Atenção Primária (IAP). Este índice foi de- enquadrado dentro dos princípios que o regem
senvolvido através da técnica multivariada de para atuar como instrumento de controle das
análise fatorial, pelo método de componentes atividades financeiras do governo, que são: uni-
principais, e é composto por 4 componentes: versalidade (incorpora todas as receitas e despe-
econômico (desenvolvimento econômico retra- sas das instituições que formam os poderes da
tado no Índice Socioeconômico [ISE] desen- união – art. 165, CF); anualidade (têm periodi-
volvido pela SESA/2004 e a população estimada cidade anual – art. 34 da Lei 4.320); unidade (o
em 2004[IBGE]); Atuação do PSF (cobertura orçamento deve ser único); especificidade (devem
populacional do PSF (ago. 2004-SIAB) e % de 4 discriminar claramente, no mínimo por elemen-
ou mais consultas de pré-natal (SINASC-2003); to de despesa, para facilitar a análise por parte
Atenção à criança (% de cobertura vacinal da das pessoas – art. 15 da Lei 4.320); publicidade
tetravalente em crianças menores de 1 ano (PNI- (deve ser divulgado em veículo oficial); exatidão
2003), % de crianças que só são aleitados ao peito e sinceridade (realizar despesas de acordo com os
com idade entre 0 e 3 meses e 29 dias (SIAB- dados); clareza (fácil entendimento); equilíbrio (a
2003); Óbito (% de óbito de menores de 5 anos despesa não pode exceder as receitas); progra-
não ocasionado por diarréia (SESA/2001-2003). mação (interação com o planejamento); legalida-
A partir deste método foram hierarquiza- de (aprovado por autoridade competente) e flexi-
dos os municípios segundo o método acima des- bilidade (permite ajustes durante sua execução).
crito para a distribuição dos recursos do Estado A Constituição Federal de 19881 estabe-
do Ceará para os municípios cearenses. Embora lece como processo de elaboração do orçamen-
a proposta represente um avanço, ainda não foi to público, nas três esferas de governo (federal,
assumido pelo gestor da saúde estadual este cri- estadual e municipal), um processo que envolve
tério de distribuição da atenção primária. três instrumentos:

• O Plano Plurianual (PPA): A Constituição


Orçamento do Estado: Como são alocados os Federal de 19881, no artigo 165, 1º parágrafo
recursos nos Orçamentos públicos? determina que o plano plurianual estabeleça,
de forma regionalizada, as diretrizes, objeti-
O orçamento público conhecido no Brasil vos e metas da administração pública (federal,
como orçamento-programa, é um instrumento estadual e municipal) para as despesas de ca-

203
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

pital e outras delas decorrentes e para as rela- • A Lei Orçamentária (LO): A Lei Orçamen-
tivas aos programas de duração continuada. tária estabelece o programa de trabalho com
respectiva alocação de recursos para o exer-
Tem prazo de quatro anos, iniciado no cício financeiro seguinte, sendo elaborada de
segundo ano de mandato e vigência até o pri- conformidade com o Plano Plurianual e a Lei
meiro exercício financeiro do mandato subse- de Diretrizes orçamentárias.
qüente. Na realidade, o PPA pretende ser um
projeto de desenvolvimento, e por ser elaborado • Fundamentos do Orçamento da Saúde Pú-
pelo executivo no primeiro ano de mandato, o blica: O orçamento da saúde está fundamen-
Legislativo pode participar, não só das discus- tado nos princípios que regem o Orçamento
sões para sua aprovação, mas exercer um mo- Público e no Sistema Único de Saúde (SUS),
nitoramento constante de sua execução através estabelecidos na Constituição de 19881 e faz
dos orçamentos anuais. parte de um sistema mais amplo, o da Seguri-
dade Social.
• A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO):
Estabelecida pelos artigos 165 e 169 da Cons- São princípios fundamentais do SUS: a
tituição Federal de 1988, a LDO define metas universalidade (direito de todos à saúde pública);
e prioridades das despesas, incluindo capital, eqüidade (a rede de serviços de saúde deve estar
para o exercício financeiro subseqüente, que atenta para as desigualdades em saúde e deve ser
orientará a elaboração da lei orçamentária ajustada às necessidades de cada parcela da po-
anual e disporá sobre as alterações na legisla- pulação); e integralidade (acesso aos serviços de
ção tributária. No caso da união, também so- saúde de acordo com suas necessidades, de modo
bre o estabelecimento da política de aplicação que os serviços de saúde devem estar organiza-
das agências financeiras oficiais de fomento. dos para atender a essa demanda e desenvolver
Além destas matérias pertinentes a CF, a Lei ações sobre o ambiente e sobre o indivíduo à
de Responsabilidade Fiscal atribuiu à LDO a promoção, proteção e recuperação da saúde, bem
responsabilidade de tratar de outras matérias como à reabilitação). Além disso, o SUS esta-
como: estabelecimento de metas fiscais; fixa- belece a participação social através da lei 8.142,
ção de critérios para limitação de empenho e sendo instituídos como instâncias colegiadas, as
movimentação financeira; publicação da ava- Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde.
liação financeira e atuarial dos regimes geral Atualmente, além das leis que regem o
de previdência social e próprio dos servidores SUS, está vigente a Emenda Constitucional nº
civis e militares; avaliação financeira do Fun- 29/2000 e das diretrizes e responsabilidades sa-
do de Amparo ao Trabalhador e as projeções nitárias sobre a Gestão e o Financiamento das
de longo prazo dos benefícios de amparos ações e serviços de saúde definidas no Pacto pela
assistenciais; margem de expansão das des- Saúde, portaria GM nº 399/20065.
pesas obrigatórias de natureza continuadas e O orçamento da saúde no Ceará é orga-
avaliação dos riscos fiscais. nizado por Programa e Ações, que obedecem à
Política de Saúde vigente que atua na atenção
A LDO representa o elo de ligação entre primária através do Programa Saúde da Famí-
o Plano Plurianual e a Lei Orçamentária Anual. lia (PSF), a atenção secundária está organizada
Para o IBASE11, o principal mérito da LDO é via- através dos pólos microrregionais de saúde (22);
bilizar a participação mais efetiva do Poder Legis- e a atenção terciária por meio dos pólos macror-
lativo no processo de aprovação do orçamento. regionais de saúde (Fortaleza, Sobral e Cariri).

204
Capítulo 18 • Gestão e Economia de Saúde

Os recursos para a saúde são provenien- Este conceito de custos é importante para
tes da União através do Fundo Nacional de se apurar os custos de um departamento ou pro-
Saúde (FNS) e de recursos próprios do Tesouro cedimento de uma unidade de saúde, de um pro-
do Estado e estão distribuídos entre programas grama ou de uma tecnologia sanitária. Para isto,
e ações por grupo de despesas e fonte de recur- têm-se vários métodos que podem ser utilizados
sos, segundo estabelecido no Plano Plurianual para realizar uma análise de custos.
(PPA) vigente e da Lei de Diretrizes Orçamen- Os custos podem ser classificados de duas
tárias (LDO). formas: 1) em relação à apropriação dos custos
em relação aos serviços produzidos; e, 2) em re-
lação ao nível de produção.
Gestão de Custos: Qual a importância da Em relação aos serviços produzidos, os
Gestão de Custos na área da saúde pública? custos são classificados em diretos e indire-
tos. Os diretos correspondem aos custos que se
A importância em se apurar custos em identificam diretamente com os serviços (pro-
saúde se deve a uma série de razões: porque os duto) ou um departamento. Exemplo, medi-
gastos em saúde têm crescido muito nestes úl- camentos. Os custos indiretos são aqueles que
timos vinte anos, devido à complexidade que não estão claramente associados aos produtos
envolve a produção dos serviços de saúde; pe- ou departamentos. Exemplo, energia elétrica
las particularidades que envolvem o mercado de de um hospital.
serviços de saúde; pelo avanço tecnológico; pela Em relação ao nível de produção, os cus-
mudança no perfil demográfico da população re- tos se dividem em fixos e variáveis. Os custos
duzindo a mortalidade infantil e aumentando a fixos são aqueles que não variam com o aumen-
expectativa de vida das pessoas; pela mudança to da produção, ou seja, mesmo que aumente o
no perfil epidemiológico, dentre outros. Daí a fluxo de atendimento aos usuários do sistema de
necessidade de se investir na eficiência do siste- saúde, os custos não variam. Para Drummond10,
ma para que ele possa trazer melhores resultados são os custos que variam com a quantidade de
em termos de saúde da população. produção (output) a curto prazo (em torno de
Existem duas formas de abordar custos um ano). Esses custos variam com o tempo e
em saúde: uma na perspectiva de gestão dos não com a quantidade. Para Matos13, correspon-
serviços de saúde (visão contábil) e outra na dem aos custos vinculados com infra-estrutura.
dimensão econômica (custo de oportunidade), Exemplo: aluguel. Os custos variáveis estão di-
que é utilizada na avaliação econômica de tec- retamente ligados ao volume de produção, ou
nologias em saúde. seja, quanto maior o número de pacientes aten-
didos, maior o custo variável. Exemplo: medica-
mentos, material médico-hospitalar etc.
Visão Gerencial dos Custos Os métodos mais conhecidos para se apu-
rar custos em saúde são: custeio por absorção,
Na perspectiva da gestão, o conceito de custeio por procedimento, custeio direto ou va-
custos está diretamente correlacionado à ques- riável e custeio por atividade - ABC.
tão contábil (contabilidade de custos), e corres- A metodologia de custeio por absorção
ponde ao valor de todos os bens e serviços efe- representa um instrumento mais tradicional de
tivamente utilizados para a produção de outros gestão dos custos. Trata-se de uma abordagem de
bens e serviços assistenciais ou ações de saúde, custeio sob os fundamentos da contabilidade de
num determinado tempo. custos13. O método consiste em procurar identi-

205
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

ficar, no interior de cada hospital ou serviço de correspondendo ao valor da melhor alternativa


saúde, centros de custos, os quais correspondem não concretizada em conseqüência de se utiliza-
a unidades independentes de produção. Cada rem recursos escassos na produção de um dado
centro de custo produz bens intermediários e bem ou serviço17. Está associado à idéia de que,
bens de consumo final, recebendo para tal, insu- ao se optar por um tratamento utilizando recur-
mos oriundos de fornecedores externos (fora do sos para salvar vidas, deixam-se esses recursos
hospital ou serviços de saúde) ou internos (ou- indisponíveis para serem gastos em outros trata-
tros centros de custos)15. mentos, o que pode implica perdas em termos de
Estudo realizado por Sousa20 utilizando o saúde ou mesmo de vidas salvas.
método de custeio por absorção demonstra que Para Yunes12, a concepção econômica dos
o custo de uma equipe do Programa Saúde da custos, e em essência toda a teoria econômica,
Família em Crateús (CE) em quatro equipes pes- gira em torno da visão de que os recursos exis-
quisadas nos anos de 1997, 1998 e 1999, está de tentes são limitados ou escassos. Nesta concep-
acordo com a tabela 1: ção, todo processo de produção passa também,
necessariamente, a ser um processo de escolha,
Ano
Custo por Custo do já que os recursos utilizados em um determinado
família atendimento processo produtivo não estarão mais disponíveis
1997 32,86 6,87 para serem usados em qualquer outra alternativa
1998 29,78 8,89 de produção.
1999 29,28 11,28
Pode-se realizar uma avaliação econô-
Tabela 1. Custo Médio do PSF de Crateús, segundo média das mica através de quatro métodos: a análise de
equipes de Monte Nebo, Ibiapaba, Queimados e Santo Antônio.
minimização de custos; a análise de custo-efe-
tividade; análise de custo-utilidade e análise de
O custo médio por família assistida apre- custo-benefício10.
sentou uma tendência decrescente nos três anos
estudados, enquanto o custo por atendimento
quase dobrou. A análise sistemática dos dados Gestão financeira: Como é realizada a gestão
de custos pode indicar o quão eficiente pode se financeira dos recursos?
tornar o PSF, otimizando a relação custos e be-
nefícios, bem como pode verificar a relação que A execução financeira, acompanhamen-
existe entre o custo e os resultados em termos de to e fiscalização são etapas complementares às
saúde. Esta relação é estudada através de avalia- citadas anteriormente, no gerenciamento de re-
ções econômicas. cursos financeiros em saúde. Tais competências
Portanto, saber os custos dos serviços de eram tradicionalmente pouco desenvolvidas e
saúde é muito importante não só para facilitar a destacadas na área de saúde, mas para alcançar a
tomada de decisão gerencial, como também para otimização na utilização dos recursos limitados
estabelecer parâmetros de eficiência e de aloca- disponíveis e muitas vezes insuficientes para o
ção de recursos no orçamento da saúde. setor é imprescindível desenvolver e fortalecer
capacidades para monitorar e supervisionar as
atividades dos prestadores do SUS garantindo
Visão Econômica dos Custos a articulação do sistema. A administração fi-
nanceira tem como objetivo imediato prover e
A visão econômica dos custos é estudada gerenciar os recursos financeiros necessários à
através do conceito de custo de oportunidade e consecução das atividades da organização.

206
Capítulo 18 • Gestão e Economia de Saúde

De acordo com Couttolenc & Zucchi8, a 101 de 04.05.2000 que é o principal instrumento
busca da eficiência e a auto-sustentação são os regulador das conta públicas no Brasil, estabe-
dois principais objetivos da nova gestão finan- lecendo metas, limites e condições para gestão
ceira nos serviços de saúde, pois são a garantia das Receitas e Despesas, corroborando para o
da melhoria da eficiência e a garantia da estabi- controle de gastos do setor público e conseqüen-
lidade e sustentação econômica. te otimização da execução financeira. A LRF se
Para realização da gestão financeira faz-se apoia em quatro eixos: planejamento que é feito
necessário o orçamento, elo para execução finan- por intermédio de mecanismos como Plano Plu-
ceira. A entrada de recursos no Fundo de Saúde rianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias
se materializa por meio de repasse da Tesoura- (LDO) e Lei Orçamentária Anual, que estabe-
ria, da conta bancária central (órgão de finanças) lecem metas para garantir uma eficaz adminis-
para conta vinculada ao programa existente no tração de gastos públicos; transparência que é
fundo. O resultado financeiro da arrecadação das a ampla divulgação dos relatórios nos meios de
receitas destinadas ao setor saúde deve ser repas- comunicação para acompanhamento de todos
sado automaticamente pela Secretaria de Fazen- de como é aplicado o dinheiro público; controle
da ou Finanças, ou outro órgão correspondente. que é a exigência de uma ação fiscalizadora mais
As despesas da Saúde Pública devem ser efetu- efetiva e contínua dos tribunais de contas e por
adas seguindo as exigências legais requeridas a fim, a responsabilização do mau uso dos recur-
quaisquer outras despesas da administração pú- sos públicos estabelecendo sanções para os res-
blica, ou seja, processamento; licitação quando ponsáveis pelo crimes de responsabilidade fiscal
necessário; contrato ou empenho; liquidação e o (Lei 10.028, de 19 de outubro de 2000)6, 12.
pagamento que é a efetiva despesa. Através dos demonstrativos sobre a exe-
A contabilidade é um instrumento para cução, as despesas com a saúde, gastos em ações
gestão financeira, sendo um sistema de infor- e serviços de saúde, financiados com recursos
mações destinado a registrar todas as movi- do tesouro estadual, apurados para fins de ve-
mentações ou transações financeiras de uma rificação do cumprimento do limite mínimo
organização. Todas as operações registram siste- constitucionalmente estabelecido, contribuem
maticamente a vida desta organização. No setor certamente para reforçar alicerces do desenvol-
público trabalha-se usualmente com três tipos vimento econômico sustentável.
de demonstrações relacionadas com três sub-
sistemas contábeis: orçamentárias – relativas à
execução do orçamento, financeira – referente a
recebimentos e pagamentos efetuados e patrimo-
niais – no tocante à composição do patrimônio.
O Estado do Ceará adotou, desde 1980, um
sistema para gerir sua administração através do
Decreto nº 14.222, chamado Sistema Integrado
de Contabilidade – SIC, centralizado na Secre-
taria da Fazenda – SEFAZ, todos os órgãos da
Administração têm seu acompanhamento orça-
mentário, financeiro e contábil e o desembolso
financeiro controlados individualmente.
Deve-se, ainda, ressaltar a Lei de Respon-
sabilidade Fiscal – LRF ou Lei Complementar

207
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Referências 12. Iunes RF. A concepção econômica dos custos. In:


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11. IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais
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208
Capítulo 19
O futuro da medicina na Atenção dade promissora e que poderia ser incentivada
Primária à Saúde: algumas para a melhor qualificação do médico do “Saú-
de da Família”, sem perigo de engessar as ino-
reflexões a propósito da Medicina
vações do programa brasileiro, principalmente
de Família e Comunidade no tocante à interdisciplinaridade e ao trabalho
José roBerto Pereira de souza multiprofissional.
neuMa soBreira de oliveira Percurso semelhante está fazendo o sis-
tema de saúde suplementar com a implantação
“Só uma vida vivida em função dos outros vale a pena” de serviços aos moldes do “saúde da família”,
alBert einstein
dando ênfase às ações de prevenção, ao relacio-
namento médico-paciente, ao trabalho estrutu-

N os dias de hoje, todos nós temos uma pre-


ocupação exagerada com o que poderá
acontecer no futuro, e com a Medicina na Aten-
rado com grupos específicos e ao atendimento
multiprofissional. Em tais atividades, o médico
requerido é preferencialmente o Médico de Fa-
ção Primária (a Medicina de Família) não po- mília e Comunidade.
deria ser diferente. Sabemos que o Programa de Esta especialidade tem algo mais, pois
Saúde da Família (PSF) surgiu no Brasil como nela o médico consegue perceber o paciente de
uma estratégia que visava à universalização e à uma maneira mais próxima, além de observá-lo
organização da atenção primária de saúde, uma dentro dos inúmeros contextos familiares e de
política pública que inicialmente procurava en- sua comunidade que o influencia sobremaneira.
frentar as altas taxas de mortalidade infantil. Além disso, de forma especial, a Medicina de
Com a melhoria de alguns indicadores de saúde, Família e Comunidade consegue dar uma res-
principalmente a taxa de mortalidade infantil, posta positiva ao problema da fragmentação do
a cobertura vacinal e o internamento hospitalar paciente, proporcionada pela própria organiza-
por doenças infecciosas, tendo apoio financeiro ção de uma assistência médica pautada em pato-
internacional, este Programa foi disseminado logias, procedimentos ou órgãos. É importante
em todos os pontos do Brasil, aproveitando os compreendermos que muitas vezes o acompa-
diversos médicos que já existiam no sistema, no- nhamento do paciente por um grande número
tadamente os recém-formados e os aposentados. de médicos, cada um tomando conta de uma
Após cerca de 10 anos do estabelecimento parte do doente, segundo sua especialidade, cria
do PSF, reconhecendo o grande potencial dessa uma crise existencial no próprio paciente; com-
estratégia e o pequeno impacto em outras áre- partimentaliza o paciente como se ele não fosse
as e faixas etárias, haja vista que apenas se re- um único ser que precisa sentir-se parte de um
velara significativamente efetivo na redução da todo dentro da família e sua comunidade, além
mortalidade infantil, o Ministério da Saúde re- de compreender-se único e não pedaços.
conhece a necessidade de uma formação clínica É óbvio que não estamos falando de uma
mais abrangente e aprofundada para o médico nova especialidade, pois já era conhecida há
do PSF. Desta forma, a exemplo das várias ex- mais de 50 anos, mas de um novo cenário que
periências internacionais (Canadá, Inglaterra, demanda um outro modelo de organização da
Espanha, Cuba, etc.), a Medicina de Família e atenção à saúde. Desse modo, o destaque dado
Comunidade apresenta-se como uma especiali- à Medicina de Família e Comunidade se deve às

209
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

reformas que vêm acontecendo nos sistemas de sua comunidade. Ao negociarem planos de ação
saúde nacionais de todo mundo, na busca de res- com os seus pacientes, integram fatores físicos,
ponder satisfatoriamente às mudanças demográ- psicológicos, sociais, culturais e existenciais, re-
ficas, aos avanços médicos, à economia da saúde correndo ao conhecimento e à confiança gerados
e às necessidades e expectativas dos pacientes16. pelos contatos repetidos. Exercem o seu papel
Inicialmente, pode-se pensar que o médico profissional promovendo a saúde, prevenindo a
de família venha pôr um fim na diversidade de doença e prestando cuidados curativos, de acom-
especialidades médicas ou que seja uma proposta panhamento ou paliativos, quer diretamente,
que venha a crescer apenas no espaço de políti- quer através dos serviços de outros, consoante
cas compensatórias da saúde pública (assistência as necessidades de saúde e os recursos disponí-
pobre para os pobres). Essas duas proposições veis no seio da comunidade servida, auxiliando
inverídicas, ao nosso modo de analisar, apontam ainda os pacientes, sempre que necessário, no
para um cenário péssimo: médico que muitas ve- acesso àqueles serviços”16.
zes não é reconhecido pelos seus próprios pares Essa atitude de acompanhamento e aco-
e fadado a um trabalho árduo e muitas das vezes lhimento das necessidades dos pacientes, cuida-
mal remunerado. Contudo, cada vez mais há uma do precípuo de uma boa Atenção Primária, é de
maior compreensão de que essa especialidade, à extrema importância para que o paciente sinta-
semelhança da própria atenção primária, deverá se amparado diante dos seus problemas de saúde
exercer um papel fundamental para a qualidade e, de forma mais expressiva, quando necessita
e a melhoria da assistência à saúde. ser abordado por um profissional ou serviço in-
Este profissional, além de sua atuação clí- teiramente diverso de seu cotidiano, seja para
nica no setor privado ou no público, diminuindo uma abordagem diagnóstica complementar ou
a fragmentação dos pacientes e até auxiliando-os terapêutica especializada, específicas das outras
em suas demandas junto a outras especialidades, especialidades.
tem penetrado no campo da gestão de serviços Ao pensarmos no aspecto custo-efetivida-
de saúde, espaço que na maioria dos setores pú- de da assistência à saúde da população, um dos
blicos vinha sendo ocupado por outros profissio- grandes desafios do MFC, além de assegurar que
nais. Também no campo de ensino médico, com os pacientes recorram ao profissional e serviço
a instituição das Diretrizes Curriculares Nacio- de saúde mais apropriado ao seu problema, é ga-
nais do Curso de Graduação de Medicina, é mar- rantir, junto aos gestores, as condições estrutu-
cante a procura por médicos especialistas em rais compatíveis com as prioridades de cuidados
MFC, pois é o profissional que apresenta o per- básicos de saúde de qualidade para essa popula-
fil mais semelhante com o exigido ao formando ção. Daí surge a necessidade de um relaciona-
egresso: “formação generalista, humanista, crí- mento melhor e mais próximo com o gestor de
tica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em saúde, bem como com os Conselhos de Saúde,
princípios éticos, no processo de saúde-doença quando o MFC pode desempenhar um papel
em seus diferentes níveis de atenção, com ações pivô no aprofundamento das discussões para a
de promoção, prevenção, recuperação e reabili- tomada de decisões.
tação à saúde, na perspectiva da integralidade da Outro grande desafio da Medicina na
assistência, com senso de responsabilidade so- Atenção Primária, a partir de um conceito de
cial e compromisso com a cidadania, como pro- saúde como qualidade de vida, é a exigência da
motor da saúde integral do ser humano”2. passagem de um trabalho uniprofissional para
“Os médicos de família reconhecem ter uma ação coletiva. O médico deve assumir a
uma responsabilidade profissional para com a importância do trabalho em equipe, nessa nova

210
Capítulo 19 • O futuro da medicina na Atenção Primária à saúde: algumas reflexões a propósito da medicina de família e comunidade

compreensão integral do ser humano e do pro- cadeado aos esforços moderados, mas que não a im-
cesso saúde-doença, coerente com uma ótica da pedia de trabalhar e algumas vezes acompanhado
produção social da saúde e da criação de am- do mesmo desconforto epigástrico, mas de intensida-
bientes saudáveis14. “Essa compreensão coloca de menor. Como o médico da emergência havia lhe
o trabalho interdisciplinar e multiprofissional falado em algum problema relacionado com o trato
como necessidade fundamental e uma estratégia digestório, ela procurou marcar uma consulta com
mais exeqüível e desejável do que a tentativa de o gastroenterologista. Procurou várias unidades
criar superprofissionais de saúde, formar profis- de saúde do serviço público, conseguindo marcar a
sionais competentes para o atendimento de toda consulta com esse especialista após 6 (seis) meses de
e qualquer necessidade dos usuários, mesmo as persistente procura (descobrir onde havia, chegar em
não percebidas”4. tempo de pegar uma ficha). O gastroenterologista,
mesmo achando que o quadro não era compatível
com os dois diagnósticos sugeridos pelo médico que
Caso Clínico lhe havia atendido na emergência, solicitou uma
gastroduodenoscopia para melhor conclusão. Apro-
D. Maria Lúcia, 59 anos, solteira, trocadora veitou para encaminhá-la ao endocrinologista, pois
de ônibus, nulípara, tabagista, menopausada há 10 permanecia com um peso muito acima do normal
anos, acompanhada de familiares procurou a emer- (IMC = 31), fato que, segundo ele, poderia ser a
gência do Hospital X por volta das 13 horas com causa do cansaço da paciente.
quadro de desconforto epigástrico e sensação de can- Dona Maria recomeçou sua “via sacra”, em
saço. Relata que tudo começou após uma discussão busca da endoscopia e da consulta do endocrinologis-
com um usuário de ônibus que havia acontecido cer- ta. Neste ínterim, por apresentar várias faltas ao em-
ca de 30 minutos antes. Tinha antecedentes de uma prego, a paciente foi demitida por justa causa, mesmo
internação hospitalar há cerca de 11 anos quando relatando que havia faltado porque estava doente e
apresentou um distúrbio menstrual. Relata que man- em busca de tratamento.
tinha contato periódico com o serviço de saúde, pois Mesmo assim e sentindo que seu quadro se
realizava exame de prevenção de câncer ginecoló- agravara, dona Maria Lúcia continuou insistindo
gico anualmente. O médico de plantão não consta- nos exames e na consulta médica. Apresentou a en-
tou nenhuma alteração ao exame físico da paciente, doscopia ao gastroenterologista que constatou não se
além da obesidade (IMC = 31) e uma PA de 150 X tratar de quadro gástrico e, ao ver seu quadro dispnéi-
85mmhg. Foi realizado um ECG que se apresentou co resolveu encaminhá-la ao cardiologista.
dentro da normalidade. A paciente teve melhora do Antes de conseguir a consulta com o cardiolo-
quadro após a administração de medicação antiemé- gista e com o endocrinologista, um ano após a últi-
tica e o repouso. A mesma teve alta com a explicação ma entrada na emergência, dona Maria Lúcia deu
de que seu quadro era provavelmente fruto de uma entrada novamente na emergência do Hospital X
resposta do organismo ao estresse, poderia ser também em razão de que há três dias havia piorado da falta
um sintoma ligado a um quadro de refluxo ou gastri- de ar que se apresentava mesmo em repouso. Com
te. Como a paciente relatara que não se sentia bem diagnóstico de Infarto do Miocárdio e insuficiência
para voltar ao trabalho, o médico lhe deu um atesta- cardíaca foi admitida na UTI cardiológica. No in-
do recomendando repouso de três dias. Foi também ternamento também foi constatado que a paciente
orientada a realizar uma dieta para diminuir o peso e era portadora de diabetes tipo II e hipertensão ar-
que deveria verificar novamente a pressão arterial. terial crônica.
A paciente passou os três dias em repouso e
retornou ao trabalho. Evoluiu com cansaço desen-

211
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

Comentário Claro que não impediria de a encontrarmos obe-


sa, tabagista, sedentária e estressada, como na
Não pretendemos nessa análise abranger sua primeira ida à emergência, mas certamente,
todos os ganhos que a paciente poderia ter tido mesmo na comunidade, sua maior vulnerabili-
com um trabalho multiprofissional e multidis- dade a problemas de saúde poderia ser identifi-
ciplinar de uma boa equipe de Saúde da Famí- cada muito precocemente pelo agente de saúde,
lia, mas enfatizaremos os aspectos simples que ou na primeira visita a um dos outros profissio-
seriam abordados por um médico de família e nais de saúde em sua busca do exame de preven-
comunidade e que certamente modificariam ra- ção do câncer ginecológico. É bom recordar que
dicalmente a história da dona Maria Lúcia. a simples orientação da importância de deixar
o tabagismo, sendo realizada pelo profissional
• A importância da Equipe de Saúde da Fa- de saúde em uma consulta, tem uma efetividade
mília: Atualmente no “Saúde da Família” bastante significativa.
brasileiro, a equipe mais próxima do pacien- Como dissemos inicialmente que não tra-
te, onde os profissionais mais precisam inte- taríamos de analisar pormenores, gostaríamos de
ragir, é a composta pelo médico, o enfermei- lembrar que as revisões sistemáticas de trabalhos
ro, os técnicos de enfermagem e os agentes científicos comprovam que um simples aconse-
de saúde. Em uma atuação simultânea e inte- lhamento médico em uma consulta de rotina
grada, tornar o paciente sabedor do seu pro- mostra efetividade significativa na mudança de
cesso de adoecimento e co-partícipe central estilo de vida; por exemplo, um aconselhamento
de sua cura ou melhor, de sua mudança de de três minutinhos mostra-se efetivo para au-
atitude para a manutenção e construção de mentar as taxas de abstinência do tabagismo11.
sua própria saúde. Devemos dar vida às organizações huma-
Não podemos pensar que a atuação no nas pelo fortalecimento de suas comunidades,
“Saúde da Família” pelos múltiplos profissionais não só aumentando-lhe a flexibilidade, a criati-
que o integram possa se passar de uma forma vidade e o potencial de aprendizado como tam-
impessoal e mecanicista como rotineiramente bém aumentando a dignidade e a humanidade
podemos observar dentro de uma unidade hos- dos indivíduos que compõem a organização, que
pitalar. O médico de família e comunidade tem vão tomando contato com essas qualidades em
clareza da necessidade de se integrar, de colabo- si mesmos3. Certamente, ao fortalecermos estas
rar para que as diversas profissões participantes relações, iremos produzir também melhoria na
e envolvidas na atenção possam aplicar o melhor qualidade dos serviços.
de si para que o paciente, a parte importante des- Percebe-se que a cada dia, mais e mais
te processo, saia ganhando. profissionais vão se integrando a esta equipe,
“... esse novo campo de integração dos o médico por sua vez precisa re-delimitar a sua
conhecimentos, habilidades e práticas de cada ação para incluir a diversidade trazida por esses
categoria, tem como objetivo responder às ne- novos atores, um processo, muitas vezes confli-
cessidades da população, promovendo a quali- tuoso, um desafio presente a ser enfrentado com
dade de vida”7. muito diálogo ao longo dos anos.
Dona Lúcia, se estivesse na área de abran- O trabalho da equipe do Saúde da Famí-
gência dessa equipe, certamente estaria muito lia deve ser construído conjuntamente desde a
cedo sendo estimulada a hábitos saudáveis (uma adscrição da clientela, o mapeamento e conheci-
educação alimentar, a prática de exercícios físi- mento da área e de suas lideranças. Todos devem
cos, ao lazer, a uma cultura antitabagista, etc.). estar munidos do ideal desse “novo” modelo de

212
Capítulo 19 • O futuro da medicina na Atenção Primária à saúde: algumas reflexões a propósito da medicina de família e comunidade

atenção, voltados para as necessidades de saúde e sionais da saúde – médico de família e o médico
não apenas para a demanda espontânea e ou para da emergência, levando a um prejuízo incomen-
a oferta de serviços de saúde14. Assim, nessa atua- surável para o paciente, como por exemplo, a
ção organizada de forma diferente do que (antes) simples descontinuidade do seu tratamento.
se vê nos serviços de pronto-atendimento, dona Portanto, estamos diante de um outro desafio,
Maria Lúcia teria, além de um acompanhamen- que há muito urge enfrentamento mais efetivo,
to multidisciplinar, um acompanhamento con- a comunicação entre todos os especialistas que
tínuo que deve incluir também suas demandas consultaram a dona Maria Lúcia.
pessoais. Em um trabalho conjunto que inclui
ativamente o indivíduo, a família e a própria • Política de Saúde e a Gestão: Para nós é bas-
comunidade, esses profissionais ganham força tante claro que mesmo com todos os esforços
sinérgica para o bom êxito de seus propósitos. que os profissionais de saúde possam fazer,
Ah! Se dona Maria Lúcia fosse assistida sem uma política de saúde nacional, estadual
por uma equipe com “clima quente”, motivada e e municipal condizentes com a proposta de
integrada, seria uma história totalmente diferente. saúde para todos e, saúde associada à qualida-
Uma equipe com um bom clima organizacional de de vida, pouco se poderia fazer para modi-
potencializa a integração e o sucesso destes profis- ficar a história de tantas donas Maria Lúcia.
sionais na sua atuação com o paciente. Esse clima, Não estamos falando apenas de uma políti-
como a cultura, é o conjunto de pressupostos bási- ca assumida em discursos ou nos papéis assinados
cos inventados, descobertos ou desenvolvidos por (leis, normas, portarias, planos), mas verificada em
um grupo na medida em que aprendeu a lidar com atitudes concretas: decisão de fazer acontecer.
os problemas da adaptação externa e integração Esse acontecimento passado pela dona
interna14. Sem falar que, quanto maior a integra- Maria Lúcia, deixando-a a mercê de seu debi-
ção entre os membros desta equipe, clima quente, litado esforço na conquista de uma assistência
maior satisfação no trabalho, melhores resultados médica, sendo ainda vivido por muitos outros
e mais tranqüila seria a dona Maria Lúcia. que precisam de assistência médica, como se
percebe ainda no nosso país (no setor público e
• A importância da Integração entre os diver- também no setor privado), nos remete, entre ou-
sos serviços de saúde: Tudo indica que dona tras coisas, a uma questão de suma importância
Maria Lúcia não tinha um médico assisten- percebida no dia-a-dia dos profissionais de saú-
te. Ela procurou a emergência e foi referen- de: a necessidade de gestores capacitados/ quali-
ciada, quase abandonada num labirinto que ficados para a gestão da saúde. Estamos falando
é comum nos “sistemas de saúde” sem uma de limites que separam as Responsabilidades e
Atenção Primária forte e, principalmente, as Atribuições dos Gestores de um Sistema de
com pouca integração com todos os níveis de Saúde ou de um Serviço, qualquer que seja ele, e
atenção (ou redes assistenciais). as Competências dos Profissionais de Saúde.
Partindo do pressuposto, muito longín- Além da necessidade de um gestor capa-
quo, que Dona Maria Lúcia fosse acompanhada citado para sua função, um outro grande desafio
por uma ESF, ela sofreu as conseqüências das aqui posto é o de promover um repensar sobre
disfunções organizacionais de um serviço (ou os critérios utilizados para a escolha deste gestor
profissionais) que não estava integrado com a do futuro, pontuando alguns pré-requisitos para
equipe de saúde que a acompanhava8. cada cargo e desvinculando a gestão de saúde dos
É o que se percebe, ainda em nossa rea- processos políticos partidários; obedecendo ver-
lidade, uma falta de comunicação destes profis- dadeiramente os princípios e diretrizes do SUS.

213
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

“Precisamos dedicar pouco espaço aos ausência de políticas para assegurar a universali-
efeitos prejudiciais da política sobre as organiza- dade e a responsabilidade pública pelo financia-
ções. Ela é decisiva e onerosa: consome energias mento dos serviços de saúde leva a uma situação
que poderiam ser dedicadas ao atendimento aos em que os que são capazes de pagar pelo serviço
clientes. Ela também pode conduzir a todos os obtém a maior parte dos serviços15.
tipos de aberrações: a sustentação de centros de “A distribuição natural dos bens não é
poder superados ou a introdução de novos cen- justa ou injusta; nem é injusto que os homens
tros injustificados ou mesmo a paralisia de um nasçam em algumas condições particulares den-
sistema até o ponto em que o funcionamento é tro da sociedade. Estes são simplesmente fatos
interrompido. Afinal, a finalidade de uma orga- naturais. O que é justo ou injusto é o modo como
nização é produzir bens e serviços e não produ- as instituições sociais tratam destes fatos”13.
zir uma arena nas quais as pessoas possam lutar Nessa perspectiva de atitude política, está
entre si”11. posto para os profissionais de saúde, juntamen-
Provavelmente ao ver se repetir tantos qua- te com as muitas donas Marias, ser audaciosos
dros semelhantes ao da nossa querida senhora, o e cobrar dos diversos atores um comprometi-
plantonista da emergência ou mesmo o gastroen- mento com estas ações, assumindo, como diria
terologista deveriam já ter consciência dessas fa- Leonardo Boff2, a função dos políticos: crer na
lhas do sistema. Contudo, por que os profissionais verdade e nortear sua prática através dela, trazê-
guardam para si tais avaliações e muitas vezes não la à tona para todos e agir em coerência com ela,
a põe para as chefias dos serviços? Pensando nisso mostrando-se disposto a suportar os sacrifícios
e dentro de nossa proposta de pontuar aspectos que tal postura comporta.
simples, não poderíamos deixar de falar do exer-
cício da liderança pelos chefes, principalmente • Qualidade assistencial e Incentivo à Pes-
quando se trata das relações vividas nas chefias quisa: Diabetes, hipertensão, obesidade, ta-
diretas; como dentro das equipes de Saúde da Fa- bagismo, entre outros problemas de saúde
mília, as relações devem sair do autoritarismo e que podem ter contribuído para o desfecho
transmutarem em atitudes de auxílio e coopera- desfavorável na história de nossa paciente,
ção, pois só assim levará a uma melhoria contínua são agravos que vêm há muito sendo priori-
e a aceitação do feedback de seus subordinados, zados nos planos de saúde nacionais. Temos
assumindo riscos e reduzindo a distância entre o já protocolos validados, tanto realizados por
que se é e o que se precisa mudar9. Sociedades de Medicina de Família e Comu-
É claro que no Brasil muitas donas Ma- nidade bem como por outras entidades, que
rias, diferentemente do caso em estudo, estão aplicados na Atenção Primária demonstra-
se beneficiando com uma atenção de qualidade; ram uma alta influência na diminuição de co-
lembremos que, como discutida em Alma Ata, morbidades e da taxa de mortalidade devido
a atenção primária evolui a partir das condições a tais circunstâncias.
econômicas e características políticas e sócio- Para que a nossa paciente possa se benefi-
culturais de um país e suas comunidades17. Cabe ciar de tais procedimentos, impõe que o Médico
a nós, profissionais da saúde, pelo menos assu- de Família e Comunidade tenha acesso e procu-
mirmos um papel de educador, incentivando o re caminhar lado a lado com os avanços cientí-
reconhecimento de que o bem comum é mais ficos em sua própria área de atuação, somente
bem servido quando o bem-estar de todos os desta forma será possível alcançarmos e man-
grupos da população é maximizado, o que é re- termos nossos serviços com a qualidade exigida
forçado através do princípio da eqüidade e que, a pela população, em conformidade com a melhor

214
Capítulo 19 • O futuro da medicina na Atenção Primária à saúde: algumas reflexões a propósito da medicina de família e comunidade

medicina baseada em evidências. um sistema de registro (sistema de informação)


O contínuo aprimoramento do conheci- de dados apropriado para a atenção na lógica
mento baseado em evidências é o fundamento para do “Saúde da Família”, que contenha os dados
o progresso em todos os campos de esforço, indis- do indivíduo e de sua família e que possibilite
pensável para a melhoria da Atenção Primária15. o acompanhamento de indicadores e a identifi-
Se dona Maria Lúcia fosse paciente de um cação de riscos - vulnerabilidade individuais e
Médico de Família e Comunidade, poderíamos coletivos, por família, por grupo populacional e
pensar que algo não andava muito bem no serviço por micro-área.
prestado pela equipe de saúde. O médico não teria
falhado no acompanhamento? Esse é um ponto
que nos remete a um outro: a avaliação e moni-
toramento da qualidade dos cuidados prestados.
“Sabendo-se que a qualidade dos cuidados pres-
tados aos doentes depende basicamente de uma
boa prática clínica e do modo como estão organi-
zados e são prestados os serviços aos doentes”10.
Onde foi registrado que dona Maria Lú-
cia deu entrada em um hospital de emergência?
Como o Médico da Equipe de Saúde da Famí-
lia tomou conhecimento do caso de dona Maria
Lúcia, se a agente de saúde não a visitava (estava
muito atarefada com o excesso de crianças e fa-
mílias vivendo em situações que considerava de
maior risco)? Que instrumentos teríamos para a
avaliação contínua e monitoramento da qualida-
de dos cuidados prestados?
No momento, somos impelidos a refletir
sobre sistema de informação. O Médico de famí-
lia e Comunidade necessita de um bom sistema
de registro de dados que vá além de um simples
prontuário a ser arquivado. É imperativo que se
possa acompanhar de forma fácil e ágil o com-
portamento de indicadores da saúde do coletivo
da comunidade, identificar grupos que merecem
acompanhamento específico ou até identificar
alguma vulnerabilidade ou risco individual.
A qualidade e a pesquisa assim postas, de-
vem ser percebidas também como instrumentos
de gestão, caminho seguro para alcançar um me-
lhor desempenho no planejamento e execução
das políticas de saúde.
O Médico de Família e Comunidade pre-
cisa engajar-se ao máximo neste processo, a
começar pela mobilização para a conquista de

215
Livro do Médico de Família • Seção 1 – Medicina de Família e Comunidade

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de Nivaldo Montingelli Jr. Porto Alegre: Book-
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macological treatments for smoking. Rev. Psi-
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tes de um novo paradigma de saúde: o papel
da Universidade. Estudos Avançados 1999;
13(35):71-88.

216
Seção 2

Saúde da Criança e
do Adolescente
Capítulo 20
Puericultura na promoção prevenção de doenças na criança. Relaciona a
da saúde da criança evolução da criança nos aspectos físicos, sociais
e psíquicos, com o meio ambiente onde ela está
Jocileide sales caMPos
inserida, inclusive com o comportamento das
anaMaria cavalcante e silva
João JoaquiM Freitas do aMaral pessoas que lhe prestam cuidados nas etapas do
seu desenvolvimento21.
Nestes conceitos percebe-se a presença
dos determinantes, dos elementos que consti-
tuem os campos de saúde definidos nos estudos

A evolução da criança tem início ainda na vida


intra-uterina, mais precisamente na união
das células masculinas e femininas produzindo
de Lalonde11: biologia humana, meio ambiente,
estilo de vida e serviços de saúde.

o ovo que se nida no útero materno. Se conside-


rarmos as emoções, o referencial psicológico do Promoção da saúde e prevenção de doenças e
ser humano é até possível dizer que a evolução da agravos – 100 anos de vida saudável
criança começa no desejo, nos pensamentos dos
responsáveis por sua geração. Ao sermos capazes Ações de promoção da saúde tais como:
de assumir a sensibilidade, o caráter psicoafe- higiene, alimentação e estímulo ao desenvol-
tivo do início da formação do ser humano, não vimento e ações de prevenção de agravos como
podemos fugir de uma afirmativa lógica: mãe e vacinação, higiene pessoal e ambiental, cuidado
filho, pais e filhos devem ser vistos por meio de com acidentes no lar, identificação e tratamento
observações de suas inter-relações e ao particu- precoce dos problemas de saúde da criança, fazem
larizarmos a criança não podemos abandonar os parte da competência técnica dos profissionais
aspectos resultantes dessas relações. que realizam a puericultura. E, é na relação do
Assim, a vida que pode significar alegria, profissional de saúde com a família, com a crian-
beleza, ventura também pode apresentar riscos, ça e também com a comunidade que tem lugar a
situações inesperadas que requerem interven- busca e o encontro, o conhecimento da situação e
ções capazes de corrigi-las ou atenuá-las para o a decisão de como ofertar o melhor no presente,
retorno a um estado esperado de equilíbrio, de pensando no futuro de cada criança. A abordagem
homeostase. do Saúde da Família – vigilância à saúde, favorece
É por meio da arte, da dedicação do acom- uma relação diferenciada que influencia na con-
panhamento, da vigilância constante e sistema- tinuidade, na integralidade da atenção às pessoas
tizada da evolução da criança que se faz possível no sistema de saúde, marcadamente na unidade
o cuidado específico a cada criança para que seja básica de saúde e nas visitas domiciliares9.
alcançado o seu melhor padrão de crescimento e As ações realizadas frente às necessidades
de desenvolvimento. das crianças, que incluem a transmissão de orien-
Puericultura é a definição dessa arte, dessa tações adequadas às famílias, aos cuidadores das
ação que se efetiva para “assegurar o perfeito de- crianças ou mesmo intervenções específicas em
senvolvimento físico, mental e moral da crian- determinadas situações, requerem um bom co-
ça, desde a gestação até a puberdade” segundo nhecimento sobre as etapas do crescimento e do
Ferreira8. Ocupa-se da promoção da saúde e da desenvolvimento infantil, visto que nascem frá-

219
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

geis, vulneráveis, necessitando completarem-se9. Desta forma, hoje, a Puericultura busca o


O acesso ao sistema de saúde se dá na unidade crescimento integral nos aspectos físicos, men-
básica, tanto para as ações de promoção da saú- tais, afetivos, sociais e espirituais do ser huma-
de e prevenção de doenças quanto para proce- no desde as suas experiências iniciais de vida. E
dimentos diagnósticos e terapêuticos e, mesmo ao respeitar os horizontes culturais, conhecer o
para assegurar a integralidade da assistência em perfil epidemiológico e os riscos à saúde apre-
serviços mais especializados. Portanto, a aten- senta oportunidades para ações apropriadas e,
ção integral não dissocia as ações de prevenção por isso, diferente para diferentes populações e,
e promoção das ações de tratamento e recupe- quem sabe, ser instrumento para humanização
ração da saúde. Desta forma é fundamental que em nosso entorno, quiçá no mundo. Saúde, vista
o relacionamento entre os profissionaisdos dos portanto, como sinônimo de bem estar, intera-
serviços de saúde, em seus diferentes níveis de ções e equilíbrio social.
atenção seja alvo de discussões e decisões que
possam equacionar algumas lacunas e barreiras
na efetivação do papel do médico generalista e Cuidado com a criança – uma conquista
do especialista na oferta do melhor cuidado à para todos
população infantil23.
A busca de redução das mortes que ocor-
rem ainda na infância tem determinado o foco
Convivência solidária e pacífica – meta para das políticas públicas de saúde para atenção às
o ser humano doenças, à recuperação da saúde. No momento
atual quando o número de mortes infantis real-
É cada vez mais reconhecido que os cui- mente mostra-se em declíneo torna-se possível
dados com a criança devem objetivar a constru- uma maior dedicação ao cuidado das crianças
ção de pessoas capazes de conviverem em paz. com maior abrangência o que inclui de fato,
Para atingir esse objetivo algumas metas de de- também, promoção da saúde e a prevenção da
senvolvimento humano precisam ser buscadas: doença ou seja, o uso do conhecimento para con-
auto-estima, criatividade, autonomia, felicidade, soli- servar a saúde, o bem-estar humano.
dariedade e saúde. Essas metas estão estreitamen- De toda forma, há sempre uma estreita re-
te relacionadas com afeto e cuidados dedicados lação entre a produção de saúde e de doença tan-
às crianças nas fases de desenvolvimento e res- to individual como coletiva, ao considerarmos
pondem pelas possibilidades de êxito que trarão a estrutura de causalidade, de determinantes
influências ao sentido do esplendor da vida, no desses processos. Os determinantes podem ser
encontro de soluções positivas mesmo quando as identificados entre fatores protetores ou agres-
dificuldades estejam presentes – resiliência20,2, 25,17. sivos (de risco).
Portanto, se por um lado a pretensão da A crescente evolução favorável da esperan-
puericultura é fazer crescer fisicamente saudável, ça de vida ao nascer traz à reflexão sobre fatores
ela se complementa na busca de elementos que protetores e sobre o aumento da responsabili-
possam dar à criança o desenvolvimento físico, dade do setor saúde, pois para um período mais
social, emocional e psíquico, para a formação do longo de vida é imprescindível que se tenha na
ser confiante em si, e daí solidário, em harmonia infância cuidados que possam proporcionar a
com o outro para sentir-se feliz. Segundo Aristó- melhor qualidade de vida.
teles, há já dois mil anos, “a felicidade consiste Desde a I Conferência Internacional sobre
em estar satisfeito consigo mesmo”26. Promoção de Saúde, realizada em Otawa, 1986,

220
Capítulo 20 • Puericultura na promoção da saúde da criança

há uma consciência mais forte e uma busca pela da existência dos riscos, menos ou mais inten-
redução das desigualdades sociais reconhecidas sos, presentes na vida das crianças. Assim pode
como fatores que exercem mais frequentemen- ser definida a melhor programação, o melhor
te que os ambientais e mesmo os biológicos, a plano para situações mais gerais ou mais especí-
causalidade dos desvios da saúde14,13. Da mesma ficas desde o nascimento. Ou desde o pré-natal?
forma é reconhecida a necessidade e o valor da Ou desde a pré-concepção?
criação de políticas públicas com reorientação Estudos epidemiológicos, permitem co-
dos serviços de saúde, participação comunitária, nhecer informações sobre indicadores sociais
promoção de ambientes favoráveis e o desenvol- de saúde, enfermidades mais freqüentes no ciclo
vimento de habilidades pessoais que melhorem de vida infantil (até dez anos) para uma atuação
a saúde das pessoas. Essas políticas enfatizam competente no controle dos mesmos. Ao mesmo
ações preventivas baseadas na visão ampliada de tempo esse conhecimento deve ser usado para
saúde e integração efetiva com a comunidade15. uma boa comunicação e orientação aos cuidado-
Neste aspecto, a Puericultura se apresenta res da criança, vigiar a criança sadia para que esta
como relevante na influência do processo saúde- condição seja mantida e para que a criança seja
doença, sem banalizar os fenômenos doença e estimulada na sociedade, no domicílio, na escola,
morte, mas dedicando-se, com mais entusiasmo, nos serviços de saúde, considerando que saúde é
ao desenvolvimento de uma real cultura de saú- um bem construído a cada momento, em cada
de fundamentada na paz, na eqüidade, no com- lugar por meio do uso dos fatores que lhe são
portamento pessoal e social e na criação de uma protetores e o controle ou eliminação daqueles
relação positiva com o ambiente por meio das que são de risco à sua conquista e manutenção22.
ações de promoção e de prevenção. A puericultura tem, portanto, influências
Há hoje o reconhecimento científico de concretas nas diferentes fases da construção do
que os primeiros anos são decisivos para estru- ser humano, seja no planejamento familiar, na
tura da personalidade do ser em si e de que a concepção, no pré-natal, no nascimento e no pe-
influência do contexto de vida é crucial para in- ríodo pós-natal (crescimento e desenvolvimento
dicar a melhor conduta dos profissionais e dos infantil) durante os quais se somam os processos
cuidadores de crianças. Vejamos um exemplo de construção da vida humana saudável22.
contextualizado. Em Jucás, cidade do interior E assim, se pode concluir que atenção pre-
do Ceará, foi identificada, por uma agente de coce para promover saúde e prevenir doenças
saúde, uma criança de cerca de dois anos, con- começa muito cedo para que sejam obtidos os
siderada “retardada mental”. A criança passava melhores resultados sobre o desenvolvimento e
o dia sozinha pois sua mãe lavava roupa no rio, o crescimento do ser humano.
distante de casa, mas deixava-a numa rede com
um frasco (de coca-cola) cheio de leite para que
não passasse fome. Não falava, não andava. Ao Puericultura pré-concepcional – cuidando
descobri-la, o agente de saúde organizou uma daquele que há de chegar e crescer
pequena “rede de cuidados” com a vizinhança
e cada dia uma família ficava com a criança e Esta parte da puericultura refere-se as ex-
procurava estimulá-la. Em cerca de três meses a periências, conhecimento e desejos que tem as
criança andava e começava a falar. pessoas antes de conceber um filho1.
Desta forma, um programa de ações para Entende-se que planejamento familiar
acompanhamento do crescimento e do desen- não é tão somente impedir uma gravidez. Mas é,
volvimento infantil não é possível dissociar-se sobretudo um período de maturação pessoal, de

221
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

organização de vida e do ambiente que acolherá de gestação em situação instável pode não signi-
esse novo ser, de modo a garantir-lhe as condi- ficar uma contribuição favorável, trazendo crise
ções para seu crescimento e desenvolvimento. pessoal ou familiar e prejudicar a relação entre a
Os futuros pais devem estar preparados criança e a relação desta consigo mesma.
para assumir a criação, o cuidado com seus fi-
lhos. Esse preparo se dá no campo biológico, so-
cial e psicológico3. Aspectos biológicos
O médico juntamente com os demais inte-
grantes da equipe de saúde da família ao elaborar São aspectos muito importantes e se refe-
um programa de atuação para jovens de modo a rem desde o potencial genético dos pais e mesmo
informá-los, discute com eles sobre os aspectos de seus antecessores, os quais interagindo com o
da procriação e assim possibilita decisões mais ambiente podem desenvolver problemas para a
apropriadas sobre a geração de seus filhos1. criança que tenha herdado alguma característica
de transmissão hereditária.
Conhecer o estado de saúde, sobretudo da
Temáticas de um programa de saúde para mulher é fundamental para que seja possível atuar
futuros pais sobre algumas situações cujo risco se eleva durante
a gestação quer para a mulher quer para o concep-
to. Infecção, diabetes, hipertensão arterial repre-
Aspectos Sociais sentam algumas dessas importantes condições.
O estado vacinal da mulher é de extrema re-
• Identificar formas de compromisso com a pa- levância. Preferencialmente ela deve ser protegida
ternidade e a maternidade; antes de engravidar contra doenças imunopreve-
• Avaliar situação econômica que possa ofertar níveis que podem causar graves danos ao feto e ao
o mínimo necessário ao cuidado da criança e recém-nascido, como rubéola, hepatite B e tétano.
até mesmo, antecipadamente, com a mulher Uso de ácido fólico dois a três meses antes de
no período gestacional e no parto; engravidar pode prevenir alguma malformação17.
• Analisar aspectos afetivos que influenciarão na Outro aspecto é relativo ao fator RH dos
construção do ambiente de vida da criança; pais ou futuros pais. Se a mãe é RH negativo e o
• Discutir e criar compreensão, sobre a impor- pai for RH positivo, o conhecimento antecipado
tância da criação para auto-estima, autono- cria possibilidades de intervenção pelo médico
mia, plenitude do bem estar da criança; prevenindo a iso-imunização.
• Trata-se de uma tentativa para obter um com- Aconselhamento sobre testes para HIV e
portamento mais responsável e afetivo que sífilis, importantes para os cuidados pessoais, do
possa resultar em equilíbrio biopsicosocial casal e do futuro concepto5.
para o crescimento e o desenvolvimento dos Não menos importante é conhecer sobre o
filhos, de preparar um ambiente acolhedor uso de medicamento e outras drogas como fumo
para a criança. e álcool, cujos efeitos negativos sobre o concepto
são amplamente reconhecidos. Devem ser con-
trolados por meio de decisão compartilhada18.
Aspectos emocionais Acrescenta-se ainda questões como alimen-
tação e nutrição da mulher as quais terão influ-
A formação do vínculo afetivo já começa a ência na nutrição do feto e, de importância con-
ser construído antes da concepção. Um começo siderável esta também a idade dos pais; quando

222
Capítulo 20 • Puericultura na promoção da saúde da criança

muitos jovens, não têm maturidade orgânica e psi- ações específicas, sobretudo quando vítima de
cológica para a concepção, a criação e os cuidados violência doméstica ou sexual. Deve participar
com a criança. Também quando idosos é preciso de atividades lúdicas, de exercícios físicos que
que se analise o risco maior de alterações genéticas também irão facilitar o nascimento da criança.
no desenvolvimento fetal e mesmo em relação a É importante a participação do pai nas de-
grande diferença de idade entre pais e filhos e os cisões de gerar um filho, nas consultas do pré-
efeitos na interação emocional e psicosocial. natal e de puericultura do bebê e no processo do
Para completar, não pode ser esquecida a seu desenvolvimento21,26,7,4.
orientação sobre o intervalo interpartal de dois
anos, importante para o restabelecimento fisio-
lógico da mulher e os cuidados com a criança – A consulta do “bebê” no início do último
aleitamento e maior dedicação5,25. trimestre da gestação

Esta consulta permite a detecção de pro-


Puericultura pré-natal – nascimento blemas para os quais será possível aplicar me-
mais seguro didas de correção, controle ou prevenção, quer
sejam em relação à gestante com prejuízo para
É imprescindível, para o bem-estar do ca- a saúde do feto, quer sejam relacionados ao pró-
sal ou da mulher grávida e do seu futuro filho, prio feto21. De modo geral é esperado:
conhecer o que acontece durante a gravidez, os • Estabelecimento ou fortalecimento de uma
cuidados necessários à mulher, à criança e à fa- relação de cumplicidade com a gestante e a
mília que a acolherá. É, pois uma tarefa especial família pela saúde e o bem-estar da criança
do médico de família captar as gestantes o mais esperada;
precoce possível para iniciar o pré-natal que • Identificação e orientação às mães e familia-
deve ser ofertado observando protocolos padro- res sobre alterações hormonais, emocionais e
nizados com ações de qualidade. comportamentais próprias desse período10;
É competência do médico da família com • Identificação de possíveis situações de risco
apoio da equipe levar aos pais esclarecimentos no domicílio, na dinâmica familiar;
para que se conscientizem e possam assumir com • Análise de e�ames complementares e identi-
mais clareza e competência as responsabilidades ficação de presença de patologias da mãe que
e compromissos com seu filho ou filha21. possam influenciar na saúde da criança, e seu
Alterações biológicas, emocionais e mesmo encaminhamento para serviços apropriados;
sociais ocorrem no período da gravidez. Vômitos • Identificação de problemas com o crescimen-
e náuseas podem surgir em conseqüência de mu- to e o desenvolvimento fetal, ultra-som;
danças hormonais e, quando associados a fatores • Au�ílio no controle de angústia, temor ao parto
emocionais e sociais ligados à mudanças no aspec- ou à uma possível anormalidade da criança;
to, na aparência física podem trazer rejeição ao fi- • Identificação de sinais de alarme para parto pre-
lho e influenciar na produção de instabilidade, in- maturo (AIDPI) e atuação sobre os mesmos18;
segurança emocional do feto e após o nascimento. • Orientação e planejamento sobre vacinas,
A valorização da mulher, da sua beleza e aleitamento materno, primeiros cuidados
da sua preparação física e psíquica pode preve- com o recém-nascido, consultas de seguimen-
nir baixa estima e pode auxiliar no momento to (puericultura), triagem neonatal, visitas
do parto. Assim, quando é possível, a gestante domiciliares, valorização do Cartão da Ges-
deve receber atendimento psicológico em situ- tante, e da Cartão ou Caderneta da Criança;

223
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• Planejamento, se possível conjunto, do local • Comunicação com a mãe e familiares;


e tipo do parto, estimulando o parto normal e • Encaminhamento para outros setores/ unida-
o alojamento conjunto26,19,6; des quando for indicado e conforme organi-
• Conhecimento dos locais de referência para o zação do sistema de saúde.
parto, inclusive do funcionamento das Cen-
trais de Regulação, onde houver, visando as- Complexo? Nem tanto!
sim a garantia do acolhimento imediato da Este processo de trabalho pode ser facili-
gestante na maternidade. tado se for estabelecida uma rotina e existir o co-
nhecimento de tudo que não pode deixar de ser
avaliado e orientado e se for desenvolvida uma
Puericultura no período pós-natal – uma relação de confiança, paciência e carinho com a
decisão em defesa da vida criança e com a família.
Um bom começo é o contato pré-estabele-
Esse é o acompanhamento usual que se faz a cido com a gestante, momento no qual se inicia a
partir do pós-parto imediato, do nascimento e que relação do profissional com a futura mãe, com a
começa com a consulta do recém-nascido na sala de família e com a criança que está sendo esperada.
parto, a qual é seguida da visita domiciliar na pri- As consultas de puericultura começam,
meira semana para um atendimento mais comple- portanto, preferencialmente no pré-natal e até
to envolvendo a relação criança-mãe-família, cada na pré-concepção para que se conheçam as pro-
um especificamente e os aspectos ambientais. váveis condições de saúde no momento do parto,
para dar oportunidade de identificar interven-
ções resolutivas e para transmitir à gestante al-
Consulta de Puericultura – focos de atenção gumas informações importantes para o melhor
desenvolvimento e nutrição do feto e da criança.
O atendimento da criança saudável – con- Toda criança que nasce em boas condi-
sulta de Puericultura é realizado na Unidade Bási- ções, ou seja, de baixo risco no pré-natal e no
ca de Saúde. Nessa consulta, são realizadas ativi- nascimento poderá ser acompanhada pelo médi-
dades voltadas para acompanhamento e avaliação co da família e quando houver indicação passará
da criança com subseqüente orientação às mães também por consulta com o pediatra. O ideal é
ou familiares, com atenção nos seguintes focos21: que a consulta do recém-nascido, em sala de par-
• Desenvolvimento neuro-psico-motor, social to, seja realizada por pediatra21.
e afetivo; Todos os nascidos que apresentem caracte-
• Crescimento físico e nutrição; rísticas reconhecidas como fatores de risco, tais
• Vacinação; como prematuridade, baixo peso, e que sejam
• Higiene pessoal, mental, domiciliar e am- egressos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva)
biental, atividades lúdicas, vínculo afetivo, ou com risco adquirido, identificado em qualquer
auto-estima, análise e orientação à família fase de sua evolução, deverão ser acompanhados
sobre o ambiente da criança - berço, quarto, preferencialmente por médico pediatra. Para estas
casa, quintal, nicho ecológico, marcante para crianças serão programados calendários especiais
a saúde da criança; de visitas, de acordo com a situação identificada e
• Segurança e proteção contra acidentes, vio- conforme decisões entre os profissionais da equi-
lências e maus tratos; pe, outros especialistas e a própria família.
• Estimulação; Nos dois primeiros anos de vida, quando
• Identificação de agravos e situações de risco; ocorrem com maior intensidade o crescimento e

224
Capítulo 20 • Puericultura na promoção da saúde da criança

o desenvolvimento, é importante que as visitas Devem ser realizados, rotineiramente, testes


sejam mais freqüentes e sua programação deve para verificação de acuidade visual e auditiva, tes-
considerar situações de risco que possam ser tes para doenças metabólicas – triagem neonatal.
identificadas12. A partir da consulta dos 24 meses deve ser
A criança normal ou de baixo risco du- realizada uma consulta semestral ou anual até os
rante o seu primeiro ano de vida, deverá receber 10 anos de idade.
consulta médica ao nascer, no 1º mês de vida, de É importante proceder a busca de crianças
preferência na 1ª semana de vida também, du- por meio das visitas domiciliares do ACS para
rante a visita domiciliar, no final do primeiro e promover e garantir a realização de todas as con-
do segundo mês quando podem, ainda, aparecer sultas programadas evitando possíveis agravos à
problemas relacionados com nascimento e po- saúde infantil ou atraso no seu controle.
dem ser evitados agravos nutricionais por des- Conforme pode ser observado, as consultas
mame precoce ou alimentação inadequada; no serão realizadas praticamente segundo as datas
quarto mês, além de questões relacionadas à ali- de aplicação das vacinas. De modo que, sem
mentação, é também fundamental avaliar se há prejuízo do acompanhamento do desenvolvi-
comprometimento do desenvolvimento. Nesta mento da criança, sejam otimizadas as ativida-
idade a criança já apresenta sorriso social, susten- des nas Unidades de Saúde e o deslocamento
ta a cabeça; no sexto e nono meses deve-se estar das mães21.
atento à risco nutricional e de desenvolvimento
– a criança senta aos seis meses e apresenta de-
senvolvimento motor fino e linguagem entre os A Consulta de Puericultura na Prática –
nove e doze meses, quando também já fica de pé Atendimento à criança na sala de parto
e pode começar a andar. Há ainda que se conside-
rar os riscos de infecção e os períodos de aplica- Logo após o nascimento, a criança rece-
ção de vacinas: um, dois, quatro, seis, doze e de- be os primeiros cuidados por médico – pediatra
zoito meses. A partir dos dois anos as consultas quando disponível, ou pelo médico de família,
podem ser semestrais ou mesmo anuais21. ainda na sala de parto visando proporcionar-lhe
as melhores condições para sua adaptação à vida
extra-uterina, avaliar temperatura, maturidade,
Atendimento da criança – uma proposta de estado nutricional, identificação e classificação
calendário de situações de risco. Em seguida são propor-
cionados cuidados imediatos – nos primeiros 30
As consultas de Puericultura atenderão, segundos de vida e os cuidados mediatos que se
sempre que for possível, ao seguinte calendário2: seguem a estes iniciais21.
• Consulta de orientação aos pais pré-concepção; São medidas que objetivam um atendimen-
• Consulta do bebê no pré-natal, no 3º trimes- to de elevado padrão tecnológico e humanizado,
tre de gravidez; evitando agressões “técnicas” desnecessárias.
• Consulta ao nascimento – sala de parto e na
alta da maternidade;
• Consulta da 1ª semana de vida, entre o 3º e o Cuidados Imediatos
7º dia – visita domiciliar ou ambulatorial;
• Consulta ao final do 1º mês, aos 2 meses, 4 Nos primeiros 30 segundos de vida, após
meses, 6 meses, 9 meses, 12 meses, 18 meses e certificar-se que não existem situações graves
24 meses. que requeiram intervenção especializada e ime-

225
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

diata, devem ser ofertados ao recém-nascido, de • Prevenir doença hemorrágica - Vitamina K -


forma humanizada, os seguintes cuidados: 1mg, intra-muscular (nos prematuros < 2Kg
• Receber o recém-nascido de modo suave e usar 0,5mg);
delicado de modo a prevenir agressões físi- • Verificar eliminação de urina e mecônio;
cas ou psicológicas, transmitindo-lhe res- • Promover o aleitamento materno na primeira
peito e amor; meia hora de vida;
• Prevenir perda de calor - colocar o recém- • Realizar e�ame físico completo, classificação
nascido em local aquecido; da idade gestacional e aferição de dados an-
• Permeabilizar as vias aéreas - colocar o recém- tropométricos - mensuração do peso, estatu-
nascido em decúbito dorsal com leve extensão ra, perímetro cefálico e perímetro torácico,
do pescoço para facilitar a entrada de ar; verificação da temperatura axilar, registrando
• Aspirar as vias aéreas, quando for realmente tudo no Cartão ou Caderneta da Criança;
necessário, iniciando pela boca e em seguida • Identificar o recém-nascido colocando pul-
as narinas; seira com o nome da mãe;
• Secar o recém-nascido e em seguida remover • Avaliar critérios de encaminhamento do
os campos úmidos; recém-nascido para o alojamento conjunto
• Realizar estimulação tátil para respiração, se (com sua mãe), berçário de médio risco ou
necessário; unidade de terapia intensiva UTI;
• Avaliar a vitalidade do recém-nascido, verificar • Iniciar o esquema básico de vacinação - �CG
respiração, freqüência cardíaca e cor da pele; intra-dérmica nos RN com peso igual ou
• Promover imediato contato pele – a – pele maior que 2kg e contra hepatite B (se possí-
com a mãe para formação de vínculo já que vel, nas primeiras 12 horas de vida) para to-
os bebês podem interagir e aprender com o dos, registrando na Caderneta da Criança;
mundo desde o primeiro dia de vida, mesmo • Encaminhar para alojamento conjunto – mãe
que de forma rudimentar, por isso o interes- e filho, todo recém-nascido que apresentar os
se e participação dos pais deve ser valorizada seguintes critérios:
desde o início; - RN com Índice de Apgar maior que 7 (5º
• Cortar o cordão umbilical com material es- minuto), exame físico normal e peso maior
téril/descartável, fazer a ligadura do cordão e que 2000g.
limpeza do coto umbilical com álcool a 70% - RN com idade gestacional maior que 34 se-
para prevenção da onfalite21. manas (prematuro ou pequeno para a gesta-
cional) com controle glicêmico.
Com um minuto e com cinco minutos - RN grande para a idade gestacional, com
de vida: Proceder avaliação pelo método de AP- controle glicêmico.
GAR, verificando batimentos cardíacos, respi- - RN com exame físico normal, peso maior
ração tono muscular, irritabilidade reflexa e cor que 2000g e bolsa rota aguardando exame
da pele. Não esquecer de anotar, em seguida, no complementar21.
Cartão ou Caderneta da Criança21.
Atendimento na alta hospitalar
Cuidados mediatos
Por ocasião da alta hospitalar é importan-
• Prevenir oftalmia gonocócica - Nitrato de te fazer uma revisão da criança voltada para seu
Prata 1%: 1 gota em cada olho e retirar o ex- bem-estar, na qual estão incluídas as seguintes
cesso com gaze; recomendações21:

226
Capítulo 20 • Puericultura na promoção da saúde da criança

• Proceder novo e�ame da criança; • Indagação à mãe se o bebê nasceu bem, se


• Preencher declaração de nascido vivo; precisou incubadora, se mamou logo após o
• Assegurar a vacinação com �CG e contra He- parto e se ficaram em alojamento conjunto;
patite B; • Observação do umbigo. Se o coto já caiu, veja
• Completar o preenchimento da Caderneta da se está seco ou úmido (secreção). Se tiver se-
Criança; creção, encaminhar para atendimento na uni-
• Entregar a Caderneta à mãe; dade de saúde; se o coto umbilical não caiu,
• Orientar a mãe sobre aleitamento materno, verificar como está sendo feito a limpeza diá-
higiene do coto umbilical, importância e uso ria - deve ser usado álcool a 70% e não precisa
da Caderneta da Criança, triagem neonatal curativo. A queda do coto umbilical ocorre
(teste do pezinho), registro civil e cuidados entre o 5º e o 10º dia;
gerais com a criança; • Esclarecimentos sobre o banho - usar sabão
• Observar sinais de distúrbios psicológicos da neutro e água morna, enxugar bem o bebê, não
mãe que possam interferir na relação mãe- é necessário usar talco o qual pode ser prejudi-
bebê como depressão pós parto; cial, causar alergias e até sufocar. Se necessário
• Orientar a mãe em relação às alterações e difi- observar e ajudar a dar banho no bebê;
culdades esperadas para esse início e procurar • Verificação se a criança mama no peito -
incentivar a continuidade e qualidade do cui- orientar a mãe que o leite materno é o melhor
dado e da relação; alimento para o bebê, torna a criança mais in-
• Agendar visita domiciliar na primeira semana, teligente. O bebê não tem horário certo para
para revisão do recém-nascido e da puérpera; mamar e mama muitas vezes durante o dia e
• Verificar se a criança está com funções elimi- a noite. Após largar o primeiro peito sempre
natórias presente (urina e evacuação). oferecer o outro. O bebê deve mamar sempre
nas duas mamas. Se for preciso, orientar sobre
a existência e uso de bancos de leite humano;
Visita domiciliar na 1ª semana • Esclarecimentos sobre o uso de chupetas e ma-
madeiras; ambos são desnecessários e prejudi-
A visita domiciliar pode ser feita por um dos ciais ao aleitamento materno, pois constituem
membros da equipe da Saúde da Família, por se causa comum de desmame precoce uma vez que
tratar de crianças consideradas de baixo risco. En- sua sucção é diferente daquela realizada no seio.
tretanto na próxima semana e mesmo no próximo É também prejudicial para a formação da arcada
mês de vida um risco maior pode se estabelecer a dentária e para a fala. Explicar que o bebê nem
qualquer momento e não ser perceptível à família. sempre chora com fome e sim por necessidade
Nesta direção, a responsabilidade de ter o de colo, pelo barulho, pelo frio ou calor;
domínio da situação, acompanhar e conhecer o • Verificação dos movimentos do bebê e observar
produto desta visita domiciliar é essencialmente o aleitamento verificando se a pega está boa:
do médico de família. - Queixo encostando no peito da mãe;
O que deve ser monitorado22: - O lábio inferior voltado para fora;
• Situação geral da mãe e do bebê; - A boca bem aberta abocanhando o mamilo
• Identificação do tipo de parto e como a mãe e boa da parte da aréola (Se a aréola estiver
está se sentindo; visível deve ser a parte superior);
• Análise da Caderneta da Criança ou outra fi- - O bebê deve estar todo voltado para a mãe –
cha que a mãe tenha recebido verificando os corpo do bebê todo virado para a mãe, bar-
dados da criança (peso, APGAR, aplicação de riga do bebê encostada na barriga da mãe;
vacinas- BCG e contra hepatite B);

227
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

- A pega correta não é dolorosa, se estiver do- • Verificação das narinas do bebê, se estão obstru-
endo a pega estará incorreta. Ajude a mãe a ídas: se sim, orientar o uso de soro fisiológico
aproximar mais o bebê de seu corpo. nasal ou soro feito em casa: 100ml + 1 pitada
• Informar à mãe que acariciar, conversar, cantar é de sal, ferver bem e deixar esfriar coberto; usar
muito bom para o desenvolvimento da criança; 1 ml em cada narina com conta-gotas ou serin-
• Informação também sobre os cuidados com ga sem agulha. Trocar a solução após 24 horas;
excesso de pano próximo ao rosto o bebê - • Verificação e orientação, sobre o teste do
pode sufocá-lo; pezinho;
• Orientação para colocar o bebê no local mais • Orientação sobre as vacinas e higiene;
arejado e menos barulhento de casa, tendo • Demonstração a mãe sobre o uso da Caderne-
cuidado com animais e acidentes domésticos. ta da Criança no auxílio para acompanhar o
Informar que é bom para o bebê ter um canti- desenvolvimento e a saúde do seu bebê;
nho para ele, que será reconhecido e lhe dará • E�plicação sobre a importância das consultas
confiança, segurança; de puericultura para acompanhar a saúde do
• Orientação que ao trocar a fralda, deve fazer bebê;
uma limpeza com algodão ou pano limpo mo- • Elogiar a mãe pelo que estiver fazendo corre-
lhados e evitar os produtos industrializados; to, encorajá-la a melhorar caso ela não esteja
• Informação sobre a facilidade com que o bebê cuidando corretamente do bebê; lembrando
se assusta e que no 1º mês de vida já olha e se- que a casa deve ser a mais limpa possível; que
gue com os olhos um rosto que se movimenta o fumo e o álcool são extremamente prejudi-
muito próximo; ciais à saúde da mãe, do bebê e sua família e,
• Orientação para pendurar brinquedos de for- portanto, devem ser evitados;
mas e cores variadas no berço ou na rede, para • Verificação se a mãe ou familiares tem alguma
estimular o bebê; dúvida ou pergunta a fazer e orientá-los, se
• Orientação para que o pai também embala, for o caso, consulta na puericultura na Uni-
acaricia e conversa com o bebê; dade de Saúde.

A CRIANÇA NA UNIDADE DE SAÚDE


Encaminhamento por Visitas domiciliares pela equipe
creches, escolas etc. de saúde da família e ACS

Egressos hospitalares
Procura espontânea e das urgências

Acolhimento na Unidade Básica

Avaliação do cartão da criança Abordagem de sinais de perigo/risco*


(curva de crescimento/ (priorização de atendimento)
*
desenvolvimento/vacinação) vide diagrama “Abordagem da criança”

não sim
Avaliação de doenças respiratórias
acompanhar de acordo com definições locais Atendimento pelo médico
Atendimento pela equipe
avaliação integral do crescimento/desenvolvimento e de acordo com as definições
manutenção do calendário de acompanhamento locais
Avaliação de distúrbios nutricionais

Atendimento pela equipe


Acompanhamento do crescimento e de acordo com as definições locais
desenvolvimento/outras ações
Ação intersetorial
Fluxo de atendimento da criança na USB.
Fonte: Ministério da Saúde, 2005

228
Capítulo 20 • Puericultura na promoção da saúde da criança

ABORDAGEM DE RISCO DA CRIANÇA NA UNIDADE DE SAÚDE

Acolhimento

Avaliação de fatores de risco


• Residente em área de risco • Desnutridos
• �ai�o peso ao nascer • Internação prévia
• Criança com doença crônica grave • Menores de 1 ano (destaque < de 3 meses)
• Prematuros • Cartão de vacinas atrasado

Verificar queixas, sinais e sintomas


• Cefaléia • Garganta vermelha • Chieira
• Febre • Dor de garganta • Vômitos
• Tosse • Dor de ouvido • Diarréia
• Coriza • Secreção no ouvido
• Obstrução nasa • Dificuldade para respirar

Identificar sinais e sintomas gerais de perigo


• prostração mesmo sem febre • hipotonia/hipertonia • esforço respiratório
• agitação/irritabilidade intensas • < de 2 meses com FR < 30/min • diarréia com sangue
• recusa alimentar/sucção débil (principalmente em menores de 2 meses) • desidratação
• vômito ao ingerir alimento/líquido • respiração rápida • secreção purulenta no ouvido
• convulsão 0 a 2 meses: > 60/min • doente há mais de 7 dias
2 a 12 meses: > 50/min
• cianose 1 a 5 anos: > 40/min • febre persistente há mais de 3 dias
• palidez intensa 6 a 8 anos: > 30/min • apnéia (pausa respiratória prolongada)

Atendimento médico imediato

Fonte: Ministério da Saúde, 2005

A consulta de puericultura e a eficácia de um Na prática, a consulta é realizada confor-


bom diálogo me os passos seguintes:
• O médico recebe a criança e sua mãe ou outro
A consulta de puericultura deve ser reali- acompanhante; faz os cumprimentos habitu-
zada segundo o Calendário da Criança. Tem o ob- ais; observa o comportamento da criança e
jetivo principal de promover a saúde da criança da mãe e outros familiares quando estiverem
através de acompanhamento de seu crescimento presentes, dedica atenção ao relacionamento
e desenvolvimento, vacinação e orientações às estabelecido entre eles;
mães sobre alimentação, higiene, prevenção de • Verifica no prontuário e/ou na ficha de aten-
acidentes e a estimulação mais adequada para dimento da criança, informações sócio- am-
o desenvolvimento infantil. Outro objetivo da bientais, os dados da consulta anterior, se per-
consulta de puericultura é identificar doenças e/ tinente, e as informações atuais já registradas
ou sinais de alarme para tratamento e/ou enca- durante o preparo da criança, tais como peso,
minhamento adequado das crianças para aten- temperatura, estatura e perímetro cefálico;
ção apropriada. A equipe de saúde da família tem • Conversa com a mãe e com a criança, se per-
entre as suas atribuições realizar o seguimento tinente, para obter informações relativas aos
das crianças de modo organizado e qualificado focos de atenção que serão avaliados durante
da atividade21,22. a consulta;

229
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• Solicita a Caderneta da Criança, realiza o e�a- saúde requerem a realização de atos em cadeia
me físico da criança, faz análise das anotações funcionando em rede, desde o cuidado no domi-
anteriores como peso, vacinas, estatura, even- cílio até a mais complexa intervenção no sistema
tos importantes. Registra os achados do exa- de saúde. Essa dinâmica fundamentada na inte-
me atual na ficha ou prontuário e no Cartão gralidade – uma diretriz doutrinária do SUS que
ou Caderneta da Criança; objetiva a atenção à saúde desde a promoção de
• Conversa com a mãe ou acompanhante infor- saúde até sua recuperação e que tem lugar no do-
mando sobre a avaliação realizada; elogia as micílio, na unidade básica, no hospital e mesmo
atitudes positivas; orienta, explica e verifica em outros equipamentos sociais.
sua compreensão sobre as informações e con- Uma boa observação clínica depende do
dutas necessárias para o bom desenvolvimento grau de observação do médico, da escuta atencio-
e manutenção do estado de saúde da criança; sa, do estímulo para que a mãe tenha liberdade
reforça a importância do próximo retomo; e confiança de falar, enfim, de uma boa comuni-
• Quando for indicado, providencia encami- cação com a mãe, com a família, ou outros acom-
nhamento para consulta com especialistas, panhantes e com a criança. Compreende quatro
informa e orienta a mãe e/ou acompanhante fases: anamnese ou história do paciente, com o
sobre a necessidade desta consulta. interrogatório detalhado sobre a situação atual
da criança em relação aos focos ou elementos da
A consulta da criança apresenta diferen- consulta de puericultura; exame físico completo
ças em relação a do adulto. Em geral as informa- que utiliza desde a simples observação à marcha,
ções são obtidas por meio da comunicação dos postura, comportamento, fala, comunicação da
pais ou acompanhantes, complementadas pelo criança, toques, pesquisas de determinadas
próprio paciente seja na dedicada observação do respostas aos estímulo utilizados, até o uso de
médico com vistas à relação familiar, no próprio instrumentos que auxiliam na complementação
comportamento da criança ou, quando for pos- do exame; formulação de hipóteses diagnósticas; e
sível pela voz da criança que apresentará suas prescrições, que somam desde orientações sobre
queixas reais. Diferente do adulto que em geral condutas relacionadas à vacinação, higiene, pro-
busca atendimento quando adoece, as crianças teção contra acidentes e violências, alimentação
são levadas ao atendimento para o “acompanha- e estímulo ao desenvolvimento da criança até a
mento” ou avaliação do seu desenvolvimento, solicitação de exames, consultas com especialis-
crescimento, vacinação, alimentação e para es- tas e prescrição de medicamentos16.
clarecimento às mães sobre determinada con-
duta para a qual ela apresente-se insegura ou
mesmo total desconhecimento sobre a impor-
tância da mesma.
O atendimento médico da criança tem a
peculiar característica de envolver, no mínimo,
uma tríade: médico-criança-mãe ou família16.
O melhor atendimento à criança deve se
dar na oferta de uma atenção integral, à manu-
tenção da sua saúde - orgânica, psíquica, consi-
derando sempre sua inserção no ambiente fa-
miliar e social16. Muitas vezes a criança adoece
e o atendimento objetivando a recuperação da

230
Capítulo 20 • Puericultura na promoção da saúde da criança

Referências 13. Ministério da Saúde (BR). Saúde para todos no


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Antioquia; 1998.

231
Capítulo 21
Crescimento e Crescimento da Criança
desenvolvimento infantil
De maneira geral, é facilmente compreen-
Jocileide sales caMPos
sível que as crianças dependam dos adultos para
álvaro JorGe Madeiro leite
anaMaria cavalcante e silva sobreviver. Crianças são pessoas humanas experi-
mentando as delícias e as dores de um tempo em
todas as direções. Elas têm um passado – as expec-
tativas e valores da família e da cultura – vivem
num tempo que se refere ao presente e às bases

O desenvolvimento da criança sempre foi tema


de estudo de múltiplas disciplinas ou saberes.
É fascinante, para os que trabalham com crianças,
palpáveis do futuro. Tudo isso como ritual neces-
sário à aquisição das características próprias da
condição humana: um ser único, reconhecido em
percebê-las desde seus primeiros momentos, na sua individualidade e capaz de investir positiva-
condição de completa dependência de adultos e mente nas possibilidades da vida em sociedade6.
falta de autonomia, acompanhar o processo contí- Menos perceptíveis são as necessidades
nuo de conquistas e mudanças até que elas possam das crianças que precisam ser satisfeitas pelos
alcançar uma percepção mais clara de sua presen- adultos. Mais ainda, o modo como essas necessi-
ça no mundo como indivíduo singular inserido no dades vão se constituindo ao longo dos tempos
ambiente social e nele participando ativamente11. de vida delas. Tais necessidades revelam a natu-
Estes eventos inerentes à condição hu- reza complexa do cuidado infantil e da relação
mana são, freqüentemente, impalpáveis e nem existente entre tais cuidados e a formação huma-
sempre adequadamente valorizados, onde uma na como um todo – processo de humanização.
mescla fina de natureza objetiva, mensurável - Tome-se como exemplo ilustrativo des-
desenvolvimento físico ou crescimento – se as- sas necessidades algumas demandas humanas
socia com uma dimensão discreta, lenta, pouco como:Tome-se como exemplo ilustrativo dessas
perceptível, subjetiva – desenvolvimento pro- necessidades algumas demandas humanas como:
priamente dito. Tais eventos mobilizam múlti- • Carinho, representando a dimensão amorosa
plas expectativas nos pais, na família e na comu- da vida e a necessidade que o ser humano tem
nidade, numa mistura de valorações, emoções, de cuidados afetivos desde o primeiro mo-
reticências, vitórias e frustrações. A infância mento de sua existência.
abriga um lado obscuro, onde nossa memória • Proteção, amparo, segurança, representando
teima não alcançar ou revelar. O controle sobre a a dependência objetiva de outra pessoa.
natureza dessa infância é mais que precário e, no • Ser preparado para lidar, de maneira autôno-
entanto, somos constituídos nela e por ela26, 28. ma e criativa; com a vida real, os desafios, as
O reconhecimento de que as experiências alegrias e limitações da vida em sociedade.
da infância, em particular, dos primeiros seis
anos de vida, exercem efeitos consideráveis na Essas demandas envolvem múltiplas di-
futura capacidade funcional dos seres humanos mensões da condição humana e seus aspectos
explicita, de modo decisivo, a importância do interativos: físico, cognitivo, emocional, social.
tema que vem sendo profundamente estudado Crianças são pessoas em contínuo pro-
pela neurociência29. cesso de desenvolvimento - não estão prontas,

233
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

formadas, plenamente desenvolvidas. Precisam É fácil entender, portanto, que o reconhe-


que adultos entendam e contemplem suas neces- cimento do desenvolvimento normal envolve
sidades. Se algumas das manifestações externas uma cuidadosa atenção para evitar rotulações
desse processo (pensamento, linguagem, habili- de crianças com diferentes ritmos e habilidades
dades afetivas, motoras) não podem ou não são na aquisição dessas funções. Segundo Mamede e
facilmente percebidas, tampouco é verdade que Correa4, o desenvolvimento se constitui no pro-
não estejam em plena ebulição. cesso global e dinâmico de mudanças que acon-
É fundamental para aqueles que lidam tece com o ser humano desde sua concepção e
com crianças, reconhecer que elas, desde o nas- continua por toda a sua vida. Nesse processo
cimento, possuem todos os atributos biológicos, cada pessoa constrói sua personalidade, por si
cognitivos, emocionais e sociais que caracteri- próprio e pela experiência compartilhada com
zam a condição humana. Um recém-nascido re- outras pessoas e com as condições materiais, cul-
conhece, da mesma maneira que uma criança de turais e históricas do seu entorno4.
quatro anos de idade, sente conforto, confiança Vale recordar que o desenvolvimento do sis-
com a presença de sua mãe, ou melhor, ambas tema nervoso central, desde o início da gestação, é
utilizam elementos qualitativamente semelhan- influenciado por fatores genéticos, considerados
tes. Lidar com crianças requer vontade e sen- internos e por fatores externos manifestados por
sibilidade para reconhecer o contexto e as cir- meio de estímulos, por exemplo uso precoce de
cunstâncias que produzem o dinâmico processo computadores que modifica as sinapses de modo
de formação do ser humano nos aspectos físicos, a originar seres humanos diferentes.
emocionais, cognitivos e sociais. Estes atributos
são indispensáveis aos profissionais que dedi-
cam suas energias e sensibilidade para trabalhar Vigilância do crescimento e do
com crianças7. desenvolvimento na criança

No campo da saúde, o crescimento e o de-


Desenvolvimento – aquisição de habilidades senvolvimento são contínua e evolutivamente
e contexto sócio-familiar avaliados durante toda a infância e adolescência.
Cada vez mais é reconhecido que acompanhar
Desenvolvimento infantil não é apenas o crescimento e o desenvolvimento é tarefa es-
crescer e amadurecer. Mas responde à capaci- sencial, uma vez que estes são determinantes
dade inerente a herança genética, às interações da formação integral do ser humano. Esta ên-
individuais de cada criança com seus pais, com fase aproxima a Pediatria – campo da Medicina
aqueles que a cuidam e ao modo como é inserida que se ocupa da saúde das crianças e dos adoles-
no ambiente em que vive28. centes e os profissionais que lidam com crian-
Desenvolvimento é o processo de aquisi- ças e famílias, e mais particularmente, dos pais,
ção de funções de equilíbrio individual e adap- oferecendo-lhes um indicador global da vida de
tação social que vão assumindo aspectos cada seus filhos, uma nítida idéia de como eles estão
vez mais complexos na medida em que a idade se desenvolvendo.
transcorre. Por envolver expectativas e pers- Este acompanhamento possibilita identi-
pectivas da família, da sociedade e da cultura, é ficar precocemente situações e problemas que
um atributo humano que admite uma diversi- dificultam ou limitam o crescimento e o desen-
dade de conceitos, interpretações e possibilida- volvimento infantil e, assim, propor interven-
des de avaliação. ções tão precoces quanto possíveis. É uma janela

234
Capítulo 21 • Crescimento e desenvolvimento infantil

de oportunidades para prevenir fatores de risco O Cartão ou a Caderneta da Criança, dis-


e encaminhar crianças para atenção que se fizer ponibilizado em todas as unidades de saúde, é
necessária ao seu melhor crescimento e desen- o instrumento do Ministério da Saúde utilizado
volvimento. Além disso, as informações obtidas para acompanhar o crescimento e o desenvolvi-
durante essas avaliações direcionam e facilitam mento a partir do registro, em gráfico, de todas
o diálogo e o aconselhamento com a mãe outro as medidas antropométricas verificadas em cada
responsável pela criança11. consulta da criança na unidade de saúde, o que
permite construir uma curva de crescimento. É
importante lembrar que meninos e meninas têm
Avaliação do crescimento infantil padrões diferentes de medidas.
O registro do peso no cartão é que permi-
Acompanhar o modo como uma criança te, de fato, acompanhar o crescimento da criança
cresce é uma das melhores maneiras de saber por parte de sua mãe e do profissional de saú-
qual é o estado de sua saúde geral. Isto pode de para, se necessário, intervir em tempo hábil
ser realizado através de um programa de visi- ainda nos estágios incipientes de desnutrição. O
tas periódicas aos serviços de saúde ou seja das Cartão ou Caderneta da Criança, adotado para o
consultas de puericultura. São utilizadas medi- acompanhamento do crescimento e desenvolvi-
das quantitativas do peso, estatura, perímetro mento da criança no Brasil, é o mesmo proposto
cefálico e outras, para averiguar e monitorar se pelo Professor David Morley, da Inglaterra, que
o crescimento da criança está ocorrendo de ma- criou e definiu os cartões de crescimento para
neira harmônica e satisfatória. O objetivo prin- uso comunitário, a partir de experiências em
cipal é identificar o padrão de crescimento pró- Imesi na Nigéria, na década de sessenta19, 13, 12.
prio da criança e as circunstâncias que podem A análise da curva de crescimento permite
comprometê-lo haja vista que cada criança tem ao profissional e aos pais, visualizar a tendência
um modo peculiar de crescer e se desenvolver. do crescimento da criança. Uma curva ascenden-
A carga genética herdada dos pais é o primeiro te indica que a criança apresenta um bom cres-
determinante desse padrão. Porém as condições cimento. Curva com tendência a horizontalidade
de vida desfavoráveis e determinadas doenças significa perigo e uma curva descendente é um
podem, e o fazem freqüentemente, impedir a ex- sinal forte de que algo não vai bem com a saúde
pressão desse potencial genético. da criança, é um sinal de grande perigo17.
Para acompanhar o crescimento e o desen-
volvimento do filho, a mãe é estimulada a com-
parecer à unidade de saúde em atendimento ao Peso
programa de puericultura. A partir desse contato
freqüente, passa a ter acesso a outros serviços de O peso representa uma medida biológica
promoção da saúde e prevenção de doenças para si muito sensível. O aumento de peso, de forma
e seus familiares, como por exemplo a vacinação4. gradual e mantida ao longo dos meses é a expres-
A atenção à saúde da criança produz du- são de um estado saudável. Muito antes de os
pla conquista: para a criança, a possibilidade de sinais de desnutrição tornarem-se clinicamente
detecção precoce da lentidão de seu crescimen- evidentes pode-se detectar, através do controle
to (desnutrição) ou do ganho excessivo de peso periódico do peso, que o processo de crescimen-
(sobrepeso e obesidade); como valor coletivo, to está sendo lento ou estacionou.
obtém-se uma medida da ocorrência dessas duas Diante de uma condição aguda, seja doen-
condições na comunidade. ça ou situação estressante (pneumonia, diarréia,

235
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

perda de irmãos ou parentes próximos, separação superfície plana e dura utilizando antropômetro
dos pais, mudança de escola) a criança pode alte- cuja parte fixa deve tocar a cabeça da criança e
rar sua vitalidade, seu apetite e assim, comprome- a parte móvel é deslocada até tocar a planta dos
ter a absorção na quantidade ou na qualidade dos pés que devem estar em ângulo reto com as per-
alimentos ingeridos. A repercussão na saúde da nas estendidas firmemente. As crianças maiores
criança que estes agravos promovem está na de- devem ser medidas em pé e descalças, utilizando
pendência da intensidade e duração dos mesmos. balança com antropômetro ou se preciso colocá-
la ereta encostada em uma parede plana, marcar
o ponto da altura na parede utilizando esquadro
Evolução do peso ajustado à parede e à superfície superior da cabe-
ça da criança. Medir com fita métrica a distância
A criança costuma perder cerca de 10% do do chão até o ponto marcado.
peso do nascimento até o 10º dia de vida com
boa recuperação logo em seguida. No 1º trimes-
tre de vida ganha de 25 a 30 gramas por dia (750 Crescimento estatural esperado
- 900g/mês); no 2º trimestre, 20 a 25 gramas por
dia (600 - 750g/mês) e no 3º trimestre a incorpo- No primeiro ano de vida, a criança cresce em
ração de peso é de cerca de 15 a 20 gramas por média 25cm, sendo 15cm no 1º semestre e 10cm no
dia (450 - 600g/mês). Ao completar um ano de 2º semestre, o que equivale dizer que o aumento da
idade, espera-se que a criança tenha triplicado o estatura da criança corresponde a cerca de metade
peso de nascimento. Do 2º ano de vida em dian- do seu comprimento ao nascer alcançando 75cm.
te, o ganho deve ser de aproximadamente 2 a 3 No segundo ano de vida, o aumento é de 10cm ao
quilos por ano14. ano entre 1 e 3 anos. Assim, com 4 anos de idade a
A aferição do peso deve ser feita com a criança alcança cerca de um metro, o que equivale a
criança despida, sempre que possível, e em ba- dobrar o comprimento do nascimento. Até o início
lança apropriada para a idade – pesa-bebês (até da puberdade, o crescimento é de 6cm ao ano14.
15 kg) e balança de adultos, devidamente tarada. Algumas crianças apresentam uma parada
Atentar para os períodos de repleção, quan- transitória no crescimento próximo ao início da
do a criança parece mais gordinha, de zero a dois puberdade – 10 anos para as meninas e doze anos
anos, sobretudo até nove meses quando a crian- para os meninos, para logo após iniciar o segundo
ça mais engorda do que cresce. estirão, próprio desta fase ou ciclo vital, quando
a velocidade de crescimento aumenta progressi-
vamente até alcançar de 9 a 10 cm por ano, até a
Estatura ocorrência da menarca na menina que pode cres-
cer ainda 3 a 6 cm e, os meninos crescem com esta
A estatura é uma medida do crescimento velocidade, até os 15 anos e continuam crescendo
que se altera mais lentamente. É necessário um de modo mais lento, em geral, até 18 a 21 anos.
agravo intenso ou duradouro para que os efeitos Vale lembrar que o primeiro estirão ocorre entre
negativos sobre a estatura sejam detectáveis. O dois a cinco anos, após um período de repleção14.
comprometimento da estatura freqüentemente O Cartão ou Caderneta da Criança do Mi-
traduz um processo de longa duração com pe- nistério da Saúde não contém o gráfico de esta-
quenas possibilidades de recuperação. tura/idade ou altura/idade.
A medição da estatura da criança menor O fato de problemas agudos não afetarem
de dois anos deve ser feita deitada de costas em o crescimento estatural e a necessidade de pes-

236
Capítulo 21 • Crescimento e desenvolvimento infantil

soal mais capacitado para proceder às mensura- Como saber se uma determinada criança está
ções da estatura tem inibido tal iniciativa. No com peso e estatura normais?
entanto, para uma avaliação mais abrangente do
crescimento da criança é fundamental ter medi- O problema é entender a variabilidade do
das seriadas da estatura. É possível encontrá-lo crescimento saudável; não há uma única ma-
no Cartão ou Caderneta utilizadas por algumas neira de crescer ou se desenvolver. No entanto,
secretarias de saúde estaduais ou municipais. todos estamos sempre desejando saber se uma
O Cartão ou Caderneta da Criança é en- determinada criança está crescendo “normal”.
tão concebido como carteira de identificação Na família, os pais afirmam que um primo da
da criança, instrumento educativo, motivador, mesma idade é mais alto que o filho; na escola, a
cidadania. Útil como instrumento que permite criança pode se sentir magoada por que os ami-
à família compreender o crescimento e o desen- gos a chamam de baixinha e assim por diante.
volvimento de sua criança e dialogar com o pro- A lógica que serve de base para lidarmos
fissional sobre o assunto. com o problema da variabilidade do crescimen-
O objetivo da avaliação da estatura é acom- to é a seguinte: crianças de mesma idade e sexo,
panhar o crescimento linear da criança e identi- de condições sócio-econômicas adequadas ao
ficar aquelas que apresentam baixa estatura. O crescimento, apresentam um modo muito pare-
percentil 3 é o limite abaixo do qual uma criança cido de crescer e as variações encontradas entre
pode ser considerada com baixa estatura. estas podem ser consideradas aceitáveis, estando
todos dentro de uma faixa de normalidade.
Esta faixa de normalidade pode ser me-
Perímetro Cefálico lhor compreendida da seguinte maneira: ao ali-
nharmos, por ordem crescente de estatura, 100
É a medida da circunferência cefálica ou crianças sadias da mesma idade e sexo, teremos
perímetro craniano. Utilizar fita métrica que uma fila de crianças dispostas da maior para a
passe anteriormente na altura das arcadas su- menor. A medida da estatura de cada criança
pra-orbitárias e posteriormente na maior proe- representa 1% do total, o que equivale na lin-
minência do osso occipital. guagem estatística a um centil (percentil). Con-
A criança tem ao nascimento cerca de 34 sideram-se valores aceitáveis crianças com peso
- 35 centímetros de perímetro cefálico e ao fi- ou estatura que estão compreendidos entre os
nal do primeiro ano, 45 - 46cm. A partir daí, o percentis 3 e 97. Essa faixa corresponde a 94%
crescimento é de pouca expressão. Em crianças das crianças da população estudada, valor que
menores de dois anos, também se devem medir reflete a variabilidade do potencial genético en-
a circunferência cefálica ou perímetro craniano. tre as crianças saudáveis.
Esta medida fornece informações indiretas so- Crianças com medidas de altura situadas
bre o crescimento do cérebro e sobre as estrutu- abaixo do percentil 3 da população de referência
ras que estão protegidas dentro da cabeça14. são consideradas como portadoras de baixa esta-
tura. Este fato, no entanto, não expressa necessa-
riamente um problema ou significado de doença;
Fontanelas pode ser uma característica do crescimento da
criança, ou seja, o canal normal de crescimento
A fontanela anterior fecha entre o 9º e o da criança, geralmente de caráter familiar. Para a
18º mês e a posterior fecha mais cedo - aos dois altura, mais importante do que uma faixa de per-
meses de idade14. centil de vigilância é o seguimento longitudinal

237
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

para observar o canal normal de crescimento da- nutrição da criança mesmo sem saber qual a sua
quela criança6. idade correta. Útil para detectar casos de desnu-
Comparação entre as medidas antropomé- trição aguda (onde apenas perde-se peso) bem
tricas de uma determinada criança com medidas como excesso de peso.
de uma população de referência permite descre-
ver se a maneira como a criança está crescendo
pode ser considerada satisfatória. Estatura para idade ou altura para idade
Do ponto de vista populacional, o cresci-
mento somático é um indicador muito sensível Representa o crescimento linear, só se alte-
do estado de saúde e de nutrição de uma popu- ra quando uma deficiência ocorre por um longo
lação. Quanto mais as crianças de uma determi- período de tempo ou com períodos cumulativos.
nada região apresentam crescimento satisfatório Está sendo considerado como indicador mais
menor a ocorrência de doenças e de mortes pre- sensível para monitorar a qualidade de vida de
coces na comunidade25. uma população. A altura parece ser o melhor pa-
râmetro, em maiores de seis meses, para avaliar
o crescimento quando comparada ao peso, pois
Índices antropométricos os níveis alcançados não são perdidos14.
Uma maneira adequada de estudar se uma
Os médicos também utilizam a relação criança está crescendo de maneira satisfatória é
existente entre a idade, o peso e a estatura da medir e registrar o peso no Gráfico Peso/Idade
criança para estudar mais detalhadamente o no Cartão ou Caderneta da Criança, conforme
crescimento e fazer umavigilância do estado apresentado no anexo 1(A, B, C e D). Essas me-
nutricional. São os índices antropométricos, dições e registros devem ser realizadas em todas
que relacionam mais de uma medida. Permitem as consultas nos serviços de saúde. Procedendo
comparar a evolução do peso ou da estatura com desta forma, obtémse a velocidade de cresci-
a idade cronológica da criança ou mesmo entre mento da criança, uma vez que esta representa
seu peso e a sua estatura7, 27. o crescimento linear dela, criança, em um deter-
minado período de tempo.
Cada medida antropométrica – peso, altu-
Peso para idade ra – deverá ser plotada no gráfico. O ponto re-
presenta o encontro da linha correspondente ao
Representa a relação entre a massa corpó- peso ou a altura observado (eixo vertical) com
rea e a idade cronológica da criança. Constitui o a linha correspondente à idade da criança (eixo
índice mais sensível para monitorar o crescimen- horizontal).
to de menores de um ano quando o comprometi- O gráfico de Peso/Idade tem três linhas
mento da altura ainda não foi evidenciado16. dispostas paralelamente de cima para baixo e
com os seguintes significados: a primeira linha
superior representa os valores do percentil 97; a
Peso para estatura ou peso para altura segunda linha representa o percentil 10 e a linha
mais inferior corresponde ao percentil 316.
Avalia o peso em relação à estatura da Para interpretar a curva de crescimento
criança, tomando-se como base a estatura média no gráfico, e assim, avaliar o estado nutricio-
da população de referência. Uma vantagem des- nal, o Ministério da Saúde recomenda os se-
sa avaliação é que se pode conhecer aspectos da guintes critérios:

238
Capítulo 21 • Crescimento e desenvolvimento infantil

Se a criança estiver sendo pesada pela pri- criança e consultórios pediátricos para triagem
meira vez ou sem nenhuma anotação anterior, de crianças e adolescentes com excesso de peso,
deve-se observar a posição do peso em relação um problema de saúde pública com tendência
às linhas superior e inferior. Três situações são crescente no nosso país20.
possíveis:
• Se o peso estiver acima do percentil 97 a mes- IMC = peso em quilos dividido pela altura em metros ao
ma está com sobrepeso. quadrado (IMC = Peso/Estatura2).
• Se o peso estiver entre os percentis 97 e 3,
considera-se que a criança está numa faixa de
normalidade nutricional. Fatores que influenciam o crescimento
• Se o peso estiver abai�o do percentil 3, a infantil
criança pode estar com Peso Baixo ou Peso
Muito Baixo. O crescimento, como também o desenvol-
vimento das crianças, começa na vida intra-ute-
Se a criança estiver sendo acompanhada, e rina. Assim, é fácil imaginar a multiplicidade de
várias medidas já tiverem sido tomadas deve-se fatores que podem alterar o crescimento infantil
observar o sentido do traçado da curva de cresci- adequado. É a herança genética que determina
mento (ascendente, horizontal ou descendente). o potencial de crescimento de uma determina-
Crianças em aleitamento materno exclu- da criança (potencial genético). Mas, existe um
sivo recebem menos calorias que aquelas que conjunto de fatores que interferem ou condicio-
recebem outros alimentos e apresentam normal- nam o crescimento, que são: fatores genéticos,
mente um crescimento, em relação ao peso, mais relacionados à saúde e nutrição das gestantes;
lento a partir dos três meses o que pode determi- relacionados à alimentação e nutrição das crian-
nar falsas interpretações da curva de crescimen- ças; e relacionados à vida emocional da família
to. Recentemente foram desenvolvidas curvas de e das relações afetivas com a criança. Segundo
crescimento com crianças de diferentes países, Marcondes10, são fatores instrínsecos aqueles
alimentadas exclusivamente com leite materno relacionados ao sistema neuroendócrino e he-
até os seis meses14. reditariedade e são fatores extrínsecos os que se
referem ao meio como relações mãe-filho, ali-
mentação, condições sócio-econômicas14, 10.
Índice de massa corporal (IMC)

É um indicador indireto de gordura cor- Fatores Genéticos


poral. É calculado pelo peso em quilogramas,
dividido pela altura em metros ao quadrado. O Dizem respeito às características que são
resultado encontrado deve ser comparado com herdadas através dos genes, as moléculas que
tabelas de percentis, de acordo com sexo e idade. armazenam o material genético e determinam
Se o IMC for igual ou acima do percentil 85 e o potencial de crescimento de cada pessoa. Ao
abaixo do percentil 95, é considerado como so- nascer, toda pessoa traz inscrita em suas células
brepeso e, a partir do percentil 95, é considerado a informação genética contendo o potencial de
como obesidade. crescimento que pode alcançar se condições ade-
Alguns autores têm sugerido que o cálcu- quadas de vida estiverem presentes.
lo do IMC deveria ser instituído rotineiramente Algumas doenças genéticas ou congênitas
nas escolas, ambulatórios de atenção à saúde da comprometem de maneira definitiva o cresci-

239
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

mento: síndrome de Down, acondroplasia, car- caso, a criança precisa de alimentos comple-
diopatia congênita grave, rubéola etc. mentares adequados à sua idade. Uma alimen-
Importante salientar que algumas crianças tação inadequada tem impacto considerável
podem ter um pequeno potencial de crescimen- sobre o peso (efeito agudo), a estrutura (efeito
to determinado geneticamente. São conhecidas de carência crônica) e sobre o crescimento do
como Pequenas para a Idade Cronológica. São cérebro da criança.
crianças pequenas para a idade que têm e que Os profissionais que atuam na avaliação
não são decorrentes de doenças ou qualquer pro- do crescimento e desenvolvimento são médi-
blema orgânico. Sua baixa estatura não precisa cos, enfermeiros, psicólogos, assistentes so-
tratamento. Por outro lado, existem crianças ciais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeu-
com potencial genético de crescimento acima de tas ocupacionais, odontólogos, nutricionistas,
média das crianças para sua idade e, portanto, formando uma rede de atendimento em divers-
com estatura final elevada. sos pontos do sistema de saúde e atuando em
uma abordagem interdisciplinar. Os professo-
res também devem estar inseridos nesta rede
Saúde e nutrição da gestante: crescimento que ultrapassa então o enfoque que passa a ser
intra-útero intersetorial. Neste caso também se incluem a
justiça, a comunicação, a sociedade, a família –
Condições relacionadas com a saúde da todos pela criança21.
gestante podem, já no princípio da vida, com-
prometer o crescimento e desenvolvimento das
crianças. Assim, algumas condições ou doenças
maternas (gravidez em mulheres muito jovens
ou com idade avançada, doença hipertensiva
da gravidez, diabetes, desnutrição materna) po-
dem restringir o crescimento do feto, fazendo
com que alguns bebês já nasçam desnutridos ou
com graves prejuízos em seu potencial de cresci-
mento. Em nosso meio, cerca de 3% dos recém-
nascidos apresentam algum grau de retardo de
crescimento intra-uterino - CIUR.

Nutrição da criança

A nutrição mantém estreita relação com


o potencial genético da criança. Assim, quan-
do ocorre carência nutricional nos primeiros
dois anos de vida, as repercussões tendem a ser
mais significativas. O leite materno é o melhor
e mais completo alimento para o bebê durante
os primeiros seis meses de vida. No entanto, a
amamentação pode continuar até o segundo ano
de vida ou por um período ainda maior. Nesse

240
Capítulo 21 • Crescimento e desenvolvimento infantil

Anexo 1A - Gráfico de altura/idade e peso/idade de meninos do nascimento até 36 meses.

241
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Desenvolvimento Infantil Por exemplo, a criança negligenciada em


suas necessidades emocionais afeto, estimulação
(...) Mire, veja: o mais importante e bonito, do mun- - pode perder o interesse pela vida, pode não se
do, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas – mas que elas vão desenvolver normalmente, tanto física quanto
sempre mudando8. mentalmente.
Ao ingressar em creche, pré-escola ou es-
O desenvolvimento é produto de uma in- cola de ensino fundamental, a criança encontrar-
teração complexa entre o amadurecimento e a se-á envolvida em novos patamares e desafios ao
aprendizagem, entre o indivíduo com seu poten- seu desenvolvimento. Esta é uma fase da vida de
cial, e o meio com suas normas e cultura17. novas e fortes exigências, uma etapa fundamen-
O desenvolvimento pode ser definido, tal para consolidação de seu desenvolvimento6.
conforme visto anteriormente, como o processo Nesse momento, a criança deverá desen-
de aquisição de múltiplas habilidades por parte volver-se em um ambiente diferente de sua casa
da criança. Habilidades ou funções de equilíbrio e família mais próxima com exigências de um
individual (movimentos, controle sobre o corpo, desempenho objetivo em áreas, até então, não
pensamentos, linguagem, emoções) e de adapta- exploradas. Momento em que a criança reorga-
ção sociais (relação com outras pessoas e regras niza a experiência prévia e se encaminha para o
sociais) cada vez mais complexas. descobrimento e conquista de um mundo mais
Ao nascimento, podemos imaginar quão amplo, atraente e competitivo.
precárias e insuficientes são essas habilidades Neste novo mundo, há lugar para grandes
e que o processo de aprendizagem sobre elas só conquistas cognitivas e para grandes expecta-
ocorre por intermédio do encontro dessas crian- tivas familiares quanto a seu comportamento
ças com outros seres humanos e suas perspecti- geral e na adaptação às normas sociais. Há uma
vas culturais e comunitárias. maior necessidade de amigos, de mais trocas afe-
O desenvolvimento tem uma dimensão tivas para que a criança adquira habilidades para
universal, expressão de eventos seqüenciais que lidar com os novos desafios.
traduzem mudanças e conquistas que ocorrem ao Os equipamentos escolares precisam estar
longo da vida de qualquer ser humano, com relati- preparados para acolher e valorizar as múltiplas
va autonomia, em particular nos primeiros anos. experiências prévias às quais crianças estiveram
É através do desenvolvimento que a criança expostas em suas vivências e modos de vida.
torna-se competente para responder às suas neces- Desenvolver-se, portanto, significa ir ad-
sidades e às do seu meio. Compreende-se, portan- quirindo habilidades que se traduzem em con-
to, a variação no processo de desenvolvimento de dutas de adaptação nos mais variados domínios
cada criança, uma vez que os determinantes bioló- e espectros do cotidiano. Estas conquistas de-
gicos, familiares, culturais e sociais englobam uma pendem da bagagem genética de cada criança e
extensa variação da experiência humana22. da maneira como as necessidades mentais, emo-
O desenvolvimento da criança guarda cionais, físicas e sociais vão sendo atendidas.
íntima relação com o modo de vida familiar e A expectativa manifesta-se duplamente,
comunitário onde ela está inserida. Ao desen- que a criança consiga alcançar sua individuali-
volver-se ela está aprendendo a lidar com esta zação e, consiga também, construir uma imagem
ampla variabilidade: dos indivíduos, da cultura, coerente do mundo em que vive. Quando ambas
dos contextos de vida, dimensões que podem fa- as condições não são plenamente alcançadas é
vorecer ou não as potencialidades de desenvolvi- fácil prever a amplitude dos prejuízos. Nunca é
mento de cada criança17. demais enfatizar que o alicerce da vida futura e

242
Capítulo 21 • Crescimento e desenvolvimento infantil

sua funcionalidade se estabelecem precocemen- nutridos, com doenças orgânicas ou infecções


te na vida, sobretudo até seis anos23, 24. que comprometam o sistema nervoso, central.
Descobertas mais recentes mostram que • Condições genéticas como síndrome de
experiências de movimentação intra-útero regis- Down, doenças metabólicas, hipotiroidismo,
tradas no cérebro da criança formam conexões fenilcetonúria, podem estar presentes.
que são utilizadas posteriormente na aquisição
de movimentos voluntários19. Vale ainda desta-
car que o sistema nervoso central apresenta um Condições socio-ambientais e psico-emocionais
crescimento rápido nos primeiros anos de vida
notadamente no primeiro ano, sendo muito vul- Ambientes familiares estressantes (dis-
nerável às influências do meio5. córdia conjugal, violência familiar, maus tratos),
família sob privação econômica e emocional,
desatenção diante de necessidades emocionais
Fatores que dificultam o da criança e falta de acesso a serviços de saúde
desenvolvimento infantil e educação de qualidade são condições que in-
terferem fortemente no desenvolvimento das
Em decorrência da amplitude do atributo crianças. Meio social agressivo à criança não re-
- desenvolvimento - uma gama de possibilidades conhecedor ou estimulador das suas conquistas
surge com potencial para bloquear, dificultar ou podem desempenhar influências limitadoras do
interromper o percurso de um desenvolvimento seu desenvolvimento em relação à auto-estima, à
saudável e o médico de família precisa percebê- criatividade, à autonomia e à própria felicidade.
los para aplicar a conduta apropriada que pode Um melhor prognóstico frente às situ-
ser representada pela referência ao pediatra e ações desfavoráveis ao desenvolvimento das
outros especialistas. crianças pode ser alcançado se as famílias forem
competentes para atuarem ofertando estimula-
ção psico-motora e afetiva, dedicando carinho,
Fatores biológicos agindo atenta e rapidamente na identificação de
comportamentos considerados “alerta” para bus-
• Durante a gravidez várias condições que afe- ca de cuidados adequados e urgentes5. Descober-
tam a saúde materna podem atingir o feto e tas mas recentes mostram que experiências de
comprometer a base biológica do desenvolvi- movimentação intra-útero registradas no cére-
mento. Exemplos: doenças e/ou agravos ma- bro da criança formam conexões que são utiliza-
ternos que transformam a gravidez em alto das posteriormente na aquisição de movimento
risco (desnutrição materna, diabetes; hiper- voluntários19. Vale ainda destacar que o sistema
tensão, doenças cardíacas, doenças renais, uso nervoso central apresenta um crescimento rápi-
de álcool ou drogas), infecções adquiridas (sí- do nos primeiros anos de vida notadamente no
filis, AIDS, citomegalovirus, toxoplasmose); primeiro ano, sendo muito vulnerável às influ-
• Durante o nascimento podem estar presentes ências do meio20.
condições que privem o organismo fetal de A brincadeira é um importante elemento
nutrientes ou de oxigênio (parto difícil ou la- de estímulo ao desenvolvimento. Brincando a
borioso, hipóxia neonatal, prolapso de cordão criança adquire competências e confiança para
umbilical, aspiração meconial). enfrentar problemas futuros respeitando o valor
• Após o nascimento, bebês podem ser muito e as regras sociais. A inclusão da família, inclusi-
prematuros ou com baixo peso ao nascer, des- ve do pai, em diversos momentos de brincadeira,

243
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

tem repercussões favoráveis no desenvolvimen- aprende, também, a valorizar hábitos, cultura e


to da criança18, 23, 3, 26. costumes da comunidade.
A criança que é ativa dentro da comuni-
dade e respeitada por esta, tem um forte sentido
Brincar é um importante direito da criança de pertencimento, identidade e auto-estima. Na
família inicia-se o aprendizado básico de como
• Através da brincadeira a criança aprende a se estabelecem as relações de respeito mútuo, so-
supor o que o outro pensa e busca combinar lidariedade e responsabilidade6,2.
ativamente seu comportamento com os seus Na avaliação do desenvolvimento devem
parceiros. ser valorizadas as aquisições individuais em di-
• Ao brincar a criança constrói novas possibilida- reção às conquistas em termos de individuação
des de ação e formas criativas de organizar seu (formação do ser humano com características
ambiente e passa a compreender as característi- únicas que o distingue dos demais) e de posi-
cas dos objetos, seu funcionamento, os elemen- cionamentos diante da sociabilidade (indivíduo
tos na natureza e os acontecimentos sociais26. apto à convivência numa cultura e sociedade de-
• A brincadeira favorece o equilíbrio afetivo da terminadas).
criança e cria condições para uma transfor- Identificar tais conquistas é mais importan-
mação significativa de sua forma de pensar. te que a prática de valorizar o que a criança não faz
• A brincadeira permite a elaboração e a e�pres- ou não conquistou ainda. Identificar tais conquis-
são de sentimentos e emoções (desejos, raivas, tas é mais importante que a prática de valorizar o
luto, agressividade, tristeza, amizade, etc.). que a criança não faz ou não conquistou ainda.
• A brincadeira estimula a socialização porque A relativa facilidade com que se pode
exige a combinação necessária entre liberdade e acompanhar o crescimento infantil através de
limite; a afirmação de si e o respeito ao outro26. medidas objetivas, quantitativas não se repro-
• Na brincadeira do faz-de-conta, a criança é duz na avaliação do desenvolvimento; esta ava-
levada a agir num mundo imaginário onde a liação envolve medidas mais complexas, de na-
situação é definida pelo significado e não pe- tureza qualitativa, de valoração do observador,
los elementos reais concretamente presentes portanto, mais sujeitas a leituras condicionadas
(quando a criança junta algumas cadeiras e por sua visão de mundo e expectativas6.
brinca de trem, mesmo ela tendo consciência
de que são cadeiras, para ela, o que vale é a
idéia de trem, o significado que ela dá). Instrumentos para avaliar o
• Ao brincar a criança movimenta-se em busca de desenvolvimento infantil
parceria e na exploração de objetos; comunica-
se com seus pares; expressa-se através de múl- Por reconhecer o papel fundamental da
tiplas linguagens; descobre e elabora regras de família, a OPS/UNICEF na estratégia AIDPI
organização e convivência e toma decisões26. recomenda fortalecer 16 práticas chaves para o
crescimento e desenvolvimento saudáveis que
devem ser estimuladas pelos profissionais de
A criança e a comunidade saúde junto às família3, 15, 16.
• Aleitamento materno e�clusivo até seis meses;
A criança deve participar da vida social e • Uso de vitamina A e ferro;
cultural do lugar onde vive. Assim, ela conhece • Acréscimo de alimentos complementares a
as pessoas, seus trabalhos e como se divertem, e partir dos seis meses;

244
• Estimulação para desenvolvimento mental Referências
e social;
• Vacinação nas datas previstas; 1. Andraca I et al. Factores de riesgo para el desa-
• Destino adequado das fezes, higiene das mãos rollo psicomotor en lactantes nacidos en ópti-
após defecação e antes de alimentação; mas condiciones biológicas - Rev Saúde Pública.
• Proteção contra malária e dengue; 1998;32(2):138-47.
2. Caballero CC. Crecimiento y desarollo del ninõ.
• Prevenção contra doenças se�ualmente trans-
In: Caballero CC. La niñez, la familia y la comu-
missíveis, principalmente HIV/AIDS;
nidad. Washington, DC: Organização Panameri-
• Manutenção da alimentação e aumento de lí-
cana da Saúde; 2004.
quidos para crianças doentes;
3. Campos J. Atenção à saúde da criança e do ado-
• Uso correto de tratamento no domicílio; lescente: a família e o desenvolvimento infantil.
• Prevenção de maus tratos, reconhecer e cui- In: López FA, Campos Jr. D, Tratado de pedia-
dar adequadamente; tria. São Paulo: Manole; 2007.
• Prevenção de acidentes domésticos; 4. Correa EG, Mamede MM. O que podemos fazer
• Garantia da participação do homem no cui- juntos: desenvolvimento global e atividades das
dado da criança e na saúde reprodutiva; crianças até 3 anos, Brasília, DF: Ministério da
• Reconhecimento de sinais de gravidade na Saúde; 1992.
riança e busca de cuidados; 5. Dobbing J. Vulnerable, periods in developing
• Seguimento das recomendações do pessoal brain. In: Davison AND Dobbing J ed Applied
da saúde, inclusive referência para outro neuro chemestry. Oxford Blackwell, 1968.
6. Escola de Saúde Pública do Ceará. Educação
serviço;
com saúde: noções básicas de saúde. Fortaleza;
• Garantia para que toda gestante faça pré-natal
2005. Módulo 2: crescimento e desenvolvimen-
e tenha assegurado o local do parto e o apoio
to infantil.
da família e da comunidade inclusive para
7. Giugliani, ERJ Aerts DRGC. Vigilância do esta-
amamentar. do nutricional da Criança. In: Duncan BB, Sch-
midt MI e Giugliani ERJ et al. Medicina ambu-
É importante ressaltar que o apoio às fa- latorial: condutas clínicas em atenção primária,
mílias, fortalecendo suas competências para Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 1996.
estimular as crianças, apresenta um valor reco- 8. Guimarães Rosa J. Grande sertão: veredas. Rio
nhecidamente elevado, sendo considerado mais de Janeiro: Nova Fronteira;1986.
efetivo o apoio à melhor relação mãe-filho no 9. Kishimoto, TM. Jogo, brinquedo e a educação.
domicílio do que os programas tradicionais de São Paulo: Cortez; 1988.
estímulo psicomotor fora do lar6, 27. 10. Marcondes E et al. Pediatria básica, São Paulo:
Mesmo crianças nascidas em boas condi- Sarvier; 2002.
11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Políticas
ções biológicas, em presença de condições am-
de Saúde. Saúde da Criança: acompanhamento
bientais adversas, sem estímulos, têm o seu de-
do crescimento e desenvolvimento infantil. Bra-
senvolvimento psicomotor afetado1.
sília, DF; 2002.
12. Morley, D. Lovel H. My name is today: an illus-
trated of child health, society and poverty in less
developed countries. London: Macmillan; 1996.
13. Morley D, Woodland M. See how they grow: mo-
nitornig child growth for appropriate health care
in developing countries. New York: oxford uni-
versity press; 1979.

245
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

14. Murahovschi, J et al. Esta criança é normal? In: 29. Zuluaga JAG. Neurologia del desarollo: hacia
Murahovschi, J et al Pediatria: Diagnóstico + nuevas concepciones de la individualidad. In:
Tratamento. São Paulo: Sarvier; 2003. Zuluaga JAG La niñez, la familia y la comuni-
15. Organização Panamericana da Saúde. 16 práticas dad, Washington, DC, OPS; 2004.
chaves para o crescimento e desenvolvimento
saudáveis. Washington, DC; 2000.
16. Organização Panamericana da Saúde. La fami-
lia y la salud. Washington, DC; PS 132ª Sesión
del comitê PS del comité ejecutivo, 23-27 Ju-
nio, 2003.
17. Organização Panamericana da Saúde. Pro-
moção do crescimento e desenvolvimento
integral de crianças e adolescentes. Wa-
shington, DC.: OPS;1999. Módulos de
aprendizagem.
18. Secretaria da Saúde do Estado (CE) Projeto de
fortalecimento das competências familiares: pro-
movendo a saúde da criança. Fortaleza; 2003.
19. Silva, AC et al. Viva criança; os caminhos da so-
brevivência infantil no Ceará. Fortaleza: Funda-
ção Demócrito Rocha; 1999.
20. Silva AC, Campos JS. A criança e o Sistema Úni-
co de Saúde. In: López FA, Campos Jr. D, Trata-
do de pediatria. São Paulo: Manole; 2007.
21. Silva RRF, Madeira JR. Acompanhamento do
crescimento e do desenvolvimento. In: López
FA, Campos Jr. D. Tratado de pediatria. São Pau-
lo: Manole; 2007.
22. Sucupira ACL, Werner Jr. J, Resegue R. Desen-
volvimento In: Sucupira ACL et al. Pediatria em
consultório. São Paulo: Sarvier; 2000.
23. Unicef. Situação da infância brasileira: criança
de até 6 anos: o direito à sobrevivência e ao de-
senvolvimento. Brasília, DF; 2005.
24. Unicef. Situação da infância brasileira: desenvol-
vimento infantil: os primeiros seis anos de vida.
Brasília; 2001.
25. Victora CG, Barros FC. Epidemiologia da saúde
infantil: um manual para diagnósticos comunitá-
rios. São Paulo: Hucitec; 1991.
26. Wajskop G. Brincar na pré-escola. São Paulo:
Cortez, 1997.
27. Wasik BH, Bryant DM e Lyons CM. Home vi-
siting procedures for helping families, London.
Sage Publications, 1991.
28. Winnicott, DW. A família e o desenvolvimento
individual. São Paulo: Martins Fontes; 1997.

246
Capítulo 22
Assistência evolutiva na criança 6”) outros leites (soja). Máximo de higiene da
nos seus primeiros dez anos de vida preservação e conservação. Usar, de preferên-
cia, bico ortodôntico na mamadeira. Oferecer
JayMe Murahovschi
chá e/ou água fervida nos intervalos das ma-
madas.Fazer a criança arrotar após as mama-
das; deitá-Ia na cama sobre o lado esquerdo.
• Vacinas: BCG intradérmico (em crianças
que vivem em ambientes contaminados ou
suspeitos). Hepatite B, se as condições soro-

A assistência global à criança deve ser feita de


maneira evolutiva, para acompanhar o cres-
cimento e o desenvolvimento do paciente. As-
lógicas da mãe quanto ao vírus da HB não são
conhecidas. O Ministério da Saúde recomen-
da estas vacinas para todas as crianças, ainda
sim, em cada consulta, a anamnese deve incluir na maternidade, respeitando as contra-indi-
dados de desenvolvimento, possíveis queixas ou cações e adiamentos.
dificuldades e o exame físico deve comprovar • Orientação aos pais
os progressos do desenvolvimento e registrar os - Estímulo visual - móbiles coloridos (cores
parâmetros de crescimento. A prescrição deve fortes) e em branco e preto.
incluir alimentação, vacinação e orientação. - Estímulo auditivo - musiquinha.
- Advertir que, a partir de 3 semanas de vida,
podem aparecer as “cólicas dos 3 meses”.
1º MÊS (0-30 dias) - Proibido fumar no ambiente da criança.
- Febre é sinal de alarme!

Alimentação
1 MÊS
• Leite materno exclusivo, horário livre (apro-
ximadamente a cada 2 horas); não dar chá nem • Desenvolvimento: é capaz de erguer a ca-
água. Não complementar com mamadeira. beça, quando de bruços; fixa o rosto da mãe,
• Observar uma mamada: verificar a pega quando ela lhe fala.
(bico + aréola). Corrigir a técnica, se indica- • Alimentação natural: igual à do 1º mês (leite
do. Recomendar/fornecer Cartílha da Ama- materno exclusivo). Não dar água, nem chás,
mentação de Jayme Murahovschi (Almed). nem suco, nem complemento vitamínico.
Recomendar comunicação telefônica para as • Alimentação artificial: leite em pó adaptado
dúvidas. Marcar retorno após 3-7 dias, se as ao 12 semestre, a cada 3 horas aproximada-
condições de amamentação estiverem instá- mente. Máximo de higiene na preparação e
veis; verificar ganho ponderaI. conservação.
• Na ausência absoluta de leite materno, usar, • Vacinas: considerar BCG e hepatite B.
em ordem de preferência: 1º) leite de ama; • Orientação
2º) leite humano ordenhado; 3º) leites em pó - Estimular e orientar a amamentação ao
modificados; 4º) leite em pó integral, diluído a seio. Ensinar a ordenhar o leite e conservá-
10%; 52) leite de vaca ín natura, diluído a 2/3; lo em congelador.

247
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

- Banho de sol pela manhã; ar livre, passeios. febre alta após alguns dias de doença, se-
- Móbiles coloridos, musiquinha, chocalho. creção purulenta.
- Dar a mamadeira com a criança no colo, e - Convulsão + febre = Iiquor (não faça diag-
não na cama. nóstico de “convulsão febril”).
- Proibido fumar no ambiente da criança.
- Transportar a criança em assentos apropria-
dos, presos no banco de trás. 3 MESES
• Doenças
- Processos febris com abatimento eviden- • Desenvolvimento: vira a cabeça em direção
te, no 12 trimestre de vida, exigem pes- aos ruídos e à conversação. Acompanha com
quisa cuidadosa (meningite, broncop- o olhar um objeto em movimento.
neumonia, infecção urinária). Solicitar, • Verificar com atenção sinais suspeitos de
inicialmente, leucograma e bacterioscó- retardo motor: posição assimétrica obrigató-
pico de urina; Iiquor. ria do corpo, mãos fechadas, excessivamente
- Evacuações do tipo diarréico em lactentes assustadiça, pobreza de movimentos, defi-
alimentados com leite materno: absoluta- ciente controle de cabeça, rigidez, dificulda-
mente normal; idem para o caso de evacua- des de sucção e de deglutição.
ções moles a cada 2-3 dias. • Verificar audição: a um ruido desperta, arre-
- Dermatite seborréica. gala os olhos, pára de mamar.
- Evacuações com muco e sangue: colite ge- • Vacinas: considerar BCG, hepatite B e menin-
ralmente por alergia ao leite de vaca mesmo gocócica C. Esta última não integra o calendário
em crianças amamentadas ao peito. de vacinação de rotina do Ministério da Saúde.
• Orientação aos pais: a mesma para 1 mês.
Pendurar no berço um brinquedo (chocalho,
2 MESES argola, bola, bichinho) atraente e colorido
(vermelho) ao alcance das mãos, para trei-
• Desenvolvimento: sorriso social. nar sua movimentação e percepção. Pegar no
• Alimentação natural: igual à de 1 mês. colo, mas evitar exagero. Viagens de carro:
• Alimentação artificia: leite em pó adaptado andar no banco de trás em cadeiras especiais.
ao 1º semestre. Mudar a criança de quarto.
• Vacinas: tríplice, antipólio e Haemophílus • Doenças: veja 1 mês e 2 meses.
(Hib); contra Rotavírus, pneumocócica. a
vacina pneumocócica ainda não está incluída
nocalendário de vacinação de rotina do Mi- 4 MESES
nistério da Saúde.
• Orientação: a mesma para 1 mês. • Crescimento: dobra o peso do nascimento.
• Doenças • Desenvolvimento: segura um chocalho, ri
- Veja 1 mês. alto; se colocada sentada, segura a cabeça fir-
- Infecção das vias aéreas superiores (IVAS) me um pouco dirigida para a frente.
como resfriado ou bronquiolite. Etiologia • Alimentação natural: continuar leite mater-
viral (não usar antibióticos). Cautela no no exclusivo.
tratamento sintomático (usar pouco remé- • Alimentação artificial: leite em pó adaptado
dio; nunca usar nafazolina nasal). Observar ao 1º semestre. Se necessário, antecipar papi-
sinais de infecção bacteriana secundária: nha de frutas e de legumes.

248
Capítulo 22 • Assistência evolutiva na criança nos seus primeiros dez anos de vida

• Vacinas: DTP, Hib, antipólio, contra Rotavírus • Prevenção de acidentes


e pneumocócica (não integrante do calendário - Brinquedos laváveis, inquebráveis, impos-
de vacinação de rotina do Ministério da Saúde). síveis de engolir.
• Orientação: a mesma para 3 meses. Dar nas - Não deixe a criança sozinha no banho.
mãos do nenê: chocalho, argola, bola, bichi- - Ao atravessar a rua puxe o carrinho: você
nhos coloridos. deve estar na frente.
• Doenças: veja 1 mês e 2 meses. - No carro: no banco de trás, não no colo;
use contensor infantil.
- Deixe o “quadrado” em que a criança está
5 MESES ao nível do chão.
- Pendure objetos coloridos, leves e so-
• Desenvolvimento: alcança e segura objetos. noros no berço para brincar: paninhos,
• Alimentação: a mesma dos 4 meses. chocalhos, argola, bola, caixa com outras
• Orientação: a mesma. Deixar sentada, com caixas dentro.
apoio: deixar a criança ao nível do chão, no • Doenças
quadrado ou em móvel adaptado. - Veja 1 mês e 2 meses.
• Vacina: meningocócica (não integrante do - Exantema súbito (não faça diagnóstico er-
calendário de vacinação de rotina do Minis- rôneo de rubéola): 3 dias de febre e depois
tério da Saúde). aparecimento de exantema.
• Doenças: veja 1 mês e 2 meses. - Crianças com febre alta (+39,5 ºC) e leuco-
citose (+15.000): considere a possibilidade
de bacteriemia por pneumococos e H. in-
6 MESES fluenzae.

• Desenvolvimento: é capaz de se virar; senta-


se com apoio. 7 MESES
• Audição: volta-se em direção aos sons.
• Alimentação natural: leite materno + 1 re- • Desenvolvimento: fase de equilíbrio, con-
feição de sal + papa de frutas + suco. centração e sociabilidade. Transfere um ob-
• Alimentação artificial: leite em pó adaptado jeto de uma mão para a outra; senta-se sem
ao 2º semestre. apoio por pouco tempo. Início da dentição.
• Vacinas: DTP, Hib, antipólio e pneumocócica. Estrabismo já não é fisiológico.
(não integrante do calendário de vacinação de • Alimentação: a dos 6 meses, acrescentan-
rotina do Ministério da Saúde). do leguminosa e gema cozida. A mamada
• Orientação aos pais das 19h pode ser substituída por mingau de
- Passeios ao ar livre; banhos de sol. cereais.
- Não fume perto da criança, no carro, no • Vacinação: meningocócica.
quarto. • Orientação: deixar a criança sentada e re-
- Mudar a criança para o quarto dela. costada, com brinquedos para distrai-Ia. Dar
- Não largue a criança sozinha no trocador. uma torrada ou crosta de pão ou cenoura para
- Fale de maneira clara e calma com a criança mastigar (exercita a gengiva e a mastigação).
no colo. Proibido fumar no ambiente da criança.
- Não adormeça a criança no colo; coloque-a • Doenças: veja 6 meses, diarréia aguda com
adormecida, mas ainda acordada, no berço. febre e vômitos por rotavírus (inverno).

249
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

8 MESES - Mostrar à criança sua própria imagem no


espelho.
• Desenvolvimento: fica sentada, sem apoio, - Conversar e brincar com a criança.
por 5 minutos. Preensão em pinça grosseira - Estimular os pais a estabelecer limites, di-
(polegar-indicador). zer “não” no momento adequado e remover
• Alimentação: substituir a refeição das 19 ho- a criança do local de perigo potencial.
ras pela 2ª sopinha. - Estabelecer um ritual para a hora de dor-
• Orientação: usar cercado (chiqueirinho). mir; usar um objeto de transição (brinque-
Advertir da inconveniência de andador. Proi- do predileto para levar para a cama).
bido fumar no ambiente da criança. Brinque- - Prevenir os pais para o choro de protesto
dos de borracha, plástico, madeira. pela separação: deve ser manejado delicada
• Doenças: veja 7 meses. e firmemente.
- Calçado (do tipo tênis); flexível, suficiente-
mente longo e largo, não-dispendioso.
9 e 10 MESES - Brinquedos, ursos, bonecas de pano.

• Crescimento: começa a diminuir o panículo Atenção: se a criança não superou atrasos de


adiposo. desenvolvimento, deve ser investigada com
• Desenvolvimento: engatinha (não obrigato- atenção.
riamente); mantém-se em pé, apoiada na gra-
de. Preensão em pinça, E capaz de dizer “ma-
ma” ou “dá-dá”. Reconhece a diferença entre 11 MESES
a voz de aprovação e reprovação. Estranha as
pessoas. Faz adeus, bate palmas, fala ma-ma, • Desenvolvimento: anda apoiada pelas duas
atende ao seu nome, recupera um objeto es- mãos ou apoiada nos móveis.
condido por um lenço. • Alimentação: a dos 10 meses; papa de ver-
• Audição: localiza sons produzidos ao lado e duras amassadas com o garfo; “comidinha”,
embaixo. Começa a diminuir o apetite. leite no copo.
• Alimentação: a dos 8 meses, incluindo no míni- • Orientação: brinquedos de puxar e empur-
mo 1 ovo ou 50g de carne ou fígado ou miolo ou rar; coisas que fazem barulho. Proibido fu-
peixe. Coalhada (de preferência fermentada na mar no ambiente da criança.
panela de ferro), iogurte, queijo branco. Amassar • Doenças: veja 10 meses.
a papinha com um garfo, sem passar na peneira.
Estimular a usar copo. Estimular a mastigação:
fatia de pão integral, pedaço de cenoura. 1 ANO
• Vacinação: contra febre amarela, em áreas
endêmicas. • Desenvolvimento: anda apoiada por uma das
• Orientação aos pais mãos;’ faz “adeuzinho” e brinca de “cuco”; fala
- Liberdade para engatinhar: prevenção de aci- ma-ma; dá-dá; olha para um objeto quê cai ou foi
dentes (grades, portinholas, tomadas, toalha escondido; solta um objeto dentro de uma taça.
de mesa pode ser puxada); não usar andador. • Audição: localiza sons produzidos acima e
- Evitar alimentos (ex.: pipoca) ou pequenos abaixo da cabeça.
objetos que possam ser aspirados ou que • Alimentação: veja Alimentação no 2º ano
causem ferimentos. de vida, pág. 32. Passar gradativamente para

250
Capítulo 22 • Assistência evolutiva na criança nos seus primeiros dez anos de vida

“comidinha”. Diminuição fisiológica do ape- - Considerar o comportamento de indepen-


tite em virtude da redução da velocidade de dência como parte do desenvolvimento
crescimento. Necessidade de comer sozinha. normal, e não oposição ou desobediência.
Não suspender o leite de peito se ele for con- - Discutir a diferença entre disciplina (ensi-
veniente para a criança e para a mãe, mas não no de regras e estabelecimento de limites)
permitir que a criança fique “pendurada” no e punição.
peito a maior parte do tempo. - Comportamento - criança repete aquilo
• Doenças: o 2º ano de vida é fértil em infec- que chama a atenção; ignorar os compor-
ções virais das vias aéreas superiores. tamentos inadequados e as crise de bir-
• Orientação aos pais: ra; evitar os “não pode” muito repetidos;
- Estimular o uso de copo e reduzir o de ma- melhor retirar os objetos que a criança
madeira. teima em mexer para fora de seu alcance;
- Dar uma colher para a criança exercitar o se a criança insiste em um comportamen-
ato de alimentar-se sozinha e permitir que to perigoso, dar uma (uma só) palmada
coma com as próprias mãos enquanto é ali- nas nádegas, dizendo firme “não faça
mentada pela mãe com outra colher. isso”, e deixe-a de castigo (“time-out”)
- Estimular o desenvolvimento da lingua- por 1 minuto no canto da sala; coerên-
gem: nomeie os objetos comuns, aponte cia e consistência (= agir sempre igual);
as partes do corpo, converse bastante, use atenção, agrados e elogios aos comporta-
livros de figuras com uma só figura em mentos adequados.
cada página. - Prevenção de acidentes - portão nas esca-
- Estimular a criança a brincar sozinha e in- das, grades nas janelas, cercar piscina do-
teragir com os pais e os irmãos. méstica; não deixar brincar na cozinha; não
- Normal: pés aparentemente chatos. Na deixar sozinha perto de piscina ou espelho
marcha: pés levemente afastados e everti- d’água; não deixar remédios nem produtos
dos, membros inferiores em arco com joe- tóxicos ao alcance da criança.
lhos afastados. • Vacina: contra varicela; eventualmente he-
- Estimular a andar descalço em areia, gra- patite A (não integrante do calendário de va-
ma, terra, tapete. cinação de rotina do Ministério da Saúde).
- Preferível calçado do tipo tênis, tamanho • Doenças:
adequado (mais folgado do que justo); não - Convulsão febril benigna.
há necessidade de botas ortopédicas. - Aumento da incidência de IVAS virais, in-
- Acostumar a dormir cedo (± 20 horas), ri- cluindo resfriados, bronquites e faringites.
tual e brinquedo predileto; uso de chupeta Não dar antibióticos, mesmo nos casos fe-
só para o ato de adormecer; não levar para a bris. Considerar a possibilidade de superin-
cama dos pais. fecção bacteriana se a febre aparece após al-
- Brincar ao ar livre (2 horas por dia) com guns dias de doença (não no começo dela),
água, areia; brinquedos de puxar, em- se ela dura mais de 3 dias ou se a secreção se
purrar, encaixar, martelar, fazer barulho, torna purulenta.
instrumentos musicais, caixas de papelão - Exantema súbito e outras doenças exante-
com tampa, frascos plásticos com tampa máticas (não faça o diagnóstico errôneo de
removível. rubéola).
- Soneca de 1 hora pela manhã e 2 horas à - Diarréia aguda: vira!.
tarde. - Estrófulo (até os 4 anos) por picada de inseto.

251
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

15 MESES - Orientar sobre disciplina - estabeleci-


mento de regras e limites; reforço posi-
• Perfil de comportamento: idade de desequi- tivo para comportamentos adequados;
líbrio, desordem, de correr para todos os la- proibições verbais devem ser seguidas
dos e arremessar objetos; interesse em novas por reforço (segurar a criança, remover o
experiências, entende o funcionamento de objeto proibido, remover a criança da si-
objetos (telefone). tuação perigosa).
• Motivo de preocupação: se a criança parece - Estimular a linguagem - ler livros, canções,
totalmente ‘’fora de controle” ou não-comu- figuras, conversar, nomear objetos e partes
nicativa ou altamente negativa ou passiva. do corpo.
• Controlar o desenvolvimento: anda, agacha, - Sono - horário regular, ritual (sempre o
come sozinha com os dedos, bebe bem em mesmo), levar a criança ao berço ainda
copo, fala jargão e mais 3 a 6 palavras, entende acordada, levar um brinquedo predileto,
comandos simples, indica o que quer apon- ficar próximo até adormecer.
tando, puxando, grunhindo; dá e toma um - Incluir escorregador, triciclo, blocos de
brinquedo, abraça, constrói torre de 2 blocos. construção, quebracabeças simples, livros
• Exame da criança: melhor nos braços ou no com figuras, bonecas, bichinhos de pano,
colo dos pais ou distraída por um brinquedo bolas moles, brinquedos musicais, massa
ou instrumento. de modelar, brinquedos de desmontar com
• Alimentação: a mesma da família, em pe- peças grandes.
dacinhos pequenos. O leite de peito pode - Prevenção de acidentes.
ser mantido se for conveniente para a famí-
lia, mãe e criança. Pode ser “comidinha” no
almoço e sopinha (papinha) no jantar. Esti- 18 MESES
mular a comer sozinha e a usar copo e xícara.
Esclarecer que as necessidades calóricas são • Desenvolvimento: anda rápido, corre teso,
reduzidas nessa fase: pouco apetite. Evitar sobe escada com ajuda de 1 mão, joga e chuta
doces e gulodices. bola, constrói torre de 3 cubos, usa colher e
• Vacinação: contra sarampo, rubéola, caxumba copo, beija pais na face, fala 3 a 6 palavras,
e pneumocócíca (não integrante do calendário associa 2 palavras em uma frase.
de vacinação de rotina do Ministèrioda Saúde). • Perfil de comportamento: um “vagabundo”
• Orientação aos pais às soltas: impulsivo, puxa, arrasta, empurra,
- Não permitir que brinque na rua. sobe e desce escadas; conhece alguns limites,
- Caminhando, ao atravessar as ruas, segurar gosta de demonstração de afeto dos pais.
a criança pela mão. • Motivo de preocupação: totalmente “fora
- “Crise de birra” - ignorar a criança até que de controle”; nãocomunicativo, passivo, for-
a birra passe; só daí dar atenção. temente negativo.
- “Perda de fôlego” - manter a tranqüilidade, • Alimentação: a mesma da família; colocar
pressionar a base do tórax (para expulsar o pouca comida no prato; o leite de peito pode
ar) e/ou borrifar água no rosto da criança. ser mantido, se for conveniente. Evitar gulo-
- Atitudes agressivas (bater, morder) - im- dices fora de horário.
pedir com firmeza, não reagir com outra • Vacinação: reforço DTP e Hib; considerar
agressão; em seguida oferecer objetos que hepatite A não integrante do calendário de
possa morder ou bater. vacinação de rotina do Ministério da Saúde).

252
Capítulo 22 • Assistência evolutiva na criança nos seus primeiros dez anos de vida

• Orientação aos pais mobília, usa colher, chuta bola; vocabulá-


- Alimentação: a necessidade de alimentos não rio de 20 palavras, forma frase de 3 palavras,
é muito grande, mudança de preferências, refere-se a si mesma pelo nome, responde a
ambiente agradável à mesa, evitar “guerras”. comando verbal de 2 partes, mostra interesse
- Sono: a criança tira 1, 2 ou nenhuma sone- no controle de fezes e urina, imita adultos.
ca durante o dia; estabelecer ritual (20 mi- • Perfil de comportamento: está se converten-
nutos) para dormir, levando um brinquedo do em um “ser pensante”: fala, brinca, quer
predileto para a cama (a criança deve ser le- fazer as coisas por si, protesta, rebelde.
vada â cama ainda acordada). Ler histórias • Sinais de alarme: “fora de controle”, negati-
para ela dormir. vista, passiva, (triste, não-comunicativa, não
- Independência: permita que a criança faça al- brinca com outros, linguagem ininteligível.
gumas escolhas; diga “faça você mesma”. Mos- • Alimentação: 4 a 5 refeições por dia (2 a 3 de
tre aprovação e elogie as iniciativas da criança. leite e 2 de sal); comida da família desde que
- Disciplina: estabeleça limites por meio de seja equilibrada.
proibições verbais que possam ser seguidas • Vacinação: hepatite A (não integrante do ca-
de reforço físico (segurar a criança, retirar ob- lendário de vacinação de rotina do Ministério
jeto, remover a criança da situação perigosa). da Saúde).
- Comportamento: chupar dedo, uso de um • Orientação à família:
cobertor ou fralda para mexer, masturbação - Estimulação: passeios em jardins, parques;
são meios normais de reduzir tensão. conversa à mesa. Leia para a criança na
- Brinquedos: carrinho, avião, barco, trem, cama ao deitar. Livros com figuras, discos
bola, massinhas, duráveis, desmontáveis infantis. Brincar com 1 ou 2 crianças. Não
mas sem partes pequenas, instrumentos espere que a criança compartilhe ou respei-
musicais; de construção; televisão: mode- te as regras do jogo. Limite televisão, as-
rada. Brincadeiras de procurar e esconder. sista a programas infantis com ela, desligue
- Escovação de dentes: sem pasta dental, durante as refeições. Demonstre afeto. Elo-
após as refeições. gios pelo comportamento adequado.
- Prevenção de acidentes: carro: atrás, cadei- - Brinquedos: simples, para puxar, musicais,
rinhas de segurança; não deixar uma cadei- pintura, cortar com a tesoura, massa de mo-
ra na qual a criança possa subir a lugares delar, animais domésticos.
perigosos; nunca deixá-Ia sozinha perto de - Comportamento: evitar excesso de discipli-
piscina ou banheira com água (“saber na- na; economizar os “não”, mas “estabelecer
dar” não é garantia); criança não entende o limite”. Ignorar as crises de birra. Tentativas
perigo nem lembra dos “não”. de persuasão verbal são inúteis. Ritual para
• Orientação: se a criança não faz uso de pala- adormecer (levar para a cama ainda acor-
vras isoladas, consultar fonoaudiólogo. dada). Trocar berço por cama. Estimular a
• Aos 21 meses: considerar o início do treina- comer sozinha. Idade em que a criança não
mento dos esfíncteres. necessita de muita comida. Evitar gulodices.
Evitar “guerra” às refeições. Retirada gradu-
al da mamadeira. Escovação de dentes.
2 ANOS - Prevenção de acidentes: não deixar uma ca-
deira na qual a criança possa subir em lugar
• Desenvolvimento: corre, sobe e desce escada perigoso. Proteger contra queimadura com
(1 degrau de cada vez), abre porta, trepa na água, fogo e eletricidade. “Saber nadar” não

253
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

é garantia contra afogamento. Cuidado com gos sedentários (imitativos-imaginativos). Pri-


produtos tóxicos e objetos que possam ser meiras perguntas sobre a origem das pessoas.
aspirados. Cinto de segurança. Supervisão • Sinais de alarme: tímida, medrosa, depen-
quando está brincando na rua - a criança não dente, passiva, agressiva, não-sociável, exa-
entende o perigo e esquece as proibições. geradamente birrenta. Fala ininteligível para
- Treinamento esfincteriano: evacuação e estranhos (encaminhar para fonoaudiólogo).
micção. • Alimentação: dieta prudente. Restringir do-
• Doenças: as IVAS, incluindo faringites e ces, chicletes, refrigerantes. A criança deve
bronquites, continuam virais: não dar antibi- comer sozinha.
óticos e usar poucos remédios sintomáticos; • Teste de acuidade visual: usar o cartaz de fi-
verminoses; anorexia psicogênica; infecção guras (Allen).
urinária em meninas; gengivoestomatite agu- • Orientação aos pais:
da (viral). - Médico: alertar sobre aparente emagreci-
mento (criança “espigada”).
- Aos pais: estimular comportamento coe-
2 ANOS E MEIO rente, consistente em relação à criança.
• Relacionamento pais-criança:
• Perfil do comportamento: negativismo, obs- - Conversar com a criança sobre suas ati-
tinação, contradição. A criança é impetuosa, vicjades dispondo de um tempo especial
hesitante, paradoxal, imprevisível. Sua con- a sós com ela. Permitir à criança mostrar
duta varia entre dois pólos: agressão e com- iniciativa, comunicar, explorar. Estimular
placência; às vezes obediência total e depois independência - permitir pequenas esco-
rebeldia; ora docilidade, ora agressividade. lhas (camiseta verde ou amarela); pequenas
• Alimentação: veja 2 anos. Ensinar (e dar tarefas domésticas; comer sozinha. Respos-
exemplo) a comer verduras cruas. tas honestas e acessíveis à compreensão da
• Vacinação: hepatite A (2~ dose) se não to- criança às suas curiosidades, inclusive so-
mou antes. bre sexo. Demonstre afeto.
• Orientação: a mesma para 2 anos. Visita ao - Nunca ameace deixar ou abandonar a crian-
odontopediatra. ça - ela não entende quando os pais estão fin-
gindo, mentindo ou ironizando. As atitudes
dos pais devem ser coerentes e consistentes.
3 ANOS • Disciplina: economizar os “não pode”. Esta-
belecer limites definidos. Explicar à criança as
• Crescimento: primeiro estirão. conseqüências de um comportamento inacei-
• Desenvolvimento: alterna os pés para subir tável. Este será punido por seus pais com a per-
escadas; chuta bola, pedala triciclo, abre por- da de privilégios, a curto prazo, proporcional à
tas, calça sozinha os sapatos, diz seu sexo, lin- falta e com explicação breve e compreensível.
guagem mais inteligível. Alguns períodos de • Sono: retirada progressiva da soneca de dia. Ri-
gagueira. Perfil de comportamento: tual para adormecer. Brincadeiras calmas antes
• Idade deliciosa: conformista, social, dócil. de ir para a cama. Medos noturnos ocasionais são
Aceita limites. É capaz de estabelecer um com- normais. Não deixar dormir na cama dos pais.
promisso sacrificando uma satisfação imediata • Gagueira: dê tempo à criança de se expres-
ante a promessa de uma recompensa posterior. sar, não chame a atenção, não caçoe, não tente
Começa a compartilhar; entretém-se com jo- ajudá-Ia ou apressá-Ia.

254
Capítulo 22 • Assistência evolutiva na criança nos seus primeiros dez anos de vida

• Brinquedos/brincadeira: • Perfil de comportamento: afirmativa e ex-


- Brincar com outras crianças sem a presença pansiva; grande atividade física e vivacidade
dos pais. mental: faladora, perguntadora; independên-
- Blocos, quebra-cabeças simples. cia e sociabilidade; aceita limites e rotinas,
- “Faz-de-conta” com brinquedos e objetos. sabe partilhar e ser firme.
- Evitar excesso de atividades passivas, como TV. • Sinais de alarme: tímida, passiva, medro-
- Livro de histórias simples com figuras sa; dificuldade de comunicação fora da fa-
grandes. mília, agressiva, dificuldades motoras ou de
• Mamadeira: se ainda estiver usando, retirá- linguagem.
Ia definitivamente. Sugestão: uma festa em • Alimentação: dieta prudente. Nessa fase a
que a mamadeira é simbolicamente quebrada. anorexia pode ser intensa.
Estimular a retirada da chupeta. Recomendar • Teste de acuidade visual: cartaz de figuras
escolinha ou parque infantil. Primeira visita (Allen) ou quadrado dos “Es”.
ao dentista. Fluoretação. • Orientação aos pais
• Prevenção de acidentes: portãozinho nas es- - Parque infantil, escolinha, amiguinhos.
cadas; facas e armas fora do alcance; supervi- - Bichinhos de estimação, blocos de constru-
são atenta na rua; ensinar a criança a não cor- ção, papel, cola, ferramentas, quebra-cabeça
rer atrás de bola ou cachorro na rua (não confie simples, corda de pular, limitar TV.
em que a criança vai se lembrar das recomen- - Brincadeiras de ‘’faz-de-conta’’ relaciona-
dações); advirta para passar longe de cães es- das com a realidade.
tranhos e quando eles estão comendo; assento - Compartilhar na execução de tarefas do-
de segurança no carro; saber nadar é bom mas mésticas: elogiar.
não é garantia nessa idade; insistir para não se- - Respeitar preferências (roupas, corte de ca-
guir ou aceitar convites de estranhos. belo).
• Doenças - Alimentação: oferecer pequenas porções;
- Veja 2 anos. repetir a cada pedido; ambiente agradável.
- Sopros cardíacos inocentes (até 7 anos). - Educação sexual: fase de grande curiosi-
- Aumento da freqüência das IVAS virais ao dade sexual: dar respostas claras e diretas.
entrar na escola. Interesse pelo próprio corpo e dos amigos.
- Gagueira fisiológica. - Escovação correta dos dentes. Visita anual
ao dentista.
• Disciplina: estabelecer equilíbrio entre a ne-
4 ANOS cessidade da criança para independência e os
limites; reforço positivo (elogios); explique
• Crescimento: atinge 1 metro. as conseqüências da quebra das regras; faça
• Desenvolvimento: conta 4 moedas; repete 4 repreensão reservadamente; admoestações e
algarismos na ordem dada, segura e usa lápis, preleções são inúteis.
copia uma cruz, recorta e cola, pedala triciclo, • Sono: horário; ritual agradável.
pergunta: por quê, quando; sabe o nome de 3 • Prevenção de acidentes
ou 4 cores; canta uma canção; lava e enxuga - Brinquedos seguros.
as mãos; escova os dentes; desenha uma pes- - Supervisão contínua quando na água ou
soa com 2 ou 3 partes; sabe vestir-se e despir- próxima da piscina, na rua ou pedalando
se (exceto laços e botões). Controla evacuação bicicleta.
(95%) e micção diurna (90%). - Colocá-la no banco traseiro do carro.

255
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

- Ensinar a não mexer em animais estranhos - Permitir a posse (com exclusividade) de al-
e nunca provocar um animal: guns objetos.
- Remédios, tóxicos e armas fora do seu alcance. - Se possível, semanada, adaptada à criança e
- Instruir a criança para não seguir estranhos de uso livre.
nem aceitar que lhe toquem. - Elogios merecidos (reforço positivo).
- Se distúrbios de linguagem - fonoaudióloga. - Quando a criança mentir, explicar a desne-
• Doenças: o primeiro e o segundo anos de es- cessidade e inconveniência da mentira.
cola se acompanham de infecções virais fre- - Ambiente agradável à mesa e da rotina de ir
qüentes das vias aéreas respiratórias superio- para a cama (leitura, histórias).
res; asma, constipação. - Visita anual ao dentista.
- Sexo: curiosidade sexual e exploração geni-
tal são normais; informar adequadamente;
5 ANOS indicar livros apropriados.
• Prevenção de acidentes
• Desenvolvimento: é capaz de manter-se na pon- - Venenos e armas de fogo fora do alcance.
ta dos pés alguns segundos; consegue saltar; sabe - Ensinar a nadar; observação contínua
dar laço no sapato; veste-se e despe-se; conhece quando na água ou perto dela.
4-5 cores; é capaz de executar 3 ordens; conta - Cinto de segurança.
história simples; copia um quadrado; desenha - Capacete para bicicleta.
um homem com cabeça, corpo, braços e pernas. - Ensinar a deitar e rolar em caso de fogo nas
• Perfil de comportamento: segurança em si vestes.
mesma, confiança nos demais, conformida- - Ensinar a criança a não seguir nem aceitar
des sociais. Amadurecimento, responsável, nada de estranhos e a dizer “não” a eles.
independente. Desejo de aprender. Brinca-
deiras criativas e cooperativas com amigos.
Começa a entender o que é correto ou errado. 6 ANOS
Intensificação do sexo (menino ou menina?).
• Sinais de alarme: excessivamente tímida, • Teste de acuidade visual com o quadro dos “Es”.
medrosa, passiva; birras agressivas ou destru- • Perfil do comportamento: idade dispersiva
tivas; encoprese, enurese diurna. - criança extremamente ativa, excitável, im-
• Orientação aos pais pulsiva, pula de um extremo a outro. Quer
- Mostrar interesse pelas atividades das ganhar sempre.
crianças na escola; demonstrar afeto. • Conduta: contemporizar, evitando choques.
- Equilíbrio entre desejo de independência e Aos 6 anos e meio, o entusiasmo e a energia pas-
necessidade de limites. Ordens claras com sam a se expressar de maneira positiva e não ne-
explicações simples. Respeitar as preferên- gativa, e a criança parece feliz consigo mesma.
cias da criança. Férias sem os pais mas com • Desenvolvimento: conta até 10; escreve seu
adulto achegado à família. Não interferir nome (letras de forma); distingue lado D do
nas iniciativas; orientar, se solicitado. E; dá laço; pedala bicicleta; distingue manhã
- Brincar com amigos; atividade física. de tarde; copia um losango; desenha uma
- Estimular a realização de pequenas tarefas pessoa vestida e com 6 partes do corpo.
domésticas. • Perfil do comportamento: idade um pouco
- TV e cinema limitados, compatíveis com a dispersiva: ativa, excitável, impulsiva. Auto-
idade. confiança. Habilidade para fazer amigos. Re-

256
Capítulo 22 • Assistência evolutiva na criança nos seus primeiros dez anos de vida

conhece necessidades de regras. Aos 6 anos e ou penicilina oral por 10 dias); escarlatina;
meio, a energia passa a se expressar de manei- asma; varicela; escabiose (sarna) e pedicu-
ra mais positiva. lose (piolho), vulvovaginites, GNDA, he-
• Alimentação: 4 refeições, sendo 2 de leite. patite A; enurese noturna, constipação.
Evitar excesso de doces, gulodices e gorduras
animais. Estimular fibras vegetais.
• Orientação aos pais 7 ANOS
- Mostrar interesse pelas atividades da criança.
- Reforçar independência e auto-responsa- • Crescimento: início da 2ª repleção.
bilidade. • Observação: fazer o exame geral com a crian-
- Elogiar; mostrar afeição. ça de calcinha ou cueca; realizar o exame geni-
- Encorajar leitura e “hobby”. tal no fim da consulta, na presença dos pais.
- Estabelecer regras quanto a hora de deitar, • Desenvolvimento: escreve o nome, copia vo-
ver TV, tarefas domésticas. gais. É capaz de dar o endereço.
- Algum tempo dedicado exclusivamente à • Alerta: desenvolvimento conjunto de mamas
criança, diariamente se possível. e pêlos axilares: investigar puberdade preco-
- Não recorrer à chantagem emocional nem ce (meninas).
material (pode-se prometer algo cobiçado, • Perfil de comportamento: interiorização (ida-
desde que para auxiliá-la a galgar um de- de pensativa). Mais calma, menos expansiva,
grau evolutivo). mais perseverante. É uma idade agradável.
- Se mentir ou furtar - pedir explicação, • Sinais de alarme: baixa auto-estima; falta
explicar o desacerto do comportamento; de amigos. Ansiedade, agressividade, de-
na reincidência, castigo (retirada de um pressão. Enurese; encoprese. Baixo rendi-
privilégio). mento escolar.
- Não discutir os problemas da criança na sua • Alimentação: “dieta prudente”.
presença, mas pequenas reuniões informais • Teste de acuidade visual: quadro dos “Es”.
podem ser feitas para resolver o assunto. • Orientação aos pais
- Nas reações explosivas da criança - contem- - Convém apresentar para a mãe, na sala de
porizar, evitar choques. espera, um questionário para a detecção de
- Ensinar a atravessar a rua. problemas emocionais em escolares.
- Atualizar a mesada; ensinar a fazer peque- - Ser um bom modelo (atitudes).
nas compras. - Reforçar a independência e a responsabili-
- Limitar e selecionar programas de TV. dade de acordo com a idade.
- Posse de objetos e animais de estimação e - Elogiar e encorajar as atividades da criança.
orientação sobre seus cuidados. - Demonstrar afeto; reforço positivo.
- Escovar os dentes; visita ao dentista. - Ordens e regras precisas; insistir na sua re-
- Prevenção de acidentes - bicicletas adequa- alização. Exigir que mantenha o material
das (usar capacete), regras do trânsito; cin- escolar em ordem.
to de segurança; ensinar a nadar e boiar; - Providenciar tempo com o pai, a mãe e irmãos.
ensinar a atravessar a rua. - Incentivar aproximação da criança com o
• Prevenção de acidentes: veja 2 anos. genitor do mesmo sexo (atividades de inte-
• Doenças no período escolar resse comum).
- Amigdaliles (agora sim, são freqüentemen- - Livros, recortes, colagens, pinturas, jogos
te estreptocócicas) (penicilina benzatina de cartas e dados, quebra-cabeça; coleções.

257
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

- Estimular a realização de projetos, orientar. - Incentivar a aproximação da criança com o


- Estimular exercícios físicos regulares. genitor do mesmo sexo (atividades de inte-
- TV e cinema: programas compatíveis com resse comum).
a idade. - Encorajar brincadeiras e esportes em grupo.
- Discutir conceitos éticos; procurar refor- - Livros e revistas.
mular os conceitos errados. - TV e videogame: disciplinaT horários e
- Dormir pelo menos 8 horas por noite. programas.
- Atualizar a mesada. - Dramatização.
- Estimular hábitos de economia juntar parte - Jogos variados, brinquedos profissionais e
das mesadas para comprar objeto mais caro). de construção.
- Castigo: retirada de privilégio. Evitar re- - Consulta anual ao dentista: fluoretação.
primendas violentas e injustas. - Atualizar mesada, não suplementá-la, a não
• Prevenção de acidentes: treinar o trajeto ser em emergências.
para a escola e o uso de ônibus e metrô; evitar - Nessa idade, a criança é muito sensível a
trampolim; “não bancar o valente” em águas críticas mesmo que veladas. Não aplicar
agitadas ou desconhecidas. castigos físicos.
• Problemas: cefaléias funcionais (tensionais); - Prevenção de acidentes: cinto de seguran-
enxaquecas; rendimento escolar deficiente: ça, bicicleta, trampolim, nadar no mar.
afastar deficiência visual e auditiva e problemas - Saiba sempre onde seu filho está, a qual-
emocionais, encaminhamento à psicopedagoga. quer hora.

8 ANOS 9 ANOS

• Desenvolvimento: conhece as horas (pode • Crescimento - fase de repleção.


ocorrer só aos 9 anos). Tem senso de humor Alerta: pode chegar à obesidade.
(piada). Conta de 20 a zero. • Desenvolvimento
• Perfil de comportamento: idade expansiva; Alerta: menino já com caracteres sexuais se-
rapidez, comunicabilidade. Começa a tirar cundários - investigar puberdade precoce.
conclusões. Convém a mãe responder o Ques- • Perfil de comportamento: idade intermedi-
tionário/problemas emocionais. ária: interiorização, prática, realista, sensata,
• Sinais de alarme: baixa auto-estima, ansie- responsável e justa. Preencher Questionário/
dade, medos, depressão, enurese, encoprese, problemas emocionais.
distúrbios de sono, agressividade, crueldade. • Sinais de alarme: baixa auto-estima, ansiedade,
Falta de amigos. Desempenho escolar fraco. insegurança, depressão, enurese, encoprese; inca-
• Orientação aos pais paz de aceitar limites, desempenho escolar fraco.
- Ser um bom modelo (atitudes). • Orientação aos pais
- Reforçar independência e responsabilidade - Ser um bom modelo (atitudes).
de acordo com a idade. - Mostrar interesse nas atividades da criança
- Elogiar e encorajar as atividades da crian- e valorizar o trabalho dela; reforçar a res-
ça; mostrar interesse nelas. ponsabilidade.
- Reforço positivo. - Deixar falar, estimular autocrítica; ajustar
- Demonstrar afeto. ajuda às necessidades, encorajando inde-
- Providenciar tempo com o pai, a mãe e irmãos. pendência; aprender as normas do grupo.

258
Capítulo 22 • Assistência evolutiva na criança nos seus primeiros dez anos de vida

- Educação musical. - Pode ser adiada para os 12-15 anos.


- Livros: histórias reais e de aventuras. - Considerar reforço da vacina tríplice viral
- TV e videogame: disciplinar horário e tipo. (sarampo-rubéolacaxumba).
- Atualizar mesada, estimular economia. - O reforço da BCG não é mais recomendaope-
- Estimular exercícios e esporte. la OMS e Ministério da Saúde, tendo em vis-
- Advertir e insistir no perigo do cigarro. ta pesquisa que demonstrou não haver eleva-
- Iniciar a prevenção contra o uso de drogas. ção do nível de anti-corpos após esta dose.
- Participação dos pais na educação sexual. • Orientação aos pais
- Sono: 08 horas por dia. - Ser um bom modelo (pelas atitudes).
- Reservar tempo para a criança (diariamen-
te, se possível).
10 ANOS - Comunicar-se com a criança; mostrar interes-
se; elogiar seu bom trabalho; mostrar afeto.
• Crescimento - fase de repleção. - Proporcionar interação social com irmãos,
Alerta: pode chegar à obesidade. Medir PA, familiares, adultos e companheiros (grupos
avaliar visão e audição. Observar escoliose. sociais e esportivos); “hobby”.
• Desenvolvimento - Respeitar a individualidade; permitir a pri-
Meninas: início da puberdade: botão mamá- vacidade; estimular a autocrítica.
rio, pêlos pubianos. - Permitir que opine e sugerir quanto à pro-
Meninos: permanecem impúberes: pênis pe- gramação familiar; explicar/discutir as difi-
queno, um pouco escondido no coxim gordu- culdades e solicitações dos adultos.
roso pré-pubiano. - Evitar conflitos desnecessários.
• Perfil de comportamento - Responsabilizar a criança por seus objeti-
- Idade da reorientação. vos pessoais.
- Importância do grupo (bando). - Explicar o fundamento da ética: “o direito de
- Diferença acentuada de temperamento em cada um termina onde começa o dos outros”.
ambos os sexos. - Sono: 08 horas por noite.
- Preencher Questionário / problemas emo- - TV e videogame: orientar e disciplinar;
cionais. comentar e discutir posteriormente os pro-
• Sinais de alarme gramas controversos.
- Insegurança, depressão, tristeza. - Estabelecer horários adequados para sair
- Ansiedade, agressividade, negativismo. de casa.
- Incapacidade de fazer ou manter amigos. - Livros apropriados.
- Perturbada com sua aparência física. - Atualizar mesada; estimular economia.
- Rendimento escolar ruim. - Higiene dentária: visita ao dentista.
- “Fora de controle” (incapacidade de ater-se - Atividade fisica/esportiva sistemática.
a regras). - Lazer; condições para receber em casa.
• Alimentação - Insistir contra o uso de álcool, fumo, dro-
- “Dieta prudente”. Estimular toda a família gas (“é uma fria”).
a aderir. - Educação Sexual - Esclarecer sobre mas-
- Orientar os lanches fora de casa. turbação, variações normais do desenvolvi-
• Vacinação mento pubertário, preparo para a menarca.
- Vacina dupla - tetânico-diftérico tipo adul- - Prevenção de acidentes - bicleta, moto,
to (Td). trampolin, cinto de segurança.

259
Capítulo 23
Habilidades de comunicação na Numa mesma manhã de trabalho, Dr. Pedro,
teve que lidar com diferentes situações clínicas
consulta com crianças
e, também, apesar de todas serem crianças, elas
álvaro JorGe Madeiro leite
são muito diferentes entre si. Cada uma com ca-
racterísticas peculiares, ora na função da idade
Ser médico era travar uma batalha ininterrupta. De um lado a
doença, sempre a entrar no corpo das pessoas; do outro, a saúde, cronológica, do estágio e da normalidade de seu
sempre querendo ir embora. E depois, havia mil espécies de desenvolvimento, da gravidade clínica do pro-
doença e uma única saúde.
A doença usava todo tipo de máscara para que blema atual, dentre outros. Cada criança inseri-
não a pudessem reconhecer: um verdadeiro carnaval. da numa específica família com sua dinâmica e
Era preciso desmascará-la, desanimá-la, pô-la para fora, e ao
mesmo tempo, atrair a saúde, segurá-la, impedi-la harmonia próprias; uma relação muito particu-
de fugir. Maurice druon, O menino do dedo verde
lar com seus pais, e em especial, com suas mães.
Lembrar aqui que crianças estão em pro-
cesso contínuo de desenvolvimento, aprendiza-
Introdução gem e relacionamento com o mundo e as pes-
soas, num período marcado pelas características

N uma manhã de trabalho, Dr. Pedro, médico


de família da localidade de Santa Bárbara,
atende várias crianças:
básicas de dependência, risco e vulnerabilidade.
Crianças precisam de cuidados físicos essenciais
e de proteção por parte dos responsáveis. Além
– Rafael de três meses de idade sem pro- disso, precisam ser atendidas em outras necessi-
blemas clínicos; a mãe trouxe para acompa- dades vitais para seu desenvolvimento mental e
nhamento do desenvolvimento; o bebê está emocional, em particular, a necessidade de esta-
sorridente, aparência saudável; em aleitamento belecer bons relacionamentos afetivos.
materno exclusivo; os pais satisfeitos e harmô- A Medicina de Crianças guarda diferenças
nicos; o exame clínico é normal; básicas da Medicina de Adultos. Crianças pre-
– Bruna de 15 meses, há quatro dias com cisam de pessoa(s) que se responsabilizem por
coriza, tosse febre baixa; hoje acordou com dor de sua saúde (cuidadores/responsáveis), que reco-
ouvido, irritada, gemente e com febre elevada; a nheçam, decifrem ou traduzam seus problemas.
mãe está preocupada com a possibilidade de pneu- Crianças sadias ou doentes mobilizam distintos
monia. Você examina-a e descarta tal hipótese. graus de ansiedade em suas famílias, mães e nos
– Uma outra criança, Miguel, de dois anos médicos que lhes atendem. Podemos imaginar
de idade, chega quase arrastada pela mãe dada a os fatores que possibilitam ou dificultam essa
resistência de entrar no consultório; a mãe de- tarefa de tradução!
monstra irritação e a criança manifesta medo e As estratégias de comunicação e habilida-
recusa cada vez maiores; des necessárias para realizar o exame clínico que
– Uma das últimas crianças da manhã, La- devemos utilizar com crianças sadias ou doentes
rissa, chega e logo abraça Dr. Pedro; tem cinco ou com crianças de várias faixas etárias são mui-
anos de idade; a mãe diz que ele estava ansioso to diferentes. O médico que irá atender crianças
e só falava em chegar o momento da consulta – precisa possuir habilidades de comunicação es-
estava cheio de saudades do médico. pecíficas em duas direções – uma em busca da
Logo se percebe que a atividade clínica compreensão do adulto (mãe) e outra na direção
com crianças apresenta muitas particularidades. da própria criança. Ou seja:

261
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• Para captar e desvendar a natureza dos pro- quais não podem ser compreendidos imediata-
blemas trazidos à consulta por intermédio mente, senão, mediante procedimentos cautelo-
de outra pessoa, um intérprete – frequente- sos aprendidos ao longo da carreira profissional.
mente, a mãe - com um grau de envolvimento
afetivo e sentimentos de responsabilidade de
grande proporção; A prática clínica com crianças e suas famílias
• Para compreender as especificidades da co-
municação com as crianças em suas dife-
rentes circunstâncias, incluindo a fase pré- As crianças e suas mães
verbal e a mobilização de distintos graus de
medo e ansiedade. A prática clínica com crianças é muito dife-
rente de qualquer dos campos da Medicina. São,
Nesse sentido, a consulta com crianças no mínimo, duas as perspectivas a considerar:
envolve uma efetiva comunicação tanto com a • A criança doente e a doença da criança “real-
criança como com o adulto que lhe acompanha. mente” existente, com todos os componentes
A consulta é descrita como a unidade essencial de sofrimento físico e emocional, bem como
da prática clínica seja no ambulatório ou am- o impacto desse sofrimento sobre a criança e
biente hospitalar. Realizar uma boa consulta tal- a família.
vez seja uma das atividades mais relevantes da • Uma parte dessa agenda refere-se a perspec-
prática médica. Todas as outras ações, de alguma tiva ou quadro de referência do médico e seu
maneira, derivam dela. saber; a outra perspectiva é a representada
O médico que atende crianças deve pos- pela estrutura de referência (ou agenda) ma-
suir competências e habilidades específicas na terna; esta agenda costuma assumir impor-
comunicação com as crianças e seus pais ou tância e especificidades que não podem ser
responsáveis, na recepção, na coleta de informa- contidas apenas no espaço convencional da
ções, no exame físico, no raciocínio diagnóstico, abordagem biomédica.
na negociação do plano terapêutico.
Estas habilidades devem ser ajustadas Com o adoecimento da criança, as mães
em função da gravidade do problema clínico da sentem, de forma consciente ou não, de manei-
criança, do local onde o atendimento está sendo ras distintas e graus de intensidade, ruir o edi-
realizado (unidade básica de saúde/consultório, fício de competência que elas gostariam de ver
pronto-socorro, hospital), das aflições e angús- reafirmado com a saúde, o desenvolvimento e o
tias que estão mobilizadas pelas famílias, das ex- bem-estar de seus filhos. Diferentes graus de an-
pectativas e necessidades dos pais, da idade de siedade e sentimentos de culpa podem dominar
cada criança, de sua capacidade de comunicação, as emoções maternas e distorcer a percepção dos
das características do profissional que a atende, incômodos do filho.
dentre outras. Experiências prévias e expectativas ne-
Circunstâncias atuais e pregressas da vida gativas na família ou em conhecidos próximos
da família, da criança e do contexto em que vi- podem fazer com que os pais superestimem os
vem modificam substancialmente as atitudes no sintomas que o filho apresenta, ou mesmo de-
acolhimento da criança e sua família, exigindo monstrem um grau de ansiedade que pode ‘con-
diferentes habilidades de compreensão e comuni- taminar’ o ambiente da consulta.
cação com ambos, pais e crianças. São múltiplos Às vezes, aspectos subjacentes relacionados
e complexos os cenários possíveis, muitos dos à percepção e às preocupações maternas podem

262
Capítulo 23 • Habilidades de comunicação na consulta com crianças

não ser tão óbvios, o que irá exigir do médico, ha- a família estão imersas: primeiro filho, gravidade
bilidades diferenciadas de escuta. Se tal habilidade da doença, experiências prévias, situação atual da
não estiver desenvolvida, podem advir várias con- família, grau em que o cotidiano da família po-
seqüências de uma consulta nessas condições: dis- derá ter alterações, características emocionais da
cernimento inadequado do problema clínico com mãe, dentre outros. Com o sofrimento da crian-
reflexos na tomada de decisão clínica – solicitação ça, com as limitações à sua rotina diária, os pais
de exames complementares desnecessários, exces- podem ser tomados por sentimentos de culpa, de
so de medicamentos sintomáticos ou de qualquer fracasso, de fragilidade, de pânico, às vezes.
natureza etc. Outras vezes, o perigo é a negação ou Algumas famílias podem enfrentar a expe-
subestimação do sintoma ou problema real que a riência da doença de maneira muito estressante,
criança apresenta. O crucial é sempre perceber a inclusive, com sérias perturbações em seus me-
relação existente entre a capacidade de discrimina- canismos de vitalidade. Sentimentos de culpa,
ção da realidade objetiva da doença do filho com a divergências sobre as origens da doença, sobre a
realidade subjetiva dos familiares e, em particular maneira de enfrentar os problemas, podem alte-
das mães, face às angústias, medos, equilíbrio emo- rar a dinâmica da família e do casal, bem como
cional e a história pessoal (e conjunta) dos adultos alterar a vida dos outros filhos. Freqüentemente,
envolvidos. Uma mãe tomada por um estado de a mãe apresenta maior ansiedade. Seus projetos
angústia muito grande tem pouca capacidade de maternos e, às vezes, os pessoais ficam ameaça-
discriminar, assimilar, perceber determinadas dos, revirados de cabeça para baixo. Nesse mo-
noções, orientações, idéias. Sua capacidade de mento, a mãe precisa se sentir apoiada por seu
pensar com clareza pode estar comprometida. companheiro ou por outros membros da família
A abordagem do médico ao atender tais para se sentir mais fortalecida, tomar iniciativas
crianças é acolher essas duas perspectivas: da para alcançar um senso de controle muito claro
criança enferma e da percepção que esta condi- diante os infortúnios trazidos pela doença.
ção – o filho enfermo – produz na auto-estima Cuidar da criança doente pode implicar
materna e a intensidade desse impacto em suas aprendizagem dolorosa, penosa, percebida como
percepções e comportamentos. Fato esse exem- extenuante. Para outras famílias, o enfrentamen-
plificado no relato abaixo. to pode ser mais realístico, com pequenos abalos
Logo cedo, pela manhã, Dr. Maurício re- na vitalidade da família.
cebe um telefonema: Os pais nessa situação buscam apoio um do
“Oh! Dr. Maurício, que bom falar com o se- outro, em familiares ou amigos. Alguns necessi-
nhor. Eu cometi uma atrocidade. O Pedrinho está tam de apoio mais concreto, social ou psicológico.
que é uma crise só: nariz entupido, tosse cheia e já Se ocorrer uma grave perturbação na dinâmica da
com cansaço. É que eu mandei pintar as portas do família, maiores cuidados devem ser dispensados
apartamento e está um cheiro horrível. Ah! Como aos pais e os irmãos. Estes devem receber dos pais
me arrependo!” mensagens coerentes em relação ao que está ocor-
rendo. À medida que a família se reorganiza para
enfrentar a doença e seus distúrbios de maneira
A criança doente e seu impacto na vida da família serena, ocorrem a redução da carga de sofrimento
e estresse sobre todos. Para que o médico possa
Quando uma criança adoece, imediatamen- adequar suas mensagens, sua habilidade de bom
te, se produzem alterações na dinâmica da família. ouvinte deve culminar numa percepção, a mais
A intensidade e o sentido dessas alterações estão correta possível, acerca do impacto que a doença
relacionados com o contexto no qual a criança e traz para a criança e seus pais e a família.

263
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Assim, parte da tarefa do médico de crian- Utilizar habilidades que valorizem e in-
ças é apoiar e encorajar a mãe, oferecer estímulos corporem a criança, ativamente, à todas as eta-
para que ela possa recuperar a auto-estima. Os pas da consulta. Crianças de mais idade sentem-
efeitos da doença do filho sobre a parte subjetiva se valorizadas quando podem contribuir com
da mãe têm importante impacto em sua capaci- informações relevantes e estabelecer um diálogo
dade de perceber, adequadamente, a gravidade próprio com o médico acerca de seus problemas;
da doença e as necessidades do filho e, em con- isto resulta em aumenta da satisfação com a con-
seqüência, de articular as iniciativas que devem sulta e maior adesão às recomendações.
ser assumidas para o enfrentamento da doença. De forma semelhante a qualquer pessoa,
Ao considerar a repercussão que a doença as crianças se sentem mais confortáveis quando
traz para a criança e sua família, o médico pode são cumprimentadas pelo nome e envolvidas em
compreender melhor a aflição da família, a ansie- interações agradáveis antes de serem inquiridas
dade dos pais e reconhecer os mecanismos sub- com perguntas delicadas ou ameaçadas com pro-
jetivos de defesa que estão mobilizados, e, assim, cedimentos ou exames. Crianças pequenas sen-
lançar mão de palavras mais acolhedoras. Uma tem-se mais seguras próximas à mãe ou apoiadas
escuta atenta para a repercussão que a doença está em seu colo e, dessa maneira, podem participar
trazendo para a família e a criança faz com que da conversa.
o médico seja capaz de acolher, genuinamente, Com o desenvolvimento da entrevista, o
as necessidades decorrentes das circunstâncias médico deve ser capaz de distinguir o problema
atuais da família. Tornando prudente suas pala- clínico real que a criança apresenta e a eventual
vras, sua gestualidade, suas intervenções verbais percepção inadequada que possa ter a mãe so-
e não verbais, evitando emitir juízos de valor ou bre a saúde de sua criança; aqui é fundamental
fazer comentários apressados, inadequados, ino- ajudar a mãe a ajustar melhor sua percepção do
portunos, ‘agressivos’, desrespeitosos. problema de sua criança.
As crianças devem ser valorizadas e ter
participação ativa em todas as fases da consulta.
O processo de comunicação e a estrutura bási- Atenção integral à saúde da criança
ca da consulta médica segundo modelo de Cal-
gary-Cambridge (http://www.gp-training.net/ Do ponto de vista médico, as crianças
training/theory/calgary/guide.htm) reconhece apresentam demandas de atenção que devem ser
as três funções básicas da consulta médica e en- contempladas mediante um programa longitudi-
volve as seguintes etapas: nal de acompanhamento ao longo de seu desen-
• Funções básicas: volvimento. Assim, por exemplo, no primeiro
- Construção do relacionamento contato pode-se fazer uma abordagem geral da
- Coleta de dados criança e seu contexto familiar e, nas consultas
- Negociação do plano de tratamento de seguimento, focalizar os aspectos específicos
dos problemas que vão surgindo.
• Etapas: A atenção integral inclui ações e práticas
- Iniciando a entrevista de assistência que respondam às necessidades
- Obtendo informações globais do desenvolvimento da criança: ali-
- Estruturando a entrevista mentação, estado nutricional, desenvolvimento
- Construindo o relacionamento (crescimento somático e desenvolvimento sócio-
- Explicando e planejando afetivo), estado vacinal, estado sensorial (acui-
- Concluindo a consulta dade visual e auditiva), saúde oral, situações de

264
Capítulo 23 • Habilidades de comunicação na consulta com crianças

risco para acidentes, relações afetivas, atividades • Obtenha as primeiras impressões, in-
escolares, qualidade do cuidador. cluindo, aflição, temores, preocupações.
• Obtenha uma visão geral do humor da
criança (temerosa, brincalhona, dis-
A consulta médica com crianças ponível?).

O médico de família tem a oportunidade Esse primeiro momento da consulta e sua


de ir construindo um relacionamento de con- eficácia – a recepção – está relacionado ao su-
fiança com a família e a criança. Esse aspecto fa- cesso da consulta.
cilita muito o trabalho de “convencimento” de
sua disponibilidade e competência para cuidar PARE & PENSE
da criança que está doente. O ambulatório, local
“A doutora ‘destruiu’ ele, colocou ele lá prá ‘baixo’,
onde a consulta se realizará com maior freqüên- eu fiquei arrasada”, disse a mãe de Tiago, de três anos
cia, costuma ser mais tranqüilo que em outras de idade, antes de perguntar a seu médico de família se
ele achava que Tiago estava realmente pálido. A mãe de
situações, onde o risco de gravidade é maior. Tiago havia sido atendida em um serviço de pronto aten-
A primeira tarefa consiste em identificar dimento e, logo na recepção, antes mesmo de qualquer
e compreender, logo nos primeiros instantes da palavra de acolhimento, a doutora declarou: ‘esse meni-
no está muito pálido...”
consulta, as expectativas maternas, a preocupa-
ção subjacente que motivou a visita; em suma,
a agenda de preocupações maternas. Aqui é fun-
Aproximação com crianças: algumas táticas
damental permitir que a mãe conclua seu pri-
meiro relato sem interrupção.
• Deve-se “cumprimentar” a criança; a forma
Às vezes, as características da família
adequada depende de variáveis como, a idade
podem determinar ou estar intimamente rela-
da criança, a gravidade clínica do problema,
cionadas com a natureza do problema e, isto
se a consulta é de acompanhamento ou se é o
tem grandes implicações para o tratamento e o
primeiro contato.
prognóstico.
• Um sorriso, uma saudação gestual, um elo-
Vamos tomar como base, as diferentes ha-
gio, um aperto de mão, um comentário qual-
bilidades e atitudes que o médico deve ter para
quer de acolhida. Propiciar uma experiência
para atender uma criança de quatro meses e ou-
de bom acolhimento já no primeiro instante
tra de quatro anos de idade, ambas acompanha-
da consulta.
das por suas respectivas mães.
• Pode-se indicar o lugar para onde a criança
deve se dirigir, onde possa brincar ou ficar a
vontade – uma mesa com cadeirinhas, brinque-
Recepção
dos, livros, desenhos, pinturas. Um primeiro
contato acolhedor tem potencial para desfazer
Estabelecendo o primeiro contato com a
cargas de ansiedade pré-existentes e as atuais.
mãe e com a criança:
Promove sensação de alívio, da tensão prévia.
• Dirigir-se à mãe e à criança, primeiros
• Empreender uma comunicação direta com a
movimentos, primeiros gestos
criança desde o momento do primeiro conta-
• Cumprimentá-las, palavras de apro�i-
to visual, bem antes, portanto, de tocá-la ou
mação.
examiná-la.
• Utilizar palavras acolhedoras, que de-
• Algumas dessas táticas podem ser de mui-
monstram cuidado e interesse.
to sucesso em todas as faixas de idade, mas

265
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

crianças na fase de estranhamento e birra e, se fala muito pouco. No entanto, pede-se a con-
para as que estão mais adoentadas são fun- cordância da criança para os procedimentos do
damentais. Maior sucesso desta abordagem é exame físico! ‘Deite na cama’. ‘Abra a garganta’.
alcançado com crianças maiores de 2-3 anos. ‘Respire fundo’.
• Pode-se perguntar por assuntos relevantes Um aspecto nada banal diz respeito a per-
que guardem coerência com a idade ou com o da de oportunidade de ir desenvolvendo, gradu-
desenvolvimento atual da criança e com con- almente, um senso de responsabilidade na crian-
texto de vida da criança. ça para o cuidado da própria saúde. Mensagens
apoiadas na dimensão acolhedora do encontro,
(...) nome dos amiguinhos, da professora, com empatia, podem repercutir favoravelmente
do que gosta de comer, sobre a escova dentária. no comportamento da criança. Mensagens sobre
uso de chupeta, escovação dental, alimentação
saudável, necessidade de tomar os medicamen-
Coleta de informações tos nos horários certos, cuidados no andar de
bicicletas, dentre outras, podem ser mais facil-
Os pais devem ser encorajados para per- mente incorporadas pela criança e pela família.
mitir que seus filhos possam expressar o que Exemplos de algumas perguntas que po-
sentem, apresentar suas interpretações, seus de- dem facilitar o início da aproximação com a
sejos, seus receios. criança. Perguntas que guardam coerência com
A estrutura da consulta por ter questiona- o contexto de vida da criança, sua idade, classe
mentos que investigam condições do passado, social, etc: (...) “cadê o papai?”; “qual o nome do
por articular nexos com o presente – algumas papai”, “o nome da mamãe”, “do irmãozinho”.
perguntas só podem ser respondidas por adultos “Se escova dentes, faz acenos de tchau, bate pal-
– neste caso destina-se um lugar secundário à mas” e coisas assemelhadas. Perguntar por ami-
criança, considerando-a como interlocutor dis- gos na escola, qual o esporte que praticam que
pensável. música gosta de ouvir e dançar.
As crianças podem fornecer orientações so-
bre sua condição e, deveriam ser envolvidas nas
decisões sobre seu próprio cuidado com a saúde. Exame Físico
Deveriam ter papel ativo na consulta, isto cons-
titui um momento de aprendizado para a vida. Para realizar o exame físico é útil compre-
A criança precisa se sentir valorizada, reconhe- ender algumas características básicas das crian-
cida em sua condição humana. Muitas crianças ças em função da idade cronológica.
são capazes de fornecer informações relevantes e • Crianças pequenas, menores de um ano de
compreender as orientações durante uma consul- idade (em torno de 10-12 meses) são de abor-
ta médica. Tem sido demonstrado que as crian- dagem fácil e simples.
ças ficam menos ansiosas quando se é explicado • Crianças de idade compreendida entre 10-12
claramente e honestamente o que irá acontecer meses e 2-3 anos costumam demonstrar re-
com eles durante as várias fases da consulta. ceios, com estranhamentos e crises de birra e,
Um erro muito comum é o comportamen- assim, demandar alguma dificuldade.
to de excluir a criança de uma participação mais • Crianças maiores de 2-3 anos de idade, cos-
ativa na consulta. São poucas as iniciativas de tumam se comunicar de maneira tranqüila,
diálogo destinadas especificamente à criança. gostam de conversar e costumam ser de fácil
Não se ‘fala’ com a criança durante a consulta ou abordagem.

266
Capítulo 23 • Habilidades de comunicação na consulta com crianças

Crianças pequenas (antes de 10-12 meses movimentos de grande ansiedade. A aproxima-


de idade) ção de pessoas que não lhes são familiares pode
produzir muita ansiedade. Acrescente-se a esse
Nos primeiros anos de vida, a comunicação fato, a ameaça (real ou imaginária) própria da
verbal das crianças é limitada, não obstante, serem situação atual – a doença – e as circunstâncias
muitas as possibilidades de comunicação por in- envolvidas (experiência prévia, gravidade e a
termédio da linguagem não-verbal. O olhar, o sor- maneira como os pais encaram e procuram con-
riso, movimentos suaves, expressões gentis, frases tornar tal situação).
curtas, tornam-se a estratégia básica de aproxima- Uma boa tática é, logo na recepção, o médi-
ção. A proximidade a manter não pode parecer co averiguar as experiências prévias que a criança
ameaçadora, mas próxima o suficiente para estabe- e a família já tiveram ao lidar com alguma do-
lecer contato visual e sonoro. Com esses cuidados ença ou sofrimento, uma vez que elas têm poder
costuma-se obter bons momentos de interação. explosivo para perturbar o encontro atual. Mo-
mento concomitante, identificar as expectativas
(...) “Desde o nascimento, todas as crianças sen-
tem necessidade de serem tocadas, abraçadas, e o humor da criança (temerosa, brincalhona?)
acariciadas, de que as pessoas falem com elas, e adequar a natureza dos contatos que irá pro-
de ver rostos e expressões familiares, de ouvir
por para a criança. Assim, com crianças tomadas
vozes familiares, e de perceber que as pessoas
respondem a elas. As crianças também preci- de ansiedade e de temores, iniciar contato com
sam de coisas novas e interessantes para olhar, a mesma apoiada no colo da mãe e, mais tarde,
ouvir, prestar atenção, segurar e brincar. Este é
o início do aprendizado. Vozes humanas são a
decidir quais procedimentos de exame físico po-
coisa mais importante para um bebê ouvir. Ros- dem ser realizados nessa situação. Às vezes, algu-
tos humanos são a coisa mais importante para mas crianças, rapidamente se “enturmam”! Nou-
um bebê olhar”.2
Medidas Vitais. UNICEF (1995) tras, mais tempo é necessário para adaptação. O
importante é que a criança seja - e sinta-se - com-
A sensibilidade do médico aqui se expres- preendida e respeitada em sua individualidade.
sa em sua criatividade e improvisação no diálo-
go com crianças tão pequenas. Assim, no conta-
to com um recém-nascido ou com uma criança Crianças maiores de 2-3 anos de idade
com poucos meses de vida, procurar contato face
a face, falar-lhes ao ouvido, acariciá-la, são lin- Crianças maiores de três anos, em geral,
guagens comunicacionais que podem acalmá-la, são fáceis de abordar com comunicação dire-
faze-la sorrir, fixar o olhar na direção do médico. ta, pequenas brincadeiras, perguntas amistosas
sobre grupo de amiguinhos na pré-escola, pre-
ferências musicais, alimentares, programas te-
A criança com idade compreendida entre levisivos. Nessa idade, a criança é capaz de es-
10-12 meses e 2-3 anos tabelecer um adequado diálogo verbal quando
adequadamente estimulada. É fundamental que
Com a criança nessa faixa de idade costu- se reconheça que a criança tem a liberdade e o
ma-se ter as maiores dificuldades. Com o início direito de falar, de ser ouvida em suas preocupa-
do desenvolvimento da autonomia, as atitudes ções e temores. Nessa fase, há maior consciência
de estranhamento e recusa aparecem. O primei- dos motivos da consulta e deve-se sempre res-
ro movimento é a recusa para entrar no consul- ponder de forma clara às perguntas bem como
tório. Qualquer menção ou algo que lembre o checar o que a criança compreendeu e ajustar
ambiente do consultório desencadeia choro e com novas explicações, se necessário.

267
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

O momento do exame físico é de valor in- • Estabelecer algum diálogo com a criança.
comensurável para a percepção, por parte do pa- Uma voz calma é tranqüilizadora, mesmo se
ciente, de que o médico está, de modo autêntico, não pára o choro da criança, ajuda a deixá-la
interessado na pessoa que está à sua frente. mais segura durante o exame;
(...) “o doutor nem examinou ela”. • Algum tipo de engajamento dos pais durante
(...) “o doutor a examinou de maneira tão o exame físico da criança é desejável.
rápida que...”
A percepção do paciente (ou dos acom-
panhantes e responsáveis) é de que a consul- O que o médico não deve fazer
ta - mais acertadamente, o comportamento do
médico – foi de descompromisso, menosprezo, • Fazer promessas que não possa cumprir ou
desatenção para com seus problemas, seu sofri- declarações que não são verdadeiras: “Isso
mento, sua vida. não irá doer”.
O EXAME FÍSICO deve ser feito na pre- • Usar linguagem comple�a ou termos médicos.
sença da mãe ou pessoas próximas da criança. Se necessário, teste a compreensão da criança
Em algumas situações é mais adequado e efi- pedindo para ela explicar o que você disse.
ciente examinar a criança no colo da mãe ou • Utilizar-se de “subornos ou pequenos pre-
de algum familiar próximo. Crianças pequenas sentes”. A criança irá constantemente espe-
ou temerosas podem ser examinadas no colo da rar uma recompensa após o tratamento ou
mãe. Não se deve separar, desnecessariamente, a medicação.
criança de sua mãe ou familiares. Deve-se man- • Dei�ar a criança sozinha em um lugar não fa-
ter uma proximidade com a criança que não seja miliar ou com pessoas desconhecidas para ela.
percebida como ameaçadora. É conveniente ser • Encorajar a criança para ser “boa” ou “forte”.
mais flexível na técnica e numa seqüência ‘obri- Ao contrário, permita que chore e demonstre
gatória’ do exame físico. seus anseios e angústias.
A fase de observação e inspeção das con-
dições clínicas gerais pode ser prolongada; o A mãe deve possuir capacidade de trans-
mesmo se pode fazer para avaliar sinais gerais mitir noções adequadas para a criança, e assim,
de perigo, bem com alguns detalhes específicos conseguir acalmá-la a partir da transmissão de
exame físico (avaliar freqüência respiratória, ti- confiança. Se isto não ocorre, a criança pode per-
ragem subcostal, cor da pele); após essa fase, ge- ceber o ambiente como ameaçador ou desenca-
ralmente se tem mais condições para realizar o deador de sofrimentos, dores.
exame físico de forma mais detalhada. Alguns procedimentos técnicos devem
ser explicados antes de sua realização; pode-se
utilizar bonecos para demonstrar a natureza do
O que médico deve fazer durante o exame físico: procedimento que será executado – palpação ab-
dominal, foco luminoso em direção ao ouvido,
• Estabelecer uma apro�imação inicial com a em direção à boca da boneca.
criança buscando criar algum tipo de vínculo Não explicar para a criança o que lhe vai
ou ganhar a sua confiança, antes de tocá-la ou suceder, qual procedimento irá ser realizado au-
examiná-la; menta sua ansiedade, da mesma maneira que se-
• E�plicar os procedimentos antes de fazê-los. parar desnecessariamente a criança de sua mãe
• Utilizar uma linguagem que criança com- ou familiares ou deixar a criança sozinha em
preenda; ambiente desconhecido para ela.

268
Capítulo 23 • Habilidades de comunicação na consulta com crianças

História pediátrica abrangente Bibliografia

Uma atenção abrangente à saúde das crian- Brazelton TB, Cramer BG. As primeiras relações.
ças envolve os tópicos fundamentais próprios do São Paulo: Martins Fontes.
campo da Medicina: motivo da consulta, a di- Campos GWS. A clínica do sujeito: por uma clíni-
mensão temporal das queixas e suas articulações ca reformulada e ampliada. In: Saúde Paidéia. São
atuais e pregressas com outros sintomas, o am- Paulo, Sarvier, p. 51-57, 2003.
biente familiar e social, base para surgimento e Di Loreto ODM. Do psiquiatra infantil ao pedia-
superação do problema, os nexos com a história tra. In: Murahowschi, J. Pediatria: diagnóstico +
pessoal e familiar e os aspectos relacionados ao tratamento. São Paulo, Sarvier: 1979.
exame físico abrangente, as hipóteses diagnósti-
Gask L, Usherwood T. The consultation. BMJ.
cas e a elaboração de um plano de tratamento.
2002;324:1567-1569.
Grosseman S, Patrício ZM. A relação médico-pa-
Passos Fundamentais ciente e o cuidado humano: subsídios para a pro-
moção da educação médica. Rev Bras Educ Med.
2004. 28(2): 99-105.
• Abordagem integral: avaliação do crescimen-
to, do desenvolvimento (neurológico e psico- Maldonado MT, Canella P. Recursos de relaciona-
afetivo), da alimentação, da imunização, do mento para profissionais de saúde: a boa comu-
ambiente físico, saúde oral, saúde sensorial nicação com clientes e seus familiares em consul-
(visão e audição); tórios, ambulatórios e hospitais. Rio de Janeiro:
Reichmann & Affonso Editores; 2001.
• Prescrição pediátrica: os itens da prescrição
devem corresponder aos problemas identifi- Marcondes, Krinsky. Dinâmica das relações fami-
cados na abordagem integral. Como conteúdo liares. In: Alcântara P. Pediatria básica; 1974.
mínimo, deve-se abordar: alimentação, imu- Sucupira ACSL. Relações Médico-Paciente nas Ins-
nização, orientações/recomendações educa- tituições de Saúde Brasileiras. Dissertação de Mestra-
cionais (promoção de saúde, psicoprofilaxia) do, São Paulo: Faculdade de Medicina. 1982.
e medicamentos. Sucupira ACSL, Novaes HMD. A prática pediá-
trica no consultório. In: Sucupira ACSL, Bricks
LF, Kobinger MEBA, Saito MI, Zuccolotto SMC,
Considerações finais eds. (2000). Pediatria em Consultório. 4ª ed. São
Paulo: Sarvier.
Habilidades de comunicação utilizadas
Winnicott DW, Camargo JL, Patto MHS. Os bebês
de forma satisfatória produzem benefícios para e suas mães. São Paulo: Martins Fontes; 1999.
os pacientes e médicos. Os médicos identificam
Zimmerman, DT Fundamentos psicanalíticos,
mais adequadamente os problemas de seus pa-
técnica e clínica, Porto Alegre: Artmed; 1999.
cientes; os pacientes ficam mais satisfeitos com
os cuidados que estão recebendo; são capazes de
compreender melhor seus problemas e as opções
de investigação e tratamento; têm mais propen-
são a seguir as prescrições médicas; os médicos
ficam mais satisfeitos com sua performance1.

269
Capítulo 24
Alimentação da criança nutricional adequado capaz de garantir o cres-
reGina lúcia Portela diniz cimento e desenvolvimento da criança e do ado-
christiane arauJo chaves leite lescente em sua plenitude.
rui Gouveia soares neto Amamentar é muito mais que nutrir a
Juliana Barros Mendes criança. É um processo que envolve interação
profunda entre mãe e filho, com repercussões
no estado nutricional da criança, em sua habi-
lidade de se defender de infecções, em sua fi-
siologia, e no seu desenvolvimento cognitivo
Aleitamento Materno Exclusivo: os e emocional, além de ter implicações na saúde
primeiros seis meses de vida física e psíquica da mãe.
Apesar da tendência ascendente nas taxas

A criança, por sua característica fundamental


de constituir o ser humano em sua fase de
crescimento e de desenvolvimento, representa
de aleitamento materno no Brasil, a maioria das
mulheres ainda não pratica a duração ideal da
amamentação. A duração mediana da amamen-
um dos grupos populacionais mais susceptí- tação no país, que era de 2,5 meses em 1975, au-
veis às carências nutricionais. Quanto menor a mentou para 5,5 meses em 1989, para 7 meses
criança, maior a repercussão dos agravos nutri- em 1996 e, finalmente, para 10 meses em 1999.
cionais, visto que suas necessidades calóricas são No entanto, a duração da amamentação exclusi-
maiores que a dos adultos. Sabe-se, por exem- va está de apenas em 23 dias, muito aquém dos
plo, que cerca de 40% das calorias fornecidas pe- 180 dias preconizados pela OMS. A região Sul é
los alimentos a uma criança no primeiro ano de a que mais amamenta exclusivamente (mediana
vida são utilizadas para dar suporte as necessi- de 39,1 dias), seguida das regiões Nordeste (26,3
dades de crescimento neste período. Do mesmo dias), Norte (24 dias), Centro-Oeste (17,1 dias) e
modo, as demandas nutricionais estão aumen- Sudeste (13,1 dias).
tadas durante os processos infecciosos e outros A seguir, estão citadas as evidências da su-
agravos à saúde. Portanto, não se pode pensar perioridade da amamentação:
em atenção à saúde da criança, sem promoção e
avaliação adequada da alimentação e do estado Para a criança:
nutricional. Além disso, não se pode subestimar • Redução da mortalidade infantil
a importância do alimento sob o ponto de vista • Redução da morbidade por diarréia
do desenvolvimento emocional e afetivo. • Redução da morbidade por infecção res-
Nesse contexto, o Médico de Saúde da piratória
Família, por sua responsabilidade no desenvol- • Redução de doenças crônicas
vimento de ações de promoção, prevenção, re- • Redução de alergias
cuperação e reabilitação de doenças e agravos • Redução da obesidade
à saúde mais freqüentes em uma comunidade, • Melhor nutrição
deve estar capacitado para orientar e avaliar a • Melhor desenvolvimento cognitivo
adequação nutricional da alimentação ofertada • Melhor desenvolvimento da cavidade oral
para a criança, bem como o seu estado nutricio-
nal e propor ações que propiciem um suporte

271
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Para a mãe: Duração das mamadas


• Proteção contra câncer de mama
• Efeito anticoncepcional O tempo de permanência na mama em
• Proteção contra diabete tipo 2 na nutriz cada mamada não deve ser preestabelecido,
• Promoção do vínculo afetivo mãe-filho uma vez que o tempo necessário para esvaziar
• Melhor qualidade de vida uma mama varia entre os bebês e, numa mesma
• Economia para a família e o sistema criança, pode variar dependendo da fome, do
de saúde intervalo transcorrido desde a última mamada e
do volume de leite armazenado na mama. Inde-
Alguns aspectos relacionados ao aleita- pendente do tempo necessário, é importante que
mento materno devem ser abordados para que os a criança esvazie a mama, pois o leite do final da
profissionais de saúde tenham conhecimento e mamada (leite posterior) contém mais calorias e
com isso, possam transmitir segurança às mães: sacia a criança.

Início da amamentação O que toda mãe precisa saber para o


sucesso do aleitamento
A amamentação deve ser iniciada tão logo
quanto possível após o parto. A sucção precoce da As seguintes instruções devem ser repas-
mama reduz o risco de hemorragia pós-parto ao sadas para as mães para que se tenha sucesso na
liberar ocitocina, e de icterícia no recém-nascido, amamentação:
por aumentar a motilidade gastrintestinal. A suc-
ção espontânea do recém-nascido pode não ocor- Cuidados com
Dificuldades Soluções
rer antes de 45 minutos a duas horas de vida do as mamas

bebê, porém o contato pele a pele, por si só, traz • Higiene dos • Engurgitamen- • Compressas
mamilos com to mamário geladas 2/2h.
benefícios, tais como: maior prevalência do alei- água. (peitos cheios e • Esvaziar
tamento materno de 1 a 3 meses, maior duração doloridos amamentando ou
ordenhando.
do aleitamento materno, melhor regulação da
• E�posição ao • Fissuras no • Corrigir técni-
temperatura corpórea e dos níveis de glicose san- sol para tornar mamilo ca, aplicar o leite
guínea do recém-nascido, choro menos frequente os mamilos mais sobre mamilos.
do bebê e maior escore na interação mãe-bebê. resistentes.
• Mastite • Amo�ilina ou
amplicilina.

Freqüência das mamadas


• Horário não deve ser fi�o.
• Choro é comum e não significa que o leite
O recém-nascido normal mama com fre- é fraco.
Intruções • A mamada deve durar até esgotar o leite.
qüência, sem regularidade quanto a horários. É gerais • Alternar os seios à cada mamada.
comum um bebê em aleitamento materno exclu- • Não é necessário água, chá ou suco.
sivo mamar de 8 a 12 vezes ao dia. Muitas mães, • Dar somente o leite materno até o 6º mês
de vida.
em especial as inseguras e com baixa auto-esti-
• A barriga do bebê deve tocar a da mãe
ma, costumam interpretar esse comportamento Posição da
abocanhando o mamilo e aréola, queixo to-
criança
como sinal de fome do bebê, leite fraco ou in- cando o seio.
suficiente, culminando, com freqüência, com a • Rela�anda, bem apoiada, segurando a
Posição da
mama com polegar na parte superior e os
introdução de suplementos. mãe
outros 4 dedos na parte inferior.

272
Capítulo 24 • Alimentação da criança do nascimento aos cinco anos

leite de vaca (antes dos 4 meses) pode ser um


importante determinante dessa doença e pode
aumentar seu risco de aparecimento em 50%.
Estima-se que 30% dos casos de diabetes melito
tipo I poderiam ser evitados se 90% das crianças
até 3 meses não recebessem leite de vaca.28
PEGA CORRETA PEGA INCORRETA

Fonte: OMS/UNICEF, 1997.


Alimentação Complementar: como
e quando iniciar
Uso de chupetas
O leite materno, isoladamente, é capaz de
Atualmente, o uso de chupetas tem sido nutrir adequadamente as crianças nos primeiros
desaconselhado pela possibilidade de interferir 6 meses de vida. Porém, a partir desse período,
com o aleitamento materno, e ainda, afetar ne- deve ser complementado.
gativamente a formação do palato. Alimentação complementar é definida
como a alimentação no período em que outros
alimentos ou líquidos são oferecidos à criança,
Alimentação da nutriz em adição ao leite materno.
Alimento complementar é, portanto, qual-
O sub-comitê de nutrição durante a lacta- quer alimento dado durante o período de alimen-
ção da Academia Americana de Ciências faz as tação complementar e que não seja leite materno5.
seguintes recomendações: As dúvidas e controvérsias sobre a dura-
• Evitar dietas e medicamentos que promovam ção apropriada da amamentação exclusiva, sur-
rápida perda de peso (mais de 500 g/semana); gidas no final dos anos 70 e expressas no cha-
• Consumir ampla variedade de pães e cere- mado “dilema de desmame”10, persistiram até
ais, frutas, legumes, verduras, derivados do o ano de 2001, quando, após a 54ª Assembléia
leite e carnes; Mundial de Saúde, a OMS recomendou a intro-
• Consumir três ou mais porções de derivados dução de alimentos complementares em torno
do leite; dos 6 meses em substituição à recomendação an-
• Esforçar-se para consumir frutas e vegetais terior, que era de 4 a 6 meses. Há um consenso
ricos em vitamina A; mundial de que não há nenhum benefício que
• Certificar-se de que a sede está sendo saciada; possa ultrapassar os riscos e as desvantagens da
• Consumir, com moderação, café e outros pro- introdução precoce de alimentos complemen-
dutos cafeinizados. tares, antes dos 180 dias de vida6v. É apenas a
partir dos 6 meses de idade que as necessidades
O aleitamento materno exclusivo reduz o nutricionais do lactente não podem ser supridas
risco de asma, e esse efeito protetor parece per- apenas pelo leite humano5. Além disso, a intro-
sistir pelo menos durante a primeira década de dução precoce dos alimentos complementares
vida, sendo particularmente evidente em crian- diminui a duração do aleitamento materno23,
ças com história familiar de doenças atópicas27. interfere na absorção de nutrientes importantes
A amamentação exclusiva também parece pro- existentes no leite materno, como o ferro24 e o
teger contra o aparecimento do diabetes melito zinco25, e reduz a eficácia da lactação na preven-
tipo I. Foi descrito que a exposição precoce ao ção de nova gravidez26.

273
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

A adequação nutricional dos alimentos fibras. Nenhuma fruta é contra-indicada, exce-


complementares é fundamental na prevenção de to quando houver intolerância ou alegria. Sucos
morbimortalidade na infância, incluindo des- de frutas naturais devem ser oferecidos em vo-
nutrição e sobrepeso1. O déficit de crescimento lume não superior a 240mL/dia, para não haver
linear adquirido cedo na infância é difícil de ser comprometimento da ingestão de alimentos de
revertido após os 2 anos de idade. maior densidade nutricional.
Quando a criança não cresce satisfatoria-
mente com a amamentação exclusiva nos primei- Faixa etária Tipo de aleitamento
ros 6 meses, antes de se recomendar a introdução Até o 6º mês Leite materno
de alimentos complementares é necessário realizar 6º mês Papa de frutas
uma avaliação criteriosa para ver se a criança não Primeira papa salgada, ovo, suco de
6º ao 7º mês
está ingerindo pouco leite materno por má técnica frutas

de amamentação, levando a um esvaziamento ina- 8º mês Segunda papa salgada

dequado das mamas e à conseqüente diminuição Gradativamente passar para a comi-


9º ao 11º mês
da da família
da produção do leite. Nesses casos, a conduta de es-
12º mês Comida da família
colha é orientar e apoiar a mãe para que o bebê au-
Tabela 1. Esquema para introdução de alimentos em crianças em
mente a ingestão do leite materno e não introduzir aleitamento materno.
a alimentação complementar desnecessariamen-
te30. É importante lembrar que as atuais curvas de A primeira refeição de sal deve ser ofere-
crescimento são predominantemente baseadas em cida no horário habitual de almoço, ou à tarde,
crianças alimentadas com leites industrializados31 se for conveniente para a família. Os alimentos
e que o crescimento de crianças amamentadas sau- devem ser testados gradativamente, sendo ne-
dáveis, entre os 3 e 9 meses de idade aproximada- cessárias várias exposições a um mesmo alimen-
mente, é freqüentemente inferior ao de crianças to antes da sua aceitação. Utilizam-se papas com
não-amamentadas32, sem que isso, no entanto, im- alimentos amassados, contendo cereais e tubér-
plique qualquer desvantagem funcional33. culos, leguminosas, hortaliças (verduras e legu-
Uma alimentação complementar adequada mes) e carne, oferecidos com variedades:
compreende alimentos ricos em energia e micronu-
trientes (particularmente ferro, zinco, cálcio, vita- Cereais ou
Leguminosas Hortaliças
Proteína
tubérculos Animal
mina A, vitamina C e folatos), sem contaminação
Arroz Feijão Verduras Carne de boi
(isentos de germes patogênicos, toxinas ou produ-
Milho Soja Legumes Víceras
tos químicos prejudiciais), sem muito sal ou condi-
Macarrão Ervilha Frango
mentos, de fácil consumo e boa aceitação pela crian-
Batata Lentilhas Ovos
ça, em quantidade apropriada, fáceis de preparar a
Mandioca Gão-de-bico Peixe
partir dos alimentos da família e com custo aceitá-
vel para a maioria das famílias35 multicêntrico.
Nunca esquecer que a refeição não é ape-
A introdução dos alimentos complemen-
nas fornecimento de calorias e nutrientes, mas
tares deve ser gradual (Tabela I ). A ingestão de
um momento importante no desenvolvimento
frutas pode ser iniciada aos 6 meses, ou eventu-
da socialização e do afeto. Portanto, recomendar
almente um pouco antes, sob a forma de papas,
para alimentar a criança de forma amorosa, len-
oferecidas em colher, inicialmente 1 vez ao dia,
ta e paciente, olhar nos olhos dela e conversar
depois pela manhã e à tarde. O tipo de fruta a
enquanto a alimenta, nunca deixa-la sozinha
ser oferecido deverá respeitar as característica
durante as refeições, não deixar com fome, nem
regionais, custo, estação do ano e presença de
forçar a comer.

274
Capítulo 24 • Alimentação da criança do nascimento aos cinco anos

Conteúdo em energia a 45% da energia total36,44, o que é considerado


suficiente para assegurar a ingestão adequada
O atual requerimento total de energia esti- de ácidos graxos essenciais, boa densidade de
mado para crianças amamentadas saudáveis é de energia e absorção de vitaminas lipossolúveis6
aproximadamente 615 kcal/dia dos 6 aos 8 meses Evidências limitadas sugerem que a ingestão de
de idade, 686 kcal/dia dos 9 aos 11 meses e 894 gordura excessiva favorece a obesidade na infân-
kcal/dia dos 12 aos 23 meses3,36 energia. cia e futura doença cardiovascular45.
Atualmente, as estimativas de energia a ser
fornecida pelos alimentos complementares são em
torno de 25 a 32% menores que as anteriores36. Es- Conteúdo em minerais
tima-se que, para crianças menores de 2 anos em
países em desenvolvimento, com uma ingestão mé- Para atender às necessidades nutricio-
dia de leite materno para cada idade, os alimentos nais de minerais da criança, é preciso oferecer
complementares devam suprir aproximadamente uma variedade de alimentos complementares
200 kcal por dia dos 6 aos 8 meses de idade, 300 kcal com alta densidade desses nutrientes, já que a
dos 9 aos 11 meses e 550 kcal dos 12 aos 23 meses. quantidade consumida desses alimentos dos 6
O pequeno volume do estômago da crian- aos 24 meses é relativamente pequena5. Dos 9
ça pequena (30-40 ml/kg de peso) pode impedi- aos 11 meses de idade, a proporção de minerais
la de alcançar suas necessidades energéticas se a a ser fornecida pelos alimentos complementares
dieta for de baixa densidade energética. A inges- é alta, de 97% para ferro, 86% para zinco, 81%
tão de grande quantidade de energia oriunda de para fósforo, 76% para magnésio, 73% para sódio
alimentos complementares é desaconselhavél, e 72% para cálcio36.
notadamente nos lactentes, por levar a uma bai- • Ferro: A densidade de ferro recomendada
xa ingestão de leite materno. nos alimentos complementares é de 4 mg/100
Portanto, a densidade energética dos ali- kcal dos 6 aos 8 meses, de 2,4 mg/100 kcal dos
mentos complementares recomendada varia de 9 aos 11 meses e de 0,8 mg/100 kcal dos 12
acordo com a idade da criança, com o quanto aos 24 meses. Em países em desenvolvimen-
ela ingere de leite materno, com a concentração to, devido às baixas densidade e biodisponi-
de gordura no leite materno e com a freqüência bilidade do ferro nas dietas (apenas cerca de
com que são oferecidas. 11 a 18% de absorção), as necessidades com
freqüência não são totalmente supridas5,46,47.
A disponibilidade de alimentos fortificados
Conteúdo em proteínas com ferro é maior em países industrializados do
que em países em desenvolvimento5,50. Essa é uma
A densidade protéica (gramas de proteí- das razões porque, no Brasil, a anemia por defici-
nas por 100 kcal de alimento) recomendada para ência de ferro é muito freqüente em menores de 2
os alimentos complementares é de 0,7g/100kcal, anos7. Os alimentos de origem animal apresentam
dos 5 aos 24 meses7. uma melhor biodisponibilidade de ferro (até 22%
de absorção) do que os de origem vegetal (1 a 6%).
As carnes (principalmente as vermelhas) e alguns
Conteúdo em gordura órgãos (sobretudo o fígado) levam vantagem so-
bre o leite e seus derivados quanto à densidade
Recomenda-se que os lipídeos dos ali- e biodisponibilidade do ferro. Alguns alimentos
mentos complementares forneçam cerca de 30 contêm quantidades razoáveis de ferro, porém

275
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

com baixa biodisponibilidade. É o caso da gema depletados em 8 semanas56. Porém, poucas


de ovo, do feijão, da lentilha, da soja e dos vegetais horas de exposição à luz solar no verão – 0,5 a
verde-escuros (acelga, couve, brócolis, mostarda, 2 horas por semana (17 minutos por dia) com
almeirão). A absorção de ferro dos alimentos de exposição apenas da face e mãos do bebê e 30
origem vegetal pode ser incrementada se forem minutos por semana (4 minutos por dia) se o
consumidos na mesma refeição alguns alimentos bebê estiver usando apenas fraldas57 – produz
como carnes, peixes, frutose e ácido ascórbico vitamina D suficiente para evitar deficiência
(laranja, goiaba, limão, manga, mamão, melão, por vários meses58,59. Crianças com pigmenta-
banana, maracujá, pêssego, tomate, pimentão, fo- ção escura da pele podem requerer três a seis
lhas verdes, repolho, brócolis, couve-flor). Neste vezes mais tempo de exposição.
caso, deve-se dar preferência aos alimentos crus e
frescos, já que parte da vitamina C é destruída no
cozimento5. Por outro lado, ovos, leite, chá, mate A escolha dos alimentos complementares
ou café dificultam a absorção de ferro, por for-
marem precipitados insolúveis com o mesmo. O Do oitavo mês em diante, os alimentos
efeito inibitório dos cereais integrais (arroz, mi- devem ser variados, com misturas balanceadas
lho, trigo) se deve à presença de fitatos, e não de dos mesmos, contendo cereais, tubérculos, ali-
fibras, que, por si só, não possuem efeito inibidor. mento de origem animal, de origem vegetal e
Já o leite inibe a absorção do ferro heme e não-he- gordura35. Somente uma dieta variada assegura
me pelo seu conteúdo de cálcio e, provavelmente, o suprimento de micronutrientes, favorece a for-
pela presença de fosfoproteínas. O alto consumo mação de bons hábitos alimentares e previne o
de leite de vaca é um dos fatores que contribuem aparecimento de anorexia decorrente da mono-
para a alta prevalência de anemia na infância. tonia alimentar5.
É importante assegurar a oferta, se possível
diária, de alimentos de origem animal ricos em
Conteúdo em vitaminas ferro e de frutas e vegetais, particularmente os ri-
cos em vitamina A5,37,56. É desaconselhável ofere-
• Vitamina A: Os principais alimentos fonte cer leite de vaca não modificado, principalmente
de vitamina A são fígado, gema de ovo, pro- quando cru e puro, a menores de 1 ano porque
dutos lácteos, folhas verde-escuras e vegetais o seu uso está associado a perda sangüínea fecal
e frutas de cor laranja (cenoura, abóbora, pi- e deficiência de ferro61-64. Deve-se evitar também
mentão vermelho ou amarelo, manga, mara- dar bebidas açucaradas (refrigerantes e outras),
cujá, mamão). pois elas diminuem o apetite da criança para ali-
• Vitamina D: É pequena a contribuição do mentos mais nutritivos e podem causar fezes amo-
leite materno e dos alimentos complementa- lecidas6. Chá e café também são desaconselháveis
res para o suprimento das necessidades de vi- porque podem interferir na absorção de ferro5,6.
tamina D, que primordialmente depende da
exposição direta da pele à luz solar. A ingestão
dietética torna-se importante apenas em caso Como oferecer os alimentos complementares
de produção endógena inadequada ou deple-
ção de reservas corporais. Em bebês amamen- No início da alimentação complementar,
tados exclusivamente ao seio e não expostos recomenda-se que os alimentos sejam prepara-
à luz solar, os estoques de vitamina D exis- dos especialmente para a criança. Eles devem ser
tentes ao nascimento provavelmente seriam inicialmente semi-sólidos e macios, devendo ser

276
Capítulo 24 • Alimentação da criança do nascimento aos cinco anos

amassados e nunca peneirados ou liquidificados. Após os 6 meses, dar alimentos complemen-


Sopas e comidas ralas não fornecem calorias su- tares (cereais, tubérculos, carnes, legumino-
Passo 3. sas, frutas, legumes) três vezes ao dia se a
ficientes para suprir as necessidades energéticas criança receber leite materno e cinco vezes
das crianças e não devem ser recomendadas. A ao dia se estiver desmamada.
consistência da dieta deve ser aumentada gra- A alimentação complementar deve ser ofe-
dativamente, respeitando-se as habilidades da Passo 4. recida sem rigidez de horários, respeitando-
se sempre a vontade da criança.
criança5. A partir dos 8 meses, a criança pode
A alimentação complementar deve ser es-
receber os alimentos consumidos pela família, pessa desde o início e oferecida de colher;
desde que amassados, desfiados, picados ou cor- Passo 5.
deve-se começar com consistência pastosa
(papas/purês) e, gradativamente, aumentar a
tados em pedaços pequenos. Aos 10 meses, a consistência até se chegar à alimentação da
criança já deve estar recebendo alimentos gra- família.
nulosos, caso contrário corre um risco maior de Oferecer à criança diferentes alimentos ao
apresentar dificuldades alimentares aos 15 me- Passo 6. longo do dia. Uma alimentação variada é
uma alimentação colorida.
ses70. Aos 12 meses, a maioria das crianças pode
Estimular o consumo diário de frutas, verdu-
receber o mesmo tipo de alimento consumido Passo 7.
ras e legumes nas refeições.
pela família, desde que com densidade energéti- Evitar açúcar, café, enlatados, frituras, re-
ca e consistência adequadas36. A partir de então, Passo 8.
frigerantes, balas, salgadinhos, guloseimas
nos primeiros anos de vida. Usar sal com
deve-se restringir o uso de alimentos semi-sóli-
moderação.
dos e deve-se evitar alimentos de formato agu- Cuidar da higiene no preparo e manuseio dos
çado e/ou consistência dura (ex: cenouras cruas, Passo 9. alimentos; garantir o seu armazenamento e
nozes, uvas), pelo risco de engasgar a criança35. conservação adequados.

Os alimentos complementares devem Estimular a criança doente e convalescente


a se alimentar, oferecendo sua alimentação
ser oferecidos à criança utilizando-se colher Passo 10.
habitual e seus alimentos preferidos e respei-
e copo6,7, que são bem aceitos por crianças pe- tando a sua aceitação.
quenas. Mamadeiras devem ser evitadas porque, Tabela 1. Os 10 passos para a alimentação saudável da criança me-
nor de 2 anos
além de ser uma fonte de contaminação para Fonte: Brasil/Ministério da Saúde/Organização Pan-Americana
a criança, prejudicam a dinâmica oral71 e po- da Saúde. Guia alimentar para crianças menores de 2 anos. Série
A. Normas e manuais técnicos nº 107. Brasília, DF. Ministério da
dem, principalmente durante o estabelecimen- Saúde, 2002.
to da lactação, confundir o bebê (“confusão de
bicos”)72, expondo-o a um risco maior de des-
mame precoce73,74. É importante lembrar que o Alimentação no segundo ano de vida
bebê, ao longo do seu desenvolvimento, não pre-
cisa usar mamadeira35. As refeições devem ser semelhantes às
Os alimentos complementares podem dos adultos, devendo-se estimular desde cedo o
ser oferecidos tanto antes como após a mama- consumo de saladas cruas ou cozidas de legumes
da no seio5,75. e verduras. Como sobremesa, utilizar frutas re-
A seguir os 10 passos para a alimentação gionais e de época e para o lanche, estimular a
saudável da criança menor de 2 anos. utilização do pão com manteiga, biscoitos, cere-
ais, de preferência fortificados com ferro e vita-
Dar somente leite materno até os 6 meses, minas. Deve-se oferecer aproximadamente 500
Passo 1. sem oferecer água, chás ou qualquer outro mL de leite por dia, computando-se iogurtes e
alimento.
queijos neste cálculo. Deve-se evitar dar bebi-
A partir dos 6 meses, introduzir de forma
das açucaradas (refrigerantes e outras), pois elas
Passo 2. lenta e gradual outros alimentos, mantendo o
leite materno até os 2 anos de idade ou mais. diminuem o apetite da criança para alimentos

277
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

mais nutritivos, bem como os “salgadinhos” e No entanto, sabe-se que é comum entre os ado-
alimentos artificiais e corantes. Chá e café tam- lescentes o mau hábito de “pular refeições”,
bém são desaconselháveis porque podem inter- especialmente o café da manhã, além de subs-
ferir na absorção de ferro. tituição do almoço e do jantar por lanches ou
O momento da refeição deve ser realizado refeições rápidas, compostas por embutidos,
em ambiente calmo, sem pressões e na compa- doces e refrigerantes. Hábitos alimentares ade-
nhia dos familiares. quados, com aumento da ingestão de produtos
de origem vegetal, como é o caso das legumi-
nosas, cereais integrais, verduras e frutas, com
Alimentação do pré-escolar seu elevado teor de fibras, associados à redução
do consumo de gorduras e açúcar, são muito
Nesta fase o crescimento sofre uma de- importantes para diminuir o risco de doenças
saceleração fisiológica, de modo que o apetite é crônicas na idade adulta.
menor que o observado no lactente e no adoles-
cente. Freqüentemente isto não compreendido
pelos familiares, que acabam forçando a criança Suplementação de ferro e de vitaminas
a comer ou substituindo alimentos saudáveis
por alimentos mais calóricos, gerando hábitos • Ferro: O Departamento Científico de Nutri-
alimentares inadequados e distúrbios nutri- ção da Sociedade Brasileira de Pediatria re-
cionais como obesidade, anemia e desnutrição. comenda que, profilaticamente, seja dado ao
Aconselha-se que as refeições e lanches tenham recém-nascido a termo e com peso adequado
horários estabelecidos, com pelo menos 2 a 3 ho- para a idade gestacional, dos 6 aos 24 meses de
ras de intervalo. vida, 1 mg/kg/dia de ferro elementar, ou dose
semanal de 45 mg, exceto para as crianças re-
cebendo fórmulas infantis fortificadas com
Alimentação do escolar ferro. Para os prematuros e recém-nascidos
de baixo peso, a recomendação é dar, a partir
O dia alimentar da criança nesta idade do 30º dia, 2 mg/kg/dia durante 2 meses. Após
deve acompanhar a rotina da família, conforme esse período, a recomendação é semelhante a
a disponibilidade de alimentos e preferências dos recém-nascidos normais94.
oriundas dos hábitos e costumes da família. A • Vitamina D: Organizações internacionais
criança deve ter como refeições diárias pelo me- como o UNICEF reconhecem que a suple-
nos o café da manhã ou desjejum, o almoço e o mentação de vitamina D (200 a 400 UI/dia)
jantar. A merenda escolar deverá ser adequada é necessária quando a exposição à luz solar é
aos hábitos regionais, evitando-se guloseimas e inadequada e que alguns bebês têm um risco
alimentos isentos de valor nutricional. mais alto de deficiência de vitamina D que
outros98. Entre os fatores de risco para defici-
ência de vitamina D encontram-se: deficiên-
Alimentação do adolescente cia materna de vitamina D durante a gravidez,
confinamento durante as horas de luz diurna,
A nutrição adequada tem papel funda- viver em altas latitudes, viver em áreas urba-
mental no desenvolvimento físico dos ado- nas com prédios e/ou poluição que bloqueiam
lescentes, pois esta é uma fase de crescimento a luz solar, pigmentação cutânea escura, uso
rápido do chamado “estirão da puberdade”. de protetor solar, variações sazonais, cobrir

278
Capítulo 24 • Alimentação da criança do nascimento aos cinco anos

muito ou todo o corpo quando em ambiente a deficiência de zinco é relevante para os países
externo e substituição do leite materno por em desenvolvimento3, devido aos hábitos ali-
alimentos pobres em cálcio ou alimentos que mentares que se caracterizam por baixo teor de
reduzem a absorção de cálcio99. proteína animal e altos teores de fitatos4,5.
O diagnóstico da carência de zinco é feito,
preferencialmente, pelas manifestações clínicas,
Pirâmide dos alimentos para faixa etária como dermatite, retardo de crescimento, hipo-
dos 2 aos 6 anos gonadismo, alterações do paladar e anorexia6,7.
A determinação dos níveis plasmáticos consti-
tui-se em importante meio para se conhecer o
estado nutricional de zinco em crianças8. Há
evidências de que crianças desnutridas ganham
peso mais rapidamente quando suplementadas
com zinco9,10.

Avaliação do estado nutricional

A avaliação antropométrica é critério mais


objetivo para avaliar se a alimentação oferecida a
uma criança está sendo suficiente para garantir
o seu crescimento físico. Portanto, é fundamen-
tal que o Médico de Família saiba monitorar e
interpretar adequadamente gráficos de peso e
Para essa faixa etária, a pirâmide é mais estatura e determinar a classificação nutricional
larga. Isso acontece porque a infância é um pe- de uma criança.
ríodo de crescimento e desenvolvimento e a ne- O Ministério da Saúde propõe a utilização
cessidade energética é maior. Todos os nutrien- dos gráficos de crescimento, nos quais se pode
tes são importantes, mas nessa fase da vida o acompanhar longitudinalmente a evolução de
ferro e as proteínas merecem atenção especial. peso e estatura de uma criança de acordo com os
Os alimentos energéticos, que são a base da pirâ- percentis. A Organização Mundial de Saúde uti-
mide, previnem a desnutrição quando ingeridos liza uma classificação baseada nas relações peso/
de acordo com as quantidades recomendadas. estatura e estatura/idade expressos em escores z.
A Sociedade Brasileira de Pediatria adota a clas-
sificação nutricional de acordo com os critérios
Efeito da Suplementação de zinco a de Gómez e de Waterlow.
crianças de 1 a 5 anos de idade

A partir dos 6 meses de vida, a criança Critério de Gómez


precisa receber quantidades suficientes de ferro
e zinco por meio da alimentação complementar, Preconizado para crianças até 2 anos de
para que os requerimentos desses micronutrien- idade, utiliza a relação peso atual/peso no per-
tes sejam supridos1. centil 50 para a idade. A presença de edema clas-
Nos últimos anos, tem-se evidenciado que sifica a criança como desnutrição grave.

279
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

P/I = peso atual(kg) x 100/peso(kg) no fórmula: peso(kg)/[estatura(m)]2. Quando o


percentil 50 para a idade valor encontrado estiver abaixo do percentil 5,
considera-se como rsico para desnutrição.
P/I Classificação
> 90% Eutrófico
76 - 90% Desnutrição de I grau ou leve Sobrepeso e obesidade
60 - 75% Desnutrição de II grau ou moderada
< 60% Desnutrição de III grau ou grave Para classificação de sobrepeso e obesida-
de recomenda-se a utilização de um dos seguin-
tes critérios:
Classificação de Waterlow
• Classificação de Waterlow
Recomendada para crianças entre 2 e 10 - Peso (kg) x 100/ estatura (cm) > 110%
anos e baseia-se nas relações Peso/Estatura (P/E) e < 120% = SOBREPESO
e Estatura/Idade (E/I). - Peso (kg) x 100/ estatura (cm) > 120%
= OBESIDADE
P/E = peso atual(kg) x 100/peso(kg) ideal para
a estatura observada
• Escore Z
E/I = estatura atual(cm) x 100/estatura(cm) no
- Peso (kg)/estatura (cm) > 2 = OBE-
percentil 50 para idade
SIDADE

E/I
Parâmetro avaliado • IMC
> 95% > 95%
- > percentil 85 e < percentil 95 = SO-
Desnutrição
> 90% Eutrófico
Pregressa
BREPESO
P/E - > percentil 95 = OBESIDADE
Desnutrição Desnutrição
< 90%
Aguda Crônica
Escore Z
Dep
Parâmetro Dep leve Dep grave
moderado
-3 ≤ escore Escore Z
Peso/ -2 ≤ escore
Z < -2 < -3
estatura Z<-1
(70 - 79%) (< 70%)
Baixa estatura Baixa estatura Baixa estatura
Leve Moderada Grave
-3 ≤ escore Escore Z
Estatura/ -2 ≤ escore
Z < -2 < -3
idade Z<-1
(85 - 89%) (< 85%)
DEP = desnutrição energético protéica

Índice de massa corpórea (IMC)

Recomendado para adolescentes, devendo


ser considerados a relação estatura para a idade
e o desenvolvimento puberal de acordo com a
classificação de Tanner. O IMC é calculado pela

280
Capítulo 24 • Alimentação da criança do nascimento aos cinco anos

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282
Capítulo 25
Avaliação do nem sempre são suficientes ou dignas da con-
desenvolvimento infantil dição humana e podem ter como conseqüência,
ritmos e conquistas de desenvolvimento aquém
álvaro JorGe Madeiro leite
de suas potencialidades ou adaptações social-
diva de lourdes de azevedo Fernandes
mente inadequadas.
Em 1995, a UNESCO divulgou um do-
cumento intitulado “Medidas Vitais: um
desafio de comunicação”. Nesse documento
chama atenção para “todos aqueles que podem

O desenvolvimento é um processo de hu-


manização: um processo pelo qual nos
convertemos em pessoas dignas e inteligentes,
colaborar na realização do maior de todos
os desafios de comunicação – dar às famílias
condições de por em prática os conhecimen-
através da aquisição de símbolos e de formas tos atuais para proteger a criança de hoje e o
de comunicação que expressam nossas idéias e mundo de amanhã”3.
sentimentos e também da aquisição de valores e
normas de convivência. Sem o estímulo exterior,
sem as interações sociais, a humanização não se Como acompanhar o
produz, a inteligência não se constrói. desenvolvimento infantil
Desenvolver-se implica em ir superando
uma condição humana de total e absoluta de- Desenvolvimento é um processo qualita-
pendência e falta de autonomia para uma situa- tivo de mudanças individuais e adaptativas que
ção de independência e autonomia. De maneira vão ocorrendo na vida de uma criança que com-
ideal, a evolução deveria se dar para uma situa- preende múltiplos processos biológicos e sócio-
ção de interdependência que, deve culminar em afetivos, além de comportar múltiplas concep-
um processo de individuação – chegar a ser um ções e modelos conceituais.
indivíduo único e diferente – até a socialização No entanto, é essencial uma abertura vol-
– chegar a ser um membro da sociedade e da cul- tada para a prática com o intuito de conhecer a
tura na qual nasceu. variabilidade normal do desenvolvimento infan-
Em ritmo de processo, as mudanças alcan- til e assim, oferecer orientações de diagnóstico e
çadas com o desenvolvimento objetivam trans- intervenção mais precisas às famílias e aos pais.
formar o ser humano de uma posição de total Para efeitos práticos e didáticos e facilitar
dependência física e psíquica em um ser huma- as estratégias de avaliação costuma-se entender
no único, singular, dotado de generosidade, au- o desenvolvimento infantil agrupado em torno
tonomia e criatividade em suas relações com os de três grandes domínios: psicomotor, psicosso-
outros e com a sociedade. cial e linguagem.
Em alguns contextos de vida, muitas
crianças estão impedidas de alcançar plena-
mente seu desenvolvimento potencial em de- Desenvolvimento Psicomotor
corrência de crescerem em ambientes que não
lhes favorecem o desenvolvimento. As estra- Diz respeito às aquisições que dependem
tégias de sobrevivência que lhes são possíveis da maturação neurológica. Ocorrem no senti-

283
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

do cefalo-caudal e centro-lateral, de aquisições assume suas preferências (alimentares, vestuário,


simples para mais complexas: primeiro, controle brinquedos e brincadeiras), grau de aceitação dos
sobre o olhar, sobre a sustentação da cabeça, do limites disciplinares na convivência em família e
tronco, culminado com as aquisições de sentar, no grupo social mais próximo. Estas conquistas dão
engatinhar, andar, correr; aquisições motoras margem ao surgimento da sensação de autocon-
finas: preensão, pinça, esta representando um fiança, de como agir no relacionamento com outras
marco importante na evolução, pois possibilitou pessoas, noções do que é certo e errado. Nessa fase,
à espécie humana utilizar várias ferramentas, surgem também sentimentos de onipotência que cul-
tipo caneta, pincel, e com isso, várias dimensões minam em crises de birra como reação aos limites da
da arte e da indústria se tornaram possíveis. Com realidade. Experiências de frustração decorrentes do
as mudanças psicomotoras, um recém-nascido de enfrentamento com o princípio de realidade ajuda a
poucos domínios dos movimentos, em franca e criança a ir lenta e permanentemente incorporando-
total dependência de locomoção e manipulação se à sociedade na qual vive. Quiçá, esse percurso se
de objetos, transforma-se numa pessoa com mo- faça de maneira prazerosa, ativa e transformadora.
vimentos autônomos, complexos e úteis em seu A criança também vai apresentando con-
cotidiano. Estas conquistas mesmo motivadas quistas em aspectos ligados ao funcionamento
pela necessidade de explorar o ambiente guardam do corpo como o controle dos esfíncteres. Tam-
íntima dependência com a qualidade do ambien- bém, os brinquedos e as brincadeiras vão assu-
te e das interações afetivas. Se a criança já apre- mindo importância capital para a aprendizagem
senta maturidade neurológica para levantar a ca- sobre as coisas do mundo.
beça quando de bruços ou já é capaz de localizar Através do brinquedo e das brincadeiras
sons, também, ela pode estar procurando o olhar a criança aprende novas maneiras de lidar com
da mãe para encontrar a expressão do olhar alegre as coisas do mundo. A oportunidade de experi-
e feliz dela quando diante de sua presença. mentar, inventar, descobrir, facilita a aquisição
de novas habilidades e novos comportamentos
Desenvolvimento Psicossocial de grande significado para a aprendizagem.
Brincar pressupõe interrogação sobre as circuns-
São as aquisições que a criança vai fazendo tâncias em que se vive, atitude curiosa diante do
em relação ao entendimento das normas sociais desconhecido. A criança que brinca vai adqui-
do grupo ao qual pertence. O desenvolvimento rindo atributos fundamentais para a vida adulta:
tem, obrigatoriamente, uma dimensão adaptativa concentração, criatividade, autonomia e auto-
às normas de convivência social e dos valores fa- confiança para enfrentar os problemas e dilemas
miliares. Tais aquisições são resultantes das trocas inerentes à condição da vida em sociedade.
interativas que a criança vai experimentando com
seus pais, seu núcleo familiar e sua comunidade
mais próxima (vizinhança, creche, pré-escola, es- Desenvolvimento da Linguagem (Oral, Escrita)
cola). É bom lembrar que as crianças aprendem
muito mais observando seus pais e os adultos que Com a linguagem, um recém-nascido de
com ela interagem do que ouvindo as eventuais métodos simples de expressão e comunicação
lições de bom comportamento que eles dão. –expressão facial através do choro, alguma mími-
Assim, a criança vai aprendendo a cuidar ca, caretas – transforma-se em uma pessoa com
de si mesma, adquirindo cada vez mais auto-esti- capacidade plena de expor seus pensamentos pri-
ma e com isso, mais independência e autonomia. meiro através da fala e depois, com a escrita. A
Isto se manifesta na maneira como a mesma aquisição da linguagem – linguagem oral e escri-

284
Capítulo 25 • Avaliação do desenvolvimento infantil

ta – expressa a maneira com a criança vai organi- Na avaliação do desenvolvimento devem


zando seu pensamento para dialogar com a rea- ser valorizadas as aquisições individuais em dire-
lidade. Através da linguagem, a criança expressa ção às conquistas em termos de individuação (for-
suas idéias e emoções e vai tornando-se um ser mação do ser humano com características únicas
capaz de comunicação com seus semelhantes. que o distingue dos demais) e de posicionamentos
A evolução do desenvolvimento da lingua- diante da sociabilidade (indivíduo apto à convi-
gem requer que se observe a presença de certos vência numa cultura e sociedade determinadas).
comportamentos relacionados com a audição (per- O objetivo é identificar tais conquistas; este
cepção dos sons), compreensão (execução de ordens aspecto é mais relevante que a prática de valorizar
verbais) e expressão (produção de palavras e frases). o que a criança não faz ou não conquistou ainda.
Existe uma seqüência previsível e regular de A relativa facilidade com que se pode
crescimento físico e do desenvolvimento neuropsi- acompanhar o crescimento infantil através de
comotor. No entanto, dimensões do desenvolvimen- medidas objetivas, quantitativas não se repro-
to que dizem respeito a habilidades de outra natureza duz na avaliação do desenvolvimento; esta ava-
– cognição, linguagem, sentimentos, individualiza- liação envolve medidas mais complexas, de na-
ção, sociabilidade – são fenômenos de natureza mais tureza qualitativa, de valoração do observador,
complexa, o que exige modelos teóricos mais sofisti- portanto, mais sujeitas a leituras condicionadas
cados, abertura e abordagem transdisciplinar. por sua visão de mundo e expectativas.
Tomando-se como referência as conquis-
tas mais propriamente neurológicas e evolutivas,
ainda assim, é preciso que as avaliações qualita- Instrumentos para avaliar o desenvolvimento
tivas sejam individualizadas e referenciadas às infantil
limitações do grupo social e à diversidade dos
padrões culturais onde as crianças estão concre- O desenvolvimento de uma criança pode
tamente se desenvolvendo. ser avaliado através da observação da presença,
em determinadas idades, de condutas e capaci-
dades. A maioria das propostas de avaliação do
desenvolvimento considera as conquistas que a
Recém-nascido Reflexos subcortais
criança adquire ao longo do tempo nos domínios
1 mês Segue a luz
psicomotor, psicossocial e de linguagem.
2 meses Sorri, balbucia Deve-se utilizar os diversos momentos da
3 meses Sustenta a cabeça
consulta para observar várias características do
4 meses
5 meses
Agarra objetos
Gira sobre o abdômen
desenvolvimento infantil. Um modo de avaliar
6 meses Mantem-se sentado
7 meses Preensão palmar se a criança está com desenvolvimento “normal”
8 meses Pinça digital
ou adequado para a idade é fazer uso de instru-
mentos ou questionários.
9 meses Põe-se sentado O modo mais convencional de avaliar o
10 meses Engatinha desenvolvimento é pela observação da presença
De pé, dá passos
ou ausência de determinadas condutas ou capa-
11 meses com apoio cidades que a criança vai adquirindo nas dife-
12 a 14 meses Caminha só
rentes faixas de idade. Condutas ou capacidades
que fazem referências a aspectos do crescimento
Fonte: Ministério da Saúde. Saúde da criança: acompanhamento
do crescimento e desenvolvimento infantil. físico, da maturação neurológica e das habilida-
des nas esferas cognitivas, social e afetiva.

285
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

No entanto, alguns cuidados precisam ser “médias” que a escola – instituição e professo-
tomados para evitar uma rotulação indevida da res – esperam, não devem ser estigmatizadas
criança que apresenta aspectos de desenvolvi- como crianças problemáticas. Na maioria das
mento em ritmos diferentes ou habilidades pró- vezes, tais crianças expressam desenvolvimen-
prias do modo de vida da família ou comunidade to ou potencial de desenvolvimento adequados
onde a criança está inserida. para o conjunto de experiências já vividas e
A prática da utilização de instrumentos são capazes de superar eventuais dificuldades
para medida do desenvolvimento, principal- a partir da acolhida individualizada da estru-
mente, as escalas ou testes, em sua maioria, tura escolar.
elaborados para crianças de outras formações Em 2002, a Área Técnica de Saúde da
culturais ou sociais pode ser inadequada para Criança do MS coordenou a elaboração de um
avaliar as crianças com outras experiências, ou- documento sobre avaliação do Crescimento e
tras condições de vida e, portanto, com outro do Desenvolvimento para ser utilizado por to-
leque de habilidades, por vezes, inexistentes dos os profissionais de saúde, de uma Ficha de
nessas escalas. Cada criança tem seu próprio Acompanhamento do Desenvolvimento com o
ritmo e velocidade na aquisição de novas capa- objetivo de identificar precocemente as crian-
cidades. Uma criança específica pode ser capaz ças com possíveis problemas de desenvolvi-
de demonstrar habilidades e domínios numa mento. Nesta ficha estão os marcos do desen-
enorme variedade de situações de seu cotidia- volvimento esperados para a criança de zero a
no concreto e cultural e não possuir habilidades seis anos de idade.
de outras configurações – uma criança da zona
rural ou em situação de rua possui habilidade
motoras, cognitivas diferentes de crianças de
classe média urbana que reside em apartamento
e tem convívio escolar. Estamos diante de uma
dimensão CULTURAL (inserção da criança
num contexto de experiências dependentes da
diversidade cultural) e, de outra dimensão SO-
CIAL (inserção da criança num contexto de ex-
periências dependentes da diversidade de opor-
tunidades sociais).
Todo rigor e cuidado devem ser tomados
para evitar que crianças com ritmos e aquisi-
ções diferentes em seu processo de desenvol-
vimento sejam rotuladas como portadores de
deficiências ou portadoras de problemas de
desenvolvimento. Esse aspecto torna-se ain-
da mais grave quando os aparentes problemas
comprometem o desempenho escolar, princi-
palmente quando os problemas que as crianças
parecem ter, de alguma forma estão localizados
na área comportamental ou do desenvolvimen-
to psico-afetivo. Assim, crianças que não se
adaptam ou não correspondem às expectativas

286
Capítulo 25 • Avaliação do desenvolvimento infantil

Ficha de acompanhamento do desenvolvimento


Data de nascimento Marco do desenvolvimento Idade (meses)
____/____/____ (resposta esperada) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Abre e fecha os braços em resposta à estimulação
(Reflexo de Moro)
Postura: barriga para cima, pernas e braços fletidos,
cabeça lateralizada
Olha para a pessoa que a observa
Dá mostras de prazer e desconforto
Fixa e acompanha objetos em seu campo visual
Colocada de bruços, levanta a cabeça momentanea-
mente
Arrulha e sorri espontaneamente
Começa a diferenciar dia/noite
Postura: passa da posição lateral para linha média
Colocada de bruços, levanta e sustenta a cabeça
apoiando-se no antebraço
Emite sons - Balbucia
Conta com a ajuda de outra pessoa mas não fica pas-
siva
Rola da posição supina para prona
Levantada pelos braços, ajuda com o corpo
Vira a cabeça na direção de uma voz ou objeto sonoro
Reconhece quando se dirigem a ela
Senta-se sem apoio
Segura e transfere objetos de uma mão para a outra
Responde diferentemente a pessoas familiares e ou
estranhos
Imita pequenos gestos ou brincadeiras
Arrasta-se ou engatinha
Pega objetos usando o polegar e o indicador
Emprega pelo menos uma palavra com sentido
Faz gestos com a mão e a cabeça (tchau, não, bate pal-
mas, etc.)

Marco do desenvolvimento Idade (meses) Idade (anos)


(resposta esperada) 10 11 13 14 15 18 21 2 3 4 5 6
Anda sozinha, raramente cai
Tira sozinha qualquer peça do vestuário
Combina pelo menos 2 ou 3 palavras
Distancia-se da mãe sem perdê-la de vista
Leva os alimentos à boca com sua própria mão
Corre e/ou sobe degraus baixos
Aceita a companhia de outras crianças mas brinca
isoladamente
Diz seu próprio nome e nomeia objetos como sendo seu

287
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Veste-se com auxílio


Fica sobre um pé, momentaneamente
Usa frases
Começa o controle esfincteriano
Reconhece mais de duas cores
Pula sobre um pé só
Brinca com outras crianças
Imita pessoas da vida cotidiana (pai, mãe, médico,
etc.)
Veste-se sozinha
Pula alternadamente com um e outro pé
Alterna momentos cooperativos com agressivos
Capaz de expressar preferências e idéias próprias

Período em que 90% das crianças adquirem o marco P = presente; A = ausente; NV = não verificado
Presentes até o 4º mês Elaborado por Brant, J. C.: Jerusalinsky, A. N. e Zannon, C. M. L. C.
Fonte: Ministério da Saúde. Saúde da criança: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil.

Padronização para o uso da ficha de acompanhamento do desenvolvimento


Marco do desenvolvi-
mento Padronização
(resposta esperada)
Abre e fecha os braços em
Utilizar estimulação usual: queda da cabeça ou som. Não usar estimu-
resposta à estimulação (Reflexo
lação muito intensa.
de Moro)
Postura: barriga para cima,
Deitar a criança em superfície plana com a barriga para cima: posição
pernas e braços fletidos, cabeça
supina.
lateralizada
Olha para a pessoa que a
Manter o rosto no campo visual da criança olhando em seus olhos.
observa
Dá mostras de prazer e Observar durante a consulta se a criança reage ao ser trocada de roupa,
desconforto colocada na mesa do exame.
Colocar uma das mãos no campo visual da criança, os dedos movendo, ou
um objeto de cor. Deve ser colocado na linha média do rosto da criança.
Fixa e acompanha objetos em
Após observar fixação do olhar da criança, afastar lentamente a mão
seu campo visual
da linha média mantendo os dedos ou o objeto em movimento para à
direita e para à esquerda.
Colocada de bruços, levanta a Deitar a criança em superfície plana com a barriga para baixo. Posição
cabeça momentaneamente prona.
Manter o rosto no campo visial da criança. Falar suavemente, emitir
Arrulha e sorri
sons, estalo de língua sem tocar na criança. Na ausência de resposta,
espontaneamente
perguntar a mãe.
Começa a diferenciar dia/noite Perguntar à mãe se a criança fica mais acordada ou mais alerta durante o dia.
Postura: passa da posição Quando deitada na posição supina, a cabeça já fica na linha média do
lateral para linha média corpo.
Colocada de bruços, levanta e
sustenta a cabeça apoiando-se Deitar a criança em superfície plana. Posição prona.
no antebraço
Falar suavemente com a criança na altura da linha de cada ouvido. Na
Emite sons - Balbucia
ausência de resposta, perguntar à mãe.
Conta com a ajuda de outra Observar se quando a mãe aproxima-se do bebê, este faz algum movi-
pessoa mas não fica passiva mento como o de aproximação.

288
Capítulo 25 • Avaliação do desenvolvimento infantil

Rola da posição supina para Colocar a criança em superfície plana na posição supina. Incentivá-la a
prona virar para a posição prona.
Levantada pelos braços, ajuda Posição supina. Segurar as mãos da criança. Puxar suavemente ten-
com o corpo tando sentá-la.
Vira a cabeça na direção de
Falar ou fazer ruído por trás da criança na altura dos seus ouvidos.
uma voz ou objeto sonoro
Reconhece quando se Observar se a criança reage quando a mãe fala com ela, quando a mãe
dirigem a ela coloca-a no colo, etc.
Colocar a criança em superfície plana, sentada. Observar se ela man-
Senta-se sem apoio
tém-se com as costas eretas e sem apoiar as mãos na superfície.
Segura e transfere objetos de Colocar objeto na mão direita da criança. Na ausência de resposta, ten-
uma mão para a outra tar a mão esquerda.
Observar expressões faciais da criança dirigidas ao profissional e a
Responde diferentemente mãe. O profissional deve segurar a criança no colo e a mãe chamá-la
a pessoas familiares e ou com os braços.
estranhos Perguntar a mãe se a criança estranha outras pessoas de fora do seu
ambiente familiar.
Imita pequenos gestos ou Instigar a criança a imitar os gestos de bater palmas, de adeus, caretas,
brincadeiras de esconde-esconde.
Colocar a criança em posição prona, em uma superfície plana. Colo-
Arrasta-se ou engatinha car e oferecer objeto colorido na mesma superfície, longe da mão da
criança.
Pega objetos usando o polegar
Colocar na mão da criança algum objeto pequeno da sala de exame.
e o indicador
Instigar. Apontar a mãe e perguntar quem é esta? Na ausência de res-
Emprega pelo menos uma
posta, perguntar a mãe se a criança fala alguma palavra com sentido
palavra com sentido
(qual?).
Faz gestos com a mão e a Observar se a criança faz espontaneamente. Ao final da consulta, des-
cabeça (tchau, não, bate perdir-se dando “tchau” a criança. Perguntar a mãe se a criança faz
palmas, etc.) algum gesto.
Postura de pé solicitar a colaboração da mãe para pedir a criança para
Anda sozinha, raramente cai caminar: ou colocar a criança no chão durante a coleta da história clí-
nica.
Na hora do exame físico, pedir a criança que sozinha tire alguma peça
Tira sozinha qualquer peça do
(a blusa por exemplo). Em caso de recusa, solicitar a colaboração da
vestuário
mãe no pedido.
Combina pelo menos 2 ou 3 Instigar, tentar observar a resposta da criança em conversa com a mãe.
palavras Na ausência da resposta, perguntar a mãe.
Colocar a criança no chão. Oferecer um objeto à distância e ver se ela
Distancia-se da mãe sem
se afasta da mãe para pegar este objeto e se volta o seu olhar para a mãe
perdê-la de vista
durante o seu percurso.
Observar durante a consulta se a criança come biscoitos ou frutas (ou
Leva os alimentos à boca com
outro alimento que a mãe traz) com a própria mão. Não sendo possível,
sua própria mão
perguntar à mãe.
Pedir a criança para correr ou subir a escadinha da sala de exame, se
Corre e/ou sobe degraus baixos
houver. Na ausência de resposta, perguntar a mãe.
Aceita a companhia de
outras crianças mas brinca Tentar observar na sala de espera - Perguntar sempre a mãe.
isoladamente
Perguntar a criança como ela se chama. Perguntar para a criança de
Diz seu próprio nome e
quem é o sapato, a blusa, etc (peças do vestuário que a criança está
nomeia objetos como sendo seu
vestindo). Solicitar a colaboração da mãe.

289
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Veste-se com auxílio Depois do exame clínico, pedir a mãe que ajude a criança a vestir-se.
Fica sobre um pé, Postura de pé. Solicitar a criança para levantar um pé, dobrando o jo-
momentaneamente elho. Utilizar imitação.
Usa frases Conversar com a criança. Se a criança não colaborar, perguntar a mãe.
Começa o controle Perguntar à mãe se a criança já usa o penico ou já avisa se quer ir ao
esfincteriano banheiro (mesmo se já tenha feito as suas necessidades nas fraldas).
Usar objeto da sala de exame. Verificar se separa objetos por cores, sem
Reconhece mais de duas cores
necessariamente nomeá-los.
Postura de pé. Solicitar a criança para levantar um pé, dobrando o jo-
Pula sobre um pé só
elho. Utilizar imitação.
Brinca com outras crianças Observar na sala de espera. Perguntar à mãe.

Imita pessoas da vida cotidiana Perguntar à mãe se em suas brincadeiras a criança imita o pai, a
(pai, mãe, médico, etc.) mãe, etc.

Depois do exame clínico, pedir a criança que se vista. Na ausência de


Veste-se sozinha
resposta, perguntar a mãe.
Pula alternadamente com um Postura de pé: solicitar a criança que pule alternadamente com um pé
e outro pé e o outro. Utilizar imitação.
Alterna momentos Perguntar à mãe sobre o humor e o comportamento da criança com
cooperativos com agressivos outras crianças e com os adultos.
Capaz de expressar Perguntar à mãe se a criança já demostra preferências. Exemplo: “que-
preferências e idéias próprias ro passear” dirigindo-se à rua; “quero ir para...”; “quero fazer...”.
Fonte: Ministério da Saúde. Saúde da criança: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil.

Marcos de desenvolvimento do Cartão da Criança

O bebê deve começar a mamar logo após o nascimento.


Amamentar logo após o nascimento é muito importante para a saúde do bebê e da mãe, contribuindo para o
vínculo entre mãe e filho. O bebê gosta de ouvir a mãe falar e cantarolar enquanto cuida dele. Ele já consegue
demonstrar sinais de prazer (sorrir) e desconforto (chorar ou resmungar).

1 a 2 meses
O bebê fica protegido pelo leite materno e raramente adoece. No colo da mãe, se sente seguro e acalentado. Ele
gosta de ficar em várias posições e olhar para objetos coloridos. Mas sobretudo, gosta de ver o rosto da mãe.
Responde ao sorriso.

3 a 4 meses
O bebê está bem mais ativo: olha para quem o observa, acompanha com o olhar e responde com balbucios
quando alguém conversa com ele. Gosta de olhar e por as mãos na boca. Aprecia a companhia da mãe e gosta
de trocar de lugar, mas atenção, porque já não fica quieto, pode cair.
De bruços, levanta a cabeça e ombros.

5 a 6 meses
O bebê sabe quando se dirigem à ele e gosta de conversar. Quando ouve uma voz, procura com o olhar. Ele já
rola, senta com apoio e leva os seus pés à boca. Para que ele se movimente melhor, a mãe ou quem cuida dele,
deve colocá-lo no chão. Para evitar quedas, não se deve deixá-lo em lugares altos.
Vira a cabeça na direção de uma voz ou objeto sonoro.

290
Capítulo 25 • Avaliação do desenvolvimento infantil

7 a 9 meses
Mesmo estando amamentando, o bebê começa a querer provar outros alimentos. Ele gosta de brincar com
a mãe e com os familiares. Às vezes, estranha pessoas de fora de casa. Não gosta de ficar só. Já fica sentado e
também pode se arrastar ou engatinhar, pode até mesmo tentar se por de pé. É muito curioso, por isso não se
deve deixar ao seu alcance: remédios, inseticidas e pequenos objetos.
Já fica sentado sem apoio.

10 a 12 meses
O bebê está crescido, gosta de imitar os pais, dá adeus, bate palmas. Fala, pelo menos, uma palavra com senti-
do e aponta para as coisas que ele quer. Come comida da casa, porém precisa comer mais vezes que um adulto.
Gosta de ficar em pé apoiando-se nos móveis ou nas pessoas.
Engatinha ou anda com apoio.

13 a 18 meses
A criança está cada vez mais independente: quer comer sozinha e já se reconhece no espelho. Anda alguns
passos mas sempre busca o olhar dos pais ou familiares. Fala algumas palavras e, às vezes, frases de duas ou
três palavras. Brinca com brinquedos e pode ter um predileto.
Anda sozinho.

19 meses a 2 anos
A criança já anda com segurança, dá pequenas corridas, sobe e desce escadas. Brinca com vários brinquedos.
Aceita a companhia de outras crianças, porém brinca sozinha. Já tem vontade própria, fala muito a palavra
não. Sobe e mexe em tudo: deve-se ter cuidado com o fogo e cabos de panelas.
Corre e/ou sobe degraus baixos.

2 a 3 anos
A criança gosta de ajudar a se vestir. Está ficando sabida: dá nomes aos objetos, diz seu próprio nome e fala
“meu”. A mãe deve começar, aos poucos, a tirar a fralda e ensinar, com paciência, o seu filho a usar o peniqui-
nho. Ela já demonstra suas alegrias, tristezas e raivas. Gosta de ouvir histórias e está cheia de perguntas.
Diz seu nome e nomeia objetos como sendo seus.

3 a 4 anos
Gosta de brincar com outras crianças. Tem interesse em aprender sobre tudo o que a cerca, inclusive contar
e reconhecer as cores. Ajuda a vestir-se e a calçar os sapatos. Brinca imitando as situações do seu cotidiano e
os seus pais.
Veste-se com auxílio.

4 a 6 anos
A criança gosta de ouvir histórias, aprender canções, ver livros e revistas. Veste-se e toma banho sozinha. Es-
colhe suas roupas, sua comida e seus amigos. Corre e pula alternando os pés. Gosta de expressar as suas idéias,
comentar o seu cotidiano e, às vezes, conta histórias.
Conta ou inventa pequenas histórias.

Fonte: Ministério da Saúde. Saúde da criança: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil.

Crianças com alterações específicas do São exemplos:


desenvolvimento • A criança com predomínio de alguma
deficiência que compromete sua fun-
Um aspecto do desenvolvimento que não cionalidade e participação na escola em
pode ser esquecido diz respeito aos problemas condições de igualdade com as outras
mais definidos, sejam aqueles em que se tem uma crianças. São as crianças portadoras de
base orgânica sejam dificuldades ou problemas em necessidades especiais, a saber, defici-
constituição, de origem emocional ou psíquica. ência mental, física ou sensorial (defici-

291
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

ência visual ou auditiva), e que exigem Escolas inclusivas precisam reconhecer e responder
uma educação inclusiva; às necessidades diversificadas de seus alunos, acomo-
• O outro grupo é o de crianças com alte- dando os diferentes estilos e ritmos de aprendizagem
rações no relacionamento interpessoal ou e assegurando educação de qualidade para todos me-
psicossocial. Tais alterações podem ocor- diante currículos apropriados, mudanças organiza-
rer na presença ou na ausência de proble- cionais, estratégias de ensino, uso de recursos e parce-
mas orgânicos estruturais. São exemplos: rias com suas comunidades”.
a presença de alguma doença ao nasci-
mento que deturpe a expectativa dos pais É comum crianças desse grupo ter suas
de ter um filho saudável (filho desejado - necessidades de desenvolvimento negligencia-
filho real); transtorno psíquico decorren- das na família e na escola com conseqüências
te de perturbações na relação mãe-filho. nocivas às suas possibilidades de recuperação ou
de vida nas melhores condições possíveis.
A tendência a emitir prognósticos de-
A criança com deficiência finitivos – ele nunca vai aprender a ler –, como
também atitudes de menosprezo e de ridicula-
rizar comportamentos e habilidades da criança
A inclusão de crianças com necessidades especiais estabelece baixas expectativas familiares e para
a própria criança, bem como padrões de relacio-
Necessidades especiais devem ser consi- namento interpessoal que podem comprometer
deradas como necessidades de equiparação de a dinâmica das trocas afetivas e o investimento
oportunidades para a garantia de inclusão de psicossocial para a criança.
todas as pessoas com suas diferenças e singulari- Aqui, lembrar do efeito devastador sobre
dades aos bens e serviços da comunidade. a vitalidade global da criança que pode ter com-
A Declaração de Salamanca – UNESCO portamentos estigmatizantes e depreciativos ou
(1994) representou um marco no compromisso de exclusão psicossocial, principalmente, por
com a Educação para Todos. Tal Declaração afir- parte dos responsáveis pela criança (pais) e, na
ma a necessidade e a urgência de ser o ensino idade escolar, também os professores.
ministrado a todas as crianças, jovens e adultos Ao contrário, expectativas podem e devem
com necessidades educativas especiais. ser alimentadas tomando como referência conhe-
Atualmente, uma abordagem inclusiva cimentos oriundos de múltiplos campos. A neuro-
tem sido a tônica da maioria das instituições e ciência delimitando o fenômeno da plasticidade
profissionais que lidam com tais crianças: cerebral – capacidades adaptativas do cérebro, ha-
“As escolas devem acomodar todos os alunos bilidades para modificar sua organização estrutural
independentemente de suas condições físicas, intelec- e assim, seu funcionamento – faz com que a cada
tuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. O nova experiência existencial, redes de neurônios
desafio para uma escola inclusiva é o de desenvolver sejam rearranjadas, sinapses reforçadas e múltiplas
uma pedagogia centrada no aluno, uma pedagogia possibilidades de respostas ao ambiente tornam-se
capaz de educar com sucesso todos os alunos, incluin- possíveis. No campo da psicologia e psicanálise,
do aqueles com deficiências severas”. sabe-se da influência extremamente positiva que o
“O princípio fundamental da escola inclusi- acolhimento afetivo e interpessoal produz sobre a
va consiste em que todas as pessoas devem aprender vida intramental e emocional da criança.
juntas, onde quer que isto seja possível, não impor- Os portadores de deficiência têm uma sensibi-
tam quais dificuldades ou diferenças elas possam ter. lidade especial na compreensão do meio e dos que os

292
Capítulo 25 • Avaliação do desenvolvimento infantil

rodeiam, sendo capazes de perceber o interesse ou não Problemas relacionados à gravidez, o par-
do profissional, mesmo nos casos mais graves. to e o nascimento (hipoxia neonatal) e infecções
Secretaria Estadual de Saúde - Paraná congênitas (citomegalovírus, toxoplasmose, sífi-
lis, rubéola, AIDS) são as causas mais importan-
Procure conhecer e ter disponíveis os endereços
tes, seguidos por síndromes genéticas, tais como,
dos grupos de apoio e associações de portadores de de-
síndrome de Down, síndrome do X frágil e, erros
ficiências de sua cidade. Essas associações costumam
inatos do metabolismo (hipotiroidismo, fenilce-
prestar um trabalho muito especial para estas famílias
tonúria). Estes últimos, atualmente, podem ser
na aceitação da deficiência, e muitas mantém servi-
detectados precocemente nas primeiras semanas
ços de intervenção precoce e reabilitação excelentes.
Secretaria Estadual de Saúde - Paraná de vida através do denominado teste do pezinho.
Tal teste deve ser realizado em todos recém-nas-
Assim, necessidades especiais devem ser cidos (teste de triagem) com o objetivo de detec-
consideradas como necessidades de equiparação tar algumas doenças precocemente, antes que os
de oportunidades para a garantia de inclusão de sintomas de deficiência mental deixem seqüelas
todas as pessoas com suas diferenças e singulari- invalidantes ou se instalem de maneira definiti-
dades aos bens e serviços da comunidade. va. Com a identificação precoce o tratamento pos-
Diferentemente do processo de integra- sibilita um desenvolvimento normal.
ção social em que a inserção depende exclusiva- Os portadores de deficiência mental são
mente das condições pessoais para participar, ou geralmente bem dispostos, alegres, carinhosos e
seja, da capacidade pessoal máxima para se adap- gostam de se comunicar.Têm uma sensibilida-
tar às demandas sociais da maneira que elas se de aguçada e, muitas vezes, uma esperteza fora
impõem, a inclusão constitui-se num processo do habitual para avaliar o ambiente e as pessoas
bilateral pelo qual as pessoas excluídas, deficien- que os cercam.
tes ou não, e a sociedade buscam em parceria, [http://www.mj.gov.br/sedh/dpdh/corde/corde.htm]
melhorar suas condições, equacionar problemas, • Naturalidade e palavras afetuosas são o melhor
decidir sobre propostas e ações para garantir caminho para que eles façam vínculos, permi-
oportunidades de participação para todos. tam o exame clínico e aceitem o tratamento.
• Observe sempre que o portador de deficiên-
cia mental não é um doente mental, ele tem
A Criança com Necessidades Especiais uma conseqüência de uma doença ou agravo
– é uma “condição de ser”.
• Tratem-nos como criança quando forem
Predomínio da deficiência mental crianças e como adolescentes quando adoles-
centes, respeitando sua sexualidade e orien-
A deficiência mental pode ser definida tando suas famílias para fazerem o mesmo.
como o rebaixamento das funções intelectuais [http://www.mj.gov.br/sedh/dpdh/corde/corde.htm]
que tem como conseqüência limitações nas habi-
lidades adaptativas (habilidades de comunicação
interpessoal, de autocuidado, de realizar a con- Predomínio da deficiência física
tento as atividades da vida diária, habilidades
sociais, aptidões escolares, de lazer e trabalho) – Aqui o principal problema é representado
duas ou mais habilidades estão comprometidas. pela PARALISIA CEREBRAL. A forma mais
Este grupo corresponde a cerca de 50% do total comum é a criança apresentar um distúrbio
das crianças com necessidades especiais. motor, como conseqüência de uma agressão ao
sistema nervoso central. Assim, são freqüentes

293
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

distúrbios da movimentação voluntária, do tono dromes genéticas, infecções tipo meningite, oti-
muscular, associados com distúrbios de apren- tes de repetição, traumatismos crânio-encefálicos
dizagem, de comunicação ou fala. A criança que e o uso de drogas ototóxicas. Em nosso meio, uma
tem paralisia cerebral pode ter nível de inteli- doença prevenível por vacinação – a rubéola – ain-
gência normal, e a gravidade do problema mo- da continua sendo responsável por alguns casos.
tor nem sempre corresponde ao mesmo nível de Suspeita de deficiências auditivas deve ser feita
comprometimento das funções cognitivas. em todas as crianças que não reagem a sons, que
Deve-se ter bastante cuidado na aborda- tem atraso na aquisição da fala, que estão sempre
gem de crianças portadoras de paralisia cere- preferindo por sons altos, e com características de
bral. Comentários e prognósticos transmitidos distração constante e desatenção.
aos pais na presença da criança ou adolescentes
deve ser cautelosos, pois o portador de deficiên-
cia física nem sempre tem suas capacidades cog- Deficiência visual
nitivas comprometidas.
Para prevenir a deficiência visual uma sé-
rie de medidas médica vem sendo tomada:
Predomínio da deficiência sensorial • Toda criança deve ser cuidadosamente e�a-
(visão, audição) minada por profissional treinado nos primei-
ros dias após o nascimento. Já nas primeiras
horas de vida, um colírio de nitrato de prata
Deficiência auditiva (credê) é utilizado em todos os RN para pre-
venir uma infecção ocular grave causado por
Com a elevação das taxas de sobrevivência
uma bactéria responsável por uma doença se-
de recém-nascidos internados em unidades de
xualmente transmissível (gonorréia).
terapia intensiva, cada vez mais vemos crianças
• E�ame ocular bem realizado é capaz de identi-
com deficiência auditiva; cerca de dois a quatro
ficar diferença no tamanho dos globos oculares,
para cada 100 crianças neonatos que necessita-
alterações nas pupilas, na conjuntiva, no fun-
ram de internação em UTI, ocorrência muito
do do olho, piscar de olhos constante, aversão
maior que a encontrada em bebês saudáveis (1 a
à luz, movimentos oculares anormais e capaci-
3 para cada 1.000 nascimentos).
dade que todo bebê já apresenta ao nascimento
A conseqüência assistencial é que todos os
de fixação e acompanhamento de objetos colo-
recém-nascidos, em particular, os de risco ou nos
ridos colocados a cerca de 30 centímetros de
que estiveram em UTI neonatal devem ser sub-
seu ângulo de visão. Bebês muito prematuros
metidos a triagem auditiva até o terceiro mês de
apresentam risco de desenvolver um problema
vida para que o início da intervenção aconteça
grave na retina e portanto, devem ser exami-
antes do sexto mês. A intervenção até essa idade
nados periodicamente (ao menos dois exames
melhora significativamente as possibilidades de
de fundo de olho, sendo o primeiro realizado
aquisição da linguagem.
entre a quarta e a sexta semana de vida).
A falta de estímulo auditivo poderá ampliar
as seqüelas para níveis mais profundos do cérebro,
O portador de deficiência visual desenvolve uma per-
(a córtex), o que poderá impossibilitar a audição cepção auditiva e tátil muito maior que a população em geral.
para toda vida. São crianças de maior risco para
deficiência auditiva aquelas com história familiar Quando estiver tratando com uma criança defi-
de deficiência auditiva, filhas de pais consangüí- ciente visual maior ou adolescente, na presença dos pais,
neos, portadoras de anomalias craniofaciais, sín- pergunte a ela se deseja tocar seu rosto para conhecê-lo.

294
Capítulo 25 • Avaliação do desenvolvimento infantil

Através do timbre de voz, maneira de falar e se portar, Bibliografia


o deficiente visual faz uma imagem de quem está a sua
frente, muitas vezes bastante parecida com a verdadeira. Ministério da Saúde (BR). Saúde da criança:
Secretaria Estadual de Saúde - Paraná acompanhamento do crescimento e desenvolvi-
mento infantil. Brasília, DF; 2002. (Cadernos de
Atenção Básica, nº 11).
Como é possível prevenir deficiências?
Kishimoto, TM. Jogo, brinquedo e a educação.
Várias medidas podem ser postas em prá- São Paulo: Cortez; 1988.
tica com o objetivo de impedir que se produza Organização Panamericana da Saúde. Promo-
deficiência física, mental ou sensorial (prevenção ção do crescimento e desenvolvimento inte-
primária), ou impedir que as deficiências, quando gral de crianças e adolescentes. Washington,
já se produziram, tenham conseqüências físicas, DC.: OPS;1999. Módulos de aprendizagem.
psicológicas e sociais negativas (ONU 1993). Organização Panamericana de Saúde. Vigilância
A Organização Mundial de Saúde (OMS) do crescimento e do desenvolvimento da criança:
estima que cerca de 50% das deficiências são evi- curso integrado de saúde materno-infantil. Cader-
táveis por ampliação dos programas de preven- no técnico (18); 1991.
ção, tendo em vista as seguintes ações: Sucupira ACL, Werner Jr. J, Resegue R. Desen-
• Promoção de saúde: educação sobre aciden- volvimento In: Sucupira ACL et al. Pediatria em
tes domésticos e de trânsito, estímulo e cui- consultório. São Paulo: Sarvier; 2000.
dados na atividade física, suporte contra a
Unicef. Medidas vitais: um desafio de comuni-
violência, acompanhamento do crescimento
cação para o adequado desenvolvimento infantil.
e desenvolvimento. Brasília, DF;1989.
• Proteção específica: imunização contra doen-
Unicef. Situação da infância brasileira: desenvol-
ças transmissíveis, medidas de controle de do-
vimento infantil: os primeiros seis anos de vida.
enças endêmicas, suporte à nutrição adequada.
Brasília; 2001.
• Detecção precoce: testes de acuidade visual,
triagem auditiva, avaliações funcionais das habi-
lidades sensóriomotoras, avaliação psicológica.
• Prevenção de incapacidades
- Orientar sobre posicionamento adequado,
manuseio e facilitação nas atividades da
vida diária.
- Alimentação, vestuário, higiene.
- Favorecer a aquisição de novas habilidades
neuropsicomotoras.
- Apoiar as famílias no processo de inclusão
da criança com deficiência.

Predomínio de alterações relacionais

• Problemas psíquicos associados a problemas


orgânicos (filho esperado, filho real)
• Problemas psíquicos na ausência de lesões orgâ-
nicas (diálogo mãe-filho, sintomas orgânicos).

295
Capítulo 26
Atenção ao recém-nascido sentar distúrbios capazes de interferir na sua
João osMiro Barreto qualidade de vida.
helena Maria BarBosa carvalho São considerados como critérios de risco
obrigatórios:
• Peso ao nascer < 2.500 g;
• Morte de irmão < 5 anos;
• Internação após alta materna.
Para o recém-nascido de baixo risco, o
atendimento na unidade de saúde deve ser feito
Introdução nos primeiros 15 dias após a alta. A família deve
ser orientada sobre a importância do acompa-

A assistência ao recém-nascido pode ser ini-


ciada no pré-natal, através da identificação
de condições de risco que podem afetar a ges-
nhamento regular da criança, onde serão avalia-
dos crescimento (peso/estatura), etapas normais
do desenvolvimento, alimentação, cronograma
tante. Assim, é possível prever algumas dessas de vacinação e problemas de saúde que a criança
situações que prejudicam o desenvolvimento do possa apresentar.
bebê ou põem em risco sua vida. A mulher deve ser orientada sobre inter-
Aqui faltou precisar o que pode ser feito, valo seguro para outra gravidez, devendo ser ob-
por trimestre da gestação e também, antes? hi- servado um período de dois anos para que haja
giene pré-concepcional, ácido fólico. boa recuperação do seu organismo e mais tempo
Por ocasião da alta hospitalar, a mãe deve para se dedicar ao bebê recém chegado.
receber: Na primeira consulta, é importante obser-
• A Cardeneta da Criança, onde devem constar var se a mãe sente-se segura em cuidar da crian-
registros do peso ao nascer, estatura, períme- ça, como está a família, como se dá a participa-
tro cefálico, índice de Apgar e as vacinas ad- ção do pai, se ele também precisa de orientação
ministradas na maternidade: BCG e Hepatite e apoio, se a mãe recebe ajuda nas tarefas com a
B; casa e nos cuidados com o bebê.
• Orientação sobre cuidados gerais com a Alguns aspectos importantes devem ser
criança, sinais precoces de doença, noções de abordados com a mãe:
higiene e uma abordagem detalhada sobre o • 1ª consulta na unidade de saúde – deve ser
aleitamento materno; realizada por volta do 15º dia de vida;
• Informações sobre o Teste do Pezinho que deve • Número e aspecto das evacuações – crianças
ser realizado preferencialmente entre o 5º e o 7º alimentadas exclusivamente ao seio com fre-
dia de vida e permite detectar precocemente al- qüência apresentam várias evacuações ao dia
guns problemas cujo tratamento imediato evita com fezes de consistência amolecida e outras
seqüelas de doenças graves; ficam dois ou três dias sem evacuar;
• Todo RN de alto risco deve ser avaliado na • O umbigo mumifica-se na primeira semana e
primeira semana após a alta da maternidade. se destaca após oito a dez dias de vida. A base
Este seguimento tem a finalidade de reduzir do coto umbilical deve ser limpa diariamen-
a probabilidade que essas crianças de maior te com álcool a 70%. A presença de secreção
risco têm de adoecer e morrer ou de apre- purulenta na região umbilical e/ou eritema na

297
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

região periumbilical sugere infecção; terno exclusivo com suas vantagens, sejam elas
• Higiene/�anhos; de natureza afetiva, imunológica e econômica,
• Cólicas do recém-nascido: a partir da terceira chamando a atenção da não existência de leite
semana de vida, é comum o bebê apresentar “fraco” (cada leite é apropriado para o RN em
choro contínuo que muitas vezes é confun- questão, daí a diferença na composição do leite
dido com fome. Ao ser colocado para mamar de mãe de RN a termo e pré-termo).
o bebê se acalma temporariamente voltando
logo em seguida a chorar. Não há uma expli-
cação fisiopatológica definitiva para as cóli- Desenvolvimento da Atenção
cas. A conduta deve ser no sentido de acal-
mar a criança. É contra-indicado prescrever • Uma boa anamnese materna fornecerá subsí-
medicação pelos efeitos colaterais das drogas dios para um exame físico completo e deta-
utilizadas. As cólicas costumam desaparecer lhado do recém-nascido.
entre o terceiro e quarto mês de idade.

História materna
Exame Físico Neonatal
• Antecedentes maternos (uso de drogas, taba-
gismo, álcool), informações sobre gestações,
Caso Clínico planejamento e desejo pela gravidez atual,
número de filhos, trabalho de parto e partos
João é o terceiro filho de dona Izabel, nasceu anteriores, intercorrências na gravidez.
no hospital da cidade, onde sua mãe compareceu a
oito consultas de pré-natal sem intercorrências, seu
parto foi normal e em boas condições, saiu de alta História familiar
após 24 horas de vida, esteve durante esse período
internado no alojamento conjunto, hoje está no 5º dia • Pesquisa-se a e�istência de enfermidades atu-
de vida, é alimentado com leite da própria mãe e fór- ais e significantes em membros da família,
mula, pois a mãe acha que seu leite é fraco e que após consangüinidade.
a mamada o bebê continua com fome.
Comentários: pelo exposto acima se con-
clui que a gestação de dona Izabel foi tranqüila e História neonatal
sem alterações, o fato de o parto ter sido normal
e em boas condições, revela que o recém-nascido • Ocorrências no pré-parto e por ocasião do
teve uma nota de Apgar acima de 7, e seu pri- parto, avaliação da vitalidade do RN (boletim
meiro exame físico foi normal, o que é confirma- de Apgar), necessidade de reanimação em
do pela sua presença em alojamento conjunto e sala de parto, intercorrências no pós-parto
por sua alta precoce. Após conversar com a mãe imediato e tipo de alimentação.
a respeito de sua história familiar e gestacional
e obter informações sobre o João, com ênfase na
alimentação, nas eliminações, na vacinação, no Avaliação da idade gestacional
banho de sol com tempo de duração, realiza-se o
exame físico completo (que será abordado poste- Utilizando-se a data da última menstru-
riormente). Observa-se a pega do peito na mãe, ação, ultra-som precoce e finalmente o exame
salientando a importância do aleitamento ma- somático. O conhecimento da idade gestacio-

298
Capítulo 26 • Atenção ao recém-nascido

nal ajuda a identificar riscos de morbidade e te 1 minuto), verificar a temperatura axilar e


mortalidade. pressão arterial.
• RN de termo é o bebê que nasce de 37 sema- Pele, textura, cianose etc.
nas até 42 semanas incompletas de gestação;
• RN pré-termo é o bebê que nasce com menos • Te�tura, cianose, icterícia, palidez, pletora.
de 37 semanas de idade gestacional; • Descamação das mãos e dos pés, que é fisioló-
• RN pós-termo é o bebê que nasce com 42 sema- gica em RN pós termo.
nas completas de idade gestacional ou mais. • Coloração: Os recém-nascidos de cor branca
são rosados e os de cor preta tendem para o
avermelhado.
Medidas ao Nascer • Palidez: Indica geralmente a existência de
anemia e/ou vasoconstrição periférica. O
• Peso ao nascer: é a 1ª medida após o nascimen- aparecimento de palidez em um hemicorpo e
to, de preferência, aferido na 1ª hora de vida. vermelhidão no lado oposto, sugere alteração
Considera-se baixo peso ao nascer P< 2.500g. vasomotora e é conhecido como Fenômeno
• Estatura: A primeira medida do RN, que é de Arlequim.
deitado sobre a régua e a medida é feita do • Cianose:
calcanhar à protuberância occipital. - Generalizada: geralmente causada por
• Perímetro cefálico: Deverá ser a maior medi- problemas cardio-respiratórios.
da da circunferência craniana. Acho que deve - Localizada: acrocianose (cianose de ex-
ter faixa de valores considerados normais. tremidades) pode ser originada por hipo-
Lembrar sempre de Classificar o RN quan- termia; periumbilical pode ter significado
to ao peso e idade gestacional. Essa classificação importante, sobretudo se associado a uma
é útil para definir que tipo e nível de assistência palidez (por exemplo infecção).
o RN precisa. • Icterícia: A cor amarelada da pele e mucosas é
AIG, PIG, GIG considerada anormal e sua causa deverá ser es-
clarecida, de acordo com os seguintes fatores:
- Início antes das 24 horas ou depois de 7 dias;
Exame Físico - Duração: maior que uma semana em re-
cém-nascidos de termo e duas semanas no
• Iluminação e aquecimentos adequados. prematuro.
• Inspeção: Avaliar fácies, tipo de respiração, • Eritema Tóxico: Pequenas lesões eritemato-
cor da pele, atividade espontânea, postura e papulosas observadas nos primeiros dias de
choro. vida; regridem em poucos dias.
• Coloração da pele: verificar a presença de • Milium Sebáceo: Consiste em pequenos
icterícia e classificá-la segundo as zonas de pontos branco-amarelados localizados prin-
Kramer, observar palidez, cianose e pletora. cipalmente em asas de nariz.
• Esforço respiratório: observar a presença de • Hemangioma Capilar: São freqüentes, prin-
taquidispneia, o ritmo e a profundidade da cipalmente na fronte, nuca e pálpebra supe-
respiração, batimento de asa de nariz (BAN) rior. Desaparecem em alguns meses.
utilização de músculos acessórios, auscultar a • Mancha mongólica: assemelha-se à pequena
presença de gemidos. equimose. Mais comum na região sacra. De-
• Sinais vitais: contar as freqüências cardíaca saparece na segunda infância.
(durante 15 segundos) e respiratória (duran-

299
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• Linfomas císticos: presentes em qualquer RN normais e deve medir até 0,5 cm.
parte do corpo. • Crânio-tabes: diminuição da consistência
• Escleredema: freqüentemente visto em in- dos ossos do crânio. A palpação assemelha-se
fecções neonatais graves e cardiopatias com a uma bola de ping-pong. É encontrado em
débito cardíaco diminuído. Não depressível e recém-nascidos normais. A sua persistência
endurecido. até três meses requer investigação.
• Petéquias e púrpuras: não desaparecem à di- • Encefalocele: exteriorização de tecido nervo-
gito-pressão. São de etiologia mecânica (toco- so por defeito nos ossos crânio, mais comum
traumatismo), fragilidade capilar (infecção) e a nível occipital.
plaquetopenia. • Cartilagem da orelha e pálpebras: a carti-
• Hemangioma: são manchas vermelho-vio- lagem da orelha torna-se mais firme com o
láceas mais comumente observadas na nuca decorrer da gestação.
região frontal e pálpebras superiores. Desapa-
recem em alguns meses. Face
• Superfície plantar: avaliam-se as rugas que se
dirigem dos dedos para o calcanhar. Na presen- Verificar assimetria, aparência sindrômi-
ça de oligoidrânmio, acentuam-se as rugas. ca, implantação das orelhas, distância entre os
olhos, tamanho do queixo, nariz e língua.
Crânio
Olhos
Pode ocorrer micro, macro, hidro, e hi-
dranencefalia. Observar a presença de secreções, palpar
• Craniossinostose: fechamento precoce das globo ocular, pregas epicânticas, verificar o reflexo
suturas. vermelho (só e possível com o uso oftalmoscópio,
• Céfalo-hematoma: é um derrame sanguineo hemorragia subconjuntival, estrabismo (freqüente
subperiósteo decorrente da rotura de vasos no RN), pupila branca (catarata congênita, retino-
do periósteo pela pressão dos ossos cranianos blastoma, fibroplasia retrolental), opacificação da
contra a bacia materna. Se distingue da bossa córnea (glaucoma congênito, rubéola congênita).
pelo seu rebordo periférico palpável, e pelo
fato de não ultrapassar a sutura. Localiza-se
geralmente na região parietal, apresenta re- Ouvidos
gressão espontânea com calcificação em algu-
mas semanas a meses. Pode ser bilateral ou Verificar a implantação da orelha, sua forma
volumoso e causar icterícia. e tamanho, audição, apêndice pré-auriculares. Alte-
• Bossa serossanguínea: é de aparecimento rações na forma e implantação da orelha se relaciona
mais rápido que o céfalo-hematoma. É um à agenesia renal e anormalidades cromossômicas.
edema serossanguíneo de couro cabeludo,
com limites imprecisos, e de rápida involução.
Localiza-se ao nível da apresentação cefálica. Nariz
• Fontanelas: anterior mede de 1 a 4 cm e tem for-
mato de losango. Abaulamentos estão presentes Observar a forma, tamanho, permeabili-
na meningite, hipertensão intracraniana, hemor- dade, canal nasolacrimal, secreção nasal (se se-
ragia intracraniana, hidrocefalia, edema cerebral rossanguinolenta e unilateral, pensar em sífilis
e insuficiência cardíaca congestiva. A posterior congênita).
tem formato triangular, está presente em 3% dos

300
Capítulo 26 • Atenção ao recém-nascido

Boca des torácicas. Retrações supra-claviculares são


sempre patológicas.
Observar a coloração dos lábios, presença de
lábio leporino ou fenda palatina, língua, dentes con-
gênitos, rânula (tumoração cística no assoalho da Clavículas
boca), pérolas de Epstein (pontos brancos no palato),
úvula bífida. A posição da mandíbula (retrognatia) e Verificar a presença de fraturas (a maioria é
o arqueamento do palato (ogival) dependem da não do tipo galho-verde, que pode causar pseudopara-
atividade motora na vida intra-uterina da língua lisia do plexo braquial). A conduta é conservadora
contra o palato e o relaxamento da mandíbula. (não requer imobilização, atadura) a não ser nos
casos de fratura completa com diminuição ou au-
sência de movimentação do braço no lado afetado.
Pescoço: de aspecto cilíndrico

• Palpar: Mamas
- A parte mediana para detectar a presença
de bócio, fístulas, cistos e restos de arcos Verificar assimetria e distância interma-
branquiais; milar. Ao nascer é comum o aumento das glân-
- A lateral para pesquisar hematoma de es- dulas mamárias com a eliminação de secreção
ternocleidomastoídeo, torcicolo congênito, leitosa ou sanguinolenta em ambos os sexos, que
pele redundante ou pterigium coli. regride espontaneamente. Podem ser observa-
• E�plorar mobilidade e tônus cervical. dos mamilos extranumerários.
• Torcicolo congênito: contratura do múscu-
lo esternocleidomastóideo que é de resolução
espontânea na maioria dos casos, podendo Exame Cardiovascular
evoluir para assimetria facial e posição vicio-
sa da cabeça. • A freqüência cardíaca varia normalmente de
• Higroma cístico: tumoração cística de ta- 120 a 160 batimentos por minuto, de acordo
manho variado. Crescimento rápido. Invade com a atividade do RN.
o assoalho da boca, o mediastino a as axilas. • A presença de sopros em recém-nascidos é
Pode causar obstrução respiratória. comum nos primeiros dias e podem desapa-
• Bócio congênito: causa idiopática ou filho de recer em alguns dias. Se o sopro persistir por
mãe que recebe iodo na gestação. Consistência algumas semanas é provável que seja mani-
elástica em forma de colar cervical, pouco mó- festação de malformação congênita cardíaca.
vel, podendo causar obstrução respiratória. • A palpação dos pulsos femurais é obrigatória, pois
sua ausência é sugestiva de Coarctação da Aorta.
• Inspeção: cianose, padrão respiratório (ta-
Tórax quipnéia, dispnéia, amplitude respiratória),
abaulamento precordial, turgência jugular,
O perímetro torácico do RN a termo é em ictus (mais propulsivo em sobrecarga de vo-
média de 1 a 2cm menor que o cefálico. Verificar lume e persistência do canal arterial (PCA).
assimetria, maior dimensão é a antero-posterior. • Palpação: pulsos nos quatro membros, com-
Discretas retrações sub e intercostais são co- paração dos superiores com os inferiores (sin-
muns em RN sadios pela elasticidade das pare- cronia, ritmo e intensidade). Palpação do pre-
córdio (ictus, sua impulsividade, frêmitos).

301
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Ausculta Pontuação:
• Dificuldade Respiratória Leve: 1 - 3
• Dificuldade Respiratória Moderada: 4 - 6
• Sopro: Identificar o tipo de sopro, que pode • Dificuldade Respiratória Grave: > 7
ser sistólico, diastólico ou contínuo. Quanti-
ficar de 1+ a 6+. Quanto ao timbre, informar • Ausculta: deve ser bilateral e comparativa.
se suave, rude ou aspirativo. Poderão estar au- Auscultar as regiões axilares. Avaliar a pre-
sentes ao nascimento mesmo em cardiopatias sença de crepitações, roncos e diminuição do
graves; 60% dos RN normais terão sopro nas murmúrio vesicular.
primeiras 48h de vida.
Abdome
Exame Pulmonar • Inspeção: observar a forma do abdome (ge-
• A respiração normal do RN é abdominal; ralmente cilíndrico e 2 a 3 centímetros menor
quando predominantemente torácica e com que o cefálico; se escavado (hérnia diafragmá-
retração indica dificuldade respiratória. tica), se abaulado supra umbilicalmente (obs-
• A freqüência respiratória média é de 40 movi- trução intestinal alta ou distensão gástrica).
mentos no recém-nascido de termo e de 60 no • Palpação: deve ser iniciada com uma leve
pré-termo. A respiração é mais periódica que re- pressão de baixo para cima, a fim de delinear
gular, por isso os movimentos são contados du- os bordos do fígado e baço.
rante um minuto. A taquipnéia (FR > 60 rpm) • O fígado é palpável normalmente até 2 cm
é altamente sugestiva de doença respiratória. abaixo do rebordo costal. Uma ponta de baço
• Estertores bolhosos logo após o nascimento pode ser palpável na primeira semana. Na
normalmente são transitórios e desaparecem presença de aumento destas duas vísceras, a
nas primeiras horas de vida. Sua persistência causa deverá ser investigada.
obrigará a verificar a ausência de patologias • Os rins podem ser palpados principalmente o
pulmonares, bem como diminuição global e esquerdo.
assimetria do murmúrio vesicular. Verificar diastáse (afastamento) dos mús-
• Inspeção: Verificar o padrão respiratório culos reto-abdominais – é observação frequente
quanto à freqüência, amplitude dos movimen- e sem significado patológico. São 3 as principais
tos, tiragem, retração xifoidiana, batimentos causas de distensão abdominal no RN: ascite,
de asas do nariz (BAN), estridor expiratório, visceromegalias e distensão gasosa. Pesquisar a
gemido. Utilizar o Boletim de Silverman-An- presença de massas abdominais.
derson (quadro abaixo). • Ausculta: procurar ruídos hidroaéreos. Sua
ausência é significativa para íleo paralítico.
Pontuação de Silverman-Andersen para avaliar a
magnitude da dificuldade respiratória
Parâmetros 0 1 2 Genitália
Audível com Audível sem
Gemência Ausente
estetoscópio estetoscópio • Masculina: medir o comprimento do pênis;
Batimentos de no RN a termo, o tamanho normal é de 35 a
Ausente Discreto Acentuado
asa do nariz
40 mm, orifício uretral (hipospádia ou epis-
Tiragem 3 últimas Mais de 3
Ausente pádia), prepúcio, localização dos testículos,
intercostal intercostais intercostais
Retração presença de hérnias e hidroceles.
Ausente Discreta Acentuada
esternal • Feminina: medir o tamanho do clitóris (não
Balancim Ausente Discreto Acentuado deve ultrapassar 5 mm), fusão dos grandes
Quadro 1. Boletim de Silverman-Anderson.

302
Capítulo 26 • Atenção ao recém-nascido

lábios, orifício da vagina e uretra, distância • Meningomielocele e mielocele: tumorações


anovulvar e fístulas. Quase 100% dos RN planas ou pedunculadas decorrentes de falha
apresentam excesso de tecido himenal ao nas- óssea no canal raquidiano (espinha bífida).
cimento que desaparece em semanas. Mais comum na região sacral e lombar. Fazer
• Fimose: é a persistência do prepúcio fechado, o possível para mantê-la íntegra – cobrir com
não permitindo a exteriorização da glande, o gase esterilizada umedecida em SF 0,9%. Fa-
que geralmente ocorre dos 2 aos 4 anos. zer avaliação do nível de sensibilidade, avalia-
• Hidrocele: aumento dos testículos com tran- ção motora e esfincteriana. Fossetas ou hiper-
siluminação positiva. tricose podem indicar espinha bífida oculta.
• Hipospádia: meato uretral na face perineo-es- • Teratoma sacrococcígeo: tumorações arre-
crotal do pênis; excesso de pele dorsal. Associa-se dondadas, de tamanho variado podendo ser
a alterações dos testículos como criptorquidia. gigante. Pele que o recobre é, em geral, ínte-
• Epispádia: falha no fechamento da uretra na gra. Passíveis de malignização.
parede dorsal. Pode acometer toda a uretra,
inclusive com extrofia vesical. Membros
• Ectopia testicular: Verificar a presença dos
testículos na bolsa escrotal e palpar os canais • Realizar com o RN em decúbito dorsal. Veri-
inguinais. ficar simetria e proporções, examinar articu-
• Imperfuração himenal: pode levar à reten- lações à procura de luxações.
ção de secreções uterinas e vaginais e causar
abaulamento himenal e às vezes retenção uri- Fraturas
nária por compressão extrínseca.
• Sinéquia dos pequenos lábios • Paralisias: as paralisias braquiais podem ser
de 3 tipos – total, da parte superior do bra-
ço (Duchenne) e do antebraço (Klumke). O
Hérnias - Genitália ambígua
braço permanece em adução (encostado no
• Anomalias anonetais: estenose anal, ânus pe- tórax). Na paralisia de Erb-Duchenne as per-
rineal anterior, fístula anocutânea, ânus vul- turbações sensitivas são pequenas e localiza-
var, fístula anovulvar, fístula anovestibular, das na parte superior do ombro.
fístula retrovestibular, atresia retal, imperfu- • Paralisia de membros inferiores é rara e se
ração anal, estenose anal membranosa. deve a tocotraumatismos graves ou anomalia
• Genitália e�terna: a descida testicular para a congênita da medula espinhal.
bolsa escrotal ocorre por volta do 3º trimestre • Artrogripose (imobilidade articular): pode
e a bolsa escrotal se toma mais enrrugada pró- ser congênita ou devido a déficits neuroló-
ximo ao termo. O tamanho final do clítoris é gicos, déficits musculares, compressão fetal
adquirido bem antes da deposição de gordu- por oligoidrâmnio. Problemas neurológicos
ra nas estruturas vizinhas e por isso aparenta parecem ser a causa mais comum: menin-
falsamente hipertrofiado. gomielocele, deficiência das células motoras
da medula anterior, espasticidade pré-natal,
anencefalia, hidranencefalia e holoprosence-
Coluna falia. Na história, verificar movimentos fe-
tais, oligohidrâmnios e exames radiológicos.
• Colocar RN em decúbito ventral. Procurar tu- • Pé torto congênito: é a anomalia congênita
mores, hipertricose, manchas hipercrômicas, de membros mais comum. Diferenciar entre
seio pilonidal. Correr os dedos pela coluna. pé torto congênito e posicional.

303
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• Prega palmar única: uni ou bilateral, está gênita e pielonefrite congênita.


presente em 2,5% dos nascimentos normais. A primeira eliminação de mecônio ocorre
• Osteocondrodisplasia: evidente encurta- nas primeiras 24 h de vida em 90% dos RN.
mento dos membros (nanismo diastrófico). Causas de atraso na eliminação de mecô-
• Luxação congênita do quadril: o diagnóstico nio são: obstrução intestinal, mucoviscidose, hi-
deve ser o mais precoce possível, pela boa respos- permagnesemia, doença de Hirsprung.
ta ao tratamento. Pesquisá-lo em todas as oportu-
nidades do exame físico do RN, pois poderá estar Bibliografia
ausente em alguns momentos. Verificar simetria
das pregas cutâneas se necessário confirmar Alves, Navantino Filho; Correa, Mário Dias. Pe-
diagnóstico, solicitar avaliação ultrasonográfica. rinatologia básica. Editora Guanabara Koogan
S.A. Rio de Janeiro, 2006.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Polí-
Avaliação da displasia do quadril (luxação ticas de Saúde. Departamento de Atenção Bási-
congênita do quadril) ca. Saúde da criança: acompanhamento do cres-
cimento e desenvolvimento infantil. Brasília,
• Manobra de Ortolani: articulações coxo-femu- 2002.
rais em flexão e joelhos em flexão. Seguram-se as Cloherty, John p.; Eichenwald, Eric C.; Stark,
pernas e as coxas com as mãos, colocando-se os Ann. Manual de perinatologia. Editora Guana-
dedos sobre o grande trocanter e realizando-se a bara Koogan S.A. Rio de Janeiro, 2005.
adução a abdução da articulação. Positivo quan-
Kopelman, Benjamin; Miyoshi, Milton; Guins-
do se percebe um click com os movimentos.
burg, Ruth. Distúrbios respiratórios no período
• Manobra de Barlow: flexionar joelhos e qua- neonatal. Editora Atheneu. São Paulo, 1998.
dris. Seguram-se pernas e coxas com as mãos
Lissauer, Tom; Clayden Graham. Manual ilus-
colocando-se os dedos sobre o grande trocan-
trado de pediatria. Editora Guanabara Koogan
ter, mantendo as articulações em abdução mé-
S.A. Rio de Janeiro, 2003.
dia, realizando-se movimentos pressionando
o grande trocanter anteriormente e sentindo- Marcondes, Eduardo; Vaz, Flávio Adolfo Costa;
se o deslocamento da articulação. Ramos, José Lauro Araújo; Okay, Yassuhiko. Pe-
diatria Básica, Tomo I-Pediatria Geral e Neona-
tal. Editora Sarvier. São Paulo, 2005.
Mecônio e Urina Miura, Ernani; Procianoy, Renato, S. Neonatolo-
gia-princípios e prática. Editora Artes Médicas.
A maioria, cerca de 99% dos RN urinam
Porto Alegre, 1997.
nas primeiras 48 h de vida, sendo que 23% o fa-
zem na sala de parto. O volume urinário nas pri- Murahovschi, Jaime. Pediatria diagnóstico +tra-
meiras 24 h de vida é de cerca de 15 ml. tamento. Editora Sarvier. São Paulo, 1998.
Polin, Richard A.; Yoder, Mervin, C.; Burg, Fre-
As causas mais comuns de incapacidade de
dric D. Neonatologia prática. Editora Artes Mé-
urinar nas primeiras 24 h são: prepúcio imper-
dicas. Porto Alegre, 1996.
furado, estenose de uretra, valva de uretra pos-
terior, bexiga neurogênica, ureterocele, tumores Secretaria da Saúde do Estado (CE). Atenção ma-
renais, rins multicísticos, hipovolemia, baixa terno-infantil. Fortaleza; 2004. (Educação com
ingesta, agenesia renal bilateral (Síndrome de saúde: noções básicas de saúde: módulo 1).
Potter), necrose tubular (secundária a hipóxia), Secretaria Municipal da Saúde (SP). Caderno te-
trombose de veia renal, síndrome nefrótica con- mático da criança. São Paulo; 2003.

304
Capítulo 27
Vacinação – uma medida nignos; antibioticoterapia; gravidez no
de proteção domicílio (acreditando-se, de modo equi-
vocado, que o agente vacinal possa ser
eliane cesário MaluF
disseminado e trazer complicações para o
Jocileide sales caMPos
nilce de Matos nunes feto); prematuridade; alergias inespecífi-
anaMaria cavalcante e silva cas; história familiar de convulsões;
• Dificuldade de acesso
• Desinformação (profissionais de saúde
e população em geral)
Introdução • Má conservação das vacinas
• Resistência a e�cesso de injeções

A elaboração de um programa de vacinação


deve levar em consideração as características
da população. É fundamentado nesse conhecimen-
• Erro de técnica de aplicação (dose, ida-
de, via de administração).

to, e não apenas no abastecimento de vacinas, que Tem sido observado também que grande par-
se consegue alcançar elevadas coberturas vacinais. te dos profissionais de saúde tem freqüentemente
É de grande importância identificar e pro- dúvidas relacionadas às seguintes questões:
curar superar os obstáculos que impedem que o • A administração simultânea de vacinas não
programa alcance seu objetivo – proteger a po- resulta em redução da resposta ou aumento
pulação contra as doenças imunopeveníveis. das reações adversas. A vacinação simultânea
Um calendário vacinal deve ser operacional- aumenta a probabilidade de a criança conse-
mente factível e socialmente aceitável. Por razões guir completar todo o esquema preconizado.
operacionais, deve-se prever um número mínimo • Quando duas vacinas de antígenos vivos, que
de sessões e a administração simultânea de vacinas. deveriam ser aplicadas simultaneamente, não
Do ponto de vista epidemiológico, é pre- o são, deve-se aguardar quatro semanas entre
ferível não deixar passar um grande intervalo a aplicação (pela possível interferência imu-
entre as doses sucessivas e vacinar a criança o nológica na replicação do vírus). Porém se as
mais rápido possível. duas vacinas são inativadas ou uma é inati-
Um calendário vacinal, no entanto, não vada e a outra é de antígeno vivo, não há ne-
pode deixar de considerar8: cessidade de limite de intervalo (elas podem
• O cotidiano da comunidade. ser aplicadas a qualquer momento). Entre a
• As alterações climáticas sazonais. anti-polio oral e a anti-sarampo ou a tríplice
• As crenças e costumes de ordem cultu- viral também não há limite de intervalo.
ral, que podem implicar em obstáculo • O intervalo mínimo recomendado entre as
para o programa de vacinação. doses deve ser seguido, caso contrário a efi-
cácia pode ficar comprometida (se acontecer
Os obstáculos mais freqüentemente iden- não deve ser contada como dose válida).
tificados no nosso meio para imunizar as pes- • O número de doses necessárias para cada va-
soas são8: cina induzir imunidade também é definido
• E�cesso de contra-indicações (falsas con- por estudos soro-epidemiológicos. A regra
tra-indicações): presença de quadros be- geral é que as vacinas de vírus vivo atenuado

305
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

produzem imunidade por longo tempo com cer a vacinação, tanto na rotina como por meio
uma única dose. de estratégias diferenciadas – campanhas, blo-
• As vacinas inativadas, em geral, requerem queios, busca ativa, vacinação de grupos de ris-
múltiplas doses e reforços para manter a imu- co, etc, da população de sua área de abrangência,
nidade. Para as vacinas inativadas, o título tendo sempre em mente a proteção individual e
dos anticorpos pode decrescer abaixo do ní- o alcance de coberturas vacinais elevadas e ho-
vel protetor em poucos anos. Esse fenômeno mogêneas em todas as localidades.
é mais observado na vacina contra tétano e
contra a difteria, havendo necessidade de re-
forços periódicos. Nem todas as vacinas ina- Caso Clínico
tivadas requerem reforços durante a vida. A
vacina anti-Haemophillus influenzae b, por Jailson tem seis meses de idade, 1º filho, saudá-
exemplo, não implica em reforços a partir dos vel, peso e desenvolvimento psicomotor compatível com
5 anos de idade, pois a doença é muito rara o esperado para a idade. Aleitamento materno exclusi-
acima desta faixa etária19. vo. Nunca teve doenças. Sua situação vacinal é a se-
guinte: BCG, VCHepB1, VOP 1e2 e Tetra1e2. Estas
Por outro lado, é importante considerar últimas (VOP2 e Tetra2) tomadas aos quatro meses.
que atualmente as doenças preveníveis por va- Reflexões:
cinas estão sob controle no Brasil, com a polio- a) Jailson está com a vacinação em dia?
mielite erradicada, sendo o último caso notifi- b) Quais as vacinas que não foram aplica-
cado em 1999. Desde o ano 2000 não ocorrem das na idade correta?
casos autóctones de sarampo no País, estando, c) Quais as vacinas que Jailson precisa to-
portanto a doença, na consolidação do processo mar hoje?
de sua erradicação, graças ao Plano de Erradica- d)Para quando deverá ser aprazada a
ção do Sarampo e Eliminação da Rubéola, estan- VcHepB3?
do, portanto, esta última controlada, com redu-
ção do número de casos da doença na sua forma Se você conhece bem o calendário vacinal
adquirida e da síndrome da rubéola congênita. deve ter respondido “não” à primeira questão e
Difteria, meningite por Haemophilus influenzae b, sabe que não foram aplicadas na idade definida
meningite tuberculosa, tétano acidental, tétano a VcHepB2 que seria aos 30 dias e a VORH1 aos
neonatal e demais doenças preveníveis por vaci- dois e a VORH2 aos quatro meses. Hoje, ele pre-
na estão sob controle no país. cisa receber VOP3, Tetra3, VcHepB2. A VORH
No entanto, nos últimos anos, observa-se não poderá ser administrada, porque a idade li-
uma tendência nacional acentuada e progressiva mite para a 2ª dose da VORH é cinco meses e
de redução dos percentuais de coberturas vaci- meio. Já a VcHepB3 requer um intervalo de dois
nais, que ameaça concretamente o estado de er- meses da segunda para a terceira dose.
radicação da poliomielite, a consolidação do pro-
cesso de erradicação do sarampo e o controle das Comentários:
demais doenças imunopreveníveis, sinalizando O profissional da sala de vacina deve-
falta de priorização das ações de imunizações em rá analisar atentamente a caderneta da criança
grande número de municípios. (situação vacinal) para evitar as oportunidades
A equipe de Saúde da Família tem, por- perdidas de vacinação como aconteceu no caso
tanto, no cumprimento de suas atribuições, a relatado; esclarecer a mãe sobre as vacinas apli-
responsabilidade fundamental de fazer aconte- cadas, contra quais doenças elas previnem, in-

306
Capítulo 27 • Vacinação – uma medida de proteção

formar sobre as possíveis “reações”; retornar se rias. Nas áreas com elevada prevalência de infec-
necessário; aprazar (à lápis) as próximas vacinas, ção pelo vírus da imunodeficiência humana vem
informando as respectivas datas. Orientar a mãe ocorrendo aumento do número de casos e óbitos
sobre as vacinas que ela própria precisa tomar. por tuberculose26, 14, 41.
No Brasil, a vacina BCG é indicada para
Vacinas que compõem o calendário – crianças com menos de cinco anos de idade. A re-
Programa Nacional de Imunização (PNI): comendação do PNI é de que seja administrada
precocemente, de preferência a recém-nascidos
(Quadro 1), sempre que possível na maternidade,
Vacina contra Hepatite B desde que tenham peso igual ou superior a 2Kg14.
Durante alguns anos o PNI passou a reco-
A prevalência de hepatite B tem sido re- mendar uma segunda dose da vacina BCG na ida-
duzida em países onde a vacinação foi implan- de escolar. Entretanto, em junho de 2006, o PNI
tada, porém permanece alta em populações de enviou nota técnica para todas as Unidades Fede-
risco e em países onde a transmissão vertical e radas, orientando a suspensão da segunda dose. A
horizontal intradomiciliar não é controlada31,40. decisão foi fundamentada em resultados de estu-
No Brasil, a vacina contra Hepatite B dos científicos, realizados inclusive no Brasil, para
está incluída no esquema de vacinação de roti- avaliar o efeito da segunda dose da vacina BCG em
na para toda a população até 19 anos de idade14 crianças em idade escolar. Os estudos apontaram
(Quadros 1 e 3). baixa proteção em adolescentes e adultos jovens5,25.
As vacinas contra hepatite B disponíveis
no Brasil são as produzidas por engenharia ge-
nética. Essas vacinas induzem resposta satisfa- Vacina contra Poliomielite
tória, aplicadas em qualquer idade, inclusive em
recém-nascidos, logo após o nascimento14,22. Po- No Brasil utiliza-se a vacina anti-polio
rém, para manter títulos de anticorpos elevados oral trivalente, de vírus vivos atenuados26,14.
são necessárias 3 doses (0, 30 e 180 dias)14. A vacina anti-polio oral induz imunidade
Vários estudos mostraram que a aplicação celular, imunidade local (IgA secretora) e imu-
isolada da vacina contra Hepatite B em recém-nas- nidade sérica (IgM e IgG). À semelhança do que
cidos de mães AgHBs e AgHBe positivos, até 12 ocorre com a infecção natural, a imunidade in-
horas de vida, previne entre 80% e 95% a infecção duzida pela vacina é permanente40.
perinatal. Ao associar a imunoglobulina à vacina, O PNI prevê o emprego da vacina anti-
na situação acima descrita, a proteção aumenta para polio oral (Sabin) no segundo, quarto e sexto
até 98%. Essa informação é de grande importância, mês de vida. Dois reforços são obrigatórios: o
e justifica plenamente o empenho para que todas as primeiro um ano após a terceira dose e o segun-
maternidades se organizem para oferecer a primei- do entre quatro a seis anos de idade (Quadro 1).
ra dose desta vacina o mais precoce possível22.

Vacina Tetravalente Bacteriana (DTPHib - contra


Vacina contra Tuberculose Difteria, Tétano, Coqueluche e Haemophilus
influenzae b)
A prevalência da tuberculose é maior em
áreas de grande concentração populacional e A criança deve receber, de rotina, três
precárias condições sócio-econômicas e sanitá- doses da vacina tetravalente (Quadro 1), com

307
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

intervalos de oito semanas, a partir da oitava se- A vacina de células inteiras, de uso rotinei-
mana de vida14. ro no Brasil, é constituída de uma suspensão da
• Vacina contra difteria: A resposta imunoló- Bordetella pertussis inativada pela formalina41.
gica ao toxóide diftérico é satisfatória desde o De acordo com estudos científicos sobre a
nascimento, mesmo em presença de anticor- vacina anti-pertussis de células inteiras, a idade
pos específicos (antitoxinas) transferidos por mínima para se iniciar a vacinação é a sexta sema-
via transplacentária19. Esta vacina é comumen- na de vida, sendo necessárias três a quatro doses
te administrada na forma combinada, com a para a proteção32. O intervalo preconizado entre
vacina anti-pertussis, anti-tetânica e anti Hae- as doses, para se obter resposta imunológica sa-
mophilus influenzae b (DPTHib). A aplicação tisfatória, é de quatro a oito semanas (Quadro 1).
da primeira dose é realizada somente após a Vários autores referem acreditar que a proteção
sexta semana de vida, para a obtenção de me- conferida por essa vacina vai decrescendo com o
lhor resposta ao componente Pertussis. tempo, mas a taxa de redução não está estabeleci-
da. Alguns estudos demonstram uma eficácia de
Para que a imunidade antidiftérica seja 80% três anos depois da última dose, 50% quatro
satisfatória é necessária a aplicação de três a sete anos após a última dose, e praticamente
doses com intervalo de quatro a oito semanas nenhuma proteção após 12 anos15,17.
(Quadro 1). É de fundamental importância que São recomendados dois reforços do com-
essas doses sejam aplicadas durante o primeiro ponente Pertussis, que acompanham o crono-
ano de vida14. grama da vacina tríplice bacteriana (Quadro 1).
Os reforços são realizados com a vacina A vacina contra a coqueluche, de células in-
tríplice bacteriana (DPT), sendo o primeiro de- teiras, está contra indicada a partir dos sete anos
les um ano após a ultima dose e o segundo aos de idade em virtude de reações adversas. Por essa
quatro anos (Quadro 1). razão o PNI recomenda a aplicação da vacina du-
Devido à redução dos títulos de anti-to- pla (contra difteria e tétano) para população com
xina, a maioria dos indivíduos tem nível abaixo mais de sete anos de idade14.
do ótimo após dez anos da última dose. Por essa Nos países desenvolvidos, a vacina DPT
razão é recomendada uma dose de reforço a cada de células inteiras foi substituída pela DPaT
dez anos, e esses reforços são realizados com a (componente pertussis acelular)15. Esta última
vacina dT (dupla tipo adulto)15,16. contém apenas os componentes da Bordetella
pertussis relevantes para a indução de proteção,
• Vacina contra tétano: O tétano é doença de resultando em elevada eficácia e em menor fre-
alta letalidade, e que dispõe de uma vacina qüência de eventos adversos.
(toxóide tetânico) de elevada eficácia e de bai-
xo custo. No calendário oficial de imunização • Vacina contra Haemophilus influenzae b
no primeiro ano de vida, a vacina antitetânica (Hib): No Brasil, destaca-se que antes da in-
segue o esquema da vacina tetravalente bacte- trodução da vacina contra Hib, este agente
riana (Quadro 1). Na seqüência, a imunização ocupava o segundo lugar dentre as meningites
contra o tétano segue o esquema preconizado bacterianas especificadas. Hoje, os dados dis-
contra a difteria8,13,17. poníveis apontam para um impacto altamente
• Vacina contra conqueluche: Atualmente positivo dessa vacina, com uma redução de 95%
existem no mercado basicamente dois tipos na incidência de meningites por Haemophilus
de vacina contra a coqueluche: a vacina de cé- influenzae b em menores de 5 anos, quando
lulas inteiras e a vacina pertussis acelular32. comparados os anos de 1998 e 200031, 36, 37.

308
Capítulo 27 • Vacinação – uma medida de proteção

A vacina contra Haemophilus influenzae b é vacina tríplice viral entre 4 e 6 anos de idade19,14
produzida a partir do componente polissacáride da (Quadro 1).
cápsula da bactéria, conjugado a uma proteína car-
readora6, 37. Esta vacina é preconizada para crianças • Vacina contra caxumba: A vacina contra
menores de 5 anos de idade, por constituir-se o grupo caxumba, também composta de vírus vivo
de maior risco, como mencionado anteriormente. atenuado, é recomendada para crianças com
O calendário oficial para a criança brasi- um ano de idade ou mais (Quadro 1). A pre-
leira inclui três doses da vacina anti Haemophi- sença, no sangue do lactente, de anticorpos
lus influenzae b durante o primeiro ano (contida específicos transferidos da mãe para o feto
na vacina tetravalente bacteriana)6, com inter- durante a gravidez pode neutralizar o efeito
valos de oito semanas, a partir da oitava sema- imunizante da vacina14.
na de vida (Quadro 1)14. Se a criança perdeu a
oportunidade de receber essa vacina no referido O PNI recomenda a segunda dose da vaci-
período, a recomendação é que uma única dose na contra caxumba (tríplice viral entre 4 e 6 anos
é suficiente para induzir imunidade a partir dos de idade)14. (Quadro 1).
12 meses19.
• Vacina contra rubéola: A vacina contra a ru-
Vacina Tríplice Viral (contra Sarampo, Caxumba e béola também é preparada a partir de vírus
Rubéola) vivo atenuado e proporciona a formação de
anticorpos em 95% dos indivíduos vacina-
• Vacina contra sarampo: Na imunização dos9. Esta vacina é recomendada para a fai-
contra o sarampo, emprega-se atualmente no xa etária maior de 12 meses (Quadro 1). Em
Brasil e na maioria dos países, a vacina consti- crianças com menos de um ano os anticorpos
tuída por vírus vivo atenuado, na formulação específicos transferidos da mãe para o feto,
associada ao vírus da caxumba e da rubéola. via transplacentária, podem neutralizar o
efeito da vacina. O PNI recomenda a segunda
Vários estudos mostram uma baixa res- dose da vacina contra rubéola (tríplice viral
posta imunológica à vacina contra sarampo em entre 4 e 6 anos de idade)14. (Quadro 1).
crianças com idade inferior a 12 meses17,24. Isto
acontece porque nos primeiros meses de vida há A rubéola foi introduzida na lista de doen-
interferência dos anticorpos maternos, passados ças de notificação compulsória no Brasil somen-
via trans-placentária, na resposta à vacina10. te na segunda metade da década de 90. Os dados
Em 2001 o Brasil alcançou a eliminação da epidemiológicos têm demonstrado importante
circulação do vírus autóctone do sarampo. Esse decréscimo no número de ocorrência da doença
resultado é atribuído à adoção da estratégia de após a introdução da vacina no PNI.
eliminação da doença na região das Américas, Deve-se destacar a importância no con-
que prevê as seguintes ações: atingir coberturas trole da rubéola com a realização de uma
vacinais de rotina acima de 95% em crianças de campanha de vacinação em massa dirigida às
1 ano; realizar uma campanha de vacinação in- mulheres em idade fértil em todo o país e a in-
discriminada para os menores de 5 anos e repe- trodução da vacina dupla ou tríplice viral no
tir essa campanha a cada 5 anos ou menos, a de- calendário básico de imunização, processo ini-
pender da situação epidemiológica, de maneira ciado em 199214.
a impedir o acúmulo de suscetíveis14. Em 2004,
o PNI passou a recomendar a segunda dose da

309
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Vacina contra Febre Amarela senvolvidos ou em desenvolvimento.


No período de 1996 a 2003 foram notifi-
Diversas regiões do Brasil enfrentam sur- cados no Brasil, 613.533 óbitos em menores de 5
tos de febre amarela. Por essa razão o PNI im- anos, dos quais 33.533 (5,5%) foram por doença
plantou, no calendário de vacinação de rotina, diarréica aguda14. A magnitude da doença diar-
nessas regiões, a vacinação de crianças com ida- réica em menores de 5 anos, pode também, ser
de superior a 9 meses42. evidenciada por 867.000 internações hospitala-
A partir de 1998, visando evitar a ocor- res, no período de 1995 a 2004.
rência de surtos de grande magnitude, o Minis- Essa vacina é elaborada com vírus atenu-
tério da Saúde iniciou uma ampla intensifica- ado, isolado de humanos. É monovalente, ou
ção da vacinação contra febre amarela nas áreas seja, a cepa utilizada possui apenas um sorotipo
de risco e nos municípios de área de transição. em sua composição, o G1 [P8] da cepa RIX4414,
Em áreas indenes, a estratégia de vacinação que deve ser aplicada por via oral23.
visa assegurar que todas as pessoas que se diri- A eficácia da vacina (duas doses), para episó-
jam às áreas endêmicas ou de transição, sejam dios de gastrenterite grave causada por Rotavírus,
vacinadas com antecedência de 10 dias14. Os variou entre 68,5% e 90,0%. Para gastrenterite de
anticorpos aparecem 10 dias após a aplicação qualquer gravidade, a eficácia variou entre 55,7%
da vacina14. e 73,0%. Para hospitalizações devido à doença, a
Os objetivos dessa estratégia são: prote- eficácia protetora variou entre 65,4% e 93,0%.
ger os indivíduos, estabelecer uma imunidade Os estudos mostraram que houve prote-
coletiva com a finalidade de prevenir possíveis ção cruzada para gastrenterite e gastrenterite
epidemias e vacinar, em uma área determinada, grave causada por outras cepas não-G1 (G2, G3,
um número suficiente de pessoas para constituir G4 e G9)23.
uma barreira de imunidade que se oponha à pro- Em março de 2006 o Brasil introduziu a
pagação geográfica da doença. vacina contra o Rotavirus, no Calendário Básico
A vacina usada no Brasil e preparada pela de Imunização do lactente14 (Quadro 2).
Fundação Oswaldo Cruz é da cepa 17D, contém A vacina está indicada para crianças na
vírus vivo atenuado, procedente da amostra afri- faixa etária de 6 a 24 semanas de vida, sendo que
cana Asibi42. Na preparação da vacina, o vírus é o esquema preconizado é a primeira dose aos 2
repassado em embrião de pinto, visando conse- ou 3 meses (8 ou 12 semanas) de idade e a segun-
guir a titulagem recomendada15. da dose aos 4 ou 5 meses (16 ou 20 semanas) de
A Organização Mundial da Saúde consi- idade, respeitando-se o intervalo recomendado
dera que a vacina confere pelo menos 10 anos de 8 semanas entre as doses (quadro 3). O in-
de imunidade. Estudos realizados mostram que tervalo mínimo admissível entre as duas doses
97,1% das pessoas vacinadas têm anticorpos pro- é de 4 semanas. A idade máxima para adminis-
tetores contra o vírus após 18 anos. tração da 2ª dose é de 24 semanas, não devendo
ser administrada além desta idade14 objetivando
reduzir possibilidades de eventos adversos.
Vacina contra Rotavírus A vacina não deve ser administrada a
crianças que tenham alguma forma de alergia
As doenças diarréicas agudas causadas por grave (urticária disseminada, broncoespasmo,
Rotavírus se constituem na principal causa de laringoespasmo e choque anafilático) a algum
morbidade e mortalidade por diarréia em crian- dos componentes da vacina, ou a doses prévias
ças em todo o mundo, quer seja nos países de- desta vacina, assim como, a crianças com algu-

310
Capítulo 27 • Vacinação – uma medida de proteção

ma forma de imunodeficiência, a crianças com so a informação de que existem vacinas altamen-


história de alguma doença gastrintestinal crôni- te eficazes, comercializadas em nosso país, po-
ca ou má-formação congênita do trato digestivo rém ainda não estão disponíveis no SUS. Essas
ou história prévia de invaginação intestinal14. vacinas são: contra varicela2,4,11,30, hepatite A3,37,
O intervalo recomendado entre a aplica- contra influenza, que é indicada a partir dos seis
ção das vacinas antipólio oral e Rotavirus é de meses de idade18,28,43, vacina anti-meningocócica
pelo menos 15 dias14. C conjugada, vacina pneumocócica conjugada
7-valente, vacina anti-pneumocócica (polissa-
carídeos capsulares): pneumo 23, vacina anti-
Vacinação da criança infectada pelo HIV meningocócica A e C (polissacarídeos capsula-
res). Recentemente foi lançada a Vacina Tríplice
Indivíduos infectados pelo HIV são mais Acelular (dpaT) para o adolescente, que é preco-
vulneráveis às doenças infecto-contagiosas. Por- nizada para maiores de 10 anos de idade32. Nos
tanto a vacinação dessas pessoas é uma medida de EUA e no Canadá essa vacina substitui o reforço
elevado valor em saúde pública, mesmo que seja da DT em adolescentes e adultos29,41. A última
baixa sua capacidade de resposta. As vacinas de- vacina licenciada no Brasil foi a vacina contra
vem ser aplicadas o mais precocemente possível o HPV14 (contra o papilomavirus, associado ao
após a infecção ocorrer. Porém pacientes com imu- câncer de colo uterino).
nodepressão grave deve ter sua vacinação adiada32. Mesmo não fazendo parte da rotina, a
Nos países onde a tuberculose apresen- maior parte dessas vacinas está disponível para
ta incidência elevada, a BCG é recomendada nas uso em situações especiais, nos Centros de Refe-
crianças infectadas assintomáticas. Quando já rência para Imunobiológicos Especiais – CRIE.
apresentam sintomas clínicos ou imunodepres- A implantação dos CRIEs significa uma con-
são, a vacina é contra-indicada. Em geral pacien- seqüência aos avanços nas ações de vacinação
tes infectados pelo HIV apresenta elevado risco de no País. O maior acesso da população às vaci-
contrair formas graves de sarampo. Desta forma nas trouxe um maior conhecimento acerca dos
as crianças devem receber a vacina tríplice viral eventos adversos ligados à vacinação e, também
aos doze meses. A vacinação contra poliomielite de pessoas imunodeficientes que não poderiam
deve ser feita com produto de vírus inativados32. receber os imunobiológicos disponíveis rotinei-
Toda criança infectada assintomática ou levemen- ramente. Surgiu, então, a necessidade e a res-
te sintomática que apresente contato domiciliar ou posta à essa situação por meio da vigilância dos
escolar com portador de varicela necessita receber eventos adversos e da implantação dos CRIEs,
imunoglobulina específica varicela-zoster32. a partir de 1993 nos estados do Ceará, São Pau-
As vacinas tetravalente e contra hepatite lo, Paraná e Distrito Federal31, hoje em todos
B devem ser usadas de acordo com o calendário os Estados brasileiros, com apoio da Sociedade
de vacinação de rotina32. Brasileira de Pediatria20. Além de onze vacinas
É importante considerar que mesmo vacinado, especiais42, estão disponíveis quatro imunoglo-
como a resposta pode não ser adequada, esses pacien- bulinas humanas: anti-tetânica, anti-hepatite B,
tes devem ser considerados possivelmente suscetíveis. anti-rábica e anti-varicela zóster.
Esses imunobiológicos devem beneficiar
grupos populacionais de risco que são os imu-
Vacinas que ainda não fazem parte do nodeficientes, os que apresentaram eventos
calendário vacinal de rotina do PNI adversos a alguma vacina que necessite outras
É importante que a população tenha aces- doses, aqueles aos quais se dirige profilaxia pré

311
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

e pós exposição à agentes infecciosos e aos que, esfera sexual e experimentação de drogas.
por outros motivos clínicos não podem receber Essa é também uma das razões pelas quais
produtos disponíveis na rede básica, como por o adolescente não costuma freqüentar os serviços
exemplo a vacina contra raiva obtida de células de saúde. Levar a carteira de vacina é mais raro
diplóides humanas43. ainda. Nem ele nem a mãe sabem onde a carteira
de saúde se encontra, e quando ela existe está tão
deteriorada que mal se enxerga as anotações.
Importância das vacinas combinadas Por outro lado, os profissionais de saúde
estão habituados a solicitar a carteira de vacina e
As vacinas combinadas representam gran- fazer orientação sobre o assunto somente para as
de avanço e têm excelente aceitação. São inúme- crianças menores de 5 anos.
ras as suas vantagens: administração facilitada Culturalmente, os pais estão sensibilizados
necessitando menos sessões, melhorando as taxas a levar somente as crianças menores de 5 anos para
de cobertura vacinal, principalmente em regiões vacinar. O setor público vinha também negligen-
nas quais a população tem dificuldade de acesso ciando o adolescente nas campanhas de vacinação
aos serviços de saúde. Representam menor espa- em massa, bem como na rotina dos programas1,7.
ço para armazenamento, redução do número de Todos esses fatores contribuem para que a
injeções, menor probabilidade de erros durante cobertura vacinal desse grupo seja desconheci-
a aplicação, maior agilidade do serviço e menor da, e supostamente baixa21,28,.34.
sofrimento para a criança e para a família19,39.
Apesar de todas essas vantagens, o preço
muitas vezes é fator limitante para a sua dispo- Dificuldades freqüentes na vacinação do
nibilização de forma gratuita nos serviços públi- adolescente
cos de saúde.
Várias possibilidades de combinações de O Calendário de Vacinação do adolescente
vacinas estão sendo estudadas. Uma das últimas (PNI) é apresentado no Quadro 3.
vacinas combinadas licenciada nos EUA foi a Freqüentemente observa-se grande difi-
vacina tetravalente viral: contra caxumba, sa- culdade em se obter a informação correta sobre
rampo, rubéola e varicela35,39. o estado vacinal do adolescente. Algumas orien-
tações frente a algumas dessas situações são
abordadas na seqüência.
Vacinação de Adolescentes
• O desconhecimento da situação vacinal pré-
O adolescente é considerado por alguns via: Nesse caso, na maioria das vezes a informa-
autores o grupo etário mais difícil de ser sensibi- ção verbal é duvidosa, e a melhor opção nesse
lizado a respeito da importância da vacinação12,13. momento é aplicar as vacinas preconizadas (essa
Por essa razão merece uma abordagem diferen- norma vale também para outras faixas etárias).
ciada. Uma das razões da dificuldade de vacinar Diante dessa situação a norma geral é de
o adolescente deve-se à sensação de invulnerabi- que não há necessidade de realização de testes pré-
lidade e imortalidade e dificuldade de compreen- vacinação1,7. É importante ressaltar que o fato do
der as conseqüências desse comportamento para adolescente apresentar imunidade prévia (ou pela
o seu futuro. Isso, muitas vezes, é conseqüência vacina ou pela doença) não representa risco ao re-
da influência negativa ao seu redor, da propen- ceber a vacina específica. O único inconveniente é
são a ser incentivado a correr riscos, incluindo a desperdiçar a dose aplicada. Vale lembrar que além

312
Capítulo 27 • Vacinação – uma medida de proteção

de desnecessária a realização prévia dos testes, sua Por todas as peculiaridades já mencionadas,
realização representará um custo adicional muitas as estratégias de vacinação do adolescente devem
vezes superior ao da própria vacina1,21. incluir: o trabalho educativo na escola para moti-
var os adolescentes; a integração entre a escola e
• O esquema básico de vacinação inter- a Unidade de Saúde de referência propiciando a
rompido: Nesse caso não há necessidade aplicação de vacinas na própria escola; por ocasião
de reiniciar o esquema, e sim, dar a con- das consultas médicas, ou para orientação do uso
tinuidade na seqüência com o objetivo de de anticoncepcional, não perder a oportunidade
completá-lo (essa norma vale também para para a abordagem e o encaminhamento do adoles-
outras faixas etárias)12,14. cente para a sala de vacinação16; mobilizar a im-
prensa e os veículos de comunicação em geral para
Ressaltamos que, a partir dos sete anos de divulgação de informações esclarecedoras para a
idade não é recomendada a aplicação da vacina população como um todo sobre a necessidade de
tríplice (DPT)33. A mesma deve ser substituída incluir o adolescente nos programas de vacinação.
pela dT (dupla tipo adulto)16 ou pela vacina trí- Não devemos esquecer dos adolescen-
plice acelular (dpaT)15. tes de rua e daqueles que por alguma razão
não estão na escola. Essas crianças, com ele-
• Necessidade do consentimento dos pais: vada freqüência, encontram-se incluídas em
Alguns serviços de saúde deixam de atender o grupos de risco, por estarem ociosas, nas ruas
adolescente porque o mesmo não está acompa- das cidades. Grande parte desse grupo tem di-
nhado dos pais ou responsáveis, e muitas vezes ficuldade de acesso aos serviços de saúde1,13.
perdem a oportunidade de ajudá-lo em situação
de risco importante. O atendimento do adoles- • Vacinação da Adolescente Grávida: A gravi-
cente deve ser considerado como oportunidade dez na adolescência representa um importan-
ímpar para a adoção de medidas de prevenção te e crescente problema de saúde pública. Por
e detecção dos mais diferentes agravos. isso é fundamental incluir esse grupo dentro
de um enfoque especial em relação à imuniza-
Com relação às vacinas para o adolescen- ção20. A adolescente grávida deve ser vacinada
te, o Centro de Vigilância Epidemiológica e a com toxóides (difteria e tétano), e vacinas ina-
Comissão Permanente de Assessoramento em tivadas. A gestante não pode receber vacinas
Imunizações da Secretaria de Estado da Saúde de vírus vivo, uma vez que há possiblidade de
de São Paulo recomendam16: causar danos ao feto. O esquema de vacinação
da gestante está apresentado no Quadro 4.
- O adolescente, desde que identificado como
capaz de se responsabilizar pela sua saúde e
cuidados com seu corpo, tem o direito de Qualidade do Imunobiológico
ser vacinado com os produtos próprios para
a idade, não se exigindo a presença e/ou au- No Ceará, desde 1987, todos os equipa-
torização dos pais ou responsáveis; mentos onde são armazenados os imunobiológi-
- Em situações consideradas de risco (por cos o são de uso exclusivo. Esses refrigeradores
exemplo, mordeduras de animais, ferimen- passaram a dispor de termômetros para facilitar
tos graves) procede-se a vacinação e ime- a avaliação e a regulação da temperatura no seu
diatamente providenciar a comunicação e interior. Essa foi uma decisão embasada na ne-
presença de pais e/ou responsáveis16. cessidade de manter a conservação das vacinas,

313
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

no nível local, entre dois a oito graus centígrados de fato cumpre o objetivo de controlar, eliminar
e, assim, assegurar qualidade, eficácia da respos- ou erradicar doenças. Mesmo contemplando as
ta imunológica nos indivíduos que as recebe. diferenças regionais, eles devem reunir algumas
Outras medidas adotadas para conservar características em comum8,19.
a eficácia dos produtos têm sido: organização • Ser eficaz, quer dizer, que realmente proteja
das “vacinas do dia” em isopor com tempera- contra as doenças às quais se propõe.
tura controlada, impedindo a freqüente aber- • Ser sensível: simplificando ao má�imo as do-
tura da geladeira, o que induziria aumento da ses e as visitas necessárias aos serviços, com
temperatura interior; cumprimento nos prazos recomendações claras e concisas.
de validade, inclusive quanto ao período de uso • Ser amplamente aceito pelos profissionais de
após abertura dos frascos. Nesse caso observar saúde e pela sociedade.
as seguintes recomendações28: descartar, 24 ho- • Ser adaptado às necessidades da população e
ras após abertura, os frascos que não contenham suas características epidemiológicas, demo-
agentes bacteriostáticos (os que contêm esses gráficas e sócio-econômicas.
agentes podem ser usados até o prazo de vali- • Ser unificado na área geográfica no qual se aplica.
dade registrado, desde que se utilizem agulhas • Ser atualizado permanentemente com base
estéreis na sua manipulação); descartar oito ho- no desenvolvimento de novas vacinas, apare-
ras após reconstituição a vacina tríplice viral, cimento de novas doenças, recrudescimento
30 minutos a vacina contra varicela e 24 horas ou desaparecimento de outras já existentes19.
após reconstituição, a vacina tetravalente (DTP
– Hib). As medidas para o descarte dos produtos O Brasil tem um programa de vacinação que
também devem ser observadas quando ocorrem tem grandes méritos, entretanto há o que melhorar,
acidentes que alterem a temperatura para me- principalmente em relação às coberturas vacinais de
nos de zero ou para mais de 15 graus no interior varias regiões do país. Só conseguiremos avançar se
dos equipamentos. Quando essa alteração for somarmos os esforços das entidades governamen-
superior a um período de 48 horas é importan- tais, dos profissionais da área da saúde, da mídia, das
te considerar a quantidade de imunobiológicos lideranças comunitárias e da população em geral.
armazenados para tomar uma decisão eficiente.
Se o número de vacinas for pequeno, elas devem
ser descartadas. Porém se for uma quantidade Mobilização e Participação Social pela
grande, deve-se proceder análise da potência dos Vacinação Universal
produtos para decidir sobre sua inutilização28.
Neste caso deve ser contada a coordenação mu- As metas de coberturas vacinais não têm
nicipal ou estadual de vacinação para as orienta- sido alcançadas em algumas localidades bra-
ções apropriadas ao descarte dos produtos. sileiras, seja por difícil acesso seja pela crença
Além dessas medidas de caráter organiza- que as doenças imunopreveníveis já estão sob
tivo, também se impõem aquelas de qualidade na controle. Mesmo em alguns grandes municípios
habilidade profissional no momento do preparo é possível detectar um certo desinteresse pela
e da administração do produto e na observação vacinação que já foi “paixão” de muitos como
da necessidade do indivíduo que o receberá, in- disse Reinaldo Martins no livro dos 30 anos do
cluindo avaliação do seu estado de saúde. PNI, 2003 “A vida e a história nos ensinam que o
Calendário vacinal ideal que se levam décadas (ou séculos) para construir
pode ser destruído num dia”20.
O calendário vacinal ideal é aquele que Por isso, é preciso que não deixemos apagar

314
Capítulo 27 • Vacinação – uma medida de proteção

essa chama do compromisso, do crédito à vacina- de saúde, valorizando o beneficio da vacina na pre-
ção. Logo, além do conhecimento técnico apri- venção de doenças, utilizando formas de comuni-
morado, da indicação de cada profissional para cação mais locais respeitando as características das
vacinar crianças, adolescentes, adultos e idosos é populações. É preciso compreender que as mudan-
preciso que a população seja mobilizada, seja in- ças na rotina da vacinação são baseadas na situação
formada e esclarecida para uma participação cons- epidemiológica, na oferta dos imunobiológicos e na
ciente em busca da proteção à saúde das pessoas. capacidade de agir de cada País, de cada pessoa.
É preciso honrar a referência do ex Ministro O programa de vacinação do Brasil tem
da Saúde Waldyr Arcoverde, o PNI é a expressão grandes méritos, embora haja ainda o que me-
maior da utilização dos meios de comunicação, como lhorar, principalmente em relação às cobertu-
veículos para o despertar de uma nova consciência ras vacinais em municípios de várias regiões do
sobre a saúde e a qualidade de vida das pessoas20. país. Só conseguiremos avançar se somarmos os
Porém, além da mídia de massa, é importan- esforços das entidades governamentais, dos pro-
te uma ação multisetorial saúde, trabalho, educação fissionais da área da saúde, da mídia, das lide-
e multidisciplinar nas ESF e apoio dos conselhos ranças comunitárias e da população em geral.

Idade Vacinas Doses Doenças evitadas


BCG - ID Dose única Formas graves de tuberculose
Ao nascer
Vacina contra hepatite B (1) 1ª dose Hepatite B
1 mês Vacina contra hepetite B 2ª dose Hepatite B
VOP (vacina oral contra pólio) 1ª dose Poliomielite (paralisia infantil)
2 meses Difteria, tétano, coqueluche, meningite e outras in-
Vacina tetravalente (DTP + Hib) (2) 1ª dose
fecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b
VOP (vacina oral contra pólio) 2ª dose Poliomielite (paralisia infantil)
4 meses Difteria, tétano, coqueluche, meningite e outras in-
Vacina tetravalente (DTP + Hib) 2ª dose
fecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b
VOP (vacina oral contra pólio) 3ª dose Poliomielite (paralisia infantil)
Difteria, tétano, coqueluche, meningite e outras in-
6 meses Vacina tetravalente (DTP + Hib) 3ª dose
fecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b
Vacina contra hepatite B 3ª dose Hepatite B
9 meses Vacina contra febre amarela (3)
Dose única Febre amarela
12 meses SRC (tríplice viral) Dose única Sarampo, rubéola e caxumba
VOP (vacina oral contra pólio) reforço Poliomielite (paralisia infantil)
15 meses
DTP (tríplice bacteriana) 1º reforço Difteria, tétano e coqueluche
DTP (tríplice bacteriana) 2º reforço Difteria, tétano e coqueluche
4 - 6 anos
SRC (tríplice viral) reforço Sarampo, rubéola e caxumba
6 a 10 anos BCG - ID (4)
reforço Formas graves de tuberculose
10 anos Vacina contra febre amarela reforço Febre amarela
(1)
A primeira dose da vacina contra a hepatite B deve ser administrada na maternidade, nas primeiras 12 horas de vida do récem-nascido.
O esquema básico se constitui de 03 (três) doses, com intervalos de 30 dias da 1ª para a 2ª dose e 180 dias da 1ª para a 3ª dose.
(2)
O esquema de vacinação atual é feito aos 2, 4 e 6 meses de idade com a vacina Tetravalente e dois reforços com Tríplice Bacteriana
(DTP). O primeiro reforço aos 15 meses e o segundo entre 4 e 6 anos.
(3)
A vacina contra febre amarela está indicada para crianças a partir dos 9 meses de idade, que residem ou que irão viajar para área endê-
mica (estados: AP, TO, MA, MT, MS, RO, AC, RR, AM, PA, GO e DF), área de transição (alguns municípios dos estados: PI, BA, MG, SP,
PR, SC e RS) e área de risco potencial (alguns municípios dos estados: BA, ES e MG. Se viajar para áreas de risco, vacinar contra Febre
amarela 10 (dez) dias da viagem.
(4)
Em alguns estados, esta dose não foi implantada. Aguardando conclusão de estudos referentes à efetividade da dose de reforço.
Quadro 1. Calendário vacinal da Criança (PNI/SVES/MS)17.

315
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Dose 1ª dose 2ª dose DF), área de transição (alguns municípios dos estados: PI, BA,
MG, SP, PR, SC e RS) e área de risco potencial (alguns muni-
Preconizado 2 meses 4 meses cípios dos estados: BA, ES e MG. Em viagem para essas áreas,
Limites Mínimo e máximo vacinar 10 (dez) dias antes da viagem.
(4)
Adolescente que tiver duas doses da vacina Tríplice Viral
Dose 1ª dose 2ª dose (SCR) devidamente comprovada no cartão de vacinação, não
Semanas 6 - 14 14 - 24 precisa receber esta dose.
(5)
Adolescente grávida, que esteja com a vacina em dia, mas re-
1M 1/2 - 3M e 3M e 7 dias - 5M cebeu sua última dose há mais de 5 (cinco) anos, precisa receber
Meses
7dias 1/2 uma dose de reforço. Em caso de ferimentos graves, a dose de
reforço deve ser antecipada para cinco anos após a última dose.
Quadro 2. Esquema de vacinação contra Rotavirus preconizado no
Brasil(PNI/SVS/MS)17. Quadro 3. Calendário Básico de Vacinação do adolescente17.

Calendário de Vacinação do Adolescente (1) Vacinas Esquema


(PNI/SVES/MS)
Hepatite A: 2 doses com
Doenças intervalo de 6 meses
Idade Vacinas Doses
Evitadas
Hepatite B: 3 doses com
Contra intervalo de 1 mês entre a 1ª
Hep B 1ª dose
Hepatite B Anti-Hepatite A ou B e a 2ª e de 5 meses entre a 2ª
Contra ou A e B e a 3ª
dT (2) 1ª dose Difteria e Hepatite A e B: 3 doses com
De 11 a 19 anos Tétano intervalo de 1 mês entre a 1ª
(na primeira
dose Contra Febre e a 2ª e de 5 meses entre a 2ª
visita ao serviço FA (3)
inicial Amarela e a 3ª
de saúde
Contra Com a vacina completa,
dose Sarampo, reforços a cada 10 anos com a
SCR (4) dupla bacteriana tipo adulto
única Caxumba e
Rubéola (dT) devem ser realizados
(não há contra indicação para
1 mês após a
Contra a gestante)
1ª dose contra Hep B 2ª dose
Hepatite B Anti-Difteria e Tétano Durante a gestação: mesmo
Hepatite B
que esteja com a vacina em
6 meses após a dia, mas que tenha recebido
Contra
1ª dose contra Hep B 3 ª dose a última dose há mais de 5
Hepatite B
Hepatite B anos, uma dose da vacina
2 meses após a dupla bacteriana tipo adulto
Contra deve ser aplicada (dT)
1ª dose contra
dT 2ª dose Difteria e
Difteria e Anti-Influenza (gripe) Dose única anual
Tétano
Tétano
Anti-Meningocócica C
Dose única
4 meses após a (conjugada)
Contra
1ª dose contra Quadro 4. Calendario de Vacinação da Gestante.
dT 3 ª dose Difteria e
Difteria e Fonte: SBIM31 (Sociedade Brasileira de Imunizações) - 2005/
Tétano
Tétano 2006.
Contra
dT (5) reforço Difteria e
a cada 10 anos Tétano
por toda a vida
Contra Febre
FA reforço
Amarela
(1)
Adolescente que não tiver comprovação de vacina anterior,
seguir este esquema. Se apresentar documentação com esquema
incompleto, completar o esquema já iniciado.
(2)
Adolescente que já recebeu anteriormente 03 (três) doses ou
mais das vacinas DTP, DT ou dT, aplicar uma dose de reforço.
É necessário doses de reforços da vacina a cada 10 anos. Em
ferimentos graves, antecipar a dose de reforço para 5 anos após a
última dose. O intervalo mínimo entre as doses é de 30 dias.
(3)
Adolescente que residem ou que for viajar para área endêmica
(estados: AP, TO, MA, MT, MS, RO, AC, RR, AM, PA, GO e

316
Capítulo 27 • Vacinação – uma medida de proteção

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318
Capítulo 28
Conduta para a proteção dos identifica-se o bacilo de Koch nas secreções das
contatos com doenças vias respiratórias5.
Uma das mais importantes formas de im-
transmissíveis
pedir a transmissão da doença é tratar o pacien-
eliane cesário MaluF te bacilífero. Com o tratamento antimicrobiano
Jocileide sales caMPos
eficaz o doente deixa de ser bacilífero num curto
espaço de tempo, em geral 15 dias após o início
da terapêutica.
Apresentaremos a seguir a conduta a ser
Introdução adotada em relação aos contatos de pacientes
com tuberculose (bacilífero), em diferentes cir-

A o atender um paciente com doença infec-


to-contagiosa, é de grande importância
que o médico, além de tratar o paciente, oriente
cunstâncias:
A quimioprofilaxia da tuberculose con-
siste na administração de isoniazida em pessoas
as medidas que devem ser adotadas para inter- infectadas pelo bacilo (quimioprofilaxia secun-
romper a cadeia de transmissibilidade e evitar dária) ou não (quimioprofilaxia primária), na
a ocorrência de casos secundários. É possível dosagem de 10mg/kg/dia (até 300mg), diaria-
evitar a disseminação de várias doenças orien- mente, por um período de 6 meses6. Está reco-
tando medidas preventivas para os contatos do mendada nas seguintes situações8:
paciente. Entende-se por “contatos” ou “comu- • Contactantes de paciente bacilífero, me-
nicantes” aquelas pessoas que tiveram contato nores de 15 anos, não vacinados com BCG,
íntimo com o caso suspeito de doença infecto reatores à prova tuberculínica, com 10mm
contagiosa estando, portanto, sob o risco de ad- ou mais, com exame radiológico normal e
quirir a doença. sem sintomatologia clínica compatível com
Destacaremos a seguir as principais doen- tuberculose. Na eventualidade de contágio
ças sobre as quais o médico tem um papel fun- recente, a sensibilidade à tuberculina pode
damental de intervir e evitar o aparecimento de não estar exteriorizada, sendo negativa a
surtos e epidemias, e que, com exceção da vari- resposta. Neste caso, deve-se repetir a prova
cela, são de notificação obrigatória. em 40 a 60 dias. Se a resposta for positiva,
indica-se a quimioprofilaxia; se negativa,
vacina-se com BCG;
Tuberculose • Recém-nascidos coabitantes de foco bacilífe-
ro – administra-se a quimioprofilaxia por três
Uma criança, mais frequentemente, ad- meses e, após esse período, faz-se a prova tu-
quire a infecção tuberculosa a partir de seus con- berculínica na criança. Se reatora, mantém-se a
tatos mais íntimos pais, familiares, pessoas que isoniazida até completar 6 meses; se não reatora,
trabalham no ambiente no qual a criança perma- suspende-se a droga e aplica-se a vacina BCG;
nece várias horas do dia. A criança doente, sob o • Indivíduos com viragem tuberculínica re-
aspecto epidemiológico da transmissão é menos cente (até 12 meses), isto é, que tiveram um
importante que o adulto tuberculoso, porque aumento na resposta tuberculínica de, no mí-
somente em cerca de 15% dos casos pediátricos nimo, 10mm;

319
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• População indígena – neste grupo, a quimio- rante 10 dias, na seguinte dosagem:


profilaxia está indicada em todo o contato de - Crianças: 40mg (SMZ) / kg / dia e 8mg
tuberculose bacilífera, reator forte ao PPD, in- (TMP) / kg / dia. Com a ressalva de que
dependente da idade e estado vacinal, após ava- a segurança e a eficácia de SMZ + TMP
liação e, através de baciloscopia e exame radio- nos menores de 2 meses não está bem
lógico, afastada a possibilidade de tuberculose; definida;
• Imunodeprimidos por uso de drogas ou por - Adultos e crianças com mais de 40 kg:
doenças imunodepressoras e contatos intra- 800mg (SMZ)/dia e 160mg (TMP)/dia, de
domiciliares de tuberculosos, ficam sob crite- 12 em 12 horas.
riosa decisão médica. • A imunoglobulina humana não tem valor
profilático ou terapêutico comprovado.

Coqueluche
Indicações de quimioprofilaxia
Doença altamente transmissível na fase
catarral, antes mesmo da tosse paroxística; após • Comunicantes íntimos menores de 1 ano, in-
a terceira semana de evolução, a transmissão é dependente da situação vacinal e de apresen-
quase nula. A transmissão se dá através do con- tar quadro de tosse.
tato direto com secreções das mucosas respirató- • Comunicantes íntimos menores de 7 anos
rias de pessoas infectadas. não vacinados, com situação vacinal desco-
É de extrema importância a avaliação da nhecida ou que tenham tomado menos de 4
situação vacinal dos contatos9,10: doses da vacina DTP ou DTPa.
• Contatos menores de sete anos: • Comunicantes adultos que trabalham em
- Com a vacinação completa: se a última profissões que envolvem o contato direto e
dose foi há mais de 3 anos, aplicar um re- freqüente com menores de 1 ano ou imuno-
forço da DPT. deprimidos.
- Com a vacinação incompleta: comple- • Comunicantes adultos que residam com me-
tar o esquema básico. Para os menores de nores de 1 ano.
um ano, indica-se a vacina tetravalente • Comunicantes íntimos de pacientes imuno-
(DTP+Hib) deprimidos.
• Contatos maiores de sete anos: A vacina trí-
plice não é mais recomendada a partir de sete
anos de idade. Difteria

A transmissão da difteria se dá através do


Medicamentos indicados para a quimioprofilaxia 8
contato com o doente ou portador (via respira-
tória). O período de transmissibilidade é em ge-
• O medicamento de escolha é a eritromicina ral de 2 semanas podendo ocorrer a presença do
(de preferência o estolato), na dose de 40 a 50 portador crônico. A antibioticoterapia adequada
mg/kg/dia (máximo de 2 gramas/dia), dividi- interrompe imediatamente a disseminação do
da em 4 doses iguais, durante 10 dias. Corinebacterium diphteriae11.
• No caso de intolerância à eritromicina pode- Ao se identificar os comunicantes, o pri-
se usar sulfametoxazol + trimetoprim (SMZ meiro passo é verificar a situação vacinal, con-
+ TMP), por via oral, de 12 em 12 horas, du- siderando as doses registradas na Caderneta da

320
Capítulo 28 • Conduta para a proteção dos contatos com doenças transmissíveis

Criança, se necessário, deve-se iniciar ou atuali- - Crianças: 40 a 50mg/kg/dia (máxima de


zar o esquema vacinal com a DTP, DTP+Hib ou 2 gramas/dia), dividida em 4 doses iguais,
dT, de acordo com as orientações a seguir11: durante 7 dias, por via oral;
- Adultos: 500mg, de 6/6 horas, durante 7
História Menores de 7 anos dias, por via oral.
7 anos ou mais
vacinal < 1 ano ≥ 1 ano • Medicamento alternativo – penicilina G
Iniciar o benzatina
esquema Iniciar o Iniciar o
Não
com esquema esquema com
vacinados
tetravalente com DTP dT Devido às dificuldades operacionais para
DTP+Hib o uso da eritromicina, em função da dose indica-
Completar da, tempo de uso e o fato da pessoa não apresen-
o esquema Completar Completar o tar sintomas, a penicilina G benzatina constitui
Vacinação
com o esquema esquema com
incompleta
tetravalente com DTP a dT alternativa para a eritromicina.
DTP+Hib A penicilina G benzatina deve ser aplicada
Aplicar uma em unidades de saúde adequadas para atender a
Aplicar dose de DTP dose de dT ocorrência de um possível choque anafilático.
Vacinação com reforço, se esta foi como reforço,
completa feita há mais de cinco se a última dose Recomenda-se a aplicação em dose única,
anos foi aplicada há por via intramuscular, nos seguintes esquemas:
mais de 5 anos
• Crianças com menos de 30kg: 600.000 UI;
Quadro 1. conduta em contato com difteria (fonte Ref. 11) • Adultos e crianças com 30 kg ou mais:
1.200 .000 UI.
• Os comunicantes domiciliares e escolares, • Controle do estado de portador – duas sema-
adultos ou crianças, não vacinados, inadequa- nas depois de completado o esquema com an-
damente vacinados ou com situação vacinal tibiótico, deverá ser colhida nova amostra de
desconhecida deverão receber uma dose da secreção da orofaringe para cultura em meios
vacina DTP (em crianças menores de 7 anos) apropriados para Corynebacterium diphtheriae.
ou de dT (em crianças com 7 anos ou mais Se o resultado for positivo, deverá ser feito
e adultos) e serem orientados como proceder tratamento adicional com eritromicina, du-
para completar o esquema de vacinação. rante dez dias. Se não houver resposta, outros
• Os comunicantes, adultos ou crianças, que antimicrobianos ativos contra o bacilo difté-
receberam há mais de cinco anos o esquema rico (clindamicina, rifampicina, quinolona,
básico ou dose(s) de reforço, deverão receber por exemplo) deverão ser utilizados, supon-
um dose de reforço de DTP (em crianças me- do-se ou confirmando-se ter havido (o que é
nores de 7 anos) ou de dT (em crianças com 7 raro) resistência à eritromicina.
anos ou mais e adultos), Quadro 1.
• O soro antidiftérico não deve ser administra-
do com finalidade profilática12. Meningite Meningocócica

A transmissão ocorre de pessoa a pessoa,


Quimioprofilaxia (indicada para eliminar o estado através de secreções oronasais de portadores
de portador)8 (mais frequentemente) ou doentes, mediante
contato direto ou por inalação de gotículas ex-
• Medicamento de escolha – eritromicina, de pelidas durante o ato de tossir, espirrar ou falar.
acordo com a orientação a seguir: A quimioprofilaxia, muito embora não assegure

321
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

efeito protetor absoluto e prolongado, tem sido • Para as fai�as etárias menores, nas quais se
adotada como eficaz medida na prevenção de ca- inclui o grupo mais suscetível às meningites,
sos secundários, devendo ser administrada em a eficácia das vacinas polissacarídicas é mui-
dose adequada e simultaneamente a todos os to reduzida, e a duração da imunidade é de
contatos íntimos, no prazo de 48 horas da expo- aproximadamente dois anos.
sição à fonte de infecção5. Agente
Dose Intervalo Duração
Os contatos íntimos de um paciente com etiológico

meningite meningocócica deverão receber qui- Adultos - 600mg/


12/12h 2 dias
dose
mioprofilaxia de preferência nas primeiras 24
Crianças
horas após o diagnóstico do caso índice (Qua- 12/12h
> 1 mês até 10
(dose
dro 2). A quimioprofilaxia está indicada para anos 2 dias
Neisseria máxima
Dose - 10mg/kg/
contatos domiciliares e outros contatos íntimos Meningitidis
dose
de 600mg)
prolongados que permitam a transmissão dire- Crianças 12/12h
ta do microorganismo. No caso de domicílios < 1 mês (dose
2 dias
coletivos como internatos, quartéis e creches, a Dose - 5mg/kg/ máxima
dose de 600mg)
quimioprofilaxia deve ser restrita às pessoas que
Quadro 2. Esquema de rifampicina.
compartilham o mesmo quarto. Em decorrência
disto, excluem-se da quimioprofilaxia os colegas
de trabalho, de sala de aula e outros contatos6. Meningite por Haemophilus Influenzae B (Hib)
É imprescindível a vigilância dos contatos
por um período mínimo de 10 dias. Sua transmissão ocorre de pessoa a pessoa,
É importante atentar para: de forma semelhante à meningite meningocócica.
• A profila�ia antibiótica não é indicada para A quimioprofilaxia (Quadro 3) só deverá
pessoal médico ou de enfermagem que te- ser realizada se houverem outras crianças meno-
nham atendido casos de meningite bacteria- res de seis anos, além do doente, no grupo fami-
na, a menos que tenham tido exposição às liar ou domiciliar, ou em creches e maternais.
secreções respiratórias, como na realização de Em nenhum outro tipo de contato, como em es-
respiração boca a boca e/ou entubação8. colas, ônibus, trabalho, rua, etc, está indicada a
• A quimioprofila�ia é preconizada também quimioprofilaxia8.
para pacientes antes da alta hospitalar, no mes-
mo esquema preconizado para os contatos (o
Agente
tratamento da meningite meningocócica com Dose Intervalo Duração
etiológico
penicilina não erradica o estado de portador).
Adultos - 600mg/
• O uso das vacinas polissacarídicas como prá- 24/24h 4 dias
dose
tica de rotina da profilaxia da doença me- Crianças
24/24h
ningocócica não é recomendado pelo grupo > 1 mês até 10
(dose
Haemo- anos 4 dias
técnico do Ministério da Saúde, por não ser philus Dose - 20mg/kg/
máxima
de 600mg)
reconhecida a eficácia dessas vacinas no con- influenzae dose
trole da doença8. Crianças 24/24h
< 1 mês (dose
• A vacinação está indicada em situação de 4 dias
Dose - 10mg/kg/ máxima
surto ou epidemia, em que o sorogrupo pre- dose de 600mg)
valente foi identificado. Atualmente o Minis- Observação: criança com o esquema vacinal completo contra Ha-
tério da Saúde só dispõe da vacina contra os emophilus influenzae tipo b não precisa receber quimioprofilaxia,
exceto nos casos de ser imunocomprometida.
menigococos A8. Quadro 3. Esquema de rifampicina.
Fonte: Ref. 11

322
Capítulo 28 • Conduta para a proteção dos contatos com doenças transmissíveis

Sarampo - Recém-nato a termo, exposto a varicela 2


ou mais dias após o nascimento, inclusi-
O Sarampo é doença contagiosa, de trans- ve aquele cuja mãe desenvolveu exantema
missão respiratória. A transmissão ocorre no pe- após 48 horas do parto: não está indicado o
ríodo de dois dias que antecede o aparecimento uso de imunoglobulina.
do exantema até o sexto dia do aparecimento do
mesmo1. Contudo, as crianças nascidas antes da 28ª
• Vacinação de bloqueio limitada aos contatos: semana gestacional (e/ou que pesam menos de
diante de uma pessoa com sinais e sintomas do 1000 gramas), que ainda precisam ficar hospita-
sarampo, deve ser realizado o bloqueio vacinal lizadas e estão expostas à varicela devem receber
dirigido aos contatos do caso suspeito11. imunoglobulina humana anti-varicela zoster
(125 U). Os recém-natos pré-termo, após 28 se-
A vacinação de bloqueio fundamenta-se manas de gestação, que estão expostos, no hospi-
no fato de que a vacina consegue imunizar o sus- tal, e cujas mães têm história negativa de varice-
cetível em prazo menor que o período de incu- la, também devem receber a imunoglobulina.
bação da doença. Em função disso, a vacina deve Durante o período de transmissão da do-
ser administrada dentro de 72 horas após a ex- ença, a mãe com varicela deverá esgotar o leite,
posição. A vacinação de bloqueio deve abranger o qual deverá ser administrado por outra pessoa
as pessoas do mesmo domicílio do caso suspei- ao recém-nascido11.
to, vizinhos próximos, creches ou, quando for
o caso, pessoas da mesma sala de aula, mesmo • Proteção da população: Afastar os acometi-
quarto de alojamento, sala de trabalho, etc. Se dos das atividades desenvolvidas na escola,
aplicada em crianças menores de 1 ano, esta va- creche, trabalho, etc., por um período de 10
cina não será considerada como dose válida. Aos dias, contados a partir da data de aparecimen-
12 meses, a criança deverá ser revacinada com a to do exantema.
vacina tríplice viral11.
Já existem publicações de experiências
com resultados positivos do uso da vacina con-
Varicela tra a varicela em contatos de casa ou escola/ma-
ternal (vacinação de bloqueio) dentro de 3 dias
Doença altamente contagiosa cuja trans- do aparecimento do prurido no caso índice2.
missão ocorre predominantemente por via res-
piratória. O período de transmissão ocorre des-
de 1 a 2 dias antes do início do aparecimento das Hepatite A
lesões, até se tornarem crosta (em média 6 dias).
Por isso, é importante o afastamento do doente A hepatite A é uma doença viral, aguda, fre-
dos ambientes de aglomeração até o desapareci- qüentemente benigna. Seu perfil epidemiológico
mento das crostas11. varia com as condições higiênico-sanitárias de
• Conduta para os contatos11: cada região. Atualmente têm sido descritos casos
- Recém-nato cuja mãe teve varicela no perí- de hepatite A fulminante, sendo que em algumas
odo de 5 dias antes do parto até 2 dias após localidades, como na Argentina, a doença é a pri-
o mesmo: aplicar imunoglobulina humana meira causa de transplante hepático na infância.
anti-varicela zoster o mais rápido possível, A transmissão se dá mais frequentemen-
logo após o parto. te pela via fecal-oral. O agente infeccioso se en-

323
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

contra nas fezes dos indivíduos infectados e sua meiras doze horas de vida e completar o es-
concentração chega ao máximo 1 a 2 semanas quema de vacinação aos 2 e 6 meses, além
antes de iniciarem os sintomas e diminuem ra- de receber imunoglobulina 0,5ml, IM, tam-
pidamente após o surgimento da disfunção he- bém nas primeiras 12 horas de vida11.
pática ou das manifestações clínicas12. – Recém-nato de mãe HBs Ag negativo deve
receber as doses preconizadas da vacina (0,
um e 6 meses de vida)11.
Proteção individual e coletiva
Como a maioria dos serviços de pré-natal
Em situações de surtos de hepatite A, que em nosso meio não faz de rotina a investigação
são de transmissão fecal-oral, logo no primeiro sorológica para hepatite B, o ideal é que a vaci-
caso é importante avisar os familiares e a comuni- na contra a hepatite B seja aplicada na mater-
dade, visando cuidados com a água de consumo, nidade, nas primeiras horas de vida da criança.
manipulação de alimentos e vetores mecânicos11. A literatura demonstra que mesmo usando so-
• Comunicantes: é recomendado o isolamen- mente a vacina o índice de proteção é elevado
to/afastamento do paciente de suas atividades (em torno de 90%), em casos de mãe HBs Ag
normais (principalmente se forem crianças positivo (em situações onde a imunoglobulina
que freqüentam creches, (pré-escolas ou es- não é disponível)11.
cola) durante as primeiras duas semanas da Os parceiros sexuais e comunicantes
doença, e não mais que um mês após início domiciliares susceptíveis devem ser investiga-
da icterícia. Esta situação deve ser reavaliada dos, através de marcadores sorológicos para o
e prolongada em surtos em instituições que vírus da hepatite B, e vacinados contra a he-
abriguem crianças sem o controle esfincteria- patite B, se indicado. Iniciar imediatamente o
no (uso de fraldas), onde a exposição entérica esquema de vacinação contra a hepatite B nos
é maior. Nestes casos de hepatite também se não vacinados ou completar esquema dos que
faz necessária a disposição adequada de fezes, não completaram (não aguardar o resultado
urina e sangue, com os devidos cuidados de dos marcadores sorológicos). Indica-se utili-
desinfecção e máxima higiene. Várias expe- zar preservativo de látex (camisinha) nas rela-
riências com resultados positivos têm sido ções sexuais7.
publicadas sobre a eficácia da vacinação de
bloqueio (utilizando a vacina de vírus A ina- • Aleitamento materno: o HBsAg pode ser
tivado) nestas situações3,4. encontrado no leite materno de mães HBsAg
positivas; no entanto, a amamentação não traz
riscos adicionais para os seus recém-nascidos,
Hepatite B desde que tenham recebido a primeira dose
da vacina e imunoglobulina nas primeiras 12
A hepatite B pode ser transmitida através horas de vida11.
do sangue e hemoderivados, do sêmen e secreção
vaginal. É considerada uma doença grave que Os Quadros 4 e 5 mostram algumas indi-
pode se tornar crônica, evoluindo para cirrose cações da profilaxia da hepatite B.
ou câncer hepático. A imunoglobulina humana anti-hepati-
• Conduta frente aos contatos: te tipo B (IgHAHB) é indicada para pessoas
– Recém-nato de mãe HBs Ag positivo deve não vacinadas após exposição ao vírus da he-
receber a primeira dose da vacina nas pri- patite B.

324
Capítulo 28 • Conduta para a proteção dos contatos com doenças transmissíveis

Grupos Imunobiológicos Observações


Vítimas de abuso sexual Aplicar o mais precocemente possível, no máxi-
mo 14 dias após exposição
Comunicantes sexuais de caso agudo de Aplicar o mais precocemente possível, no máxi-
Hepatite B mo 14 dias após exposição
IgHAHB +
RN de mãe sabidamente HBsAg+ vacina Nas primeiras 12h após o
nascimento
RN (com peso ≤ 2000g ou ≤ 34 sem de gestação) Nas primeiras 12h após o nascimento, esquema
de mãe sabidamente HBsAg+. RN de mãe simul- de quatro doses da vacina (0, 1, 2 e 6 meses)
taneamente HIV e HBsAg+
Quadro 04. Conduta na exposição ao HIV.
(fonte Ref. 11)

Situação vacinal e sorológi- Paciente-fonte


ca do profissional de saúde HBsAg desconhecido ou
exposto HBsAg+ HBsAg+
não testado
Não vacinado IgHAHB + iniciar vaci- iniciar vacinação iniciar vacinação1
nação
Previamente vacinado
• Com resposta vacinal conhe- Nenhuma medida especí- Nenhuma medida Nenhuma medida espe-
cida e adequada (a 10mUl/ml) fica específica cífica
• Sem resposta vacinal após a IgHAHB + 1 dose da vaci- Iniciar nova série de Iniciar nova série de vaci-
1ª série (3 doses) na contra Hepatite B vacinas (3 doses) nas (3 doses)2
• Sem resposta vacinal após a IgHAHB (2x)2 Nenhuma medida IGHAMB (2x)2
2ª série (6 doses) específica
• Resposta vacinal desconhe- Testar o profissional de Testar o profissional de
cida saúde saúde
Se a resposta vacinal ade- Se a resposta vacinal ade- Se a resposta vacinal ade-
quada: nenhuma medida quada: nenhuma medida quada: nenhuma medida
específica específica específica
Se a resposta vacinal inade- Se a resposta vacinal inade- Se a resposta vacinal ina-
quada: IgHAHB + 1 dose quada: fazer nova série de dequada: fazer nova série
da vacina contra Hepatite vacinação de vacinação
Quadro 05. Recomenda-se para profilaxia da Hepatite B após exposição ocupacional a material biológico* (Recomendações conjuntas
PNHV e PNI, pois inclui a necessidade de testagem para conhecimento do status sorológico dos profissionais que já foram vacinados, uma
vez que até 10% dos vacinados podem não soroconverter para anti-HBs+ após o esquema vacinal completo).
*
Profissionais que já tiveram Hepatite B estão imunes à reinfecção e não necessitam de profilaxia pós-exposição, tanto a vacinação quanto a
imunoglobulina devem ser aplicadas dentro do período de 7 dias após o acidente, idealmente, nas primeiras 24h.

AIDS Profilaxia da transmissão vertical

A AIDS é um grande problema de saúde pu- As gestantes portadoras do HIV assintomáti-


blica no momento. Principais vias de transmissão11: co deverão receber, a partir da 14ª semana, a zidovu-
• Vertical (mãe -filho) antes (através da circulação dina oral (AZT) e outros anti-retrovirais (ARV), se
placentária), durante (exposição do RN ao sangue necessário. Ou seja, as gestantes serão avaliadas clí-
e secreção vaginal), e após o parto (leite materno). nica e laboratorialmente (níveis de CD4 + e carga
• Parenteral: contato com sangue e deriva- viral) para essa indicação. Se a gestante é sintomáti-
dos contaminados, uso de drogas, mediante ca e apresenta níveis de T-CD4 + < 200 cel/mm, a
transfusões, via percutânea e permucosa. terapia antiretroviral é feita independente da idade
• Sexual: contato direto com as secreções sexu- gestacional a fim de evitar prejuizos para a mulher
ais de indivíduos infectados. e o feto12. A zidovudina intravenosa deverá ser dada

325
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

a todas as parturientes desde o início do trabalho de fatores de risco implicados, especialmente aque-
parto, e mantida até a ligadura do cordão umbilical. les relacionados ao ambiente social13.
A zidovudina solução oral (xarope) deverá ser ad- A via de eliminação dos bacilos é a via aérea
ministrada para todos os recém-nascidos expostos superior sendo o trato respiratório a mais provável
ao HIV, durante 6 semanas (42 dias), devendo ter via de entrada do Mycobacterium leprae no organis-
início até oito horas de vida. As crianças cujas mães mo. Não se pode deixar de mencionar a possibili-
não receberam o AZT intravenoso deverão receber dade de penetração do bacilo pela pele com solução
o AZT oral nas duas primeiras horas de vida. Os de continuidade. Devido ao longo período de incu-
ARV vêm sendo disponibilizados, gratuitamente, bação (2 a 7 anos) a Hanseníase é menos freqüente
na rede pública de saúde desde 199411. na infância. Contudo, em áreas de alta prevalência,
a exposição precoce em focos domiciliares aumen-
ta a incidência de casos nessa faixa etária11.
Assistência médica às gestantes/parturientes e
puérperas e à criança verticalmente exposta ao HIV
Conduta frente aos contatos8
A primeira ação diz respeito ao oferecimento
no pré-natal do teste anti-HIV, com aconselhamento É considerado contato toda e qualquer
pré e pós-teste para todas as gestantes10; para as par- pessoa que resida ou tenha residido com o doen-
turientes, no momento do parto e para as nutrizes, te nos últimos 5 anos.
quando for o caso. As mulheres portadoras do HIV Deve-se fazer o exame de todos os contatos.
devem ser aconselhadas a não amamentar. E a lacta- Afastado o diagnóstico de Hanseníase o contato é li-
ção deve ser inibida nas puérperas comprovadamen- berado. O contato deve receber 2 doses de BCG com
te HIV+. A fórmula infantil deverá ser instituída intervalo de 6 meses entre as doses. Quando existe a
para todos os recém-nascidos expostos ao HIV. cicatriz da BCG, esta é considerada como primeira
É importante lembrar que a transmissão dose, independente da data que foi aplicada. Na dú-
perinatal é a principal fonte de infecção pelo HIV vida aplicar as duas doses recomendadas5.
na população infantil. Estima-se que 20 a 40% das Uma vez identificados, os contatos do
crianças nascidas de mães HIV positivas tornam- portador de hanseníase devem ser submetidos
se infectadas na gestação, durante o trabalho de ao exame dermatoneurológico e se o diagnóstico
parto, no parto ou através da amamentação. de hanseníase for confirmado devem receber o
Vários estudos têm demonstrado uma re- tratamento específico6.
dução na taxa de transmissão vertical em torno
de 70% com o uso de AZT na gestação, parto e
no recém-nato13. Dengue

Hanseníase Não existem medidas de controle espe-


cíficas direcionadas ao homem, uma vez que
A Hanseníase é uma doença crônica pro- não há disponibilidade de nenhuma vacina
veniente de infecção causada pelo Mycobacterium ou drogas antivirais. A notificação dos casos
leprae. Este bacilo tem a capacidade de infec- suspeitos, a investigação do local provável de
tar grande número de indivíduos, mas poucos infecção e a busca ativa de casos são elemen-
adoecem pela sua baixa patogenicidade. O do- tos fundamentais. Atualmente, o único elo da
micílio é apontado como importante espaço de cadeia epidemiológica da doença que é vulne-
transmissão da doença, embora existam grandes rável é o mosquito, por meio da redução da
lacunas de conhecimento quanto aos prováveis densidade vetorial11.

326
Capítulo 28 • Conduta para a proteção dos contatos com doenças transmissíveis

Educação em saúde, comunicação e (pós-ferimento) em adultos e idosos, grupo que


mobilização social não está com a vacinação em dia. Nesse caso a
profilaxia pós-ferimento deve ser seguida, como
É necessário promover a comunicação e a mostra o Quadro 6.
mobilização social para que a sociedade adquira
conhecimentos sobre como evitar a dengue, par-
ticipando efetivamente da eliminação contínua Raiva
dos criadouros potenciais do mosquito.

Profilaxia da raiva pós-exposição

Tétano
A raiva humana ainda ocorre em algu-
mas regiões do país, sendo doença de altíssima
Profilaxia do tétano pós-exposição gravidade e letalidade.
Por essa razão incluímos neste capitulo a
É importante lembrar que atualmente é indicação da aplicação de vacina e/ou imunoglo-
mais freqüente a ocorrência de tétano acidental bulina pós-exposição (quadro 7)8,11.

Ferimento limpo e/ou


Outros tipos de ferimento
História de vacinação prévia superficial
Vacina* SAT Vacina SAT**
incerta ou menos de 3 doses sim (1) não sim sim
3 doses ou mais
última dose há < 5 anos não não não não
última dose entre 5 e 10 anos não não sim não
última dose há mais de 10 anos sim não sim não
Quadro 06. Imunização contra Tétano pós-ferimento (fonte Ref. 7)
(1)
Aproveitar a oportunidade para complementar o esquema.
Fonte: Farhat, C 7.

Condições do animal agressor Raivoso, suspeito, desaparecido,


Clinicamente sadio (cão e gato) morto ou sacrificado, silvestre e
Natureza da Exposição outro animal doméstico
Exposição Leve: Observar o animal durante 10 dias após Iniciar o tratamento com uma dose di-
• Moderdura única e superficial no a exposição: 1) Se o mesmo permanecer ária de vacina até completar sete, mais
tronco, membros inferiores e superio- sadio, encerrar o caso; 2) Se o animal duas doses de reforço, sendo a primeira
res (exceção das mãos) adoecer, desaparecer, morrer ou for sa- no 10º dia e a segunda no 20º dia após a
• Lambedura em pele lesada crificado durante o período de observa- última dose da série. Em caso de agres-
• Arranhadura ção, aplicar uma dose diária de vacina são por cão ou gato, se o animal estiver
até completar sete, mais duas doses de vivo e sadio, no 5º dia da vacina, sus-
reforço, sendo a primeira no 10º dia e a pender o tratamento e observá-lo até o
segunda no 20º dia após a última dose. 10º dia. Permanecendo sadio, encerrar
o caso. Se o animal adoecer, desapare-
cer, morrer ou for sacrificado durante
o período de observação, completar o
tratamento.

327
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Exposição Grave: Aplicar uma dose de vacina nos dia 0, 2 Iniciar o tratamento com soro e uma
• Mordedura na cabeça, pescoço e e 4, observar o animal até o 10º dia após dose diária de vacina até completar
mãos; a agressão. Permanecendo sadio, encer- 10 doses e mais três reforços, sendo o
• Mordedura múltipla e/ou profunda ra o caso. Se o animal adoecer, desapa- primeiro no 10º dia, o segundo no 20º
em qualquer região do corpo; recer, morrer ou for sacrificado durante dia e o terceiro no 30º dia após a última
• Arranhadura profunda provocada o período de observação, aplicar soro e dose da série. Em caso de agressão por
por gato; completar a vacinação para 10 deses e cão ou gato, se o animal estiver vivo e
• Lambedura de mucosas. mais 03 reforços, sendo o primeiro no sadio no 5º dia da vacina, suspender o
10º dia, o segundo no 20º dia e o tercei- tratamento e observá-lo até o 10º. Per-
ro no 30º dia após a última dose. manecendo sadio, encerrar o caso. Se
o animal adoecer, desaparecer, morrer
ou for sacrificado durante o período de
observação, completar o tratamento.
Quadro 07. Imunização contra Raiva pós-exposição - (fonte Ref. 7)

Considerações Finais

É dever de todo profissional de saúde, e de 5. Benenson AS. El control de las enfermedade


responsabilidade maior do médico, a notificação transmissibles em el hombre. Organizacion Pa-
das doenças alvo do programa de vigilância epi- namericana de la Salud. Publicacion científica
demiológica. Além de contribuir para a confia- 507. Washington, USA, 1995.
bilidade dos dados estatísticos da doença, garan- 6. Barbosa Jr A, Carvalho DS, Maluf EMCP, Gian-
berardino HIG, Araujo JMR, Martins LTF et al.
tirá que as medidas de proteção dos contatos de
Condutas em contatos de doenças infecto-conta-
doenças infecto-contagiosas serão realizadas.
giosas. Manual elaborado pelo comitê de infecto-
É importante ressaltar que se a população
logia da Sociedade Paranaense de Pediatria, 1995.
estivesse com o calendário de vacinação em dia,
7. Farhat C. Fundamentos e prática das imuniza-
muitas dessas medidas seriam desnecessárias. ções em clínica médica e pediatria. R.J.-S.P. Li-
vraria Atheneu editora, 4a edição, 2000.
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household transmission. An Pediatr (Barcelona);
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328
Capítulo 29
Infecções das vias aéreas grande atenção médica. Na sua maioria, estes
superiores episódios são infecções virais simples, auto-li-
mitadas e que podem se curar espontaneamente
verônica said de castro
necessitando apenas de cuidados domiciliares.
Um problema que nos defrontamos no dia
a dia, em relação às IVAS é o excessivo uso de
antibiótico nestas infecções, quando as evidên-
cias científicas nos mostram que na sua maioria
elas são de etiologia viral. Mesmo nos países de-
Introdução senvolvidos o quadro não é diferente. Mais de
60% das crianças que chegam a um serviço de

A s infecções respiratórias agudas (IRA) são


as doenças mais freqüentes na infância,
acometendo principalmente os menores de cin-
emergência ou a uma unidade básica com sinais
e sintomas sugestivos de processo viral são me-
dicadas com antibiótico. A decisão de usar ou
co anos. A falta de padronização do diagnóstico não antibióticos nas IVAS deve ser tomada com
e tratamento dessas infecções nos serviços de muito critério, para não favorecer o aumento da
saúde e as dificuldades de prevenção dificultam resistência bacteriana, como também o excesso
um controle mais eficiente. Estes fatos contri- de efeitos colaterais.
buem para que as informações registradas nas
unidades não sejam totalmente fidedignas, o
que prejudica o conhecimento da real dimensão Caso Clínico
da morbidade das IRA. São necessárias pesqui-
sas na comunidade para levantamentos de dados Maria, de três anos de idade chegou à unidade
mais confiáveis. de saúde com história de febre, coriza e tosse esporá-
Nos países em desenvolvimento vários fa- dica há dois dias. Na ocasião, foi feito o diagnóstico
tores de risco podem contribuir para o agrava- de IVAS viral e a criança foi medicada com sintomá-
mento dos episódios das IRA. Dentre eles pode- ticos. Após três dias, retornou à unidade com secreção
mos destacar: alta prevalência de baixo peso ao nasal purulenta, obstrução nasal, dor de garganta e
nascer, pouca duração do aleitamento materno, dor de ouvido.
hábito de fumar dos pais, permanência em cre- Pergunta-se: quais as chances dessa patolo-
ches, número elevado de pessoas nos domicílios. gia ainda tratar-se de um processo viral? Qual é o
De todas os casos de IRA que chegam papel do médico de família diante desse quadro?
às unidades básicas, em cerca de 75% delas, as
vias aéreas superiores estão comprometidas, po-
rém, em sua maioria, são afecções virais simples Discussão Teórica
(IVAS). Os vírus ao alterarem os tecidos sub-
jacentes, podem favorecer o aparecimento de As IVAS apresentam-se de várias formas
complicações mais graves como otites supurati- clínicas: resfriado comum, gripe, rinite, rinossi-
vas, sinusites, etc. nusite (RSA), faringotonsilite (FTA), otite média
O número de episódios de IRA por ano em aguda (OMA), laringite aguda e outras. Dentre
crianças é de cinco a oito, o que demanda uma elas predominam o resfriado comum, chegando

329
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

a aproximadamente 60% dos casos de IRA aten- O grau da febre, porém, isoladamente não
didos nos ambulatórios das unidades básicas. Os é sinônimo de infecção bacteriana, e sim da in-
principais vírus que podem causar estas infec- tensidade da resposta imune do indivíduo, pela
ções são: vírus sincicial respiratório, rinovírus, presença de um processo infeccioso viral ou
coxackievírus, echovírus, adenovírus, corona- bacteriano.
vírus, vírus Epstein-Barr. Dentre as bactérias o Nas IVAS, as complicações mais comuns
Streptococcus beta-hemolítico do grupo A é o e motivos de diagnósticos equivocados são a
mais temido por ser responsável por potenciais OMA, a FTA e as RSA. Algumas evidências
complicações supurativas e não supurativas. científicas mostram que:
Em relação a patogenia, os efeitos deletérios • As RSA e a OMA, em cerca de 70 a 80% dos
dos vírus no epitélio respiratório, como, alteração casos podem regredir espontaneamente sem
da resposta imune, destruição de mecanismos lo- o uso de antibióticos.
cais de defesa, diminuição da atividade mucoci- • No caso de dúvida inicialmente, especifica-
liar e do “clearance com acúmulo de secreções, mente, no diagnóstico da FTA por estrepto-
facilitam a ocorrência de infecções bacterianas, coco do grupo A, pode-se esperar 2 a 3 dias
porém nem sempre isto ocorre. Pode haver ainda para esclarecimento do caso, pois sabemos
um aumento da expressão dos receptores de de- que apenas 1% das FT não tratadas podem
terminadas bactérias no epitélio respiratório e no levar à ocorrência de Febre Reumática.
muco secretado facilitando a ocorrência de infec- • Não há benefício no uso de antibiótico profi-
ções bacterianas no seguimento de infecções vi- lático durante processos virais.
rais, porém isso não deve ser interpretado como • Observou-se que crianças que chegam na
presença de uma infecção bacteriana. emergência com complicações de processos
Clinicamente, podemos observar algu- nasossinusais ou otológicos já vem utilizando
mas diferenças entre as infecções virais e as antibiótico, portanto essa complicação estaria
bacterianas: mais vinculada à virulência das bactérias e a
• Infecções virais: duram em média sete dias capacidade imune do hospedeiro do que ao
e em geral há uma melhora acentuada entre retardo na administração de antibiótico.
o 4º e o 7º dia. O estado geral está conserva- • Uma revisão sistemática de 4.860 trabalhos
do. As secreções amareladas que ocorrem no sobre o uso de antibióticos nas OMA, rea-
curso da infecção viral são decorrentes da de- lizado por van Buchem e col., mostrou que
teriorização dos polimorfonucleares e de suas somente 2 casos desenvolveram mastoidite,
enzimas, e em geral a secreção esverdeada só as quais foram curadas com miringotomia e
ocorre mais pela manhã devido a estase das amoxicicilina oral.
secreções nas vias aéreas durante a noite, por-
tanto, não deve ser interpretada de imediato Diante do exposto, é prudente, muitas
como uma complicação bacteriana. vezes em situações de dúvida no diagnóstico
• Infecções bacterianas: a recaída de sinais e diferencial entre infecções virais e bacterianas,
sintomas é um dos parâmetros para se pensar tomar uma conduta expectante até se configu-
em complicação bacteriana. A secreção esver- rar melhor o quadro. O médico de família pode
deada nasal é constante durante todo o dia e traçar um plano de seguimento para os casos de
muitas vezes têm um odor fétido. Há um cer- IVAS atendidos na unidade básica e, portanto,
to grau de toxemia. A febre em geral persiste tomar uma conduta mais adequada quanto à ne-
por mais de cinco dias ou pode aumentar de cessidade do uso de antibióticos.
intensidade no decurso da infecção.

330
Capítulo 29 • Infecções das vias aéreas superiores

As principais formas clínicas de - Fazer a limpeza das narinas com solu-


apresentação das IVAS ção fisiológica nasal a 0,9% para manter
a permeabilidade. Evitar vasocontricto-
• Resfriado Comum: O resfriado comum é a res tópicos ou sistêmicos em decorrên-
doença mais freqüente do aparelho respira- cia dos seus efeitos colaterais.
tório e compromete as mucosas nasais e fa- - Suavizar a dor de garganta e aliviar a
ríngea. Sua etiologia é atribuída, na maioria tosse com remédios caseiros
dos casos, ao rinovírus (30 a 50% dos casos). - Uso de antitérmico no caso de hiperter-
Outros vírus também podem ser responsáveis mia (Temperatura > 38ºC), paracetamol
por estas infecções, como o coronavírus (10 a ou dipirona, 10 mg/Kg/dose, com inter-
15% dos casos), o parainfluenza (5%) e o vírus valos de até 6/6 horas.
sincicial respiratório (5%). As crianças peque-
nas são as mais afetadas bem como aquelas Deve-se evitar o uso de xaropes para tosse
que vivem em famílias muito numerosas pela porque são ineficazes (83%), 18% possuem in-
possibilidade de contaminação entre os mem- gredientes nocivos e 37% possuem três ou mais
bros. Em geral as crianças na fase pré-escolar ingredientes, como os antiinflamatórios, que
apresentam de 4 a 8 episódios por ano. podem causar reações alérgicas graves, altera-
ções hematológicas etc.
Quanto à duração, são processos auto-li- Lembrar que os antibióticos são contra-
mitados e cada episódio dura de dois a sete dias indicados nesses casos, pois não reduzirão a du-
com resolução completa em duas semanas. ração dos sintomas e não evitarão as possíveis
O quadro clínico manifesta-se após um complicações bacterianas.
período prodrômico variável, de um a três dias As mães devem ser orientadas para retorna-
com anorexia e irritabilidade, e as vezes diarréia rem com as crianças se a febre não melhorar após
e vômitos. Em seguida, aparece febre, geralmen- três dias ou se a mesma apresentar dificuldade
te moderada, coriza clara, espirros, levando a para respirar ou não conseguir se alimentar.
obstrução nasal, e tosse seca. A dor de garganta
pode ser o primeiro sintoma e em geral cede com • Gripe: A gripe (influenza) é uma doença in-
48 horas apenas com medidas caseiras (mel, lí- fecciosa aguda causada pelo vírus influenza,
quidos, gargarejos). Algumas crianças podem se transmissível de uma pessoa para outra atra-
queixar também de dor de ouvido passageira, de- vés de gotículas eliminadas pela tosse ou es-
correntes de alterações de pressão dentro do ou- pirro. O vírus penetra no organismo através
vido devido a congestão na Trompa de Estáquio. da mucosa do nariz ou da garganta e a aglo-
Ao exame do orofaringe encontramos hi- meração de pessoas em ambientes fechados
peremia e edema da faringe, tonsilas, úvula e véu facilita a disseminação da doença.
do palato. A face é de congestão e as conjuntivas
também podem estar hiperemiadas. Gânglios A doença ocorre em todos os países do
submandibulares estão aumentados. mundo e o vírus vem causando epidemias a cada
Pode complicar com infecções bacterianas 2-3 anos e, eventualmente, pandemias.
e desencadear hiper-reatividade brônquica em O vírus influenza, é classificado em três
crianças susceptíveis. tipos diferentes (A, B e C). O vírus A infecta vá-
O tratamento é sintomático e consiste de: rias espécies de animais e os tipos B e C, basica-
- Aumentar a ingestão de líquidos para evitar mente infectam os seres humanos. Os vírus A e
a desidratação e fluidificar as secreções; B são capazes de causar epidemias.

331
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Período de incubação e de contágio em jovens (vírus A e B), complicações neuroló-


gicas (encefalite, mielite, radiculite, até síndrome
A gripe apresenta um curto período de incu- de Guillan-Barré). A síndrome de Reye é outra
bação, em média de 2 dias com intervalo de 4 dias. complicação que pode ocorrer e parece está asso-
O contágio inicia-se 1 a 2 dias antes e até ciada com a ingestão de salicilatos. É mais comum
5 dias após o início dos sintomas. Nas crianças entre crianças desde poucos meses até os 14 anos.
e nos imunodeprimidos pode ter uma duração O tipo B é o responsável por esta complicação.
superior a 1 semana.

Terapêutica
Sintomatologia
A vacinação é o principal método de
Nas crianças, a gripe manifesta-se de acor- prevenção e controle da infecção gripal.
do com o grupo etário. A prostação é encontrada Ela é eficaz porque, em até 75% das situ-
em 50% das crianças com idade inferior a 4 anos ações, evita o aparecimento da gripe e, em 90%
e só 10% no grupo dos 5 aos 14 anos. Dentre os dos casos diminui a gravidade da doença. No en-
sintomas presentes predominam a tosse seca, tanto, não dá proteção a longo prazo porque o ví-
obstrução laríngea e, ocasionalmente, a rigidez rus muda constantemente, através de pequenas
de nuca. Os sintomas gastrointestinais (náusea, mutações. Ela é elaborada a partir de vírus de
vômitos, diarréia, dor abdominal) são freqüen- influenza cultivados em ovos de galinha e apre-
tes e ocorrem em mais de 40% dos casos. A febre senta na sua composição pequenas quantidades
tende a ser mais elevada. A otite média pode ser de timerosal e neomicina. Está contra-indicada
uma complicação freqüente no grupo de 1 a 3 em pessoas que apresentaram antecedentes de
anos. Os sinais clínicos são mínimos na gripe reação grave a uma dose anterior da vacina e as
não complicada. Pode haver conjuntivite, obs- pessoas que tem alergia ao ovo.
trução nasal, amígdalas congestionadas sem ex- A vacina não protege contra o vírus in-
sudato e faringe muito hiperemiada. fluenza C e nem contra outros vírus respirató-
De um modo geral, quando não há com- rios (adenovírus, rinovírus, vírus parainfluenza)
plicação, este quadro tem uma duração de 3 a que podem causar doenças semelhantes à gripe,
5 dias e a maioria dos doentes está totalmente embora de menor gravidade.
recuperada ao fim de uma semana. Recomenda-se as seguintes medidas de
tratamento:
- Isolamento de outras pessoas para diminuir o
Complicações contágio;
- Repouso, ingestão de muitos líquidos, manu-
Nas pessoas idosas ou debilitadas por do- tenção da alimentação;
enças crônicas as complicações podem ser graves, - Evitar mudanças de temperatura;
inclusive no caso de acometimento de gestantes - Uso de antitérmicos e/ou analgésicos se ne-
podem haver repercussões no recém-nascido. As cessário;
complicações respiratórias mais freqüentes, que - Aplicar soro fisiológico para desobstruir o nariz;
podem levar à hospitalização são: traqueobron- - Evitar o uso de antitussígenos;
quite, pneumonia bacteriana secundária e mais - Somente usar antibióticos recomendado pelo
raramente pneumonia primária por influenza. médico no caso de complicações;
Outras complicações possíveis são: miocardite - Evitar vacinar no período de doença.

332
Capítulo 29 • Infecções das vias aéreas superiores

• Rinites: As Rinites se caracterizam por infla- ciação de especialistas que estuda a rinite alérgi-
mações da mucosa nasal (rinite infecciosa) ou ca e seu impacto sobre a asma, a rinite alérgica
reações fisiológicas dessa mucosa decorren- pode ser classificada de acordo com a duração,
tes de uma resposta aumentada ou exagerada intensidade dos sintomas e parâmetros de quali-
para um ou mais alérgenos (rinite alérgica). dade de vida em:

As rinites são classificadas em vários ti- Rinite Intermitente:


pos: rinite infecciosa, medicamentosa, alérgica, • sintomas: < 4 dias/semana
ocupacional (alérgica e não-alérgica), hormonal, < 4 semanas
idiopática e por outras causas.
Para atenção primária, é importante dar Rinite Persistente:
ênfase à conduta nos casos de rinite alérgica, • sintomas: > 4 dias/semana
pois esta é causa freqüente de encaminhamentos > 4 semanas
ao especialista, quando na verdade poderia está
sendo acompanhada pelo médico de família.
Rinite Leve (um ou mais itens)
• Rinite Alérgica - Não interfere com o sono
A rinite alérgica pode ser definida como - Atividades esportivas e recreativas diá-
uma inflamação tecidual do nariz induzida por rias normais
anticorpos do tipo IgE, após exposição da muco- - Desempenho escola/trabalho normal
sa nasal à alérgenos.
O pico de incidência da doença ocorre na Rinite Moderada – Grave (um ou mais itens)
infância e adolescência e estima-se que 15% da - Interfere com o sono
população, seja afetada por rinite alérgica, causa - Prejudica atividades esportivas e recrea-
freqüente de absenteísmo escolar. tivas diárias
Ela é mais freqüente em meninos que em - Dificuldades no desempenho escola/tra-
meninas e cerca de 30% de todas as crianças nas- balho
cidas de famílias alérgicas tem probabilidade de
desenvolver rinite alérgica na primeira infância. O diagnóstico de rinite alérgica é essen-
Os sintomas incluem rinorréia, prurido, cialmente clínico. Na anamnese é importante
obstrução nasal e espirros em salva. Os olhos a investigação dos sinais e sintomas clássicos
também podem ser acometidos, manifestando- citados acima, investigando o momento que
se com hiperemia conjuntival, prurido e lacri- ocorreram e se há qualquer padrão sazonal ou
mejamento. O paciente pode referir ainda, pru- diurno ou fatores específicos que exacerbe a
rido no orofaringe e conduto auditivo. Estes situação. A história clínica pregressa do nasci-
sintomas podem estar associados com outras mento detalhada sobre gestação, peso ao nascer,
manifestações de atopia, como asma e eczema, idade gestacional, amamentação, se houve cólica
e dependendo da intensidade, podem levar a ou outros problemas de alimentação, especial-
alterações no sono, cansaço, cefaléia, certo grau mente eczema precoce também é importante na
de irritabilidade, mal estar geral e alterações do busca de associações com atopia familiar, apesar
humor, o que repercutirá na qualidade de vida de que, devido ao padrão poligênico da doença,
dos pacientes. uma ausência de antecedentes de atopia não per-
Segundo o Projeto ARIA, 2001 (Allergic mite descartar o diagnóstico de rinite alérgica.
Rhinitis and its Impact on Asthma) - uma asso- Devem ser pesquisadas as condições ambientais

333
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

em que a criança mora, com ênfase na presença, e níveis de IgE sérica não são dados exclusivos
principalmente de ácaros e animais domésticos e de doença alérgica.
agentes irritantes (fumaça de cigarro). Uma boa O tratamento da Rinite Alérgica tem os
resposta ao tratamento com anti-histamínicos seguintes objetivos:
H1 fala a favor de rinite alérgica. • Reduzir os sintomas
Ao exame físico, o paciente pode apre- • Modificar o curso da doença
sentar: palidez facial associada a olheiras, pre- • Evitar os efeitos adversos induzidos pelo pró-
gas de Dennie-Mogan (dupla linha em pálpebra prio tratamento
inferior) e sulco nasal transverso decorrente do • Orientar o paciente ou familiares sobre a ne-
hábito de coçar a ponta do nariz (“saudação do cessidade de ampliarem seus conhecimentos
alérgico”). Os olhos podem estar avermelhados sobre a doença o que pode melhorar a adesão
por conjuntivite e a pele apresentar sinais de ao tratamento
dermatite atópica ou eczema. • Melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
A avaliação interna da parte inferior do
nariz pode ser visualizada facilmente pedindo- A base do tratamento, portanto, se assenta
se à criança que olhe para cima e elevando-se a em quatro pilares:
ponta do nariz com o dedo, com a ajuda de uma I. Evitar a exposição aos alérgenos
luz focada internamente. Encontraremos con- No controle da exposição a alérgenos a hi-
chas nasais hipertrofiadas, edemaciadas, pálidas giene do ambiente é fundamental. Os ácaros, o
e com rinorréia aquosa. principal alérgeno doméstico, podem ser encon-
A congestão nasal persistente nos pacien- trados na poeira e proliferam em temperaturas
tes com rinite mal conduzida, é uma das causas acima de 27ºC e nível de umidade relativa acima
do aparecimento da respiração bucal, o que pode de 50%. As seguintes recomendações podem di-
levar, a longo prazo, alterações nos ossos maxi- minuir os ácaros do ambiente:
lares, nas arcadas dentárias e no posicionamento • Uso de travesseiros e colçhões com ca-
correto dos dentes. pas impermeáveis;
A respiração bucal, hoje, pelo conjunto de • Remoção de travesseiros, cobertas de lã
sinais e sintomas associados a ela, é conhecida e protetores de berço, substituindo-os
como Síndrome do Respirador Bucal. A criança por objetos de tecido sintético que de-
com essa síndrome apresenta uma face caracte- vem ser lavados toda semana;
rística com nariz estreito, narinas afiladas, lábio • Remoção de carpetes;
inferior curto, boca entreaberta e olheiras acentu- • Evitar objetos que acumulam pó;
adas. Também pode apresentar baixo rendimento • Evitar criar animais domésticos.
escolar, ser irriquieta, sonolenta, apresentar can-
saço fácil, roncar e babar à noite e é forte candida- II. Farmacoterapia
ta a apresentar apnéia do sono, ainda na infância. Anti-histamínicos H1 denominados de
Quanto ao diagnóstico alergológico da ri- primeira geração foram desenvolvidos para re-
nite, os teste cutâneos como o PricK teste e a duzir as queixas dos pacientes decorrentes da
intradermorreação demonstram a existência de liberação de histamina pelos mastócitos (pruri-
IgE específica, porém nem todos os pacientes do nasal, espirros e a rinorréia aquosa). Eles têm
com testes positivos apresentam manifestações menos efeitos sobre a congestão e a obstrução
clínicas, portanto, não se pode realizar o diag- nasal. Estes medicamentos são lipofílicos e, por-
nóstico de alergia com base exclusiva nesses tes- tanto, podem cruzar a barreira hematocefálica,
tes. Como também a determinação de eosinofilia causando várias reações indesejáveis. Os efeitos

334
Capítulo 29 • Infecções das vias aéreas superiores

adversos que ocorrem comumente são sonolên- da noroadrenalina (efedrina, pseudo-efedrina,


cia, fadiga, fraqueza, déficit de atenção e distúr- fenilpropanolamina). Agem reduzindo intensa-
bios funcionais. Essas reações são comuns em mente a congestão nasal, sem afetar a ocorrência
crianças menores de 6 anos e nem sempre estão de espirros ou de prurido. Seus efeitos ocorrem
relacionadas à dose. Dentre os anti-histamínicos após 5 a 15 minutos da aplicação e duram até
de primeira geração mais comuns temos a clor- 6 horas. O seu uso por mais de 10 dias produz
feniramina, a hidroxizina, cetotifeno e outros. efeito rebote e rinite medicamentosa crônica.
A segunda geração de anti-histamínicos Vale ressaltar que o seu uso deve ser reservado
(não-sedativos) não cruza a barreira hematoence- para situações de “urgência”, quando a conges-
fálica e, portanto, está associada com menos efei- tão nasal está impedindo o sono e a alimentação
tos adversos sobre o sistema nervoso central. É da criança pequena, e mesmo assim por períodos
importante salientar que ainda há necessidade de muito curtos (até 3 dias).
mais estudos sobre os efeitos destes medicamento Outros medicamentos do tipo cromonas,
em crianças pequenas. Sabe-se que a Terfenadina antagonistas dos leucotrienos, anticolinérgicos
e o Astemizol podem causar arritimia cardíaca e, têm indicação em situações especiais.
portanto, foram retirados do mercado.
Esses anti-histamínicos são bem tolerados III. Imunoterapia
por via oral e seu início de ação ocorre em menos Seu mecanismo de ação parece estar rela-
de 1 hora após a administração. A Cetrizina, a cionado com a regulação dos linfócitos T auxi-
Ebastina, a Loratadina e a Azelastina são exem- liares 2. De acordo com dois consensos mais re-
plos desses medicamentos. centes da European Academy of Allergology and
Corticosteróides: são antiinflamatórios Clinical Immunology (EAACI) e da ARIA, a in-
potentes e reduzem a hiper-responsividade na- dicação da imunoterapia subcutânea ou sublin-
sal, tanto os de ação sistêmica quanto os de uso gual pode ser utilizada para pacientes com rinite
tópico. Por inibirem a secreção de mediadores e alérgica, sensibilizados a um ou dois alérgenos
a infiltração de células inflamatórias, provocam clinicamente importantes, para os quais as medi-
uma melhoria do prurido nasal, da rinorréia das preventivas (evitar alérgenos) e o tratamento
aquosa, dos espirros e da obstrução nasal. Os farmacológico não se mostraram eficazes.
corticosteróides tópicos tem efeitos antiinflama-
tórios potentes e quase não tem efeitos secundá- IV. Instruções ao paciente
rios importantes (beclometasona, budesonida, Para que se consiga uma melhor adesão ao
fluticasona e outros). Dentre estes, a beclometa- tratamento é necessário que os familiares, no caso
sona está disponíveil na rede básica de saúde. As de crianças pequenas estabeleçam uma relação de
doses recomendadas são de 100 a 400 microgra- confiança e segurança com o médico. Para isso é
mas por dia, com um início de efeito de 12 horas importante informar sobre a natureza da doença
e uma duração de 48 horas ou mais. Podem ser e sobre os tratamentos disponíveis. Deve ser in-
usados com segurança durante longos períodos cluída informações gerais sobre os sintomas, as
(meses ou anos) e desde idades muito precoces (2 causas e os mecanismos de desenvolvimento da
anos). Podem provocar secura, crostas e sangra- rinite, assim como os meios de evitar o contato
mentos nasais leves que regridem após o uso. com os alérgenos, a imunoterapia e o tratamento
Descongestionantes nasais: a maioria cau- farmacológico. As possíveis complicações da ri-
sa vasoconstrição nasal ao estimular os recepto- nite, como o aparecimento de sinusite e de otite
res adrenérgicos B1 (fenilefrina) ou B2 (oxime- média também devem ser informadas. O ideal é
tazolina, nafazolina). Outros inibem a liberação que a equipe presente na unidade básica junta-

335
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

mente com a família estabeleçam um plano de nagem gravitacional das secreções em direção ao
tratamento factível de ser executado, que inclua interior do nariz. Em relação aos seios etmoidais
um acompanhamento regular da criança com o por serem constituídos por células múltiplas de
objetivo final de obter uma melhora da qualida- ar separadas entre si por finíssimas lâminas ós-
de de vida dessa criança. seas, mesmo uma infecção leve de vias aéreas
superiores pode obstruí-las. O frontal apesar de
• Rinossinusites: A rinossinusite pode ser de- não ser uma sítio freqüente de infecção, é impor-
finida como um processo inflamatório que tante, pois, pode ser uma fonte para a dissemi-
acomete a mucosa que reveste a cavidade na- nação da infecção desta cavidade para o sistema
sal e os seios paranasais. nervoso central e a órbita.
Classificação: A rinossinusite pode ser
Há três elementos chaves que são básicos classificada de acordo com a duração dos sinto-
para a fisiologia normal desse aparelho: a per- mas e com a freqüência dos episódios em:
meabilidade do óstio, a função do aparelho mu- • Aguda: duração dos sintomas até 4 semanas
cociliar, a qualidade e a quantidade da secreção. • Subaguda: duração dos sintomas até 4 a 12
O que leva, portanto, a retenção de secreções nas semanas
cavidades paranasais deve ser conseqüência de • Crônica: duração dos sintomas por mais de
obstrução do óstio, redução no número ou na 12 semanas
função dos cílios e produção excessiva ou mu- • Recorrente: mais de 4 episódios por ano, com
dança da viscosidade das secreções. duração de 7 a 10 dias e resolução completa
Anatomia das cavidades paranasais: A nos intervalos
maioria dos seios paranasais é rudimentar ou • Complicada: complicação local ou sistêmica
ausente ao nascimento. Os seios maxilares, ao em qualquer fase.
nascimento apresentam tamanho de 3-4mm,
apresentando crescimento lento até a puberda- Etiologia: Em relação à microbiologia da
de. Os seios frontais e esfenoidais estão ausentes, sinusite aguda observa-se que o Streptococcus
ao nascimento; os frontais começam a se desen- pneumoniae representa aproximadamente 30%
volver após os dois anos. Os seios etmoidais (ou dos isolados, Haemophilus influenzae 20% e
células etmoidais) são pequenos antes dos dois Moraxella catarhalis 20% das cepas isoladas.
anos de idade, e apresentam desenvolvimento Diagnóstico: A Academia Americana de
rápido após os seis a oito anos. Os seios esfenoi- Pediatria propõe que o diagnóstico de rinossinu-
dais são formados a partir das células etmoidais site bacteriana aguda deve ser feita com base em
posteriores, a partir dos anos de vida. critérios clínicos, em crianças que apresentam
Nas paredes laterais do nariz temos os cor- sintomas de vias respiratórias superiores que se-
netos inferior, médio e superior. Entre o corneto jam persistentes ou graves.
inferior e o médio há o meato médio que drena o No curso de uma infecção viral das vias
seio maxilar, as células etmoidais anteriores e o aéreas superiores, que apresente sintomas como,
seio frontal. As células etmoidais posteriores e o secreção nasal de qualquer qualidade (purulen-
esfenóide drenam no meato superior. ta, mucóide ou serosa), obstrução nasal, dor à
Algumas características anatômicas des- pressão facial, dor de garganta, mialgias, halito-
sas cavidades vão influir na predisposição para se, febre, tosse diurna que normalmente piora à
desenvolver infecção bacteriana secundária. Em noite ou ambas (dia e noite), deve-se suspeitar
relação ao seio maxilar, o posicionamento do ós- de rinossinusite aguda bacteriana se estes sinto-
tio de drenagem do meato médio impede a dre- mas persistem por mais de 7 a 10 dias ou quando

336
Capítulo 29 • Infecções das vias aéreas superiores

houver piora dos mesmos após o quinto dia. A opção eficaz.


rinossinusite bacteriana também pode se apre- - Os descongestionantes tópicos (sprays com
sentar com sintomas iniciais graves com febre cloridrato de fenilefrina ou cloridrato de
alta normalmente mais de 39ºC e secreção nasal oximetazolina) melhoram a congestão na-
purulenta, que persiste com a febre durante 3 a 4 sal, mas seu uso ininterrupto por mais de 3
dias consecutivos. a 4 dias pode causar rinite medicamentosa.
Nenhum sinal ou sintoma sozinho é es- - Os corticosteróides tópicos não são conside-
pecífico no diagnóstico de rinossinusite bacte- rados medicações de primeira linha no tra-
riana aguda. tamento da rinossinusite aguda, mas podem
Diagnóstico por imagem: Estudos de ser úteis nos casos crônicos ou recidivantes.
imagens não são necessários para confirmar um - Os anti-histamínicos não são recomendados.
diagnóstico de rinossinusite bacteriana aguda
em crianças com menos de 6 anos de idade. A ra- • Faringotonsilites Agudas: A faringotonsilite
diografia simples apresenta baixa sensibilidade (antigamente chamada faringoamigdalite) é
e especificidade, além de não permitir a visuali- uma inflamação dos tecidos linfáticos distri-
zação do local primário da doença. A tomografia buídos na rino, oro e hipofaringe que compõe
das cavidades paranasais deve ser reservada para o Anel de Waldeyer, (amídalas palatinas, fa-
pacientes que serão submetidos à cirurgia. ríngeas, linguais, tubárias, adenóides e os nó-
dulos linfóides da faringe). Elas incidem pre-
Tratamento ferencialmente na faixa etária dos 4 a 7 anos
de idade e mais raramente em crianças meno-
• Tratamento Antimicrobiano: A amoxicilina res. A etiologia pode ser viral ou bacteriana.
é considerada a terapia de primeira linha, em • Faringotonsilites virais: Estas ocorrem ge-
pacientes com suspeita de rinossinusite bac- ralmente no decurso de resfriados comuns
teriana aguda, em função de sua eficácia ge- e a criança apresenta febre, rouquidão, irri-
ral, segurança, baixo custo e espectro estreito. tabilidade, inapetência e odinofagia modera-
A dose recomendada é de 50mg/Kg/dia divi- da que pode estar presente desde o início do
dida em três doses. A melhora dos sintomas processo ou, mais comumente, aparecer um
ocorre em 48-72 horas. Se não houver melhora ou mais dias após os outros sintomas. A pre-
neste período, ou o antibiótico é ineficaz, ou dominância das infecções virais é na faixa de
o diagnóstico de sinusite não estava correto. crianças menores de 3 anos. São quase sem-
Se o paciente não melhorar com a dose usual pre causadas por adenovirus. Outros vírus
de amoxicilina, foi recentemente tratado com como, Rhinovirus, Influenza, Parainfluenza,
antibiótico, tem doença moderada ou grave, Vírus Respiratório Sincicial e vírus Epstein-
ou freqüenta creche recomenda-se dose alta Barr podem também causar essa patologia.
de amoxicilina (80 a 90mg/Kg/dia) sozinha Alguns quadros clínicos são mais caracterís-
ou associada com clavulanato (6,4mg/Kg/ ticos de determinados vírus. A infecção por
dia), dividido em 2 doses diárias. adenovirus, causa comum de faringotonsilite
• Medidas Adjuvantes exsudativa prolongada, por exemplo, pode ser
- Limpeza da mucosa nasal com solução acompanhada por conjuntivite (febre faringo-
isotônica composta por água fervida mor- conjutival). O vírus herpes simples apresenta
na (1.000ml), sal marinho ou grosso (uma manifestações típicas como, febre alta, dor na
colher das de sobremesa) e bicarbonato de faringe, ulcerações circulares brancas sobre o
sódio (uma colher das de sobremesa) é uma palato e mucosa oral, acompanhada de gân-

337
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

glios linfáticos aumentados e dolorosos. Nas tocócica, pois:


infecções pelo vírus Coxsackie do grupo A - Um grande número de crianças e adultos com
(herpangina) é comum a presença de úlceras cultura (+) para SGA não apresentam evidên-
superficiais no palato mole, úvula e tonsilas e/ cias sorológicas de infecção (falso positivo);
ou vesículas. Já o vírus Coxsackie 16 causa a - Em ambientes com grande concentração de
chamada doença mão-pé-boca (lesões pápulo pessoas, podemos encontrar portadores de
vesiculosas em mãos e pés, associadas com le- SGA na faringe (5 a 15%) na ausência de um
sões orais e faringotonsilares). surto de doenças estreptocócica;
- Há casos também de falsos negativos que so-
O tratamento é sintomático, incluindo as- mente após a repetição da cultura se isola a
seio oral, analgésicos e antitérmicos. bactéria;
- Não está disponível de rotina nas unidades
• Faringotonsilites bacterianas: A causa mais básicas.
comum de faringotonsilites bacterianas (FT)
em crianças é o Streptococcus pyogenes beta-he- A sorologia é um teste definitivo para
molítico do grupo A (SGA). Há mais de 100 determinar, retrospectivamente, a infecção por
tipos diferentes de SGA que podem causar FT, SGA. Dosa-se os títulos de anti-estreptolisina
na maioria infecções benignas e auto-limita- O (ASLO), uma das hemolisinas produzidas
das, porém, com potencial para levar à febre pela bactéria. Eles se elevam em uma semana
reumática. Entre eles, um pequeno grupo está de infecção e alcançam um pico em aproxima-
associado à glomerulonefrite difusa aguda. damente 3 a 6 semanas após, seguido de um de-
clínio variado dos níveis séricos. Consideram-se
É uma doença comum entre adolescentes títulos elevados, maiores do que 300 unidades.
e crianças maiores de 3 anos de idade. A trans- Lembrar que a ASLO também é elaborada pelos
missão em geral se dá através da disseminação estreptococos dos grupos C e G.
de gotículas de saliva, com período de incubação Testes de detecção rápida para o SGA (Qui-
entre 1 a 4 dias. cK Vue + Strep A Test): possuem especificida-
Diagnóstico clínico: baseado na história de maior de 90%, sensibilidade entre 60 e 90% e
da doença e no exame físico. índice de falsos positivos de 15%. A acurácia do
Os sinais e sintomas de FT por SGA pode teste depende da experiência de quem coletou o
variar de uma dor de garganta e mal estar mo- material e da qualidade do espécime coletado.
derado (30 a 50% dos casos), até febre alta, náu- Tratamento: O tratamento de 10 dias
sea, vômitos e desidratação (10% dos casos). O com amoxicilina é o mais acessível na atenção
início é abrupto, agudo, caracterizado por odi- básica para erradicar o SGA da orofaringe. Há
nofagia intensa, petéquias no palato mole, febre evidências que o tratamento previne o apareci-
alta, calafrios, cefaléia, adenite cervical anterior mento de febre reumática, além de reduzir a dis-
dolorosa e dor abdominal. Esse quadro clínico seminação do estreptococo. Com o tratamento o
típico só é encontrado em 20% das crianças que paciente deixa de ser contagioso após 24 horas
contraem a doença. do uso da medicação.
Diagnóstico laboratorial: A cultura da Outra opção é a Penicilina benzatina via
tonsila, das criptas e da faringe é o padrão-ouro intramuscular como dose única, 600.000UI para
na identificação da infecção pelo SGA, com 95% crianças com menos de 25 Kg e 1.200.000 UI para
de acurácia, porém deve-se levar em conta o seu as com mais de 25 Kg. A eritromicina é uma op-
valor limitado no diagnóstico da doença estrep- ção para os alérgicos à penicilina como também

338
Capítulo 29 • Infecções das vias aéreas superiores

a cefalexina. É importante lembrar que 2 a 15% • Ângulo da tuba auditiva: a criança tem uma
dos pacientes alérgicos à penicilina também o tuba auditiva mais curta, horizontal e de
são às cefalosporinas, e que estes antibióticos in- maior calibre do que a do adulto. Além dis-
duzem rapidamente, à resistência bacteriana. A so, a parede tubária tem uma tendência ao
associação sulfa-trimetropina deve ser evitada, colabamento, ocasionando sua obstrução. O
pois não erradica o estreptococo da faringe. costume de se alimentar as crianças com ma-
Não está indicado o uso de antiinflama- madeira, na posição horizontal, pode levar a
tórios, pois os mesmos não vão alterar o curso um escoamento do leite, por gravidade, ao
da doença. orifício da tuba auditiva, o mesmo podendo
A complicação não supurativa da infecção ocorrer com secreções, o que predispõe à con-
por SGA mais temida é a Febre Reumática. Sua taminação por germes e posterior infecção;
incidência anual em países em desenvolvimento é • Hipertrofia e infecções das adenóides: a
de 100 a 200 casos para cada 100.000 crianças e é a obstrução causada pela hipertrofia da adenói-
afecção que mais causa mortalidade cardiovascular. de e a sua colonização por bactérias aumen-
Pode-se esperar até 48h para iniciar o tra- tam as chances de OMA;
tamento com antibiótico na tentativa de erradi- • Creches e berçários: crianças que passam
car o estreptococo e ainda se consegue prevenir muito tempo em contato com várias outras
a febre reumática. crianças têm mais infecções de ouvido:
• Fumante passivo: já foi demonstrado a ação
• Otite Média Aguda (OMA): A OMA é um deletéria da fumaça de cigarro à função muco-
dos diagnósticos mais freqüentes em crian- ciliar e à competência imunológica do trato res-
ças. É mais comum entre 6 e 36 meses de piratório, predispondo às infecções de ouvido.
idade com um pico entre 4 a 7 anos. Todas
as crianças têm pelo menos um episódio até Etiologia: A OMA é, na maioria das vezes,
completarem 3 anos de idade e 20% delas têm causada por infecção viral das vias aéreas supe-
múltiplos episódios. Quando o número de riores seguida de infecção bacteriana secundária
episódios chega a três em seis meses ou ainda no ouvido médio. Os vírus mais freqüentemente
quatro em um ano diríamos tratar-se de otite associados são: o vírus sincicial respiratório, ade-
média aguda recorrente. novírus e influenza. Dentre as bactérias encon-
tramos o Streptococcus pneumoniae (15 a 35%), o
Essa prevalência aumentada nas crianças Haemophilus influenzae (15 a 25%) e a Moraxella
pequenas pode ser explicada por vários fatores catarhalis (10 a 20%). Muitas das cepas de hae-
de risco a que estas crianças estão sujeitas. Os mophilus e moraxella são produtoras de betalac-
principais são: tamases (enzimas que hidrolisam a penicilina e
• Incidência aumentada de infecções das seus derivados, transformando estes antibióticos
vias aéreas superiores (IVAS): 25 a 30% das em substâncias inativas), como também já encon-
crianças com IVAS complicam com OMA; tramos pneumococos com resistência intermedi-
• Idade: o risco de otites recorrentes é maior ária às penicilinas (decorrentes de mutações cro-
em crianças que tem o primeiro episódio de mossômicas e alterações nas proteínas ligadoras
OMA antes dos seis meses de vida; do antibiótico na parede celular da bactéria), o
• Imunocompetência: as imunodeficiências que pode resultar em falhas no tratamento com os
primárias em geral e imunodeficiências sele- antibióticos mais acessíveis à atenção primária.
tivas de IgA e de subclasses de IgG levam a Quadro Clínico: No lactente os sinais su-
otite média recorrente; gestivos de OMA são muitas vezes sinais indire-

339
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

tos como, irritabilidade, recusa alimentar, febre, a secreção) deve-se pensar em bactéria produto-
diarréias e vômitos. ra de betalactamase ou pneumococo resistente
Na criança maior o sintoma mais freqüen- à amoxicilina. Uma nova opção de tratamento
te é a dor, normalmente localizada, podendo seria dobrar a dose da amoxicilina na tentativa
surgir outros sintomas tais como febre (1/3 dos de cobrir os pneumococos de resistência inter-
casos), diminuição da audição ou uma sensação mediária, e caso não se obtenha sucesso, tentar
de “ouvido entupido” e até vertigem. Se houver a associação de amoxicilina (dose dobrada) mais
perfuração do tímpano pode ser vizualizada a clavulanato de potássio.
saída de secreção purulenta pelo canal auditivo Além dos antibióticos devem ser utiliza-
externo (otorréia). dos somente analgésicos e antitérmicos.
Diagnóstico: A otoscopia estabelece o Quando encaminhar ao especialista?
diagnóstico definitivo. Ao exame da membrana • Crianças com OMA e otalgia importan-
timpânica esta se apresenta abaulada, hiperemia- te, mau estado geral e toxemia.
da, opaca, com aumento da vascularização. Pode • Crianças com OMA e suspeita clínica
se observar a secreção purulenta no conduto audi- de abscesso.
tivo externo quando há perfuração da membrana. • Resposta insatisfatória à terapia empre-
Tratamento: Algumas considerações de- gada corretamente.
vem ser feitas em relação ao tratamento da OMA: • OMA em neonato ou em paciente imu-
• Os critérios de diagnóstico devem ser bastan- nodeficiente.
te precisos, com sintomas e sinais locais su-
gestivos acompanhados de comprometimen- • Laringites Agudas: A laringite, juntamen-
to sistêmico (febre, mal-estar, mialgias, dor), te com a laringotraqueíte e a laringotraque-
pois sabe-se que a maioria dos episódios de obronquite formam um grupo de doenças
otite média aguda curam espontaneamente; que caracterizam a “síndrome do crupe”, e
• Crianças maiores de dois anos com sinto- recebem as denominações acima descritas,
mas leves devem ser observadas por 48 horas de acordo com o grau de extensão de envol-
antes de se iniciar o antibiótico (exceto os vimento das vias aéreas. Elas se manifestam
menores de dois anos devido a imaturidade clinicamente por rouquidão, tosse ladrante,
imunológica); estridor predominantemente inspiratório e
• A secreção no ouvido médio ainda pode per- graus variáveis de desconforto respiratório.
sistir por vários dias mesmo após o término
do tratamento, não significando que se deva Quanto a etiologia da síndrome é princi-
fazer nova medicação; palmente viral, sendo os principais agentes os
vírus parainfluenza, influenza e o vírus respira-
O antibiótico de escolha para tratar a tório sincicial.
OMA é a amoxicilina, na dose de 50 mg/Kg/ A Laringotraqueobronquite (compro-
dia de 12/12horas. A criança deve ser vista no- metimento da laringe, traquéia e brônquios) é
vamente com cinco a sete dias para decisão de a causa mais comum de obstrução das vias aé-
concluir o tratamento (com exceção em crian- reas superiores em crianças, respondendo por
ças menores de dois anos) ou completar 10 dias, 90% dos casos de estridor. A faixa etária aco-
conforme a resposta clínica. Os pais devem ser metida é de 1 a 6 anos com pico de incidência
informados que a melhora dos sintomas ocorre, aos 18 meses.
em média, com 48 a 72 horas. Caso a criança pio- A infecção se inicia com o acometimen-
re (mantenha febre alta, piore da dor, aumente to viral da nasofaringe e o processo se estende

340
Capítulo 29 • Infecções das vias aéreas superiores

pelo epitélio respiratório até a árvore bronco- da temperatura corporal. Em geral os sintomas
alveolar. Há formação de edema significante na cedem entre 3 a 7 dias. A maioria das crianças
região suglótica (1mm de edema nesta região, tem sintomas leves que não progridem para obs-
causa 50% de diminuição do calibre da traquéia) trução progressiva das vias aéreas.
com restrição ao fluxo de ar e aparecimento de Alguns casos são de risco potencial para o
estridor inspiratório. desenvolvimento de falência respiratória: crian-
O quadro clínico se inicia com rinorréia ças menores de 6 meses de idade, pacientes com
clara, faringite, tosse leve e febre baixa. Após 12 estridor em repouso ou alteração do nível de
a 24 horas, iniciam-se os sintomas de obstrução consciência. A tabela abaixo mostra um escore
de vias aéreas superiores, com progressão dos clínico de detecção de gravidade do quadro de
sinais de insuficiência respiratória e aumento insuficiência respiratória.

SINAL 0 1 2 3
Estridor Ausente Com agitação Leve em repouso Grace em repouso
Retração Ausente Leve Moderado Grave
Entrada de ar Ausente Normal Diminuída Muito diminuída
Cor Normal Normal Cianótica com agitação Cianótico em repouso
Nível de consciência Normal Agitação sob estímulo Agitação Letárgico

Tabela. Escore clínico para abordagem de estridor.


Escore Total: < 6 = leve; 7 – 8 = moderada; > 8 = grave
Adaptada de Tausig LM, Castro O, Biandy PA, et al.. Am j Dis Child 1975; 129: 790-95

O diagnóstico é eminentemente clínico • Nebulização: apesar de não ter eficácia com-


e o RX da região cervical mostrando estreita- provada, é rotineiro o uso de nebulização com
mento da traquéia subglótica é de pouco valor, solução fisiológica, ou ar umidificado. Se a
pois pode ser encontrado em crianças saudá- criança ficar muito agitada, o procedimento
veis, que apresentam um estreitamento anatô- deve ser suspenso, pois isso fará com que o flu-
mico dessa região. xo de ar na via aérea superior se torne turbulen-
to, aumentando a resistência à sua passagem.
• Laringite espasmódica: Esta condição aco- • Corticosteróides: o seu benefício no trata-
mete crianças de três meses a três anos de mento das larigotraqueobronquites já está
idade e se inicia com sintomas de resfriado bem documentado. A dexametasona é uma
comum. O estado geral está conservado. Em boa opção por ser um potente glicocorticóide
geral, à noite a criança acorda com dispnéia e ter longo período de ação (> 48 horas). Pode
súbita, rouquidão, tosse ladrante e estridor ser administrada tanto por via oral como pa-
inspiratório. Não há presença de febre e a renteral, em dose única, variando de 0,15 mg/
criança melhora após ser acalmada e uso de Kg nos casos leves até 0,6 mg/Kg nos graves.
nebulização. A etiologia parece ser mais uma • Epinefrina: a epinefrina por via inalató-
reação alérgica ao vírus do que a ação do pró- ria tem um efeito marcante na melhora dos
prio agente. Nos casos que não resolvem es- sintomas do crupe, diminuindo o estridor e
pontaneamente pode ser feito o mesmo trata- os sintomas de falência respiratória. A dose
mento da laringotraqueíte viral. para inalação é de 2 ml (2 ampolas) de epine-
Tratamento: O objetivo é manter as vias frina (1:1000) diluídos em 2 ml de Soro Fi-
aéreas pérvias. siológico a 0,9%. A criança deve permanecer

341
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

na unidade de emergência por três a quatro Bibliografia


horas a fim de se avaliar a necessidade de re-
petir a dose. Behrman RE, Kliegman RM, Arvin AM. Tratado
• Internação: os critérios clínicos que sugerem de pediatria. Rio de Janeiro: Editora Guanabar
internação hospitalar são: Koogan: 1998. 136: 731-733.
- Toxemia; Benguigui Y et al. Infecciones respiratorias en
- Desidratação ou incapacidade de ingerir lí- niños. Washington, DC.: OPS; 1997. (OPS. Serie
quidos; HCT/AIEP-1).
- Estridor importante ou retrações em re- Duncan BB, Schmidt MI, Giugliani ERJ Coor-
pouso; denadores. Medicina ambulatorial: condutas na
- Ausência de resposta à administração de atenção primária baseadas em evidência, 3. ed.
epinefrina ou piora clínica, 2-3 horas após Porto Alegre: Artmed; 2004.
o seu uso;
Marcondes E, Leone C, Issler H. Coordenadores.
- Pais não “confiáveis”. Pediatria na atenção primária. São Paulo: Sarvier,
2002;
Sih T. Coord. IV Manual de otorrinolaringologia
pediátrica da IAPO. São Paulo. Ed. Lis Gráfica &
Editora, 2006.
www.brasilmedicina.com.br/especial/oto_t1s7s4.
asp. Acesso em 23/09/2006.

342
Capítulo 30
Pneumonia na infância mortalidade são decorrentes nos países em de-
álvaro JorGe Madeiro leite senvolvimento de fatores relacionados à condi-
ção de pobreza de amplas parcelas da população;
deficiências na habitação; aglomeração e polui-
ção domésticas; demora e dificuldade de acesso
aos serviços de saúde; características clínicas da
criança baixa idade; baixo peso ao nascer; des-
nutrição moderada a grave; aleitamento mater-
no por curtos períodos; déficit de vitamina A;
Introdução anemia ferropriva; tabagismo domiciliar.
No início dos anos 80, a Organização Mun-

A s infecções respiratórias agudas (IRA) são


doenças muito freqüentes na faixa etá-
ria pediátrica. A freqüência anual de IRA nos
dial da Saúde (OMS) patrocinou o programa de
controle de infecções respiratórias agudas que
normatizava o diagnóstico e tratamento dos ca-
primeiros anos de vida em todas as regiões do sos de pneumonia em crianças menores de cinco
mundo é de quatro a oito episódios anuais nos anos nos países em desenvolvimento. Esse pro-
primeiros cinco anos de vida; no entanto, a inci- grama foi implantado no Brasil a partir de 1984,
dência de pneumonia é de cinco a 10 vezes maior tendo sido incorporado às ações básicas do pro-
nos países em desenvolvimento que nos países grama para a assistência integral à saúde da crian-
desenvolvidos. Tais episódios, frequentemente, ça (PAISM) e, mais recentemente, à atenção inte-
são graves e responsáveis por elevadas taxas de gral às doenças prevalentes da infância (AIDPI).
hospitalização (cerca de 20 a 40% do total) e óbi- O óbito de crianças com pneumonia em
to (85% dos casos de IRA). países em desenvolvimento está fortemente re-
A pneumonia é uma infecção do parênqui- lacionado com a etiologia bacteriana em crian-
ma pulmonar, comprometendo brônquios, bron- ças vulneráveis e na presença de fatores de risco.
quíolos, alvéolos e interstício, sendo responsável Daí, a importância de um serviço de saúde que
por cerca de quatro milhões de óbitos de crian- seja capaz de identificar precocemente, dentre as
ças menores de cinco anos de idade no mundo crianças com IRA quais as com provável pneu-
de um total de quase 12 milhões de óbitos, 95% monia e iniciar o tratamento precoce.
dos quais, nos países em desenvolvimento. No Um aspecto essencial para o controle das
entanto, com o conhecimento disponível hoje, pneumonias diz respeito à capacidade que as
é possível prevenir ou tratar adequadamente, e mães devem adquirir para reconhecerem preco-
evitar o óbito dessa grande maioria de casos, o cemente os sintomas de provável pneumonia em
que caracteriza a pneumonia como uma das mais seus filhos e decidir buscar atendimento nos ser-
importantes causas de óbito prevenível. viços de saúde, se o mesmo estiver disponível.
A redução anual dos óbitos por pneumo-
nia em países em desenvolvimento equivale ape-
nas a dois terços da redução obtida pelos países Caso Clínico
desenvolvidos, onde a taxa de mortalidade che-
ga a ser 35 vezes menor. Os fatores de risco que Uma criança de 15 meses de idade é trazida à
determinam maior gravidade dos casos e maior consulta por que há cinco dias iniciou com secreção

343
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

nasal, tosse e febre baixa e, desde ontem, apresenta Primeiro trimestre de vida
dificuldade para respirar, piora da tosse e elevação
da temperatura corporal – no momento com 39.2ºC. Além das bactérias gram-negativas, exis-
Ao examiná-la, você constata palidez cutânea, certo te um grupo de microorganismos que causam
grau de irritabilidade, FR = 54 rpm, ausência de pneumonias em crianças com idade compreendi-
tiragem subcostal e de sibilância. A mãe lhe pergunta da entre um e três meses de vida. É a denomina-
se o filho tem pneumonia e se será necessário hospi- da “pneumonia afebril do lactente” causada por
talizá-lo. Clamidia trachomatis, Ureaplasma urealyticum.
Na situação clínica apresentada acima,
podemos especular que a mãe procurou ajuda
assim que notou a piora da criança; em lingua- Lactentes com mais de três meses de idade
gem médica, na mudança do padrão da evolução
natural de um quadro de IVAS. Por ordem de freqüência, os agentes cau-
sais são os vírus, sobretudo o respiratório sinci-
cial, o Streptococcus pneumoniae e o Haemophylus
Etiologia influenzae, sobretudo o tipo b e as cepas não-ti-
páveis, e S. aureus.
Na prática clínica diária são muitas as difi-
culdades para se identificar os microorganismos
responsáveis pelo acometimento pulmonar, além Pré-escolares
do que, na maioria dos casos atendidos em ABS,
esse passo assistencial não é necessário. Vírus po- Os agentes bacterianos principais seguem
dem ser identificados rapidamente por métodos sendo o Streptococcus pneumoniae e o Haemophylus
de imunofluorescência. Bactérias exigem méto- influenzae, mas com progressivo destaque para os
dos onerosos, alguns com riscos colaterais ele- primeiros. Staphylococcus aureus reduz-se e, come-
vados e pouca utilidade em ABS (hemocultura, ça a assumir importância M. pneumoniae, que se ele-
aspiração transtraqueal e punção pulmonar). A va paulatinamente a partir de quatro e cinco anos.
idade continua sendo o melhor parâmetro na de-
finição da etiologia dos quadros pneumônicos.
Escolares e adolescentes

Período Neonatal Pneumococo é o principal causador dos


quadros bacterianos. Na ausência de quadro clí-
• Recém-nascido com quadros clínicos inicia- nico bem caracterizado e/ou resposta terapêutica
dos precocemente (idade inferior a três dias insatisfatória, deve-se considerar a presença do
de vida), provavelmente adquiriram pneu- M. pneumoniae, microorganismo de importância
monia intra-útero. Agentes mais prováveis: crescente nesta faixa etária.
Streptococcus do Grupo B, Gram-negativos e Algumas características clínicas podem
Listeria monocitogenes, este pouco comum em sugerir o agente etiológico responsável pela
nosso meio. pneumonia:
• Recém-nascidos com quadros clínicos inicia- • Hemófilo: evolução arrastada, associado à
dos após o terceiro dia de vida são prováveis otite e sinusite.
portadoras de S. aureus e S. epidermidis, além • Estafilococo: início agudo, com febre alta
dos Gram-negativos. e persistente, toxemia, anemia, presença de

344
Capítulo 30 • Pneumonia na infância

impetigo ou abscesso, processo pneumônico Taquipnéia é o sinal isolado mais sensível


extenso com complicações mais freqüentes para o diagnóstico de pneumonia em crianças
(pneumatoceles, abscesso e derrame). menores de cinco anos. Deve ser avaliada com a
• Micoplasma: tosse importante, acometendo criança afebril, tranqüila, contada durante 1 mi-
vários indivíduos na mesma família, quadro nuto, de preferência, por duas vezes. Se não vier
arrastado, acompanhado de cefaléia, miringi- associada com qualquer dos sinais clínicos des-
te bolhosa, exantema. critos abaixo a criança pode ser tratada em regi-
• Vírus: exantema, conjuntivite, faringite, mialgia me ambulatorial. Usar um relógio para contar
e acometimento de outras pessoas na família. a FR por um minuto.
• Clamidia trachomatis: síndrome da pneu- A valorização da taquipnéia é feita de
monia afebril do lactente (idade entre 1 e 3 acordo com a idade da criança:
meses), tosse importante (pode ser paroxísti- • Igual ou superior a 60 incursões/minuto em
ca), com história perinatal de vulvovaginite crianças com menos de 2 meses
materna, parto normal, conjuntivite neonatal • Igual ou superior 50 incursões/minuto em
e eosinofilia no sangue periférico crianças com idade entre 2 e 11 meses,
• Igual ou superior 40 incursões/minuto em
crianças com idade entre 12 e 59 meses.
Clínica: elementos essenciais para o É importante lembrar que:
diagnóstico • A taquipnéia, quando ausente, é o melhor indica-
dor para afastar a probabilidade de pneumonia;
Face à elevada freqüência de quadros de • A presença de tiragem, juntamente com ou-
IRA é fundamental que os profissionais de saúde tros sinais de esforço para respirar, aumentar
da porta de entrada do sistema de saúde – ABS a chance de pneumonia
ou PSF – sejam capazes de distinguir dentre as
crianças com quadro clínico de IRA, aquelas No entanto, essas mesmas alterações clíni-
com provável pneumonia. cas podem estar presentes em outras doenças das
As manifestações clínicas decorrentes do vias aéreas inferiores, como bronquiolite, sibilân-
acometimento pulmonar são comuns às diversas cia associada à infecção viral ou crise aguda de
etiologias, embora algumas manifestações guar- asma. Assim, a abordagem em tais situações deve
dem relação estreita com determinado agente consistir em averiguar a presença de quadro in-
etiológico. O diagnóstico da pneumonia é base- feccioso grave (toxemia), história de episódios an-
ado em sinais clínicos de fácil identificação (alta teriores de dificuldade respiratória e de sibilos à
sensibilidade e especificidade). ausculta. Fazer, então, a administração de bronco-
Frequentemente, a criança apresenta sinais dilatador pela via inalatória, re-examinar a crian-
e sintomas de infecção das vias aéreas superiores ça e voltar a avaliar a freqüência respiratória.
associado à febre, tosse e dificuldade para respirar. Sinais clássicos de dificuldade respira-
A avaliação da gravidade da pneumonia tória devem ser cuidadosamente investigados,
está apoiada na análise de duas características uma vez que significam maior gravidade clínica
do quadro clínico: o estado infeccioso e o grau e, em algumas situações, a criança pode estar em
de dificuldade respiratória. O quadro infeccioso risco de vida:
é analisado por intermédio da intensidade da to- • Tiragem Subcostal
xemia e a dificuldade respiratória pela elevação • �atimentos de Asas de Nariz
da freqüência respiratória e utilização da mus- •�alanço Toracoabdominal
culatura acessória. •Retração Xifóidea

345
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

O sinal mais precoce de gravidade clínica identificar precocemente crianças sob condição
é a tiragem ou retração subcostal, que dever ser de risco de vida.
definitiva, presente todo o tempo (Figura 1) o
que isoladamente é indicativo da necessidade de
referir a criança para melhor avaliação ou trata- Radiografia do Tórax
mento hospitalar. Cianose é sinal tardio; pode
haver hipoxemia sem cianose. Palidez cutânea Não é necessária para confirmar a maio-
é um sinal mais precoce de hipoxemia do que a ria dos casos de leve e moderada gravidade. No
cianose. Crianças pequenas têm maior risco de entanto, em crianças com quadro clínico mais
desenvolver insuficiência respiratória e apnéia. grave ela deve ser solicitada:
Ausculta: murmúrio vesicular diminuído • Para avaliar a e�tensão do processo pneumônico
no local da área comprometida é um dos acha- • Quando houver suspeita de complicações
dos mais freqüentes, associado à presença de es- (pneumatoceles, derrame, abscesso)
tertores crepitantes. Sibilância sugere fortemen- • Para orientar o diagnóstico diferencial e con-
te etiologia viral ou asma; a ausculta pode estar tribuir na decisão de internar ou não o pa-
normal em até 30% dos casos. ciente e na escolha do antimicrobiano.

De maneira característica as alterações ra-


diológicas são as seguintes:
• Pneumonia por vírus (padrão intersticial):
Espessamento peribrônquico, infiltrados in-
tersticiais difusos, pequenas áreas de conflu-
ência e de atelectasia; sinais de hiperinsulfla-
ção pulmonar.
• Pneumonia por Bactérias (padrão alveolar):
condensações lobares ou segmentares unila-
Fig. 1
terais; broncograma aéreo; lesões extensas
Exames complementares são de pouca va- associadas à pneumatoceles, derrame pleural
lia na atenção à criança com provável pneumonia ou abscesso.
de leve a moderada gravidade (tosse e taquipnéia
sem tiragem subcostal). Hemograma pode ser de Controle radiológico do tratamento não
alguma utilidade em casos selecionados. deve ser realizado em casos ambulatoriais que
Hemocultura está restrita aos casos graves apresentarem boa evolução; nos casos complica-
em pacientes hospitalizados. Identificação de dos, com evolução desfavorável, e nas pneumonias
antígenos por intermédio de amostras de san- de repetição a criança deve estar hospitalizada.
gue, urina ou líquido pleural (contraimunoele-
troforese ou aglutinação por látex) são de valor
limitado na clínica diária.
Serviços de pronto atendimento devem
dispor de medidas mais objetivas da hipoxemia
e/ou insuficiência respiratória, bem como de
serviços de radiologia para melhor avaliação dos
casos mais graves. Oximetria de pulso ou gaso-
metria estariam indicadas nesses ambientes para
Fig. 2

346
Capítulo 30 • Pneumonia na infância

Critérios para internação • Situação sócio-familiar muito compro-


metida;
Em atenção básica de saúde, a maioria dos • Falha do tratamento ambulatorial;
casos de pneumonia é de gravidade leve a mo-
derada. No entanto, é importante identificar os
poucos casos de pneumonia grave, uma vez que Comentário do Caso Clínico
tais casos devem ser tratados em ambiente hos-
pitalar. Nessa situação, enquanto se preparam as Com os dados clínicos coletados pelo mé-
condições para um transporte adequado, a crian- dico é possível afirmar que a criança é portadora
ça deve receber a primeira dose de antibiótico, de provável pneumonia. Em caso de sibilância,
principalmente se a estimativa de tempo para deve-se tratar com medicação broncodilatora de
chegar ao hospital for superior a 6 horas, pois ação rápida e reavaliar a FR.
estas crianças podem estar sob risco de vida por
insuficiência respiratória aguda.
Depois de estabelecido o diagnóstico de Tratamento Ambulatorial
pneumonia, uma questão é crucial responder: a
criança deve ser ou não internada? Qual o antibiótico que deve ser utilizado?
O sinal clínico mais precoce e sensível é a • Crianças com idade maior ou igual a 2 meses:
presença de tiragem subcostal (Figura 1). Penicilina por via oral (amoxicilina, 8/8 ou
Deve-se também avaliar a presença das se- 12/12 horas) ou por via intramuscular (penicili-
guintes condições: na procaína, a cada 24 horas) durante 5 a 7 dias.
• Dificuldade respiratória importante O objetivo é tratar as bactérias mais freqüentes:
• Cianose, hipo�emia, irregularidade res- Streptococcus pneumoniae e Haemophilus in-
piratória, apnéia; fluenzae. São drogas eficazes contra pneumoco-
• Dificuldade de alimentar, vômitos, de- cos parcialmente resistentes a penicilina.
sidratação;
• Alterações do sensório (confusão men- Toda criança tratada no ambulatório deve
tal, irritabilidade); reavaliada em 48-72 horas do início do tratamen-
• Instabilidade hemodinâmica (pulsos fi- to. Se não apresentar melhora e não houver indi-
nos, perfusão lenta), taquicardia impor- cação de internamento, deve-se substituir o an-
tante (FC > 130bpm); tibiótico por outro que seja resistente à ação das
betalactamases. Tal conduta baseia-se no fato de
Outros critérios que devem ser obser- que H. influenzae e Moraxella catarrhalis podem
vados: causar pneumonia e podem também produzir
• Idade inferior a 6 meses (principalmen- betalactamases. A falta de melhora do quadro,
te < 2 meses); poder decorrer da existência de pneumococos de
• Alterações radiológicas revelando limitada sensibilidade às penicilinas.
pneumonia extensa, pneumatoceles, Cotrimoxazol, apesar de baixo custo e
pneumotórax, derrame pleural, absces- poucos efeitos adversos não deve ser utilizado
so (figura 2); como droga de escolha, uma vez que são cres-
• Condições clínicas associadas: cardio- centemente ineficazes contra S. pneumoniae e H.
patia, mucoviscidose, displasia bronco- influenzae.
pulmonar, imunodeficiência, desnutri- Em caso de suspeita clínica de Chlamydia
ção grave; trachomatis, Chlamydia pneumoniae, Mycoplasma

347
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

pneumoniae ou Bordetella pertussis, a opção é um mentaram, matriculadas em creche, precário


dos macrolídeos, preferencialmente a eritromi- estado nutricional, vivendo em aglomeração
cina, durante 14 dias. domiciliar e com fumantes no domicílio são
• Crianças com menos de 2 meses de idade: as de maior risco para pneumonia grave e me-
Devem ser sempre tratadas em regime hospi- lhor tratadas em ambiente hospitalar.
talar com a associação de ampicilina e ami- • Casos inalterados: Persistência do quadro
noglicosídeo (gentamicina, amicacina ou to- infeccioso toxêmico, da febre e da taquipnéia.
bramicina) ou ampicilina e cefalosporina de Exame clínico e estado geral da criança inal-
terceira geração (cefotaxima ou ceftriaxona). terados, mudar o antibiótico. Dependendo
• Recém-nascidos: Cefotaxima, uma vez que do estado da criança, pode-se acompanhar a
ceftriaxona liga-se às proteínas séricas e, por criança e aguardar até 72 horas para decidir a
isso, pode deslocar a bilirrubina, gerando ris- troca do antibiótico. Reavaliar novamente em
co aumentado de kernicterus. Havendo suspei- 48 horas.
ta de infecção por C. trachomatis, emprega-se • Casos de melhora: Em casos de ausência de
a eritromicina por 14 dias. febre, taquipnéia, melhora da ausculta respi-
ratória e do estado geral da criança, manter o
Também são importantes as medidas de antibiótico por mais 5 a 7 dias.
suporte, como a hidratação, a nutrição (em es-
pecial, manter o aleitamento materno), o uso
de broncodilatadores. Aumentar a oferta de ali- Prevenção
mentos depois da melhora.
A assistência pré-natal de qualidade, o
estímulo ao aleitamento materno, a vacinação
Como acompanhar a criança sob tratamento ampliada, um bom estado nutricional e a padro-
ambulatorial? nização na abordagem clínica que possibilite
diagnóstico precoce e terapêuticos apropriada
As mães devem ser orientadas quanto e oportuna, têm sido apontados como medidas
à necessidade de observar a criança e retornar eficazes na redução da morbi-mortalidade por
no caso de evolução desfavorável. Em princípio pneumonia.
agendar um primeiro retorno com 48-72 horas
do início do tratamento.
Para se avaliar a resposta clínica basear-se
no estado geral da criança, curva térmica e exa-
me do aparelho respiratório. É esperado que a
criança esteja afebril em até 72 horas, dependen-
do do agente etiológico, e que tenha melhora do
quadro infeccioso (toxemia), bem como da fre-
qüência respiratória.
• Casos de piora: Nos casos em que a criança
apresenta durante a evolução algum dos sinais
clínicos de gravidade citados acima, referir
a criança para o hospital. Crianças menores
de um ano de idade, de baixo nível socioeco-
nômico, baixo peso ao nascer, que não ama-

348
Capítulo 30 • Pneumonia na infância

Bibliografia

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349
Capítulo 31
Bronquiolite viral aguda Caso Clínico
Maria das Graças nasciMento e silva
álvaro JorGe Madeiro leite Criança de seis meses chega à Unidade de Saú-
de com queixas de tosse, febre e dificuldade para respi-
rar. A mãe relata que o quadro teve inicio há três dias
com febre, tosse discreta e coriza. Nas ultimas horas
passou a apresentar “cansaço”.
Ao exame: a criança está hidratada e aceita o
seio materno normalmente.
Introdução FR = 50 irpm; tiragem subcostal leve e sibilos
expiratórios audíveis em ambos os pulmões;

A s infecções de vias aéreas inferiores têm


elevada freqüência em crianças, particular-
mente nos dois primeiros anos de vida, quando
A mãe está preocupada com a possibilidade de
internação e pergunta se será necessário fazer um Rx
de tórax.
se estima que 25 a 30 crianças em cada 100 sejam
infectadas por ano.
No curso destas infecções, que são pre- Aspectos conceituais
dominantemente virais, a ocorrência de si-
bilância é bastante elevada. Dentre os vírus Bronquiolite viral aguda (BVA) é uma
responsáveis por infecções respiratórias com doença infecciosa das vias aéreas inferiores, cau-
“chiado no peito” destacam-se: o vírus sinci- sada mais frequentemente pelo Vírus Sincicial
cial respiratório (VSR) que responde por cerca Respiratório (VSR; 75% das vezes), e que acome-
de 50% dos casos, o parainfluenzavírus (20%), te lactentes, preferencialmente na faixa de 3 a 6
e o adenovirus (15%). meses. Outros vírus responsáveis por quadros de
Estes patógenos podem alterar a função e BVA são os adenovírus, influenza, parainfluenza
o desenvolvimento pulmonar, causando altera- e algumas bactérias (micoplasma, clamídia).
ções da responsividade das vias aéreas, da fun- A contaminação pelo VSR geralmente
ção pulmonar e da resposta imunológica. ocorre dentro de casa, comumente pelos pais ou
Não obstante várias bactérias também po- irmãos, sendo mais freqüente no inverno.
derem determinar infecções respiratórias com
crises de sibilância, pela importância epide-
miológica da Bronquiolite Viral Aguda (BVA), Quando suspeitar de BRONQUIOLITE?
bem como sua evolução para crises recorrentes
de sibilância em até 50% dos casos e, para do- Em crianças com idade compreendida
ença obstrutiva crônica (Bronquiolite Oblite- entre três meses e dois anos de idade que ini-
rante) em 2%, é importante que o Médico de cia com sinais e sintomas de infecções de vias
Família tenha conhecimentos epidemiológicos aéreas superiores (coriza, obstrução nasal, fe-
e habilidade para identificar fatores de risco e bre e tosse irritativa) e em cerca de 2 - 3 dias
delinear planos diagnósticos, terapêutico e de evolui com quadro respiratório obstrutivo de
acompanhamento ambulatorial. graus variáveis, com taquipnéia, tosse e sibi-
lância expiratória.

351
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Na maioria das vezes o quadro clínico é Sinais clínicos de gravidade ou que predizem
leve, podendo a criança ser liberada para o do- insuficiência respiratória (Quadro 1)
micílio. Apenas 2 - 5% dos casos necessita de
hospitalização, com 1 - 2% destes pacientes ne- Na ausência de medidas objetivas da oxi-
cessitando de UTI. genação tecidual (oximetria de pulso, gasome-
tria arterial), pode-se avaliar os sinais precoces
de hipóxia e hipercapnia segundo os conheci-
Elementos essenciais ao diagnóstico mentos fisiopatológicos:
• inicialmente, a criança aumenta a freqü-
• idade da criança (mais freqüente nos pri- ência respiratória; nas fases seguintes,
meiro ano de vida, em especial no primeiro utiliza musculatura acessória - tiragem
semestre); intercostal, e depois, tiragem subcostal;
• início com quadro de infecção das vias aéreas tais aspectos correspondem a hipoxemia
superiores febril e tosse seca; (baixa saturação), e em seguida, reten-
• evolução em curto período com dificuldade ção de CO2; correlatos de irritabilidade,
respiratória, predominantemente, expiratória; sonolência, torpor e coma.
• freqüência
freqüência respiratória elevada, ausculta pul-
respiratória elevada, ausculta pul-
monar com estertores finos (às vezes, sibilân-
cia expiratória), uso de musculatura acessória
– tiragem intercostal e subcostal; batimentos Quando solicitar exames complementares
de asa do nariz.
• estado geral da criança, frequentemente bom; O diagnóstico é, fundamentalmente, ba-
ausência de toxemia ou com grau leve. seado na clínica, ficando os exames comple-
mentares (RX de tórax, leucograma e avaliação
da dificuldade respiratória) reservados para
Quando hospitalizar? os casos de maior gravidade ou na suspeita de
complicações.
A maioria dos casos pode ser manejado em Os achados radiológicos são rebaixamen-
ambulatório. No entanto, é possível identificar to das cúpulas diafragmáticas, retificação ou
um grupo de crianças mais vulnerável. Crianças mesmo inversão das cúpulas diafragmáticas,
com qualquer dos fatores de risco abaixo são de aumento do espaço aéreo retro-esternal, hori-
risco para quadros mais graves, inclusive com zontalização dos arcos costais e focos de atelec-
risco de morte: tasia (condensçaões segmentares ou segmenta-
• menores de três meses de idade; res e lobares).
• prematuros (idade gestacional < 34 se-
prematuros (idade gestacional < 34 se- A saturação de O2, por oximetria de pul-
manas), particularmente, aqueles com so, é muito útil na classificação da gravidade do
displasia broncopulmonar; quadro, tornando-se imprescindível nos casos
• doenças congênitas, particularmente de maior gravidade. Saturometria < 90% em ar
cardiopatias ambiente é indicativo de gravidade.
• doenças hereditárias, tipo fibrose cística. A classificação da gravidade pode ser
• crianças com sinais clínicos de gravida-
crianças com sinais clínicos de gravida- realizada mediante a utilização de parâmetros
de (Quadro 1) clínicos e laboratoriais conforme se observa no
Quadro 1.

352
Capítulo 31 • Bronquiolite viral aguda

Parâmetros Leve Moderada Grave β2 - agonistas inalados devem ser utiliza-


Comprome- dos no início do tratamento e descontinuados,
E. Geral/ Bom/ Regular/
tido/ caso não ocorra melhora clínica. Adrenalina por
Hidratação Preservada Desidratação
Desidratação
nebulização tem indicação controvertida.
Aceitação
Alimentar
Normal Diminuída Recusa Os esteróides sistêmicos parecem não re-
↑ 70 ou
duzir o tempo de hospitalização, nem a melhora
FR ↓ 40 40 - 70
apnéia dos sintomas respiratórios. Padrão idêntica de
Cianose Ausente Discreta Grave resposta também observa-se com o uso de corti-
Tiragem Leve/ Moderada - cóide inalatório.
Ausente
subcostal moderada grave Teofilina, sedativos da tosse e fisioterapia
Saturação Maior ou Menor ou na fase aguda, são contra-indicados.
92 - 94%
de Oxigênio igual a 95% igual a 91%
Nenhuma droga antiviral (ribavirina, por
Quadro I. Classificação da Gravidade da BVA
exemplo) tem eficácia claramente demonstrada.

Como fazer o tratamento?


Como prevenir
TRATAMENTO DA BVA
Crianças de alto risco – com idade inferior
Avaliar Gravidade a três meses, recém-nascidos prematuros (< 35
semanas), lactentes com doença pulmonar crô-
Leve Moderada Grave UTI nica, cardiopatia congênita síndromes de imu-
nodeficiência.
Domicílio ou UBS Hospital sem UTI
• Eliminar e�posição fumaça de tabaco
no ambiente em que vive a criança.
• Hospital oral
• Alimentação normal • Evitar exposição à creches.
• O2 contínuo até melhora
• Nebulização com ฀2
(1gt/3 kg)
• Hidratação venosa por • Medidas preventivas: Palivizumab (anti-
Medidas preventivas: Palivizumab (anti-
12 - 24h
• Nebulização com ฀2 a
corpo monoconal humano; medicamento
Melhora Piora
cada 4 - 6h de alto custo, não disponível no Brasil).
• Monitorar o�imetria

• Seguimento por 2 - 3 dias


• Manter nebulização com ฀2 Melhora Piora UTI Prognóstico
se houver boa resposta

• Evolução benigna na maioria dos casos


• Mortalidade em torno de 1%
O tratamento da BVA é basicamente de su- • Pacientes com fatores de risco apresentam
porte. Os aspectos principais continuam sendo: mortalidade de até 5%
• manter a hidratação da criança • Possível
Possível relação com desenvolvimento subse-
relação com desenvolvimento subse-
• manter uma adequada oxigenação tecidual qüente de asma.

Administração de oxigênio é a medida mais As crianças com BVA costumam evoluir


importante juntamente com a manutenção do es- para cura em 4 - 8 semanas. A maioria daque-
tado de hidratação. Iniciar oxigenioterapia com las que foram hospitalizadas podem apresentar
saturação de O2 menor ou igual a 91%. Lembrar crises de sibilância recorrente por até 2 meses
de recomendar medidas de desobstrução nasal. após o primeiro episódio; 25% podem reinternar

353
por piora clínica e 2% destas podem evoluir para Galvão CES, Castro FFM. Infecções Virais e Bac-
bronquiolite obliterante (sibilância persistente terianas na Asma. In: Naspitz CK, et al. (Coord.)
com distintos graus de gravidade, ou seja, doen- Alergias Respiratórias. São Paulo: Vivali, 2003.
ça pulmnar de pequenas vias aéreas com ou sem 356 p. Cap. 14, p. 205-220.
hipoxemia e/ou cor pulmonale). Godfrey S, Barnes PJ, Naspitz CK. Asma e Si-
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• A criança evolui com episódios repetidos de 58, 2001, Recife, Resumos de Aulas, Nestlé Nu-
sibilância que tendem a se tornar menos gra- trition, 2001, p. 59-62.
ves e menos freqüentes com o decorrer do Mallia P, Johnston SL. Respiratory viruses: do
tempo e cessam após os 2 - 3 anos de idade they protect from or induce Asthma? Allergy, [S.
em aproximadamente 40% dos lactentes. l.], v. 57, n. 12, p. 1118-1129, 2002.
A probabilidade de asma é maior em crian- Martinez F, et al. Asthma and wheezing in the
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Portanto, a resposta à pergunta “Esta do- te com sibilância. In: Grumach AS, et al. (Ed.).
ença pode ser asma?” deverá ser baseada na clí- Alergia e Imunologia na Infância e na Adoles-
nica, na evolução dos sintomas e nos fatores de cência. São Paulo: Atheneu, 2001. 661 p. Cap. 9,
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episódios de piora clínica alternados com me-
guigui Y, et al. (Ed.) Infecções Respiratórias em
lhora parcial.
Crianças. Washington DC: [s.n.], 1998. 496 p.
• Rx
R� tóra� - hiperinsuflação pulmonar, atelec-
tórax - hiperinsuflação pulmonar, atelec-
Cap. 13, p. 263-281.
tasias, espessamento de paredes brônquicas e
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Capítulo 32
Asma Caso Clínico
Maria das Graças nasciMento e silva
Criança de 8 anos com queixas de tosse e “di-
ficuldade para respirar”. Os sintomas ocorrem de
modo recorrente, com intervalos variáveis desde o 1º
ano de vida. A mãe relata que há melhora com o uso
de “xarope para cansaço”. Há também relato de obs-
trução nasal persistente e espirros matutinos. Já teve
“2 pneumonias”. História familiar – Pai tem tosse e
Introdução espirros freqüentes. Convive com pessoas fumantes no
domicílio.

N as últimas décadas, o conhecimento do au-


mento da prevalência das doenças alérgi-
cas, notadamente do binômio “asma-rinite”, tem Conceito
contribuído para modificar as estratégias de in-
tervenção voltadas para o manejo adequado dos A asma é uma doença caracterizada por
casos, especialmente no que se refere à asma. hiperresponsividade das vias aéreas inferiores e
Com uma prevalência média de 14% em por limitação variável ao fluxo aéreo, reversível
nosso país, a asma constitui-se a 3ª causa de aten- espontaneamente ou com tratamento, manifes-
dimentos em serviços de emergência e a 4ª causa tando-se clinicamente por episódios recorrentes
de hospitalizações pelo SUS. Em 2004, foram no- de sibilância, dispnéia, aperto no peito e tosse,
tificados no DATASUS mais de 190 mil interna- particularmente à noite e pela manhã ao des-
ções por asma em crianças entre zero e 14 anos, pertar. Resulta de uma interação entre genética,
com gastos de mais de R$ 60 milhões de reais. exposição ambiental a alérgenos e irritantes, e
Na faixa etária pediátrica a asma é a doen- outros fatores específicos que levam ao desenvol-
ça crônica mais comum, com 80% das crianças vimento e manutenção dos sintomas (IV Dire-
iniciando seus sintomas durante os primeiros trizes Brasileira para o manejo da asma, 2006).
dois anos de vida. No início do quadro, é fre-
qüentemente mal diagnosticada e subtratada
levando à morbidade desnecessária. No entan- Características fisiopatológicas
to, a asma pode ser perfeitamente controlada e
a maioria dos pacientes pode alcançar uma vida São três as características fisiopatológi-
norma e saudável. cas principais: obstrução, hiper-responsividade
A asma foi, durante anos, considerada “do- brônquica e inflamação.
ença para especialistas”; atualmente, sua magni- A OBSTRUÇÃO é decorrente de diversas
tude e importância no campo da saúde pública, anormalidades patogênicas, a saber: hipertrofia do
incluindo os gastos decorrentes da utilização músculo liso brônquico; presença de células infla-
dos serviços de emergência e das internações matórias que produzem mediadores que agem na
desnecessárias, faz-se indispensável que a asma descamação epitelial, aumentando a permeabilida-
passe a fazer parte do elenco de patologias com de vascular, com conseqüente edema da mucosa e
resolutividade no nível da Atenção Primária. hipersecreção de muco; o remodelamento epitelial,

355
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

pouco estudado em crianças, também pode contri- tar dados quando se está diante de uma criança
buir para o mecanismo obstrutivo das vias aéreas. com provável asma: IDENTIFICAR ASMA (iní-
HIPER-RESPONSIVIDADE BRÔNQUI- cio, desencadeantes, evolução, número de crises,
CA reflete a resposta brônquica exagerada dian- tratamentos realizados, internação, fatores asso-
te de diferentes estímulos como poeira, ácaros, ciados – otite, sinusites – intercrise (sintomas
fungos, polens, alérgenos animais, ar frio e seco, noturnos, exercícios), crises (sintomas, duração),
exercício físico, poluentes, infecções virais, solu- atopia no paciente (dermatite, rinite), alergia ali-
ções hipo e hipertônicas. mentar, resposta a broncodilatadores; amigdalec-
A INFLAMAÇÃO está presente em todos tomia/adenoidectomia, sensibilidade aos alérge-
os pacientes asmáticos, inclusive naqueles com nos, moléstias associadas, atopia familiar.
asma de início recente, nas formas leves da doen- Na criança, o diagnóstico de asma nem
ça e mesmo entre os assintomáticos. Caracteriza- sempre é fácil de ser confirmado, principalmen-
se por infiltração eosinofílica, degranulação de te em crianças pequenas, tanto pelos sintomas
mastócitos, ativação de linfócitos Th2, que pro- que podem não ser clássicos como pela existên-
duzem citocinas, que promovem o recrutamento cia de outras doenças que cursam com sibilân-
celular para as vias aéreas (mastócitos, eosinófi- cia, o que vai exigir a realização de diagnóstico
los, macrófagos e neutrófilos). Essas células libe- diferencial acurado.
ram mediadores inflamatórios que causam lesões Em lactentes e nas crianças jovens, o de-
e alterações na integridade epitelial, anormalida- senvolvimento das crises está intimamente rela-
de no controle neural autonômico no tônus da cionado às Infecções de Vias Aéreas Superiores
via aérea, alteração na permeabilidade vascular, (IVAS). Estas crises são consideradas importan-
hipersecreção de muco, alteração na função ci- tes fatores de risco para exacerbação dos sinto-
liar e aumento da reatividade do músculo liso. mas, particularmente nesta população. Ainda,
nesse grupo etário, aspectos específicos devem
ser considerados: a) nos primeiros 3 anos de
Diagnóstico vida, a sibilância pode ser uma condição tran-
sitória associada à imaturidade da função pul-
A história clínica detalhada deve identi- monar, infecções virais e irritantes domiciliares
ficar sintomas que possam sugerir asma, clas- como o fumo; b) em 10 a 15% dos lactentes, os
sificar sua gravidade e correlacioná-los com os episódios de sibilância podem constituir uma
fatores precipitantes. manifestação precoce da asma (considerar histó-
Valorizar: ria familiar de atopia, dermatite atópica pessoal
• Tosse recorrente, principalmente, à noi- e hospitalização durante as crises); c) o diagnós-
te e pela manhã ao despertar; tico diferencial da sibilância recorrente inclui:
• Dificuldade para respirar, aperto no peito; bronquiolite viral aguda, sibilância induzida por
• Melhora com medicação; vírus, RGE, fibrose cística, malformações con-
• Sintomas nasais associados; gênitas e aspiração de corpo estranho, devendo
• História familiar positiva para alergia; ser investigados os casos com pobre resposta ao
• Melhora espontânea ou pelo uso de me-
Melhora espontânea ou pelo uso de me- tratamento; d) Para algumas dessas crianças, o
dicações específicas para asma (broncodi- diagnóstico só pode ser confirmado com o pas-
latadores, antiinflamatórios esteróides); sar dos anos, face à ocorrência de de sibilância
• Exclusão de diagnósticos alternativos. recorrente de origem não asmática.
Apesar da variedade de condições que cur-
Rozov (comunicação pessoal) apresentou sam com sibilância nos dois primeiros anos de
um método mnemônico muito útil para se cole- vida os sintomas não devem ser negligenciados,

356
Capítulo 32 • Asma

já que pode ocorrer comprometimento da fun- Relação entre rinite alérgica e asma
ção pulmonar por remodelamento em pacientes
inadequadamente tratados. Asma e rinite alérgica não devem ser en-
tendidas como entidades distintas, mas como
manifestações de um mesmo processo inflama-
Comentários tório. Vários são os mecanismos propostos para
explicar a relação das duas doenças:
1. “Dificuldade para respirar” + tosse Na presença de obstrução nasal, poderia não
Tosse recorrente e/ou aos esforços pode ser ocorrer a umidificação e aquecimento do ar ins-
o único sintoma de asma. pirado, levando a hiper-reatividade brônquica.
A dificuldade para respirar também pode Ausência da função de filtro nasal, propician-
ser descrita como “opressão torácica”. do que aeroalérgenos cheguem nas vias aéreas
2. Sintomas nasais associados inferiores.
A presença de sintomas nasais reforça a Gotejamento pós-nasal levando à contração
idéia de asma, dada a freqüente associação da musculatura brônquica e à inflamação das
asma-rinite. Classicamente, coriza, espir- vias aéreas inferiores.
ros, obstrução e prurido nasal.
Em crianças maiores e adolescentes, testes
3. História familiar
de função pulmonar podem estar indicados no
Valorizar sintomas sugestivos de doenças
âmbito da Atenção Primária se há dúvidas sobre
alérgicas em familiares, mesmo que não se-
o diagnóstico ou gravidade da doença; exames ra-
jam usados os termos específicos referentes
diológicos são úteis quando há suspeita de doenças
ao diagnostico. Ex.: O paciente costuma
concomitantes, dentre as quais as infecções pul-
referir-se a Rinite como Sinusite; a Asma
monares e a sinusite, têm particular importância.
como Bronquite.
A pesquisa de alergia através dos testes
4. “Pneumonias recorrentes” cutâneos é importante na identificação dos fato-
A prescrição de antibióticos é superestima- res desencadeantes e representa, quando positi-
da em pacientes alérgicos os quais têm fre- vos, um aliada na adesão do paciente e da família
qüentemente diagnóstico de “Pneumonia”. no tocante à higiene ambiental.
Assim, episódios recorrentes com sibilân-
cia associados à febre são na sua maioria,
devidos a IVAS. Abordagem Terapêutica
Não esquecer que os exames radiológicos
têm um alto percentual de falsos positivos
tanto para infecções pulmonares (atelecta- Tratamento da crise aguda de sibilância
sias, espessamento peribrônquico), como
para sinusites. O médico que atua na rede básica de saúde
Neste particular é importante valorizar os precisa estar seguro para identificar, classificar e
achados clínicos. Taquipnéia persistente tratar as exacerbações agudas da doença.
após utilização de medicamentos para si- Diante do paciente em crise de asma,
bilância tem alto valor preditivo positivo torna-se necessário identificar os pacientes de
para pneumonias. Tosse, predominante- alto risco, para que, paralelamente ao trata-
mente noturna, e rinorréia purulenta, em mento inicial, sejam também tomadas as pro-
crianças menores, são altamente sugestivos vidências cabíveis à remoção para o Hospital
de sinusites infecciosas. de referência.

357
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

A classificação da gravidade da crise (Qua- Sempre que possível devem ser adminis-
dro I) permite a tomada de decisão para a condu- trados por via inalatória, para que a resposta be-
ta terapêutica: néfica seja otimizada e os efeitos colaterais (ta-
quicardia e tremor), sejam menos observados.
Achado
Moderada/
Grave Muito Grave
Existem quatro técnicas principais:
Leve a) aerossol dosimetrado (ou inalador dosi-
Cianose, metrado)
Sem Sem
Gerais Sudorese,
alterações alterações b) aerossol dosimetrado com espaçador
Exaustão
Agitação, c) inaladores de pó seco
Estado
Normal Normal Confusão, d) nebulizadores
Mental
Sonolência
Ausente/ O aerossol dosimetrado aclopado a espaçador
Dispnéia Moderada Grave
Leve
com máscara facial e os nebulizadores com máscaras
Frases in- Frases curtas
completas, / monossíla- faciais são os dispositivos indicados para lactentes
Frases
Fala
completas
choro curto, bos, maior e crianças pequenas. A partir dos seis anos de ida-
dificuldade dificuldade de, a maioria das crianças conseguem coordenar o
alimentar alimentar
mecanismo que envolve inspiração e pausa pós-ins-
Retração
Retração Retração piratória e o aerossol dosimetrado passa a propor-
subcostais
Musculatu- intercostal acentuadas ou
e/ou ester- cionar maiores taxas de deposição pulmonar. Nessa
ra Acessória leve ou em declínio
noclidomas-
ausente
todéias
(Exaustão) fase, uso do espaçador visa diminuir as perdas da
Ausentes/ Ausentes medicação com a técnica, pois diminui a deposição
Localizados
Sibilos localizados com MV em orofaringe (impactação inercial) e melhora a de-
ou difusos
MV normal diminuído posição de partículas da medicação no parênquima
F Respira- Normal ou pulmonar (sedimentação gravitacional).
Aumentada Aumentada
tória aumentada
Os inaladores de pó seco necessitam de
> 140 ou
F Cardíaca ≥ 110 > 110 um fluxo inspiratório de, pelo menos, 60 L/min
bradicardia
Pico de e, na maioria das vezes, indica-se para crianças
Fluxo Ex- maiores de sete anos. Os nebulizadores perma-
> 50% 30 – 50% <30%
piratório (%
do previsto)* necem úteis em pacientes com crises graves ou
SaO2 quando não se adaptam às técnicas anteriores.
> 95% 91 – 95% ≤ 90%
(ambiente)* O manejo inicial inclui três doses de
PaO2
Normal ≈ 60 mmHg < 60 mmHg
beta-2 agonista por via inalatória, podendo ser
(ambiente)* empregados por nebulização ou nebulímetro
PaCO2 < 40 < 40 pressurizado com espaçador. A avaliação da
> 45 mmHg
(ambiente)* mmHg mmHg
gravidade da crise se faz de maneira mais ade-
Quadro I. Classificação da gravidade da crise.
*
Raramente disponível na rede básica de atenção à saúde. A maio- quada avaliando-se a criança após essa etapa do
ria dos pacientes atendidos em ABS pode ser corretamente avalia- tratamento. Essa avaliação posterior à primeira
do e tratado utilizando-se de dados clínicos.
dose de beta agonista por via inalatória guarda
melhor correlação prognostica, ou seja, com os
desfechos de internação e gravidade de crise.
Conduta
Corticóide sistêmico deve ser empregado
em todas as crises, exceção para aquelas mais le-
Os bronco-dilatadores ฀2 de ação curta são
ves, com boa resposta às doses iniciais do bronco-
a medicação de escolha para alivio dos sintomas
dilatador. O corticóide pode ser empregado pela
agudos.
via oral. Os casos de maior gravidade ou aqueles

358
Capítulo 32 • Asma

em que os vômitos repetidos impediram o uso • Prevenir limitação crônica ao fluxo aéreo;
da via oral, deve-se utilizar a via endovenosa. • Permitir atividades normais;
A dose usual é de 1-2 mg/kg de predniso- • Manter
Manter a função pulmonar normal ou a me-
a função pulmonar normal ou a me-
na ou prednisolona, não havendo benefício em lhor possível;
doses maiores. • Evitar
Evitar crises, idas à emergência e hospitali-
crises, idas à emergência e hospitali-
zações;
ALGORITMO DE TRATAMENTO DA C RISE-UBS
• Reduzir a necessidade de medicação de alívio;
• Assim, no âmbito da Atenção Primária, o
Muito grave Crise moderada Leve
Médico de Família deverá conhecer o mane-
Crise grave
฀2 Agonista → VI (3x) ฀2 agonista VI
jo adequado da crise e os princípios do tra-
+ Corticóide → VO 1,2
tamento de manutenção, deixando para os
Boa resposta
especialistas somente os casos mais graves.
Não melhora
Melhora Diante de uma criança ou adolescente as-
ou piora
Alta com ฀2
VI ou VO3
mático, impõe-se a identificação da necessidade
Referir Libere para de tratamento de manutenção.
casa com ฀2 +
Administrar ฀2 VI Corticóide oral O conhecimento de que a asma é uma doen-
e Corticóide VO ça inflamatória crônica, e de que a introdução pre-
ou IM e referir
coce do tratamento antiinflamatório pode prevenir
remodelamento das vias áreas e prejuízo futuro da
Notas:
1. Nebulização: função pulmonar, justifica a preocupação em de-
• 3 ml de soro fisiológico a 0,9%.
• Fenoterol ou Salbutamol - 1 gota/3 kg (má�imo 10 gotas).
cidir de maneira objetiva quais pacientes deverão
Observação: Em crises mais graves a dose de ฀2 agonista poderá fazer uso de medicação para prevenção de crises.
ser aumentada até atingir a proporção de 1 gota/kg. O aerossol
dosimetrado (spray) de ฀2, tem o mesmo efeito que a nebuliza- Para esta tomada de decisão o passo inicial
ção, com relação custo x benefício maior → 200-300 mcg/dose. é classificar a gravidade da doença (Quadro II).
2. A administração do corticosteróide por via oral, tem efeito
equivalente à via endovenosa. Doses recomendadas:
• Prednisona ou Prednisolona → 1 a 2 mg/kg/dia. Persis- Persis-
Intermi- Muito
• Apresentação disponíveis: tente tente
tente Grave
- Prednisona comprimido de 5 e 20 mg. Leve Moderada
- Prednisolona solução oral de 3 mg/ml. ≥ 1� Diários
3. Avaliar a necessidade de corticosteróide (CE) por VO, se o Sinto- ≤ 1� Diários
semana Não
paciente já estiver em uso de ฀2 por mais de 24 horas. O CE mas semana Contínuos
deverá ser prescrito por 5 dias.
< 1x dia contínuos
4. Examinar e avaliar a evolução da crise após cada nebulização. Limitação Limitação
Ativi- para Prejudica- diária com
Normais
dades grandes das exercícios
esforços leves
Tratamento de Manutenção (controle) da
Freqüen-
Asma – O papel do médico de família Ocasionais Infre- Freqüen-
Crises tes e
Leves qüentes tes
graves
O tratamento de manutenção visa preservar Sinto-
Comum
a função pulmonar no longo prazo, melhorar a qua- mas
Raros Ocasionais > 1x
> 2x
notur- semana
lidade de vida dos pacientes, evitar visitas à emer- semana
nos
gência e uso de uso de medicações para alívio dos Quadro II. Classificação da gravidade da Asma.
sintomas e prevenir remodelamento de vias aéreas. Fonte: III Consenso Brasileiro no Manejo da Asma.
Deve ser baseado na classificação da gravidade da
asma. Caso haja dúvida nessa classificação deve-se De acordo com as recomendações dos con-
iniciar sempre por uma etapa mais elevada. sensos atuais, todos os pacientes classificados
Os objetivos do tratamento da asma são: como portadores de Asma Persistente deverão
• Controlar sintomas; receber tratamento antiinflamatório.

359
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

O tratamento de primeira escolha é o cor- gia Atenção Integrada às Doenças Prevalentes da


ticóide inalatório (Beclometasona → 200-400 Infância – AIDIPI. [S.l.]: OPAS/USP, 2005. 500 p.
mcg/dia) ou outro corticóide em dose equivalen- Cap. 12, p. 133-150.
te, por um período aproximado de 3 meses. Sem- Rizzo MC, Fomin ABF. Remodelamento das Vias
pre com espaçador comercial ou artesanal. Aéreas. Rev. Bras. Alerg. Imunopatol. São Paulo,
Uma vez obtido o controle, as doses deve- v. 28, n. 5, p. 230-234, 2005.
rão ser reduzidas, mantendo-se a monitorização Rizzo MC, Sztajnbok S, Sano F. Asma: fisiopato-
do paciente. Se não há sucesso, encaminhar ao logia, diagnóstico e tratamento. In: Grumach AS,
especialista. et al. (Ed.). Alergia e Imunologia na Infância e na
Orientações universais incluem o con- Adolescência. São Paulo: Atheneu, 2001. 661 p.
Cap. 11-13, p. 123-159.
trole ambiental e plano escrito para tratamen-
to das crises. Rizzo MC, Sztajnbok S, Sano F. Asma: fisiopato-
A educação do paciente e da família, e o refor- logia, diagnóstico e tratamento. In: Grumach AS,
et al. (Ed.). Alergia e Imunologia na Infância e na
ço da interação médico – família – paciente são estra-
Adolescência. São Paulo: Atheneu, 2001. 661 p.
tégias indispensáveis para o êxito da intervenção.
Cap. 11-13, p. 123-159.
Rozov T. Manejo da Asma na Criança e Adoles-
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cente. Revista de Pediatria do Ceará, Fortaleza, v.
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Ribeiro JD. Crise de Sibilância em Lactentes e


Pré-escolares. In: Grisi S, et al. (Coord.). Estraté-

360
Capítulo 33
Tuberculose na infância na placenta. Isso é raro e há pouquíssimos casos
luiza vieira de castro registrados dessa natureza.
verônica said de castro A doença pode surgir sem que nenhuma
deficiência imunológica seja evidenciada.
No Brasil, define-se um caso suspeito
de tuberculose pulmonar, todo indivíduo com
sintomatologia clínica sugestiva, ou seja, tosse
com expectoração por três semanas ou mais, fe-
bre, perda de peso e apetite, ou imagem radio-
Introdução lógica sugestiva.
Para o controle epidemiológico, a estraté-

A tuberculose é causada pelo Mycobacte-


rium tuberculosis, um bacilo álcool-ácido
resistente (BAAR) e continua a representar um
gia de maior benefício é a descoberta de casos e
tratamento com a finalidade de anular as fon-
tes de infecção. Para os adultos a busca é feita
problema de saúde pública com uma estimati- através do exame dos sintomáticos respiratórios
va de cerca de 100.000 casos novos por ano para (definir). Para a faixa dos menores de 15 anos a
o Brasil. A maior concentração de casos se si- melhor conduta é o controle dos comunicantes.
tua na faixa etária de 20 a 49 anos e como este é Estes devem ser submetidos a exame clínico,
um grupo em idade reprodutiva é de se esperar teste tuberculínico, radiografia de tórax e exame
um grande número de menores de 15 anos in- de escarro, quando possível para a pesquisa do
fectados e/ou doentes. De cada 100 pessoas que bacilo. Os profissionais que atuam na atenção
se infectam, 10 a 20 ficarão doentes, 80% desses básica dos municípios (médicos, enfermeiros,
casos no primeiro ano após o contágio. O nosso odontólogos, auxiliares de enfermagem, agentes
país ocupa a 10ª posição entre os 23 países que comunitários de saúde), devem atuar de maneira
concentram 80% dos casos de tuberculose no integrada na investigação dos casos suspeitos e
mundo e portanto, participa do grupo com alta na busca ativa dos mesmos.
prevalência da doença. No Ceará em 2005 dos
casos notificados (%) estavam na faixa de zer a
14 anos, assim distribuídos: zero a 4 anos %, 5 a Caso Clínico
9 anos %, 10 a 14 anos %.
Pacientes com tuberculose, bacilíferos, J.G. dois anos e seis meses, pesando 10 Kg,
especialmente com cavernas são altamente con- procedente de Fortaleza, foi hospitalizado por duas
tagiantes, portanto as crianças que convivem semanas para tratamento de pnemonia. Recebeu alta
com estes adultos rapidamente se contaminam. para continuar tratamento ambulatorial. Evoluiu
Nas situações econômico-sociais precárias, com com persistência da febre e imagem de condensação
maior aglomeração humana e falta de higiene, de forma arredondada ocupando todo o lobo inferior
o contágio agrava-se ainda mais. A história da direito do pulmão, sugestiva de comprometimento
tuberculose nos mostra que esta doença sempre pleural.
caminhou estreitamente ligada à miséria. Os Discutindo o caso:
casos de tuberculose congênita, só ocorrem se a • Alguns questionamentos são necessá-
gestante é tuberculosa e tem lesões específicas rios neste caso.

361
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• Que fatos da história são importantes mas o contrário nem sempre significa que não
para pensar na possibilidade de tratar- ocorreu a infecção. O investigado pode estar no
se de um caso de tuberculose? período de incubação ou atravessando uma fase
• Que informações necessitam ser inves- anérgica por desnutrição, uso de drogas imunos-
tigadas no caso? supressoras ou doenças. Para as crianças vacina-
• Qual a melhor conduta a seguir? das com BCG há menos de dois anos considerar
infectada pelo M. tuberculosis aquelas com in-
duração acima de 15mm. O teste tuberculínico
A tuberculose na infância: é também utilizado para selecionar os comu-
considerações gerais nicantes para quimioprofilaxia (menores de 15
anos reatores assintomáticos, com radiologia de
Na faixa etária pediátrica, a doença tem tórax normal).
algumas características diferentes daquelas do A radiologia de tórax pode apresentar al-
adulto. Geralmente cursa com menor núme- gumas imagens bem sugestivas, com adenopatia
ro de bacilos, portanto menor risco de trans- hilar ou paratraqueal, e em casos de tuberculose
missão. A sintomatologia, principalmente nos miliar, infiltrado micronodular difuso. Outras
menores de cinco anos, pode ser confundida imagens com condensação segmentar, lobar, ate-
com casos de infecção respiratória, tão comuns lectasia, áreas de hiperinsuflação, podem ser vis-
nesta faixa etária. Para o diagnóstico ser feito ta na tuberculose pulmonar. Nos adolescentes as
precocemente é necessário que haja um alto imagens podem ser semelhantes as dos adultos,
grau de suspeição e que a doença seja incluída com cavidade e infiltrados de lobos superiores.
na investigação de patologias de evolução não Sempre deve ser tentada a baciloscopia do
satisfatória tanto pulmonar como extrapulmo- escarro, principalmente para as crianças a par-
nar. O retardo no diagnóstico pode deixar se- tir da idade escolar e os adolescentes. A inves-
qüelas irreparáveis com comprometimento da tigação através do lavado gástrico fica reservado
função pulmonar ou de outros órgãos, para o para casos que suscitem dúvidas diagnósticas e
resto da vida. necessitam confirmação e, em, particular, para
crianças pequenas.
Na tentativa de dar mais segurança ao
Diagnóstico diagnóstico de casos negativos foram criados
vários sistemas de pontuação, o de Stegen G.,
O diagnóstico da tuberculose na faixa etá- Jones K., Kaplan P., de Tijidami O. e outros,
ria pediátrica nem sempre é de certeza, na maio- que podem ajudar o profissional decidir sobre
ria das vezes é de probabilidade pela somatória a conduta de tratar ou não um caso suspeito. O
de vários dados, sendo o principal, o registro da Ministério da Saúde recomenda o sistema criado
exposição a um doente bacilífero, quer seja um pelo Dr. Clemax Sant´Anna (ver quadro em ane-
familiar ou vizinho próximo. Deve-se também xo) o qual estabelece pontos para vários achados
suspeitar de tuberculose em crianças que estão como: quadro radiológico, contato com doente
sendo tratadas corretamente de uma “pneumo- tuberculoso, resposta ao teste tuberculínico e es-
nia” e que não respondem ao tratamento. tado nutricional, e de acordo com a somatória é
O teste tuberculínico deve ser aplicado em feita a interpretação.
todos os menores de 15 anos. Com este exame É importante enfatizar que profissionais
vamos identificar os infectados pelo Mycobacte- que estão nas unidades básicas investiguem a
rium tuberculosis, quando o resultado é reator, existência de pessoas “tussidoras” ou em trata-

362
Capítulo 33 • Tuberculose na infância

mento para “problemas de pulmão” no ambien- equipes de saúde da família é fundamental nesse
te familiar ou entre a vizinhança próxima. Os caso, pois o tratamento corretamente conduzido
pacientes com suspeita clínica de tuberculose, e supervisionado, negativa os doentes bacilífe-
isto é, com quadros pulmonares de evolução ar- ros, em média em 30 dias, quebrando a cadeia do
rastada e que não atingem a pontuação necessá- contágio, e desse modo, preserva-se as crianças
ria para o diagnóstico, segundo o quado do Dr. da infecção tuberculosa.
Clemax, deverão ser submetidos a procedimen- Crianças menores de 15 anos não-vacina-
tos mais invasivos como lavado gástrico, lavado das com BCG intradérmico devem ser subme-
brônquico e até biópsias de pleura e/ou plumão, tidas ao teste tuberculínico. Se for não reator
e para tal devem ser hospitalizados. Em inúme- ao teste, o indivíduo deve ser vacinado. Se for
ras vezes o relato de um familiar somente é feito reator, deve ser realizada radiografia de tórax.
após a confirmação do diagnóstico de tubercu- Os casos em que a radiografia mostrar achados
lose, o que significa seguir o caminho inverso, sugestivos de tuberculose associados à presença
através da criança descobre-se a fonte de infec- de sintomatologia devem ser tratados.
ção.

Quimioprofilaxia
Evolução do caso
A quimioprofilaxia tem o objetivo de prote-
A mãe de J.G. procurou o ambulatório do Hos-
ger indivíduos com alto risco de adoecimento e que
pital Infantil Albert Sabin, onde fez tomografia com-
não foram vacinados com BCG. Seu efeito prote-
putadorizada de tórax que mostrou a persistência do
tor contra a tuberculose ativa está universalmente
processo inflamatório. A criança foi novamente hos-
comprovado, por reduzir entre 40% a 80% o risco
pitalizada, fez lavado gástrico, sendo identificado o
dos indivíduos infectados com o M. tuberculosis e
bacilo ao exame direto e confirmado pela cultura após
tuberculinos positivos desenvolverem doença.
dois meses. Iniciou o esquema RIP (Rifampicina,
Quimioprofilaxia primária é a prevenção da
Isoniazida, Pirazinamida). Após a confirmação do
infecção e a secundária é a profilaxia da doença em
diagnóstico a mãe revelou a presença de vários casos
indivíduos infectados (tuberculino- positivos).
na família.
A droga de escolha para a quimioprofila-
xia é a isoniazida, pois a mesma tem forte poder
bactericida e esterelizante. A dose recomendada
Prevenção da tuberculose da criança
é de 5 a 10 mg/Kg, com o máximo de 400mg, dia-
São três as principais medidas existentes riamente em em única tomada, durante 6 meses.
para a prevenção da tuberculose da infância: As indicações da quimioprofilaxia são as
eliminar os focos de tuberculosos bacilíferos, a seguintes:
quimioprofilaxia e a vacinação BCG. • RN co-habitantes de foco bacilífero. Nesse
caso administrar a isoniazida por três meses,
quando se realiza novo teste tuberculínico
Eliminação de focos novos (PPD).Se a criança for reatora, a quimiopro-
filaxia deve ser mantida por mais três meses;
A criança se infecta com o bacilo da tuber- se não, interrompe-se o uso da isoniazida e
culose através do contágio, portanto a estratégia vacina-se com BCG.
fundamental do controle da doença é a desco- • Crianças menores de 15 anos, sem sinais com-
berta e tratamento dos casos novos. O papel das patíveis com tuberculose ativa, contato de tu-

363
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

berculoso bacilífero, não vacinadas com BCG serção inferior do músculo deltóide, em caso de
e reatores à tuberculina de 10 mm ou mais. primo-vacinação, e 1 a 2 cm, acima, na revacina-
• Crianças que tem contato com tuberculoso ção. Ela pode ser simultaneamente aplicada com
bacilífero, e foram vacinadas com BCG a me- outras vacinas, mesmo com as de vírus vivos.
nos de dois anos, com resposta tuberculínica
de 15 mm e as vacinadas há mais de dois anos
com resposta de 10mm ou mais, com radiolo- Recomendações da Vacina BCG
gia pulmonar normal.
• Indivíduos com viragem tuberculínica recen- • Os RN em geral desde que tenham peso igual
te (até 12 meses), com aumento da resposta ou superior a 2 Kg e sem problemas clínicos.
tuberculínica de no mínimo 10mm. • Os RN filhos de mãe com AIDS.
• Imunodeprimidos comunicantes domicilia- • Crianças soropositivas para HIV ou filhos de
res de bacilíferos. mães com AIDS, desde que, PPD-negativas e
• Reatores forte ao PPD, sem sinais de tubercu- não apresentem os sintomas dessa síndrome.
lose ativa, em uso de corticoterapia prolonga- • Contatos de doentes com hanseníase, desde
da (mais de dois meses com dose de prdnisona que negativos ao PPD. Administra-se duas
acima de 20mg/Kg, uso de imunossupresso- doses de vacina, com intervalo de 6 meses a 1
res, diabetes melitus descompensado, neopla- ano, independente da idade a da existência de
sias malignas. cicatriz vacinal.
• Profissionais de serviços de saúde e novos
profissionais admitidos nesses serviços, des-
Vacinação com BCG Intradérmico de que sejam negativos ao PPD.
• População indígena. Vacinar todos indepen-
O BCG (Bacilo de Calmette e Guerin) é dente da idade e da presença ou ausência de
uma micobacteria viva, originada de bacilo tu- cicatriz vacinal.
berculoso bovino que sofreu um mutacionismo
após ser cultivado em meio de batata glicerinada
com bile de boi, durante 13 anos, com 230 repica- Contra-Indicações
gens quinzenais. O bacilo, então, tornou-se avi-
rulento, mantendo propriedades imunogênicas. • Absolutas: HIV positivos, na fase da doença
É comprovada a eficácia da vacina para AIDS
proteção contra meningite tuberculosa e tuber- - Portadores de Imunodeficiência congênita
culose miliar, conferindo proteção de mais de
80%. • Relativas: adiar a vacina até a resolução das
Ela está indicada nas regiões onde o risco situações encontradas
anual de infecção é superior a 1%, como ocorre - RN com peso inferior a 2 Kg
no Brasil. - Afecções dermatológicas no local da vaci-
Na grande maioria dos estados brasileiros nação ou generalizadas
a vacina é indicada no primeiro ano de vida, ao - Uso de imunodepressores
nascer, pois ela só é eficaz se o organismo não
está infectado com o M. tuberculosis, sendo re-
comendado um reforço aos seis anos de idade. Complicações
A aplicação da vacina é rigorosamente
intradérmica, no braço direito, na altura da in- As mais comuns são abscessos no local da

364
Capítulo 33 • Tuberculose na infância

aplicação por técnica incorreta, úlcera de tama- to com isoniazida, na dosagem de 10mg/Kg de
nho exagerado (acima de 1 cm) e gânglios flutu- peso (até no máximo 400mg), diariamente, até
antes e fistulisados. a regressão da lesão, o que ocorre, em geral, em
O tratamento dessas complicações é fei- torno de 45 dias.

Anexo: Diagnóstico de tuberculose pulmonar em crianças e adolescentes negativos à baciloscopia

Contato Teste
Estado
Quadro clínico-radiológico com adulto tuberculínico* e
nutricional
tuberculoso vacinação BCG
Febre ou sintomas Adenomegalia hilar ou Próximo, nos Vacinados há mais Desnutrição grave
como: tosse, adinamia, padrão miliar últimos 2 anos de 2 anos ou peso abaixo do
expectoração, emagre- percentil 10 SIS-
cimento, sudorese > 2 – Condensação ou Adicionar 10 pts – menor de 5 mm VAN**
semanas infiltrado (com ou sem 0 pts
esvacação) inalterado – 5 mm a 9 mm Adicionar 5 pts
Adicionar 15 pts > 2 semanas Adicionar 5 pts
– 10 mm a 14 mm
– Condensação ou Adicionar 10 pts
infiltrado (com ou sem – 15 mm ou mais
escavação) > 2 sema- Adicionar 15 pts
nas evoluindo com
piora ou sem melhora
com antibióticos para
germes comuns

Adicionar 15 pts
Assintomático ou com Condesação ou infiltra- Vacinação há menos
sintomas < 2 semanas do de qualquer tipo < 2 de 2 anos
semanas – menor de 10 mm
0 pts 0 pts
Adicionar 5 pts – 10 mm a 14 mm
Adicionar 5 pts
– 15 mm ou mais
Adicionar 15 pts
Infecção respiratória Radiografia normal Ocasional ou Não vacinados Peso igual ou acima
com melhora após uso negativo – menor de 5 mm do percentil 10
de antibióticos para Subtrair 5 pts 0 pts
germes comuns ou sem Subtrair 5 pts – 5 mm a 9 mm 0 pts
antibióticos Adicionar 5pts
– 10 mm ou mais
Subtrair 10 pts Adicionar 15 pts
Legenda: pts – pontos; Esta interpretação não se aplica a revacinados em BCG; ** SISVAN – Sistema de Vigilência Alimentar e Nutricional )MS/1997)

Interpretação: Maior ou igual a 40 pontos 30 a 35 pontos Igual ou inferior a 25 pontos


Diagnóstico muito provável Diagnóstico possível Diagnóstico pouco provável

Fontes: Stegen G., Jones K., Kaplan P. (1969) Pediatr 42:260-3; Tijidani O et al (1986 Tubercle 67:269-81; crofton J et al
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365
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

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J Pediatr 2002; v. 78 (Supl 2), nov. 2002.

366
Capítulo 34
Diarréia aguda metodologia empregada – condições técnicas la-
sandra JoseFina Ferraz ellero Grisi boratoriais para pesquisa.
reGina lúcia Portela diniz Mesmo quando são utilizados todos os re-
cursos laboratoriais para a pesquisa dos agentes
conhecidos, a etiologia da diarréia é obtida em
aproximadamente 75% dos casos. Os agentes po-
dem ser divididos em virais, bacterianos e pro-
tozoários. Os mais freqüentes são:

D iarréia aguda é a condição clínica em que


ocorre perda anormal de água e eletrólitos
por via intestinal, decorrente do rompimento
Vírus

do equilíbrio das funções fisiológicas do tubo • Rotavirus


digestivo (digestão, absorção e secreção). Carac- • Adenovirus entérico
teriza-se por alteração do hábito intestinal com • Astrovirus
aumento do número de evacuações e/ou dimi- • Calicivirus
nuição da consistência das fezes, com duração • Norwalk vírus
inferior a 14 dias.
No recém-nascido, a caracterização da do-
Bactérias
ença é muito difícil, pois ele apresenta uma exal-
tação do reflexo gastro-cólico, podendo evacuar • Escherichia coli enteropatogênica (ECEP)
sempre que se alimentar, cerca de 8 a 10 vezes/dia • Escherichia coli enterotoxigênica (ECET)
e apresentar fezes liquefeitas. Conseqüentemente, • Escherichia coli enteroinvasiva (ECEI)
nesta faixa etária devemos acrescentar outros pa- • Escherichia coli enterohemorrágica (ECEH)
râmetros na avaliação da criança, tais como com- • Escherichia coli enteroagregativa (ECEA)
prometimento do estado geral, diminuição da in- • Shigellae sp.
gesta alimentar, febre, vômitos e irritabilidade. • Salmonellae sp.
Nos países em desenvolvimento a diarréia • Campylobacter jejuni
aguda constitui uma das principais causas de do- • Aeromonas hydrophila
ença e morte entre as crianças menores de 5 anos. • Vibrio cholerae

Etiopatogenia da Doença Diarréica Protozoários

Os estudos sobre a etiologia de diarréia • Giardia lamblia


aguda apresentam resultados diversos nas várias • Cryptosporidium sp
publicações na literatura em função de uma sé- • Entamoeba histolytica
rie de circunstâncias: local da pesquisa – região A gênese da doença está na alteração do
urbana ou rural, tipo de paciente – hospitaliza- equilíbrio das funções básicas do tubo digestivo
do ou em atendimento ambulatorial, período do determinadas pela interação de um agente agres-
ano – meses quentes ou frios, secos ou chuvosos, sor e o organismo.

367
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Os mecanismo de agressão dos agentes pa- plicam causando a lise das células e conseqüente
togênicos são: descamação do epitélio.
• Adesão à mucosa intestinal e lesão da A lesão ocorre de maneira irregular, com
borda em escova: neste processo o agente áreas afetadas e áreas integras. Esta lesão leva a
etiológico adere-se firmemente à mucosa um disbalanço entre as células absorvedoras do
do intestino. Há desarranjo e dissolução da ápice que estão lesadas e as células secretoras da
borda em escova com grande redução da su- cripta que estão intactas acarretando perda de
perfície de absorção.É exemplo desse meca- água e eletrólitos.
nismo a ECEP.
• Adesão à mucosa intestinal e produção de
enterotoxina: a bactéria adere à mucosa in- Conduta Diagnóstica
testinal e passa a produzir enterotoxinas, que
ao alcançarem o meio intracelular vão esti- Para o diagnóstico e a indicação da con-
mular a secreção de cloro (Cl-) e consequente- duta terapêutica são necessárias algumas infor-
mente de sódio (Na+) e água, por ativação do mações e observações para avaliação do estado
AMPcíclico ou GMPcíclico. Essa alteração é de hidratação. Os sinais clínicos que ajudam o
irreversível. Para esta adesão é necessário que profissional a decidir sobre o tratamento são:
a bactéria tenha algumas propriedades que • Alteração da consciência como letargia ou ir-
possibilitem a sua fixação na célula e ocorre ritação;
sem destruição da borda em escova e sem in- • Sede: quando oferecida água a criança bebe
vasão da mucosa. São exemplos desse grupo a avidamente ou está letárgica e não consegue
ECET e Vibrio cholerae. beber ou bebe muito mal;
• Invasão da mucosa com proliferação bac- • Sinal de prega: a pele volta lentamente ao es-
teriana intracelular: os agentes invadem o tado anterior;
enterócito do intestino delgado distal e do • Presença de olhos fundos, encovados
cólon, onde se multiplicam, alteram o fun-
cionamento da célula e causam sua morte. A De acordo com os sinais clínicos apresen-
destruição da mucosa causa febre, toxemia e tados pela criança devemos classificar a desidra-
sangue nas fezes. São exemplos desse meca- tação em:
nismo as espécies de Shigella e a ECEI.
• Invasão da mucosa com proliferação bac- Gravemente
Desidrata- Desidrata-
teriana na lâmina própria e nos gânglios
Sem da: dois dos da: dois ou
mesentéricos: estes agentes causam lesão Sinais
desidratação sinais que se mais dos
celular e podem atingir a corrente sangüínea seguem: sinais que se
seguem:
produzindo focos metastáticos ou sépsis. Os Estado Normal ou Inquieta, Letárgica ou
principais representantes desse grupo são es- geral inquieta irritada inconsciente
pécies de Salmonella, Campylobacter jejuni e Olhos
Olhos
Olhos fundos Olhos fundos
normais
Yersinia enterocolitica.
Bebe nor- Não consegue
Ingesta Bebe
malmente ou beber ou bebe
de água avidamente
Muitos enteropatógenos apresentam meca- avidamente muito mal
nismo misto de invasão e produção de toxinas. A pele A pele volta A pele volta
Sinal da volta imedia- lentamente muito lenta-
O rotavírus, que é o principal agente do prega tamente ao es- ao estado mente ao esta-
grupo dos vírus, atua por invasão das células tado anterior anterior do anterior
epiteliais do ápice das vilosidades onde se multi-

368
Capítulo 34 • Diarréia aguda

Conduta Terapêutica dietas devem receber somente o soro até a recu-


peração do estado de hidratação.
Para o acompanhamento da Terapia de
Crianças com diarréia sem desidratação Reidratação Oral recomenda-se:
• Pesar a criança sem roupa no início e a cada
Para a criança com diarréia e estado de
hora. O peso é o dado mais importante na
hidratação conservado recomenda-se o aumento
avaliação da TRO.
da ingesta de líquidos e a manutenção da dieta
• Oferecer SRO toda vez que a criança quiser,
habitual, utilizando muitas vezes volumes me-
de preferência com colher, para diminuirem
nores e maior freqüência de refeições como for-
as chances de vômitos. Não se deve fazer re-
ma de superar a anorexia própria da doença e
comendação rígida quanto ao volume a ser
respeitando as restrições impostas pela criança.
ingerido. Porém, o tempo para que seja com-
Para as crianças com perdas fecais muito altas
pletada a hidratação deve ser limitado a 5 ou
ou quando a criança viver em ambiente muito
6 horas. Desta forma, o peso da criança a cada
quente, as mães devem ser instruídas sobre a
hora é o dado fundamental na avaliação do
maior necessidade de administração de líqui-
sucesso da hidratação.
dos e receber pacotes de Sais de Reidratação
• Anotar sempre o volume ingerido ad libi-
Oral (SRO) com instrução quanto ao modo de
tum a cada hora e, assim, com base no volu-
preparo (1 pacote em 1 litro de água filtrada ou
me ingerido e no ganho de peso da criança,
previamente fervida). A Solução Reidrante Oral
calcula-se a retenção a cada hora, de acordo
(SRO) deve ser administrada toda vez que a
com a fórmula:
criança evacuar.
O aleitamento materno deve ser estimula- Retencão =
ganho de peso (a cada hora) x 100
do, orientando-se à mãe a oferecê-lo com maior (a cada hora) Volume ingerido (a cada hora)
freqüência e por mais tempo. Deve-se ter em
conta que o leite de peito é uma excelente solu- Este é um critério objetivo que orienta os
ção para reidratação oral. profissionais de saúde sobre a evolução da TRO.
As mães devem ser instruídas sobre os si- Se a retenção for maior ou igual a 20%, considera-
nais de desidratação e de quando devem procu- se que a TRO está alcançando bons resultados e
rar o serviço de saúde imediatamente. a conduta deve ser mantida até a regressão com-
Enquanto não houver cura do processo pleta dos sinais de desidratação. Se a retencão for
diarréico a criança deve retornar para seguimen- menor que 20% na primeira hora, pode-se aguar-
to a cada 5 dias para acompanhamento do estado dar até o final da segunda hora para nova avalia-
nutricional. ção, que será decisiva. Se a retenção permanecer
baixa, significa que a criança tem perdas maiores
que sua capacidade de ingestão. Nessa situação,
Crianças com diarréia e desidratação pode-se optar por TRO por sonda nasogástrica
(SNG) ou por hidratacão endovenosa (EV).
Está indicada a Terapia de Reidratação
• A TRO por SNG pode ser escolhida quando
Oral (TRO) para as crianças com diarréia e de-
a ingestão ad libitum é muito baixa. Sugere-se
sidratação.
iniciar a adminstração de SRO por SNG na
As crianças que estão em aleitamento ma-
quantidade e velocidade de 30 ml/kg/hora nos
terno devem continuar. Nestes casos, as necessi-
primeiros 10 minutos, podendo-se aumentar,
dades de SRO serão menores.
desde que bem tolerada, para 60 ml/kg/ hora.
As crianças que estão recebendo outras
• A hidratação oral deve ser suspensa quando

369
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

houver: - Glicose ...............75 mMol/L


- Crise convulsisva; - Osmolaridade: 245 mOsm/l.
- Vômitos persistentes (mais de 3 vezes) A indicação, o preparo e o uso de ambas
- Distensão abdominal (mesmo após a são iguais. Estudos recentes sugerem que a fór-
instalacão de SNG) mula hipotônica produz a reidratação em tempo
- Perda de peso mesmo com administra- menor e induz à diminuição das perdas fecais.
ção por SNG.
Crianças com Desidratação Grave
Nestas situações indica-se a hidratação
endovenosa. Saliente-se que a reidratação oral Nesta situação está indicada a reidratação
tem sucesso na grande maioria dos casos. endovenosa (EV) e está indicado a internação
A fase de reidratação está completada as- hospitalar.
sim que houver regressão dos sinais clínicos de A hidratação endovenosa é realizada em 3
desidratação ou não houver mais retenção con- fases: de expansão, de manutenção e de reposi-
forme cálculo acima. Terminada a fase de rei- ção, sendo que o volume correspondente à fase
dratação, inicia-se a alimentação normal para a de reposição deve ser adicionada à manutenção.
idade. Pode-se dar alta à criança, uma vez que, Para a fase de expansão recomenda-se a
nestes casos, certamente a sua capacidade de in- infusão endovenosa de solução em partes iguais
gestão foi maior que as perdas. A mãe deve rece- (1:1) de Solução Glicosada 5% e Soro Fisiológi-
ber orientação conforme o proposto acima para co a 0,9% na velocidade de 50 ml/kg / hora.
as crianças sem desidratação. Após a completa recuperação do estado de
Quando o cálculo da retenção não for hidratação, identificada pela regressão dos si-
possível, recomenda-se o seguimento clínico, nais clínicos da desidratação e de micções claras
observando-se o desaparecimento dos sinais de e abundantes, indica-se o início da fase de ma-
desidratação. nutenção. Esta fase tem o objetivo de repor água
Atualmente, a Solução de Reidratação e eletrólitos das perdas normais, que são propor-
Oral que está à disposição dos profissionais de cionais à atividade metabólica e podem ser esti-
saúde é a fórmula tradicional, mas brevemente madas por várias regras. A regra mais utilizada
estará à disposição a fórmula hipotônica. é a de Holliday & Seggar, que indica que para
crianças com até 10 Kg, a atividade metabólica
estimada é de 100 cal/kg. Nessas circunstâncias
Composição das Soluções de Reidratação Oral
as necessidades em água e eletrólitos são:
• SRO Tradicional • Água: 100ml;
- Na .................... 90 mEq/L • Na+: 3 mEq (20 ml de SF 0,9%)
- Cl ..................... 80 mEq/L • K+: 2,5 mEq (1 ml de KCL 19,1%),
- K ...................... 20 mEq/L • Glicose: 8g
- Citrato ............. 10 mEq/L
- Glicose .......... 111 mMol/L Por exemplo: para uma criança de 8 Kg, o
- Osmolaridade: 330mOsm/l cálculo das necessidades diárias são:
• SRO Hipotônico • Atividade metabólica: 800cal
- Na ..................... 75 mEq/L • Água: 8 � 100 = 800ml
- Cl ...................... 65 mEq/L • Na+: 8 x 3 = 24 mEq ou 160 ml de SF 0,9%
- K ....................... 20 mEq/L • K+: 8 x 2,5 = 20 mEq ou 8 ml de KCl
- Citrato ...............10 mEq/L 19,1%

370
Capítulo 34 • Diarréia aguda

• Glicose: 8 � 8 = 64 g casos com sinais de disseminação do processo


Deve-se adicionar à fase de manutenção infeccioso (toxemia ou prostração), ao período
um volume correspondente da fase de reposição neonatal e imunodeprimidos, além da recomen-
na qual se pretende repor as perdas anormais dação de tratamento para os casos de:
decorrentes da diarréia. Como estimativa inicial • Shigella sp.
a reposição é de 50 ml/kg na forma de SG 5%, - Trimetoprim (TMP) - sulfametoxazol
SF 0,9% na proporção 1:1. O déficit de potássio (SMX), na dose de TMP 10mg/kg/dia ou
deve também ser reposto e para isso deve-se do- SMX 50mg/kg/dia, divididos em 2 toma-
brar a quantidade do K da manutenção. das, durante 5 dias.
Após 24 horas do inìcio da fase de manu- - Ácido Nalidíxico, na dose de 50 mg/kg/dia,
tenção e reposição deve-se observar as condições divididos em 4 tomadas, durante 5 dias.
gerais da criança, suas perdas e sua capacidade de • Amebíase intestinal aguda
ingesta. Com esses dados pode-se planejar a re- - Metronidazol, na dose de 30mg/kg/dia, di-
tirada gradativa da hidratação endovenosa e sua vididos em 3 tomadas, durante 5 a 10 dias.
substituição pela hidratação oral com SRO. Caso a • Giardíase aguda
aceitação oral de líquidos seja suficiente para fazer - Metronidazol, na dose de 15mg/kg/dia, di-
frente às perdas anormais, inicialmente reduz-se vididos em 3 tomadas, durante 5 dias.
o volume da reposição à metade. Após um perío-
do de observação, se confirmar-se a capacidade de
ingestão oral suficiente, retira-se gradativamente
metade do volume EV a cada 6 horas, até sua com-
pleta suspensão e substituição por SRO e líquidos
habituais da criança. Desde o inicio da fase de
manutenção inicia-se a dieta adequada para idade
em volume e consistência de acordo com a aceita-
ção da criança. Recomenda-se o fracionamento da
dieta e o aumento da frequência como forma de
compensar a anorexia que muitas vezes está pre-
sente nos quadros clínicos da diarréia.
É provável que com a alimentação ocorra
aumento do volume e do número de evacuações,
mas somente este dado não significa intolerân-
cia à dieta. É preciso observar principalmente a
evolução do estado geral, peso corpóreo, estado
de hidratação, distensão abdominal e vômitos.
Quando o peso se mantém ou até ocorre aumen-
to e o estado de hidratação é normal, considera-
se a evolução como favorável, independente da
consistência das fezes.
Está contra-indicado o uso de medica-
mentos como antiespasmódicos, adsorventes e
antisecretores que podem complicar a evolução
da diarréia.
Os antimicrobianos estão restritos aos

371
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

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372
Capítulo 35
Diarréia persistente persistência do quadro diarréico10.
aMália Maria Porto lustosa Condições insalubres de moradia, abran-
GuilherMe Porto lustosa gendo aglomerações e falta de saneamento bá-
sico, são fatores conhecidos na persistência da
diarréia. Numerosos estudos relatam associação
inversa entre educação materna e risco de per-
sistência da diarréia na infância, demonstrando
que quanto menor o nível de escolaridade das
mães, mais freqüentes e graves são os episó-
Introdução dios19. A redução da capacidade imunológica dos
lactentes demonstram que a diarréia persistente

A diarréia continua sendo um problema im-


portante de saúde nos países em desen-
volvimento, atingindo principalmente crianças
ocorre mais frequentemente em crianças com
baixa idade, principalmente abaixo de dois anos,
com pico de incidência ao redor de seis meses9.
que vivem em condições sócio-econômicas pre- A desnutrição protéico-energética tem
cárias5. A mortalidade por doença diarréica em relação estreita com a doença diarréica e com a
menores de cinco anos de idade no Brasil é de persistência da mesma, podendo levar a danos
6,9%, com uma maior proporção de óbitos no importantes da mucosa intestinal, com conse-
nordeste do país11. Com o advento da Terapia qüente comprometimento da função digestivo-
de Reidratação Oral (TRO), realizada de forma absortiva6. Casos de diarréia que apresentavam
global e eficaz, reduzindo significativamente a evolução por tempo superior a 14 dias, chama-
mortalidade infantil por diarréia aguda, cresce ram a atenção de muitos países em desenvolvi-
a importância da Diarréia Persistente (DP) como mento. Esse grupo de crianças origina 30 a 60%
problema de saúde pública, pela sua alta taxa de dos óbitos por diarréia na infância, levando a
mortalidade específica e impacto negativo so- uma significativa piora do estado nutricional1.
bre o estado nutricional e qualidade de vida das Episódios de diarréia sanguinolenta, fe-
crianças. bre, desidratação, uso de drogas que diminuem
Existem fatores que têm sido identificados a motilidade intestinal, uso de antibióticos e an-
como agravantes para o desenvolvimento da diar- tiparasitários e certos agentes patogênicos como
réia persistente. A ausência ou um período curto a Escherichia coli enteropatogênica e a Shigella,
de aleitamento materno, a pobreza, fatores infec- também estiveram associados com persistência
ciosos, fenômenos alérgicos, um episódio recente de quadro agudo diarréico11.
de diarréia aguda e um episódio prévio de diarréia
persistente são fatores de importância relevante
na persistência de um quadro diarréico18, tendo Conceito
sido demonstrado que crianças em aleitamento
materno exclusivo têm episódios diarréicos mais A diarréia persistente é definida como um
curtos e com menos freqüência que aquelas em episódio diarréico de provável causa infecciosa,
aleitamento misto ou artificial2. Recém-nascidos originado de um episódio de diarréia aguda, que
com baixo peso ao nascer ou com retardo de cres- se prolonga por um período superior a 14 dias,
cimento intra-uterino apresentam maior risco de levando a um agravo do estado nutricional e com

373
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

elevado risco de vida15. Cerca de 3% a 20% dos epi- proteínas do leite de vaca e da soja, com suas ações
sódios de diarréia aguda tornam-se persistentes, destrutivas sobre o epitélio do intestino delgado,
sendo considerados pacientes de maior potencial atuando como antígenos, produzindo sensibilização
de gravidade, aqueles menores de um ano6. alérgica. Após o nascimento, quanto mais precoce-
Esse conceito exclui os casos de início insi- mente forem introduzidas as proteínas heterólogas,
dioso, de evolução crônica, doença celíaca e outros. maior a possibilidade de ocorrência de hipersensi-
bilidade durante um episódios diarréico3.
O sobrecrescimento bacteriano no intesti-
Fisiopatologia no delgado, presente na maioria dos casos de DP
tem sido avaliado como mecanismo perpetuador
Existem vários fatores patogênicos res- do quadro diarréico8, promovendo a desconjuga-
ponsáveis pelo desenvolvimento da DP, além da ção de sais biliares, redução da área de absorção
própria ação dos agentes enteropatogênicos so- da mucosa intestinal, alteração da permeabili-
bre a mucosa intestinal. As lesões do intestino dade intestinal, má absorção de gordura e vita-
delgado observadas nos pacientes com diarréia minas lipossolúveis e aparecimento de diarréia
persistente podem ser devidas a vários fatores: colerética por ação tóxica direta dos sais biliares
deficiências nutricionais, ação direta dos agentes sobre a mucosa intestinal4.
enteropatogênicos e alergias alimentares, levan- A utilização de drogas que diminuem o pe-
do à perpetuação do ciclo diarréia-desnutrição13, ristaltismo intestinal, no quadro agudo, podem
dificultando a sua recuperação. levar à diminuição do “clearence” bacteriano com
As alterações nutricionais decorrem de uma aumento do número de bactérias no fluido intes-
má absorção devido a uma redução da superfície de tinal, assim como o uso de antibióticos, os quais
absorção intestinal17. Há diminuição da atividade reduzem a flora bacteriana normal, favorecem o
das enzimas da borda em escova, com alteração do crescimento de algumas bactérias, levando ao dese-
transporte ativo dos nutrientes, sendo o mecanis- quilíbrio da flora, persistindo o quadro diarréico14.
mo de digestão de carboidratos o mais suscetível. Alguns enteropatógenos são apontados
A enzima lactase parece ser a mais comprometida, como possíveis causadores de diarréia persistente,
porém a sacarase, glicoamilase e isomaltase po- sendo a Escherichia coli (E.coli) a bactéria mais fre-
dem também encontrar-se diminuídas em menor quentemente encontrada nos quadros diarréicos
proporção. A má absorção de carboidratos, gordu- persistentes12. Essas bactérias expressam diferen-
ras e proteínas dificulta a recuperação da mucosa tes padrões de virulência, sendo aquelas que têm
intestinal lesada, contribuindo dessa forma para o capacidade de aderir às células intestinais chama-
prolongamento do processo diarréico4. das de enteroaderentes. Outro tipo de E. coli pode
Sendo a criança previamente desnutrida originar diarréia persistente através da produção
a má absorção é ainda mais importante, pois a de uma enterotoxina termoestável a qual desesta-
deficiência específica de proteínas leva a uma biliza a borda em escova da mucosa intestinal.
importante redução da borda intestinal em esco- O Cryptosporidium sp é reconhecido como
va. A deficiência de vitaminas e micronutrientes agente causal de diarréia tanto em pacientes imu-
nos desnutridos contribui também para a persis- nodeprimidos como em imunocompetentes, levan-
tência da diarréia, uma vez que os mesmos parti- do a uma redução da altura das vilosidades intesti-
cipam de funções imunológicas e reparadoras do nais e diminuição da atividade das dissacaridases.
epitélio intestinal3. A Salmonella sp, E. coli enteropatogênica clássica, Gi-
Também pode contribuir para a patogênese árdia lamblia, Shigella sp e Klebsiella sp. também são
da DP a absorção de antígenos alimentares como as implicados na patogênese da diarréia persistente8.

374
Capítulo 35 • Diarréia persistente

Todos esses fatores fisiopatológicos, agin- Uma dieta adequada deve ter pelo menos
do concomitantemente, tornam-se responsáveis 110 kcal/kg/dia, sendo que a Organização Mun-
pela perpetuação do processo diarréico e pelo dial de Saúde recomenda que a terapia dietética
agravo nutricional desses pacientes. tenha limitado conteúdo de lactose, apresente
suplementação vitamínica e mineral e que in-
centive o aleitamento materno20.
Diagnóstico Correção da desidratação, acidose meta-
bólica, distúrbios hidro-eletrolíticos e hipogli-
• Pesquisa do agente patogênico nas fezes cemia fazem parte do tratamento da diarréia
- Coprocultura persistente. Algumas crianças necessitam de
- Protoparasitológico hospitalização e tratamento com fórmulas mo-
• Avaliação da absorção intestinal dificadas, quando se caracteriza a falência de tra-
- D xilosemia de 1 hora – após sobrecarga oral tamento ambulatorial (Figura 1).
- Balanço fecal de gorduras de 72 horas
- Dosagem de alfa1 antitripsina nas fezes Fatores Relacionados com a Falência da
- Biópsia de intestino delgado para avaliação Dieta Simplificada
do grau de atrofia vilositária
- Avaliação do estado nutricional – avaliação • Lactentes jovens (< 4 meses)
antropométrica. • Desnutridos graves (< -3 DP)
• Crianças com febre persistente (infecção sis-
têmica)
Tratamento • Crianças com diarréia e perda hídrica acentuada

A recuperação nutricional na diarréia per- Diarréia persistente em crianças não hospitalizadas


sistente é um ponto fundamental no tratamento.
A absorção intestinal não está totalmente preju- Usar fórmulas sem lactose*
dicada na maior parte dos casos, sendo que o es-
Não melhorou: persistência do quadro diar-
tímulo alimentar na luz intestinal é um fator im-
réico, perda ponderal, vômitos, distensão
portante para a recuperação da mucosa. A dieta abdominal e intensa hiperemia perianal.
ideal deve conter quantidades calóricas adequa-
Melhorou
das com balanço protéico-energético satisfatório Referir para unidade terciária e fazer
hidrolisado protéico**
a fim de recompor o epitélio intestinal e manter
as condições de saúde da criança. Não melhorou Melhorou Melhora da diar-
Como existe associação entre DP e des- em 48hs réia, com ganho
ponderal
nutrição, a maioria dos princípios sobre terapia
Hidrolisado pro- Alta con hidro-
nutricional em DP são similares aqueles de re- téico por sonda lisado protéico Retornar à dieta
abilitação nutricional em desnutridos4. A repo- nasogástrica de habitual para a
forma contínua idade
sição de micronutrientes, os quais encontram-se
diminuídos nas crianças desnutridas, é outra
*
Poderemos utilizar a fórmula de leite de vaca isenta de lactose ou
necessidade nesses pacientes, sendo o zinco um uma fórmula de soja (Quadro 1).
dos mais importantes. A suplementação de zin- **
Nos locais de difícil acesso poderemos lançar mão da fórmula de
frango sem açúcar (vide receita no Quadro 1).
co à crianças desnutridas durante a fase aguda Pacientes jovens (≤ 4 meses), não amamentados ao seio e com des-
da diarréia tem relação significativa com a redu- nutrição grave têm como primeira indicação o tratamento dietéti-
co com hidrolisado protéico.
ção do período da diarréia16.

375
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

*
Fórmulas sem diarrhea in periurban Lima, Peru. J Pediatr Gas-
**
Fórmulas de frango
lactose troenterol Nutr. 1991;12:82-8.
• Leite de vaca: • 200 g de peito de frango 9. Lira PIC, Ashworth A, Morris SS. Low birth
NAN sem lactose • 10 medidas de mucilon de arroz weigth and morbity from diarrhea and respi-
• 50ml de óleo de milho
ratory infection in Northeast Brazil. J Pediatr.
• Fórmula de soja: • 1 litro de água tratada
Isomil. Preparo: 1996;128:497-504.
- Cozinhar bem o frango. 10. Ministério da Saúde (BR). Programa de assistên-
- Liquidificar bem, com mucilon cia à saúde da criança. Brasília, DF; 1995.
e óleo, colocando água até comple-
tar um litro. 11. Nataro JP, Kaper JB. Diarrheagenic Escherichia
- Não passar na peneira e oferecer coli. Clin Microbiol Rev. 1998;11:142-201.
à criança. 12. Oliva CAG, Morais MB, Scaletsky I, Fagundes
- A fórmula preparada pode ser
guardada na geladeira por até
Neto. U. Comparações entre fórmulas com e sem
24hs, devendo ser aquecida em ba- lactose na realimentação de lactentes hospitaliza-
nho-maria e acrescida de adoçante dos com diarréia grave. The Elect J Ped Gast Nut
antes de ser ofertada à criança.
Liv Dis; 1999; 3(1).
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8. Lanata CF et al. Epidemiologic, clinical and la-
boratory characteristics of acute vs. persistent

376
Capítulo 36
Doença do Refluxo Fisiopatologia
Gastro-esofágico
Fatores genéticos, ambientais, anatômi-
aMália Maria Porto lustosa
GuilherMe Porto lustosa cos, hormonais e neurogênicos estão envolvi-
dos na fisiopatologia do RGE. Quando ocorre
falha dos mecanismos que atuam como barreira
anti-refluxo, desequilibrando os mecanismos de
agressão e de defesa, ocorre o RGE6.
Consideramos mecanismos de barreira an-
Introdução ti-refluxo o esôfago abdominal, o pilar direito do
diafragma, o ligamento freno esofágico, o ângulo

R efluxo gastroesofágico (RGE) é o fluxo re-


trógrado do conteúdo gástrico para o esô-
fago, sendo a condição que mais comumente
de His e o esfíncter esofágico inferior (EEI). Todos
os ítens citados têm papel fundamental na redução
do RGE, porém o EEI destaca-se pela sua impor-
acomete o esôfago na criança13,11. O RGE pode tância anatômica, correspondendo a uma área de
ser fisiológico ou patológico, sendo esse último musculatura circular, tonicamente contraída6.
definido como Doença do Refluxo Gastroeso- Os mecanismos de agressão são os que
fágico (DRGE). O RGE fisiológico é um termo ocasionam o aumento da frequência do RGE,
descritivo para um fenômeno muito comum, como a hipotonia do EEI, elevação da pressão
podendo ocorrer em quase todas as crianças, intra-abdominal, esvaziamento gástrico lento,
manifestando-se por regurgitações, geralmente presença de hérnia hiatal e o relaxamento tran-
pós-alimentares, surgindo entre o nascimento e sitório do EEI17.
os três meses de vida. O RGE tem usualmente O relaxamento transitório do EEI, que é o
evolução autolimitada, com resolução durante relaxamento esfincteriano sem correlação com a
os dois primeiros anos de vida, associado à ma- deglutição ou com o mecanismo peristáltico eso-
turidade do desenvolvimento, posição ereta por fágico normal, tem sido considerado o mecanismo
maior período, e maior ingestão de sólidos16. A fisiopatológico mais importante do RGE no lac-
criança apresenta curva ponderal apropriada, tente e na criança maior. Esses relaxamentos tran-
sem manifestações respiratórias associadas ou sitórios parecem ocorrer por meio da liberação de
sinais de esofagite (irritabilidade, choro cons- neurotransmissores pelos neurônios entéricos17.
tante, hemorragia digestiva alta). Alguns aspectos, que se relacionam com os
A DRGE ocorre quando o refluxo do hábitos de vida, com o esôfago e o estômago, pró-
conteúdo gástrico para o esôfago ou orofaringe prios dos lactentes, são responsáveis pela alta pre-
produz sintomas, apresentando repercussões valência do RGE no primeiro ano de vida. Com
clínicas importantes como manifestações respi- relação aos hábitos de vida destacamos a dieta
ratórias, otorrinolaringológicas, esofagite e dé- líquida e volumosa dos recém-nascidos e lacten-
ficit ponderal18. Pode ocorrer em pacientes que tes. Com relação ao esôfago, as crianças menores
apresentam quadro clínico típico, com vômitos apresentam esôfago abdominal curto e menor cla-
ou regurgitações, ou em pacientes nos quais o reamento esofágico em prematuros1. Com o cres-
RGE é oculto manifestando-se apenas através de cimento da criança, observam-se diminuição da
suas complicações. ingestão calórica e aumento do tônus muscular,

377
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

aspectos esses que contribuem para a diminuição monia de aspiração, rouquidão, soluços, estri-
da freqüência do RGE nas crianças maiores. dor, laringite, tosse, broncoespasmo, apnéia e
crises de cianose são considerados os principais
sintomas associados ao refluxo, porém, muitas
Quadro Clínico do RGE vezes sintomas respiratórios graves ocorrem sem
qualquer manifestação aparente de refluxo2.
Na maioria das vezes o RGE é considerado Sinusite, otite média, halitose, cáries den-
fisiológico nos recém-nascidos e lactentes, tornan- tárias e a síndrome de Sandifer (esofagite grave,
do-se sintomático por volta do segundo ao quarto movimentos rotatórios espasmódicos da cabeça
mês de vida, apresentando evolução espontânea en- e do pescoço, associados à anemia ferropriva),
tre 12 e 24 meses em 80% dos casos4. A regurgitação são alterações que podem fazer parte do quadro
e os vômitos são os sintomas clássicos nessa faixa clínico de refluxo15.
etária, pois aos quatro meses de idade mais de 50% O diagnóstico diferencial deve ser realiza-
dos lactentes regurgitam12. Mesmo sabendo que os do com a intolerância à proteína do leite de vaca,
sintomas podem resultar em desconforto para o a qual pode manifestar-se por vômitos e recusa
lactente e ansiedade para os pais, a maioria dos lac- alimentar e com as anomalias congênitas, como
tentes não apresenta problemas a longo prazo. a má-rotação intestinal e a estenose hipertrófi-
ca de piloro11 às quais apresentam vômitos pós-
prandiais e perda de peso importante.
Quadro Clínico da DRGE

As regurgitações e os vômitos pós-prandiais


Diagnóstico
são as manifestações clínicas mais frequentes, po-
dendo ocorrer ainda horas após a alimentação.
O exame físico completo precedido de
Pode haver dificuldades no ganho de peso, levando
uma história detalhada, a qual relate sintomas
muitas vezes ao quadro de desnutrição associada11.
do tipo: irritabilidade, dificuldade da criança
Esse comprometimento nutricional resulta muitas
conciliar o sono, regurgitações freqüentes, são
vezes da perda de nutrientes determinada pela eso-
de extrema importância no diagnóstico do RGE,
fagite, do gasto energético aumentado resultante
salientando-se que o diagnóstico do refluxo pode
de manifestações respiratórias, ou ainda da anore-
ser estabelecido, em muitos casos, nessa etapa de
xia que muitas vezes acompanha o RGE14.
investigação.
A esofagite de refluxo apresenta-se como
Os inúmeros exames diagnósticos existen-
choro excessivo, irritabilidade intensa, distúrbio
tes atualmente permitem detectar e até quantifi-
do sono e dificuldade de alimentação nas crian-
car o RGE nas crianças sintomáticas e naquelas
ças mais jovens. Nas crianças maiores manifesta-
com refluxo silencioso17.
se por dor epigástrica, precordialgia, queimação
A Seriografia Esôfago Estômago Duodeno
retroesternal e disfagia, podendo ainda aparecer
(SEED) tem como principal indicação a avaliação
hematêmese, melena ou sangramento oculto em
da presença de anormalidades anatômicas, con-
qualquer faixa etária8.
gênitas ou adquiridas, podendo ainda detectar a
presença de hérnia hiatal, o próprio refluxo e a es-
Manifestações clínicas extra-aparelho digestivo tenose esofágica. Trata-se de um exame de baixo
custo e de fácil execução, porém não apresenta boa
Muitos sintomas respiratórios têm sido sensibilidade para a pesquisa de RGE, pois avalia
relacionados com a presença da DRGE. Pneu- principalmente o período pós-prandial imediato3.

378
Capítulo 36 • Doença do Refluxo Gastro-esofágico

A Cintilografia Gastroesofágica possibili- vem ser submetidas à investigação diagnóstica,


ta o estudo do esvaziamento gástrico e a detec- mas sim com orientações sobre alimentação
ção de aspiração pulmonar em imagens tardias, e postura. Aqueles amamentados ao seio não
contudo apresenta baixa sensibilidade para o es- devem ser desmamados, somente orientados
tudo do RGE pós-prandial tardio11. quanto à posição supina ou em decúbito lateral
A pHmetria esofágica de 24 horas tem direito. Para lactentes com refluxo grave, a Aca-
como grande importância a avaliação do pacien- demia Americana de Pediatria recomenda a po-
te em condições fisiológicas e por longos perío- sição prona, apesar da controvérsia com relação
dos, podendo diferenciar o refluxo fisiológico do à morte súbita do recém-nascido.
patológico, assim como quantificá-lo. Apresenta As modificações da dieta sugeridas para
boa sensibilidade (87%-93%) e boa especifici- diminuir os episódios de refluxo devem estar
dade (93%-97%) para pesquisa do refluxo. Suas voltadas para as necessidades nutricionais da
principais indicações são: avaliação dos sinto- criança. Das medidas recomendadas, o principal
mas atípicos (tosse crônica, anorexia intensa, in- é o espessamento lácteo, o qual reduz o número
fecções respiratórias de repetição sem causa defi- de episódios de refluxo, podendo porém aumen-
nida, etc) presença dos sintomas extradigestivos tar a duração do episódio mais longo, dificul-
da DRGE, pesquisa do refluxo oculto, avaliação tando o esvaziamento do esôfago10. As refeições
do tratamento clínico em pacientes portadores muito calóricas e volumosas devem ser evitadas,
de DRGE de difícil controle e avaliação pré e pois podem tornar o esvaziamento gástrico mui-
pós-operatória do paciente com DRGE7. to lento e a recomendação de não comer antes de
A Endoscopia Digestiva Alta (EDA) é um dormir, quando falamos da criança maior, é uma
exame invasivo que requer sedação ou anestesia medida simples e eficaz17.
para ser realizado. Permite avaliar macroscopi- Medicamentos e alimentos que diminuem
camente a mucosa esofágica, com coleta de mate- o tônus do EEI ou aumentam a acidez gástrica, do
rial para histopatológico, possibilitando o diag- tipo frutas cítricas, alimentos gordurosos, toma-
nóstico das complicações esofágicas da DRGE te, café, álcool, medicamentos anticolinérgicos,
como estenose, esôfago de Barrett e hérnia hia- adrenérgicos, xantinas, bloqueadores do canal de
tal5, assim como outras doenças pépticas, como a cálcio, devem ser evitados sempre que possível20.
úlcera duodenal e a gastropatia eosinofílica17. As drogas recomendadas para o trata-
mento da DRGE são as procinéticas, que aju-
dam a controlar os sintomas e os inibidores da
Tratamento secreção ácida. As drogas procinéticas aumen-
tam o tônus do EEI, melhoram o esvaziamento
Os principais objetivos da terapia anti- gástrico e o clareamento esofágico, porém ne-
refluxo são o alívio dos sintomas, cicatrização nhuma delas mostrou-se eficaz na diminuição
das lesões teciduais, a prevenção da recorrência da freqüência dos relaxamentos transitórios do
e das complicações e a promoção do crescimento EEI. As regurgitações e os vômitos são os sin-
com ganho ponderal adequado. tomas relacionados à DRGE mais observados
Crianças portadoras de RGE devem ser nas crianças menores, justificando o uso dos
diferenciadas daquelas com DRGE. Lactentes procinéticos nessa faixa etária. A Metocloprami-
portadores de RGE que vomitam mas que tem da é um antagonista da Dopamina que melhora
bom desenvolvimento pôndero-estatural e que o esvaziamento gástrico, a peristalse esofágica
não apresentam sinais de complicação, não de- e aumenta a pressão no EEI, podendo porém,
vem ser tratados com medicamentos, nem de- ocasionar efeitos colaterais extra-piramidais di-

379
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

ficultando seu uso na DRGE da criança. Com Referências


relação à Bromoprida, não existem trabalhos
controlados na literatura pediátrica atual sobre 1. Alvarez-Ruiz JA. Refluxo gastroesofágico em pe-
a eficácia dessa droga na DRGE17. diatria. Bol Assoc Med PR 1982;74:129-33.
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não atravessa a barreira hematoencefálica, não Omeprazol and ultrstructural modifications oc-
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produzindo efeitos colaterais induzidos pela
2002;122:837.
Metoclopramida. Reduz a freqüência dos vô-
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mitos, das regurgitações, diminui o tempo de
ment of the North American Society for Pediatric
refluxo e o número de episódios pós-prandiais,
Gastroenterology and Nutrition (NASPGN). In-
porém não altera a pressão do EEI e o esvazia- dications for pediatric esophageal pH monitoring.
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O Omeprazol é o inibidor da bomba de
ckener for newborn infants with gastro-eso-
prótons (IBP) mais estudado na faixa etária pe-
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diátrica, reduzindo acentuadamente a secreção
Update Software, Issue 4, 2002;
ácida gástrica. É eficaz no tratamento de crian- 8. Norton RC, Penna JF. Gastroesophageal reflux,
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nica grave ou problemas neurológicos. Pode ser Saunders Company, 1999;164-187.
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mg/Kg/dia19. geal reflux disease in children. Gastoenterol Clin
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plicatura gástrica), sendo a técnica de Nissen a 11. Orenstein, S. Infantile reflux: different from
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respondem ou respondem apenas parcialmente
testinal motility disorders. New York: Academy
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380
Capítulo 36 • Doença do Refluxo Gastro-esofágico

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381
Capítulo 37
Hepatites virais medidas de profilaxia existentes, que em última
christiane araúJo chaves leite instância representam as ações de melhor custo-
Juliana Barros Mendes benefício no enfrentamento destas infecções.
roBério dias leite

Caso Clínico

ARS, masculino, 8 anos, morador do Laga-


mar – Fortaleza – CE , foi trazido para consulta com
Introdução relato de surgimento de urina escura e icterícia há
24 horas. Segundo sua mãe, a criança há cerca de 1

A s hepatites virais constituem um importante


problema de saúde pública nos países desen-
volvidos e em desenvolvimento. No Brasil, esti-
semana vinha apresentando diarréia, perda do apeti-
te, palidez, dor abdominal e parecia mais fraca, sem
disposição nem para brincar. Ao exame físico apre-
ma-se que 15% da população já tenha sido exposta sentava estado geral preservado, palidez (+/4+),
ao Vírus da Hepatite B (VHB) e que cerca de 60% icterícia (++/4+) e encontrava-se sem febre e hi-
dos indivíduos apresentam anticorpo contra o Ví- dratado. Ausculta cardíaca e dos pulmões normais.
rus da Hepatite A (VHA). Mais recentemente, o O abdome encontrava-se plano, flácido, doloroso à
Vírus da Hepatite C (VHC) vem sendo reconhe- palpação do hipocôndrio direito, com fígado palpável
cido como um grande problema de saúde pública, a 3 cm do rebordo costal direito e apêndice xifóide, de
seja pelas complicações, seja pela ausência de pro- superfície lisa, bordas rombas e consistência normal.
filaxia eficaz ou dificuldades de diagnóstico. Extremidades sem edema.
Neste capítulo, vamos nos deter apenas O caso clínico apresentado é muito suges-
nas hepatites de virais, que constituem doenças tivo de hepatite viral aguda e sugerimos que o
infecciosas de transmissibilidade inter-humana, Médico de Família conduza o caso segundo o
evolução aguda ou crônica, que acometem par- fluxograma abaixo:
ticularmente o fígado. Dentre elas, destacam-se
pela maior importância epidemiológica e clíni- Fluxograma para acompanhamento inicial de
crianças com hepatite aguda
ca, o grupo heterogêneo de vírus hepatotrópicos
A, B, C, D, E e G, que determinam doença clíni- Criança com hepatite Descartar sinais de alerta
aguda para hepatite fulminante
ca semelhante, porém diferem na etiologia, as-
pectos epidemiológicos, imunológicos, clínicos,
patológicos e evolutivos. Outros vírus podem TGO, TGP, Bilirrubinas to-
Anti-HVA IgM tal e frações, TAP, Albumina,
acometer o fígado durante o curso de suas infec- Glicemia
ções, embora não sejam primariamente hepato-
trópicos. Neste grupo destacam-se: Citomegalo- Negativo Positivo Hepatite A confirmada
vírus, Herpes Simples, Varicela-Zoster, Rubéola,
Epstein-Baar, Dengue e Febre Amarela.
Referir para Sinais de alerta Orientação
O Médico de Família tem importância fun- unidade para hepatite Seguimento
damental no controle das hepatites virais, pois especializada fulminante clínico
cabe a ele orientar e educar a população sobre as

383
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Confirmada Hepatite A, além do segui- Interpretação dos testes de função hepática


mento clínico com ênfase na identificação de
sinais de alerta para hepatite fulminante (Qua- Os principais exames a serem solicitados
dro 1), o Médico de Família deverá desenvolver para avaliação da função hepática são: transa-
ações de orientação sobre cuidados de higiene minases, tempo de atividade de protrombina,
e propor medidas de controle, caso se trate de fosfatase alcalina, gama-glutamiltranspeptidase,
surto na comunidade. glicemia e albumina.
A alanina amino transferase (ALT) ou
transaminase glutâmico-pirúvica (TGP) é a
Desenvolvimento da Atenção enzima que melhor se correlaciona com lesão
hepática, atingindo níveis acima de 30 vezes o
Etiologia valor de referência normal (< 40 U/mL). Já a
aspartato amino transferase (AST) ou transa-
Apresentamos no Quadro 2 um resumo minase glutâmico-oxalacética (TGO), por estar
das principais características dos agentes etioló- presente em quase todos os tecidos, é menos es-
gicos das hepatites virais. pecífica de lesão hepatocelular. Isoladamente, a
elevação das transaminases não tem relação com
Instalação de insuficiência hepática com menos de 8 se- o prognóstico.
manas do surgimento de icterícia. O Tempo de Protrombina (TAP) avalia a
Encefalopatia hepática (sonolência, agitação, alteração função hepática de síntese dos fatores de coagu-
de comportamento).
lação dependentes de vitamina K. Quando infe-
Hemorragias e/ou TAP < 50%.
rior a 50% suspeitar de hepatite fulminante ou
Redução rápida do tamanho do fígado.
reagudização de hepatopatia crônica.
Icterícia progressiva.
A fosfatase alcalina e, mais especificamen-
Edema.
te a gama-glutamiltranspeptidase (gama-GT)
Envolvimento de outros órgãos: insuficiências renal,
respiratória e cardíaca, sepse. constituem indicadores de colestase, estando ge-
Quadro 1. Sinais de alerta para hepatite fulminante ralmente pouco elevadas nas hepatites virais agu-
das. As bilirrubinas podem estar elevadas, predo-
Hepatite
A B C D E minando a fração conjugada (bilirrubina direta).
viral
Genoma RNA DNA RNA DNA RNA
Hipoglicemia e albumina baixa são indi-
Picorna- Hepad- Flaviví- Deltavi- Caliciví- cadores de mau prognóstico e devem sempre ser
Família
vírus navírus rus ridae rus
avaliadas.
Incuba- 14 dias - 14 dias - 14 dias - 14 dias - 14 dias -
ção 2 meses 2 meses 2 meses 2 meses 2 meses
Transmissão
Fecal -
oral
+ - - - + Hepatite A
Parente-
raro + + + -
ral Na maioria dos casos a Hepatite A é uma
Sexual raro + + + -
Evolução
doença aguda, autolimitada e assintomática.
Fulmi- > ges- Quando presente, o cortejo sintomático mais ca-
0,5% < 1% < 1% 5%
nante tantes racterístico é o da associação de febre, astenia,
Crônica - + + + -
Sanea- desconforto abdominal, hepatomegalia, colúria,
mento Vacina Triagem
Vacina
Profilaxia Vacina Imunoglo- doadores Hepatite B
Sanea- acolia fecal, icterícia, anorexia, náuseas e vômi-
mento
Imunoglo- bulina de sangue tos. Quanto mais nova a criança, menos freqüen-
bulina
Quadro 2. Cara Características dos agentes etiológicos das Hepa-
tes são os casos em que surgem sintomas como
tites Virais.

384
Capítulo 37 • Hepatites virais

icterícia, que, ao contrário, ocorre em aproxima- lescentes para não ingerirem bebidas alcoólicas.
damente 70% dos adultos acometidos. História Não são necessárias dietas específicas ou restri-
de icterícia na família, na escola ou viagem para ções de atividade. As drogas consideradas “he-
áreas endêmicas pode estar presente. Em geral o patoprotetoras”, associadas ou não a complexos
prognóstico é excelente, não existindo portado- vitamínicos, não têm nenhum valor terapêutico.
res crônicos. Formas fulminantes ocorrem em As crianças devem ser seguidas até a resolução
apenas 0,5% dos casos, com elevada mortalidade. bioquímica e sorológica da hepatite aguda.
Esporadicamente podem se observar quadros de
evolução subaguda, com recorrência ou persis-
tência de sintomas por tempo mais prolongado Prevenção
que o habitual. A transmissão é fecal-oral e em
geral se estende de 2 semanas até 2 semanas após O saneamento, controle de qualidade da
o início dos sintomas. Não existe tratamento água e a educação em saúde são as medidas mais
específico, nem dieta especial, sendo necessário eficazes e econômicas no controle da Hepatite A.
apenas medidas de suporte. As crianças devem Recomenda-se ainda a desinfecção de secreções
ser afastadas da escola por 20 a 30 dias. Reco- e objetos e cuidados entéricos no convívio com
menda-se rigor na higiene das mãos, lavar bem os pacientes até a fase ictérica, quando o HVA
os alimentos antes do preparo, usar água filtra- ainda está presente nas fezes. Orientar o uso de
da e fervida e buscar melhorias no saneamento hipoclorito de sódio no vaso sanitário para evi-
básico, além da vacina e uso de imunoglobulina tar a contaminação do lençol freático.
normal em circunstâncias especiais. Imunoglobulina humana standard é re-
comendada especialmente para pessoas que têm
ou tiveram contato sexual ou intradomiciliar
Diagnóstico com portadores da Hepatite A e para o recém-
nascido cuja mãe encontra-se ictérica no mo-
É feito através de sorologia, na qual se de- mento do parto. A proteção tem uma duração de
tecta o anticorpo IgM contra o HVA (anti-HVA 3 a 6 meses, dependendo da dose utilizada e tem
IgM). Surge precocemente na fase aguda da do- eficácia de 85% quando administrada antes da
ença e começa a declinar após a segunda semana, exposição ao HVA, ou até 2 semanas posteriores
desaparecendo após 3 meses. TGO e TGP po- à exposição. Dose: 0,02 mL/kg a 0,06mL/kg IM.
dem aumentar mais de 20 vezes o valor normal e Vacina de vírus mortos contra o HVA é
ocorre elevação da bilirrubina direta nos primei- segura e altamente imunogênica, podendo ser ad-
ros 10 dias de doença, queda na segunda semana ministrada a partir de 12 meses de idade em duas
e normalização em 30 dias. doses com intervalo de 6 meses. Está disponível
nos Centros de Referência para Imunobiológicos
Especiais (CRIE) para hepatopatas crônicos e em
Tratamento clínicas particulares de vacinação e pode ser útil
no controle de surtos em uma comunidade.
O tratamento deve ser apenas de supor-
te. A hospitalização pode ser necessária para
pacientes desidratados por causa de vômitos Hepatite B
ou com indícios de falência hepática. Medica-
mentos cujo metabolismo é hepático devem ser A infecção pelo vírus da hepatite B (VHB)
usados com precaução e deve-se alertar aos ado- é uma das principais causas de doença hepática

385
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

crônica no mundo, estimando-se 450 milhões de medicações e instruir adolescentes para o risco
portadores desta forma de hepatite ao final do ano de ingestão de bebidas alcoólicas. O uso da la-
de 2005. Além disso, existe uma forte correlação mivudina (antiviral inibidor da transcriptase
entre infecção pelo VHB e carcinoma hepatocelu- reversa análogo de nucleosídeo), interferon a e
lar. O risco de progressão para hepatite crônica na o transplante hepático podem ser indicados nos
infecção pelo VHB ocorre em 5 a10% dos adultos centros especializados para os quais os pacientes
e em até 90% dos recém-nascidos. O período de devem ser referidos.
incubação varia de 30 a 180 dias. As vias de trans-
missão conhecidas são: vertical, parenteral, sexual,
seringas, material dentário, tatuagem, “piercing”. Prevenção
Em geral, as manifestações clínicas da Hepatite B
são mais insidiosas, quando comparadas com as A melhor profilaxia é a Vacina contra He-
da Hepatite A, embora a fase ictérica seja muito patite B, que deve ser iniciada ao nascimento e
semelhante em ambas. Destaca-se na Hepatite B completada com doses de reforço com 1 e 6 meses
a possibilidade da ocorrência de exantema, artri- de vida e faz parte do calendário básico de vaci-
te e a Síndrome de Gianotti-Crosti. Lembrar que nações do Ministério da Saúde. Em algumas situ-
os recém-nascidos infectados pelo VHB em geral ações específicas (recém-nascido de mãe portado-
apresentam infecção crônica assintomática, de- ra do VHB, contato sexual com portador do VHB
tectada apenas pela elevação das transaminases e e exposição acidental percutânea ou de mucosa
pelos marcadores sorológicos, sendo rara a ocor- com sangue, secreções ou materiais contamina-
rência de icterícia. A forma fulminante ocorre em dos pelo VHB) está indicado o uso da Imuno-
menos de 1% dos casos e a co-infecção com o Ví- globulina Específica Contra Hepatite B (HBIG),
rus da Hepatite D (VHD) piora o prognóstico. disponível nos CRIE, conforme a tabela abaixo.

Dose Tempo
Exposição Vacina
(HIBG) (HBIG)
Diagnóstico sorológico
0,06 ml/kg, Dentro de imediata-
Sexual
IM 14 dias mente
Deve-se solicitar o HbsAg, que aparece en- Até 12 horas Até 12 horas
tre a 2ª e a 10ª semana após a exposição ao vírus, Perinatal 0,5 ml, IM do nasci- do nasci-
mento mento
e o anti-HBc IgM, que confirma o diagnóstico
de hepatite B aguda e pode ser o único marcador
sorológico detectado nas formas graves ou fulmi-
Hepatite C
nantes. Este marcador deve ser solicitado em to-
dos os casos de suspeita clínica de hepatite aguda.
A maioria das infecções pelo VHC é as-
O anti-HbsAg indica evolução para cura da infec-
sintomática. A doença aguda tende a ser leve e
ção natural ou resposta à vacinação. A persistência
de início insidioso em adultos e nas crianças,
do HbsAg por mais de 6 meses define o indivíduo
surgindo icterícia em menos de 20% dos pacien-
na condição de portador crônico do VHB.
tes e as alterações dos testes de função hepática
costumam ser menos intensas que nas Hepati-
tes A e B. Um dos grandes problemas, portanto,
Tratamento
é o reconhecimento da existência da infecção
pelo VHC, já que a infecção persistente por este
A dieta pode ser normal, respeitando-
agente ocorre em cerca da 50 a 60% das crian-
se a tolerância do paciente. Cautela no uso de
ças infectadas, mesmo quando estão ausentes as

386
Capítulo 37 • Hepatites virais

alterações laboratoriais indicativas de doença ças infectadas pelo VHC não necessitam ser ex-
hepática. Em muitos casos o modo te transmis- cluídas de creches. Indivíduos infectados devem
são é ignorado, mas reconhece-se como sendo ser vacinados contra Hepatites A e B.
os mais importantes: transfusão de sangue, per-
cutâneo e vertical. Usuários de droga injetável
representam um dos principais grupos susceptí- Hepatite D
veis. Não há relato de transmissão do VHC pelo
leite materno, embora ele esteja presente no caso O Vírus da Hepatite D (VHD) tem como
de mães infectadas, recomendando-se sua inter- característica principal o fato de ser um vírus
rupção apenas na presença de fissuras ou san- defectivo, isto é, necessita do VHB como auxi-
gramentos nos mamilos. O período de incuba- liar para que produza hepatite. Sua importância,
ção varia de 15 a 150 dias. Hepatite crônica pelo portanto, consiste na capacidade de complicar
VHC, definida pela persistência da identificação a evolução da Hepatite B. Pode ocorrer co-in-
do RNA viral por mais de 6 meses, ocorre em 60 fecção, quando as infecções pelo VHB e VHD
a 70% dos adultos infectados. Em crianças esta acontecem de modo simultâneo, ou superinfec-
informação é limitada, parecendo ocorrer em ção, quando o VHD infecta um portador crônico
menos de 10% dos casos. do VHB. Neste caso, a taxa de mortalidade pode
aumentar para mais de 20%. A transmissão do
Diagnóstico VHD é semelhante à do VHB. No entanto, não é
tão comum a transmissão vertical. O diagnóstico
É feito através da identificação de anticor- deve ser feito a partir da detecção de anticorpos
pos da classe IgG contra o vírus (anti-HVC), que contra o VHD.
não definem se a infecção é aguda, crônica ou se
já foi curada, e pelos testes de reação em cadeia de
transcriptase-polimerase (RT-PCR) para identi-
ficação do RNA do VHC. No caso da transmis-
são vertical, sabe-se que os anticorpos maternos
podem persistir até os 18 meses de idade.

Tratamento

Não existe tratamento na fase aguda. In-


terferon peguilato e ribavirina são utilizados
para o tratamento de portadores crônicos, que
devem ser referidos para centros especializados.
Transplante hepático pode ser indicado em al-
guns casos.

Profilaxia

Não há vacina disponível até o momento.


Utensílios domésticos não transmitem e crian-

387
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

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388
Capítulo 38
Dengue na criança pelos diversos sorotipos e adquirindo imunida-
roBério dias leite de específica para cada um deles.
christiane araúJo chaves leite

Caso Clínico

GSM, masculino, 5 anos, procedente de For-


taleza - CE, foi trazido para consulta no Posto de
Saúde, pois vem apresentando febre persistente não
Introdução medida há 4 dias. Ainda neste período apresentou 5
episódios de evacuações líquidas, sem muco ou san-

D engue é a doença mais importante causada


por arbovírus em todo o mundo, especial-
mente nas regiões tropicais. Anualmente ocor-
gue, e vômitos pós-prandiais (3 episódios), além de
diminuição do apetite. Na noite anterior procurou
Serviço de Emergência por apresentar febre de 40ºC.
rem aproximadamente 100 milhões de casos de Foi medicado com dipirona IM e o médico informou
febre do Dengue e mais de 500.000 casos de fe- que se tratava de uma “virose”, orientando para uso
bre hemorrágica do Dengue. As manifestações de dipirona oral no controle da febre. Hoje amanhe-
clínicas são muito variáveis, desde casos assin- ceu com erupção cutânea maculopapular pruriginosa
tomáticos até casos muito graves caracterizados distribuída em todo o corpo, além de permanecer com
por hemorragias e choque, conhecidos por Fe- febre, o que motivou procura do atendimento no Pos-
bre Hemorrágica do Dengue (FHD) e Síndrome to de Saúde.Exame Físico: Estado geral regular, fe-
do Choque do Dengue (SCD). bril (39,5ºC), anictérico, acianótico, pálido (+/4+),
No Brasil, durante a década de noventa, pouco cooperativo. Freqüência cardíaca = 128 bati-
ocorreu aumento significativo da incidência, mentos/minuto. Freqüência respiratória 28 incursões
reflexo da ampla dispersão do mosquito trans- respiratórias/minuto. Olhos, ouvidos e boca sem al-
missor, o Aedes aegypti, no território nacional. terações. Ausculta cardíaca e dos pulmões normais;
Entre os anos de 1990 e 2000, várias epidemias abdome plano, flácido, indolor, sem visceromegalias;
foram registradas, sobretudo nos grandes cen- extremidades bem perfundidas, sem edema; Sinais
tros urbanos das regiões Sudeste e Nordeste do de irritação meníngea ausentes; gânglios cervicais <
Brasil, responsáveis pela maior parte dos casos 0,5cm, de consistência normal; exantema morbilifor-
notificados. A maior incidência da doença foi me em tronco e membros.
observada em 2002, quando foram registrados Esta condição clínica – criança com exan-
cerca de 790 mil casos. Desde o início da epide- tema febril – representa uma situação bastante
mia de 2002 observava-se a rápida dispersão do freqüente que motiva a procura por consulta
sorotipo 3, de modo que, no primeiro semestre médica e representa a um só tempo motivo de
de 2004, 23 dos 27 estados do país já apresenta- grande apreensão para os familiares e enseja vá-
vam a circulação simultânea dos sorotipos 1, 2 rias possibilidades diagnósticas para o médico,
e 3 do vírus da dengue. As crianças crescem em que deverá a princípio tentar excluir doenças
importância epidemiológica, por constituírem o graves. Neste contexto, uma criança que vinha
grupo populacional mais susceptível, à medida apresentando apenas febre, diarréia e vômitos,
em que a população adulta vai sendo infectada não pode ter seu diagnóstico banalizado no ter-

389
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

mo “virose”. Certamente que infecção por ente- • Período de Incubação: Varia de 3 a 15 dias,
rovírus deveria entrar no diagnóstico diferencial sendo em média de 5 a 6 dias.
deste caso clínico. No entanto, considerando a • Caso suspeito de Dengue: Segundo o Minis-
procedência da criança, a curva térmica, o com- tério da Saúde do Brasil, todo paciente que
prometimento sistêmico ou, analisando por ou- apresente doença febril aguda com duração
tro lado, a evolução de uma doença febril sem máxima de até sete dias, acompanhada de pelo
sintomas específicos, a possibilidade de se tratar menos dois dos seguintes sintomas: cefaléia;
de um caso de Dengue e suas complicações pos- dor retroorbitária; mialgia; artralgia; prostra-
síveis não poderiam deixar de figurar no diag- ção ou exantema associados ou não à presença
nóstico diferencial. O surgimento de exantema de hemorragias. Além desses sintomas, deve
pruriginoso na evolução reforça este diagnósti- ter estado nos últimos quinze dias em área
co. Sendo assim, caberia ao médico que atendeu onde esteja ocorrendo transmissão de dengue
a criança, já no primeiro momento ou posterior- ou tenha a presença do Aedes aegypti.
mente, procurar investigar e chamar a atenção • Quadro Clínico na Criança: A maioria das
dos responsáveis acerca do surgimento dos si- infecções por dengue nas crianças é assinto-
nais de alerta de gravidade do Dengue descritos mática ou oligossintomática e o curso da do-
na próxima seção e recomendar um retorno ime- ença é autolimitado e benigno. Sendo assim,
diato, caso eles venham a surgir, ou em 48 horas a maior parte das crianças vai apresentar um
para reavaliar o paciente. quadro febril inespecífico de difícil distin-
ção de outras etiologias. Na Dengue Clássi-
ca a febre tende a ser elevada (39 – 40ºC) e
Desenvolvimento da atenção comumente pode ser acompanhada de exan-
tema máculopapular morbiliforme generali-
Os conceitos básicos sobre o vírus da Den- zado, muitas vezes pruriginoso, além de lin-
gue que se seguem fornecem um substrato teó- foadenopatia. Manifestações gastrointestinais
rico mínimo para o entendimento das ações de como diarréia e vômito também são comuns e
prevenção e de conduta clínica frente à criança visceromegalias são raras nesta forma clínica.
com Dengue atendida no nível da atenção pri- Nos menores de dois anos de idade, os sinto-
mária. mas cefaléia, mialgia e artralgia podem ma-
• Etiologia: É causada por um Arbovírus RNA nifestar-se por choro persistente, adinamia
do gênero Flavivirus, pertencente à família e irritabilidade, geralmente com ausência de
Flaviviridae, sendo conhecidos quatro soro- manifestações respiratórias.
tipos: 1, 2, 3 e 4.
• Reservatório: É o ser humano, tendo sido A doença pode durar de 3 a 7 dias. Após
também descrito na Ásia e na África um ciclo os 3 primeiros dias de febre, podem surgir ma-
selvagem envolvendo macacos. nifestações hemorrágicas como epistaxes, peté-
• Vetor: São mosquitos do gênero Aedes. A es- quias, gengivorragias e prova do laço positiva,
pécie Aedes aegypti é a mais importante na entre outras. Deve-se sempre, no exame clínico,
transmissão da doença e também pode ser realizar a prova do laço (técnica descrita adiante)
transmissora da febre amarela urbana. e aferir a pressão arterial com o paciente em pé
e sentado, solicitar hemograma completo para
• Transmissão: A transmissão se faz através da definir a conduta de observação clínica ambula-
picada dos mosquitos Aedes aegypti, que des- torial e/ou indicação de internamento.
te modo infectam o ser humano. Na Dengue Hemorrágica o quadro clíni-

390
Capítulo 38 • Dengue na criança

co inicial é igual ao da forma clássica. Em geral • Desconforto respiratório.


os fenômenos hemorrágicos ou choque surgem
com a resolução da febre em lise por volta do 3º II. Em seguida, deve-se colher uma história
ao 5º dia. Sendo assim, é preciso ficar atento para clínica mais detalhada em que os itens a
os seguintes sinais de alerta para o choque: dor seguir constem em prontuário:
abdominal intensa e contínua, vômitos persis- • Cronologia dos sinais e sintomas;
tentes, hepatomegalia dolorosa, derrames cavi- • Caracterização da curva febril;
tários, sangramentos importantes, cianose, hipo- • Pesquisa de sinais de alerta.
tensão arterial ou postural, oligúria, pulso rápido • Presença de casos semelhantes no local de
e fraco, extremidades e suderese frias, aumento moradia ou de trabalho;
repentino do hematócrito, diminuição brusca da • História de deslocamento nos últimos 15 dias
temperatura corporal associada à sudorese pro- para áreas com casos suspeitos de Dengue.
fusa, taquicardia e lipotímia. Em crianças meno- • Doenças associadas: hipertensão arterial,
res de cinco anos, o início da doença pode passar diabete melito, doenças hematológicas crô-
despercebido e o quadro grave ser identificado nicas (principalmente anemia falciforme),
como a primeira manifestação clínica. doença renal crônica, doença severa do sis-
tema cardiovascular, doenças auto-imunes,
asma, dermatite atópica.
Conduta Assistencial do Médico de Família • Uso de medicamentos, sobretudo antiagre-
gantes plaquetários, anticoagulantes, an-
I. Em casos suspeitos de criança com Den- tiinflamatórios e imunossupressores.
gue, cabe ao Médico de Família identificar
e ensinar aos responsáveis pelo paciente III.O exame físico da criança deverá ser di-
os seguintes SINAIS DE ALERTA DO recionado para que os itens seguintes não
DENGUE: deixem de ser avaliados:
• Dor abdominal intensa e contínua; • Ectoscopia, procurando identificar sinais
• Vômitos persistentes; de gravidade como palidez, má perfusão,
• Hipotensão postural, isto é, tontura ao se suor frio e hemorragias.
levantar; • PA em duas posições (sentado/deitado e em
• Hipotensão arterial, que pode se manifestar pé) e pulso;
por extremidades frias e arroxeadas ou suor • Abdome: pesquisa de hepatomegalia, dor e
frio, pulso rápido e fino e fraqueza; ascite;
• Pressão diferencial < 20mmHg (PA con- • Freqüência respiratória e cardíaca;
vergente); • Neurológico: orientado pela história clíni-
• Hepatomegalia dolorosa; ca, nível de consciência, sinais de irritação
• Hemorragias importantes (hematêmese e/ meníngea;
ou melena); • Estado de hidratação;
• E�tremidades frias, cianose; • Medida do peso.
• Pulso rápido e fino;
• Agitação e/ou letargia; IV.A prova do laço deverá ser realizada obri-
• Diminuição da diurese; gatoriamente em todos os casos suspeitos
• Diminuição repentina da temperatura cor- de dengue durante o exame físico da se-
pórea ou hipotermia; guinte forma:
• Aumento repentino do hematócrito; • Desenhar um quadrado de 2,5cm de lado

391
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

(ou uma área ao redor do polegar) no ante- gravidade;


braço da criança e verificar a Pressão Arte- • Plaquetas < 20.000/mm3, independente-
rial (PA); mente de manifestações hemorrágicas;
• Calcular o valor médio: (PA sistólica+PA • Impossibilidade de seguimento ou retorno
diastólica); à unidade de saúde.
• Insuflar novamente o manguito até o va-
lor médio e manter por cinco minutos (em VI. Estadiamento Clínico
crianças, 3 minutos) ou até o aparecimento Após a realização da anamnese, exame fí-
das petéquias; sico e prova do laço, a criança com suspeita de
• Contar o número de petéquias no quadra- Dengue deve ser enquadrada numa das 4 situ-
do. A prova será positiva se houver mais de ações clínicas a seguir (grupos A, B, C e D), no
20 petéquias em adultos e 10 em crianças; intuito de decisão da conduta a ser tomada e o
nível de atenção recomendada. Os grupos A e B
A prova do laço é importante para a tria- devem ser conduzidos inicialmente ao nível da
gem do paciente suspeito de dengue, pois pode atenção primária. No entanto, como a Dengue é
representar a única manifestação hemorrágica uma doença dinâmica, o paciente pode evoluir
de casos complicados ou de FHD, podendo ex- de um estágio a outro rapidamente. A condução
pressar a presença de plaquetopenia ou de fragi- adequada depende do reconhecimento precoce
lidade capilar. de sinais de alerta, do contínuo monitoramento
e reestadiamento dos casos e da pronta reposição
hídrica. Com isso, torna-se necessária a revisão
da história clínica acompanhada do exame físico
completo, a cada reavaliação do paciente.

GRUPO A
• Ausência de manifestações hemorrágicas
espontâneas ou prova do laço negativa;
• Ausência de sinais de alerta.

Conduta:
• E�ames: Hematócrito, hemoglobina,
leucograma, plaquetas para os pacien-
tes de maior risco para dengue he-
Figura 1. Prova do laço positiva (imagem captada em 22/11/2006 morrágico; Sorologia para gestantes e
do sítio da internet: http://www.cdc.gov/ncidod/dvbid/dengue/sli-
deset/set1/vi/slide10.htm) período não epidêmico ou de acordo
com recomendação da Vigilância Epi-
demiológica;
V. Cabe ao Médico da Família reconhecer • Hidratação conforme Tabela 1;
os critérios de indicação de internação • Sintomáticos: anti-térmicos e anti-alér-
hospitalar: gicos para prurido;
• Presença de sinais de alerta; • Retorno em 48 horas ou imediatamente
• Recusa na ingestão de alimentos e líquidos; se surgirem sinais de alerta.
• Comprometimento respiratório: dor torá- GRUPO B
cica, dificuldade respiratória, diminuição • Manifestações hemorrágicas espontâ-
do murmúrio vesicular ou outros sinais de neas ou com prova do laço positiva sem

392
Capítulo 38 • Dengue na criança

repercussão hemodinâmica; Hidratação venosa:


• Ausência de sinais de alerta. Fase de expansão: 50 - 100mL/kg
de Soro fisiológico ou Ringer Lac-
tado em 2 - 4 horas.
Conduta: Grupos C e D
Fase de manutenção: necessidade
• E�ames para todos os pacientes: Hema- hídrica basal (Soro Glicosado 5%
+ Na e K) de acordo com a regra
tócrito, hemoglobina, leucograma, pla- de Holliday-Segar*
quetas; Sorologia após o 6o dia; Tabela 1. Conduta de hidratação de acordo com o estadiamento
• Hidratação conforme Tabela 1; clínico de gravidade da criança com Dengue.

• Sintomáticos: anti-térmicos e anti-alér- (*)


Regra de Holliday-Segar para cálculo das necessidades hí-
dricas diárias da criança de acordo com o peso em kg:
gicos para prurido; • até 10 kg: 100mL/kg
• Retorno em 24 horas ou imediatamente • 10 a 20 kg: 1000mL + 50mL para cada kg acima de 10 kg
• > 20 kg: 1500 mL + 20mL/kg para cada kg acima de 20 kg
se surgirem sinais de alerta. • sódio: 3mEq para cada 100mL de líquido calculado (NaCl
20% - 1mL = 3,4mEq)
• potássio: 2mEq para cada 100mL de líquido calculado (KCl
GRUPOS C e D 10% - 1mL = 1,34mEq)
• Presença de algum sinal de alerta e/ou; Valores normais do hematócrito (Ht) em crianças:
• < 1 mês: Ht = 51%
• Choque; • 2 a 6 meses: Ht = 35%
• Manifestações hemorrágicas presentes • 6 meses a 2 anos: Ht = 36%
• 2 a 6 anos: Ht = 37%
ou ausentes. • 6 a 12 anos: Ht = 38%

Conduta:
• Iniciar imediatamente hidratação con- Medicamentos antitérmicos habitualmente usados
forme Tabela 1 nos casos de Dengue
•Paracetamol: 10mg/kg/dose até de 6/6h (1gt = 10mg;
• Transferir para leito de observação em máximo 750 mg)
unidade, com capacidade para realizar •Dipirona: 6 a 16mg/kg/dose até de 6/6h (1gt = 25mg;
hidratação venosa sob supervisão médi- injetável 1mL = 500mg; máximo 4g/dia)

ca, por um período mínimo de 24h; NÃO USAR ÁCIDO ACETIL SALICÍLICO NEM
ANTI-INFLAMATÓRIOS
Estadiamento Hidratação recomendada
Hidratação oral (em casa):
• Oferecer líquidos e soros de VII. Notificação e Atividades de Prevenção
reidratação oral de acordo com a
aceitação da criança para fornecer Cabe ao Médico de Família desenvolver
as necessidades básicas de acordo ações de esclarecimento à população, coorde-
Grupo A e Grupo B com a regra de Holliday-Segar*
nar visitas domiciliares pelos agentes de saúde e
Ht até 10% do basal • Repor eventuais perdas (vômitos
e diarréia): promover palestras nas comunidades de modo a
- abaixo de 24 meses: 50 - 100mL ampliar o conhecimento dos leigos sobre o ciclo
(1/4 - 1/2 copo)
- acima de 24 meses: 100 - 200mL de transmissão, gravidade da doença e identifi-
(1/2 - 1 copo) cação de situações de risco, bem como medidas
Hidratação oral (em observação): de proteção individual, como o uso de repelen-
• Oferecer soro de reidratação oral: tes e telas nas portas e janelas.
Grupo B
50 - 100mL/kg de 4 a 6 horas.
Ht > 10% do basal Por ser uma doença de notificação com-
Se necessário hidratação venosa:
ou Ht > 42%
• Soro fisiológico ou Ringer Lacto pulsória, todo caso suspeito e/ou confirmado
- 20mL/kg em 2 horas.
deve ser comunicado ao Serviço de Vigilância
Epidemiológica, o mais rapidamente possível.
Este deverá informar, imediatamente, o fato à

393
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

equipe de controle vetorial local para a adoção • Tendências hemorrágicas evidenciadas por
das medidas necessárias ao combate do vetor. um ou mais dos seguintes sinais: prova do
Cabe ainda ao Médico de Família auxiliar laço positiva, petéquias, equimoses ou púrpu-
na determinação da classificação final dos casos, ras, sangramentos de mucosas do trato gas-
pois a padronização da classificação de casos trointestinal e outros;
permite a comparação da situação epidemiológi- • E�travasamento de plasma devido ao aumento
ca entre diferentes regiões. A classificação é re- de permeabilidade capilar, manifestado por:
trospectiva e, para sua realização, deve-se reunir - Hematócrito apresentando um aumento de
todas as informações clínicas e laboratoriais do 20% sobre o basal na admissão ou queda do
paciente, conforme descrito a seguir: hematócrito em 20%, após o tratamento;
- Presença de derrame pleural, ascite e hipo-
proteinemia.
Caso confirmado de dengue clássica
A dengue hemorrágica pode ser classifica-
É o caso suspeito, confirmado laborato- da de acordo com a sua gravidade em:
rialmente. Durante uma epidemia, a confirma- • Grau I – febre acompanhada de sintomas
ção pode ser feita pelos critérios clínico e epide- inespecíficos, em que a única manifestação
miológico, exceto nos primeiros casos da área, os hemorrágica é a prova do laço positiva;
quais deverão ter confirmação laboratorial. • Grau II – além das manifestações do grau I,
hemorragias espontâneas leves (sangramento
de pele, epistaxe, gengivorragia e outros);
Caso confirmado de febre hemorrágica da dengue • Grau III – colapso circulatório com pulso fraco
e rápido, estreitamento da pressão arterial ou
É o caso confirmado laboratorialmente e hipotensão, pele pegajosa e fria e inquietação;
com todos os critérios presentes a seguir: • Grau IV – Síndrome do Choque da Dengue
• Febre ou história de febre recente de sete dias; (SCD), ou seja, choque profundo com ausên-
• Trombocitopenia (plaquetas 100.000/mm3 ou cia de pressão arterial e pressão de pulso im-
menos); perceptível.

394
Capítulo 38 • Dengue na criança

395
Bibliografia

Caballero MEV, Portuondo TMA, Serrano HP.


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control. 2nd ed. Geneva; 1997.
Capítulo 39
Leishmaniose visceral em pediatria, deteve 20% dos casos notificados
americana – Calazar no estado12.
Diante deste fato se faz necessário o re-
Maria helena loPes cavalcante
conhecimento precoce dos diversos sintomas e
sinais clínicos que possibilitem o diagnóstico e
tratamento, como também a identificação dos
fatores de gravidade que justifiquem transferir
o paciente para hospital de maior complexidade
onde existam condições para tratamento e iden-
Introdução tificação das complicações associadas à doença.

A leishmaniose visceral é reconhecida como


um grave problema de saúde pública,
prioridade absoluta da Organização Mundial
Caso Clínico

de Saúde (OMS), por ser uma endemia de re- AERS, três anos e cinco meses, feminino, na-
gião tropical e subtropical, se distribuindo na tural de Tauá-Ceará
Ásia, Europa, África e nas Américas, atingindo QP: febre há 2 meses. HDA: criança com iní-
500.000 casos novos a cada ano no mundo1. cio do quadro há 2 meses com febre tosse e.palidez,
No Brasil, a leishmaniose visceral ameri- tendo procurado a assistência médica na sua cidade,
cana (LVA) é doença de notificação compulsória no início, sendo tratada com amoxacilina. Persistindo
com ampla distribuição geográfica, envolven- os sintomas retornou a unidade de saúde quando foi
do as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e prescrito antiparasitários, sulfato ferroso e sintomáti-
Sudeste. A notificação do Ministério da Saú- cos. Houve piora do quadro com anorexia, aumen-
to do volume abdominal, edema, manchas no corpo
de (MS), no período 1994-2002, quantificou
associado a vômito sendo encaminhado ao hospital
48.455 casos, sendo 66% no Nordeste, espe-
de Tauá e referido para HIAS-Fortaleza-CE Relato
cialmente na Bahia, Ceará, Maranhão e Piauí.
de cães doentes na vizinhança, nega casos humanos.
Aumento considerável evidenciou-se nos anos
Vacinação em dia. História alimentar satisfatória.
de 1995 e 2000, configurando certo caráter
epidêmico e cíclico a cada cinco anos nas áre-
as endêmicas. Nos últimos dez anos, a média Exame Físico
anual do País foi superior a 3000 casos, com
uma incidência de 2 casos/100.000habitantes, • Peso: 11.500g, estatura: 90cm, temperatura:
sendo que no Nordeste a prevalência foi de 25 39,9ºC, FC: 164bpm, FR: 32irpm. Regular
casos/100.000 habitantes6 Estudo realizado em estado geral, hipocorada, hidratada, acianótica,
Fortaleza-CE no período de 1995-2002 consta- anictérica, petequias em face e edema de membros
tou predominância nos anos de 1995 e 2000 re- inferiores. AC: 2t com sopro no BEE. AP: MV
produzindo o mesmo caráter cíclico epidêmi- universal e sem ruídos adventícios Abdome:fígado
co já mencionado, e o Hospital Infantil Albert há 7cm do RCD e baço há 9cm do RCE.
Sabin (HIAS), hospital de referência terciária • HD: Hepatoesplenomegalia febril

397
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Exames complementares Importante IDENTIFICAR:

• Hemograma: Hm: 2,8/mm³; Hb: 7,35g/dl; Ht: Sinais de Alerta Sinais de Gravidade
24,7g/dl; plaqueta: 92000mm³, leuc: 3090; bast: Criança com idade entre 6 Idade inferios a 6 meses
meses a 1 anos
2%; seg: 30%; Eos: 1%; linf: 65% mon: 2%;
Quadro infeccioso suspeito Ictericia
VHS: 86mm; Albumina; 2,9mg/dl; globulina
Casos de recidiva de LV Fenômenos hemorrágicos
4,6mg/dl
Edema localizado Edema generalizado
• TP: 71,3%.
Diárreia Sinais de Toxemia
Vômito Desnutrição grave
Palavras Chaves: Febre por mais de 2 se-
Febre há mais de 60 dias Co-morbidade
mnas, hepatoesplenomegalia febril., pancitope-
Hospitalizar todos os pacientes com sinais de alerta ou gravidade.
nia, hipergamaglobulinemia,e cães doentes.
Principal HD: LVA ou Calazar.
Conceito

Conduta7 Leishmaniose Visceral é uma síndrome


clínica caracteristicamente espectral com apre-
A avaliação inicial do paciente com diag- sentações que variam de forma assintomáticas
nóstico suspeito ou confirmado de LVA deverá até quadro clássico da doença, que no período
ser feito com intuito de identificar os casos gra- de estado, se apresenta com febre, anemia, hepa-
ves ou com possibilidade de evoluir para situ- toesplenomegalia, manifestações hemorrágicas,
ação de gravidade, devendo ser encaminhados linfadenomegalia, emagrecimento, taquicar-
para hospital de referencia. dia, e menos frequentemente tosse e diarréia. A
desnutrição é importante, se desenvolve com a
progressão da doença e pode incluir edema pe-
Definição dos casos riférico, queda de cabelo e alterações da pele e
unhas9. Verifica-se acentuada hipoalbuminemia
• Casos suspeitos de Leishmaniose Visceral e hipergamaglobulinemia. Entende-se leishma-
- Todo indivíduo com febre e esplenomega- niose visceral como uma disfunção imunológica
lia, proveniente de área endêmica; específica decorrente do parasitismo das leish-
- Todo paciente com febre e esplenomega- manias nos macrófagos sendo responsável pelo
lia, proveniente de área sem ocorrência de amplo aspecto de manifestações clínicas e imu-
transmissão, se descartados os diagnósticos nológicas, reversíveis com tratamento especifico
diferenciais comuns na região. ou espontaneamente em indivíduos imunocom-
• Casos confirmados de Leishmaniose Visceral petentes. É uma zoonose típica das áreas tropi-
Critério clínico laboratorial: cais1. O agente etiológico é a Leishmania chagasi,
- Presença do parasita nos exames parasito- protozoário intracelular obrigatório do sistema
lógicos direto ou cultura; fagocítico mononuclear (SFM) com sua forma
- Reação de imunofluorescência indireta com amastigota ou aflagelada no hospedeiro verte-
titulo > 1:80 se excluídos outros diagnósticos. brado e outra forma promastigota ou flagelada
Critério Clínico epidemiológico: paciente no intestino do vetor. O principal vetor é a Lut-
suspeito, proveniente de área endêmica, sem zomya longipalpis6. Os reservatórios principais
confirmação laboratorial, mas com resposta são: cão, raposa e o homem2. Gambás são tam-
favorável ao teste terapêutico. bém apontados com reservatórios14.

398
Capítulo 39 • Leishmaniose visceral americana – Calazar

Fluxograma de Investigação de LVA


Febre > 2 sem

Ex. físico
c/ hepatomegalia s/ hepatomegalia

c/ esplenomegalia s/ esplenomegalia Retorno ambulatorial em 2 semanas

Pancitopenia Febril e Esplenomegalia Mantém febril sem


esplenomegalia
NÃO SIM
Pensar outras HD
Avaliar e continuar Sorologia
investigação e/ou
diagnóstica parasitológico

Não disponível Disponível


Colher Colher
material e iniciar tratamento material e aguardar resultado

Resultado Resultado Sorologia e parasi- Sorologia ≥ 1.80 e/ou pa-


negativo positivo tológico negativo rasitológico confirmado
Avaliar se houve Tratar e Investigar outros Tratar e
melhora clínica acompanhar diagnósticos acompanhar

NÃO SIM Presença de sinais de REFERIR PARA


alerta ou gravidades INTERNAMENTO
Investigar outras Continuar tratamen-
diagnóstico to e acompanhar NÃO

Avaliação acompa-
nhamento e alta

Aspectos Clínicos ção parasita-hospedeiro que impede a manifes-


tação do doença. São indivíduos com sorologia
Leishmaniose visceral (LV) tem perío- positiva sem sintomas ou intradermorreação de
do de incubação bastante variável sendo citado Montenegro positiva, evidenciado em inquérito
de vinte dias a quatro anos, ocorrendo de fora epidemiológico em área endêmica14.
abrupta ou gradual, com manifestações clínicas A forma aguda, também denominada
diversas, desde forma assintomática até a forma de forma disentérica, encontrada em menor
clássica bem definida na literatura8. proporção,se caracteriza por febre elevada, tos-
A LVA é classificada em quatro grupos se, diarréia, discreto aumento do baço, sem he-
com a seguinte distribuição: forma assintomá- patomegalia. Alterações hematológicas incluem
tica (18,4% do casos), forma aguda (1,5% dos ca- principalmente aumento de imunoglobulinas,
sos), forma subclínica (4.2% dos casos), e forma IgM e IgG anti-leishmania. O diagnóstico por
clássica (75.9% dos casos). A forma subclínica se mielograma é incomum, mas se torna fácil em
classifica por apresentar febre, hepatomegalia, punção esplênica ou biopsia hepática onde ocor-
hipergamaglobulinemia, velocidade de hemose- re elevado parasitismo12.
dimentação elevada, mas sem evidência de es- As manifestações clinicas da LV clás-
plenomegalia ou pancitopenia3. Difere, portan- sica incluem febre, hepatoesplenomegalia,
to, da assintomática definida como uma forma pancitopenia10,9,11, aumento do volume abdomi-
latente onde o parasita permanece no organismo nal, emagrecimento, astenia, anorexia, sintomas
por tempo indeterminado, existindo uma intera- hemorrágicos, edema, icterícia10,9. Linfoadeno-

399
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

megalia, cílios longos, tosse, diarréia, dor abdo- Bibliografia Consultada


minal são citados nesta seqüência como sinais e
sintomas encontrados10. Berman J. Recent developments in leishmaniasis
Fugindo às manifestações clássicas da LV epidemiology, diagnosis, and treatment. Curr In-
encontramos quadros atípicos que dificultam o fect Dis Rep. 2005;7(1):33-38.
diagnostico implicando em tempo mais prolon- Campos Jr D. Validade da prova terapêutica no
gado da doença. Apresentação incomum como: diagnóstico e tratamento do Calazar na Criança.
pancitopenia sem esplenomegalia, linfoadeno- Jornal de Pediatria. 1995;71(5):266-269.
megalia generalizada sem hepatoesplenomega- Contijo CMF, Melo MN. Leishmaniose visceral
lia, necrose hepática maciça, e hemorragia reti- no Brasil: quadro atual, desafios e perspectivas.
niana são relatada7. Rev Brás Epidemiol. 2004;7(3).

Tratamento
Referências
No Brasil, os antimoniais pentavalentes
continuam como droga de escolha por sua com- 1. Badaró RJS. Desenvolvimento e utilização de um
provada eficácia13, na dose de 20mg/kg/dia, IV antígeno especifico de leishmania chagasi (rk39)
ou IM por um período mínimo de 20 dias e má- no diagnóstico da leishmaniose visceral [Tese de
ximo de 40 dias. doutorado]. São Paulo; 1996.
O efeito colateral mais importante é de- 2. Deane LM, Deane MP Observações sobre a
corrente da ação sobre o aparelho cardiovascular transmissão da Leishmaniose visceral no Ceará.
e se traduz por distúrbio de repolarização (in- O HOSPITAL. 1955;48:347-364.
3. Gama MEA, Costa JML, Gomes CMC, Corbett
versão e achatamento da onda T e aumento do
CEP. Subclinical form of the American vis-
espaço QT). Sua toxidade é dose e tempo depen-
ceral leishmaniasis. Men Inst Oswaldo Cruz,
dente5. No caso de toxidade ou refratariedade
2004;99(8):889-893.
utiliza-se a anfotericina B na dose de 1mg/kg/ 4. Kafetziz DA. An overview of paediatric leish-
dia por 14 a 21 dias. maniasis. Journal of Postgraduate Medicine,
Na presença de sinais de gravidade a anfo- 2003;49(1):31-38.
tericina B é a droga de 1ª linha e recomenda-se en- 5. Ministério da Saúde (BR). Controle, diagnóstico
caminhar o paciente para hospital de referência. e tratamento da leishmaniose visceral (calazar),
Brasília, DF; 1996. (Normas Técnicas).
6. Ministério da Saúde (BR). Manual de vigilância
Avaliação da resposta terapêutica: POSITIVA14 e controle da leishmaniose visceral. Brasília, DF;
2003. Disponível em: <http//dtr2001.saúdegov,br/
- FEBRE: regressão nos primeiros 7 dias de editora/produtos/livros/pdf/03_1193_M pdf>.
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- PESO: aumento progressivo
8. Pastorino AC. Leishmaniose visceral. Pediatria
- BAÇO: diminuição em 50%
Básica, São Paulo, Sarvier 2003 Tomo II, cap 7 p.
- ESTADO GERAL: melhora até o final do
283-287.
tratamento. 9. Pastorino AC, Jacob CMA, Oselka GW, Sam-
- ALTA: seguimento ambulatorial por no mí- paio MMS. Visceral leishmaniasis: clinical
nimo 6 meses. and laboratorial aspects. Jornal de Pediatria,
2002;78(2):120-127.
10. Pedrosa CMS. Leishmaniose visceral humana

400
Capítulo 39 • Leishmaniose visceral americana – Calazar

em Alagoas: alterações clínicas, laboratoriais e


relação entre a duração da doença e o tamanho
do baço na admissão e ao termino do tratamento.
[Dissertação de mestrado], Recife; 1998.
11. Queiroz MJA, Alves JGB, Correia B. Leishma-
niose visceral: características clínico-epidemio-
lógicas em crianças de área endêmica. Jornal de
Pediatria, 2004;80(2):141-146.
12. Ray LC, Martins CV, Ribeiro HB, Lima AAM.
Leishmaniose visceral americana (calazar) em
crianças hospitalizadas de área endêmica. Jornal
de Pediatria. 2005;81:73-78.
13. Santos MA, Marques RC, Farias CA, Vasconcelos
DM, Stewart JM, Costa DL, Costa CHN. Predic-
tors of an unsatisfactory response to pentavalent
in the treatment of American visceral leishma-
niasis. Rev Soc Bras Trop. 2002;35:629-639.
14. Secretaria de Estado da Saúde (SP). Centro de vi-
gilância epidemiológico “Prof. Alexandre Vran-
jac II”. Informe Técnico: Leishmaniose Visceral
Americana; 2003.

401
Capítulo 40
Meningites Bacterianas anos recentes, à semelhança do observado nos
roBério dias leite países desenvolvidos, uma redução extraordi-
antônio Francelino de carvalho nária dos casos de meningite em menores de 5
anos devidos a esta bactéria. Casos esporádicos
ocorrem em menores de 6 meses, que não com-
pletaram o esquema vacinal básico, ou naquelas
crianças porventura não imunizadas.
Um problema relativamente recente é o
representado pelo advento de cepas de pneu-
Introdução mococos com resistência intermediária ou ple-
na à penicilina. No Brasil, estima-se que cerca

A pesar dos avanços na antibioticoterapia as


meningites bacterianas ainda constituem
um importante problema de saúde pública em
de 1% das cepas de pneumococos exibam resis-
tência plena à penicilina e em torno de 10% a
20% apresentem resistência intermediária, o
todo o mundo, devido a sua repercussão em ter- que ressalta ainda mais a importância da soli-
mos de morbimortalidade. É o Médico de Fa- citação de cultura rotineiramente, a fim de que
mília que freqüentemente irá levantar a suspeita possamos identificar a magnitude deste proble-
diagnóstica e indicar a conduta inicial, que tem ma em nosso meio.
grande impacto no prognóstico, bem como ins-
tituir medidas de profilaxia.
Segundo os dados da Secretaria de Vigilân- Caso Clínico
cia em Saúde do Ministério da Saúde do Brasil,
ocorreram cerca de 30 mil casos/ano de meningite JRS, 3 anos e 9 meses, masculino, vinha
no Brasil no período de 2001 a 2004. Destes casos, “gripado” há 5 dias (tosse cheia e coriza amarelada).
13 mil/ano têm como o agente etiológico a Neis- Há 48 horas iniciou quadro de febre elevada, acompa-
seriae meningitidis (meningococo), determinando nhada de vômitos persistentes e choro, levando a mão
uma incidência de 2,4 casos/100 mil habitantes, à cabeça, como se estivesse sentindo dor. Foi trazido as
com taxa de letalidade de 19% e gastos hospitala- pressas para o Posto de Saúde, pois apresentou con-
res de aproximadamente R$ 10 milhões/ano. vulsão tônico-clônica generalizada há 15 minutos.
Os agentes etiológicos mais importantes, Chegou torporoso, já sem abalos clônicos, febril, anic-
responsáveis por mais de 80% dos casos de me- térico, acianótico, desidratado, pálido, com taquipnéia
ningites bacterianas, são o Streptococcus pneumo- leve. Ausculta cardíaca: ritmo regular em dois tempos;
niae (pneumococo), Neisseriae meningitidis e Hae- Ausculta pulmonar: murmúrio vesicular universal,
mophilus influenzae do grupo B (HiB). As grandes roncos de transmissão. Abdome: flácido, plano, sem
epidemias causadas por meningococos estão as- aumento do fígado, nem do baço. Extremidades: frias,
sociadas aos sorogrupos A e C. No entanto, atu- pulso fino. Exame Neurológico: torporoso, reagindo a
almente no Brasil, o meningococo do sorogrupo estímulos dolorosos, rigidez nucal +++/4+ e sinais
B, encontrado de forma endêmica, é o mais pre- de Kernig e Brudzinsky presentes.
valente, seguido pelo meningococo do grupo C. A história clínica inicial podia, à princípio,
A incorporação da vacina conjugada contra HiB levar a crer que se tratasse de uma convulsão febril
ao calendário vacinal brasileiro determinou nos e que a sonolência da criança representasse um es-

403
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

tado pós-ictal. No entanto, alguns dos elementos etiologia é o Meningococo, com freqüência pode
da anamnese já nos obrigam a pensar no diagnós- se observar erupção petequial e purpúrica, em-
tico de meningite: febre, vômitos persistentes, bora este não seja um achado específico. Podem
cefaléia e convulsão. Além disso, o fato de que a estar presentes sinais de comprometimento do
criança vinha apresentando “estado gripal” há 5 sistema nervoso central (SNC), tais como: delí-
dias e somente há 48 horas passou a evoluir com rio, coma, convulsões, tremores, transtornos pu-
febre, faz pensar em uma provável complicação pilares, hipoacusia, ptose palpebral, e nistagmo.
de um quadro inicial de infecção de vias aéreas Lactentes em geral não apresentam os si-
superiores de etiologia inicialmente viral. Além nais clássicos de irritação meníngea. Neste caso,
disso, como se sabe, classicamente as convulsões são observados com maior freqüência: febre e/ou
febris surgem nas primeiras 24 horas de uma do- hipotermia, irritabilidade, agitação ou prostra-
ença febril, diferentemente do caso clínico. Já ção, grito meníngeo, recusa alimentar, choro per-
as informações obtidas com o exame físico, em sistente, má perfusão periférica, acompanhados
que sobressaem os sinais de irritação meníngea, de vômitos persistentes, convulsões e, em cerca
tornam muito provável o diagnóstico de menin- de 40% dos casos, abaulamento de fontanela.
gite. Cabe ao Médico de Família nesta situação:
providenciar acesso venoso para corrigir a desi-
dratação e instituir o início da terapia empírica Agentes Etiológicos
para meningite bacteriana, conforme consta na
O quadro 1 traz a síntese dos agentes etio-
próxima seção deste capítulo, além de referenciar
lógicos de meningites bacterianas mais comuns
o paciente para hospital de nível de atenção terci-
por faixa etária e por condições clínicas especí-
ária e seguir o processo de identificação do agente
ficas relevantes, a fim de orientar a terapia em-
etiológico para fins de orientação de conduta pro-
pírica inicial.
filática para os contactantes, se indicada.
Idade Bactérias mais prováveis
Escherichia coli, Klebsiella
Desenvolvimento da Atenção pneumoniae, Salmonella spp., en-
0 - 28 dias terococcus spp., Listeria monocyto-
Meningite ou inflamação das meninges genes, Estreptococo do grupo do
grupo B
refere-se ao aumento de leucócitos no líquor,
HiB, pneumococo, meningococo
que pode ter diversas causas, infecciosas ou não. 28 dias - 3 meses
+ os mesmos de 0 - 28 dias
Quando se trata de etiologia infecciosa, sobretudo 3 meses - 5 anos HiB, pneumococo, meningococo
as causadas por bactérias, que têm maior relevân- > 5 anos Pneumococo, meningococo
cia epidemiológica e são o objeto deste capítulo, Condição clínica Bactérias mais prováveis
observa-se infecção das leptomeninges (pia-má- Imunocomprome- Pneumococo, meningococo,
ter e aracnóide) e do espaço subaracnóideo. tidos BGN, Listeria monocytogenes
Fratura de base do Pneumococo, H. influenzae e
crânio Estreptococo do grupo A
Quadro Clínico Trauma craniano S. epidermidis, S. aureus, BGN
abertou ou pós-neu-
rocirurgia
Nas meningites bacterianas o início é ge-
S. epidermidis, S. aureus, BGN,
ralmente súbito, com febre elevada, cefaléia in- Fistula liqüórica
Propionibacterium acnes
tensa, vômitos persistentes e rigidez de nuca, aos Quadro 1. Etiologia das meningites bacterianas segundo faixa etá-
quais se associam os sinais de irritação menín- ria e condição clínica especial.
BGN = bacilos Gram negativos.
gea: Kernig, Lasègue e Brudzinski. Quando a

404
Capítulo 40 • Meningites Bacterianas

Alterações do líquor nas meningtes Tratamento Específico

Quanto ao tratamento específico, o Qua-


É importante conhecer as principais alte-
dro 3 mostra a terapia empírica inicial de acordo
rações citológicas e bioquímicas do líquor, que
com a faixa etária ou condição clínica específica,
vão orientar a conduta terapêutica empírica ini-
enquanto se aguardam resultados de exames que
cial, bem como os exames rotineiramente soli-
identificam o agente etiológico e sua sensibili-
citados para o diagnóstico etiológico. O Quadro
dade aos antimicrobianos.
2 traz o resumo destas alterações. É importan-
te lembrar que no período neonatal, em função Idade Terapia empírica inicial
da imaturidade da barreira hemato-liqüórica, a Cefotaxime + Amplicilina ou
0 - 28d
permeabilidade liqüórica é maior, de modo que Penicilina + Gentamicina

os valores normais variam na dependência do 28d - 3m Ceftriaxona + Amplicilina

grau de prematuridade e da idade cronológica 3m - 5a Ceftriaxona

do recém-nascido. Nestes casos, é necessário > 5a Ceftriaxona

consultar tabelas específicas disponíveis nos li- Condição Clínica Terapia empírica inicial

vros de neonatologia. TCE aberto Cefepime + Vancomicina

Agentes etiológico Neurocirurgia Cefepime + Vancomicina


Características

TCE fechado Cefriaxona


Tuberculose

parcialmen-
Bacteriana

Bacteriana

te tratada
Fúngica

Fístula liqüórica Cefriaxona


Viral

Quadro 3. Terapia empírica inicial

Citologia* O uso de dexametasona (0,15 mg/kg/dose


> 500 < 500 < 500 < 500 < 500
(células/mm3) de 6/6 h por 4 dias ou 0,4 mg/kg/dose de 12/12h
Citologia por 2 dias) está indicado nas meningites por H.
diferencial PMN LMN LMN LMN LMN
(%) influenzae do tipo B como forma de reduzir se-
> 45 qüelas auditivas, devendo ser iniciada 15 a 30
Proteína (g/ Nor-
dl)
> 45
mal
> 45 > 45 ou nor- minutos antes da primeira dose de antibiótico.
mal
As doses dos principais antibióticos usa-
< 2/3
< 2/3 < 2/3 < 2/3 dos para o tratamento são as seguintes:
Nor- glice-
Glicose (g/dl) glice-
mal
glice- glice-
mia ou • Penicilina G: 300.000 - 400.000 ui/kg/d (4/4h)
mia mia mia
normal • Ampicilina: 300 mg/kg/d (6/6h)
Pesquisa
Tinta • O�acilina: 200 - 300 mg/kg/d ( 6/6h)
Gram - BAAR da Gram
direta
China • Ceftria�one: 100 mg/kg/d (24/24h)
Cultura + + + + + • Cefota�ime: 200 mg/kg/d (6/6h ou 8/8h)
Outros Látex PCR Látex • Ceftazidime: 150 mg/kg/d (8/8h)
PCR PCR
métodos CIE ADA CIE • Vancomicina: 60 mg/kg/d (6/6h)
Quadro 2. Alterações citológicas e bioquímica do líquor • Amicacina: 20-30mg/kg/d (8/8h)
PMN = polimorfonucleares;
• Gentamicina: 7,5 mg/kg/d (8/8h)
LMN = linfomononucleares; • Cloranfenicol: 100 mg/kg/d (6/6h)
CIE = contraimunoeletroforese;
PCR = reação em cadeia da polimerase; A duração do tratamento das meningites é
ADA = adenosina deaminase. a que está apresentada no quadro 4:
*
Valores citados aqui são o habitual, embora possa ocorrer menin-
gite bacteriana com menos de 500 células/mm3 ou meningites de
outras etiologias com mais de 500 células/mm3

405
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Etiologia Duração (dias Alternativas para profilaxia para contactantes de do-


Meningococo 7 ença meningocócica
HiB 7 - 10
Pneumococo 14 • Ceftria�ona
S. epidermidis 21 - > 12 anos: 250 mg IM, dose única.
Estreptococo do grupo B 14 - 21 - >12 anos: 125 mg IM, dose única.
Listeria monocytogenes 14 - 21 • Ciproflo�acina
Enterobacteriacea 21 - Somente para >18 anos: 500 mg VO, dose
Quadro 4. Duração do tratamento
única.

Profilaxia dos contactantes Vacinas

A ocorrência de casos de escolas, no am- As vacinas constituem a profilaxia mais


biente de trabalho e até mesmo na equipe de saúde segura disponível na atualidade contra meningi-
no que diz respeito à possibilidade de transmis- tes bacterianas. O Médico de Família deve estar
são. É papel do Médico de Família tranqüilizar atento para sempre solicitar a apresentação da
a comunidade, indicando corretamente as medi- Caderneta ou do Cartão da Criança para manter
das profiláticas quando cabíveis e desmitificando o calendário vacinal atualizado. A vacina contra
informações equivocadas. O quadro 5 resume as HiB, combinada com a DPT faz parte do calen-
indicações de profilaxia antimicrobiana indica- dário vacinal brasileiro. Outras vacinas que aju-
das para os contactantes de pacientes com doen- dam na profilaxia das meningites encontram-se
ça meningocócica e meningite por HiB. disponíveis apenas nas clínicas particulares ou
nos Centros de Referência para Imunobiológi-
Droga Du-
Agente de Dose ração Indicação
cos Especiais do Ministério da Saúde para si-
escolha (dias) tuações especiais, mas é importante que sejam
Adultos: conhecidas.
600 mg • Vacina conjugada contra Hi�
2x/dia
Crianças: - Idade: 2, 4 e 6 meses, combinada com (Te-
Menin- Rifampi- Contatos
10 mg/kg/ 2 tra bacteriana)
gococo cina domiciliares
dia
< 1 mês: - Idade: 2, 4, 6 meses e 18 meses, combinada
5 mg/kg/ com DPaT + pólio inativada + Hepatite B
dia
Contatos domici- • Vacina conjugada 7-valente contra Penumococo
liares onde residem - Idade: 2, 4, 6 meses e reforço entre 12 e 15
crianças < 48
< 30kg: meses
meses que não te-
20 mg/kg
VO 1x/
nham completando • Vacina polissacarídica 23-valente contra Pe-
esquema de vacina-
Rifampi- dia numococo
HiB 4 ção. Contatos em
cina 10 mg/
creches ou escolas
kg no
em que tenham
- Idade: > 2 anos
período
neonatal
ocorrido 2 casos - Indicação: Imunodeficiência e maiores de
de doença invasiva
por HiB nos últi-
60 anos, aplicada no CRIE
mos 60 dias • Vacina conjugada Meningococo C
Quadro 5. Indicações de profilaxia para contactantes de pacientes - Idade: 3, 5 e 7 meses ou 3 e 5 meses, de-
com meningite.
pendendo do fabricante; maiores de 1 ano:
dose única
• Vacinas polissacarídicas contra Meningoco-

406
Capítulo 40 • Meningites Bacterianas

cos A, C, Y, W 135 Bibliografia


- Indicação: Epidemias
• Vacina combinada contra Meningococos �C American Academy of Pediatrics. Infecções por
(Vacina “Cubana”) Haemophilus influenzae. In: Pickering LK, ed.
- Eficácia não demonstrada em menores de 4 Red Book: 2003 Report of Committee on Infec-
anos no Brasil tious Diseases. 26th ed. Elk Grove Village, IL:
American Academy of Pediatrics; 2003: 838 p.
American Academy of Pediatrics. Infecções por
meningococo. In: Pickering LK, ed. Red Book:
2003 Report of Committee on Infectious Diseases.
26th ed. Elk Grove Village, IL: American Acade-
my of Pediatrics; 2003: 838 p.
American Academy of Pediatrics. Infecções por
pneumococo. In: Pickering LK, ed. Red Book:
2003 Report of Committee on Infectious Diseases.
26th ed. Elk Grove Village, IL: American Acade-
my of Pediatrics; 2003: 838 p.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilân-
cia em Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias:
guia de bolso / Ministério da Saúde, Secretaria de
Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilân-
cia Epidemiológica. 4. ed. Brasília: Ministério da
Saúde, 2004. 332p.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilân-
cia em Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias:
guia de bolso / Ministério da Saúde, Secretaria de
Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância
Epidemiológica – 4. ed. – Brasília: Ministério da
Saúde, 2004. 332p.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilân-
cia em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica /
Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em
Saúde. 6. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
816 p. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilân-
cia em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica
/ Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância
em Saúde – 6. ed. – Brasília: Ministério da Saúde,
2005. 816 p. – (Série A. Normas e Manuais Técni-
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jugada contra Streptococcus pneumoniae em
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407
Farhat CK. Meningites bacterianas purulentas.
In: Farhat CK et al., Infectologia Pediátrica. 2. ed.
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Farhat CK. Meningites bacterianas purulentas.
In: Farhat CK et al., Infectologia Pediátrica. 2. ed.
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Saez-Llorens X, McCracken Jr GH. Antimicro-
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Van de Beek D, Gans J,Tunkel AR, Wijdicks
EFM. Community acquired meningitis in adults.
N Engl J Med 2006;354:44-53.
Capítulo 41
Adenopatia na criança inguinal com diâmetro até 1 cm, lembrando que
e adolescente sejam não aderentes, indolores, elásticos, móveis
na ausência de outros achados clínicos2,8.
Maria da conceição alves Jucá
Linfadenopatia cervical bilateral aguda
(duração de até 3 semanas) usualmente é causada
por infecção do trato respiratório superior de etio-
logia viral ou bacteriana, destacando-se a farin-
gite estreptococcica. No entanto, as causas mais
comuns de linfadenite crônica (duram mais de 3
Introdução semanas) podem sugerir doença da arranhadura
do gato, infecção por micobactéria ou toxoplas-

O aumento dos linfonodos é um achado co-


mum na prática pediátrica. Sabe-se que de
acordo com os estímulos antigênicos e também
mose. A linfadenopatia generalizada é frequen-
temente causada por infecção viral podendo-se
também suspeitar de neoplasias, doença do co-
com o crescimento da criança pode ocorrer uma lágeno ou secundária a medicações. Vale salien-
hiperplasia ganglionar, fato este esperado até tar, que a maioria dos casos de linfadenopatia são
a puberdade quando evolui progressivamente auto limitados e não requerem tratamento6.
para redução e atrofia destes tecidos1.
No entanto, o pediatra deve estar atento
para saber distinguir os casos de adenomegalia Caso Clínico
benigna, daqueles que suscinta uma investiga-
ção mais criteriosa9. A.L.S., 8 anos, feminino, procedente de Ba-
Embora a condição mais comum repre- turité-Ceará.
sente uma resposta transitória a uma infecção • Anamnese: Q.P. “caroços no pescoço”
benigna, localizada ou generalizada, no entanto • H.D.A.: Início há oito dias com febre diária, não
ocasionalmente pode representar situações mais mensurada, porém cedia com antitérmicos. Houve
preocupantes como neoplasias, doenças auto- progressivo mal estar, adinamia e inapetência. No
imunes, histiocitose, HIV ou tuberculose3,4,6. segundo dia de evolução do quadro surgiu dor de
A prevalëncia das adenomegalias na garganta. Por recomendação médica, fez uso de
criança ainda não está bem estabelecida, pois na amoxacilina, sem melhora clínica. Manteve febre
prática clínica estes dados sofrem variações a de- diária e há 2 dias surgiu caroços no pescoço e respi-
pender da localização e da faixa etária avaliada5. ração ruidosa.
Vale salientar que os linfonodos em regiões • Antecedentes Familiares: Pai 45 anos, mãe 40
como auricular posterior, supraclavicular, epitro- anos, quatro irmãos saudáveis, é a primogênita,
clear, poplítea, mediastinal e abdominal são con- mãe G5P4A1.
siderados sempre patológicos quando forem pal- • Antecedentes Perinatais: Nasceu de PNT, PN
pados ou identificados por exames de imagem2,4. 3000g, chorou ao nascer, sem intercorrências no
Já é consenso na literatura dimensionar período neonatal.
como normal gânglios palpáveis com diämetro • Alimentação: leite materno até o oitavo mês, com
de até 0,3 cm nas regiões occipital, submandi- 5 meses iniciou frutas, sopa de legumes, atualmente
bular e axilar. Assim como, em região cervical e alimentação razoável para a idade.

409
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

• ACD: Sentou com 6 meses, andou com 1 ano, mograma com linfocitose e atipia linfocitária
com 3 anos falava tudo (sic). Está na 2ª série do convencionalmente cogita-se estar diante da
EF. Síndrome da Mononucleose ou Mono-símile.
Diferentes agentes etiológicos são causa-
dores desta síndrome, como: o citomegalovírus,
Exame Físico toxoplasma gondi, adenovírus, vírus da rubéola,
vírus da hepatite A, vírus da hepatite B, vírus da
• Peso: 22,5Kg Estatura: 120cm Tax: 37,2ºC imunodeficiência adquirida (HIV), treponema
PA:110/70mmHg. pallidum e o mais importante, o vírus Epstein-
• Estado geral regular, hipocorada, hidratada. Barr (EBV).
Dispnéia leve com ruídos respiratórios (roncos) A infecção pelo EBV se caracteriza por
altos. Acianótica. Anictérica. Amígdalas hiper- febre, adenomegalia, dor de garganta, faringite
trofiadas, recobertas por exsudato branco acinzen- com ou sem exsudato, petéquias no palato, he-
tado. Gânglios em cadeias cervicais anteriores e patoesplenomegalia, icterícia, hemograma com
posteriores aumentados bilateralmente (1 - 3 cm linfocitose e atipia linfocitária.
de diâmetro), indolores, não aderentes. Gânglios A adenomegalia apresenta-se como um si-
axilares e inguinais menores que 1 cm. AP: al- nal clínico característico da doença, localizando-
guns roncos. AC: RCR, dois tempos, sem sopros, se principalmente na região cervical, anterior e
FC: 104bpm. Abdome: fígado a 2 cm RCD. posterior podendo, às vezes, ser generalizada
Baço a 3 cm RCE. SNC e Aparelho locomotor (axilar, inguinal, mesentérica e mediastinal). O
sem anormalidades. aumento é rápido, atingindo 1 a 4 cm de diâ-
• Genitália externa: pelos pubianos P1 de Tan- metro, porém o seu desaparecimento é lento.
ner, mucosa vaginal não estrogenizada. Em alguns pacientes uma adenopatia cervical
• HD: Linfadenomegalia Febril (Infecciosa). volumosa pode surgir, simulando o aspecto em
pescoço de touro.
É uma patologia de bom prognóstico,
Exames Complementares porém preocupante nos pacientes com defici-
ência de imunidade, quando pode se cronificar,
• Hemograma: Hb: 10,9g/dl; Ht: 34,4g/dl; pla- evoluindo para formas proliferativas. Podemos,
quetas 120000 mm3; Leuc: 3200. no entanto, observar outras complicações como
• Bast 3%; seg: 47% eos; 1%; bas: 0; linf 47%; ruptura esplênica, insuficiência respiratória alta
mon: 2% VHS 41mm. Atipia linfocitária por obstrução da vias aéreas superiores, pneu-
10%. monite grave, insuficiência cardídaca congesti-
Palavras-chaves: Lymphadenopathy, infec- va (miocardite), insuficiência hepática, convul-
tious mononucleosis. são e coma.
Principal HD: Síndrome da Mononucleose
(Mono – símile).
Aspectos Conceituais e Clínicos

Comentários O passo inicial para investigação diagnós-


tica das linfadenomegalias consiste numa histó-
Ante uma criança com uma polimórfica ria clínica e exame físico completo e detalhado,
combinação de achados clínicos tais como: fe- dando ênfase a procedência, antecedentes de
bre, adenomegalia, hepatoesplenomegalia e he- viagens, faixa etária, contato com doenças infec-

410
Capítulo 41 • Adenopatia na criança e adolescente

ciosas e animais, estado de saúde dos pais, ante-


cedentes vacinais e uso de drogas1. Define-se como adenomegalia generaliza-
Deve-se enfatizar que em virtude deste si- da como o aumento de gânglios em duas ou mais
nal clínico implicar numa ampla variedade de cadeias anatômicas, não contíguas7.
diagnósticos etiológicos é mais plausível dividir Uma vez caracterizado este quadro é fun-
as linfadenomegalias em regionais e generaliza- damental para busca etiológica que seja identi-
das para que assim estas patologias sejam me- ficado a concomitância de outros dados clínicos
lhor elucidadas, seguindo-se um raciocínio clí- como febre, emagrecimento ou anemia (pode
nico programado. sugerir processo neoplásico), assim como ante-
cedentes epidemiológicos, história transfusional
Etiologia da Adenomegalia Generalizada ou de ingestão de drogas.
Adenomegalias Regionais

Pesquisar doença neoplásica sempre quando durante o exame físico for identificado a presença
de linfonodos grandes, indolores a palpação, aderentes e de consistência aumentada4.

História de ingestão de sim Suspensão da droga e sim Reação a drogas Hemoculturas permitem sim Infecção bacteriana
drogas: Alopurinol, dife- regressão da adenomegalia diagnóstico grave
nilhidantoína, hidralazina, em 2 a 3 semanas
isoniazida sim não

não
Pesquisa de sim Doenças do
identificar antecedentes trans- sim
Síndrome da mononucleose Leucocitose com colagegenoses colágeno
fusionais e/ou epidemiológicos A
• Mononucleose desvio à esquerda permite diagnóstico
Infecciosa
• Citomegalovirose
Hemograma com linfoci- sim • To�oplasmose não
tose atípica + sorologias • Chagas agudo
B Pancitopenia e/ou sim
específicas permitem
células blásticas Mielograma com sim • Leishmaniose visceral
diagnóstico
pesquisas específicas • Neoplasias
não permitem diagnóstico • Doenças de depósito
• Retículoendotelioses
Identificar ao exame físico: • Infecção por fungos
• Emagrecimento sim
Identificar no não
• Anemia hemograma:
• Febre
• Hepatoesplenomegalia C Anemia + sim
reticulocitose Pesquisa de anemias sim
• E�antema Anemias
hemolíticas permite hemolíticas
não diagnóstico

Observação e regressão da sim


Doença viral?
adenomegalia em 2 semanas
• RX Tóraz • Tuberculose
não D Hemograma sim • PPD
• Sarcoidose
normal • Dosagem de • Neoplasias
RX tórax sim • Neoplasias
Imunoglobulinas sim • Sida
• Sorologia HTLV III • Colagenoses
Sorologia HTLV III • Sarcoidose
• VMA urinário • Doenças de depósito
Biópsia Ganglionar • Sida
• Proceder como A + � • Infecção por fungos
permitem diagnóstico • Adente crônica
• �iopsia ganglionar • Disgamaglobulinemia
Inespecífica
permite diagnóstico primária

sim
E Leucocitose +
eosinofilia > 20%
• RX Tóraz sim • To�ocaríase
• Protoparitológico • Esquitossomose aguda
• Sorologia para • Estrongiloidíase
Toxocaríase permite Sistêmica
diagnóstico
não

• Mielograma permite • Leucemia Eosinofílica


diagnóstico • Síndrome Eosinofílica
Idiopática

411
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Linfadenomegalia regional

1ª 2ª 3ª 4ª

• Linfadenomegalia em qualquer • Linfadenomegalia supraclavicular • Linfadenomegalia em qualquer • Linfadenomegalia em qualquer


cadeia superficial, exceto ou cervical inferior (região associa- cadeia e/ou cadeia região, especialmente
supraclavicular e cervical inferior. da com patologia grave e a alto • Linfonodos aderentes não-elásticos cervical superior.
• Linfonodos de aspecto benigno*. índice de biopsias diagnósticas). ou coalescentes. • Linfonodos endurecidos,
• Criança em bom estado geral, sem • Criança em bom estado geral ou • Crianças em bom estado geral dolorosos, eritematosos.
hepato ou esplenomegalia. estado geral comprometido. comprometido, sinais e sintomas • Criança bem, com ou sem febre,
sugerem patologia grave***. com ou sem infecção satélite
(sufere linfadenite).

Possível linfadenopatia
reacional (descartar arranhadura
do gato e adenite por BCG)

Hemograma Hemograma, VHS, RX e tórax Hemograma


(geralmente revela leucocitose)

Linfócitos Hemograma Hemograma


Não tratar com antibiótico e reavaliar
atípicos ou com blastos ou não-específico e
específico em 10 dias.
eosinófilia RX tórax com RX tórax normal
alargamento de
mediastino
Linfonodos não Linfonodos
Baseado na histó- regredindo, ou regredindo
ria e exame físico: maiores
obter sorologias, negativa
Provável RX: alargamento
começando pela leucemia, obter de mediastino:
etiologia mais miolograma pensar em tuber-
provável** culose, linfoma, Linfonodos
sarcoidose, outros estão regredindo
tumores

Observar por 4 a 6 sem.

Observar
Linfonodos Linfonodos Linfonodos Linfonodos
regrediram regrediram, estacionários após aumentaram no
mas ainda 6 semanas período de 2 a 4
aumentados semanas
Linfonodos
não regredindo

Observar por mais 6 a 10 Continuar investigação


semanas (total 12 a conforme suspeira clínica
Incisão e drenagem (se in-
16 semanas) (RX tórax, PPD etc.)
dicado) enviar material para
gram e culturas (inespecífi-
ca e específica)

Linfonodos não
regrediram
negativa Positivo: Negativo:
para bactérias para bactérias
resistentes a pe- resistentes a
nicilina: trocar penicilina.
o antibiótico.

Biopsia

Linfonodos de aspecto benigno: elásticos, não-coalescentes, não-aderentes a planos profundos, ausência de fístula: ** A história (febre prolongada, contato com
animais etc.) e exame físico (hepato ou esplenomemalia, exantema, exsudato amigdaliano etc. podem sugerir mononucleose, citomegalovirose, toxoplasmose;
***
Sinais e sintomas sugerindo doença grave: febre por mais de 7 dias, perda de peso, hepatoesplenomegalia, nódulos coalescentes, aderentes e estruturas pro-
fundas. Revista Diagnóstico e Tratamento.

412
Capítulo 41 • Adenopatia na criança e adolescente

precoce/ Por potencial de malignidade)


Na avaliação clínica da adenomegalia re-
gional a abordagem inicial deve basear-se na Pode ser maligno
procura de patologias relacionadas aos sítios de • Consistëncia pétrea
drenagem correspondente. É interessante salien- • Nódulos fi�os ou aderidos aos planos profun-
tar que afecções inicialmente localizadas podem dos, coalescentes
evoluir acometendo outras regiões ganglionares • Localização supraclavicular, mediastinal, ab-
e que doenças sistêmicas podem manifestar-se dominal, cervical inferior
com adenomegalias localizadas5,7. • Associados a outros sintomas e sinais sistê-
Na prática clínica, identificam-se quatro micos como – febre prolongada e inexplicada,
grandes situações, a saber: emagrecimento e perda de peso
• 1ª • Hepatesplenomegalia, anemia, petéquias, su-
- Linfadenomegalia em qualquer cadeia su- dorese noturna
perficial, exceto supraclavicular e cervical
inferior.
- Linfonodos de aspecto benigno*. Diagnostico Diferencial
- Criança em bom estado geral, sem hepato
ou esplenomegalia. • Região cervical: �ócio, cisto tireoglosso, cisto
branquial, costela cervical, higroma cístico,
• 2ª tumor de esternocleidomastoídeo
- Linfadenomegalia supraclavicular ou cer- • Região inguinal: Cisto de cordão espermáti-
vical inferior (região associada com patolo- co, testículos ectópicos, aneurismas e hernia
gia grave e a alto índice de biopsias diag- inguinal
nósticas) • Em qualquer sítio: neurofibromas e lipomas.
- Criança em bom estado geral ou estado ge-
ral comprometido.
Quando medicar com antibióticos?
• 3ª
- Linfadenomegalia em qualquer cadeia e/ou Adenomegalias com sinais flogísticos, as-
- Linfonodos aderentes não-elásticos ou coa- sociados a febre, queda do estado geral, acompa-
lescentes. nhados ou não de um foco infeccioso regional.
- Criança em bom estado geral comprome- Os agentes mais comuns são os estrepcocos e
tido, sinais e sintomas sugerem patologia estafilococos. Logo, os antibióticos que devem
grave *** ser usados são as penicilinas e cefalosporinas. O
tempo esperado para regressão de uma linfade-
• 4ª nite infecciosa é de 10 a 15 dias. Caso isso não
- Linfadenomegalia em qualquer região, es- ocorra a biopsia está indicada.
pecialmente cervical superior.
- Linfonodos endurecidos, dolorosos, erite-
matosos. Quando biopsiar um linfonodo?
- Criança bem, com ou sem febre, com ou
sem infecção satélite (sugere linfadenite). • Adenomegalias supraclaviculares e cervicais
inferiores.
Sinais de Alerta (que recomenda biopsia • Características desfavoráveis de um linfono-

413
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

do em questão Referências
• Adenomegalia que não desaparece mesmo
após tratamento específico 1. Correia JB. Adenomegalias. In: Figueira JGBA,
• Uma adenomegalia com investigação negati- Bauler CH. Manual de diagnóstico diferencial em
va que não comece a regredir após um perío- pediatria. Rio de Janeiro: Medsi; 2002. p. 11-8.
do de investigação de 4 a 6 semanas. 2. Ferrer R. Lympnadenopath: differential diagno-
sis and evolution. Disponível em: http://www.
aafp.org/afp981015ap/ferrer.html
3. Fonseca JS. Tuberculosis in children. Eur I Ra-
Para não esquecer !!!
diol 2005 Aug; 55 (2):202-8.
4. Jacob CM. Adenomegalias. In: Marcondes E,
• Linfadenomegalia é um achado comum na Leone C, Oselka GW, Corradini HB. Roteiros
infância diagnósticos em pediatria. São Paulo: Sarvier;
• A resposta linfóide da criança é mais e�acer- 1987. p. 51-66.
bada que a do adulto 5. Kobinger MEBA. Adenomegalia. In: Sucupira
• Hiperplasia reacional é a causa mais comum ACL, Bricks LF, Kobinger MEBA, Saito MI,
de adenomegalia na infância Zucco BTTO. Consultório em pediatria. 2. ed.
• Linfadenites são freqüentes na região cervical São Paulo: Sarvier; 2000. p. 153-64.
• Linfonodos supraclaviculares e cervicais in- 6. Leung AKC, Robson LM. Childhood cervical
feriores são indício de patologias graves lymphadenopathy. J Pediatr Health Care 2004
• Diagnóstico das adenomegalias deve seguir Jan; (8):3 -7.
7. Petrilli AS, Vieira TCS, Volc SM. Linfodenome-
um raciocínio clínico programado
galia periférica na infância. Rev Diag Trat 2002
• Neoplasia é causa rara de linfadenomegalia
out./dez.; 4 (7):22-8.
na infância
8. Rodrigues PPB, Rodrigues YT. Linfonodos. In:
• A biopsia, quando bem indicada, tem maior
Rodrigues PPB, Rodrigues IT. Semiologia pedi-
chance de ser diagnóstica. átrica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogon; 2003.
p. 77-81.
9. Twist C. Initial assessment of lymphadenopathy
in children. Pediatr Clin North Am 2002; 49
(5):1009-25.

414
Capítulo 42
Sinais e sintomas precoces: câncer Devemos levar em consideração que mais
na infância e adolescência da metade dos processos neoplásicos da infân-
cia são agressivos, imunossupressores, com risco
selMa lessa de castro
acrescido de infecções severas, comprometendo
o estado físico muito rapidamente, necessitando
assim de encaminhamento dos profissionais da
Atenção Primária para os Centros Especializa-
dos, para que sejam tomadas medidas assisten-
ciais eficazes.
Introdução O Instituto Nacional de Geografia e Esta-
tística (IBGE) ainda nos mostra que mais de 20

O câncer na infância e adolescência é um evento


raro, representando 2 a 3% de todos os tipos
de câncer. Consiste na segunda causa de óbito nos
milhões de crianças menores de seis anos têm
desnutrição. Essa população continua sendo alvo
de atenção dos médicos da família, mas com a
países desenvolvidos e foi a quinta causa de óbito incorporação de novas tecnologias promovendo
no Brasil em 1994, representando 22% dos óbitos grande desenvolvimento na área de pediatria on-
por neoplasias em menores de 15 anos. Alguns da- cológica, levando a um aumento nos índices de
dos estatísticos apontam que a taxa de incidência é sobrevida e cura de alguns cânceres infantis, asso-
de 110 a 130 casos por millhão de crianças ao ano, ciada a uma expansão assistencial à saúde infan-
ou seja, uma em cada 500 ou 600 crianças podem til, é fundamental que todos os profissionais da
ser afetadas antes dos 15 anos. Muitas das mani- equipe de Saúde da Família se familiarizem com
festações clinicas oncológicas iniciais são quase as novas aquisições, as novas possibilidades e os
silenciosas, se confundem e se assemelham com Centros de Referência em Oncologia Pediátrica.
sinais e sintomas de doenças comuns da infân- Hoje temos índices de cura do câncer in-
cia, devendo assim o médico estar sempre alerta e fantil em torno de 70% e para que se mantenham
atento diante de uma possível neoplasia. esses índices é ainda indispensável o diagnós-
Apesar de existirem menos estudos epi- tico precoce e o encaminhamento para os cen-
demiológicos em crianças do que em adultos, a tros especializados, que devem estar técnica e
abordagem epidemiológica foi responsável por profissionalmente preparados para diagnóstico
muitos avanços nesta área. Os estudos epidemio- preciso, rápido e inicio imediato das condutas
lógicos ao descreverem como as doenças ocor- terapêuticas específicas.
rem e sua distribuição geográfica, estudam seus A necessidade do conhecimento e inves-
fatores de risco e prognósticos, fornecendo sub- tigação dos sinais e sintomas iniciais do câncer
sídios para se atuar em três níveis de prevenção: infantil é responsabilidade de todos envolvidos
no primeiro, através da eliminação ou redução no processo do seu diagnóstico precoce a fim de
dos fatores de risco antes do indivíduo ficar do- melhorar os nossos índices de cura. Os princi-
ente; no segundo com a detecção precoce, inter- pais sinais e sintomas compreendem: palidez,
vindo assim no desenvolvimento da doença em adinamia, adenopatias não dolorosas de locali-
sua fase inicial e, no terceiro, atuando no senti- zação e evolução pouco usuais, aumento do vo-
do não só de prolongar a sobrevida do paciente, lume abdominal, febre prolongada, dores nos
mas de melhorar a sua qualidade de vida. membros, presença de petéquias, equimoses e/

415
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

ou sangramentos e cefaléias e vômitos com ou sendo encaminhado a um Hospital Secundário, onde


sem distúrbios da marcha, dentre outros realizou um hemograma. Após resultado, foi enca-
O diagnóstico precoce é um processo minhado a um Hospital Terciário. Ao exame físico,
complexo e muitas são as variáveis que parecem paciente com estado geral regular, febril, hipoativo,
influenciá-lo. O profissional de atenção primá- hipocorado (++/4+), gânglios cervicais, axilares e
ria, entre estes a equipe de Saúde da Família, inguinais, pequenos, não aderidos a planos profun-
uma vez envolvido neste processo, tem em suas dos e esplenomegalia de 3cm abaixo do RCE.
mãos todas as ferramentas necessárias para a O hemograma apresentava uma Hb =
avaliação, suspeição e encaminhamento dos ca- 9,0g/100ml, Htc = 27,5% com hipocromia e mi-
sos, possibilitando assim a detecção precoce e o crocitose; Leucócitos = 15.400/mm³ com dife-
pronto início do tratamento, os quais têm im- rencial apresentando células blásticas. Plaquetas
portante papel na redução da morbidade e mor- = 90.000/mm³.
talidade do tratamento.
Muitos fatores parecem estar associados
ao atraso do diagnóstico: entre outros o tempo Comentários
que decorre entre o primeiro sintoma e o aces-
so ao diagnóstico, a idade da criança e o tipo de • Qual o diagnóstico mais provável?
tumor. Por isso, determinar os sinais e sintomas • Qual a conduta mais importante no momento
que devem alertar para a possibilidade de doen- da 1ª e 2ª consulta?
ças malignas ainda é um desafio para todos que
trabalham na promoção da saúde infantil. Diante de uma criança com as queixas
Uma vez estabelecida a relação entre todos relatadas, é mandatório, além de uma boa ana-
estes fatores, tal compreensão é de fundamental mnese e exame físico, que seja solicitado um
importância para o desenvolvimento de estraté- hemograma, onde avaliaremos a anemia, a ade-
gias de saúde pública para detecção precoce do nopatia cervical, a febre e a plaquetopenia. Uma
câncer infantil. E não podemos pensar em tais vez identificado ao hemograma uma bicitopenia
estratégias se não atuarmos nos três níveis: a ní- (anemia + plaquetopenia), entraria no diagnós-
vel de Atenção Primária, onde os profissionais tico diferencial um processo neoplásico, confir-
fazem a suspeição; na Atenção Secundária, para mado com a análise diferencial, com a visualiza-
onde são encaminhados os casos suspeitos a fim ção de células imaturas (blastos). O diagnóstico
de realizarem avaliações laboratoriais, emissão de uma Leucemia Aguda estaria consolidado
de relatórios de referência e contra-referência, após realização de Mielograma para confirmação
agilizando a chegada da criança a nível de Aten- diagnóstica com definição da linhagem celular.
ção Terciária ou Centro de Referência. Sempre que houver dúvida na análise
diferencial do hemograma realizado a nível de
atenção primária ou secundária, o mesmo é re-
Caso Clínico 1 petido na atenção terciária.
No momento da primeira consulta, é de fun-
J.M.C., sexo masculino, 7 anos, natural e pro- damental importância que o médico atente para a
cedente de Quixadá, há três meses com uma palidez história pregressa da criança, para que os sinais e
progressiva, adinamia e há duas semanas a mãe ob- sintomas relatados sejam valorizados e que aquela
servou aparecimento de gânglios cervicais. Na uni- família seja alertada da real necessidade do acom-
dade de saúde foi prescrito sulfato ferroso. Quinze panhamento até que seja dado o diagnóstico.
dias depois a criança retorna com queixa de febre, No momento da segunda consulta, já exis-

416
Capítulo 42 • Sinais e sintomas precoces: câncer na infância e adolescência

tindo uma suspeição, deve-se facilitar o acesso nica. As Leucemias Linfocíticas Crônicas (LLC)
do paciente ao Centro Especializado, através do não se manifestam na infância. A diferenciação
sistema de referência/contra-referência, monito- entre linfóide e mielóide é feita pela análise da
rizando tais passos a fim de que o paciente não morfologia dos blastos da medula óssea, exames
tenha o seu diagnóstico retardado. de citoquímica com colorações específicas e imu-
Assim, o diagnóstico diferencial das Leu- nofenotipagem. Os exames de citogenética irão
cemias pode ser estabelecido a partir de critérios orientar quanto ao prognóstico desta doença.
clínicos e laboratoriais (morfologia das células). As manifestações clínicas das leucemias
Chamamos a atenção, neste caso para o pa- são bastante variáveis, sendo as mais freqüentes:
pel do médico da família em fazer o diagnóstico febre, adinamia, dores ósseas e anorexia. Depen-
diferencial entre as doenças, específicas ou não, dendo do grau de infiltração em cada órgão, ao
do sistema hematopoiético, que possam cursar exame físico os pacientes podem demonstrar pa-
com anemia, esplenomegalia, adenopatias e ou- lidez, petéquias, hematomas, hepatoesplenome-
tros dados que irão auxiliar o diagnóstico clíni- galia e adenopatias. Devemos considerar que o
co. Porém, será a avaliação laboratorial com o paciente pode ter vários desses sinais e sintomas
hemograma completo, que encaminhará como ou estar completamente assintomático. Como é
ponto de partida para o diagnóstico diferencial freqüente pacientes com neoplasias malignas,
das leucemias. incluindo as leucemias agudas, apresentarem
queixas reumáticas, recomenda-se que o pedia-
tra e/ou médico da família devem estar familia-
Desenvolvimento da Atenção rizados com o diagnóstico diferencial entre do-
enças reumáticas e neoplasias.
• Aspectos Conceituais das Leucemias: As Os achados laboratoriais também variam,
Leucemias na infância e adolescência repre- desde leucócitos em número normal, elevado
sentam, na maioria dos países, 25 a 30% das (mais comum) ou diminuído. A hemoglobina
neoplasias malignas que ocorrem neste grupo na maioria das vezes está diminuída, podendo
etário. A faixa etária de maior freqüência está também estar normal. E as plaquetas em geral
entre 2 e 5 anos, O risco de uma criança de- estão diminuídas. Dependendo do grau de infil-
senvolver leucemia nos primeiros 10 anos é tração por células leucêmicas em outros órgãos,
de 1/2880. poderemos encontrar alterações na bioquímica
como função renal e hepática alteradas.
A sua etiologia até hoje é discutida, po-
dendo ser consideradas como possíveis causas:
Palidez + Febre + Adenopatias + Plaquetopenia
fatores genéticos associados (anomalias cromos-
sômicas), antecedentes familiares (presença de Realização de Hemograma
irmão gêmeo com leucemia), fatores ambientais
(uso de maconha na gestação, exposição ao ben-
Presença de células Presença de outras
zeno e pesticidas) efeitos da irradiação, exposi- imaturas (blastos) alterações
ção a drogas antineoplásicas, fatores imunológi-
cos e exposição a alguns tipos de vírus. Mielograma Processo infeccioso
As leucemias mais comuns na infância Outros diagnósticos
são as Agudas, sendo 85% as Leucemias Linfói- LEUCEMIA
des Agudas (LLA), 10% as Leucemias Mielóides AGUDA

Agudas (LMA) e 5% a Leucemia Mielóide Crô-

417
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Caso Clínico 2 ção extremamente comum na infância e que qua-


se todas as moléstias somáticas e várias perturba-
M.F.A., 10 anos, natural e procedente de Pacoti,
ções psíquicas podem originá-la. Dessa forma, é
com história de dor abdominal tipo cólica, febre intermi-
de grande responsabilidade do pediatra e/ou do
tente, palidez, astenia e diarréia. Procurou assistência
médico da família o exame de uma criança com
médica em uma unidade de saúde, sendo prescrito sin-
tal sintoma. Devemos estar alerta, pois ao mes-
tomáticos e tratado para quadro de gastroenterite. Obteve
mo tempo em que pode não ser nada, por outro
relativa melhora, com desaparecimento da febre e da dor.
lado pode tratar-se de situação que exija decisão
Duas semanas depois a dor abdominal voltou a aparecer,
rápida, seja cirúrgica ou clínica. Por isso, além de
desta vez mais intensa e com aumento da anemia e queda
uma anamnese objetiva, porém detalhada, exame
do estado geral. Ao exame físico foi palpado uma massa
físico objetivo global e algumas provas laborato-
abdominal em mesogástrio. Desta vez foi solicitado um
riais, acima de tudo devemos ter muito senso clí-
hemograma com VHS e realizado uma ultrassonografia
nico para não incorrer no erro de supervalorizar
abdominal, sendo visualizado massa abdominal e gân-
sintomas, ou, ao contrário, minimizá-los.
glios mesentéricos. Solicitado então uma TC de abdome,
A maioria dos quadros de dor abdominal
sendo confirmado uma massa abdominal de característi-
em investigação na infância é de natureza fun-
cas neoplásicas.
cional, mesmo nos países desenvolvidos. Assim,
apesar da utilização de métodos diagnósticos
Comentários
cada vez mais avançados, só é possível encontrar
• Que atitude devemos ter diante da família e da uma causa orgânica em 5 a 20% dos casos.
criança em um caso de dor abdominal recorrente? Em casos como este, apenas após encami-
• Qual a conduta mais importante no momento nhamento do paciente ao Centro de Referência
da 1ª e 2ª consulta? e realização de todos os exames de investigação
• Qual a hipótese diagnóstica mais provável? é que se fará a suspeição de que tipo de tumor o
paciente apresenta. A confirmação diagnóstica é
Diante de uma criança com as queixas re- feita pela identificação de células neoplásicas na
latadas, além de uma boa anamnese deve-se dar medula, no líquido ascítico, nos gânglios perifé-
ênfase a um exame físico bem feito, já que se tra- ricos ou na biópsia/ressecção da massa abdomi-
ta de queixas de dor abdominal recorrente. Não nal. Após essa fase é que se iniciará o tratamen-
devemos esquecer de orientar a mãe do paciente to, como quimioterapia prévia à cirurgia para
para retornar em consulta ambulatorial a fim de redução do tumor naqueles casos de tumores
procedermos à avaliação da regressão ou não dos irressecáveis ao diagnóstico ou apenas cirurgia
sintomas. Muitas vezes estas crianças são trata- para aqueles tumores localizados.
das inicialmente com antiparasitários, fato que
não é de todo inválido devido à grande prevalên- Dor Abdominal + Diarréia + Anemia
cia de doenças parasitárias no nosso meio, porém
nunca esquecer de palpar o abdome a fim de dar Anamnese + Exame físico
oportunidade àquele paciente, na eventualidade
da presença de uma massa suspeita, de fazer o Presença de massa Ausência de massa
diagnóstico precocemente. Neste momento o abdominal abdominal
paciente deverá ser encaminhado a um Centro
de Referência a fim de prosseguir a investigação RX/Ultrassom suspeito Processo inespecífico
Tumores Benignos
e ver a necessidade ou não de cirurgia.
Sabemos que a dor abdominal é de observa- NEOPLASIA

418
Capítulo 42 • Sinais e sintomas precoces: câncer na infância e adolescência

Desenvolvimento da Atenção Bibliografia

• Aspectos Conceituais dos Tumores Abdo- Antoneli CBG. Sinais precoces do câncer na in-
minais Malignos na Infância: A palpação fância. Vacinação 2006 Junh 2:11-12.
de uma massa abdominal na infância tanto
Camargo B, Lopes LF. Pediatria oncológica: no-
pode representar uma manifestação benig-
ções fundamentais para o pediatra. São Paulo: Le-
na, no caso dos recém-nascidos, como pode
mar; 2000.
tratar-se de uma doença maligna grave. Por
esse motivo, toda massa abdominal deve ser D’Angio GJ, Sinniah D, Meadows AT, Evans AE,
cuidadosamente examinada e submetida a Pritchard J. Pediatria oncológica Prática. Rio de
Janeiro: Revinte; 1995.
exames de imagem para que se possa identi-
ficar sua origem. Figueira F, Alves JGB, Bacelar CH. Manual de
diagnóstico diferencial em pediatria. Rio de Ja-
O sinal mais freqüente dos tumores sóli- neiro: Medsi; 2002.
dos na infância é uma massa abdominal, a qual Lanzkowsky P. Manual of pediatric hematology
nem sempre é detectada por um familiar ou mes- and oncology. 4th ed. Amsterdam: Elsevier Aca-
mo pelo médico durante o exame físico de roti- demic Press; 2005.
na. Não é incomum que sejam assintomáticas, Lopez LM, Villa AM. Hematologia y oncologia
porém em nosso meio, infelizmente, este achado pediátricas. Madrid: Ediciones Ergon; 1997.
é menos freqüente já que a maioria das crianças
Pizzo PA, Poplack DG. Principles and practice of
chega aos centros de referência com massas ab-
pediatric oncology. 5th ed. Lippincott: Williams
dominais em avançado estágio.
& Wilkins; 2005.
Os tumores abdominais malignos mais
freqüentes na infância são os Linfomas não Rodrigues KE, Camargo B. Diagnóstico precoce
do câncer infantil: responsabilidade de todos. Rev
Hodgkin, os Neuroblastomas e o Tumor de
Assoc Med Bras 2002; 49 (1): 29-34.
Wilms, variando sua incidência dependendo
da faixa etária. Outros tumores como os hepa- Schwartz MW. Clinical handbook of pediatrics. 2ª
toblastomas, rabdomiossarcomas, tumores de ed. Lippincott: Williams & Wilkins; 1999.
células germinativas e carcinoma de adrenal Silva DB, Barreto JHS, Pianovski MAD. Epi-
são menos comuns. demiologia e diagnóstico precoce do câncer na
O Linfoma não Hodgkin compreende um criança. In: Lopez FA, Campos Júnior D. Tratado
grupo de neoplasias originárias do tecido lin- de pediatria. Brueri: Manole; 2007. p. 1634-67.
fóide. O local primário abdominal varia de 30 a
60% dos casos, porém em nosso meio é observa-
do em torno de 60% dos casos.

419
Capítulo 43
Infecção urinária na criança ca com quimioprofilaxia e/ou cirúrgica adequa-
e adolescente das, a fim de evitar recorrência de ITU e cicatriz
renal adicional.
álvaro JorGe Madeiro leite
Kathia liliane da cunha riBeiro zuntini A cicatriz renal tem natureza fibrótica
permanente, não funcional, sendo sequela da
organização do processo inflamatório agudo do
tecido renal que ocorre durante a pielonefrite
aguda. Os principais fatores de risco à pielone-
frite aguda e à formação de cicatriz renal são a
Introdução baixa faixa etária e o retardo na instituição do
tratamento da ITU. Outros fatores de risco são

A infecção do trato urinário (ITU) na crian-


ça é uma das infecções mais freqüentes em
pediatria, tendo nítida predominância no sexo
a virulência bacteriana, fatores de resistência do
hospedeiro, recorrência da ITU, lesão renal pré-
existente, além da associação com malformação
feminino na razão de 3 a 4 até 20:1 em relação congênita do trato urinário.
ao sexo masculino. Porém, em neonatos e lac- Em decorrência do exposto, a infecção do
tentes menores de 6 meses poderá incidir mais trato urinário na infância pode ser fator de risco
freqüentemente em meninos. para o desenvolvimento a médio ou longo prazo
O diagnóstico e tratamento dessa condição de insuficiência renal crônica e/ou hipertensão
tem grande importância devido a associação en- arterial. Esses agravos acometem cerca de 5 a
tre a ocorrência da infecção urinária, a existên- 10% do contingente desses pacientes de risco,
cia de malformações congênitas do trato uriná- geralmente portadores de malformações do tra-
rio e formação de cicatriz renal. Essa associação to urinário.
é tanto mais estreita quanto menor a idade da A criança com suspeita de infecção uriná-
criança por ocasião da primeira ITU, atingindo ria necessita de abordagem que inclua: diagnós-
particulamente o neonato e os lactentes jovens. tico confiável e rápido, tratamento precoce e efi-
A malformação do trato urinário mais fre- caz, avaliação da indicação de quimioprofilaxia
qüentemente associada à ITU é o refluxo vésico- e de investigação por imagem do trato urinário,
ureteral (RVU), diagnosticado em cerca de 30 a seguimento clínico e laboratorial e tratamento
50% das crianças com ITU confirmada. Na grande das recorrências.
maioria dos casos o RVU regride espontaneamen- Em atenção primária, é importante suspei-
te em 1 a 5 anos, sendo geralmente de tratamento tar e diagnosticar corretamente infecção do trato
clínico. Outras malformações incluem as uropa- urinário, iniciar tratamento adequado e precoce
tias obstrutivas, destacando-se a válvula de uretra e encaminhar estas crianças em tratamento ou já
posterior, no menino, e a ureterocele. A maioria em uso de profilaxia, a centro especializado, para
das crianças com uropatias obstrutivas tem diag- avaliação por imagem e se necessário seguimento
nóstico de hidronefrose em ultrassonografia pré- a longo prazo. A criança com ITU tratada com
natal e deve ser abordada, ainda no período neo- antibioticoterapia sem suspeita do diagnóstico,
natal, antes que apresentem ITU. ou sem diagnóstico confirmado, principalmen-
As malformações do trato urinário neces- te lactentes febris, não terão, ou terão apenas
sitam de diagnóstico precoce e abordagem clíni- tardiamente, a abordagem de iníciar profilaxia,

421
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

de encaminhar para investigação por imagem e primidos, pacientes que tenham sido submeti-
corrigir cirurgicamente as uropatias obstrutivas, dos a procedimentos cirúrgicos ou de cateteris-
quando necessário. Estas crianças, poderão evo- mo do trato urinário ou que sejam portadores
luir com ITU recorrente e lesão renal adicional. de malformações obstrutivas do trato urinário.
Por outro lado, o diagnóstico falso positivo, po- O Proteus mirabilis é a segunda bactéria mais
derá levar a criança à realização de investigação freqüente no menino. Isto ocorre devido o fato
por imagem do trato urinário não necessário. desta bactéria fisiologicamente colonizar a glan-
Como os centros de referência especializados de e meato uretral. O Proteus mirabilis também
recebem estas crianças por encaminhamento da está associado a infecções do trato urinário em
atenção primária, é de grande importância e res- crianças portadoras de cálculo urinário, por sua
ponsabilidade a abordagem inicial das crianças capacidade de metabolizar a uréia, produzindo
com ITU, pelos profissionais da atenção básica amônio, resultando na alcalinização da urina.
de saúde. A urina alcalinizada predispõe à formação de
cálculos. Nos adolescentes do sexo feminino
bactérias gram positivas podem ser freqüentes,
Discussão Etiológica como é o caso dos Staphylococcus saprophyticus
e epidermidis, no entanto, em geral, constituem
A infecção urinária é causada na sua gran- uma minoria dos agentes infecciosos de infecção
de maioria dos casos por contaminação por via urinária na faixa pediátrica.
uretral. A Escherichia coli é a bactéria causado-
ra, predominante em todas as idades e ambos os
sexos. Esta bactéria tem propriedades que a dife- Caso Clínico 1
renciam na capacidade de penetrar no trato uri-
nário, aderir e invadir o tecido uroepitelial. Os Criança de 4 anos, sexo feminino, procedente
antígenos “H” ou flagelares de natureza protéica de Chaval, Ceará.
proporcionam motilidade necessária para esta • HDA: A mãe refere que a criança vem apresen-
bactéria ascender pela uretra, ureteres e sistema tando disúria e polaciúria há 5 dias. Nega febre.
pielocalicial. Filamentos protéicos da superfície Refere dor no baixo ventre.
da E. coli denominadas adesinas ou “Pili”, por • IOA: Refere que a criança evacua de 2/2 dias
sua vez, se ligam a receptores de natureza gli- fezes endurecidas e volumosas. Nega leucorréia
coprotéica da superfície da célula uroepitelial, e ou hiperemia vulvo-vaginal. Refere micção de
conferindo a esta bactéria a capacidade de se freqüência normal, 5 vezes ao dia, sem perdas uri-
aderir às células uroepiteliais e causar infecção. nárias na roupa, antes desta doença.
Além disso, a E. coli produz várias toxinas en- • Antecedentes Fisiológicos: Parto normal a ter-
volvidas na invasão e lesão celular do tecido do mo; Peso: 3,200kg; Est: 50cm; chorou ao nascer;
trato urinário. alta sem intercorrências.
As outras bactérias gram negativas da fa- • Antecedentes Patológicos: Vulvo-vaginite há 1
mília das enterobactérias como Klebsiela, En- mês.
terobacter, Serratia, Acinetobacter, Pseudomo- • Antecedentes Familiares: Nega doenças renais
nas aeruginosa, também podem causar infecção na família.
urinária a depender de fatores do hospedeiro • Exame Físico: Peso: 24kg; Estatura: 110 cm;
associados. São mais freqüentes em pacientes Temp: 36,5ºC; PA: 90x60mmHg. Bom estado
hospitalizados, pacientes em uso recorrente ou geral, eupnéica, afebril, normocorada, hidratada.
prolongado de antibióticos, pacientes imunode- AP: MV presente e universal, sem ruídos adven-

422
Capítulo 43 • Infecção urinária na criança e adolescente

tícios. AC: RCR, 2T, BNF, FC: 90bpm, sem so- Considerações Clínicas e Diagnósticas
pros.
• Abdomen: flácido, indolor, sem megalias. EXT: O diagnóstico da infecção urinária envol-
Sem edema, cianose ou outras alterações. ve a clínica e exames laboratoriais (sumário de
• Laboratório: Sumário de Urina: Dens: 1030, urina e urinocultura). Mais recentemente a cin-
Hg: ++; Prot:-; Leucócitos: 48/campo; He- tilografia renal com DMSA, também tem papel
mácias 20/campo; Bactérias: numerosas, flora diagnóstico em casos especiais.
bacteriana homogênea composta de bacilos gram
negativos. Urinocultura: em andamento.
Clínica

Caso Clínico 2 A clínica de infecção urinária é muito va-


riável a depender principalmente da idade e de
Criança de 2 meses, sexo masculino, proce- se tratar de cistite (ITU baixa) ou pielonefrite
dente de Meruoca, Ceará. (ITU alta).
• HDA: A mãe refere que há três dias seu filho, A cistite é a ITU, na qual a invasão bacte-
vem apresentando febre, associada a anorexia, ir- riana e o processo inflamatório, se limitam à be-
ritabilidade e vômitos. xiga. Geralmente, se manifesta clinicamente, por
sintomas urinários de polaciúria, disúria, urgên-
• IOA: Nega tosse, coriza, dispnéia, diarréia ou
cia miccional, incontinência urinária (sintomas
outros sintomas. Refere que, às vezes, seu filho faz
urinários baixos), podendo ou não ser acompa-
força para urinar, sendo jato fraco.
nhada de febre, geralmente baixa (< 38ºC). A
• Antecedentes Fisiológicos: Parto normal, a ter-
pielonefrite é a ITU que atinge também os rins,
mo, chorou ao nascer. Peso: 3,100kg, Est: 51cm.
unilateralmente ou bilateralmente. Clinicamen-
• Antecedentes Patológicos: Nega doenças ante- te, o paciente apresenta febre alta, Giordano
riores. positivo, associados a sintomas urinários baixos
• Antecedentes Familiares: Nega doenças re- ou sintomas inespecíficos de infecção sistêmica.
nais. Apesar da clínica mais característica de ITU alta
• Vacinação: BCG, Hepatite B. ou baixa, esta não é suficiente para se afirmar ou
• Exame Físico: Peso: 3,900kg, Est: 56cm, Temp: excluir o comprometimento renal em uma ITU.
39ºC. Regular estado geral, eupnéico, febril, hi- Nos neonatos, a infecção urinária se apre-
pocorado, hidratado, irritado ao manuseio. AP: senta como infecção generalizada, com sintomas
MV presente,universal, sem ruídos adventícios. de hipotermia ou hipertermia, hipoatividade,
AC: RCR, 2T, BNF, sem RA, FC: 140 bpm, vômitos, icterícia, desidratação, alteração da per-
sem sopros. fusão periférica, com comprometimento impor-
tante do estado geral. Desta forma, a solicitação,
• Abdomen: flácido, indolor, sem megalias, bexiga
antes do início da antibioticoterapia, de sumá-
palpável. EXT: Sem edema ou cianose, pulsos
rio de urina e urinocultura devem ser incluídos
palpáveis.
na rotina de investigação da infecção neonatal.
• Laboratório: Sumário de Urina: Dens: 1030, A confirmação e conhecimento de ITU, como
Hg: ++; Prot:++: Leucócitos: 48/campo; He- foco primário, é importante, uma vez que, nestes
mácias 28/campo; Bactérias: numerosas, flora casos, o recém-nascido deverá ser submetido a
bacteriana homogênea de bacilos gram negativos. quimioprofilaxia pós tratamento da ITU e à in-
Urinocultura: em andamento. vestigação por imagem. Nos lactentes pequenos,

423
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

a sintomatologia é inespecífica, sendo a febre o da técnica de coleta, sendo imprescindível que


sintoma mais constante, podendo vir isolada ou se oriente o responsável sobre como fazê-la. A
associada a sintomas inespecíficos de anorexia, coleta de urina no jato médio requer a higiene
adinamia ou irritabilidade, vômitos, perda de prévia da região vulvo-vaginal na menina e da
peso. Todo lactente com clínica de febre por mais glande no menino, se orientando para que seja
de 48 horas não associada a sintomas ou acha- feita com o prepúcio retraído expondo a glande.
dos no exame físico que permitam diagnóstico Então se procede a coleta de urina do meio do
da localização da infecção, deverá ser investigada jato corrente, não coletando nem o início, nem
para ITU, com sumário de urina e urinocultura. o final da urina. O frasco deve ser estéril, forne-
Os pré-escolares e escolares já apresentam sin- cido pelo laboratório, e a coleta de preferência
tomas mais localizados do trato urinário, como feita no laboratório para que a entrega da urina
disúria, polaciúria, urgência miccional, poden- seja imediata. Quando não for possível deverá
do ser acompanhados ou não de febre baixa na ser entregue no prazo de 30 minutos. Esta téc-
cistite (ITU baixa), e de febre geralmente alta e nica é indicada em todas as crianças com con-
dor lombar unilateral na pielonefrite aguda (ITU trole de esfíncter, ou seja, geralmente acima de 2
alta). Podem ainda apresentar retorno da enurese anos de idade. Nas crianças menores, ou maiores
noturna e incontinência urinária. Os adolescen- que não tenham controle de esfíncter uretral, a
tes geralmente apresentam sintomas bem carac- técnica indicada é a punção supra-púbica , e em
terísticos de cistite ou pielonefrite. segundo lugar a coleta por cateterismo vesical.
Os casos clínicos acima ilustram bem os A técnica de saco coletor implica em alto índi-
diferentes quadros clínicos de infecção uriná- ce de resultados falsos positivos devido a con-
ria do lactente pequeno e da criança pré-esco- taminação da amostra de urina com conteúdo
lar. É importante interrogar na criança maior, ou flora bacteriana do prepúcio, vagina, ou pe-
a ocorrência de leucorréia, prurido vaginal ou rineal. Desta forma, apenas serve para excluir o
perianal, e principalmente de constipação e diagnóstico de infecção urinária, se sumário de
padrão de micção habitual, com o objetivo de urina for normal e urinocultura negativa, caso
detectar fatores predisponentes outros que não contrário, deve-se fazer o exame por punção
malformações congênitas, como é o caso de supra-púbica, ou cateterismo vesical. Na impos-
vulvo-vaginites, disfunção miccional, e prin- sibilidade de realização destas duas técnicas de
cipalmente constipação, associados ou não. No coleta de urina, deve-se encaminhar a criança
caso 2, chama atenção no exame físico, a bexiga para fazê-la em um centro maior. Caso este enca-
palpável, que em um lactente do sexo mascu- minhamento não seja possível ou vá retardar o
lino, levanta a suspeita diagnóstica de válvula início de tratamento da ITU, principalmente se
de uretra posterior. Geralmente trata-se de um esta criança tiver características para ITU com-
globo endurecido, tenso, às vezes protuberante, plicada (ver em tratamento), deve-se avaliar a
na região supra-púbica, facilmente palpável à clínica da criança, descartando outros focos de
palpação superficial. infecção (faringoamigdalites, otites, sinusites,
pneumonias), e então considerar o diagnóstico
de ITU e iniciar o tratamento e abordagem ade-
Laboratório quada (ver em considerações terapêuticas e de
seguimento).
Para confirmação diagnóstica são neces- Os achados de sumário de urina mais con-
sários o sumário de urina e a urinocultura. O sistentes com infecção urinária são: leucocitúria
resultado destes exames são muito dependentes (leucócitos > 20/campo) associada à bacteriúria

424
Capítulo 43 • Infecção urinária na criança e adolescente

homogênea. Hematúria microscópica pode es- seado na clínica e exames já obtidos, em detri-
tar associada, assim como proteinúria leve, não mento de retardar o tratamento da pielonefrite,
sendo imprescindíveis ao diagnóstico e nem o que traria risco de cicatriz renal e até de vida
sugestivo de infecção urinária quando ocorrem para o lactente. Devido a baixa idade, a qual está
isoladamente, sem leucocitúria e bacteriúria. O mais associada a malformações congênitas, além
sumário de urina é exame rápido, que reforça da clínica de infecção sistêmica, é indicado nes-
a suspeita diagnóstica, tendo papel importante ta criança, o hemograma completo, PCR, uréia,
em selecionar os casos sugestivos de infecção creatinina e ultrassonografia de urgência.
urinária e auxiliar na decisão de iniciar trata-
mento precoce, antes mesmo do resultado da
urinocultura que confirmará ou não o diagnós- Considerações terapéuticas e de
tico. É importante que se enfatize que, o resul- seguimento
tado de sumário de urina solicitado para fins de
diagnóstico de infecção urinária deve ser libe-
rado dentro de no máximo 12 horas, uma vez Tratamento
que, o tratamento da ITU febril constitui uma
urgência. Quanto mais retardado for o início O tratamento da ITU deve ser precoce, a
do tratamento da ITU, maior a chance de lesão fim de evitar lesão renal, e deve ser eficaz, sendo
permanente de tecido renal, principalmente nas a antibioticoterapia dirigida para gram negati-
crianças abaixo de 2 anos. vos da família das enterobactérias.
Nos caso clinico 1, o sumário de urina foi O tratamento da infecção urinária (ITU)
coletado por jato médio, técnica correta, sendo é didaticamente dirigida para dois grupos de
portanto, de resultado confiável, e compatível pacientes: os com características de ITU com-
com infecção urinária. Apesar da urinocultura plicada, e os com características de ITU não
estar em andamento a indicação é iniciar trata- complicada.
mento. Se não houvesse sido colhido urinocul-
tura, seria orientado fazê-la imediatamente e en-
tão iniciar tratamento. Pacientes com ITU não complicada
No caso clínico 2, o sumário de urina tam-
bém mostra leucocitúria e bacteriúria impor- Maiores de 2 anos de idade, sem ante-
tantes, compatíveis com o diagnóstico de infec- cedentes de ITU recorrentes, sem provável ou
ção urinária, entretanto a amostra de urina foi confirmada malformação do trato urinário, ITU
obtida por saco coletor, que está susceptível de afebris ou com febre baixa, sintomas exclusivos
contaminação. Neste caso, é necessário coletar de cistites, ausência de sintomas de infecção sis-
urina por punção supra-púbica para realização têmica e de Giordano positivo.
de novo sumário de urina e urinocultura e logo • Tratamento ambulatorial: Duração de 7 a
após iniciar tratamento antibiótico parenteral. 10 dias; opções de antibioticoterapia via oral:
Esta criança deverá ser encaminhada para in- Nitrofurantoína 5 mg/Kg/dia de 6 em 6 ho-
ternação em hospital secundário ou terciário. Se ras; Ácido nalidíxico: 50 mg/Kg/dia de 6 em
não for possível a coleta por punção supra-pú- 6 horas; Cefalosporina de 1a geração: cefale-
bica, pode-se proceder a coleta por cateterismo xina 50 a 80 mg/Kg/dia de 6 em 6 horas ou
vesical e após iniciar tratamento. Caso também cefadroxil 30 a 50 mg/Kg/dia de 12 em 12 ho-
não seja possível a coleta por cateterismo vesical, ras. Amoxacilina: 50 a 80 mg/Kg/dia de 8 em
deve-se optar por iniciar a antibioticoterapia ba- 8 horas.

425
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Pacientes com ITU compliacada EV ou IM, de preferência, cefalosporinas de 3ª


ou 4ª geração, conforme doses descritas acima.
Menores de 1 ano de idade; com antece- A amicacina deverá ser evitada até que se des-
dentes de ITU recorrentes; com diagnóstico carte malformações obstrutivas, ou lesão renal
prévio de malformação do trato urinário; casos bilateral e ou uréia e creatinina elevados. Ao ser
de ITU com febre muito elevada; com sinais prescrita é necessário a monitorização dos níveis
de infecção sistêmica ou Giordano positivo em de uréia e creatinina.
qualquer idade.
• Tratamento ambulatorial ou internado
Antibioticoterapia EV, IM ou VO Seguimento
Internado e com antibioticoterapia paren-
teral: quando menor de 3 meses de idade;
estado geral comprometido; sinais de sepse; Reavaliação do tratamento da ITU
existência de lesão renal. Nos outros casos,
estas indicações devem ser individualizadas. Com 48 a 72 horas de tratamento a criança
• Duração: 10 a 21 dias. deve ser avaliada clinicamente e se necessário la-
• Antibiótico: boratorialmente. Nesta avaliação checa-se se os
Cefalosporina de 3ª ou 4ª geração: sintomas urinários e a febre já regrediram e ava-
- Ceftriaxona: 50 a 100 mg/Kg/ dia, EV ou lia-se o resultado da urinocultura colhida antes
IM, 24/24 horas. do tratamento. Se não há mais sintomas e a uri-
- Ceftazidima: 100 mg/Kg/dia, EV ou IM, 8 nocultura mostra bactéria sensível ao antibiótico
em 8 ou 12 em 12 horas. em uso, mantém-se o tratamento ou substitui-se
- Cefipime: 100 mg/Kg/dia, EV, 8 em 8 horas o antibiótico EV ou IM por VO. Se criança ain-
- Amicacina: 15 mg/Kg/dia de 8 em 8 ou 12 da tem febre e sintomas outros e a urinocultu-
em 12 horas, IM ou EV. ra mostra bactéria resistente ao antibiótico em
- Cefalosporina de 1a geração: Cefalexina: 50 uso, deve-se proceder troca de antibiótico e co-
a 80 mg/Kg/dia,VO, de 6 em 6 horas, ou Ce- lher novo sumário de urina e urinocultura. Se a
fadroxil: 30 a 50 mg/Kg/dia, VO, de 12 em criança está assintomática e urinocultura mostra
12 horas. bactéria resistente ao antibiótico em uso, deve-
se colher novo sumário de urina e urinocultura
No caso 1, a criança tem infecção não com- e manter antibioticoterapia até avaliação dos no-
plicada, pois sua idade é de 4 anos, não apresen- vos resultados com 72 horas.
ta febre ou qualquer sinal de infecção sistêmica,
apenas sintomas urinários baixos, compatível
com cistite, não tem antecedentes de infecções Indicação de investigação por imagem
urinárias recorrentes, não é portadora de mal-
formação do trato urinário diagnosticada. Esta Todas as crianças do sexo feminino que
criança deverá ser tratada ambulatorialmente, apresentem primeira ITU com idade inferior a
com antibiótico via oral, nitrofurantoína ou áci- 4 anos; as crianças e adolescentes do sexo mas-
do nalidíxico, por 7 a 10 dias. culino que apresentem primeira ITU em qual-
No caso 2, a criança tem infecção compli- quer faixa etária; crianças e adolescentes que
cada pois sua idade é inferior a 1 ano, apresenta apresentem clínica de pielonefrite aguda (febre
febre alta e sinais de infecção sistêmica. Deverá alta, dor lombar, Giordano positivo) ou crianças
ser internada e tratada com antibioticoterapia e adolescentes com ITU recorrentes, devem ser

426
Capítulo 43 • Infecção urinária na criança e adolescente

encaminhadas a centro especializado, já em uso Quimioprofilaxia


de quimioprofilaxia para ITU, para investigação
por imagem do trato urinário. Esta investigação Após o tratamento da primeira ITU, deve-
tem por objetivo descartar malformações do tra- se fazer antibioticoterapia profilática em todas
to urinário, assim como, cicatriz, hipotrofia ou as crianças abaixo de 4 anos, isto é, naquelas
atrofia renal. Os exames de investigação neces- com maior probabilidade de serem portadoras
sários variam com a idade da criança e clínica, de malformações congênitas e de lesão renal; ou
podendo incluir: ultrassonografia do trato uri- naquelas já com refluxo vesico-ureteral ou litía-
nário, uretrocistografia miccional, cintilografia se diagnosticados, ou no período pré-operatório
renal com DMSA e renograma com DTPA com das uropatias obstrutivas ou nas crianças com
furosemide, além de outros. ITU recorrentes ou após pielonefrite em qual-
No caso clínico 1, a criança tem 4 anos, quer faixa etária. Uma outra indicação de qui-
é a primeira ITU, e apresenta constipação im- mioprofilaxia é o recém nascido com diagnóstico
portante. Tem ainda relato de vulvo-vaginite an- de hidronefrose pela ultrassonografia pré-natal,
terior, que assim como a ITU, poderia ter sido até que seja realizada a investigação por imagem
predisposta pela constipação. Desta forma nesta necessária para a confirmação ou esclarecimento
criança é imperioso o tratamento da constipa- da malformação associada.
ção como forma de evitar ITU e vulvo-vaginites A quimioprofilaxia pode ser feita com os
recorrentes. Não tem indicação de investigação seguintes antibióticos em ordem de preferência:
por imagem, nem de quimioprofilaxia. • Nitrofurantoína; (Hantina®: 5ml/25mg ) – 1
No caso 2 o lactente tem a primeira ITU a 2mg/Kg/dia, 1 vez à noite.
com 2 meses, o que já indicaria início de profila- • Ácido nalidí�ico (Wintomylon®:5 ml/250mg)
xia em seguida ao tratamento da ITU e encami- – 10 a 20mg/Kg/dia, 1 vez à noite
nhamento sem demora a um centro especializa- • Cefale�ina susp (5ml/250mg) - 20 a 25mg/Kg/
do para investigação por imagem. dia, 1 vez à noite.
• Cefale�ina gotas (1 gota/5mg) - 20 a 25mg/
Kg/dia, 1 vez à noite.
Controle dos fatores externos
predisponentes de ITU A nitrofurantoína e ácido nalidíxico estão
contra-indicados em recém-nascidos, sendo a
Principalmente na criança maior de 4 cefalexina o indicado nesta faixa etária. O ácido
anos é necessário que seja investigada a presen- nalidíxico está contra indicado até os 6 meses de
ça de fatores externos, tais como: constipação, idade. A nitrofurantoína é o quimioprofilático
vulvo-vaginites, balanopostites, relação sexual de eleição, exceto em recém-nascidos.
nas adolescentes. Quando estas condições são De uma forma geral, a quimioprofila-
persistentes, podem ser responsáveis por ITU xia deve ser mantida nas crianças com refluxo
recorrentes, sendo a principal delas a constipa- vesico-ureteral até cerca de 5 anos de idade ou
ção. Na criança com constipação, o tratamento até a regressão deste confirmada por uretrocisto-
rigoroso desta deve ser prioridade na abordagem grafia miccional. Nas uropatias obstrutivas deve
da ITU recorrente, de tal modo que investigação ser mantida até que haja a correção cirúrgica da
de outra causa só se justifica se ITU recorrente malformação obstrutiva e a avaliação por ima-
vier a ocorrer com o hábito intestinal já norma- gem após cirurgia, 1 a 3 meses após.
lizado. Todas as outras causas devem ser igual-
mente abordadas e tratadas adequadamente.

427
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Monitorização e tratamento das ITU recorrentes Bibliografia

O responsável pela criança com antece- American Academy of Pediatrics. Practice para-
dente de ITU, portadora ou não de malformação meter: the diagnosis, treatement and evaluation of
do trato urinário, deve ser alertado da possibi- the inicial urinary tract infection in febrile infants
lidade de recorrência da ITU. Deve-se orientar and young children. Pediatrics 1999:13:843-50.
que em vigência de febre isolada ou associada a
Baraff LJ, Bass JW, Fleisher GR, Klein JO, Mc-
sintomas inespecíficos, assim como de sintomas Cracken Jr GH, Powell KR. Practice guideline
urinários baixos ou disfunção miccional, é ne- for the management of infants and children 0 to
cessário procurar assistência médica a fim de re- 36 months of age with fever without source. Ann
alizar sumário de urina e urinocultura, para des- Emerg Med 1993:92:1198-210.
cartar ITU ou confirmá-la, e neste caso iniciar
Cooper CS, Chung BI, Kirsch AJ, Canning DA,
antibioticoterapia precocemente. Não é indica-
Snyder BI. The outcome of stopping prophylatic
da a repetição sistemática de exames de sumário antibiotics in older children with vesicoureteral
de urina e urinocultura na criança assintomática reflux. J Urol 2000:163:269-273.
com antecedente de ITU, entretanto é obrigató-
Farhat W, Mclorie G, Geary D, Capolicchio G, Ba-
ria sua realização imediata ao aparecimento de
gli D, Merquerian P, et al. The natural history of
sintomas sugestivos de ITU.
neonatal vesicoureteral reflux associated with an-
tenatal hydronephrosis. J Urol 2006:164:1057-60.
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Schwab Jr. CW, Wu Hy, Selman H, Smith GH,
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Shaw KN, Gorelick MH. Urinary tract infection
in pediatric patient: review. Pediatr Clin North
Am 1999:46:1111-24.

428
Capítulo 44
Glomérulo Nefrite Difusa Aguda lidade genética e da nefritogenicidade da cepa
pós-estreptocócica do estreptococo. Fatores genéticos determinam
uma resposta imunológica mediada por imu-
Kathia liliane da cunha riBeiro zuntini
nocomplexos quando o componente antigêni-
co do estreptococo é reconhecido imunologi-
camente. Esta resposta culmina com a fixação
destes imunocomplexos nos glomérulos e assim
é desencadeada a inflamação renal difusa. Esta
inflamação glomerular súbita causa redução
Introdução da taxa de filtração glomerular e lesão do glo-
mérulo, levando a graus variáveis de hematúria,

A GNDA ou glomerulonefrite difusa aguda é


definida como uma entidade clínico-pato-
lógica. Caracteriza-se clinicamente por síndro-
proteinúria, diminuição da excreção de sódio e
retenção hídrica, e conseqüente hipervolemia
aguda. Estas alterações fisiopatológicas são res-
me nefrítica, ou seja, quadro de início agudo e ponsáveis pela clínica de edema, hipertensão
intensidade variável de edema, hematúria micro arterial, congestão cardio-pulmonar, oligúria e
ou macroscópica, proteinúria leve a moderada, insuficiência renal.
hipertensão e insuficiência renal. Histopatologi- É doença predominantemente pediátrica,
camente se caracteriza por proliferação endoca- apresentando-se com mais freqüência na idade
pilar difusa e generalizada,sem alterações signi- escolar e pré-escolar. Tem incidência mais ele-
ficativas das paredes dos capilares glomerulares vada nos países em desenvolvimento, onde defi-
e presença de depósitos cônicos esparsados que cientes condições sócio-econômicas predispõem
fixam C3, no lado epitelial da membrana basal a disseminação das infecções estreptocócicas.
glomerular (HUMPS). Observa-se também nestas comunidades a ocor-
É uma complicação renal tardia, inflama- rência de GNDA em crianças menores, a partir
tória não supurativa, decorrente de infecção em de 1 a 2 anos de idade.
foco extra renal. Na grande maioria dos casos o É a doença glomerular mais comum em
agente etiológico é o estreptococo b-hemolítico crianças, sendo geralmente de evolução au-
do grupo A presente nas faringoamigdalites ou to-limitada, regressão espontânea, e de bom
em infecções de pele (impetigo). Entretanto, me- prognóstico renal a longo prazo. Necessita de
nos comumente, pode ser conseqüência de mui- diagnóstico precoce e tratamento de suporte
tas outras infecções causadas pelos mais diversos adequado para se evitar as complicações, às ve-
agentes, tais como outras bactérias: Pneumococo, zes graves, da fase aguda, tais como: encefalopa-
Estafilococo, Gram negativos (sepse), Meningo- tia hipertensiva, insuficiência cardíaca conges-
coco, Leptospirose, Micoplasma, e Lues secundá- tiva, edema agudo de pulmão e mais raramente
ria; Vírus: Varicela, Sarampo, Rubéola, Mononu- complicações da insuficiência renal aguda gra-
cleose infecciosa, Hepatite B, e Citomegalovirose; ve, principalmente hiperpotassemia. A maioria
e mais raramente, Parasitas: Toxoplasmose, Ma- dos casos têm manifestação clínica leve ou sub-
lária, Histoplasmose, Triquinose e Fungo. clínica, podendo ser, geralmente, conduzidos
O desenvolvimento ou não de GNDA no ambulatório.
numa certa criança depende de sua suscetibi-

429
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Caso Clínico Ht = 30%; Hb = 9,7mg/dl. Leucócitos: 9.000/


mm3. C3 = 10; ASO = 430.
• HDA: Mãe refere que há cerca de quatro a cinso • Diagnóstico Fisiopatológico: Hipertensão:
dias tem notado seu filho de seis anos com o rosto Sim, grau leve. Congestão cardio-pulmonar:
inchado, sem outras queixas. Sim, grau moderado. Insuficiência renal: Sim,
• Antecedentes Fisiológicos: Nasceu de parto grau leve.
normal, chorou ao nascer, alta hospitalar com 24
horas. Peso ao nascer: 3.200Kg
• Antecedentes Patológicos: Nega doença seme- Considerações Clínicas e Fisiopatológicas
lhante anteriormente. Refere “crises de garganta”
frequentes, febris, tratadas com antibiótico, sendo A GNDA mais comumente se apresenta
a última há três semanas, quando usou sete dias com história de alguns poucos dias de duração (2
de amoxacilina. Nega ferimentos ou lesões infla- a 7 dias), de edema de face, mais acentuado pela
matórias de pele no último mês. Nega asma. Re- manhã, e/ou hematúria macroscópica, podendo
fere uma internação por pneumonia há dois anos. ser acompanhada de relato de oligúria, ou, menos
• Antecedentes Familiares: Nega doenças renais freqüentemente, de sintomas outros já relaciona-
na família dos a complicações da hipertensão, como cefaléia,
• IOA: Refere diminuição do volume urinário há vômitos, alteração de sensório, amaurose; assim
cerca de quatro dias; “urina escura”, “cor de fanta como, de sintomas relacionados a complicações
laranja”; dispnéia leve há um dia, mais impor- de congestão cardiovascular, como dispnéia de
tante à noite; tosse seca que se acentua á noite. grau variável, tosse seca, “fígado doloroso”. Mais
Nega cefaléia, sonolência, agitação ou irritabili- raramente, o quadro clínico de GNDA pode ini-
dade. Nega anorexia, vômito, febre, adinamia, ciar com complicações graves como convulsão ou
diarréia, lesões de pele, artralgia. edema agudo de pulmão ou ICC.
• Exame Físico: Peso: 29Kg, Estatura: 119cm. Geralmente o informante não se atenta a
Bom estado geral, leve taquipnéia, hidratado, afe- relatar todos os sintomas que podem estar pre-
bril, edema de face, anictérico, acianótico, ativo, sentes, como ilustrado no caso clínico acima.
orientado. FC: 110bpm, FR: 28rpm, PA: 130 Apenas no IOA foram relatados sintomas impor-
x 80mmHg, AP: MV bem audível bilateral sem tantes como dispnéia e tosse seca mais acentua-
ruídos adventícios. AC: RCR, 2T, BNF sem so- das à noite e oligúria, revelando grau moderado
pros. de congestão cardio-pulmonar. Por ocasião tam-
• Abdomen: edema de parede, flácido, indolor, fí- bém do IOA foram negadas queixas de cefaléia
gado palpavel há cinco cm do RCD, não doloro- ou alterações de sensório, atividade, ou vômitos,
so, baço não palpável, RHA presentes. importantes na investigação de encefalopatia hi-
• GU: sem edema ou outras alterações pertensiva e uremia.
• Extremidades: edema (+) É importante que se pergunte diretamen-
• HD: GNDA te sobre a presença destes sintomas, sugestivos
• Exames Laboratoriais: Sumário de urina: Hb de congestão cardio-pulmonar (dispnéia, tosse
+++; Prot +; Hemácias: 60/campo; Leucó- seca, dor em hipocôndrio direito) ou de ence-
citos: 48/campo; Cilindros hialinos, ausência de falopatia hipertensiva ou uremia (cefaléia, so-
bactérias. Creatinina = 1,0 mg/dl, Clearence de nolência, agitação, amaurose, vômitos), assim
creatinina estimado = 0,55x119/1,0 = 65,45ml/ como, sobre diminuição ou ausência de diurese.
min/1,73m2. Uréia = 66 mg/dl; K = 4,0mEq/l; Além do volume, deve-se questionar sobre a cor
Na = 135 mEq/l; Ca = 9,0mg/dl. Hemograma: da urina, na investigação de hematúria macros-

430
Capítulo 44 • Glomérulo Nefrite Difusa Aguda pós-estreptocócica

cópica comparando-se a descrição com cores dos quadros de GNDA são de intensidade leve.
estabelecidas como: “cor de coca-cola”, “cor de Desta forma podem ser abordados no ambulató-
fanta laranja”, “cor de lavado de carne”, sugesti- rio em atenção básica de saúde
vas respectivamente de: hematúria macroscópi- A GNDA não tem tratamento específico.
ca glomerular; urina muito concentrada; hema- O tratamento do estreptococo deve ser feito se
túria macroscópica, tanto de origem glomerular houver indícios de infecção atual ou com o ob-
como do trato urinário excretor. O uso do termo jetivo de erradicar a cepa nefritogênica,quando
“ urina escura” sem definir cor, assim como, se usa a penicilina benzatina, a fim de evitar sua
simplesmente traduzir como hematúria macros- transmissão. Este tratamento, entretanto não
cópica a queixa de urina escura, pode resultar modifica a evolução ou prognóstico da GNDA.
numa informação falso positiva. Sintomas que Assim sendo, o tratamento da GNDA é sintomá-
possam sugerir glomerulopatia auto-imune tam- tico, individualizado, a depender do diagnóstico
bém devem ser perguntados como por exemplo, fisiopatológico.
febre prolongada, artralgia, exantemas. É importante que ao se verificar a pres-
Nos antecedentes é importante questionar são arterial da criança se esteja atento a algu-
se a criança já apresentou quadro semelhante, o mas exigências da faixa etária pediátrica. A
que pode sugerir outra glomerulopatia que não primeira é o tamanho adequado do manguito
GNDA. Não é comum que uma mesma crian- para o tamanho do braço da criança. A largu-
ça desenvolva GNDA mais de uma vez , já que ra deste deve corresponder a 2/3 do braço da
apenas determinadas cepas ditas nefritogênicas criança medido do olécrano ao acrômio; quanto
desencadeam esta doença. ao comprimento, este deve abraçar ¾ ou 80%
O antecedente de uma infecção faringoa- do diâmetro do braço. Deve-se alertar para o
migdaliana, como no caso acima, ou de lesões de fato que um manguito menor que o adequado
pele como impetigo, ferimento ou varicela infec- erra superestimando a pressão arterial de for-
tados, ou celulite, ocorridos entre 1 a 3 semanas ma muito significativa. O manguito maior erra
do início dos sintomas, pode estar presente, cor- subestimando a pressão arterial, mas em bem
roborando com o diagnóstico. A ausência deste menor intensidade que na situação anterior.
relato entretanto não descarta o diagnóstico. Desta forma quando não se tem manguito ade-
Antecedente de doença renal na família quado é preferível verificar com o maior tama-
deve ser explorado, perguntando-se sobre ocor- nho, que tem a margem de erro menor, com a
rência de casos semelhantes, ou de insuficiência condição de que, o manguito não cubra a fossa
renal crônica ou ainda de tratamento dialítico cubital, onde se apóia o estetoscópio. A segunda
ou transplante que possam sugerir doença glo- observação é que a pressão arterial seja aferida
merular outra que não GNDA, e sim, glomeru- quando a criança está em repouso e tranqüila,
lopatia heredo-familiar. não devendo ser considerados, por exemplo,
O exame físico é de extrema importância, os valores de pressão arterial verificados com a
uma vez que muito contribui para o diagnós- criança chorando, os quais podem estar extre-
tico fisiopatológico, o qual vai guiar a conduta mamente superestimados.
terapêutica. No diagnóstico fisiopatológico se
avalia a presença e a intensidade de congestão
cardio-pulmonar, de hipertensão e de insufici-
ência renal aguda, os quais definem a gravidade
do quadro agudo e a conduta terapêutica a ser
tomada (Tabela 1). Como já relatado a maioria

431
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Intensidade Hipertensão Congestão Cardio-pulmonar Insuficiência Renal Aguda


Dispnéia, Turgência jugular e hepatomegalia =
Pressão Diastólica Clearence de Creatinina
Leve ausentes.
≤ 80 mmHg > 50,l/min/1,73m2
Freqüência cardíaca normal ou baixa.
Dispnéia leve/moderada; AP: estertores bases
Pressão Diastólica Turgência jugular + a ++/4, Hepatomegalia Clearence de Creatinina
Moderada
> 80 ≤ 100 mmHg mod. não dolorosa. 20 - 50 ml/min/1,73m2
Freqüência cardíaca alta, sem B3, ou galope.
Dispnéia moderada ou grave ou edema agudo
Pressão Diastólica pulmão. Clearence de Creatinina
Grave
≥ 110 mmHg Hepatomegalia dolorosa. < 20 ml/min/1,73m2
Freqüência cardíaca ≥ 140bpm, B3, Galope, ICC.
Tabela 1. Diagnóstico fisiopatológico na GND.

Para confirmação do diagnóstico e avalia- pode estar presente anemia importante, devi-
ção clínica são necessários os seguintes exames do anemia ferropriva pré-existente.
laboratoriais: • C3: esta fração do complemento encontra-se
• Sumário de Urina: hematúria desde leve a diminuída na quase totalidade dos casos, sen-
maciça, é o achado mais característico; do assim exame importante na confirmação
• Proteinúria pode não estar presente, ou ser do diagnóstico, assim como, no seguimento e
leve a moderada, raramente maciça. no prognóstico. Costuma-se normalizar entre
• Cilindros hialinos não são infrequentes. quatro a oito semanas de doença.
• Cilindros hemáticos quando presentes são • ASO: anticorpo marcador das infecções es-
patognomônicos. Leucocitúria importante e treptocócicas. Pode ou não estar elevado, não
cilindros leucocitários podem aparecer devi- descartando o diagnóstico de GNDA. Ele-
do processo inflamatório, sem bacteriúria. va-se nas infecções estreptocócicas faringo-
• Uréia e Creatinina: geralmente levemente amigdalianas, mas não nas de pele.
elevados.Usa-se a creatinina sérica para cál-
culo de clearence de creatinina estimado atra- Outros exames só serão necessários na
vés da fórmula de Schwartz: GNDA de evolução complicada.
Na impossibilidade de realizar todos os
Clearence de Creatinina = k x Estatura (cm) exames acima, são suficientes o sumário de uri-
Creatina sérica na, uréia, creatinina, potássio, para seguimento
onde k = constante = 0,55 > 1 ano de idade e conduta em atenção básica de saúde dos casos
= 0,75 meninos > 12 anos considerados leves ou moderados, com boa res-
posta ao tratamento, e regressão das manifesta-
O resultado é taxa de filtração glomerular ções clínicas dentro de cinco a dez dias.
estimada (TFG) em ml/min/1,73m2. Classifica- No caso clínico ilustrado, a criança tem
se em normal, se > 90ml/min/1,73m2; Insufici- pressão arterial de 130 x 80mmHg, sendo assim
ência renal leve, se > 50 e < 90ml/min/1,73m2, hipertensão leve, insuficiência renal também
Insuficiência renal moderada se maior ou igual leve, com clearence de creatinina estimado de
a 20 e < 50ml/min/1,73m2; Insuficiência renal 65,45ml/min/1,73m2, entretanto tem congestão
grave, se < 20ml/min/1,73m2. cardio-pulmonar moderada, porque refere disp-
• Hemograma completo: geralmente mos- néia leve e tem freqüência cardíaca elevada.
tra anemia leve de natureza dilucional. Em
meios de baixa condição sócio-econômica

432
Capítulo 44 • Glomérulo Nefrite Difusa Aguda pós-estreptocócica

Considerações Terapéuticas e Preventivas pulmonar, deve-se iniciar diurético (furo-


semide). O volume da diurese de 24 horas
Numa grande maioria dos casos a GNDA isoladamente, geralmente, não acrescenta
tem quadro clínico leve devendo ser tratada e em termos de conduta.
acompanhada no ambulatorio, ficando a hos- - Furosemide, não é usado de rotina. Nestes
pitalização reservada para aqueles casos com casos leves apenas quando aumento pro-
hipertensão e/ou congestão cardio-pulmonar gressivo e rápido do peso. Usa-se na dose
e/ou insuficiência renal de intensidade grave. de 1 a 2mg/kg/dia, para estabilizar ganho
Também aqueles casos com estas manifestações de peso, ou seja, retenção hídrica, e deve ser
de intensidade moderada que não respondam ao suspenso logo que se verifique tendência a
diurético num determinado período de observa- poliúria e perda de peso.
ção, podem precisar de internação. • Nos casos com hipertensão e/ou congestão
A abordagem terapêutica da GNDA se ba- cardio-pulmonar e/ou insuficiência renal
seia na prevenção e tratamento da hipertensão, moderadas:
congestão cardio-pulmonar e insuficiência renal Pode-se optar em, se possível, fazer uma
aguda Desta maneira são utilizados: dieta com dose baixa de furosemide EV de 1mg/Kg/dose
restrição de sódio, diurético de alça (furosemi- e observar por um período de até 2 horas a res-
de), anti-hipertensivos, diálise. posta diurética e clínica. Se houver boa diurese
e correspondente melhora dos níveis de pressão
• Nos casos com hipertensão, congestão car- arterial com diastólica < a 80mmHg e/ou melho-
dio-pulmonar e insuficiência renal leves ou ra dos sinais de congestão cardio-pulmonar, com
ausentes, o tratamento é ambulatorial: desaparecimento da dispnéia, esta criança pode
- Restrição de sódio: dieta sem sal = 0,5 a manter furosemide VO, na dose de 1 a 3mg/kg/
1 mEq/Kg/dia; máximo de 35 mEq/dia. Na dia e ser acompanhada ambulatorialmente com
prática: suspender o sal de cozinha e ain- restrição de sódio rigorosa e controle clínico diá-
da: produtos industrializados, crustáceos, rio. Logo que se identifique tendência a poliúria
pão, biscoitos, queijo e manteiga salgadas. e perda de peso progressiva deve-se suspender o
São permitidos sem restrição, as frutas, le- furosemide. O furosemide prolongado sem cri-
gumes, arroz, cereais, carnes, peixes e leite. tério de observação pode levar, no período poliú-
Esta dieta deve ser mantida até início da rico da GNDA, à hipovolemia e conseqüente in-
poliúria e perda de peso progressiva. suficiência renal pré-renal, agudizando o estado
- Controle clínico diário: verifica-se peso, de insuficiência renal aguda da GNDA que ini-
para estimar progressão do edema, pressão ciava a sua recuperação. Nos casos de acompa-
arterial, e diurese, para vigiar oligúria pro- nhamento ambulatorial deve-se sempre orientar
gressiva. O volume urinário deve ser me- a mãe que se retornarem ou aparecerem sinais
dido em frascos com volume conhecido ou de dispnéia, cefaléia, vômitos ou alteração do es-
preferencialmente disponibilizar um rece- tado de vigília, procurar imediatamente serviço
piente (jarra plástica ou de vidro) marcado de emergência. Se não houver boa resposta diu-
com unidades de volume para este objeti- rética ou clínica, após furosemide EV, a criança
vo. Deve-se fazer uma comparação entre a deve ser ncaminhada para hospitalização.
diurese de 24 horas dos dias em observação • Nos casos com hipertensão e/ou congestão car-
e relação desta com o peso. Caso a diurese dio-pulmonar e/ou insuficiência renal grave:
diminua progressivamente e o peso aumen- Fazer dose alta de furosemide 3 a 4 mg/kg/
te ou apareçam sinais de congestão cardio- dose, EV, e se sinais de encefalopatia hipertensi-

433
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

va (hipertensão grave, diastólica > 110 mmHg, O seguimento a longo prazo da GNDA é
com alteração do estado de vigília, desorientação, feito através da avaliação periódica do sumário
convulsão), associar nifedipina cápsula (1caps = de urina, mensalmente até desaparecimento da
10mg = 10 gotas) sub-lingual em baixas doses hematúria microscópica e uma a duas vezes ao
(15 a 20Kg = 2 gotas, 20 a 40Kg = 3 gotas , > ano após o desaparecimento da hematúria mi-
40Kg = 4 gotas) ou captopril 1mg/Kg, VO ou croscópica, não necessitando outros exames se
SL, assim como antIconvulsivante EV, se con- este é normal. A pressão arterial também deve
vulsão, enquanto providencia-se hospitalização ser verificada por ocasião destas revisões.
de emergência,em UTI. Não obrigatoriamente há necessidade de
No caso clínico exposto, a criança tem avaliação ou seguimento por nefrologista pe-
GNDA com hipertensão leve, insuficiência renal diátrico dos casos de GNDA de boa evolução
leve e congestão cardio-pulmonar moderada. Ad- (regressão dentro de cinco a quatorze dias). En-
ministrou-se furosemide 1mg/Kg, VO, pois não tretanto, nos casos nos quais, o edema, hematú-
era possível EV, e observou-se a clínica e diurese ria macroscópica, proteinúria, hipertensão, ou
num período de quatro horas. A criança apresen- insuficiência renal não regridam totalmente em
tou 300ml de diurese; dispnéia e taquicardia re- quatro semanas; ou nos casos de GNDA grave
grediram. Foi então prescrito dieta com restrição (insuficiência renal grave, hipertensão grave,
de sódio rigorosa, furosemide 2mg/Kg/dia, VO e congestão cardio-pulmonar grave), ou associados
mãe orientada a medir e anotar diurese de 24 ho- à síndrome nefrótica, é necessário a avaliação e
ras, e retornar diariamente para verificar pressão seguimento com especialista. Ainda aqueles ca-
arterial e peso. Também foi orientada quanto a sos ,com antecedentes de história familiar para
necessidade de procurar serviço de emergência se insuficiência renal ou qualquer outra doença re-
os sintomas de dispnéia retornasse ou se surgisse nal, devem ser encaminhados para avaliação do
cefaléia, sonolência, irritabilidade ou vômito. especialista.
A GNDA é doença autolimitada, de re- É importante que lembremos que a úni-
gressão espontânea, não se justificando o uso de ca forma de evitar a GNDA é prevenindo a
corticóides ou qualquer outra medicação com o infecção estreptocócica. Em meios sócio-eco-
objetivo de tratá-la. Costuma evoluir com regres- nômicos menos favorecidos o tratamento da
são da hematúria macroscópica, da proteinúria, escabiose é sem dúvida importante prevenção,
da hipertensão, da congestão cardio-pulmonar já que a escabiose infectada é uma das causas
e normalização dos níveis de uréia e creatini- frequentes de infecção estreptocócica nestas
na, dentro de cinco a quatoze dias de evolução. comunidades.Também a prevenção ou trata-
Neste período apresenta poliúria e perda de peso mento adequado do estrófulo e dos ferimentos
progressiva. Alguns poucos casos mais arrasta- contribuem neste sentido.
dos podem manter estas alterações até quatro
semanas, sem que signifique pior prognóstico.
O valor do C3 costuma normalizar dentro
de quatro a oito semanas do início da GNDA.
A hematúria microscópica persiste por
alguns meses, geralmente normalizando até seis
meses da doença, entretanto pode estar presente
sem qualquer outra manifestação até um ano da
doença, sem significado prognóstico em relação
a função renal.

434
Capítulo 44 • Glomérulo Nefrite Difusa Aguda pós-estreptocócica

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435
Capítulo 45
Síndrome nefrótica Dado sua grande predominância na infân-
na infância cia, a síndrome nefrótica por lesão mínima é o
protótipo desta entidade nesta faixa etária, geral-
Kathia liliane da cunha riBeiro zuntini
mente corticossensível, determinando abordagem
diagnóstica e tratamento inicial. A biópsia renal
não tem indicação inicial, sendo reservada para
os casos que não respondam ao tratamento com
corticóide, definidos como corticorresistentes.
Dado estas considerações este capítulo
Introdução abordará apenas a síndrome nefrótica idiopática
por lesão mínima.

A síndrome nefrótica é um qrande grupo das


glomerulopatias que se caracteriza por pro-
teinúria maciça e hipoalbuminemia importante. 90% Síndrome
Etiologia

Pode ser de causa idiopática ou secundária. O Nefrótica


Idiopática
grupo das glomerulopatias idiopáticas inclui
85% Lesão Mínima
vários padrões histopatológicos: lesão mínima, 90% Síndrome 5% Proliferação Mesangial
proliferação mesangial, glomeruloesclerose fo- Nefrótica pura 10% Glomeruloesclerose segmentar
e focal
cal e segmentar, glomerulonefrite membrano-
10% Síndrome Glomerulonefrite membaranopro-
proliferativa e glomerulonefrite membranosa. Nefrótica não liferativa
A síndrome nefrótica secundária tem várias pura Glomerulonefrite membranosa
etiologias e diversos padrões histopatológicos, 10% Síndrome
conforme esquema abaixo. Nefrótica
Secundária
Glomerulonefrites pós-infecciosas
Síndrome Nefrótica na Infância Glomerulonefrites auto-imunes
Glomerulonefrites
(Lúpica)
em geral
Glomerulonefrites da Púrpura de
Na criança a síndrome nefrótica é, na
Henoch-Shonlein
grande maioria dos casos (90%), de natureza
Neoplasias Carcinomas, Linfomas
idiopática. Destas, 90% são síndrome nefrótica Penicilamina, compostos de mercú-
pura, isto é, sem componente nefrítico de hiper- Dogras rio e ouro, etosuximide, clorpropa-
tensão, de hematúria macroscópica, ou de in- mida, fenitoína.

suficiência renal. O padrão histopatológico que Síndrome Nefrótica tipo Finlandês


Congênita (≤ 6
Esclerose mesangial difusa
predomina neste grupo, em torno de 85%, é o da meses)
Infecção congênita (Lues)
lesão mínima. O restante dos 15% são distribu-
ídos em proliferação mesangial (5%) e glomeru- Patogenia e Fisiopatologia
loesclerose segmentar e focal (10%). Os 10% de
síndrome nefrótica não pura ou com componen- A patogenia da síndrome nefrótica idiopá-
te nefrítico são formas mais raras de síndrome tica, tem envolvimento de determinantes gené-
nefrótica na infância, incluindo a glomerulone- ticos, de resposta diferenciada do sistema imu-
frite membrano-proliferativa e a glomerulone- nológico celular, e de agentes desencadeantes
frite membranosa. infecciosos, geralmente virais.

437
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Uma resposta diferenciada mediada por do com grande predominância o pneumococo.


linfócitos T causa alteração na propriedade de Este fato decorre da produção inadequada de
eletronegatividade da membrana basal glomeru- imunoglobulinas, principalmente a IgG, e me-
lar, fazendo perder sua função de barreira ele- nos intensamente a IgM e IgA. Tem ainda res-
trostática, de tal forma que as proteínas de baixo posta inadequada dos anticorpos, opzonização
peso molecular e de carga elétrica negativa, como deficiente por perda urinária de zinco e do fator
a albumina, não sofrem a repulsão fisiológica e B do complemento, anomalias da imunidade ce-
assim são filtradas livremente pela membrana lular, desnutrição, edema e uso de corticóide e
basal do glomérulo e perdidas na urina. imunossupressores, quando já em tratamento.
A conseqüência desta proteinúria maciça é As infecções mais freqüentes são, infecções de
uma hipoalbuminemia severa, causando queda da vias aéreas superiores, pneumonias, peritonites
pressão oncótica plasmática e assim predispondo primárias e celulites.
passagem de água do compartimento intravascu- A hipercoagulabilidade é uma característi-
lar para o extravascular e conseqüentemente le- ca do nefrótico em recidiva. É conseqüência do
vando à edema generalizado e hipovolemia. aumento de produção pelo fígado, estimulada pela
A hipovolemia causa hipoperfusão renal hipoalbuminemia, de fatores pró-coagulantes,
o que estimula o sistema renina-angiotensina- como: fibrinogênio, fator VIII, fator V, fatores II,
aldosterona. A aldosterona causa reabsorção VII e X. Ocorre também queda de inibidores pla-
de cloreto de sódio no túbulo distal potenciali- quetários e de proteínas fibrinolíticas, perdidas
zando o edema e retenção salina. Além disso, a na urina, como &1-antitripsina, &2 antiplasmi-
hipovolemia estimula a produção do hormônio na e antitrombina III. Além disso, os estados de
anti-diurético, o qual, aumenta a reabsorção de hipovolemia e de hemoconcentração, somados às
água livre, a nível de túbulo coletor, o que tam- alterações da coagulação descritas, potencializam
bém potencializa o edema. o estado de hipercoagulabilidade e a predisposi-
A hipoalbuminemia estimula a síntese he- ção a fenômenos trombo-embólicos.
pática de lipoproteínas (VLDL). Por outro lado, A síndrome nefrótica tem incidência de,
devido perda urinária, ocorre queda plasmática aproximadamente, 2 a 6 casos novos/100.000
da lípase-lipoprotéica, e da lecitina colesterol crianças com idade ≤ 16 anos, segundo estudo
acyl transferase, o que aumenta a remoção de americano, estando 70% entre 1 a 6 anos de ida-
gorduras dos depósitos e diminui a remoção de, na época do diagnóstico.
de lipídeos plasmáticos. Como conseqüência É importante o diagnóstico e o encami-
ocorre hiperlipidemia com elevação da VLDL, nhamento precoce ao nefrologista pediátrico,
LDL, colesterol e triglicérides. As lipoproteínas pois trata-se de doença sem tratamento curati-
de alta densidade (HDL) podem estar elevadas vo, sendo de natureza recidivante e evolução
ou diminuídas. crônica, tendendo à cura espontânea em tempo
Lipoproteínas de alta densidade (HDL) de doença não previsível. Desta forma necessita
são perdidas na urina, reabsorvidas pelo túbu- de abordagem terapêutica especializada e expe-
lo proximal, catabolizadas e secretadas na urina riente, para que, o uso crônico de corticóide e ou
como gordura livre, corpos graxos e células de- outros imunussupressores seja o mais apropria-
generadas com gordura, caracterizando a lipoi- do possível, maximizando sua eficácia e mini-
dúria do nefrótico. mizando os efeitos colaterais o quanto possível,
O nefrótico tem predisposição imuno- além de preservar a função renal até a cura da
lógica a infecções, principalmente as causadas síndrome nefrótica.
por vírus e bactérias encapsuladas, se destacan- É também igualmente importante o co-

438
Capítulo 45 • Síndrome nefrótica na infância

nhecimento fisiopatológico da doença e da teinúria de 24 horas: ainda sem resultado. Uréia:


história natural da doença, pelos médicos res- 16mg/dl. Creatinina: 0,5 mg/dl. Proteínas totais:
ponsáveis pela assistência primária destas crian- 3,8g/l; Albumina: 1,8g/l; Globulina: 2,0g/l. Co-
ças, a fim de que possam abordar e conduzir o lesterol: 380mg/dl. Hemograma: Ht: 44% , Hb:
atendimento de maneira adequada, tanto das 13,7g/dl, leucócitos: 18.000/mm3; Bastões: 2%,
crianças sem diagnóstico como daquelas crian- Segmentados: 81%, Eosinófilos: 1%, Linfóci-
ças nefróticas em recidivas até que possam ser tos: 10%, monócitos: 7%; granulações tóxicas em
encaminhadas a serviço especializado. 10% neutrófilos; plaquetas: 350.000/mm3. RX
de tórax: infiltrado em base esquerda, pequeno a
moderado derrame pleural à direita, área cardía-
Caso Clínico ca normal.

• HDA: Mãe refere que seu filho de dois anos, apre-


senta-se com tosse produtiva há uma semana, febre Considerações Clínicas e Diagnósticas
alta há três dias e hoje notou que está “inchado” na
face e abdômen, além de “cansado”. A manifestação clínica da síndrome ne-
• Antecedentes Fisiológicos: Nasceu parto normal, frótica não complicada, é quase exclusivamen-
em hospital, alta com 24 horas, chorou ao nascer, te, edema generalizado, mole, que muda de lo-
Peso: 2.800Kg. Relata DNPM normal. calização com a posição. De início e evolução
• Antecedentes Patológicos: Refere diarréia com insidiosa, muitas vezes passa despercebida por
um ano e seis meses. Nega “cansaço” quando gri- vários dias a semanas dando a impressão à mãe
pa, sem outras informações que a criança está engordando.
• Antecedentes familiares: Nega doenças renais. Devido a estas características, quando se
• Exame Físico: Peso: 15Kg; Estatura: 86cm; apresenta ao médico, a criança nefrótica geral-
PA: 80 x 50mmHg; FR: 48rpm; FC: 120bpm. mente tem anasarca importante, muitas vezes
Taquidispnéico, com leves retrações subcostais e com líquido no terceiro espaço, como ascite e
intercostais, hidratado, edema de face +/4 e de derrame pleural. Por outro lado, a ocorrência
couro cabeludo ++/4; hipocorado +/4, anicté- de uma infecção viral ou bacteriana, pode an-
rico, acianótico, consciente, orientado. AP: MV tecipar o diagnóstico da criança com síndrome
diminuído no 1/3 inferior do hemitórax direito, nefrótica. Isto acontece porque esta criança com
estertores subcrepitantes de base a esquerda. AC: infecção é levada ao médico, o qual identifica a
RCR, 2T, BNF, sem sopros. anasarca, assim como também, porque a asso-
• Abdômen: edema de parede, cicatriz umbilical ciação com infecção agudiza a evolução do ede-
aplainada, globoso, ascite? Fígado no RCD abai- ma, que nestas situações aumenta mais rápido,
xo do RCD, baço não palpável, RHA presentes. sendo então percebido pela mãe. São raros os
Edema depressível em região sacral sintomas associados, a não ser decorrentes de
• GU: edema de testículos ++/4 infecções concomitantes e desencadeantes da
• Extremidades: edema depressível +++/4, síndrome nefrótica.
mole, branco. No exame físico, é importante se compa-
• HD: Síndrome nefrótica e Pneumonia rar o peso atual da criança, em relação ao último
• Exames laboratoriais: Sumário de Urina: dens: conhecido, podendo se flagrar um aumento im-
1030; proteína: ++++/4, Hb: ++, Hemácias: portante e se estimar a intensidade do edema, às
16/campo, leucócitos: 6/campo, ausência de bac- vezes ainda subclínico.
térias. Proteinúria/creatinina urinária: 16,2. Pro- As características do edema também são

439
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

importantes: edema mole, depressível, branco, diagnóstico.


que é mais intenso em regiões de baixa resistên- • Relação proteinúria/creatinúria em amostra
cia de subcutâneo como pálpebras, couro cabe- de urina isolada ≥ 2,0
ludo, região sacral, testículos e vulva. Ao con- • Proteínas totais e frações: proteína total =
trário, na glomerulonefrite aguda pós-infecciosa ou < 5,0g/l e albumina ≤ 2,5g/l
(GNDA), o edema costuma ser duro, brilhoso, • Colesterol elevado
pouco depressível, geralmente não aparecendo • Creatinina e uréia, geralmente normais.
em testículos, vulva, couro cabeludo e não mu- • Hemograma: Ht e Hb normais ou levemente
dando de localização com o decúbito, além de elevados, devido hipovolemia e consequente
não apresentar ascite e derrame pleural. hemoconcentração. Leucograma sem altera-
Ausência de hipertensão e de sinais de ções. Plaquetas podem estar aumentadas em
congestão cardiopulmonar como dispnéia, hepa- número.
tomegalia, taquicardia, B3, ou galope, também • Complemento (C3): normal.
ajudam no diagnóstico diferencial com GNDA.
No caso clínico acima, a criança apresenta No caso clínico acima, temos sumário de
sintomas respiratórios há uma semana, evoluindo urina com proteinúria importante de 4+, hema-
com febre posteriormente, além de dispnéia, suge- túria microscópica leve, sem outras alterações.
rindo pneumonia. A mãe relata aparecimento de Foi solicitada proteína e creatinina em amostra
edema de 1 dia, o que podia fazer supor que fosse de urina isolada, e calculada a relação proteína/
de início agudo, até levando a suspeita de GNDA. creatinina que quando ≥ a 2 , é condizente com
Entretanto, no exame físico o edema tem carac- proteinúria maciça ou nefrótica, com boa corre-
terísticas de edema hipoalbuminêmico. Está pre- lação com a proteinúria de 24 horas, a qual es-
sente em couro cabeludo, região sacral, testículos tava sendo colhida. Proteínas totais plasmáticas
e extremidades, sendo intenso, mole e branco. Há e albumina de 3,8 g/l e 1,8g/l respectivamente,
também descrição de ascite, contribuindo para o associadas com a proteinúria maciça revelada na
diagnóstico de síndrome nefrótica. O quadro de relação proteína/creatinina = 16,2, confirma o
dispnéia, sem hepatomegalia e com estertores loca- diagnóstico de síndrome nefrótica. O colesterol
lizados apenas a esquerda, além do relato de febre, é elevado de 380 mg/dl, corrobora com o diagnós-
mais sugestivo de pneumonia do que de congestão tico e excepcionalmente é normal. A creatinina
cardio-pulmonar que estaria presente na GNDA. e uréia são normais e compatíveis com síndrome
Não existe hipertensão o que também está de acor- nefrótica pura. O leucograma, neste caso clínico,
do com o diagnóstico de síndrome nefrótica, ao com leucocitose com desvio para esquerda, linfo-
contrário da síndrome nefrítica da GNDA. penia e presença de granulações tóxicas, se deve
Para confirmação do diagnóstico de sín- ao quadro infeccioso de pneumonia, não sendo
drome nefrótica são necessários os seguintes decorrente da síndrome nefrótica. Hematócrito,
exames laboratoriais: hemoglobina e plaquetas elevadas são condizen-
• Sumário de Urina: Proteína de +++ a tes com síndrome nefrótica. Neste caso foi solici-
++++, presente sempre Hematúria micros- tado RX de tórax, devido suspeita de pneumonia,
cópica leve, cilindros hialinos e corpos gra- a qual foi confirmada, pelo infiltrado em base es-
xos, podem ou não estar presentes. Leucóci- querda. O derrame pleural à direita provavelmen-
tos normais; ausência de bactérias. te se deve ao estado de hipoalbuminemia. Área
• Proteinúria de 24 horas ou 12 horas: ≥ a cardíaca normal e ausência de infiltração difusa,
50mg/Kg/dia ou a 25mg/Kg/dia, respectiva- mais acentuada em região perihilar, descartam
mente. Esta é a alteração indispensável ao congestão cardiopulmonar vista na GNDA.

440
Capítulo 45 • Síndrome nefrótica na infância

Esquema didático de diagnóstico clínico- - Descartar qualquer infecção bacteriana as-


laboratorial e abordagem da Síndrome sociada, principalmente: pneumonias, ce-
Nefrótica em Atenção Básica de Saúde lulites, peritonites. Se diagnosticadas pro-
videnciar internação e iniciar penicilina
• Quando suspeitar de síndrome nefrótica na cristalina.
criança? - Se diagnosticada hipertensão, insuficiência
- Criança de 1 a 6 anos de idade, com história renal e/ou hematúria macroscópica associa-
de 1 a 2 semanas de edema insidioso, asso- da à síndrome nefrótica, providenciar, com
ciado ou não a sintomas concomitantes de urgência, internação em centro de referên-
infecção viral ou bacteriana. Sem hematú- cia terciária.
ria macroscópica.
- No exame físico: Edema generalizado, mole, • Confirmado o diagnóstico, qual a conduta?
depressível (forma cacifo à digito-pressão), - Se criança com síndrome nefrótica pura,
branco, mais intenso em pálpebras, genitá- isto é, sem hematúria macroscópica, hiper-
lia, couro cabeludo, região sacral, e que muda tensão ou insuficiência renal, e sem infec-
de localização com a posição. Pode apresen- ção bacteriana associada, deve ser condu-
tar ou não ascite e/ou derrame pleural. zida ambulatorialmente. A anasarca não é
indicação de internação.
Pressão arterial normal e ausência de si- - Iniciar prednisona 2mg/Kg/dia, dose única
nais de congestão cardio-pulmonar (dispnéia, pela manhã, diariamente. Manter dieta sem
turgência jugular, estertores na ausculta pulmo- sal, ou hipossódica.
nar, taquicardia ou ritmo de galope na auscul- - Se edema volumoso, pode-se associar a
ta cardíaca, hepatomegalia). espirinolactona (Aldactone) comprimido
de 25mg ou 50mg), na dose de 3 a 5mg/Kg/
• Frente a suspeita clínica como proceder ? dia, VO, de 8 em 8 horas. A família deverá
Solicitar os seguintes exames indispensáveis ser orientada a suspendê-lo logo que inicie
ao diagnóstico: poliúria e regressão do edema.
- Sumário de urina - Providenciar encaminhamento para ambu-
- Proteinúria de 24 ou de 12 horas, caso haja latório de nefrologia pediátrica, dentro de 1
dificuldade de colher de 24 horas a 4 semanas de medicação.
- Colesterol - Prevenir os parentes que a anasarca só regre-
- Proteínas totais e frações dirá dentro de 1 a 3 semanas, e que neste pe-
- Uréia e creatinina ríodo a criança poderá ter progressão do ede-
- Hemograma completo. ma, não se devendo suspender o corticóide.
- Caso não seja possível, realizar, no mínimo: - A prednisona deverá ser mantida nesta dose
Sumário de urina, Proteinúria de 24 horas, inicial diariamente por pelo menos 4 sema-
Proteínas totais e frações, Uréia e Creati- nas, por ocasião do primeiro tratamento da
nina; encaminhar a criança para centro de síndrome nefrótica, mesmo que a criança
referência. apresente remissão antes (proteinúria ne-
- Enquanto se aguarda os resultados dos exa- gativa e regressão da anasarca).
mes acima: prescrever dieta hipossódica, - Se com 30 dias de corticóide a criança ain-
ou seja, dieta sem sal de cozinha; fazer tra- da não teve sua consulta com o nefrologista
tamento para parasitoses, inclusive para o pediátrico, realizar reavaliação clínico-la-
estrongilóide. boratorial como descrito abaixo.

441
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Considerações Terapéuticas e Preventivas renal bastante diferente do grupo corticossensí-


vel. Apresentam ao longo do tempo, infecções
A síndrome nefrótica idiopática da infân- freqüentes, desnutrição, comprometimento do
cia não tem tratamento curativo. O tratamento crescimento, hipertensão, fenômenos trombo-
se restringe ao controle da doença, isto é, da pro- embólicos e evolução para insuficiência renal
teinúria, o qual é feito com corticóide. crônica num importante percentual dos casos.
Na indução da remissão é há muito tem- Esquemas de tratamento com outros imunos-
po estabelecido, o tratamento com predinisona supressores como ciclofosfamida e ciclosporina,
na dose de 60mg/m2/dia ou 2mg/kg/dia por 4 se- são usados associados à prednisona com resulta-
manas. Após a remissão usa-se a prednisona em dos variáveis.
dias alternados e em doses decrescentes até um A criança com síndrome nefrótica pura
total de 2 a 5 meses. A maneira como regredir não complicada por infecção, deve, sempre que
a prednisona e o tempo ideal de tratamento da possível, ser tratada ambulatorialmente, a des-
primeira crise após a remissão, é controverso, peito de anasarca às vezes volumosa. Esta con-
não se tendo um consenso de quais esquemas, duta é importante no sentido de evitar infecções
mais curtos ou mais longos, trariam maiores hospitalares nestas crianças imunologicamente
benefícios para estas crianças, em termos de de risco. Geralmente são crianças de bom estado
evitar recidivas. geral, ativas, com apetite preservado. A indicação
Não havendo resposta nas primeiras 4 se- de internação para a criança nefrótica se resume
manas de prednisona, é feito metilprednisolona principalmente em infecção bacteriana concomi-
em pulsos de 30mg/Kg, endovenoso, no total tante. A presença de componente nefrítico, como
de 3 pulsos se mantendo a prednisona 60mg/m2 hipertensão, insuficiência renal e hematúria ma-
ou 2mg/Kg em dias alternados por mais 1 mês. crocópica, também tem indicação de internação,
Caso não haja resposta, se classifica a síndrome sendo esta condição de ocorrência rara.
nefrótica como corticorresistente.
Em relação à resposta ao corticóide, 90%
dos casos é corticossensível, isto é, negativam a Considerações gerais importantes para
proteinúria com o esquema de tratamento com o atendimento da criança com Síndrome
corticóide descrito acima, no máximo nos dois Nefrótica em assistência básica de saúde
primeiros meses de tratamento. Destes, apenas
25% curam, sendo que a grande maioria, 75% dos • Afastar diagnóstico de infecção bacteriana,
casos, evoluem com recidivas por meses a anos, a qual quando presente contra-indica o iní-
até a cura espontânea. As crianças nefróticas que cio do corticóide até que seja iniciada anti-
apresentam duas ou mais recidivas dentro de bioticoterapia, e, a infecção esteja controlada
seis meses são ditas recidivantes freqüentes, e clinicamente (ausência de febre por mais de
representam a maioria (40% a 60%), ao contrário 72h, desaparecimento dos sinais clínicos da
das recidivantes espaçadas (10% a 15%), as quais infecção no exame físico e normalização do
têm recidivas com freqüência menor que uma a leucograma). Muitas vezes o tratamento da
cada 6 meses. infecção induz melhora acentuada do quadro
Os 10% dos casos de síndrome nefrótica nefrótico, podendo, às vezes, ocorrer a remis-
idiopática da infância que não respondem ao são espontânea. Como já citado a presença
esquema de corticoíde descrito acima, são de- de infecção bacteriana é indicação de inter-
nominados corticorresistentes. Este grupo tem nação. O tratamento da infecção comunitária
evolução, complicações e prognóstico de função do nefrótico, que seja, pneumonia, celulite ou

442
Capítulo 45 • Síndrome nefrótica na infância

peritonite, deve ser dirigida sempre para o • A criança com diagnóstico de síndrome ne-
pneumococo, ou seja, penicilina cristalina. frótica idiopática em remissão, não estando
• Instituir dieta hipossódica, pois o hiperaldos- em uso de corticóide deve ser vacinada para
teronismo secundário presente, causa reten- pneumococo, o quanto mais rápido possível.
ção salina, potencializando a anasarca hipoal-
buminêmica. No caso clínico acima, a criança, apresenta-
• Não tratar o edema do nefrótico com diuréticos va síndrome nefrótica com quadro concomitante
de alta potência, como é o caso da furosemide. de pneumonia. A indicação é interná-la, tratar a
Este pode agravar a hipovolemia existente e pneumonia com penicilina cristalina por 7 dias,
precipitar hipotensão, choque ou hipoperfu- fazer tratamento antiparasitário e após controle
são renal e conseqüente insuficiência renal clínico da pneumonia, iniciar prednisona. Con-
aguda. Furosemide só tem indicação, nas raras trole de RX de tórax é importante para verificar
vezes, que a ascite ou derrame pleural são tão a regressão do infiltrado pneumônico como para
volumosos, que levam a restrição respiratória, monitorizar o derrame pleural. É provável que o
sendo usado endovenoso, concomitante ou em tratamento da pneumonia induza uma melhora
seguida a albumina. A espirinolactona é o diu- da proteinúria, bem como da anasarca e derrame
rético, via oral, que pode ser usado na anasarca pleural, mesmo antes do início do corticóide.
importante enquanto se aguarda tratamento e
resposta ao corticóide o qual requer de 5 a 14
dias para induzir remissão. A dose usada pode Em atenção básica de saúde podemos então
variar de 3 a 5mg/Kg/dia. Como é poupador de enumerar os seguintes passos:
potássio não pode ser usada quando há insufi-
ciência renal aguda. • Suspeitar do diagnóstico
• Iniciar tratamento antiparasitário, inclusive • Diagnosticar corretamente caso novo ou re-
para estrongiloidíase, previamente ao início cidiva de síndrome nefrótica.
do corticóide. • Diagnosticar infecção bacteriana associada
• Iniciar prednisona 60mg/m2/dia ou 2mg/Kg/ e providenciar internação e tratamento pre-
dia diariamente coce desta.
• Encaminhar para ambulatório de nefrologia • Instituir dieta hipossódica.
pediátrica, os casos de síndrome nefrótica • Tratar parasitoses previamente ao uso de
pura, não complicados com infecção e para corticóide.
internação, os casos de síndrome nefrótica • Iniciar tratamento com prednisona dos casos
complicados com infecção ou os de síndrome de síndrome nefrótico puro não complicados,
nefrótica não pura. primeiro tratamento ou recidiva.
• Caso a criança não consiga atendimento em • Encaminhar as crianças em tratamento para
serviço especializado dentro de 1 mês, deve seguimento em ambulatório de nefrologia pe-
ser obrigatoriamente avaliada com proteinú- diátrica.
ria e sumário de urina, ao final deste prazo. • Encaminhar para internação os casos de sín-
Caso a proteinúria de 24 horas tenha nega- drome com infecção bacteriana associada, ou
tivado, deve-se reduzir a prednisona para 40 com sinais de hipertensão, insuficiência renal
mg/m2/dias alternados ou 1mg/Kg/dias alter- e/ou hematúria microscópica.
nados. Ao contrário, se proteinúria mantida,
fazer 60mg/m2/dias alternados e providenciar A família deve ser sempre esclarecida da
consulta urgente em serviço especializado. importância do seguimento e avaliação regular

443
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

da criança com síndrome nefrótica, e estimulada Bibliografia


a não abandonar o tratamento desta doença de
evolução arrastada, mas de prognóstico geral- American Academy of Pediatrics. Comitê de Do-
mente bom quando bem conduzida. enças Infecciosas - Imunização em circunstâncias
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444
Capítulo 46
Abordagem ginecológica da com as adolescentes e suas famílias. O esclareci-
criança e do adolescente – mento sobre as etapas do exame a ser realizado é
de suma importância para diminuir a ansiedade;
principais patologias
as informações recebidas através do médico, so-
Maria de lourdes caltaBiano MaGalhães
bre o que vai ocorrer, levam a criança e a jovem a
sentirem-se valorizadas como pessoas com opi-
nião e expressão próprias.
A anamnese meticulosa permitirá captar,
progressivamente, a confiança da paciente; o

O ginecologista necessita ter formação e ex-


periência suficientes para atender as crian-
ças e adolescentes com uma visão integral, prio-
questionamento deverá ser dirigido diretamen-
te à criança ou à adolescente e, complementa-
do, quando necessário, pelas informações do(a)
rizando não somente a medicina curativa, mas acompanhante, principalmente sobre o motivo
também a prevenção, a orientação e a educação. do comparecimento ao consultório, anteceden-
O conhecimento do processo de matura- tes pessoais e familiares. O valor clínico dessa
ção somática e genital, da anatomia e fisiologia etapa da consulta é de fundamental importân-
do sistema reprodutivo e das transformações es- cia, pois realizada de maneira eficaz, permite, ao
pecíficas de cada idade é requisito fundamental profissional, na maioria dos casos (70%) emitir
para uma boa abordagem ginecológica. Dessa uma hipótese ou um diagnóstico correto sem re-
forma, devemos estar atentos à grande respon- correr a exames complementares.
sabilidade que assume o profissional em suas O exame físico na abordagem ginecope-
atitudes e condutas frente às pacientes, tanto no diátrica e da adolescência deve ser realizado
momento atual como em suas implicações futu- com calma, sem pressa, de maneira cuidadosa e
ras, evitando iatrogenias. completa. O profissional não deve limitar-se aos
O especialista deve estar capacitado para órgãos genitais, mas sim, iniciar com o exame
criar uma condição favorável ao exame gineco- geral e posteriormente o ginecológico, utilizan-
lógico, junto à paciente e a seus acompanhantes, do o material específico para a faixa etária e ne-
enfatizando a importância e tranqüilizando- cessário a uma boa investigação.
os quanto ao procedimento que será realizado. É importante deixar claro a confidencia-
Deve tentar obter a colaboração dos responsá- lidade da consulta e que nada será comentado
veis no sentido de compreenderem a necessida- sem o consentimento prévio da paciente. O
de do acompanhamento ginecológico desde a estabelecimento de uma boa relação médico-
mais tenra idade. Dessa forma, na adolescência paciente desde a infância será, com certeza, um
a menina estará familiarizada com a rotina do dos grandes instrumentos facilitadores de que o
exame e orientada para aceitar as modificações profissional dispõe para estimular a jovem ado-
do seu corpo como parte natural do processo de lescente a assumir a responsabilidade pela sua
amadurecimento, desenvolvendo também maior saúde, com mudanças efetivas em sua atitude
responsabilidade pela sua própria saúde. que priorizem a prevenção.
A comunicação, a disponibilidade de tem- O profissional que atua na Atenção Primá-
po, a paciência e a perspicácia são fundamentais ria necessita conhecer as características da geni-
para um bom relacionamento com as meninas, tália nas diferentes faixas etárias e as principais

445
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

patologias a fim de ter condições de diagnosti- Ao exame físico geral, paciente de difícil abor-
car, tratar ou encaminhar para centros especiali- dagem, chora muito e não permite ser tocada. Estado
zados, evitando iatrogenias. Entre as patologias geral regular; criança com aspecto mal cuidado.
ginecológicas, a vulvovaginite é a mais freqüen- Ao exame ginecológico, constatou-se ruptura
te, seja na faixa etária da infância como da ado- na região perineal, com mais ou menos 02cm de diâ-
lescência. Por ser essa patologia uma das prin- metro (comprimento de largura) e 1,5cm de profun-
cipais causas de consulta ginecológica, optamos didade; presença de secreção purulenta no fundo da
por descrever os casos clínicos baseados nesse lesão. Não há lesão do esfíncter anal; hímen íntegro.
processo inflamatório.

Caso Clínico 3
Caso Clínico 1
Paciente de 06 anos com queixa de corrimen-
Paciente de 05 anos é levada à consulta com to amarelo – sanguinolento, em grande quantidade,
queixa de prurido vulvar intenso e corrimento de cor com forte odor há mais ou menos 10 dias. Mãe refere
amarelada com ligeiro odor há 30 dias. Refere tam- que a paciente estava bem e que de repente apresen-
bém prurido anal e a mãe diz que por várias vezes a tou perda sanguínea por via vaginal. A pequena pa-
criança acorda à noite chorando. Nega casos seme- ciente não permite um bom diálogo e demonstra mui-
lhantes com os outros filhos; a paciente é a última to medo; mãe nega traumatismos ou manipulação.
filha; nasceu após 10 anos. Paciente tem dois irmãos, de 02 e 04 anos.
O último tratamento para verminose intesti- Exame físico geral sem anormalidades.
nal ocorreu há mais de 01 ano e a genitora refere que Ao exame ginecológico, vulva muito hipere-
a criança brinca com areia no colégio. Nega qualquer miada, forte odor e corrimento sero-sanguinolento em
patologia de antecedentes familiares e pessoais. grande quantidade. Através do orifício himenal íntegro,
Ao exame físico geral, nenhuma alteração foi observa-se massa acinzentada de mais ou menos 1,5cm
encontrada. e de consistência amolecida.
Ao exame ginecológico, vulva muito hipere- Paciente submetida à exame ginecológico sob
miada, presença de moderada quantidade de secre- narcose constatou-se presença de corpo estranho na
ção amarelada e ligeiro odor. Há escoriações na parte vagina, provavelmente semente de fruta.
interna dos pequenos lábios e região perineal. Foi ob-
servada má higiene vulvo-perineal.
Diagnóstico: Corpo estranho

Caso Clínico 2 Nos 3 casos relatados, a queixa de corri-


mento prevaleceu, porém foram 3 diagnósticos
Paciente de 03 anos com queixa de disúria in- diferentes. Nem sempre um conteúdo vaginal
tensa e corrimento amarelado, às vezes acompanhado sanguinolento significa puberdade precoce ou he-
de perda sanguínea em pequena quantidade e de odor morragia uterina; um processo inflamatório acen-
fétido. Mãe refere que a criança chora muito e não tuado poderá apresentar o mesmo quadro. Cerca
permite a higiene; isso vem ocorrendo há 10 dias. de 70% das vulvovaginites na infância são ines-
Genitora trabalha fora de casa e a criança fica pecíficas e geralmente por higiene inadequada;
um período na creche e o outro com o irmão de 14 muitas vezes, somente com a orientação das me-
anos. Nega quadro semelhante anterior e patologias didas de higiene, há remissão do quadro clínico.
na família. Mãe evita dar informações.

446
Capítulo 46 • Abordagem ginecológica da criança e do adolescente – principais patologias

Peculiaridades do Exame Ginecológico nas do saco herniário.


diferentes faixas etárias - Exames das mamas: A mais freqüente cau-
sa de consulta e que não constitui patologia
• Recém-nascida: O primeiro exame gineco- é a presença de intumescimento dos brotos
lógico deve ser realizado na sala de parto e mamários e que à expressão da glândula
depois ser repetido periodicamente. O exame pode estar presente uma secreção constitu-
da genitália externa da neonata é de suma im- ída por uma mistura de colostro e leite, de-
portância e deve fazer parte da rotina do neo- nominada comumente de “leite de bruxas”.
natologista, do pediatra e do médico de famí-
lia. A observação minuciosa permite detectar É importante orientar as mães que este
precocemente não só as malformações, como fato é devido ao estímulo dos tecidos pelos hor-
também hérnias gonadais, genitália ambígua mônios placentários e é mais freqüente nas pós-
e tumores. maduras e ausente nas prematuras. Geralmente,
- Exame clínico geral: À inspeção, deter- quando não há a extração manual, esse efeito de-
mina-se a constituição física da recém-nas- saparece entre 15 e 20 dias. No entanto, o botão
cida, seu estado nutricional, condições da mamário pode persistir até 2 anos de idade sem
pele, pigmentações anormais e/ou qualquer ser patológico.
outro sintoma que possa estar relacionado
com o motivo da consulta. - Exame ginecológico: A recém-nascida não
oferece resistência ao exame; é uma criança
Podem também ser detectadas anomalias passiva e fácil de ser examinada. O aspecto
vinculadas ao desenvolvimento genital como: da genitália externa apresentará variações
nanismo pituitário, transtornos tireoidianos que dependem do estado nutricional da
congênitos, hiperplasia de supra-renal, entre criança e do tempo de gestação (termo, pre-
outros. O diagnóstico precoce de uma afecção maturo, pós-maturo).
como a disgenesia gonádica é de suma impor-
tância, pois existem alterações que podem afetar Em algumas ocasiões, o especialista pode
de forma irreversível o futuro da menina. ser requerido para avaliação de massa vulvar que,
na maioria das vezes, corresponde a alterações
- Palpação abdominal e da região inguinal: benignas. É importante considerar o tempo de
Durante a palpação, pesquisa-se principal- evolução, presença de sintomas e sinais associa-
mente duas patologias: as massas tumorais dos, como dor, genitorragia ou se é assintomáti-
e as hérnias na região inguinal. Os tumores ca. À inspeção deve-se avaliar as características
nessa faixa etária, apesar de raros, há casos da massa (sólida, cística, inflamatória), relação
descritos de cistos foliculares, de teratomas anatômica com outras estruturas vulvares, exis-
benignos e malignos, inclusive sarcomas tência de obstrução da vagina, como no hímen
botrióides de origem colpocervical. A pre- imperfurado com mucocolpo secundário.
sença de um tumor no hipogástrio obriga o No caso de massas sólidas, o diagnóstico
médico a efetuar o toque retal e comprovar diferencial compreende: anomalias vasculares
a permeabilidade da vagina, descartando (hemangioma tuberoso, malformações vascula-
um mucocolpo que simule um tumor. A res), prolapso uretral, lipoma, pólipo himenal,
constatação de massa pequena e firme na prolapso uterino e de vagina e, inclusive, poderia
região inguinal deve levantar a hipótese de ser até uma gônada, como na disgenesia gonadal
gônada feminina ou masculina no interior mista, síndrome de insensibilidade periférica

447
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

androgênica, hermafroditismo verdadeiro. anomalias dos genitais.


Se a massa for de aspecto cístico, o diagnós- Antes de iniciar o exame, explica-se à
tico diferencial tem que ser realizado com urete- criança como ele será realizado, comparando-o
rocele prolapsada, cistos de origem uretral, di- com os outros (olhos, amídalas) que já está habi-
vertículo uretral, cistos parauretrais, hidrocolpo, tuada a se submeter.
cistos remanescentes embrionários, entre outros. Tomamos como princípio básico jamais
As massas vulvares malignas se apre- efetuar um exame a força. Além de não ser satis-
sentam mais tardiamente, geralmente durante fatório, gera forte rejeição a uma segunda con-
a infância ou adolescência e incluem o rabdo- sulta e poderá levar a conseqüências futuras no
miossarcoma, tumor de células endodérmicas, relacionamento sexual. Com um procedimento
adenocarcioma de células claras e melanoma sem pressa, distraindo a atenção da criança com
maligno. palavras amáveis e a ajuda de uma pessoa espe-
“Crise Genital” da Recém-Nascida: É de- cializada, é muito raro que não se possa vencer
finida como o conjunto de elementos semiológi- sua resistência e realizar, na primeira consulta,
cos que engloba: edema vulvar, leucorréia, ingur- tanto o exame dos genitais externos como a co-
gitamento mamário e/ou hemorragia genital. A leta do conteúdo vaginal.
hemorragia genital ocorre em 5 a 10% dos casos;
aparece entre o segundo e o quinto dia após o - Exame físico geral: Pode-se fazer o exame
nascimento e tem a duração de dois a três dias. clínico geral na primeira consulta, ganhar a
confiança da pequena paciente e realizar o
• Infância: Na infância, é de suma importância exame ginecológico em uma segunda vez.
que se crie um vínculo positivo entre a equi-
pe, a criança e seus pais se o profissional aspi- Fazer inicialmente a biometria. Anotar
ra efetuar o exame adequadamente. O médi- deficiências nutricionais evidentes, obesidade
co tem a obrigação de ganhar a confiança da excessiva e outros sinais no aspecto geral que
paciente, procurar compreendê-la, afastando nos possam ajudar em um diagnóstico. Certas
a sensação de medo e a desconfiança do pri- anomalias observadas no período neonatal ten-
meiro contato. Deve-se dar muita atenção à dem a se manifestar com maior nitidez durante
criança e ao que ela diz sentir, estabelecer um o desenvolvimento da menina, particularmente
diálogo franco e conversa descontraída. os estigmas das disgenesias gonadais.

O exame ginecológico da menina é geral- - Exame das mamas: É muito simples na


mente solicitado por quem a acompanha. Deve- criança, pois a glândula mamária ainda não
se ter muita habilidade para não permitir que o recebeu o estímulo hormonal que a faz cres-
adulto “fale pela paciente”; o diálogo inicial será cer e desenvolver-se. Durante a inspeção e
estabelecido com a cliente e em seguida realiza-se a palpação, pode-se constatar: anomalias
o interrogatório com a mãe ou acompanhante. congênitas, desenvolvimento prematuro
As queixas mais freqüentes no período das mamas, nódulos, crescimento unilateral
da infância são: corrimento vaginal, irritação e e/ou bilateral assimétrico. Deve-se observar
prurido vulvar e das região perianal, suspeita de a evolução do broto mamário e estabelecer
abuso sexual, dor abdominal, sangramento vagi- a correlação cronológica, obedecendo aos
nal, crescimento prematuro das mamas e/ou dos cinco estágios de Tanner. Se possível, me-
pêlos pubianos, massas abdominais, coalescên- de-se as mamas para um acompanhamen-
cia de pequenos lábios, transtornos urinários e to futuro. As mensurações são realizadas a

448
Capítulo 46 • Abordagem ginecológica da criança e do adolescente – principais patologias

partir da linha axilar anterior até a papila, e ter conseqüências futuras para a paciente na sua
desta até o sulco mamário inferior. Deve-se vida sexual.
dar muita atenção à telarca prematura pois
poderá ser o primeiro sinal de puberdade
precoce; é obrigatório esse diagnóstico di- Adolescência
ferencial, pois a conduta no primeiro caso é
só expectante. Quem a adolescente deve procurar para a
- Exame abdominal: Faz-se inicialmente a consulta? O pediatra que a atendia na infância?
inspeção e é nesse momento que se tem a O médico da família ou da mãe, com quem ima-
oportunidade de observar eventuais abaula- gina não possa ter um bom diálogo? Quem sabe
mentos, particularmente no hipogástrio. É um especialista?.... Para que possa sempre ser
importante lembrar que a palpação de tu- acompanhada e orientada em seu desenvolvi-
mores intraperitoneais, particularmente dos mento, a menina deve ter o seu próprio médico e
ovários, fica relativamente facilitada, uma ginecologista. Entretanto, nem todo profissional
vez que os mesmos não conseguem alojar-se possui condições adequadas para atender uma
na exígua cavidade pélvica nessa faixa etária adolescente. Deve ser um especialista capacita-
e são deslocados para o interior da cavidade do, hábil em estabelecer um bom relacionamen-
abdominal, tornando-se mais evidentes. to médico-paciente, capaz de obter a confiança
- Exame ginecológico: Uma forma de temor da jovem e respeitar seus padrões de vida, mes-
expressa particularmente pela família, rela- mo quando estes forem contrários aos seus.
ciona-se com o risco da perda de virginda- Um dos maiores objetivos a serem alcan-
de durante as manobras propedêuticas. O çados pelo profissional é conseguir que a ado-
ginecologista deve adiantar-se em relação a lescente se sinta responsável pela sua própria
essa preocupação, explicando que as mano- saúde, de forma integral.
bras serão inócuas em relação à membrana A atitude médica variará de acordo com
himenal, mostrar ao responsável o orifício as múltiplas circunstâncias, pois a fase da ado-
himenal, por onde será realizada, se neces- lescência abrange mudanças bem notórias entre
sária, a coleta do conteúdo vaginal. a primeira etapa (10 a 14 anos) – a puberal – e a
posterior – a adolescência tardia (15 a 19 anos),
A vulva se apresenta completamente dife- cada adolescente representa um indivíduo que
rente da recém-nascida; as estruturas vulvares deve ser respeitado. Geralmente, na etapa pube-
são visualizadas mais facilmente devido à invo- ral, as meninas comparecem à consulta acom-
lução fisiológica que ocorre com o desapareci- panhadas pela mãe, avó e raramente pelo pai;
mento dos estrógenos maternos. Com a queda são trazidas devido a sintomas que preocupam e
dos estrógenos maternos circulantes, que ocorre alarmam mais os adultos do que elas mesmas. Já
entre o décimo e o trigésimo dia pós-natal, a vul- as “adolescentes tardias” menos freqüentemen-
va adquire características próprias que se man- te se apresentam acompanhadas da mãe; geral-
têm até os 7 – 8 anos, quando começam a apare- mente comparecem à consulta com amigas ou
cer os primeiros sinais de maturação sexual. sozinhas. O exame ginecológico da adolescente
A coalescência de pequenos lábios é mais até a poucos anos, não era uma rotina, como na
freqüente nessa faixa etária; seu tratamento deve mulher adulta, mas atualmente é solicitado com
ser apenas com cremes tópicos por um curto pe- maior freqüência principalmente por meninas
ríodo de tempo; deve-se evitar manobras brus- sexualmente ativas ou que pretendem iniciar a
cas e bisturi para “abrir” a vulva, pois isso pode atividade sexual, com o objetivo de que lhes in-

449
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

diquem um método contraceptivo ou para o con- idade da menarca da mãe. Entre os antecedentes
trole de seu uso. Nesses casos, geralmente estão pessoais, deve-se indagar sobre as condições do
acompanhadas pelo namorado ou uma amiga. parto, medicações utilizadas pela mãe durante a
Os principais motivos de consulta das jo- gestação da adolescente, características do cres-
vens que se encontram no período da pré ou da cimento nas distintas idades, afecções que ocor-
pós menarca são: leucorréia suspeita de doença reram, tendências para hemorragias, alterações
sexualmente transmissível (DST), atraso ou pre- do trato urinário, entre outras. Nas adolescentes
cocidade na menarca, falta de desenvolvimento maiores, é necessário averiguar a cronologia no
dos caracteres sexuais secundários, anomalia do desenvolvimento dos caracteres sexuais secun-
desenvolvimento das mamas, menstruações irre- dários, idade da menarca e características dos ci-
gulares, síndrome pré-menstrual, dismenorréia, clos subseqüentes. Deve-se considerar também
acne, hirsutismo, desejo de orientação sexual e alterações recentes do peso e investigar suas
de informações sobre métodos contraceptivos, causas, bem como medicamentos utilizados. Se
suspeita de gravidez, alterações morfológicas a paciente já iniciou a atividade sexual, procurar
da genitália externa, lesões traumáticas, mas- saber sobre a idade do início, o uso de métodos
topatias e alterações de conduta. Um dos seus contraceptivos, possível gravidez e abortamen-
maiores temores é a gravidez, frente à grande to. O procedimento para a realização do exame
irregularidade do ciclo menstrual nessa faixa segue as normas da faixa etária anterior; sempre
etária; é de suma importância orientar a adoles- a paciente deverá ser esclarecida sobre as etapas
cente sobre como deve ocorrer a normalização da avaliação clínica que se submeterá.
do período menstrual. • Exame Físico Geral: É importante a avalia-
Quando interrogamos sobre o motivo da ção dos dados antropométricos, ectoscopia
consulta, devemos diferenciar o real e o aparen- bem como do estado geral e peso, com a fina-
te e estar preparados para receber a “paramen- lidade de verificar se existe obesidade ou ema-
sagem”, ou seja, a causa real da consulta, que grecimento excessivos. Tais condições devem
em alguns casos pode estar oculta de maneira ser analisadas com atenção principalmente
consciente ou inconsciente. Quando a adoles- quando a queixa é de retardo da menarca ou
cente se apresenta acompanhada pela mãe, às de amenorréia secundária. Particular impor-
vezes se torna mais difícil o diálogo; devemos, tância deve ser dada à presença de hirsutismo
na medida do possível, afastar a acompanhante e às fases de desenvolvimento das mamas e
da sala; haverá um grande enriquecimento no dos pêlos pubianos (critérios de Tanner).
relacionamento médico-paciente, e o diálogo • Exame das Mamas: Realiza-se a inspeção,
será mais verdadeiro. observando-se o desenvolvimento das ma-
No atendimento às pacientes pré-pube- mas, o número de glândulas mamárias e papi-
rais, aproveitamos o momento da entrevista para las, eventuais deformidades e as condições de
orientar sobre a fisiologia do aparelho genital, a revestimento cutâneo. A assimetria mamária
anatomia humana e a higiene corporal. Na con- será avaliada medindo-se as mamas. É válido
sulta de adolescentes tardias, também são váli- orientar a paciente quanto ao auto-exame e
das essas informações, além de orientação sobre sua importância na prevenção.
condutas sexuais, riscos a que se encontram ex- - Exame Abdomimal: As técnicas relaciona-
postas e utilização de métodos contraceptivos. das com a inspeção e palpação do abdômen
Durante a anamnese, é importante investi- não diferem das utilizadas no período da
gar a estatura familiar, a presença de hirsutismo, infância, mas a colaboração dos adolescen-
as características do ciclo menstrual materno e a tes comumente é maior. Deve-se procurar

450
Capítulo 46 • Abordagem ginecológica da criança e do adolescente – principais patologias

pela presença de áreas dolorosas, hérnias Bibliografia


ou até mesmo massas tumorais.
- Exame Ginecológico: Da mesma maneira Andrade HHSM, Magalhães MLC. Abordagem gi-
que as crianças, a maioria das adolescentes necológica da criança e do adolescente. In: Maga-
sente temor em relação ao exame gineco- lhães MLC, Andrade HHSM. Ginecologia infanto
lógico, particularmente aquelas que se en- juvenil. Rio de Janeiro: Medsi; 1998. p. 43-5.
contram na pré-menarca e nunca foram ao
Huffman JW, Dewhurst CJ, Capraro VJ. The gy-
ginecologista. A freqüente preocupação dos necology of childhood and adolescence. 2. ed. Phi-
familiares quanto ao risco da perda da vir- ladelphia: Saunders; 1981. Chapt. 3: Examination
gindade deve ser desfeita através de infor- of the newborn.
mações claras e simples.
La Cruz BS, Perez, MM. Anatomía de los genita-
les en la niña. In: La Cruz BS. Ginecologia infan-
Após os exames físico e ginecológico, o
to-juvenil. Caracas: Ateproca; 1997. p. 23-9.
médico deve discutir a sintomatologia e os acha-
dos do exame, com detalhes. É essencial que a Magalhães MLC, Reis JTL. Compêndio de gine-
cologia infanto-juvenil: diagnóstico e tratamento.
paciente seja tratada como uma adulta capaz de
Rio de Janeiro: Medsi; 2003. p. 53-67.
compreender as explicações. É extremamente
importante para a paciente que o médico e sua Magalhães MLC. Exame ginecológico na adoles-
mãe não tenham nenhum segredo para com ela, cência. In: Magalhães MLC, Andrade HHSM.
e que informações confidenciais não sejam di- Ginecologia infanto juvenil. Rio de Janeiro: Med-
vulgadas à mãe. si; 1998. p. 59-65.
Os profissionais que se propõem a traba- Magalhães MLC. Exame ginecológico na infância.
lhar com a ginecologia infanto-juvenil nunca In: Magalhães MLC, Andrade HHSM. Ginecolo-
podem esquecer que ela é parte importante da gia infanto juvenil. Rio de Janeiro: Medsi; 1998.
semiologia gineco-obstétrica, mas, adquire ca- p. 53-8.
racterísticas próprias, relacionadas com as diver- Magalhães MLC. Exame ginecológico na neonata.
sas ginecopatias e suas manifestações somáticas, In: Magalhães MLC, Andrade HHSM. Ginecolo-
que podem se apresentar nas diferentes etapas gia infanto juvenil. Rio de Janeiro: Medsi; 1998.
do desenvolvimento da menina (recém-nascida, p. 47-51.
infância e adolescência. Piato S. Ginecologia da infância e adolescência.
São Paulo: Atheneu; 1991. Cap. 2: Fisiologia e de-
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Sanfilippo JS, Muran D, Lee PA, Dewhurst J. Pe-
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In: Bankowski BJ, Hearne AE, Lambrou NC, Fox
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451
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

med; 2006.
Sousa MCB, Henrique CA, Canella PRB, Si-
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puberal e da adolescência.: rotina do Instituto
de Ginecologia da UFRJ. 4. ed. Rio de Janeiro:
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Medicina da Universidade do Chile; 2006. (mó-
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Buenos Aires: Medica Panamericana; 1987. Cap.
2: Examen en la recién nascida.
Zegueir BK. Ginecologia infanto-juvenil. 2. ed.
Buenos Aires: Medica Panamericana; 1987. Cap.
3: Examen en la primera y segunda infancia.
Zegueir BK. Ginecologia infanto-juvenil. 2. ed.
Buenos Aires: Medica Panamericana; 1987. Cap.
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Zeiguer NJ, Zeiguer BK. Vulva, vagina y cuello:
infancia y adolescencia: atlas color.: casos clini-
cos. Buenos Aires: Medica Panamericana; 1996.
Cap.1: Examen ginecologico: aspectos normales.

452
Capítulo 47
Prevenção do Trabalho Infantil uma oficina mecânica. No final de semana vende pi-
ana lúcia de alMeida raMalho colé na praia do Futuro. É uma criança muito retraí-
João JoaquiM Freitas do aMaral da e às vezes chora à noite, sem motivo aparente. Tem
poucos amigos, pois não tem tempo para brincar.

• Qual é o principal problema dessa criança?


• Quais são os fatores de risco associados?
• Qual é a conduta frente a esse problema?

Objetivos de aprendizagem
Busca de soluções para o problema
• Nível de Conhecimentos
- Descrever o processo do trabalho infantil
na criança e no adolescente. Diagnóstico
- Reconhecer os mecanismos social e cultu-
ral do trabalho infantil. É importante o reconhecimento, pelo pro-
- Identificar as formas de proteção através do fissional de saúde, das situações de exploração
Estatuto da Criança e Adolescente. do trabalho infanto-juvenil. Segundo a Delega-
cia do Trabalho (DRT), as formas de trabalhos
• Nível de Habilidades se classificam como4:
- Interpretar as diferentes formas de traba- • Trabalho insalubre: é o trabalho realizado
lho infantil. em condições que expõem o trabalhador a
- Aplicar a prevenção na área do trabalho agentes nocivos à saúde. Exemplo: trabalho
infantil. com agrotóxicos, com ruídos excessivos e
- Tratar, quando for necessário, as crianças com solventes.
com distúrbios decorrentes do trabalho. • Trabalho perigoso: é o trabalho realizado em
• Nível de Atitudes contato com inflamáveis, explosivos, ener-
- Encaminhar as crianças e adolescentes víti- gia elétrica ou qualquer outro que coloque
mas de trabalho infantil. em risco a integridade física do trabalhador.
- Valorizar o estatuto da Criança e Adoles- Exemplo: trabalho em postos de gasolina, re-
cente para prevenir o trabalho infantil. venda de gás e instalações elétricas.
• Trabalho penoso: é o trabalho realizado em
Caso Clínico condições que exigem maior esforço físico
(acima de 20 kg para o trabalho contínuo e 25
Adolescente, 12 anos, pai desempregado, mãe Kg para o trabalho ocasional) ou que se realize
lavadeira, morando no Pirambu. A renda familiar é em condições excessivamente desagradáveis.
de aproximadamente um salário mínimo, dependendo
do trabalho da mãe. Tem mais dois irmãos menores. Considera-se prejudicial à moralidade do
Está cursando atualmente a 3ª série, tendo repetido menor o trabalho4:
o ano três vezes. Começou há trabalhar a dois meses • Prestado, de qualquer modo, em teatros de
para ajudar no sustento da família como ajudante em revista, cinemas, boates, cassinos, cabarés,

453
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

dancings e estabelecimentos análogos. do Trabalho Infantil (IPEC) adotado pelo Brasil.


• Em empresas circenses, em função de acroba- Além disso, a Convenção Internacional dos Di-
ta, saltimbanco, ginasta e outras semelhantes. reitos da Criança, do qual o Brasil é signatário,
• De produção, composição, entrega ou venda adotou normas de proteção à criança.
de escritos, impressos, cartazes, desenhos, No Brasil, a Constituição Federal de 1988
gravuras, pinturas, emblemas, imagens e trouxe profundas mudanças no marco legal do
quaisquer outros objetos que possam, a juízo atendimento a crianças e adolescentes. Saímos
da autoridade competente, prejudicar sua for- dos conceitos assistencialistas, discriminatórios
mação moral. e excludentes do antigo código de menores para
• Consistente na venda, a varejo, de bebidas al- a moderna doutrina da proteção integral, que
coólicas. considera a criança e o adolescente como um su-
jeito titular de direitos civis, humanos e sociais2.
A DRT junto aos órgãos públicos preocu- Esta mudança de marco legal está consubs-
pados com o trabalho infantil no Estado do Cea- tanciada na Constituição Federal e regulamen-
rá identificou focos específicos destas situações tada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
de violência5. As principais atividades identifi- (ECA) e outras normas legais, em especial a CLT
cadas através de denúncias e de informação dos quanto à proteção do trabalhador adolescente e à
órgãos parceiros foram: coleta de lixo reciclá- aprendizagem e a Lei de Diretrizes e Bases da
vel em lixões e nas ruas (economia informal); Educação (LDB) quanto ao ensino regular e pro-
venda ambulante em praças e feiras (economia fissionalizante e em outras legislações esparsas1.
informal); atividade de panfletagem, inclusive Para garantir a efetividade destes direitos
em campanhas políticas; venda de jornais, re- o ECA criou o “Sistema de Garantia de Di-
vistas, livros e papelaria; fabricação de artefatos reitos” que se constitui numa “Rede” integrada
de palha; coleta de castanha de caju (agricul- por diversos entes públicos e privados, governa-
tura); pesca artesanal; agricultura canavieira; mentais e não governamentais, que devem agir
caieiras; lavagem de automóveis; produção de articuladamente cada qual dentro de sua compe-
farinha de mandioca; cerâmica e olarias; salinas tência legal e “monitorados” e “controlados” pelo
e rendeiras. controle social dos conselhos de direitos, atuan-
O combate ao trabalho infanto-juvenil, tes junto às três esferas de poder. O CONAN-
aqui considerado como uma forma de violên- DA é o representante junto à esfera federativa,
cia, em todas as suas manifestações, bem como os Conselhos Estaduais de Direito junto à esfera
a proteção ao trabalhador adolescente das si- Estadual e os Conselhos Municipais de Direitos
tuações de risco por ele proporcionadas, é um junto à municipal2.
desafio a ser enfrentado não só pelo governo As normas de proteção a crianças e adoles-
como pela sociedade, notadamente pelos que centes previstas no ECA dotam de instrumen-
atendem a esse segmento da população nas tos específicos e eficientes o Conselho Tutelar,
questões da saúde3. o Ministério Público e a Autoridade Judiciária
para o cerceamento da violação e a restituição
dos direitos violados.
Aspectos Legais A obrigação de garantir os direitos da
criança e do adolescente é responsabilidade da
Em nível mundial a Organização Interna- família, da sociedade, aqui se destacando o pa-
cional do Trabalho (OIT) implantou nos anos 90 pel importante dos profissionais de saúde, con-
um Programa Internacional para a Eliminação siderando-se as peculiaridades do seu trabalho,

454
Capítulo 47 • Prevenção do Trabalho Infantil

e do Estado. Todos os envolvidos na defesa dos Reflexão e avaliação do problema


direitos deste segmento da população pertencem
a esta “REDE”2. É um problema complexo, associado à po-
É importante termos conhecimento do breza e à desigualdade social, que viola direitos
que diz a lei a respeito da questão do trabalho constitucionalmente assegurados. Pode-se consi-
infantil. A Constituição Federal em seu 7º artigo derar ainda como um reforço à referida desigual-
reporta-se ao tema: dade, vez que apenas as crianças pobres trabalham,
• XXXIII: Proibição de trabalho noturno, perigo- sendo-lhes retirada a oportunidade de estudar,
so ou insalubre a menores de dezoito e de qual- progredir e romper o ciclo vicioso da ignorância e
quer trabalho a menores de 16 anos, salvo na miséria vivenciado por seus familiares.
condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. Muitas de nossas crianças e adolescentes
são obrigadas a trabalhar por falta de alimenta-
O ECA regulamenta a questão1: ção em casa ou pelos pais não atenderem as suas
Cap. V – Do direito à profissionalização e necessidades. Associa-se a isso a ineficiência do
à proteção no trabalho. sistema educacional, provocando desinteresse
• Art. 60 – É proibido qualquer trabalho a me- e elevadas taxas de evasão. A cultura de que o
nores de quatorze anos de idade, salvo na trabalho infantil é algo salutar está ainda muito
condição de aprendiz. presente no nosso povo razão pela qual o núme-
• Art. 62 – Considera-se aprendizagem a forma- ro de notificações às autoridades competentes
ção técnico-profissional ministrada segundo são baixos. Tudo isso ocorre em detrimento do
as diretrizes e bases da legislação de educação seu desenvolvimento físico, mental, psíquico,
em vigor. moral e social.
• Art. 63 – A formação técnico-profissional São muitos e graves os prejuízos advindos
obedecerá aos seguintes princípios: do trabalho precoce, podendo ser enumerados:
- I: garantia de acesso e freqüência obrigató- fracasso ou evasão escolar, deformação da es-
ria ao ensino regular. trutura óssea, mutilações, outras morbidades e
- II: atividade compatível com o desenvolvi- mortes por acidentes, perda da alegria inerente
mento da adolescente. às crianças devido ao stress, fadiga, depressão e
- III: horário especial para o exercício das perda da auto-estima, falta de perspectivas, redu-
atividades. ção dos postos de trabalho para adultos, em face
• Art. 66 - Ao adolescente empregado, apren- da exploração de uma mão-de-obra barata, força
diz, em regime familiar de trabalho, aluno de de trabalho desqualificada, dentre tantos outros.
escola técnica, assistido em entidade gover- Existem mitos e realidades no tocante à
namental ou não-governamental, é vedado discussão do trabalho infantil:
trabalho: • O trabalho da criança é necessário para aju-
- I: noturnos, realizado entre as vinte e duas dar a família a sobreviver. A família é quem
horas de um dia e as cinco horas do dia se- deve amparar a criança. Quando incapaz de
guinte; cumprir seu papel, cabe ao Estado suprir a
- II: perigoso, insalubre ou penoso; função, não à criança.
- III: realizado em locais prejudiciais à sua • A criança que trabalha aprende uma profis-
formação e ao seu desenvolvimento físico, são. Através da escola é que a criança desen-
psíquico, moral e social; volve suas potencialidades e prepara-se para o
- IV: realizado em horários e locais que não mercado de trabalho.
permitam a freqüência à escola. • A criança que tem uma profissão tem um

455
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

futuro garantido. A inserção precoce da Revisão ou síntese do problema


criança no mercado de trabalho ocasiona a
falta de perspectivas, devido, sobretudo à bai- O trabalho de crianças e adolescentes é
xa escolaridade associada. uma forma de violência e constitui um impor-
• É melhor trabalhar que ficar nas ruas rou- tante problema com repercussões no desenvol-
bando ou se drogando. O trabalho infantil vimento. O combate a esse trabalho é um desafio
também marginaliza, pois tira da criança o a ser enfrentado pelo governo e pela sociedade.
direto de viver sua infância, de brincar, de es- Existem leis de proteção da Organização
tudar, de conviver com sua família, enfim, o Internacional do Trabalho (OIT), Convenção
direito ao mínimo de dignidade. Internacional dos Direitos da Criança, Consti-
tuição Federal, Estatuto da Criança e do Ado-
lescente que trouxeram profundas mudanças
Que condutas tomar? no marco legal do atendimento a crianças e
adolescentes.
O profissional de saúde, ao deparar-se Frente ao trabalho infantil o profissio-
no seu trabalho cotidiano com situações de sus- nal de saúde deve atender os casos clínicos e/
peita ou confirmação de exploração do trabalho ou cirúrgicos, encaminhar para seguimento pela
infanto-juvenil, deve inicialmente proceder ao equipe multidisciplinar e notificar às autorida-
atendimento clínico e/ou cirúrgico de urgência des competentes: Conselho Tutelar e/ou o Mi-
que se fizer necessário, em decorrência de lesões nistério Público e/ou a Autoridade Judiciária da
advindas desta prática, encaminhar para segui- localidade.
mento pela equipe multidisciplinar os casos in- O diagnóstico, localização, identificação e
dicados, anotar em prontuários ambulatoriais afastamento de determinada criança/adolescente
ou hospitalares o atendimento com informações de um local ou atividade laboral proibida, cons-
completas para que se possa responder, poste- titui o primeiro passo de uma série de ações que
riormente, a indagações da justiça e notificar às necessitam ser deflagradas por diversos órgãos
autoridades competentes: Conselho Tutelar e/ componentes da “REDE” de proteção anterior-
ou o Ministério Público e/ou a Autoridade Ju- mente mencionada, para efetivamente alterar a
diciária da localidade. As Delegacias Regionais sua realidade e garantir-lhe oportunidades mí-
do Trabalho coíbem esta exploração através de nimas de ascensão social e promoção intelectual,
ações fiscais, orientações e articulação com par- apregoadas pelo princípio da proteção integral.
cerias e devem ser também contactadas para no- Sem a intervenção coordenada, articulada
tificação destes casos. e em sinergia entre todos, o mero afastamento
É notório que o mero afastamento da do trabalho não produzirá resultados efetivos,
criança e do adolescente de determinado local causando desestímulo e desânimo aos agentes
onde exerce trabalho proibido, não produz por envolvidos e descrédito por parte da sociedade.
si só efetividade quanto à garantia do não retor- É necessária, portanto, uma conscientiza-
no ao trabalho e a garantia dos direitos constitu- ção da sociedade como um todo, de forma a não
cionalmente previstos. se admitir, a qualquer pretexto, a exploração do
trabalho infanto-juvenil.

456
Capítulo 47 • Prevenção do Trabalho Infantil

Referências

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8.069/90 de 13 de julho de 1990. Brasília (DF):
Ministério da Justiça, 1990.
2. Lima JTM. Competências, prerrogativas, de-
veres, monitoramento e controle das entidades
componentes da “rede de proteção integral a
crianças e adolescentes” no Brasil. Brasília (DF):
Ministério do Trabalho e Emprego; 2006.
3. Ministério da Saúde. Notificação de maus-tratos
contra crianças e adolescentes pelos profissio-
nais de saúde: um passo a mais na cidadania em
Saúde. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002.
(Série A nº 167).
4. Ministério do Trabalho e Emprego, Delegacia
Regional do Trabalho no Ceará, Seção de Inspe-
ção do Trabalho e do Grupo Especial de Combate
ao Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador
Adolescente. Diga não ao trabalho infantil. Bra-
sília (DF); 2001.
5. Ministério do Trabalho e Emprego. Delegacia
Regional do Trabalho no Ceará, Núcleo de Apoio
a Programas Especiais. Diagnóstico do trabalho
infantil no Ceará. Brasília (DF); 2006.

457
Capítulo 48
Prevenção de Acidentes os afazeres domésticos em sua casa. Quando sai para
na Infância trabalhar deixa a filha maior cuidando dos menores.

antônio carvalho da Paixão


João JoaquiM Freitas aMaral • Qual é o principal problema dessa criança?
• Quais são os fatores de risco associados?
• Qual é a conduta frente a esse problema?

Busca de soluções para o problema


Objetivos de aprendizagem
O acidente pode ser definido como um
• Nível de Conhecimentos acontecimento fortuito, independente da von-
- Descrever os diferentes tipos de acidentes tade humana, provocado por uma força exter-
na criança e no adolescente. na que age rapidamente, manifestando-se por
- Reconhecer os mecanismos dos acidentes um dano corporal ou mental. Está implícita, ao
na criança. contrário da violência, a conotação da não in-
- Discutir as estratégias de prevenção dos tencionalidade, mas não de fatalidade, pois os
acidentes na criança. acidentes são causados por fatores reversíveis e
• Nível de Habilidades passíveis de prevenção.
- Aplicar a prevenção de acidentes conforme Os acidentes e violências configuram um
a faixa etária. conjunto de agravos à saúde, que podem ou não
- Tratar quando for necessário, as crianças levar ao óbito, no qual se incluem as causas ditas
vítima de acidentes. acidentais – devidas ao trânsito, trabalho, quedas,
• Nível de Atitudes envenenamentos, afogamentos e outros tipos de
- Encaminhar as crianças e adolescentes víti- acidentes – e as causas intencionais (agressões e le-
mas de acidentes. sões auto provocadas)1. Esse conjunto de eventos é
- Afirmar os procedimentos para prevenção classificado sob a denominação de causas externas.
de acidentes na criança e no adolescente. O acidente caracteriza-se por uma transfe-
rência de energia de um ou mais objetos para a
Caso Clínico vítima, de modo a causar danos. Nesse processo
ocorrem três fases: fase pré-evento na qual as
Criança, 4 anos de idade, deu entrada na condições do ambiente e os fatores de risco são
Emergência Pediátrica do Instituto José Frota com evidenciados; a fase do evento na qual ocorre
um quadro de dor à deglutição após ter ingerido soda o acidente com a liberação de energia; e a fase
cáustica. Ao exame físico observou-se queimadura pós-acidente que está relacionada aos aconte-
oral com intenso edema labial. Feito tratamento emer- cimentos após a liberação de energia. Em todas
gencial. Mora com a mãe, pai, avó e mais 7 irmãos essas fases pode ocorrer a prevenção, com o obje-
em uma casa de quatro cômodos. Pai atualmente de- tivo de eliminar, diminuir ou recuperar a trans-
sempregado e alcoólatra. Mãe trabalha como diarista ferência de energia.
lavando roupa e fazendo trabalho de limpeza. Tra- Os tipos de acidentes estão diretamente
balha um só expediente, pois também tem que fazer relacionados às fases de desenvolvimento. Na

459
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

infância predominam os acidentes domésticos, Reflexão e avaliação do problema


enquanto que nos adolescentes os acidentes de
trânsito, principalmente os atropelamentos têm Os acidentes na infância e adolescência
maior impacto na mortalidade6. constituem atualmente um dos principais pro-
blemas de saúde pública no Brasil, em especial
Faixa etária Tipos de Acidentes Desenvolvimento nas crianças maiores de cinco anos de idade.
• Asfi�ia • Totalmente depen- Enquanto na infância o ambiente doméstico é
• Quedas dente do adulto o principal local onde são gerados esses agra-
• Queimaduras • Segue objeto na
RN a 4 • Into�icações linha média vos, na adolescência, o espaço extra-domiciliar
meses • Afogamento • Eleva a cabeça tem prioridade no acontecimento desses pro-
• Segura objetos
• Sentado sustenta a
blemas. Além disso, esses acidentes causam um
cabeça sofrimento muito grande às famílias e um custo
• Aspiração • Coloca tudo na econômico muito alto ao sistema de saúde, prin-
• Into�icações boca cipalmente nos casos em que deixam seqüelas e
• Traumas em geral • Senta
5 a 10 • Queimadura • Engatinha invalidez na criança2,3,4,5.
meses • Choque elétrico • Fica de pé com Em 2002 no Brasil, do total de óbitos entre
apoio
• Não tem medo de
a população etária entre menor de um ano a 19
animais anos, 22.373 mortes foram causadas por aciden-
• Anteriores + • Fica de pé tes e violência representando 22,2% das mortes
• Acidentes de • Anda ocorridas. Em dois estados do Nordeste, os per-
1 ano
trânsito • Pode subir escadas
• Quedas centuais foram menores; no Ceará ocorreram 226
Anteriores + • Atividade motora mortes perfazendo 14,3% das mortes e em Sergi-
1 a 3 anos
Quedas intensa pe 789 mortes representando 14,7% das mortes.
Mordedura • Empilha objetos
• Tem crises de birra
A partir de cinco anos de idade, ocorre
• Anteriores + • Corre
uma modificação no perfil epidemiológico da
• Acidentes de • Pula morbimortalidade infantil quando os acidentes
3 a 5 anos
trânsito • Começa a vestir-se constituem a principal causa de mortalidade na
• Quedas sozinho
criança, ao invés das doenças perinatais, infec-
• Anteriores + • Conta e inventa
• Acidentes espor- histórias ciosas e parasitárias.
tivos • Gosta de canções Devido a importância desse problema, o
6 a 10 anos • Agressões entre • Corre
Ministério de Saúde adotou em 2001 a “Política
crianças
• Traumatismo Nacional de Redução de Mortalidade por Aci-
dentário dentes e Violência” baseada nas seguintes dire-
• Anteriores + • Mudanças físicas e trizes: promoção da adoção de comportamentos
• Uso de drogas psicológicas
10 a 15 • Armas e violência • Risco de gravidez e de ambientes seguros e saudáveis, monitoriza-
anos e DST ção da ocorrência de acidentes e de violências,
• Tem impulsivi-
sistematização, ampliação e consolidação do
dade
atendimento pré-hospitalar, assistência interdis-
Quadro 1. Tipos de acidentes, conforme fases de desenvolvimento.
ciplinar e intersetorial às vítimas de acidentes
e de violências, estruturação e consolidação do
atendimento voltado à recuperação e à reabilita-
ção, capacitação de recursos humanos e apoio ao
desenvolvimento de estudos e pesquisas.

460
Capítulo 48 • Prevenção de Acidentes na Infância

• Do colo do adulto - manter a criança bem segura.


Quedas e Traumas • Da cama ou berço - ter grades protetoras e observar altura.
• �ebê conforto - utilizar no nível do piso, com cinto de segurança afivelado.
• Pisos, escadas - ter corrimão bilateral, pisos antiderrapante.
• Janelas tipo guilhotina ou basculante - colocar trava de segurança.
• Traumas no mobiliário - evitar móveis de bordas pontiagudas ou cortantes.
• Vidros grandes em portas ou janelas - devem estar identificados.
• Elevadores e escadas rolantes - crianças somente acompanhadas.
• Árvores - evitar a criança subir nas árvores, ser vigilante.
• Parquinhos - observar tipo de brinquedos e utilizar sempre com vigilância.
• Água de banho - testar a temperatura antes do banho, com cotovelo.
• Líquidos ou alimentos quentes - não manusear com a criança no colo.
Queimaduras

• Velas, isqueiros, fósforos - não devem ser manuseados por crianças.


• Ferro de passar e aparelhos eletrodomésticos - impedir o acesso.
• Frasco de álcool e produtos químicos inflamáveis - nunca manter pró�imos a chamas e sempre fora do alcance
das crianças.
• �anhos de sol - antes das 10 e depois das 16 horas.
Afogamento

• �anho - jamais dei�ar a criança sozinha.


• Piscinas, praias, rios, lagos - sempre acompanhada e com vigilância má�ima.
• �aldes, bacias, piscinas de plástico com água - evitar o acesso das crianças e esvaziar após o uso.
• Poços artesianos - manter completamente fechados e fora do alcance.

• Talco - não usar e não dei�ar o recipiente ao alcance da criança.


Asfixia, sufoca-
ções, engasgo

• Cordão ou presilha de chupeta - não devem ser utilizados.


• Sacos plásticos - manter fora do alcance da criança.
• Caroços de frutas, balas, pequenos objetos - sempre fora do alcance.
• Lençóis, mantas, cobertores - sempre presos ao colchão.
• Travesseiros - evitar o seu uso, em especial nos lactentes.
• Dar preferência a produtos químicos cujas embalagens dispõem de tampa de segurança.
• Medicamentos - apenas com orientação médica, sempre fora do alcance, reler a receita antes de administrar à
Intoxicação

criança.
Derivados de petróleo - não armazenar em casa.
• Plantas ornamentais - verificar as tó�icas e evitá-las como: saia branca, comigo ninguém pode, oficial de sala,
pinhão paraguaio.
• Alimentos que podem deteriorar - devem ser conservados em geladeira ou freezer, verificando a validade e
experimentando antes.
Elétricos

• Fios descascados - substituí-los imediatamente.


• Chaves com fusíveis e�postos - substituir por disjuntores.
• Tomadas - sempre que possível, ocultas ou com protetores.
estranhos
Corpos

• Grãos de cereais, chiclete, balas duras, botões, colchetes, tachinhas, pregos, parafusos, agulhas, alfinetes, moe-
das, medalhinhas, nunca ao alcance de crianças, manter em armários fechados.
Brinquedos

• Não devem ser pequenos, não podem destacar pequenas partes, não ter arestas cortantes, nem pontiagudas e
não podem ser facilmente quebráveis. Triciclos e ou bicicleta apenas na época correta com aprendizado seguro
e uso de capacete.
Outras causas de

• Objetos perigosos - facas, furadores, martelos, alicates, chaves de fenda, serra devem ser mantidos sempre
acidentes

fora do alcance da criança. Armas de fogo, punhais, canivetes - devem ser guardadas em locais seguramente
inacessíveis à criança.
• Animais - não manter em casa animais de comportamento sabidamente agressivo ou de grande porte. Manter
rigorosamente em dia a vacinação. Oriente a criança para evitar contato com animais estranhos.

Quadro 2. Medidas de prevenção, conforme tipos de acidentes


Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria/Nestlé Nutrição. Segurança da Criança e do Adolescente. Belo Horizonte, 2003.

461
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Os acidentes domésticos que ocorrem Referências


principalmente com crianças são passíveis de
prevenção por intermédio da orientação fami- 1. Campos JA. Segurança da criança e do adoles-
liar, de alterações físicas do espaço domiciliar e cente: livro de resumo do 68º Curso Nestlé de
da elaboração e/ou cumprimento de leis especí- Atualização em Pediatria. Rio Grande do Sul:
ficas (por exemplo, as relativas a embalagens de Editora; 2003.
2. Maciel ELJ, Serra MCVF. In: Autor. Tratado de
medicamentos, dos frascos de álcool e outras).
queimaduras. Rio de Janeiro: Atheneu; 2004.
3. Mackeenzie EJ. Epidemiology of injuries: cur-
rent trends and future challenges. Epidemiol
Revisão ou síntese do problema
Rev 2000; 22:112-119.
4. Reis AG, Waksman RD, Gikas RMC. Acidentes
As crianças freqüentemente estão expos- por submersão e asfixia. In: Sociedade de Pedia-
tas às situações de risco, seja pela inadequação tria de São Paulo. Segurança na infância e ado-
do ambiente ou por desinformação e negligên- lescência. São Paulo: Atheneu; 2003. p. 119-36.
cia dos pais ou responsáveis. Desta forma no (Série Atualizações Pediátricas).
atendimento da criança e baseado na escala de 5. Rivara FP. Prevention injuries to children and
desenvolvimento, deve-se antecipar precoce- adolescents. In. Prev. 2002;8 (4 Suppl):IV5-IV8.
mente com os pais ou responsáveis algumas eta- adolescents. Inj. Prev. 2002;8 (4 Suppl):IV5-IV8.
pas deste processo fazendo a correlação direta 6. Sampaio MJAQ, Amorim MLP, Pessoa ZFC.
com as possíveis situações de risco, inerentes Acidentes comuns na infância e adolescência. In:
Figueira F. Pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara
a cada faixa etária, visando criar um ambiente
Koogan; 2004.
seguro no qual a criança possa explorar e desen-
volver suas habilidades, sem que isto a coloque
em situação de perigo.

462
Capítulo 49
Assistência multidisciplinar Um outro ponto importante sobre a vio-
às vítimas de violência lência é o entendimento acerca do seu nível de
gravidade, o qual toma como padrão a cultura
Maria de lourdes caltaBiano MaGalhães
Maria de FátiMa raBelo Gadelha de uma determinada sociedade. Essa cultura é
luciana saMPaio dióGenes roliM refletida em normas, regras que conduzem as
veranísia daMasceno rocha atitudes do relacionamento entre indivíduos.
rosane Morais Falcão queiroz Diante do exposto e nos referindo ao cor-
rente século, observamos como o aumento da
violência contra crianças e adolescentes é pre-

A o nos indagarmos sobre o que é violência,


logo nos reportamos às agressões ocor-
ridas à integridade física humana, ou ainda, à
ocupante para o desenvolvimento saudável de
nossa sociedade. Diz-se de uma forma simpló-
ria que a violência é cultural, disto não temos
criminalidade corriqueira que acontece, prin- dúvidas, assim também, como não duvidamos
cipalmente, nos centros urbanos, violências da moral social existente na sociedade a qual es-
estas, visíveis e sensíveis ao homem, que toma tamos inserida e que não nos permite vitimizar
conhecimento através de noticiários televisivos uma criança ou um adolescente. Estes têm seus
e impressos, relatos de amigos e parentes, ou direitos assegurados nacionalmente e interna-
ainda, de maneira empírica. Porém, a violência cionalmente.
não se restringe a isso. Ela tem uma dimensão A Lei 8.069, sancionada em 1990 no Bra-
exorbitante que está muito além do exposto. Re- sil, dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Ado-
ferindo-nos a esse fenômeno em suas diversas lescente – ECA1 e tem como doutrina a proteção
formas podemos dizer que ele não é preconcei- integral. A criança e o adolescente ganham um
tuoso, isto é, é indiferente ao espaço geográfi- aliado no combate aos maus-tratos cometidos
co, tempo, raça, classe social, idade, para que se contra estes. Sendo assim, em seu art. 4 está a
possa manifestar. No entanto, só podemos con- seguinte redação:
cordar com tal afirmação ao entendermos a vio-
“É dever da família, da comunidade, da socieda-
lência em sua totalidade, compreendendo que de em geral e do Poder Público assegurar, com
sua manifestação se apresenta através de diver- absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
sas facetas: física, cultural, psicológica, simbóli- referentes à vida, à saúde, à alimentação, à edu-
cação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
ca, sexual dentre outras. Ao contrário do que se à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
possa pensar, a violência sempre esteve presente à convivência familiar e comunitária.”
na história das relações sociais do mundo, ten-
do em vista que ela é parte integrante do ser hu- Esta lei responsabiliza família, sociedade
mano, assim como a felicidade, a qual também e Estado na proteção dos direitos da criança e do
se apresenta em diversos aspectos, muitas vezes adolescente.
imperceptíveis. A partir desse “dever moral” e legal dado
Sendo considerada como um fato social, às essas diversas esferas, em assegurar o desen-
podemos afirmar que a violência “está em cada volvimento sadio de crianças e adolescentes, foi
parte porque está no todo, o que é diferente de estar refletido sobre a contradição do ato da violência
no todo por estar nas partes”, reafirmando assim, a sofrida por estes, seja física, psicológica, sexual
conduta humana coletiva como violenta. dentre outras, cometida por quem deveria pro-

463
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

tegê-los, principalmente, quando este agressor é mas de violência, e é justamente por estar sendo
um membro da família da vítima. agredido por um membro da família que os da-
Atualmente, as formas de manifestações nos na personalidade infantil são irreversíveis.
da violência como um todo, alcançam um amplo A violência contra crianças e adolescentes,
leque de comportamentos, relações e práticas. denominada por alguns como MAUS-TRATOS,
Essas formas plurais e multifacetadas foram ao pode ser definida de diversas formas. Algumas
longo da história, sendo formulados e reformu- definições enfatizam comportamentos ou ações
lados, de modo que qualquer compreensão mais dos adultos, enquanto outras consideram que
abrangente do fenômeno hoje, requer uma apro- ocorre violência quando há danos para a criança
ximação com as diferentes correntes teóricas, o ou adolescente.
que enriquece o trabalho multiprofissional. Optamos por definir MAUS-TRATOS
“Para a psicanálise, a agressão é um com- como atos de ação (físicos, psicológicos e sexu-
ponente de pulsão sexual, de afirmação e conser- ais) ou de omissão (negligência) praticados con-
vação do eu. É um modo da pulsão de morte, não tra crianças e adolescentes sendo capazes de cau-
introjetada como culpa, ou sublimada, ser orien- sar danos físicos, sexuais e/ou emocionais. Esses
tada para um objeto fora da psique, como um maus-tratos podem ocorrer isolados, embora,
recurso à força ou à coerção, de modo a causar frequentemente estejam associados.
dano físico, psicológico e ético. Para esta abor- Tipos de MAUS-TRATOS segundo a
dagem da psicologia, o fenômeno da violência é Classificação Internacional de Doenças, 10ª re-
explicado como o emprego desejado da agressi- visão, CID 10, com seus respectivos códigos: T74
vidade com fins destrutivos, seja como uma for- negligência e abandono; T74.1 servícias físicas;
ma de desrespeito e de negação do outro”. T74.2 abuso sexual (exploração sexual); T74.3 abu-
As explicações psicológicas apontam no so psicológico;T74.8 Síndromes específicas de
campo das ações para práticas que considerem: maus tratos (S. de Munchausem).
o processo de construção da individualidade, da A violência nas suas mais diversas formas
identidade social e da sociabilidade. Existem e manifestações não pode continuar sendo vista
três dimensões da violência2. pela sociedade e, principalmente por nós, profis-
• Econômica e Social: forma de violência que sionais de saúde, como uma questão “dos outros”,
se manifesta e se expressa no plano material e de responsabilidade policial, uma lastimável fa-
da reprodução do homem; talidade... A participação da saúde no enfrenta-
• Simbólica: forma de violência que se expres- mento deste problema é um elo de fundamental
sa no plano psíquico, da subjetividade, dos importância para que se possa desencadear os
afetos, das idéias, dos valores, das relações in- mecanismos de proteção e de tratamento.
terpessoais e sociais; O hospital é o local para onde se dirigem as
• Corporal: forma de violência que se apresen- crianças e adolescentes com lesões, às vezes gra-
ta no plano físico (agressões físicas, estupro, ves, e em risco de vida e é o espaço em que se pode
abuso sexual, falta de respeito, sexualidade atuar para romper o círculo desta violência.
precoce). O atendimento requer a atenção de uma
equipe multiprofissional, em que os papéis e
Os adultos com descontroles emocionais, responsabilidade de cada membro da equipe de-
covardemente violentam a integridade física e vem estar bem definidos, conforme a estrutura
psicológica da criança por atos arbitrários e pela disponível no serviço. O registro e a notificação
fragilidade física da mesma. A violência psicoló- dos casos também devem estar sistematizados
gica é a única que está presente em todas as for- na divisão de tarefas da equipe.

464
Capítulo 49 • Assistência multidisciplinar às vítimas de violência

Segundo o Ministério da Saúde: “O ide- Legal e as crianças, após constatação de lesões


al é que esse tipo de atendimento seja prestado como hematomas e equimoses por todo o corpo,
por equipe multiprofissional, composta por mé- foram afastadas do núcleo familiar e encaminha-
dicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes so- das para um abrigo estadual.
ciais. Entretanto, a falta de um dos profissionais Retomou-se o trabalho psicossocial com
da equipe – com exceção do(a) médico(a) – não os pais e com as crianças que após um período
inviabiliza o atendimento.” retornaram para casa. Porém, a situação persistiu
A relação do profissional com a pessoa que e a genitora, que também sofria violência física e
acompanha a criança ou o/a adolescente deve ser era ameaçada pelo marido para nada revelar, não
firme, sincera e, ao mesmo tempo, demonstrar agüentando toda pressão, realizou nova denún-
a sensibilidade de que esse tipo de problema re- cia contando a verdadeira versão dos fatos.
quer; acolher com carinho e respeito, evitando-
se a discriminação de qualquer natureza. • Denúncia: As crianças além da violência física,
Diante de qualquer tipo de maus-tratos, todas também sofriam violência sexual; as de
todos os dados obtidos a respeito da vítima (re- menor idade com atos libidinosos, uma do sexo
latos sobre o episódio, exame físico e exames masculino, atentado violento ao pudor e 2 do
complementares) devem ser cuidadosamente sexo feminino foram estupradas. Quase sempre
registrados no prontuário, uma vez que a justiça a genitora era obrigada a assistir as agressões.
pode solicitar cópia da documentação da unida-
de de saúde. Frente aos novos fatos, as crianças foram
Como os casos de violência estão cada retiradas do seio da família e retornaram para o
vez mais evidentes, o profissional tem que ter abrigo porque os parentes não tinham condições
a perspicácia para observar o comportamento financeiras de recebê-las e também estavam sen-
da criança e/ou da/o adolescente, prestar muita do ameaçados pelo agressor.
atenção no que ele diz ou quer dizer, acreditar Após inquérito policial o pai biológico foi
no que é relatado e estar ciente da rede de aten- preso e as crianças retornaram para o convívio
ção às vítimas para lhes dar o encaminhamento da genitora.
e a assistência necessária.
• Exemplo de caso denúncia: Telefonema • Análise e acompanhamento da denúncia:
anônimo denunciando agressão física do pai Como na maioria dos casos, a violência foi
biológico contra os seus 6 filhos. intrafamiliar e o agressor, o pai biológico; as
• História familiar e evolução do Caso: Na crianças sofreram violência física, psicológica
averiguação da denúncia constatou-se que a e sexual. A negligência também está presente,
família era de classe social média onde o pai pois a mãe biológica por estar sofrendo ame-
possuía nível superior e mãe nível médio e ti- aça do marido, omitiu a verdade causando
nham 6 filhos com idade entre 3 e 10 anos, grande sofrimento aos filhos que não tinham
sendo 3 do sexo feminino e 3 do masculino. um ambiente familiar adequado e não fre-
qüentavam a escola com assiduidade.
O atendimento foi iniciado com orien-
tação psicossocial para a família, mas como as Os profissionais de saúde que trabalham
agressões físicas continuaram, inclusive com o na Atenção Primária, por estarem em contato
conhecimento da mãe, realizou-se o encaminha- direto com a família, têm grande oportunidade
mento da denúncia à Delegacia Especializada, de fazer um diagnóstico precoce de maus-tratos,
exame de corpo de delito no Instituto Médico evitando assim as revitimizações.

465
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Atendimento Multidisciplinar e competência • Exames Laboratoriais: Existem exames que


dos membros da Rede de atenção às Vítimas devem ser realizados em caso de violência se-
de Violência xual; o profissional pode não ter condições de
realizá-lo, mas quando possível poderá enca-
• Consulta Médica: O profissional deve rea- minhar a um centro médico onde possa ser
lizar a anamnese e o exame físico de forma realizado. Solicitar a sorologia para sífilis, he-
cuidadosa. No caso de crianças, o exame de- patites B e C, anti – HIV e teste de gravidez,
verá ser realizado, se possível, na presença do Exames necessários para avaliação do estado
responsável. As crianças maiores e adolescen- anterior ao episódio de violência. A sorologia
tes devem ser orientadas previamente sobre anti - HIV deve ser feita após o compromisso
todos os procedimentos que serão realizados. verbal no momento do atendimento de emer-
- Anamnese detalhada: a identificação dos gência. Todos esses procedimentos devem ser
casos pode ser feita através do relato da registrados detalhadamente no prontuário.
vítima (no caso de crianças, adolescentes
e pessoas com deficiência cognitiva, por O acompanhamento dessas patologias
familiares ou responsáveis) ou por evidên- deve ser realizado da seguinte maneira:
cias de lesões genitais durante exame clí- - Sorologia para sífilis: repetir com 6 se-
nico. Nessas circunstâncias, a abordagem manas e com 3 meses
profissional é facilitada. No entanto, os re- - HIV: 6 semanas, 3 e 6 meses
latos espontâneos e os sinais de violência - Hepatites B e C: 6 meses, conforme o
não estão evidentes em um número expres- resultado dos primeiros exames
sivo de casos. - Solicitar também, caso seja iniciada
- Exame físico completo com especial terapia antiretroviral, transaminases e
atenção para as áreas mais comumente hemograma (repetir após 2 semanas),
envolvidas em atividades sexuais: boca, cultura de secreção endocervical para
mamas, genitais, região perineal, nádegas e pesquisa de gonococo e clamídia, além
ânus. Importante descrever detalhadamen- de tipagem sanguínea.
te as lesões, inclusive da genitália e ânus.
- Exame ginecológico: usar sempre um par A profilaxia das DSTs deve ser iniciada
de luvas, pois o fato de tocar na/o cliente ou até 72 horas após a violência.
no material de coleta de exames com a mão • Contracepção de Emergência: Levando-se
pode deixar DNA do(a) médico(a) no mate- em conta que o risco de gestação advinda de
rial colhido (luvas sem talco e especulo sem estupro oscila de 4% a 7%, caso estejam expos-
lubrificante). tas à gravidez, as pacientes deverão receber
progestagênio. Trabalhos recentes têm de-
O médico deve ser criterioso, com descri- monstrado a mesma eficácia do levonorgestrel
ção minuciosa na ficha de atendimento/pron- administrado em dose única oral de 1,5mg (2
tuário, das lesões encontradas; se possível com comprimidos de 0,75mg). O levanorgestrel –
desenhos. Não se recomenda o exame de toque 0,75mg na dose de 2 comprimidos, um deve
bidigital neste momento, à exceção dos casos em ser ingerido no momento imediato ao atendi-
que a critério clínico pareça necessário. Quando mento e outro após 12 horas. Este esquema é
houver condições, proceder a coleta de material, válido para ser iniciado dentro das primeiras
que ficará à disposição da justiça, para a identifi- 72 h após a violência.
cação do agressor.

466
Capítulo 49 • Assistência multidisciplinar às vítimas de violência

Outro esquema utilizado é o combinado, Através da equipe multidisciplinar o aten-


mas a contracepção tem sido mais eficiente com dimento e acompanhamento à vitima é seqüen-
o progestagênio isolado e também provoca me- ciado em audiências agendadas onde são ouvidas
nos efeitos colaterais. Além disso, pode ocorrer as vítimas e seus familiares, tendo como conse-
interação medicamentosa entre etinilestradiol qüência o encaminhamento de relatório circuns-
e alguns agentes anti-retrovirais (nelfinavir e tancial aos órgãos competentes para responsa-
ritonavir). As pílulas quando usadas correta- bilização dos agressores e tomadas as medidas
mente, funcionam em 76% (combinadas) a 89 necessárias para proteção e segurança da vitima.
(progestogênio isolado) dos casos. Se as pílulas Durante a entrevista psicológica, para um
de emergência forem utilizadas por uma mulher bom andamento psicoterápico, é importante que
grávida, o método não funciona. seja dada ênfase às informações relevantes como
Os efeitos colaterais mais comuns são: o histórico da violência na família, à sexualida-
náuseas, vômitos, mastalgia, cefaléia e retenção de no contexto familiar, o suporte do processo
hídrica. Duração até 24 horas após a ingestão da judicial, as relações entre membros da família,
última dose. dentre outras.
• Outras Medidas: vacinação anti-tetânica, em A possibilidade real de um processo psico-
caso de ferimentos perfuro-cortantes ou con- terapêutico ocorrer existe se forem trabalhadas
tato com a terra. as questões, conflitos e sintomas provenientes
• Consulta Psicossocial: As formas de atendi- da situação de violência vivenciada pela crian-
mento às vitimas de violência podem variar ça e/ou adolescente e seus familiares. Quando se
de acordo com cada caso estudado e por esse trata de uma criança, a entrevista inicial deve ser
motivo necessitam de um planejamento es- realizada com a mãe ou responsável. O objetivo
pecifico. A assistência às vitimas requer, do é obter informações a respeito dos danos emo-
profissional, preparo emocional, pois o tema cionais decorrentes da violência, as reações da
da violência vem carregado de preconceitos e criança e da família e principalmente a capaci-
mobiliza muita energia e uma gama de emo- dade desse adulto ser um “cuidador” da criança,
ções que necessitam ser trabalhadas. ou seja, se esse adulto dispõe de recursos psico-
emocionais para auxiliar no processo de reestru-
Numa instituição de atendimento às vi- turação emocional da vítima e da família.
timas de violência, o usuário procura o serviço A assistência ao adolescente deve ser di-
geralmente para denunciar uma violação de di- ferenciada, levando-se em consideração todo o
reitos praticados contra crianças e adolescentes. processo psicológico que envolve essa fase da
A anamnese é realizada pelo setor social vida. O profissional necessita adquirir a con-
que é responsável pelas orientações necessárias fiança da vítima para que essa possa sentir-se à
para o bem estar da criança e/ou adolescentes vontade para verbalizar sua realidade. Os fami-
envolvidos. O acompanhamento psicossocial liares só serão argüidos após o atendimento do
inicia-se no primeiro contato com a vítima e adolescente e a análise do seu relacionamento
seus familiares. Em casos especiais, já nesse mo- com seus genitores. Não havendo compreensão,
mento, providências podem ser tomadas no sen- pelos pais ou responsáveis, da problemática do
tido de encaminhar a vitima a serviços especia- adolescente, o contato com outros membros da
lizados para avaliação da situação emergencial. família deve ser realizado e em casos extremos,
Muitas vezes, para resguardar a integridade fí- afasta-se a vítima do seu ambiente doméstico.
sica da vítima, seu encaminhamento temporário O profissional responsável pelo acompa-
para abrigos se faz necessário. nhamento da criança/adolescente e suas famílias

467
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

deve demonstrar interesse em assistir a ambos, O ECA não está cobrando do profissional
pois é necessário estabelecer um vínculo para ou do gestor das instituições de saúde uma atitu-
que o tratamento tenha êxito. Deve-se levar em de ou uma ação policial, nem deverá haver qual-
consideração a complexidade de se falar da vio- quer equívoco neste sentido. O que nos cabe é
lência sofrida e por isso o profissional precisa es- fazer chegar às autoridades competentes a neces-
tar atento ao ritmo da criança e/ou adolescente, sária informação de que a criança ou adolescente
sem pressa no atendimento, nem sendo “conso- está sendo vítima de maus-tratos (ou há suspeita
lo” para a vítima. A tranqüilidade, o acolhimen- desta ocorrência) a fim de serem tomadas medi-
to e até o tom de voz são ferramentas importan- das para mantê-la em condição de segurança e
tes na hora do “cuidar”. proteção.
As sessões terapêuticas devem ocorrer, É muito importante chamar a atenção
em média, uma vez por semana e ter a duração para o fato de que a notificação não se caracte-
de 40 minutos. No caso de violência sexual, o riza como um ato pessoal, mas uma obrigação
acompanhamento deve ser de mais ou menos 5 legal do ponto de vista profissional e institucio-
anos e a “alta”, em qualquer tipo de violência só nal seja através da Comissão ou da Direção do
é concedida, após a análise de toda a equipe para serviço de saúde.
se ter a certeza que todas as questões foram bem
elaboradas. O que podemos fazer?
A comissão de maus-tratos, que deve existir Nada mais justo, em uma sociedade que se
em todos os hospitais, e os profissionais da Aten- conceitua democrática, do que garantir e respei-
ção Básica, podem se tornar um importante ponto tar os direitos humanos. Precisamos resguardar
de apoio para o atendimento, acompanhamento e nossas crianças e adolescentes respeitando e ga-
encaminhamento às vítimas de violência. rantindo seus direitos.
O setor de saúde com a implementação do O setor Saúde, além de ser um dos espaços
ECA, recebeu um mandato social de especial re- privilegiados para a identificação das crianças
levância para a garantia dos direitos das crianças e adolescentes em situação de violência, tem o
e adolescentes e, consequentemente, para me- papel fundamental na definição e articulação
lhoria da qualidade de vida deste segmento. dos serviços e organizações que, direta ou indi-
Esse mandato social reserva o dever aos retamente, atendem situações de violência. Os
profissionais de saúde de atuarem nos diagnós- gestores municipais e estaduais têm papel deci-
ticos de maus-tratos e proceder com a notifica- sivo na organização de redes integradas de aten-
ção. O não cumprimento dessa responsabilidade dimento, na capacitação de recursos humanos,
ocorre em decorrência da falta de conhecimento na provisão de insumos e na divulgação para o
da lei por alguns profissionais de saúde, ou por público em geral.
estes não estarem convencidos de que devem A equipe de saúde deve buscar identificar
exercer esse papel. organizações e serviços disponíveis na comuni-
O artigo 245 do ECA define como infra- dade que possam contribuir com a assistência, a
ção administrativa a não comunicação de vio- exemplo das Delegacias Especializadas, Institu-
lência e maus-tratos pelos médicos, professores to Médico-Legal, Ministério Público, Conselho
ou responsáveis por estabelecimento de atenção Tutelar, Centro de Referência Especializado de
à saúde e de ensino fundamental, pré-escola, à Assistência Social (CREAS), instituições como
autoridade competente, sujeita a multa de 3 a 20 Casas Abrigo, Creches, dentre outros.
salários de referência, aplicando-se o dobro em O fluxo e os problemas de acesso e de ma-
caso de reincidência. nejo dos casos em cada nível desta rede devem ser

468
Capítulo 49 • Assistência multidisciplinar às vítimas de violência

debatidos e planejados periodicamente, visando Delegacia da Criança e do Adolescente e Vara


à criação de uma cultura que inclua a construção da Infância e da Juventude (quando o agres-
de instrumento de avaliação. É imprescindível sor é adolescente) e Ministério Público.
a sensibilização de gestores e gerentes de saúde, Para melhor assistência à vítima, a defe-
no sentido de propiciar condições para que os sa, o atendimento e a responsabilização têm que
profissionais de saúde possam oferecer atenção trabalhar integrados, viabilizando o processo
integral às vítimas e às suas famílias, como tam- das ações em rede.
bém aos agressores.
Competência dos membros da rede: defe- “Se você acredita que nossas crianças mere-
sa, atendimento e responsabilização. cem ser crianças, então lute por elas”.

Defender e garantir os direitos de todos os im- “Essa prática é necessária”


DEFESA

plicados na situação de violência notificada,


protegendo-os de violação a seus direitos. Para
tal tem o poder de, com força da lei, determinar
ações de atendimento e de responsabilização.
Dar acesso a direitos a políticas sociais e de pro-
ATENDIMENTO

teção, prestar serviços, cuidar e proteger. Deve


dar cumprimento a determinações oriundas do
fluxo de Defesa de Direitos e Fluxo de Respon-
sabilização, bem como prestar-lhes informa-
ções, objetivando também a redução dos danos
provocados pela violência sofrida e prevenindo
a reincidência desta.
Responsabilizar judicialmente os autores de
RESPONSABILIZAÇÃO

violações de direitos, proteger a sociedade, fazer


valer a lei. Pode determinar como pena o aten-
dimento ao réu.

• Defesa: Conselhos Tutelares, Varas da Infân-


cia e da Juventude, Ministério Público, De-
fensoria Pública e Conselhos de Defesa.
• Atendimento: executoras de políticas sociais
- CREAS (de saúde, educação, assistência,
trabalho, cultura, lazer, profissionalização) e
de serviços e programas de proteção especial,
bem como por organizações não governamen-
tais (ONGs) que atuam nestas áreas .
• Responsabilização: Delegacias de Polícia,
Delegacias Especializadas (de Proteção à
Criança e ao Adolescente, e da Mulher), Ins-
tituto Médico Legal, Varas Criminais, Varas
de Crimes contra a Criança e o Adolescente,

469
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Bibliografia Rifiòtis T. Nos Campos da Violência: diferença e


positividade. Florianópolis, UFSC.
Áries P. História social da criança e da família. Violência sexual e interrupção da gestação pre-
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Tradução: Centro Colaborador da OMS para a
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Social; tradução: Magalhães L. Rio de Janeiro.
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to-Juvenil diagnóstico e traramento. Medbook.
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Social. [Brasília]: OIT? Secretaria Internacional
do Trabalho; Belo Horizonte: AMAS, 2006.
Ribeiro TCC. Revista psicologia ciência e
profissão, 2002.

470
Capítulo 50
Atenção integral à saúde rialidade e a participação juvenil, visando:
do adolescente • A melhoria da qualidade de vida de adoles-
centes e jovens brasileiros,
alMir de castro neves Filho
Francisca leonete BorGes de alMeida • A promoção do crescimento e desenvolvi-
helena Fernandes Guedes raFael mento saudáveis e a eliminação ou redução
Maria antonildes daMasceno caxilé dos agravos à saúde.

Esta política representa o compromisso


de incorporar a atenção à saúde da população
Introdução jovem à estrutura, mecanismos de gestão, ações
e rotinas do Sistema Único de Saúde (SUS) em

G arantir o desenvolvimento integral da ado-


lescência e da juventude requer a constru-
ção de políticas capazes de prover atenção inte-
todos os seus níveis. Ela servirá de parâmetro
norteador às diversas ações, serviços e progra-
mas do setor saúde – existentes e a serem criados
gral à saúde em todos os níveis de complexidade. - nas esferas federal, estadual e municipal, cada
Investir na saúde de adolescentes e jovens exige qual levando em consideração as respectivas
uma visão holística do ser humano e uma abor- responsabilidades institucionais, situações epi-
dagem sistêmica das necessidades dessa popula- demiológicas e demandas sociais, respeitando os
ção, não se restringindo à prevenção de doenças princípios do SUS.
e agravos ou ao atendimento clínico. A saúde O compromisso de garantir a atenção in-
deve ser entendida em sua acepção mais abran- tegral à saúde de adolescentes e jovens deman-
gente, com suas diversas dimensões e múltiplos da estratégias e ações específicas do setor saúde,
fatores causais. É fundamental que os gestores bem como intersetoriais, tais como: a abertura
e profissionais de saúde, a família e a sociedade de espaços para a participação juvenil, incluindo
em geral compreendam os processos e necessi- as instâncias de controle social e de elaboração
dades desse grupo etário, assim como os fatores de políticas do SUS.
ambientais, sociais e culturais que afetam a sua Os princípios e diretrizes do SUS – uni-
saúde. Essas características específicas e influên- versalidade e equidade de acesso aos serviços de
cias do contexto precisam ser consideradas tam- saúde em todos os níveis de atenção, integrali-
bém no planejamento, desenvolvimento, gestão dade das ações, preservação da autonomia das
e organização dos serviços de saúde. pessoas, direito à informação sobre a sua saúde,
A Política Nacional de Atenção Integral divulgação de informações sobre os serviços,
à Saúde de Adolescentes e Jovens fundamenta- estabelecimento de prioridades segundo a reali-
se no reconhecimento de que adolescentes e dade epidemiológica e participação comunitária
jovens são pessoas em processo de desenvolvi- – vem ao encontro das necessidades para uma
mento, demandando uma atenção especial ao atenção à saúde de qualidade à população ado-
conjunto integrado de suas necessidades físicas, lescente e jovem.
emocionais, psicológicas, cognitivas, espiritu- O artigo 227 da Constituição Federal de 1988
ais e sociais. Os pressupostos desta política são determina como dever do Estado e da sociedade ci-
a integralidade da atenção, a universalização, a vil garantir a prioridade das crianças e adolescentes
efetividade, a interdisciplinaridade, a interseto- na atenção à saúde, destacando em seu texto:

471
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

“É dever da família, da comunidade, da so- População de Risco


ciedade em geral e do poder público assegurar, com
absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referen- Considera-se adolescentes e jovens de
tes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao maior risco aqueles vítimas da exploração sexu-
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à al, os moradores de rua, os privados de liberdade,
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência órfãos (inclusive da AIDS), usuários e /ou depen-
familiar e comunitária”. dentes de substâncias psico-ativas e os portadores
Os dispositivos constantes do referido ar- de necessidades educacionais especiais, dentre
tigo foram regulamentados, destacando-se o Es- outros. Para priorizar as atividades desenvolvi-
tatuto da Criança e do Adolescente (ECA). das pelo serviço de saúde, junto aos adolescen-
O artigo 7º do ECA especifica que a crian- tes recomenda-se a realização de um diagnóstico
ça e o adolescente têm direito a proteção à vida que considere os seguintes aspectos:
e à saúde, cabendo ao Estado a efetivação de po- • Características dos adolescentes que residem
líticas públicas voltadas para o seu desenvolvi- na área de atuação da unidade: distribuição
mento sadio e harmonioso. por idade e sexo, informações sobre morbi-
O artigo 13º determina que os casos sus- dade e mortalidade, gravidez na adolescência,
peitos ou confirmação de maus tratos contra uso de álcool, tabaco e outras drogas, conhe-
crianças e adolescentes serão obrigatoriamente cimento e uso de contraceptivos, escolarida-
notificados ao Conselho Tutelar. de, inserção no mercado de trabalho (formal
O direito do adolescente à saúde é consa- e informal). Desejos, aspirações, reclamações,
grado como um dos direitos humanos básicos, ídolos, valores, vínculo com a família, escola,
tanto no âmbito internacional como na legis- amigos, situação de violência e vulnerabilida-
lação brasileira. Trata-se, portanto, de direitos de social, entre outras informações.
que demandam a implantação de programas e • Características das famílias: renda, estrutura
políticas públicas específicas. Neste sentido, a e dinâmica familiar.
juventude brasileira representa quase um terço • Condições de vida: tipo de moradia, sanea-
da população total. Nas últimas três décadas, mento, destino do lixo, condições de seguran-
tem-se identificado um expressivo aumento po- ça, transporte.
pulacional nesta faixa etária, resultado de uma • Recursos comunitários: escolas, atividades
transformação na estrutura etária da população profissionalizantes, culturais e esportivas.
em função da queda da fecundidade, do crescen- • Áreas de lazer, igrejas, grupos organizados de
te declínio da mortalidade infantil e do aumento adolescentes e jovens.
da esperança de vida ao nascer. • Condições de atendimento nas unidades de
saúde: acesso, distribuição dos adolescentes
Adolescente e jovens e jovens nas diferentes clínicas, percenta-
gem de homens e mulheres, concentração de
A Organização Mundial da Saúde (OMS) de- consultas, número de adolescentes gestantes,
fine como adolescentes, pessoas entre 10 a 19 captação de gestantes por trimestre, princi-
anos. Entretanto, de acordo com o ECA os pais motivos de atendimento.
adolescntes se encontram na faixa etária de
12 a 18 anos incompletos. O levantamento de informações poderá
Jovens segundo a OMS são aquelas entre 19 ser feito através do Instituto Brasileiro de Ge-
e 24 anos e juventude trata da população de ografia e Estatística (IBGE), do Ministério da
10 a 24 anos. Saúde, das Secretarias Estaduais e Municipais
de Saúde, e de pesquisas nacionais e regionais,

472
Capítulo 50 • Atenção integral à saúde do adolescente

entre outras fontes. No nível local, os siste- adolescentes e jovens o desenvolvimento de suas
mas: Sistema de Informação da Atenção Básica habilidades e autonomia.
(SIAB) e Sistema de Gerenciamento da Unidade A organização dos serviços tem como ob-
Ambulatorial Básica (SIGAB). jetivo principal, garantir o acesso dos adoles-
Para a obtenção de algumas informações, centes e jovens a ações de promoção à saúde e
tais como: desejos, aspirações, valores poderá de atenção a agravos, respeitando os princípios
ser necessária a realização de grupos focais, ro- organizativos e operacionais do sistema de saú-
das de conversa etc. a serem realizados junto à de. Para esta organização devem ser levadas em
população de adolescentes e jovens. No caso dos consideração a disponibilidade, a formação e a
recursos comunitários é necessária a realização capacitação dos recursos humanos existentes, a
de um cadastro dos equipamentos sociais e de adequação da estrutura física, provisão de equi-
grupos de jovens existentes na comunidade. pamentos e insumos, além da implantação de
A identificação dos principais problemas, um sistema de informação, todos adequados ao
a seleção de prioridades e a definição de estra- grau de complexidade da atenção a ser prestada.
tégias de atuação devem ser um processo parti- Na organização da atenção a saúde do ado-
cipativo que envolva adolescentes, jovens, fami- lescente e do jovem devem ser levados em consi-
liares e profissionais de diferentes setores. deração os seguintes aspectos:
– Adequação dos serviços de saúde às necessi-
dades específicas de adolescentes e jovens;
Atenção integral à saúde do adolescente – Respeito ao modelo de atenção local vigente e
aos recursos humanos e materiais disponíveis;
Os modelos tradicionais de atenção à saú- – Consideração às características da comunidade
de não vêm contribuindo para a melhoria da nos aspectos socioeconômicos e culturais, além
saúde dos adolescentes e jovens, principalmente do perfil epidemiológico da população local;
por estarem baseados na demanda espontânea e, – Princípios éticos: uma das estratégias para
tradicionalmente, por ser esta população a que que os adolescentes/jovens procurem os ser-
menos procura os serviços. Existe, ainda, um viços é torná-los reservados e confiáveis, as-
mito do setor saúde de que os adolescentes e jo- sim como caracterizá-los por um atendimen-
vens não adoecem, desconsiderando o quanto a to que dê apoio, sem emitir juízo de valor. É
intervenção precoce previne doenças e agravos importante que os profissionais de saúde as-
nesses grupos. segurem serviços que ofereçam:
A necessidade da existência de serviços de – Privacidade: que os adolescentes e jovens te-
saúde de qualidade tem sido colocada como um nham a oportunidade de ser entrevistados e
desafio para o alcance de melhores condições de examinados sem a presença de outras pessoas
vida e saúde dos adolescentes e jovens brasilei- no ambiente da consulta.
ros, o que significa compreender a importância – Confidencialidade: que os adolescentes e jo-
das dimensões econômica, social e cultural que vens tenham a garantia de que as informações
permeiam a vida destes grupos. obtidas no atendimento não serão repassadas
Para a organização dos serviços, torna-se aos seus pais e ou responsáveis, bem como aos
necessário incluir no planejamento e programa- seus pares, sem a concordância explícita.
ção da saúde local, as ações e atividades a serem
desenvolvidas, com base no levantamento de ne- A viabilização desses princípios no aten-
cessidades e demandas, garantindo o acesso às dimento de adolescentes e jovens contribui para
ações e serviços de saúde que possibilitem aos iniciativas interpessoais mais eficientes, colabo-

473
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

rando para uma melhor relação cliente-profis- contato de adolescentes e jovens com o serviço de
sional, o que favorece a descrição das condições saúde. Qualquer que seja o motivo de procura da
de vida, problemas e dúvidas. Estes princípios unidade é fundamental que estes clientes possam
também ampliam a capacidade do profissional de conhecer todos os serviços oferecidos. Por exem-
saúde no encaminhamento das ações necessárias e plo, o adolescente ou o jovem que procura a uni-
favorece a possibilidade de retorno de adolescen- dade de saúde para ser vacinado deve sair sabendo
tes e jovens aos serviços. Também asseguram aos que lá ele pode obter preservativos gratuitamente.
adolescentes e jovens o direito de serem reconhe- A captação envolve diferentes estratégias:
cidos como sujeitos capazes de tomarem decisões
de forma responsável. Entretanto, os adolescentes
devem ser informados das situações em que existe Divulgação interna na unidade
a possibilidade de quebra do sigilo, ou seja, quan-
do houver risco de vida, ou outros riscos relevan- • Fi�ar cartazes contendo a relação dos dife-
tes tanto para o cliente quanto para terceiros, a rentes serviços oferecidos, horários e nomes
exemplo de situações de abuso sexual, idéia de dos profissionais que atendem. Os cartazes
suicídio, informação de homicídios e outros. devem estar afixados na entrada da unidade
e em setores estratégicos;
• Distribuir aos adolescentes, jovens e suas fa-
Captação de adolescentes e jovens aos mílias folhetos contendo informações sobre
serviços de saúde os serviços oferecidos e as formas de acesso.
Mulheres atendidas nas atividades de saúde
Apesar da demanda excessiva e desorde- reprodutiva, por exemplo, devem conhecer as
nada que sobrecarrega a maior parte das unida- oportunidades que a unidade de saúde ofere-
des de saúde, é fundamental que se viabilize para ce para seus filhos;
adolescentes e jovens, pelo menos uma consulta • Sensibilizar toda equipe de funcionários da
semestral para realizar ações, tais como: acom- unidade de saúde quanto a importância da
panhamento do crescimento e desenvolvimento, captação de adolescentes aos serviços de saúde.
verificação da pressão arterial, orientação nutri-
cional dos adolescentes e a inclusão desse grupo
em atividades educativas, tendo como meta a Divulgação na comunidade
preparação desses adolescentes parauma melhor
qualidade de vida e saúde. • Utilizar dos meios de comunicação de massa
A captação de adolescentes e jovens pode (rádios, televisão, vídeos, teatro, música, ou-
ser realizada por meio de ações e atividades es- tdoors, jornais e revistas etc.);
tratégicas, desenvolvidas tanto no interior das • Usar dos meios de comunicação de pequeno al-
unidades de saúde, quanto nas comunidades, de cance (panfletos, cartazes, adesivos, camisetas,
acordo com os diferentes modelos de organiza- bonés etc.), bem como os meios de comunicação
ção dos serviços de saúde e das distintas realida- alternativa (serviços de som/alto-falantes, rádios
des municipais. Para a captação na comunidade, comunitárias, televisores na via pública);
torna-se importante o levantamento dos diver-
sos segmentos sociais e institucionais que atuam
na atenção a esses grupos populacionais. Parcerias institucionais
A captação na unidade deve se fundamen-
tar na perspectiva de otimizar as oportunidades de • Estabelecer redes interinstitucionais e inter-

474
Capítulo 50 • Atenção integral à saúde do adolescente

pessoais com escolas, organizações religiosas, de adolescentes e as dúvidas poderiam ser


grupos sociais, familiares, fábricas, associa- respondidas através dos grupos ou painéis ex-
ções juvenis, sindicatos, clubes etc. positivos);
• Realizar gincanas, passeios, shows musicais
A escola é um espaço importante e privi- e artísticos, campeonatos, onde os temas de
legiado para o desenvolvimento pessoal e social saúde, cidadania e qualidade de vida sejam
dos adolescentes e jovens e para a captação aos veiculados e a participação conjunta de profis-
serviços de saúde, porque: sionais da educação e da saúde seja possível.
• Agrega grande parte dos adolescentes e jo- • Viabilizar, nas escolas, murais relativos aos
vens da comunidade; serviços;
• É um espaço de socialização, formação e in- • Que a unidade de saúde seja um ambiente
formação; para realização de feiras de saúde organizadas
• É na escola que os adolescentes e jovens pas- pelos estudantes.
sam parte ou grande parte do seu tempo.

Estratégias específicas
Estratégias de integração escola/unidade
de saúde É importante ressaltar que existem grupos
de adolescentes e jovens em situação de maior
• Apoiar e implementar atividades conjuntas risco, tais como adolescentes envolvidos em
entre escola, serviços de saúde, comunidade situação de exploração sexual, jovens trabalha-
e famílias; dores do sexo, moradores de rua e adolescentes
• Envolver adolescentes e jovens em projetos institucionalizados, portadores do vírus HIV
e ações educativas nas escolas e comunidade. que devem ser priorizados na atenção à saúde.
Por exemplo: grupos de adolescentes, feiras Estes grupos não vêm sendo adequadamente
de saúde; contemplados, uma vez que raramente procu-
• Capacitar adolescentes e jovens como agen- ram espontaneamente os serviços de saúde. Isto
tes multiplicadores e protagonistas juvenis implica em desenvolvimento de estratégias di-
em saúde; ferenciadas como a criação de mecanismos de
• Incentivar e co-produzir junto à escola e co- integração com as instituições que lidam com
munidade eventos que promovam saúde, ci- esses grupos.
dadania e qualidade de vida; Nos serviços em que for observada uma
• Criar mecanismos que facilitem o acesso de participação majoritária de mulheres, é impor-
adolescentes e jovens aos serviços de saúde; tante o desenvolvimento de estratégias específi-
• Divulgar serviços e ações conjuntas por meio cas para ampliar a captação de adolescentes do
dos grêmios estudantis, clubes escolares, di- sexo masculino, tais como a realização de grupos
retórios acadêmicos e entidades esportivas; de homens e o estabelecimento de parcerias com
• Criar jingles, mensagens curtas e anúncios entidades que realizam atividades esportivas.
para promover os serviços e as ações/temas a
serem trabalhados;
• Criar boletins informativos, jornais comuni- Recepção na Unidade de Saúde
tários e escolares, caixas de dúvidas, correio
da saúde (caixa de dúvidas comunitária que A recepção de adolescente e jovem na uni-
funcionaria próximo a centros de circulação dade de saúde configura-se como um momento

475
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

de garantia do acesso aos serviços e ações de saú- Fluxo do adolescente na unidade de saúde
de. Para que se estabeleça um clima de confiança
e compromisso que resulte em um “contrato” de Considera-se importante o estabelecimen-
cuidados, fundamentado nos direitos e deveres to de fluxogramas que permitam representar de
dos usuários e das equipes de saúde, torna-se forma clara os serviços de saúde. Isto contribui,
fundamental a adoção de atitudes acolhedoras, tanto como elemento facilitador da movimenta-
cordiais e compreensivas, visando proporcionar ção do adolescente/jovem nas unidades de saúde,
segurança e tranqüilidade, bem como a constru- como para a equipe de saúde, como instrumen-
ção da autonomia nos cuidados à saúde. to de visualização do cotidiano, sendo útil para
Vale ressaltar que quanto mais os serviços se avaliar diversas situações e auxiliar no planeja-
tornarem eficazes e acolhedores, mais provável é mento e execução das atividades.
que os adolescentes/jovens venham a procurá-los. Sugere-se que cada unidade defina o seu
Para favorecer o acesso e a adesão de ado- fluxograma de acordo com as instalações físicas,
lescentes e jovens, alguns cuidados são funda- os recursos humanos existentes e os serviços ofe-
mentais: recidos. É fundamental que o fluxograma favore-
• Viabilizar o atendimento mesmo que o ado- ça o atendimento ao adolescente, otimizando o
lescente ou o jovem não disponha dos docu- tempo e a energia do jovem e da equipe de saúde.
mentos exigidos pelo serviço;
• Para o atendimento ambulatorial, não e�igir
a presença do responsável, nem da autoriza- Ações das Equipes de Saúde da Família
ção dos mesmos;
• Não se comportar de forma autoritária, não fa- A unidade de saúde pode desenvolver vá-
zer julgamentos ou cobranças do tipo: Por que rias atividades no sentido de promover a saúde
você foi fazer isso? Você devia ter feito aquilo!; e atender aos vários agravos a saúde dos ado-
• Oferecer o má�imo de informações (horários de lescentes/jovens. A maioria destas atividades
atendimento, profissionais de referência, etc.; pode ser desenvolvida .através de várias moda-
• Procurar agilizar o acesso aos diferentes ser- lidades, como:
viços da unidade (ex: agendar as consultas, • Visita domiciliar
inscrever em grupos, etc.); • Atendimento individual
• Evitar o e�cesso de burocracia para a presta- • Acompanhamento do crescimento e desen-
ção do serviço (ex: para receber preservativo volvimento
obrigar a participar de grupos de discussão); • Se�ualidade e Saúde Reprodutiva
• Criar mecanismos fle�íveis de organização • Principais problemas clínicos agudos e crônicos
uma vez que, pelas características próprias • Atividades em grupo para adolescentes e fa-
desta faixa etária, muitas vezes, eles têm di- miliares
ficuldades em respeitar os horários e as datas • Ações educativas
de agendamento. • Ações de protagonismo
• Ações intersetoriais
Atenção!
Mesmo que a unidade de saúde não tenha condições de
atender a necessidade apresentada, é importante que o
profissional que atenda o adolescente/jovem se respon- A Visita domiciliar
sabilize por esse cliente, favorecendo o seu acesso ao ser-
viço indicado.
A visita domiciliar é uma atribuição pri-
meira do agente de saúde, uma vez que este está

476
Capítulo 50 • Atenção integral à saúde do adolescente

em contato diário com os adolescentes e jovens Bibliografia


da comunidade. O ACS identifica e comunica a
necessidade da visita de um outro profissional da Brasil. Constituição, 1988. Constituição da Re-
ESF. Por ocasião da visita, deve-se considerar: pública Federativa do Brasil, 1988. São Paulo:
• Interação entre os adolescentes/jovens e seus Revista dos Tribunais; 1989.
familiares (presentes no momento da visita),
Brasil. Estatuto da criança e adolescente: Lei
promovendo o fortalecimento de vínculos
8.069/90 de 13 de julho de 1990. Brasília (DF):
entre pais e filhos, ajudando a família a en- Ministério da Justiça, 1990.
frentar as crises do cotidiano, estimulando a
participação nas atividades educativas pro- Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Integral de
Adolescente e Jovens: orientações para organiza-
movidas na unidade de saúde e comunidade.
ção de serviços de saúde. Editora do Ministério
• Apresentar o “passaporte de saúde do(a)
da Saúde. (Série A. Normas e Manuais Técnicos)
adolescente”, mostrando que é um instru-
Brasília - DF, 2005.
mento de acompanhamento que o adoles-
cente mantém consigo, contendo os regis- Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Aten-
ção à Saúde. Àrea de Saúde do Adolescente e do
tros sobre sua saúde.
Jovem. Marco Legal: saúde um direito de ado-
• Enfatizar a importância do adolescente mas-
lescente. Editora do Ministério da Saúde. (Série
culino estar participando das atividades
A. Normas e Manuais Técnicos) Brasília - DF,
educativas e visitas regulares a unidade para
2005.
acompanhamento da saúde, construindo a
idéia de que homem também vai aos serviços Word Health Organization: Fundo de popula-
ção das Nações Unidas. Fundo das Nações Uni-
de saúde.
das para Infância. Programación para la salud y
• Atentar para a identificação e intervenção
el desarollo de los adolescentes: informe de un
precoce nas situações de risco, como violência
grupo de estudo OMS/FNUAP/UNICEF sobre
doméstica, saídas indevidas dos adolescentes programación para la salude los adolescentes.
da escola e outras. Ginebra: La Organización; 1999.
• A coleta de informações sobre os indicadores
de vigilância à saúde do adolescente, por par-
te das equipes de PSF.

477
Capítulo 51
Habilidades de comunicação com os planos, ou lutar com todas as forças con-
e peculiaridades na consulta tra a separação definitiva e inevitável ao final
desta etapa.
com adolescentes
Trata-se de um período da vida extrema-
alMir de castro neves Filho
mente mobilizante, do qual todas as pessoas
guardam recordações. Infelizmente, populariza-
“Nossos adolescentes amam, estudam, brigam, trabalham. Bata- se entre os adultos, em geral, rígidos em suas po-
lham com seus corpos, que se esticam e se transformam. Lidam
com as dificuldades de crescer no quadro complicado da família sições, um jargão para definir o indivíduo nessa
moderna. Como se diz hoje, eles se procuram e eventualmente se fase – “aborrecente”... É praticamente consenso
acham. Mas, além disso, eles precisam lutar com a adolescência,
que é uma criatura um pouco monstruosa, sustentada pela imagi- o fato de que o jovem é mal-humorado, chato,
nação de todos, adolescentes e pais”. contardo calliGaris
irritante e impaciente. Será verdade?
Conhecer os “aborrecentes” pode ser uma
Introdução oportunidade de melhorar o desempenho pro-
fissional e o desenvolvimento pessoal. Todos os

A faixa etária que corresponde à adolescência


– 10 a 20 anos incompletos de idade, segun-
do a Organização Mundial da Saúde progressi-
atributos que caracterizam um bom atendimen-
to têm que estar aqui presentes, e são impres-
cindíveis – empatia, contra-transferência e um
vamente ganha espaço na mídia e nas discussões grande ouvido são palavras de ordem, condições
sobre estratégias de promoção e prevenção em fundamentais para o contato com essa turma.
saúde. O envolvimento dos jovens com drogas,
marginalidade, mortes violentas, AIDS e o au-
mento alarmante de gestações na adolescência Conhecendo os adolescentes...
mobilizam não só os serviços de saúde, como
também todos os segmentos da sociedade. Na medida em que pacientes adolescentes
O sistema de saúde, no modelo atual, não procurem os serviços de saúde, estar familiari-
capta o adolescente por este estar em uma etapa zado com suas peculiaridades tornar-se-á obri-
de vida em que são pouco freqüentes as doenças. gatório para os profissionais envolvidos nesta
Talvez por isso os profissionais de saúde tenham atividade. Algumas condições exigem conheci-
perdido tanto o contato com os adolescentes: fo- mento e manejo adequado, e são características
ram formados para cuidar de doentes, e os servi- desta fase.
ços, para acolher doentes. O adolescente, via de
regra, é “irritantemente” saudável.
A adolescência não é uma via de mão Perdas e lutos na adolescência
única. Os adultos em geral não estão suficien-
temente instrumentalizados para lidar com as Em geral, durante a adolescência inicial,
mobilizações advindas das manifestações ado- ao começarem as modificações corporais, o jo-
lescentes. Podem hesitar em descer da posição vem inicia o processo de luto pelo corpo infan-
de “superpais”, podem não estar conscientes de til. Estranha as modificações, não as domina e
que os jovens lhes provocam sensações de en- não as reconhece. Freqüentemente não se mos-
velhecimento e insegurança, podem estranhar tra satisfeito com este “novo corpo”. Constata
quando os sonhos dos filhos não coincidirem que não é mais criança, mas não ascendeu ain-

479
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

da à condição de adulto, situação que acarreta • Comunicação e assertividade: saber expres-


grande insegurança e ansiedade, não raro re- sar os próprios sentimentos, necessidades e
sultando em modificações comportamentais. O opiniões, respeitando sempre o direito das
luto pelo corpo infantil é seguido pelo luto pela outras pessoas;
identidade infantil e pelo luto pelos pais ideali- • Capacidade de negociação: ser capaz de
zados da infância. atender às próprias necessidades sem deixar
O tédio e o desapego em relação às ati- de considerar as das outras pessoas1.
vidades da infância são seguidos pela busca de
novidades e, eventualmente, comportamento de Empowerment tem sido traduzido como
risco. A explicação orgânica está na remodela- potencialização, empoderamento ou fortaleci-
gem do sistema de recompensa do cérebro, um mento, e é fruto de interação entre os movimen-
conjunto de estruturas que produz sensação de tos feministas e de educação popular, com forte
prazer e busca por mais de tudo o que é bom e dá influência de Paulo Freire e Antonio Gramsci,
certo. Na adolescência, cerca de 30% de recepto- nos anos 80.
res dopaminérgicos são perdidos na sede deste
sistema, o núcleo accumbens, levando o jovem
a abandonar velhos hábitos em busca de novos Vulnerabilidade
prazeres.
Desta forma, investir no fortalecimento Durante a adolescência, o indivíduo se
da auto-estima, no empowerment e na aquisi- apresenta mais instável e vulnerável às influên-
ção de habilidades necessárias para garantir um cias externas, sendo momento oportuno para a
relacionamento saudável é um dos pontos mais incorporação de valores, tanto adequados quan-
importantes de um trabalho preventivo. to inadequados. As transformações ocorridas na
A auto-estima é o sentimento de impor- sociedade contemporânea, principalmente em
tância e valor que uma pessoa tem em relação e termos econômicos, e o aumento populacional
ela própria, e quem a possui em alto grau con- das cidades afetaram profundamente o sistema
fia em suas percepções e em seus julgamentos. de valores morais e éticos, reforçando o indi-
Acredita que suas iniciativas vão dar certo e lida vidualismo, diminuindo a reciprocidade nas
com as outras pessoas com maior facilidade. relações. Alguns fatores que contribuem para a
Empowerment é o processo de produzir a vulnerabilidade nesta faixa etária são sentimen-
mudança, de desafiar as relações de poder exis- tos comuns da juventude, como onipotência, in-
tentes, de fornecer idéias e informações, de en- fluência do grupo, desinformação, pensamento
corajar a ação. Um jovem imbuído deste concei- mágico ou altos níveis de cobrança social. São os
to contagia os companheiros e torna-se alvo de mais notáveis fatores de proteção:
admiração. • Família bem estruturada com fortes laços
Algumas habilidades ainda não são de afetivos
domínio do paciente adolescente, por caracte- • Participação efetiva dos pais na vida dos fi-
rísticas próprias da etapa. É de grande interesse lhos, determinando regras claras de conduta
proporcionar oportunidades para que trabalhem dentro do núcleo familiar
as seguintes questões: • Rendimento escolar satisfatório
• Poder de decisão: tomar decisões respon- • Relações com outros núcleos da comunida-
sáveis que dizem respeito a si próprios e às de como igreja, ações cívicas, grupos des-
outras pessoas e saber resistir às pressões do portivos, iniciativas culturais ou solidárias,
grupo; entre outros

480
Capítulo 51 • Habilidades de comunicação e peculiaridades na consulta com adolescentes

Sinais de alerta Várias atividades podem ser desenvolvi-


das já na sala de espera, que pode contar com
Adolescentes que exibem sinais como iso- material educativo – livros, revistas, vídeos, pro-
lacionismo, desleixo com o aspecto corporal e gramas de informática – que permite o reforço
vestimentas, queda do rendimento escolar, afas- de informações de qualidade. Questionários
tamento de companheiros e parecem não se im- podem ser utilizados para adiantar a coleta de
portar com a deterioração de suas relações com dados e para dar oportunidade ao paciente de
pessoas, grupos ou atividades antes valorizadas, se expressar escrevendo, o que às vezes diminui
merecem avaliação atenta. o embaraço para falar de alguns assuntos. É da
A participação de profissionais bem pre- máxima importância que todos os profissionais
parados, dispostos a acompanhar os jovens nesta da instituição estejam cientes e treinados para
trajetória, proporcionando apoio de qualidade, receber o paciente adolescente, que, pelas ca-
pode constituir referência e dar a eles a chance racterísticas próprias da fase que está vivendo,
de tomarem decisões acertadas em suas vidas. é por vezes arredio e inconstante, desistindo ao
encontrar os primeiros obstáculos.
A recepção dos jovens no serviço de saú-
Acolhendo os adolescentes... de deve refletir a disposição de realmente pro-
porcionar bom atendimento, com cordialidade
Tanto por parte das instituições como dos e compreensão. O paciente adolescente apresen-
profissionais, não parece existir afinidade com ta peculiaridades próprias, como a diferença de
as expectativas e necessidades dos adolescentes, comportamento entre um e outro indivíduo, ou a
originando constrangimento e o conseqüente variabilidade de conduta da mesma pessoa em di-
afastamento do paciente do serviço. Exemplos ferentes etapas. Uma acolhida hostil ou excesso de
de fatores que contribuem para esse afastamento empecilhos burocráticos afastam o paciente, que
incluem falta de privacidade, instalações ina- já encontra dificuldade em respeitar os horários e
dequadas, ambientes em que se misturam as datas de agendamento. É fundamental que todos
mais diversas faixas etárias, decorações infantis, os componentes da equipe estejam sensibilizados
macas de tamanho pequeno, consultas rápidas, e familiarizados com o “jeito” adolescente.
interrupções freqüentes, telefonemas, atitudes Em um ambiente adequado, bem recebi-
paternalistas, irritação, pressa e desrespeito ao dos por profissionais acolhedores, capacitados,
pudor do jovem. que gostem genuinamente dos adolescentes e,
fundamentalmente, com a própria adolescên-
Caso Clínico 1 cia resolvida, veremos os jovens externarem
suas preocupações com corpos que se esticam e
Leila tem 11 anos e foi trazida à consulta mé- mudanças bruscas em áreas antes tão pouco ex-
dica pela mãe, Dona Conceição, que relata ter a jo- ploradas. Observaremos que os motivos que os
vem “engordado muito no último ano e já estar toda trazem às consultas raramente são aqueles ver-
formadinha”, situação que a deixa muito constrangi- balizados de início. Contataremos também que
da e que faz com que venha sendo motivo de chacota alguns eventos absolutamente normais e espera-
por parte dos coleguinhas. O consultório tem duas
dos promovem ansiedade e sofrimento, não raro,
mesas separadas por um biombo e apenas uma maca
desajustes e alterações na dinâmica familiar.
de exame, onde dois profissionais realizam atendi-
mentos concomitantes. Ao ser inquirida pelo médico,
mesmo de forma simpática e acolhedora, Leila abai-
xa a cabeça e chora.

481
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Caso Clínico 2 O atendimento clínico do adolescente


comporta dois momentos distintos – a princí-
João é um rapaz de 13 anos, que, há mais ou pio, a entrevista é realizada com o paciente e seus
menos 3 meses, está retraído e isolado. Brincava com acompanhantes, que normalmente apresentam
os amigos, mas a mãe refere que desde que seu corpo o motivo da consulta e fornecem informações
está mudando – seu peito está aumentado e dolorido sobre a vida pregressa do jovem e condições de
– não tem mais saído. Associa este fato com a mania vida em geral; em seguida, o atendimento é re-
de João passar muito tempo no banheiro ou sozinho alizado apenas com o paciente, quando é inte-
no quarto, onde ela acha que ele se masturba. O pai, ressante confrontar as colocações dos pais com
homem rude e explosivo, tem freqüentes atritos com a visão do principal interessado, e proporcionar
João e agride verbalmente o filho. Trazido à consul- momento propício para a elucidação de assuntos
ta, ao sentir-se à vontade, o rapaz relata estar se mas- sigilosos ou causadores de apreensão por parte
turbando com freqüência e pergunta se é esta a causa do adolescente.
do crescimento das mamas. O exame físico geral não Atender pacientes adolescentes é um exer-
apresentava alterações, e as fases do desenvolvimento cício que exige boa formação profissional, conhe-
puberal eram compatíveis com a idade. O crescimen- cimento técnico e consciência das mobilizações
to das mamas era bilateral, de pequeno volume. internas geradas pelo contato com esta turma.
É importante que o profissional de saúde se co-
Observa-se como as demandas dos adoles- nheça bem para lidar de forma adequada com
centes desconcertam o profissional de saúde por esta série de mobilizações internas advindas do
não se apresentarem da forma clássica: doença. contato com o adolescente. Neste atendimento,
Situações esperadas e previsíveis podem alterar o médico lançou mão de várias habilidades que
a dinâmica familiar, principalmente diante da possibilitaram o bom desfecho do caso.
falta de informações de qualidade e, principal-
mente, da ausência de orientação antecipatória.
Devem ser garantidos ao adolescente am- O exame físico
biente adequado, privacidade e a oportunidade
de, após a entrevista acompanhado dos pais ou É o momento mais delicado do atendi-
responsáveis, permanecer a sós com o profissional mento, tanto pelo constrangimento do pacien-
onde o sigilo das informações esteja assegurado2. te como pelo desconforto do profissional, o que
muitas vezes resulta em um exame incompleto
e em oportunidades perdidas no diagnóstico
O atendimento clínico de problemas de saúde. Explicação prévia do
procedimento e abordagem educativa durante
As queixas trazidas pelos adolescentes a o exame costumam ter bom resultado, com o
um serviço que atende à demanda espontânea profissional realizando a abordagem por partes,
são bastante limitadas, em geral. Trata-se de ilustrando com conhecimentos, exemplos e in-
uma faixa etária em que o corpo atinge o máxi- formações, evitando desnudar completamente
mo de suas potencialidades, resultando em pou- o paciente. A presença de um componente da
cas doenças orgânicas. Na maioria dos serviços, equipe do mesmo sexo do paciente muitas vezes
os ambulatórios assistem às jovens adolescentes é de inestimável valor.
na parte ginecológica e obstétrica, e praticamen- São pontos fundamentais no exame: ava-
te não têm contato com adolescentes do sexo liação do estado nutricional, visão e audição,
masculino. pele e mucosas, estado de saúde bucal, coluna

482
Capítulo 51 • Habilidades de comunicação e peculiaridades na consulta com adolescentes

vertebral, aferição de medidas antropométricas esperasse que sua mãe acabasse logo a explicação e
e sua disposição em gráficos, “estagiamento” saísse. Logo que isso aconteceu, falou, certificando-se
puberal pelos critérios de Tanner, sinais vitais e que a porta estava realmente fechada:
pressão arterial.
Em relação às características físicas, tam- “- Doutor, estou arrasado! Não posso ter fi-
bém três tipos de jovens se apresentarão nas lhos, não posso ter relações com mulher, nunca vou
consultas: adolescentes em fase de crescimen- poder casar!”
to lento, cerca de 5 a 7 cm/ano e 2 a 3 kg/ano,
que ainda não entraram no estirão pubertário; Daniel havia tracionado o prepúcio para bai-
adolescentes em fase de crescimento rápido, em xo ao manipular o pênis, o que ocasionou uma situ-
geral desproporcionados, desarmônicos, nos ação de “parafimose leve” – apesar do prepúcio ter
quais predomina o crescimento ósseo acelerado; permanecido preso no sulco bálano-prepucial, não
adolescentes em fase de desaceleração do cresci- evoluiu com edema, dor ou desconforto; mas a visão
mento até a parada final. da própria glande exposta de forma fixa, experiência
O conhecimento das modificações físicas inédita para esse adolescente, acarretou medo e de-
que se processam na adolescência é um aspec- sespero. Durante o exame físico, com tranqüilidade,
to do exame importante tanto pelo profissional, o médico reduziu a parafimose, ensinando um pouco
como pelo próprio adolescente, conforme de- de anatomia e cuidados que o adolescente deve in-
monstrado nos casos seguintes: corporar no dia-a-dia. Mais tarde recebeu um tele-
fonema atencioso da mãe de Daniel, com elogios ao
Caso Clínico 3 atendimento e impressionada com a alegria que o fi-
lho estava exibindo desde então.
Ana Júlia, de 16 anos, foi trazida contrariada
à consulta por sua mãe, Dona Carolina, que a des-
creveu para o médico como uma “menina insuportá-
vel”. A jovem é filha do primeiro casamento de Dona
Carolina, que tem duas filhas gêmeas, de 5 anos, do
casamento atual. Alega que Ana Júlia quase não
sai do quarto, e quando o faz, maltrata as irmãs e
é grosseira com o padrasto. Seu rendimento escolar
vem caindo e seu humor oscila muito. Ao permanecer
a sós com o profissional, confirma as queixas da mãe
e mostra-se preocupada com a diferença de tamanho
das mamas e irregularidade menstrual.

Caso Clínico 4

Daniel, de 13 anos, entrou no consultório


acompanhado de sua mãe, que mostrou logo ao mé-
dico uma pequena mancha no braço, aparentemente
sem importância, mas que motivou a vinda ao posto
e o atendimento médico. Durante o relato da mãe, o
médico notou bastante ansiedade em Daniel, tradu-
zida por um olhar vivo, atento e inquieto, como se

483
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Bibliografia

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2001.

484
Capítulo 52
Problemas clínicos mais missíveis. Por ser uma fase de intensos requeri-
comuns na adolescência mentos para o crescimento, é fundamental certi-
ficar-se das boas condições em relação a doenças
alMir de castro neves Filho
carenciais – anemia ferropriva, hipovitaminoses.
e, parasitoses intestinais. Doenças dermatológi-
cas são freqüentes, não fugindo às mesmas cau-
sas das outras idades. A síndrome diarréica deve
ser abordada da mesma forma que na infância.
Muitos adolescentes apresentam grande

O s problemas clínicos na adolescência po-


dem ser divididos em três grandes grupos:
as doenças agudas, as doenças crônicas e as do-
apreensão no que diz respeito a determinados
sintomas, em geral mal definidos, correlacio-
nando-os com doenças graves.
enças ou situações específicas da idade. O caso seguinte ilustra uma destas con-
Os problemas agudos apresentados pe- dições.
los jovens mostram uma clara transição para a
vida adulta – situações clínicas pouco comuns Caso Clínico
em crianças vão tomando espaço, e evidências
mostram que afecções que acomentem adultos Léo é um rapaz saudável e comunicativo,
provavelmente têm início na infância ou na ado- de 17 anos, excelente atleta com ótima compleição
lescência. Os resfriados e gripes são, de longe, física. As únicas visitas ao serviço de saúde foram
as queixas mais freqüentes nos ambulatórios. É por apresentar episodicamente azia e queimação re-
importante que o clínico tenha em mente que troesternal, e freqüentemente sintomas nasais com-
os adolescentes são, via de regra, ávidos por in- patíveis com rinite alérgica. Não realiza tratamento
formações. Durante o atendimento noções so- para nenhuma das duas condições e nunca realizou
bre doenças autolimitadas e benignas, sinais de investigação destes problemas. Apresentou queixa de
alerta ou perigo, conceito de espera permitida e aperto no peito de início há 5 dias, limitando a respi-
outros devem ser abordados e difundidos. ração. Seu melhor amigo apresentou há pouco tempo
Entre as infecções de vias aéreas superio- um episódio de arritmia com baixo débito, e realizou
res, é importante lembrar que esta faixa etária é há mais ou menos quinze anos correção de uma co-
de risco para o desenvolvimento de febre reumá- municação interventricular com sucesso. Léo, ao ser
tica, devendo o clínico estar apto a diferenciar atendido, relatou um trauma torácico durante uma
as faringoamigdalites virais das estreptocócicas. partida de futebol quinze dias antes, e seu diagnóstico
Há modificações em relação aos agentes etioló- foi firmado como osteocondrite de costela. Apesar de
gicos causadores de pneumonia nos jovens: os ter realizado corretamente o tratamento sugerido (an-
vírus perdem espaço, deixando ao Pneumococo, tiinflamatório sublingual com leite e gelo local), evo-
ao Micoplasma e à Clamídia pneumonie os três luiu com piora durante a madrugada, referindo dor,
primeiros lugares em freqüência. No sexo fe- dormência no ombro esquerdo, sensação de sufocação
minino, a estrogenização e o início de práticas e dificuldade de respirar. Ao amanhecer, foi trazido à
sexuais modifica a flora e, portanto, as causas Unidade de Saúde pelo agente de saúde e pela mãe,
de vulvites e vulvovaginites, surgindo também ambos assustados, já que, apesar de no início julga-
a possibilidade de doenças sexualmente trans- rem tratar-se de gases, “parecia ser coisa pior”.

485
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Após atendimento pelo médico da equi- crônico, sugerindo “crise sobre crise”. Diabetes
pe, constatou-se que a ausculta, a pressão ar- mellitus, artrite reumatóide, febre reumática,
terial, o pulso e o restante do exame físico de asma, algumas doenças crônico-degenerativas,
Léo estavam normais. Não apresentava febre, síndromes, displasias ósseas, seqüelas de doen-
tosse, coriza, dispnéia, cianose ou diarréia. Ne- ças da infância são alguns exemplos de afecções
gava problemas emocionais e parecia ansioso e deste grupo.
inquieto com o que estava sentindo. O médico Um elenco de situações acomete especi-
então, após medicá-lo com analgésico injetável, ficamente o adolescente – são afecções pouco
solicitou a realização de RX de tórax e eletrocar- freqüentes em outras faixas etárias e, muitas ve-
diograma, que resultaram normais. Léo perma- zes, guardam relação direta com as atividades
neceu sintomático, pálido, referindo boca seca e e acontecimentos típicos desta fase. Acne, apo-
náuseas, o que fez com que o médico ministrasse fisites de tração (doença de Osgood-Shlatter),
a ele um medicamento procinético por via oral – entesites, anormalidades do desenvolvimento
bromoprida em comprimidos. Após cerca de 30 puberal, dores recidivantes, transtornos alimen-
minutos apresentou progressiva melhora, tendo tares, doenças sexualmente transmissíveis, gra-
voltado para casa bastante melhorado duas horas videz, violência, abuso e dependência de drogas
depois com prescrição de omeprazol comprimi- são exemplos de demandas que fogem à rotina
dos e dieta. Ficou acertado um retorno à Unida- habitual dos ambulatórios, e que originam sen-
de para reavaliação e investigação posterior. sação de impotência por parte dos profissionais
Nas enfermidades de curso crônico, aque- de saúde. Começam a surgir queixas vagas, qua-
las que o adolescente traz da infância ou que sur- dros mal definidos, muitas vezes associados a
gem nesta época, é de boa norma a observação de eventos que acarretam ansiedade e que fogem à
alguns pontos fundamentais: o estigma da do- rotina, como semana de provas na escola, proxi-
ença crônica, adesão ao tratamento prolongado midade do vestibular, viagens, problemas fami-
(disciplina) e a baixa auto-estima do paciente. liares e outros3.
Faz-se necessário adequado vínculo entre os pro- A gravidez na adolescência constitui uma
fissionais de saúde e o adolescente e sua família, situação à parte e vem sendo alvo de estudos
para que os objetivos do plano terapêutico sejam em todo o mundo. Pesquisa-se se a condição
atingidos. Obter motivação frente ao tratamen- de duplo anabolismo resultante da gestação em
to, monitorizá-lo, fornecer farto esclarecimento um corpo ainda em desenvolvimento pode ser
em relação ao diagnóstico e evolução, proporcio- deletéria para uma das partes envolvidas ou
nar acompanhamento sistemático e apoio emo- para ambas. Enquanto os trabalhos exibem re-
cional são condições básicas para o seguimento sultados não conclusivos, sedimenta-se a cer-
de pacientes com problemas crônicos. Muitas teza de que as maiores e mais importantes con-
vezes o adolescente necessita da assistência de seqüências da gravidez na adolescência estão
vários especialistas, mas precisa, com a mes- na área psíquica e social. Uniões precipitadas
ma intensidade, do profissional de referência, e posteriormente desfeitas, tentativas de abor-
aquele que o orienta e acompanha-o do ponto tamento, abandono dos estudos e/ou trabalho,
de vista clínico. O médico deve entender o mo- dissolução da unidade familiar e queima de eta-
mento delicado que vive o paciente adolescente pas na adolescência dominam este cenário. Em
com doença crônica: a par das transformações geral, os fatores que atuaram proporcionando
corporais intensas e rápidas, que acarretam lutos a gravidez não são afastados, permanecendo a
importantes, a concomitância da “crise da ado- jovem mãe vulnerável, reincidindo, não raro,
lescência” com o diagnóstico de afecção de curso com outros parceiros.

486
Capítulo 52 • Problemas clínicos mais comuns na adolescência

Ações preventivas de, com fins didáticos e para direcionar melhor


os tipos de atividades e mensagens educativas.
Há cerca de 30 anos são implementados Três grupos de adolescentes apresentam caracte-
programas de atenção ao adolescente no Brasil, rísticas bastante distintas no atendimento: 10 a
contemplando um grupo importante que, por 14 anos, adolescência inicial; 15 a 16 anos, adoles-
apresentar características próprias e marcantes, cência média; 17 a 19 anos, adolescência tardia.
permanecia à margem das ações de saúde. Nes- No caso da Estratégia Saúde da Família
ta parcela da população é notório o aumento de (Programa de Saúde da Família – PSF), há ne-
problemas potencialmente evitáveis por meio de cessidade de captação da população adolescen-
medidas de promoção de saúde e prevenção de aci- te da área de abrangência da equipe, que deve
dentes e agravos. Portanto, parece clara a impor- explorar o cadastramento das famílias e propor
tância da inclusão de medidas preventivas como atendimento sistemático – “puericultura de
componente fundamental da prática assistencial2. adolescentes” – a partir de 10 anos de idade. Tal
A Associação Médica Americana (1997) pre- iniciativa permite o estabelecimento de vínculo
coniza que as visitas de rotina dos adolescentes aos com o paciente e sua família, além da programa-
serviços de saúde constituem oportunidades ím- ção de atividades variadas, como grupos infor-
pares para uma abordagem integrada e holística, mativos, palestras, grupos de discussão, contatos
contemplando aspectos fundamentais nesta faixa com a escola e mobilização comunitária. A pro-
etária: reforçar mensagens de promoção de saúde; cura espontânea pelo serviço de saúde é maior
identificar adolescentes e jovens que estejam sujei- pelos adolescentes mais jovens, em geral trazidos
tos a comportamentos de risco; promover imuni- pelos pais. As mulheres em busca de assistência
zação adequada; desenvolver vínculos que favore- ginecológica ou obstétrica dividem com este
çam um diálogo aberto sobre questões de saúde1. grupo a maior demanda. Queixas comportamen-
É de suma importância conseguir um tais (trazidas pelos pais) e relativas à sexualidade
“salto de qualidade” relativamente à visão de (verbalizadas pelos pacientes, quando à vontade)
saúde do adolescente: fazer com que se tornem são mais freqüentes do que as queixas orgânicas.
ativamente participantes nas decisões perti- É necessário que se estabeleçam estraté-
nentes aos cuidados de saúde. Para atingir esta gias para captação dos jovens, situação que pos-
meta, é necessário esclarecer o paciente sobre sibilita a implementação de ações de promoção
vários pontos: crescimento físico; desenvolvi- da saúde e prevenção de doenças. A instituição
mento psicossocial e sexual; alimentação saudá- da “puericultura da adolescência” poderia ser
vel e prevenção das “doenças degenerativas da boa opção. A partir, por exemplo, do cadastra-
humanidade” (hipertensão, diabetes, enfarte em mento de indivíduos da área de abrangência de
jovem, hipercolesterolemia, obesidade, consti- uma equipe do Programa de Saúde da Famí-
pação intestinal, câncer de cólons e reto, osteopo- lia (PSF) entre 10 e 20 anos incompletos, um
rose, alergias); atividade física aeróbica e regular atendimento programado a cada quatro meses
(além de coadjuvante da saúde em geral, exerce (três meses na época do estirão) possibilitaria o
papel como fator de socialização); prevenção de acompanhamento do crescimento e desenvolvi-
acidentes de trânsito e situações de violência; mento, formação de grupos informativos, orien-
uso de cigarros, álcool, drogas, anabolizantes e tações aos pais, detecção precoce de desvios da
remédios em geral; práticas sexuais responsáveis normalidade e formação de vínculo adequado
e seguras; cuidados com a saúde oral4,5. entre a família, o adolescente e a equipe de saú-
É de interesse a adoção da classificação da de. A orientação antecipatória fornece, em geral,
adolescência pela Organização Mundial da Saú- conhecimentos e ferramentas para o adequado

487
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

manejo de situações geradoras de crise na famí- Referências


lia, e proporciona condições de enfrentamento
de eventos potencialmente patológicos. 1. Associação Médica Americana. Guidelines for
adolescent preventive services. Arch. Pediatr.
Considerações finais Adolesc. Med, Feb 1997; 151(2):123-8.
2. Grossman E, Ruzany MH, Taquette ST. A con-
sulta do adolescente e jovem. In: Ruzany MH,
Há evidências de que o contato de profis-
Grossman E, org. A saúde de adolescentes e jo-
sionais preparados na assistência de adolescen-
vens: competências e habilidades. Brasília (DF):
tes contribui inequivocamente para resultados
Ministério da Saúde; 2001.
positivos5. As situações relatadas ilustram o tra-
3. Neves Filho AC. Adolescência: problemas clíni-
balho dos profissionais que lidam diariamente cos. Rev. Ped. Ceará 2002; 3(3).
com pacientes adolescentes, acolhendo e respei- 4. Ruzany MH, Swarcwald C. Oportunidades per-
tando suas dúvidas e expectativas em relação às didas na atenção ao adolescente na América
condições mais variadas e, muitas vezes, inusi- Latina. Adolescência Latino Americana 2000;
tadas. Profissionais capacitados, honestos e bem 2(1):26-35.
intencionados são capazes, sem sombra de dú- 5. Saito MI. Atenção integral à saúde do adolescen-
vida, de proporcionar bem-estar, informação e te. In: Saito MI, Silva LEV. Adolescência: pre-
estímulo para os jovens. venção e risco. São Paulo: Atheneu; 2001.
Situações corriqueiras ou transitórias
e benignas podem trazer grande apreensão e
produzir desconforto e desarmonia familiar,
quando não esclarecidas. A relação entre o pa-
ciente e o médico tem enorme influência sobre
o bem-estar e a saúde, trazendo satisfação para
ambos quando se estabelece de forma adequada.
As habilidades de comunicação condicionam a
qualidade desta relação, e podem ser ensinadas,
estimuladas e desenvolvidas desde os primeiros
contatos dos alunos de Medicina com seus pro-
fessores e pacientes, condição pouco explorada
nos nossos atuais cursos de formação.

488
Capítulo 53
Crescimento e desenvolvimento Crescimento pondero-estatural
do adolescente
Denomina-se estirão puberal ao cresci-
rita Maria cavalcante Brasil
zenilda vieira Bruno mento rápido característico da puberdade. Esta
é a única fase da vida, após o nascimento, em que
ocorrerá uma aceleração do crescimento.
A velocidade de crescimento após o nas-
cimento, a mais alta de todo o ciclo vital, cai
progressivamente durante toda a infância e al-

A adolescência é um período importante do


ciclo vital, caracterizado por intensas mu-
danças biológicas, psicológicas e sociais.
cança seus mais baixos valores pouco antes da
puberdade. Nesta fase observa-se que meninos e
meninas crescem praticamente na mesma velo-
A Organização Mundial de Saúde consi- cidade, principalmente entre 4 anos e o estirão
dera adolescência o período entre 10 e 20 anos puberal. Nota-se que a menina inicia seu estirão
incompletos. No Brasil, o estatuto da Criança e puberal mais cedo que os meninos, em média
do Adolescente limita a adolescência ao período aos 10,5 anos e atinge o Pico de Velocidade de
de 12 a 18 anos. Crescimento (PVC) por volta de 12 anos. Os me-
Do ponto de vista das modificações bio- ninos começam o estirão e atingem o PVC cerca
lógicas podemos dizer que elas envolvem prati- de dois anos depois. Por outro lado, os meninos
camente todos os órgãos e estruturas do corpo atingem uma velocidade maior.
com início e duração diferentes de indivíduo O pico de velocidade de crescimento mus-
para indivíduo. Ao conjunto de modificações cular se dá um pouco depois do pico de veloci-
biológicas próprias da adolescência denomina- dade em estatura. Há aumento da massa mus-
se puberdade. cular, da força muscular e da capacidade física.
Os aspectos biológicos mais marcantes da Embora este processo ocorra em ambos os sexos,
puberdade são: crescimento acelerado em peso é muito mais acentuado no sexo masculino.
e altura, aparecimento dos caracteres sexuais se- Já em relação ao tecido adiposo existe uma
cundários e da capacidade de reproduzir, segui- diminuição da velocidade de deposição gordu-
dos de rápida desaceleração do crescimento que rosa à medida que o crescimento esquelético
é encerrado pela maturação final dos ossos. acelera, chegando aos seus mais baixos valores
Existe uma variedade grande da idade em por ocasião do pico de velocidade de crescimen-
que se inicia o desenvolvimento puberal, tanto to estatural. Esta desaceleração na deposição de
para os meninos quanto para as meninas, po- massa gordurosa é mais acentuada no sexo mas-
dendo ocorrer entre os 8 e 14 anos, sendo mais culino. Ao final do estirão as meninas costumam
freqüente entre os 10 e 12 anos. apresentar maior quantidade de tecido adiposo,
Embora as transformações puberais ocor- principalmente nos quadris e mamas.
ram em praticamente todos os sistemas do or- É importante destacar que a desaceleração
ganismo dois componentes são considerados os da deposição de tecido adiposo não se traduz
mais importantes: o crescimento pondero-esta- obrigatoriamente numa redução dos índices de
tural e o desenvolvimento puberal ganho ponderal, em virtude do aumento da mas-
sa muscular e óssea.

489
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Desenvolvimento Puberal Alguns meses depois do aumento do volu-


me testicular começa o aparecimento dos pêlos
O desenvolvimento puberal na adolescên- pubianos, inicialmente finos e esparsos, tornan-
cia engloba o desenvolvimento das gônadas, dos do-se espessos, encaracolados e mais pigmenta-
órgãos de reprodução e dos caracteres sexuais se- dos à proporção que aumentam em quantidade.
cundários. Em geral, existe uma cronologia dos O aparecimento de pêlos axilares, de face
eventos puberais que, de regra, são mais ou menos e demais partes do corpo, bem como a mudança
constantes tanto para os meninos quanto para as de voz, secundária ao aumento da laringe, são
meninas. Podem ocorrer variações individuais em eventos que ocorrem mais tardiamente.
relação à idade do início e a duração dos eventos. A idade da primeira ejaculação (semenar-
A seqüência destes eventos foi classificada por ca) é bastante difícil de ser identificada, já que
Tanner em cinco estágios considerando: o desen- esta informação é subjetiva e, para que o jovem
volvimento de mamas nas meninas, de testículos se descubra capaz, é necessário estimulação – al-
e genitália externa nos meninos e na distribuição e guns jovens se manipulam muito pouco, sendo
quantidade de pelos pubianos em ambos os sexos. então muito variável, entre 12,5 e 16,5 anos, com
A avaliação do desenvolvimento puberal é mediana de 14,5 anos.
baseada nos critérios que se seguem. A ginecomastia – aumento das mamas no
No sexo feminino a primeira manifestação sexo masculino – é um evento relativamente co-
de puberdade é o aparecimento do broto mamário mum no desenvolvimento puberal masculino,
que, em condições normais, ocorre entre 9 e 13 anos podendo ser uni ou bilateral. A ginecomastia
de idade. Pode não ser simultâneo mas deve estar fisiológica geralmente regride espontaneamen-
presente bilateralmente até 6 meses após o apareci- te, não requerendo tratamento. Nos casos em
mento do 1º broto. Concomitante ao aparecimento que não há involução espontânea e atinge pro-
do broto mamário, ocorre modificações funcionais porções que causam transtornos psicológicos
e anatômicas do útero, trompas, vagina e vulva. para o adolescente pode estar indicada cirurgia
Alguns meses após o aparecimento do plástica. Anamnese e exame físico completo são
broto mamário começam a aparecer os pelos pu- importantes para excluir causas patológicas de
bianos. À proporção que as mamas vão se desen- ginecomastia.
volvendo o crescimento se acelera, os pelos au-
Estágios de desenvolvimento pubertário
mentam de volume e se tornam encaracolados. de Tanner – Masculino
A menarca é um fenômeno mais tardio,
ocorrendo geralmente entre o terceiro e quarto
estágios de Tanner para mamas. Os primeiros ci-
clos menstruais são geralmente anovulatórios e
tendem a se normalizar no prazo de dois anos.
No sexo masculino a primeira manifesta- P1
G1 9 1/2 - 14 1/2 - 13 1/2 anos Fase pré-adolescência (não há
ção de puberdade ocorre geralmente entre 9 e 14 Pré-adolescência (infantil) pelugem)

anos de idade e é caracterizada pelo aumento do


volume dos testículos (acima de 2,5 cm ou de
4ml) acompanhado em seguida pela alteração da
textura e da cor da pele do escroto.
Mais tardiamente, cerca de um ano depois,
começa a crescimento do pênis, inicialmente em P2 11 - 15 1/2 anos
G2 10 - 13 1/2 anos Presença de pêlos longos, macios,
comprimento e posteriormente em diâmetro. Aumento da bola escrotal e dos ligeiramente pigmentados, na base
testículos, sem aumento do pênis do pênis

490
Capítulo 53 • Crescimento e desenvolvimento do adolescente

M4 11 - 15 anos P4 11 - 15 anos
Projeção da aréola e das papilas para Pelugem do tipo adulto, mas a área
formar montículo secundário por coberta é consideravelmente menor
G3 10 1/2 - 15 anos P3 11 1/2 - 16 anos cima da mama do que no adulto
Ocorre também aumento do pênis, Pêlos mais escuros, ásperos, sobre
inicialmente em toda a sua extensão o púbis

M5 13 - 18 anos P5 12 - 16 1/2 anos


Fase adulta, com saliência somente Pelugem tipo adulto, cobrindo todo
nas papilas o púbis e a virilha
G4 11 1/2 - 16 anos P4 12 - 16 1/2 anos Percentis
Aumento do diâmetro do pênis e Pelugem do tipo adulto, mas a área
da glande, crescimento dos testícu- coberta é consideravelmente menor Idade 5th 15th 50th 85th 95th
los e escroto, cuja pele escurece do que no adulto 9 14.03 14.71 16.17 18.85 21.47
10 14.42 15.15 16.72 19.60 22.60
11 14.83 15.59 17.28 20.35 23.73
12 15.24 16.06 17.87 21.12 24.80
13 15.73 16.62 18.53 21.93 25.93
14 16.18 17.20 19.22 22.77 26.93
P5 15 - 17 anos
G5 12 1/2 - 17 anos Tipo adulto, extendendo-se até a 15 16.59 17.76 19.92 23.63 27.76
Tipo adulto face interna das coxas 16 17.01 17.32 20.63 24.45 28.53
17 17.31 18.68 21.12 25.28 29.32
Estágios de desenvolvimento pubertário 18 17.54 18.89 21.45 25.92 30.02
de Tanner – Feminino
19 17.80 19.20 21.86 26.36 30.66
20-24 18.66 20.21 23.07 26.87 31.26
Tabela 1. Percentis de IMC para idade: adolescentes do sexo mas-
culino, 9-24 anos*
*
Dados de referência baseados no Primeiro Estudo do Exame
Nacional de Nutrição e Saúde (NHANES-I) dos Estados Unidos,
M1 P1 (WHO, 1995)
Elevação somente do mamilo (ma- Fase pré-adolescência (não há
mas infantis) pelugem)
Percentis
Idade 5th 15th 50th 85th 95th
9 13.87 14.66 16.33 19.19 21.78
10 14.23 15.09 17.00 20.19 23.20
11 14.60 15.53 17.67 21.18 24.59
M2 8 - 13 anos P2 9 - 14 anos 12 14.98 15.98 18.35 22.17 25.95
Fase de broto mamário (elevação Presença de pêlos longos, ligeira-
da mama e auréola como pequeno mente pigmentados, ao longo dos 13 15.36 16.43 18.95 23.08 27.07
montículo) grandes lábios 14 15.67 16.79 19.32 23.88 27.97
15 16.01 17.16 19.69 24.29 28.51
16 16.37 17.54 20.09 24.74 29.10
17 16.59 17.81 20.36 25.23 29.72
18 16.71 17.99 20.57 25.56 30.22
M3 10 - 14 anos P3 10 - 14 1/2 anos 19 16.87 18.20 20.80 25.85 30.72
Maior aumento da mama, sem sepa- Pêlos mais escuros, ásperos, sobre 20-24 17.38 18.64 21.46 26.14 31.20
ração dos contornos o púbis
Tabela 2. Percentis de IMC para idade: adolescentes do sexo fe-
minino, 9-24 anos*
*
Dados de referência baseados no Primeiro Estudo do Exame
Nacional de Nutrição e Saúde (NHANES-I) dos Estados Unidos,
(WHO, 1995) lo, SP, Record, 1999.

491
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Importância e normas da vigilância do Nos períodos de aceleração do crescimento este


crescimento físico e da maturação sexual na ado- tempo pode ser reduzido para três meses.
lescência: Para a avaliação da maturação sexual é ne-
Em virtude do período de aceleração do cessário avaliar e comparar os estágios de desen-
crescimento, a adolescência é considerada um volvimento puberal sistematizados por Tanner
“período de risco” para a saúde, razão pela qual a para ambos os sexos.
vigilância do crescimento se constitui numa das A avaliação de cada um dos critérios de
ações básicas mais importantes para a promoção Tanner deve ser feita separadamente e registra-
da saúde deste grupo populacional. da, nas meninas M1, M2, M3, M4, e M5 para
As técnicas antropométricas são o princi- mamas; nos meninos G1, G2, G3, G4 e G5 para
pal instrumento para avaliar o crescimento. O genitália; em ambos os sexos P1, P2, P3, P4 P5 e
uso sistemático dessas técnicas permite identi- P6 para pelos pubianos.
ficar o crescimento normal e seus desvios. As Os estágios de desenvolvimento desses
variáveis fundamentais para avaliação do cres- critérios podem variar de tal forma que em con-
cimento são peso e altura. É muito importante dições normais podemos encontrar discordân-
medir com precisão. Para tanto é fundamental cias tais como M4 P3 ou G2 P1, etc.
ter instrumentos confiáveis e garantir uma pos- A avaliação dos estágios de desenvolvi-
tura adequada do adolescente por ocasião da afe- mento puberal, além de servir como um instru-
rição dessas variáveis. mento de avaliação do desenvolvimento sexual
Uma vez obtidas, as medidas devem ser do adolescente, guarda estreita relação com o
comparadas com uma população de referência crescimento e desenvolvimento físico, comple-
considerada saudável. A Organização Mundial mentando, de forma importante, o quadro de
de Saúde e o Ministério da Saúde adotam como monitorização da saúde do adolescente.
padrão de referência os gráficos americanos do O retardo puberal e a puberdade precoce
NCHS, de peso e altura para idade, separados são a duas formas mais comuns de distúrbios
por sexo. (tabelas 1 e 2) do desenvolvimento puberal. Os critérios para
São dois os critérios de anormalidades o diagnóstico são:
para os indicadores peso e estatura para a idade:
• Quando as medidas de peso e/ou altura para a Puberdade precoce: Deve ser suspeitada
idade estiverem abaixo do percentil 3 ou aci- na vigência do desenvolvimento de um ou mais
ma do percentil 97 do gráfico de Referência dos caracteres sexuais secundários antes dos 8
para o Respectivo Sexo (NCHS) anos de idade, no sexo feminino, e 9 anos no
• Quando através de duas ou mais medidos se- sexo masculino.
qüenciais são possíveis identificar um desvio Embora 70% dos casos de puberdade pre-
do canal de crescimento, de peso e/ou altura, coce sejam de causa central e idiopática, ao se
para cima ou para baixo. atender uma criança com quadro compatível
com puberdade precoce iso ou heterossexual, a
Em ambas as situações acima, o adoles- primeira causa que se deve pesquisar é a presen-
cente deve ser referido para uma unidade de ça de tumores, tais como os tumores da supra-re-
maior complexidade com condições de proceder nal ou do ovário ou tumores do sistema nervoso
a investigação e orientação do caso. central. O atraso no diagnóstico pode, em alguns
Em condições normais, é recomendável casos, trazer conseqüências irreversíveis, como
que os adolescentes sejam vistos pelo menos por exemplo, baixa estatura.
semestralmente para avaliação do crescimento. Em todas as formas de precocidade sexu-

492
Capítulo 53 • Crescimento e desenvolvimento do adolescente

al, o aumento na secreção de esteróides gonadais como a adrenarca ou telarca precoce, daqueles
aumenta a velocidade de crescimento, o desen- casos com doença de maior risco.
volvimento somático e a taxa de maturação es- Os exames complementares incluem:
quelética, levando ao fechamento prematuro das
epífises ósseas e à baixa estatura na idade adulta. • Rx de mãos e punhos: Para avaliação da
idade óssea. O critério de anormalidade é o
desvio da idade óssea acima de 10% da idade
Anamnese cronológica em meses.

• Ultra-sonografia: É útil para pesquisar a pre-


• Início da sintomatologia, seqüência de apare-
sença de tumores ou cistos ovarianos, deter-
cimento dos caracteres sexuais secundários,
minar os volumes ovarianos e uterino, bem
• Antecedentes familiares: interrogar uso de
como sua morfologia, a utilização de tabelas
hormônios na gravidez,
próprias, principalmente a de Orsini. A rela-
• Idade da menarca da mãe, altura dos pais,
ção corpo-colo e a espessura endometrial são
existência de outros casos na família;
excelentes marcadores de puberdade precoce.
• Antecedentes pessoais: tipo de parto, índice
A ultra-sonografia abdominal é útil na sus-
de Apgar, internação anterior, patologias clí-
peita de pseudo-puberdade precoce com viri-
nicas ou cirúrgicas pregressas ou atuais, de-
lização (avaliar supra renal).
senvolvimento psicomotor, traumas e doen-
Dosagens hormonais, solicitadas quando
ças do SNC.
um dos dois anteriores ou ambos se encontram
alterados:
Exame Físico
• Gonadotrofina e estradiol: São difíceis de
serem avaliados, pois qualquer resultado
• Peso e altura
pode corresponder à maturidade do eixo. O
• Acne, hirsutismo, manchas na pele de cor
teste do LH sob estímulo do LH-RH é o mais
marrom clara (presença de Síndrome de
usado, e resposta puberal sugere fortemente
McCune-Albright), distribuição do panículo
puberdade central.
adiposo e massa muscular.
• Mamas: Observar a simetria e o desenvolvi- • Dosagem de androgênios (testosterona e
mento segundo os critérios de Tanner. DHEA-S) e 17-OH progesterona nos casos
• Abdome: Palpação cuidadosa á procura de de pubarca precoce ou virilização, quando
tumor de ovário. houver suspeita de hiperplasia adrenal con-
• Vulva: Distribuição dos pêlos pubianos (se- gênita forma não clássica.
gundo os critérios de Tanner), tamanho do
clitóris, orifício himenal, presença de secre- • Hormônios tireoideanos: TSH, T3 e T4,
ções ou sangramento. além da dosagem de prolactina elevada podem
• Pênis, tamanho dos testículos e região escrotal. comprovar um quadro de hipotireoidismo.

• Tomografia computadorizada do crânio e


Exames complementares ressonância magnética: A confirmação do
quadro de puberdade precoce central pressu-
O primeiro passo é separar os pacien- põe a exclusão de causas orgânicas. O raio X
tes com distúrbios benignos e auto- limitados, de crânio só dá alteração de sela tursica quan-
do há um macro adenoma hipofisário.

493
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Tratamento nio baixo, FSH e LH baixo ou normais)


- Defeitos permanentes hipotalâmicos-hipo-
Na puberdade precoce central, que corres- fisários
ponde a situação mais prevalente nas meninas, - Hipogonadotrofismo imaturo ou reversível
devemos ter em mente os seguintes objetivos:
• Detecção e tratamento de lesão e�pansiva
do SNC, Diagnóstico
• interrupção do desenvolvimento dos caracte-
res sexuais secundários prematuros até o ini-
cio da puberdade em idade normal, Anamnese
• Otimização da altura final, diminuindo a
velocidade acelerada do crescimento esque- • História patológica pregressa: é importante
lético, avaliar possíveis afecções crônicas, doenças
• Orientação dos familiares sobre os riscos da sistêmicas graves, desnutrição e endocrino-
atividade sexual precoce ou abuso sexual, patias não tratadas.
• Tranqüilizar a paciente e os familiares quanto • História familiar: idade do surgimento da
à evolução e o prognóstico, puberdade dos pais e irmãos.
• Supressão medicamentosa do ei�o hipotála-
mo-hipófise-gonadal.

Medicação de escolha Exame Físico

• Agonista das gonadotrofinas (GnRH-a) • Registrar altura e peso. São muito importan-
• Acetato de Medro�iprogesterona (AMP) tes os dados sobre o crescimento longitudinal
• Acetato de Ciproterona na avaliação do atraso puberal.
• E�ame genital de rotina
Retardo puberal ou Puberdade tardia: • Classificar o desenvolvimento puberal de
ausência de qualquer característica sexual se- acordo com os Estágios de Tanner.
cundária em meninas a partir de 13 anos de ida-
de e de menarca após os 16 anos, e em meninos
a partir de 14 anos. Exames Laboratoriais
É essencial conhecer os padrões básicos
de crescimento e maturação sexual dos ado- • Colher, no ambulatório, material para citolo-
lescentes, assim como as variações individuais gia hormonal.
dentro dos limites de normalidade, bem como • Dosagens séricas de:
considerar a história e a realidade psicossocial - LH, FSH, prolactina.
desses jovens. - T3, T4 e TSH para excluir hipotireoidismo
• Radiografia de punho para avaliar idade ós-
sea. Normalmente está inferior a idade cro-
Etiologia nológica.
• Ultrassonografia pélvica: avaliar presença e
• Hipogonadismo hipergonadotrófico (estro- tamanho de gônadas e útero.
gênio baixo, FSH e LH aumentados) • Cariótipo:
• Hipogonadismo hipogonadotrófico (estrogê- - XX: mais freqüente na disgenesia gonadal

494
Capítulo 53 • Crescimento e desenvolvimento do adolescente

- XO: Síndrome de Turner a uma perda da auto-estima e dificuldade de


- XY: Insensibilidade androgênica incom- socialização da adolescente. Daí a importância
pleta, pode ter ou não virilização. do acompanhamento concomitante do setor de
- Mosaicos - pode haver várias combinações. psicologia.
Tratamento Bibliografia

Chalumeau M, et al. Central precocious puberty


Nas meninas in girls: evidence based diagnosis tree to predict
central nervous system abnormalities. Pediatrics
Administração da terapia de reposição es- 2002; 109(1):61-7.
trogênica, conjugados diários por 21 dias com Cisternino M, et al. Etiology and age incidence of
pausa de 7 dias. As doses vão sendo aumentadas precocious puberty in girls: a multicentric study. J
de acordo com o desenvolvimento dos caracteres Pediatric Endocrinol Metab 2000; 13(1):695-701.
sexuais secundários e tolerância da paciente. Eisenstein E, Sauer MTN, Costa COM, Coelho
Após 12 a 18 meses ou após a ocorrência K. Alterações do crescimento e desenvolvimento
de sangramento vaginal, deve ser acrescentada puberal. In: Costa COM, Souza RP. Adolescência:
uma progestina na dose de 5 a 10mg diários, ao aspectos clínicos e psicossociais. Porto Alegre:
esquema estrogênico, de modo seqüencial. Artmed; 2002. p. 289 - 304.
Nos meninos Hissa MN. Puberdade precoce. In: Magalhães
MLC, Andrade HHSM. Ginecologia infanto-ju-
A terapia de reposição hormonal também venil. Rio de Janeiro: Medsi; 1998. p. 205-209.
está indicada
Seabra MCM. Ultra-sonografia pélvica e mamá-
Em ambos os sexos deve-se reduzir o risco
ria na infância e na adolescência. In: Magalhães
de osteoporose. MLC, Andrade HHSM. Ginecologia infanto-ju-
A ocorrência de atraso significativo no venil. Rio de Janeiro: Medsi; 1998. p. 97-112.
desenvolvimento da puberdade pode se associar

495
Capítulo 54
Avaliação nutricional A avaliação do estado nutricional do
na adolescência adolescente

alMir de castro neves Filho


vírGínia Maria costa de oliveira A avaliação alimentar e nutricional de
adolescentes exige do profissional conhecimen-
to técnico sobre os principais métodos, como
abalizá-los e os encaminhamentos necessários.
Portanto, é de suma importância a entrevista
(anamnese, história patológica e anamnese ali-

A adolescência inicia-se com a puberdade. Na


puberdade, a taxa de crescimento mostra uma
repentina aceleração e representa o sinergismo en-
mentar), em que o profissional da atenção bá-
sica deve coletar informações sobre a situação
socioeconômica da família, consumo alimentar,
tre a ação do hormônio do crescimento e os hor- hábitos e condições sanitárias, além de observar
mônios esteróides, entre outros eventos. Diante da alguns fatores importantes para a elaboração do
complexidade deste fenômeno, é importante que os diagnóstico nutricional.
profissionais de saúde compreendam o significado
da nutrição durante esse período (10 a 19 anos).
Essas alterações súbitas criam necessida- Fatores que devem ser considerados na
des especiais e faz da adolescência uma fase es- história do adolescente
pecialmente vulnerável em termos nutricionais
por varias razões: • Mudança de peso;
Há uma demanda maior de nutrientes. • Padrão usual de refeições;
Ocorre uma mudança no estilo de vida e • Apetite e saciedade;
hábitos alimentares. • Desconforto após as refeições;
Há um aumento na necessidade de nu- • Preferências e aversões;
trientes especialmente associados à participação • Mudanças de paladar;
em esporte, gravidez, desenvolvimento de dis- • Alergias;
túrbios de alimentação, adoção de dietas restri- • Náuseas/vômitos;
tivas, uso de álcool e drogas ou outras situações • Habito intestinal – diarréia/ constipação;
comuns ao estilo de vida do adolescente. • Condições de moradia;
Dessa forma, a avaliação nutricional é im- • Consumo de petisco, salgadinhos, do-
portante para identificar riscos nutricionais na ces, refrigerantes;
adolescência, determinar o tipo de intervenção • Uso de suplementos;
mais apropriada e acompanhar os efeitos desta • Uso de álcool/drogas;
intervenção. Na atenção básica, a avaliação ali- • Restrições dietéticas e doenças crônicas
mentar e nutricional deve ser realizada pelos
profissionais de enfermagem e pelo médico, en- Para fazer o acompanhamento do cresci-
volvendo várias etapas: anamnese, exame físico, mento e desenvolvimento do adolescente é ne-
história patológica, avaliação do crescimento e cessário verificar as medidas de peso e altura
desenvolvimento, anamnese alimentar e exames aproximadamente a cada 4 meses. Esse procedi-
laboratoriais, se necessários. mento justifica-se pelo fato de que cerca de 50%

497
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

do peso e de 20 a 25% da estatura do indivíduo O quadro 1 descreve o fluxo da avaliação do


são adquiridos durante a adolescência. peso ideal na adolescência. O primeiro passo para
Dessa forma, a antropometria tem sido análise é a combinação das medidas de altura para
considerada como um importante instrumento idade, peso para idade e peso para altura expressos
na avaliação das condições de saúde e de nutri- em percentis. De acordo com os resultados desta
ção de populações humanas, principalmente na avaliação recomendamos a utilização de outros
adolescência. Entre as vantagens desta prática indicadores tipo Índice de Massa Corpórea (IMC)
incluem-se: o baixo custo, a facilidade de exe- e dobras cutâneas (tricipital e subscapular).
cução, a sensibilidade e as especificidades dos A combinação entre medidas de peso, altura
indicadores obtidos. e dobras cutâneas vem sendo o método mais uti-
A definição do peso adequado, especial- lizado para avaliar a composição corporal (Tabela
mente entre adolescentes, é problemática, uma 1). A avaliação de dobras cutâneas produz um grau
vez que o padrão de peso ideal neste grupo deve maior de precisão para avaliação nutricional, em-
levar em conta o sexo, a idade, a estatura, o está- bora na atenção básica seja mais difícil de ser execu-
gio de maturação sexual, além da dispersão e va- tada. Nos casos de suspeita de desnutrição e de obe-
riabilidade de peso entre a população de acordo sidade, observados a partir dos dados de percentis e
com os padrões genéticos e étnicos. A avaliação IMC, é recomendável referir o adolescente para ser-
do grau de maturação e de características sexuais viço especializado que conte com o nutricionista,
secundárias é útil, não apenas na avaliação do profissional capaz de complementar o diagnóstico.
crescimento físico, mas também na detecção de
Indicador Variável antro- Pontos de corte
certas doenças e distúrbios associados à adoles- pométrica
cência. Nanismo ou baixa < 3º Percentil ou
Altura/Idade
altura para idade < -2 Escores Z
Determinar Estatura e Peso
Magreza ou baixo
IMC/Idade < 5ª Percentil
Determinar Percentil de Estatura/Idade IMC/Idade
Rico de sobrepeso IMC/Idade -> 85º Percentil
Determinar Percentil de Peso/Estatura
IMC/Idade -> 85º Percentil
Peso/Estatura Peso/Estatura Peso/Estatura Obesidade TRSK/Idade -> 90º Percentil e
abaixo do 25º entre 25º - 75º acima de 25º SSKF/Idade -> 90º Percentil
percentil percentil percentil Tabela 1. Critérios para avaliação nutricional e pontos de corte
durante a adolescência.
Emagrecimento Normal Sobrepeso

Tríceps/Peso Tríceps/Peso Tríceps/Peso Tríceps/Peso Os Métodos de Avaliação


abaixo de 25º entre 25º-75º entre 25º-75º acima de 25º

Desnutrição Variação Variação Obesidade Para facilitar a aplicação dos métodos de


normal normal avaliação apresentamos a seguir as fórmulas e
tabelas de referências utilizadas na avaliação nu-
Orientação tricional do adolescente.
Alimentar
Investigação Investigação
diagnóstica diagnóstica Relação peso/altura
complementar complementar
Dieta apropriada A relação entre o peso/altura (P/A) pode ser
Riscos de saúde
avaliada usando tabelas detalhadas do Nacional
Quadro 1. Avaliação do peso ideal durante a adolecência*.
*
Sempre considerar o estágio de desenvolvimento puberal.
Center for Health Statistic – NCHS, adotadas pelo
**
Proposta por Mahan, K. & Rees J., Adaptado por Eisenstein E.: Ministério da Saúde. Os pesos apropriados para
Nutrition in Adolescence (1984).

498
Capítulo 54 • Avaliação nutricional na adolescência

altura, de acordo com idade e sexo, ficam entre os As circunferências são fáceis de serem
percentis 10 e 90. Para o adolescente é importante mensuradas e pode ser usado fita métrica plás-
o cálculo da velocidade do crescimento que deve tica ou de aço. A dificuldade na localização da
ser realizado no mínimo a cada 4 meses. cintura pode ser resolvida medindo-se a menor
circunferência na região entre o bico do mamilo
Velocidade do crescimento e a parte superior da coxa, enquanto que a cir-
Calcula-se a partir de duas medidas, seja de peso ou esta- cunferência do quadril é definida como a maior
tura, separadas por um intervalo de tempo.
V = e/t circunferência entre a cintura e joelho.
V = Velocidade de crescimento expressado em cm/ano.
e = Diferença entre as medidas realizadas em dois mo-
Fórmula RCC /CQ
mentos distintos
Classificação: Os valores da relação cintura quadril aci-
t = Intervalo de tempo (em anos ou frações) transcorrido
ma de 1,0 para homens e acima de 0,85 para as mulheres
entre os dois momentos.
indica obesidade andróide e risco maior de doenças rela-
cionadas à obesidade.
O Índice de Massa Corporal é calculado
pelo peso em quilogramas dividido pelo resultado
da altura ao quadrado expressa em centímetros. Pregas ou dobras cutâneas
O IMC foi recomendado como indicador an-
tropométrico essencial durante a adolescência para A medida de espessura da dobra de gor-
avaliar estado de magreza, desnutrição, sobrepeso e dura ou dobra cutânea é um meio de avaliar a
obesidade. Portanto, esse índice possibilita identi- quantidade de gordura corpórea que tem um
ficar problemas que se instalaram ao longo do cres- adolescente. É uma prática em clínicas, embora
cimento e tem a função de marcador vigilante. sua validade dependa da precisão das técnicas de
medida. Por este motivo não são muito utiliza-
Fórmula do IMC = Peso (kg) das na atenção básica.
Altura(cm)

Percentual de gordura Necessidades alimentares e nutricionais

Estudos indicam que a forma de distribui- As necessidades de aporte energético para


ção da gordura no corpo é mais importante que a atender as demandas do crescimento e desen-
gordura corporal total na determinação do risco volvimento do adolescente estão associadas ao
individual de desenvolver doenças. Portanto é aumento da atividade física e do consumo ali-
importante avaliar o processo de maturação cor- mentar. As necessidades dietéticas foram reco-
pórea total dos adolescentes. mendadas pelo Conselho Nacional de Pesquisa
As meninas ganham mais gordura que os me- dos Estados Unidos e constam das tabelas 2 e 3.
ninos. Na fase adulta chegam a ter 22-26%, de gor- A alimentação saudável deve ser varia-
dura, enquanto que os meninos chegam a 15-18%. da incluindo alimentos ricos em carboidratos,
proteínas, gorduras, vitaminas e sais minerais,
os quais devem ser distribuídos em cinco a seis
Razão da circunferência cintura-quadril (RCQ) refeições ao dia. É importante que a alimentação
seja variada e equilibrada de acordo com as ne-
A razão da circunferência cintura-quadril cessidades do adolescente.
é indicador de risco. Por isso, tornou-se impor-
tante durante a avaliação nutricional.

499
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Idade Peso Altura Energia Kcal) Proteína (g) classe de alimento e pode compor uma dieta sau-
Sexo Kg cm p/Kg p/dia p/Kg p/dia dável com equilíbrio, variedade e moderação.
Masculino Gorduras, azeites e açúcares
CONSUMIR ESPORÁDICAMENTE
11-14
anos
45 157 55 2500 1,0 45

15-18 Grupo de Laticínios


anos
66 176 45 3000 0,9 59 Grupo de carnes, aves,
Yogurte e queijos
pescados, feijões, ovos
(2 - 3 porções)
19-24 e nozes (2 - 3 porções)
anos
72 177 40 2900 0,8 58 Grupo de Vegetais
(3 - 5 porções)
Feminino Grupo das frutas
(2 -4 porções)
11-14
anos
46 157 47 2200 1,0 46
Grupo dos
pães, cereais,
15-18 arroz e mas-
anos
55 163 40 2200 0,8 44 sas (6-11
porções)
19-24 Figura 1. Pirâmide Alimentar
anos
58 164 38 2200 0,8 46

Tabela 2. Ingestas diárias de energia e proteínas recomendadas CHAVE


(RDA – 1989). Gordura (natural e adicionada)
Açúcar
Idade Cálcio Fósforo
Mag-
Ferro Zinco Iodo Selênio
Estes símbolos nos mostram que as gorduras e
nésio açucares são adicionados aos alimentos
Sexo mg mg mg mg mg Mcg Mcg
Masculino Adequação da dieta para adolescentes
11-14
anos
1200 1200 270 270 12 150 40 • 1.600 calorias: quantidade adequada aproximada
15-18
1200 1200 400 400 12 150 50
para a maioria das mulheres adultas sedentárias.
anos
• 2.220 calorias: quantidade de calorias adequa-
19-24
anos
1200 1200 350 350 10 150 70 das para a maioria das crianças, adolescentes,
Feminino mulheres ativas e muitos homens sedentários.
11-14 As mulheres grávidas ou que estão amamen-
anos
1200 1200 280 280 15 150 45
tando podem necessitar de mais calorias.
15-18
anos
1200 1200 300 300 15 150 50 • 2800 calorias: quantidade adequada para os
19-24 adolescentes.
1200 1200 280 280 15 150 55
anos Para estes níveis de calorias o quadro 2
Tabela 3. Ingesta diária de minerais (RDA – 1989). apresenta porções de alimentos baseados na Pi-
râmide Alimentar.
Na atenção básica a Pirâmide Alimentar,
figura 1, constitui um bom instrumento para Grupos | Níveis de calorias
aprox. aprox. aprox.
1,600 2,200 2,800
orientar sobre as boas práticas alimentares. O
Proporções para o grupo de pães 6 9 11
manual da pirâmide recomenda 6-11 porções
Proporções para o grupo de
por dia de pão, cereais e massas, 3-5 porções de 3 4 5
verduras
legumes, vegetais ou frutas, 2-4 porções de lati- Proporções para o grupo de frutas 2 3 4
cínios, 2-3 porções de carne, aves, peixes e legu- Proporções para o grupo de leite 2-3 2-3 2-3
mes e no topo da pirâmide, para consumir com Proporções para o grupo de carnes 5 6 7
moderação, as gorduras, os óleos e os açúcares. Gorduras totais (gramas) 53 73 93
Durante as atividades de educação alimen- Açúcares adicionados totais
6 12 18
tar, os profissionais de saúde devem orientar os (colher de chá)

adolescentes a utilizar a pirâmide de alimentos Quadro 2. Exemplos de dietas diárias em 3 níveis de calorias.

como um guia geral, que permite selecionar cada

500
Capítulo 54 • Avaliação nutricional na adolescência

O quadro 3 apresenta alguns exemplos de atividades, inclusive com o fornecimento de


alimentos que representam uma porção de cada métodos anticoncepcionais;
grupo da Pirâmide. • Inscrição no pré-natal, se possível com um
momento específico para o atendimento da
Grupos Alimentares Porção do alimento
adolescente grávida, seu companheiro e/ou
• 1 fatia de pão de forma
• 1/2 pão francês ou similar
familiares;
• 2 - 4 biscoitos sem recheio • Incentivo ao aleitamento materno;
• 1/2 �ícara de cereal matinal • Promoção do resgate da auto-estima e cidada-
Pães, cereais, arroz e
• 1 pedaço pequeno de bolo sem
massas nia com objetivo de estimular uma retomada
cobertura
• 1/2 �ícara de feijão (sem caldo) no seu projeto de vida (volta à escola, ao tra-
• 1/2 �ícara de arroz ou macar-
balho, ao lazer, entre outros);
rão cozido
• Envolvimento a família nos processos educa-
• 1 unidade média
Fruta • 1 fatia média tivos;
• 1/2 �ícara de fruta picada • Promoção de ambiente domiciliar seguro;
• 1 �ícara de folhosos crus • Inserção da família em programas de inclusão
Vegetais e hortaliças • 1/2 �ícara cozidos ou picados
crus social, se necessário;
• 1 �ícara de leite ou iogurte • Orientação de cuidados higiênicos corporais
Laticínios
• 2 fatias finas de queijo e de saneamento do domicílio;
• 1 bife, 3 colheres de carne • Atendimento ou referência de todos os filhos
moída/picada
Carnes de adolescentes para o acompanhamento pe-
• 1 posta de pei�e
• 1 pedaço frango diátrico, pelo menos até o 2º ano de vida, vi-
• Deve-se usar com moderação sando também a interação pais/criança;
Gorduras e açúcares • São adicionados no prepara • Incentivo e facilitação da participação da famí-
dos pratos
lia, visando estimular maior apoio e compreen-
Quadro 3. Exemplos de Alimentos que Representam Porções de
Cada Grupo da Pirâmide. são;
• Incentivo a participação dos companheiros
Hábitos Alimentares das gestantes adolescentes em todos os mo-
mentos do atendimento.
A formação dos hábitos alimentares ocor-
re a partir da primeira infância e se completa na
adolescência, portanto é importante que a escola Em nível da comunidade
e os profissionais da equipe do Saúde da Família
desenvolvam atividades conjuntas de promo- • Estímulo a adoção de ações intersetoriais que
ção da saúde. Assim sendo, sugerimos algumas promovam a melhoria de acesso a uma alimen-
ações. tação adequada (geração de emprego e renda;
capacitação, alfabetização, saneamento etc.);
Ações de promoção: em nível individual • Fomento/participação da criação de grupos
de apoio psicológico;
• Orientação alimentar com práticas saudáveis; • Orientação sobre alimentação e modos de
• Incentivo a estilos de vida saudáveis; vida saudáveis em escolas, centros profissio-
• Acompanhamento ou referência dos adoles- nalizantes, associações, grupos de jovens etc;
centes aos serviços de planejamento familiar; • Incentivo a produção e disponibilidade de ali-
• Informações que permitam o acesso à Uni- mentos, com ênfase nos alimentos regionais;
dade de Saúde onde são desenvolvidas tais • Orientação sobre higiene e saneamento am-

501
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

biental; Durante a adolescência, o indivíduo passa


• Promoção de gincanas, jogos e outras ativida- a entender e lidar com seu novo universo físico
des físicas. e mental. À medida que o corpo adquire nova
configuração o/a adolescente terá que se readap-
Situações de necessidades especiais – gravidez tar com sua nova imagem e seu papel na socie-
dade. Além de todos os riscos desta fase, há uma
A gravidez na adolescência é uma fase muito pressão cultural em direção à idéia de beleza,
especial na vida da menina. Embora seja um fenô- valorizando a magreza e estigmatizando a obe-
meno normal para a maioria das mulheres em idade sidade nas meninas, o que predispõe às atitudes
fértil, as adolescentes que começam sua vida obsté- alimentares anormais. Os rapazes buscam um
trica precocemente (enquanto elas mesmas ainda corpo musculoso e sarado, tendo o peso como
estão crescendo) podem estar particularmente em parâmetro de ganho muscular.
risco de sobrepeso e obesidade. Portanto é muito Os casos seguintes ilustram os principais
importante iniciar o pré-natal para conhecer o es- problemas de saúde dos/das adolescentes rela-
tado nutricional antes e durante a gestação. cionados com alimentação e nutrição.
A gestante adolescente deve ser avaliada
usando os mesmos critérios de uma mulher adul-
ta, ou seja, estado nutricional anterior à gestação, Caso Clínico 1
cálculo do IMC e através da utilização do gráfico
de ganho ponderal do Centro Latino Americano D. Cecília, mãe de Nina, de13 anos, procurou
de Perinatologia – CLAP, recomendado pelo Mi- a unidade porque a filha está toda formada e ainda
nistério da Saúde. No aconselhamento das mães não havia menstruado. Acha também que ela está
adolescentes, o profissional deve estar ciente muito magra e pálida, não gosta de comer em casa
das estruturas social, econômica e educacional (só come “bobagens” e abusa de refrigerantes).
da adolescente, que influenciam suas escolhas Após o atendimento o Médico de Família, cons-
alimentares. É recomendado que a adolescente, tatou a ausculta cárdio pulmonar, a pressão arterial e
como um grupo especial, ganhe 10,4 a 14,9Kg o pulso estavam normais. No exame físico observou
durante a gravidez, embora o ganho de peso seja que Nina estava no estágio P1/M2 de Tanner, pesava
individualizado e dependente do peso pré-graví- 35 Kg e media 140 cm.
dico e da idade ginecológica. Ao suspeitar de desnutrição, o profissional
deve realizar a avaliação do estado nutricional do
adolescente seguindo as etapas da avaliação ali-
Estado nutricional anterior à gravidez mentar e nutricional descritas anteriormente.
Nina é um caso típico de desnutrição cujas
IMC = P/(A)² principais características foram: a diminuição
Onde: da velocidade do crescimento esquelético; atra-
P = peso anterior à gestação (pré-gravídico) so, má ocorrência dos eventos da puberdade e
A = altura elevada ao quadrado retardo na difusão dos ossos longos.
A orientação dietética foi realizada, dentro
das possibilidades e das particularidades da ado-
Principais problemas de saúde dos lescente, com o objetivo de aumentar a ingestão
adolescentes relacionados com a calórica. Caso seja identificada alguma doença
alimentação e nutrição associada (verminoses, anemia, entre outras),
deve ser disponibilizado tratamento adequado.

502
Capítulo 54 • Avaliação nutricional na adolescência

Para os casos de transtornos do crescimento que não estava mais gostando da escola porque, por
ou da puberdade, a investigação e tratamento de- ele usar óculos e ter uns quilos a mais, os colegas o
vem ser realizados em uma unidade de referência. estavam apelidando de cego Aderaldo, “ceguinho de
Os distúrbios de alimentação e comporta- guia” e peso pesado. “– Essa brincadeira, disse Pe-
mento alimentares não saudáveis tais como die- dro, eu não gosto e já estou ficando chateado. Por
tas restritivas, alimentação em excesso e o com- isso não quero mais estudar e nem vou usar os ócu-
portamento de controle de peso representam as los mesmo que eu sinta dor de cabeça. A professora
principais preocupações da saúde que afetam os disse que ia conversar com a mãe dele e assim o fez.
adolescentes. Os distúrbios de alimentação, em Na conversa com a mãe a mesma referiu que Pedro
geral, começam entre as idades de 14 a 20 anos. estava perdendo o entusiasmo pelos estudos, que es-
Entre os principais distúrbios alimentares tava tirando notas baixas e ia para a escola forçado.
na adolescência estão o sobrepeso e a obesidade. Pedro tem 12 anos, usa óculos desde pequeno e pesa
Trata-se de condição crônica decorrente do de- 60 quilos. Ultimamente parou de crescer, não pratica
sequilíbrio energético onde o consumo excede esporte e come muito, o que tem preocupado a mãe,
o gasto de energia por um período considerável pois na sua família há vários casos de diabetes.
de tempo. A obesidade é um problema de saúde Diante desse cenário o profissional da
pública de caráter epidêmico. É uma epidemia atenção básica deverá fazer anamnese verifican-
crescente cuja prevalência nos países da Améri- do: vontade para emagrecer; tratamentos ante-
ca Latina chega a 20-30%, sendo maior no sexo riores, dietas, uso de medicamentos, atividades
feminino. Estudos têm demonstrado que a obe- físicas, problemas de saúde associados; obesida-
sidade aumenta 10 vezes o risco de diabetes e de na família; hábito familiar e vida social.
50% de hipertensão arterial, que pode ser redu-
Avaliação Clínica e laboratorial
zida através da perda de peso em até 45%. No exame físico devem ser verificados: peso, altura, cir-
Os principais fatores que podem desencade- cunferência da cintura e do quadril, hiperpigmentação
ar a obesidade são: modificação metabólica: andro- em dobras cutâneas, distribuição de gordura corporal e
maturação sexual.
pausa e menopausa, motivação diminuída, depres-
são, solidão, alterações psicomotoras e neurológicas, Exames laboratoriais de interesse nesse caso
Hemograma, colesterol total e frações, triglicerídeos, gli-
econômicas e sociais, manutenção de peso anterior cemia, hormônios da tireóide, uréia e creatinina. Exame
e diminuição intensa da atividade física. sumário de urina.
Existem vários fatores de risco para obe-
Critérios de avaliação
sidade, e por isso é importante ser prevenida e Referência gráfica IMC/NCHS.
diagnosticada ainda na adolescência.
O caso seguinte ilustra os principais fato- Outro problema que tem preocupado
res da obesidade. muito os profissionais de saúde são os distúrbios
alimentares que, nos últimos 15 anos, tornam-se
alvo de muitas pesquisas dado o aumento de sua
Caso Clínico 2 incidência na população jovem, principalmente
nos adolescentes.
Na Escola “Aprenda Brincando” uma profes- Os distúrbios alimentares são a Anorexia
sora percebeu que um aluno estava meio triste. Por Nervosa (AN) e Bulimia Nervosa (BN). Estas con-
duas vezes tinha tido esta percepção, mas só agora dições são complexas do ponto de vista etiológico,
resolveu ir falar com Pedro para saber o que estava crônicas, de difícil controle, e é necessário acompa-
acontecendo. No início da conversa Pedro se intimi- nhamento a longo prazo, com recaídas freqüentes.
dou e não quis falar, porém contou para a professora Os profissionais de saúde devem estar

503
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

alertas para os primeiros sinais dessas doenças. durante a consulta, a adolescente demonstrou
O diagnóstico precoce pode fazer toda a diferen- distorção da imagem relatando que, nas freqüen-
ça entre o fracasso e o sucesso terapêutico. tes consultas ao espelho, se acha muito gorda.
Os casos que se seguem são bons exemplos A dieta é hipocalórica: relatou suprimir doces,
para identificação de AN e BN. massas, carnes vermelhas e brancas. Tem como
meta emagrecer, querendo a qualquer custo per-
Caso Clínico 3 der peso e ficar cada vez mais magra.
Durante o exame físico foi verificado que
Uma conversa entre Ana e Cristina, duas ami- a pele estava seca e descamativa, cabelos secos
gas e colegas de escola, sobre a vontade de ser modelo com áreas de alopecia. Sem edemas. FC: 55 bpm,
chamaram a atenção da tia da Ana. A conversa era a PA: 90 x 60 mmHg; TAx: 36º; Altura: 171cm;
seguinte: Cristina disse a Ana: “- Eu fui convidada Peso: 40kg.
para participar de um desfile lá no bairro e tenho que Alguns critérios devem ser levados em
estar bem bonita porque quero ganhar. Meu sonho é consideração pelos profissionais da atenção bá-
ser modelo.”. Ana, em seguida, falou: “– Pois só tem sica para o diagnóstico da AN, tais como:
um jeito: deixar de comer. Fique sem comer que você • Recusa em manter o peso acima do mínimo
vai emagrecer tudo que você quer em duas semanas.” normal de peso para a idade e altura (por
Cristina disse: “– Tenho 15 anos, minha altura é 171 exemplo, o peso é 85% inferior ao esperado),
cm, peso 50 Kg, e tenho que pesar 43. Vou diminuir 7 ou dificuldades em manter o peso durante o
quilos, quer apostar comigo? Vou deixar de comer, não período de crescimento (acarretando ganho
vou tomar nem água, quero ficar bem magrinha para de peso menor que o esperado);
poder participar e ganhar o concurso.” • Medo intenso de ganhar peso ou engordar.
Passaram-se dez meses e a tia de Ana tele- • Distorsão perceptual, rigor e�cessivo na au-
fonou para saber notícias da família. Em conver- to-avaliação do peso ou tamanho corpóreo ou
sa com a cunhada perguntou por Cristina, e ficou não considerar o baixo peso preocupante;
sabendo que a garota tinha sido levada ao Posto • Amenorréia em mulheres. Por e�emplo, au-
de Saúde para ser consultada porque estava com sência de três ciclos menstruais.
a menstruação irregular, não queria comer, sem-
pre afirmando estar gorda. Pediu para falar com Caso Clínico 4
Cristina, que recusou atender o telefone.
Resultado dos exames laboratoriais, solicita- Mariana, 15 anos, 1.56 de altura. Está fa-
dos durante o atendimento médico: glicemia – 63 zendo dança contemporânea no ABC embora não
mg%; Hb – 12,5; Ht – 32%; GB – 4300; Plaq – goste muito, mas a madrinha tem muita vontade que
120.000; densitometria óssea – normal para idade. ela participe do grupo de dança do Município, am-
No terceiro caso, é possível identificar as pliando assim as possibilidades de viagens por conta
principais características da anorexia nervosa: das contratações do grupo. Só que Mariana está com
• Perda de peso intensa à custa de dieta e�tre- tanta raiva que mente bastante, diz que vai para a
mamente rígida; aula de dança e lá não aparece, queixou com a pro-
• �usca desenfreada pela magreza; fessora que não gosta daquele tipo de dança e queria
• Distorção da imagem corporal; fazer natação, mas a mãe não escuta. “- Parece que
• Alteração do ciclo menstrual; quem manda em minha vida é a madrinha”. Por não
gostar do que faz, Mariana compensa a angústia co-
Durante o exame físico foi observado que mendo compulsivamente. Ganhou nos últimos 2 anos
o estado geral de Cristina era bom. No entanto, 20 kg, tentou fazer dieta, mas continuava comendo

504
Capítulo 54 • Avaliação nutricional na adolescência

compulsivamente alimentos muito calóricos após os regularmente envolvida com a auto-indução


períodos restritivos. Passou a ler muito sobre dietas e de vômitos ou uso de laxativos, diuréticos;
em um certo dia, sentindo-se muito culpada, passou a
provocar vômitos diariamente, após comer. Nesse pe- Durante o exame físico Mariana apresen-
ríodo apresentava fraqueza generalizada, não tinha tou bom estado geral, orientada, corada, FC –
vontade de viver, ciclos menstruais irregulares, dor 88bpm; PA – 110 x 70 mmHg, TAx - 36,5º; P
retroesternal em queimação, mas não perdia peso. Só – 62, 5kg; E - 153 cm. Não apresentou lesões em
procurou ajuda médica agora, com intuito de ema- dorso da mão nem problemas dentários, porém
grecer de maneira saudável. relatou obstipação, esofagite, dor abdominal e
No quarto caso é possível identificar al- sinais leves de desidratação. Os resultados dos
gumas das principais características da Bulimia exames laboratoriais foram: Hb – 14,1; Htc –
Nervosa (BN), com repetidos episódios de consu- 43%; Glicemia – 91mg%.
mo compulsivo excessivo de alimentos. Estas cri-
ses são caracterizadas pelas seguintes situações: Síndrome de Adonis
• Consumo, em períodos isolados (por e�em-
plo, 2h), de quantidades de alimentos defini- Além da AN e BN outro transtorno tem
tivamente maiores que muitas pessoas consu- sido identificado junto aos adolescentes: a “VI-
miriam durante um período de tempo e sob GOREXIA” ou “Síndrome de Adonis”, que
circunstâncias similares; pode ser definida como um transtorno dismórfi-
• Perda do senso de controle ao se alimentar co corporal onde a adicção ou dependência pelo
durante a crise (por exemplo, a sensação de exercício é também chamada de “Overtraining”.
que não pode parar de comer ou de se contro- Seus portadores realizam práticas esportivas de
lar ou de quanto consumir); forma contínua com valorização praticamente
• Repetidos comportamentos compensatórios religiosa (fanatismo) ou a ponto de exigir cons-
não apropriados para prevenir o ganho de tantemente um corpo perfeito, sem importar-se
peso, como a auto-indução de vômitos, abu- com eventuais conseqüências ou contra-indi-
so de laxativos, diuréticos, enemas ou outras cações. Ainda não é catalogada como doença
medicações, jejuns ou exercícios em excesso; específica de classificação CID-10 ou DSM.IV.
• O consumo compulsivo de alimentos e as ati- É mais comum entre os homens. As principais
tudes compensatórias ocorreram, em média, características são:
pelo menos duas vezes por semana durante os • Disfunção da forma: Mesmo fortes e muscu-
últimos 3 meses; losos se consideram fracos e até esqueléticos;
• A auto-avaliação é e�cessivamente influen- • Vergonha de seus corpos;
ciada pelo tamanho e peso corpóreo. • Recorrem aos e�ercícios e�cessivos;
• O distúrbio não ocorre e�clusivamente du- • Uso de fórmulas mágicas para acelerar o for-
rante os episódios de AN; talecimento, como consumo de preparações
• Tipo purgação: durante o atual episódio de ricas em carbohidratos, ergogênicos e esterói-
BN, a pessoa está regularmente envolvida na des anabolizantes.
auto-indução de vômitos ou abuso de laxati-
vos, diuréticos ou enemas; Devido ao uso de anabolizantes e suple-
• Tipo não purgação: durante o atual episódio mentos em excesso, as conseqüências possíveis,
de BN, a pessoa tem o hábito de usar meca- mais comuns, são: insônia, falta de apetite, irri-
nismos compensatórios inapropriados, como tabilidade, desinteresse sexual, fraqueza, cansa-
jejuns ou excesso de exercícios, mas não está ço constante e dificuldade de concentração. Es-

505
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

ses adolescentes apresentam, também, alterações


nos hábitos: passam a contabilizar as calorias,
supervalorizar o culto ao corpo e dieta detalhista
em quantidades e horários, com baixo teor de
gordura e rica em proteína.

Condutas

Nesses casos a equipe da atenção básica


deverá referir os jovens para serviço especiali-
zado que disponha de equipe multidisciplinar
com profissionais como psiquiatra, psicólogo,
nutricionista, terapeuta ocupacional, educador
físico. É necessário, em todas estas situações, ex-
periência e estrutura adequadas.

Bibliografia

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Pediatr 2000; 76 (3 Supl.): S263-S74.
Kause. Alimentos, nutrição & dietoterapia. 10.
ed. São Paul: ROCA; 2002.
World Health Organization. Physical status: the
use and interpretation of anthropometry. Gene-
va: The World; 1995. (WHO Tecnical Report Se-
ries, 854).

506
Capítulo 55
Aspectos psicossociais do maturidade, envolve o processo do desenvolvi-
desenvolvimento e da sexualidade mento cognitivo até o florescimento das faculda-
des mentais; situa o indivíduo entre os limites da
na adolescência
dependência infantil até a autonomia do adulto,
zenilce vieira Bruno
construindo o alicerce, por etapas, de uma iden-
tidade, que vai se concretizando na juventude
através de reformulações constantes de caráter
social, sexual e de gênero, ideológico e vocacio-
nal, impostas por uma realidade cultural, carre-

O reconhecimento de uma etapa da vida, sem


fronteiras etárias definidas, marcada pela
transitoriedade, sincreticamente unida à infân-
gada de prescrições e divergências de valores.
A literatura etnológica tem revelado que,
em muitas culturas, existem ritos de iniciação
cia e à idade adulta, sempre existiu em todas as com definição explícita de um estatuto que tem
sociedades e durante todas as épocas da história, por fim converter o jovem em um adulto sociali-
mas, só, recentemente, a adolescência tem sido zado e bem adaptado à sua sociedade. Estes ritos
reconhecida e incluída como objeto de atenção contêm uma simbologia de alcance social, pois,
em programas sociais e de saúde. ao promover a integração dos jovens às regras
Nos dias de hoje, com o crescente aumen- sociais e políticas de sua cultura, assegura o seu
to da expectativa e da qualidade de vida das reconhecimento como cidadão por parte dos ou-
pessoas, que acompanha o controle dos proces- tros membros da sociedade.
sos mórbidos e a queda da mortalidade geral, Estas observações contrastam com o que
vão emergindo a possibilidade de se redefinir se tem observado na atual sociedade ocidental,
em grandes linhas as fronteiras da vida e pode em que a passagem à idade adulta não está ins-
se demarcar, com mais nitidez, as estruturas titucionalizada. Os poucos ritos de passagem
demográficas. No contexto contemporâneo, a existentes implicam em aspectos parciais do
adolescência e a juventude se impõem pelo seu indivíduo, prescrevendo que a transição entre a
contingente numérico significativo, pelas suas infância e a idade adulta se mantém em aberto.
expressões peculiares e, muitas vezes, dramá- Nas zonas urbanas, observam-se jovens
ticas de conduta e pela sua influência conside- marginalizados por escassez de atividades pro-
rável no mercado capitalista de consumo. Estes dutivas, por um aumento crescente do tempo da
aspectos e outros que vêm sendo pesquisados e educação formal sem perspectiva de garantia de
desenvolvidos, têm permitido a sua inscrição no trabalho ao final de longa formação, o que denun-
arcabouço teórico do desenvolvimento, e, inclu- cia a presença de conflitos entre valores morais
sive, na criação de um novo olhar profissional ao introduzidos pela cultura e a falta de condições
Adolescente. materiais básicas capazes de garantir a sua sus-
Na cultura ocidental contemporânea, exis- tentação. Nas zonas rurais, além de toda a desi-
te o consenso de que os primeiros indícios da gualdade de oportunidades que é revelada pelas
maturação sexual, introduzidos pela puberdade, precárias condições de sobrevivência de todas as
marcam concretamente, o início da adolescência. idades, verifica-se que as crianças, mal alcançam
Em perspectiva ampla, a adolescência engloba a à puberdade, já se somam à massa de miseráveis,
evolução da sexualidade e suas vicissitudes até a vítimas de um sistema que perpetua a pobreza e

507
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

a degradação humana, afetando, principalmen- ventes bem nascidos e bem dotados, resta o ves-
te, as camadas menos privilegiadas. tibular que penaliza, humilha e adia a realização
Os adolescentes e os jovens de hoje, con- intelectual e pessoal. É a violência sutil fantasia-
tinuam atravessando este tempo da vida como da de boas intenções.
um período indeterminado de extensa duração. A gravidez na adolescência é a condição
Mostram grandes dificuldades em conquistar o que resta para a menina se afirmar como mulher
seu estatuto social e de exercer a sua cidadania, em uma sociedade que ainda faz discriminação
pois carregam o peso dos próprios conflitos e das de gênero. Note-se bem que esta discriminação
instabilidades da sociedade contemporânea, que de gênero está sendo apresentada, pelos meios de
tem produzido, na forma de iatrogenia, uma as- comunicação, na forma de ‘marketing’ alternativo
sincronia acentuada entre as idades de maturi- do prazer. No tempo contemporâneo, a ordem
dade biológica, psicológica e social. é o controle da natalidade, não mais camuflado
No contexto das contradições dos discur- pelo planejamento familiar, e a adolescente, no
sos e das ações do mundo contemporâneo, das gozo de pleno direito à fertilidade, paga, hoje,
hipertrofias deformadoras de aspectos fragmen- pelo que jamais irá realizar amanhã.
tados da sociedade, emergem os adolescentes e Sem tempo e sem espaço, os adolescentes
jovens, assumindo os aspectos mais negativos de hoje continuam nômades do imaginário, sem
do mundo atual. As estatísticas de mortalidade direito de serem iniciados na realidade. O pre-
apontam que eles estão morrendo em progres- sente não os comporta e o futuro parece que não
são crescente por eventos violentos e, se muito conta com eles. Portanto, no trabalho com ado-
tem sido realizado pela ciência e pela tecnologia, lescentes e jovens, é importante a conscientiza-
elas não têm contemplado este grupo de forma ção dos profissionais sobre a concreta realidade
preservadora. Por exemplo, as leis prescrevem mundial, de forma que os discursos sejam trans-
velocidades menores nas rodovias e ruas das ci- parentes, sempre com respaldo na lei, que asse-
dades e a tecnologia joga no mercado carros cada gura direitos e garante estatuto de cidadania. As
vez mais potentes e velozes. Os meios de comu- ações de saúde constituem direito social, assim
nicação acenam a prioridade para um mundo como a educação, o trabalho, o lazer, a seguran-
virtual, inalcançável, e os adolescentes, vítimas ça e outros, na forma da Constituição (art.6 dos
do imaginário, buscam as alucinações da ilusão, Direitos Sociais). As estratégias de prevenção
perdendo a referência da realidade. e promoção à saúde, devem ter a colaboração e
Seriam estes óbitos por violência os re- participação ampla e ativa de todas as especiali-
sultados funestos dos rituais de passagem que zações, envolvendo diferentes instituições e tra-
a sociedade contemporânea tem dado como zendo consigo os diversos setores da sociedade.
provas de iniciação aos adolescentes e jovens? A palavra adolescer vem do latim e signi-
Sem limites etários definidos, sem adultos de fica crescer, engrossar, tornar-se maior, atingir a
referência, sem lugar, sem tempo, a adolescência maioridade. Dos seres vivos, os humanos são os
de hoje anda, às soltas, construindo uma cultu- únicos que vivem a adolescência como uma im-
ra marginal. Nos parques, nos shoppings, com as portante etapa do desenvolvimento. Esta é uma
drogas, os skates, o dialeto próprio, a roupagem, das fases em que o ser humano sofre as maiores
os enfeites e a aparência típica, eles vivem à par- modificações no seu processo vital, do nasci-
te. Vistos como ameaças sociais são enfrentados mento à morte.
pela força policial. Resistindo às pressões esco- O início da adolescência está nitidamente
lares, são punidos com avaliações tendenciosas e demarcado pela puberdade; no entanto, o fim da
reprovações escolares. Ao final, para os sobrevi- mesma já não é tão claramente definido porque,

508
Capítulo 55 • Aspectos psicossociais do desenvolvimento e da sexualidade na adolescência

além da característica filogenética, interfere a – mente, corpo, percepção do ambiente – já de-


ontogenética, que é a bagagem psicológica ad- sequilibra o núcleo. Na puberdade, as três áreas
quirida no seu meio ambiente. Assim, apesar estão em franco desenvolvimento. Além de esta-
de biologicamente o indivíduo poder ser adul- rem em crescimento simultâneo cada área está
to, ontogeneticamente pode não ter adquirido a intimamente relacionada às outras duas. O papel
maturidade psicossocial. sexual é o papel sociopsicobiológico, de homem
O adolescente enfrenta em relação ao seu ou mulher, cuja complementação resulta num
corpo duas situações básicas: seu corpo perante encontro sexual ou relação sexual propriamente
si mesmo e aos outros. O esquema corporal é a dita, sendo constituído por uma parte orgânica,
representação mental desse corpo. A cada modi- corporal, e outra psicológica, afetiva.
ficação do corpo, modifica-se também o esquema É na área corpo que se operam as maio-
corporal. As sucessivas alterações corporais, tan- res e mais visíveis modificações entre a infância
to na forma quanto em conteúdos, em período e adolescência, o que basicamente caracteriza a
de tempo relativamente pequeno, nem sempre puberdade. Certos centros do Sistema Nervoso
são acompanhadas de modificações do esquema Central amadurecem e determinam o momento
corporal, não coincidindo suas sensações cenes- do desenvolvimento sexual. A maturação nor-
tésicas e sua aparência física com o seu senti- mal depende do desenvolvimento e do funcio-
mento imaginário a respeito desse corpo. namento ordenado de um complexo mecanismo
A adolescência traz grandes alterações que inclui o hipotálamo, a hipófise, as gônadas
corporais, independentes da sua vontade. Dian- e a cápsula supra-renal. A criança que crescia e
te de tais modificações, o adolescente sente-se desenvolvia somaticamente agora se torna pú-
impotente, porém as vive intensamente. O cor- bere com maior produção de testosterona nos
po infantil fica irremediavelmente perdido. São rapazes, principalmente depois dos 13 anos de
tão grandes as alegrias, os benefícios e as possi- idade e estrogênios e progesterona nas moças,
bilidades com o novo corpo que está se desen- iniciando-se aos 11 anos de idade.
volvendo, que o sofrimento pela perda do corpo Devido a sua importância e influência
infantil e vontade de negar o crescimento é lúdi- na psique dos púberes, ressalta-se o desenvol-
co, benéfico e útil. Cada descoberta enriquece o vimento genital dos homens e o da mama das
adolescente. Está claro que, a cada crescimento, mulheres, por serem modificações facilmente
o adolescente também se expõe a situações novas perceptíveis, por si mesmas, também aos obser-
que podem ou não ser conflituosas. vadores externos.
O surgimento das características sexu- A simples ignorância da seqüência deste
ais secundárias também influi nesse sentimen- desenvolvimento pode provocar nos púberes e
to, que é, sem dúvida, um grande ganho para a seus orientadores preocupações desnecessárias.
puberdade, independente de seu esforço, pois é Como, para a imensa maioria, o pênis é o do-
conseqüência de uma programação hereditária cumento que comprova a sua masculinidade,
genética. Para as pessoas psicologicamente com- qualquer alteração qualitativa ou quantitativa
prometidas, este ganho pode trazer sofrimentos pode trazer complicações na psique pubertá-
e, por conseqüência, elas poderão negá-lo. As- ria. É muito freqüente achar que o seu pênis é
sim, o vínculo afetivo passa a ter base biológica pequeno. Em determinado momento do desen-
para evoluir para o afetivo sexual. volvimento não é de estranhar este julgamento.
A percepção do ambiente também se mo- Geralmente o pré-púbere engorda generaliza-
difica, em função do desenvolvimento físico e damente, além disso, é o escroto que cresce em
mental. A alteração de qualquer uma das áreas primeiro lugar. Assim relativamente, o pênis é

509
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

pequeno. Absolutamente, o pênis não diminui Tanto nas moças como nos rapazes, na oca-
o seu tamanho, o corpo do púbere e o escroto é sião em que os pelos axilares começam a desen-
que cresceram. volver-se, há ampliação das glândulas sudorípa-
Em seguida, os púberes acham que têm ras, iniciando a exalação do cheiro característico
o pênis fino. Realmente o corpo do pênis cres- da transpiração, e das glândulas sebáceas, que
ce primeiro em comprimento para depois cres- se tornam mais ativas. Mas os canais secretores
cer em diâmetro. Salvo problemas orgânicos, a destas glândulas não alargam proporcionalmen-
própria fisiologia pode corrigir tais dúvidas. Só te para enfrentar o aumento da secreção e ficam,
transforma-se em problema psicológico quando freqüentemente, entupidos, infeccionando-se
já tem um terreno psíquico predisposto, então com facilidade. O que resulta disso é a espinha
tais mudanças pubertárias funcionam como fa- ou acne, aflição de incontáveis adolescentes.
tores desencadeantes. Podem ser problemas hor- A título de exemplificação do que acontece
monais quando o rapaz já com 17 anos conserva com uma menina quando ocorre uma modificação
características pubertárias. É a puberdade tardia. corporal, tomemos a característica “crescimento
Nas mulheres, o que importa e influi bas- dos seios”. Antes da puberdade, a menina estava
tante em sua psique são as mamas, símbolo da tranqüila com seus “peitinhos”, porque não eram
feminilidade e maternidade, que se desenvol- seu foco de atenção nem seu campo de tensão.
vem dos 11 aos 14 anos, passando pelas seguin- Os “peitinhos” são anatomicamente constituídos
tes fases: eleva-se apenas a papila; desabrocha o por glândulas mamárias latentes, pequeníssima
seio com sua elevação e a papila desenvolve-se quantidade de tecido gorduroso, a ponto de não
como um montículo; alargamento do diâmetro se perceber o volume externamente e na parte vi-
areolar; continua o crescimento do seio e da aré- sível apresentam um pequeno mamilo, bastante
ola, sem separação dos seus contornos; projeção semelhante ao do peito dos meninos.
da aréola e da papila para formar um montículo Na puberdade, por alterações hormonais,
secundário acima do nível do seio. Fase madu- a mama cresce adquirindo novas características
ra com projeção apenas da papila, em virtude da e devido ao crescimento das glândulas mamárias
volta da aréola ao contorno geral do seio. o tecido gorduroso aumenta muito, dando aos
Apesar das mamas serem características seios, forma e volume de pessoas adultas. O pei-
sexuais secundárias das moças, em cerca de to cresceu e transformou-se em seio, no entan-
um terço dos rapazes observa-se algum desen- to, o aparecimento das sensações corporais nos
volvimento mamário e projeção areolar. Este seios é algo novo, que ainda não existia.
desenvolvimento transitório do tecido mamá- Continuando a exemplificação tomemos
rio é causado pelo estrogênio, comum em pré- nos meninos a característica “crescimento do
adolescentes de ambos os sexos e secretado pelas pênis”. O menino, antes da puberdade, estava
glândulas supra-renais. Às vezes o tecido pode tranqüilo com seu “pipi”. Na puberdade, seu
não involuir e requerer uma cirurgia de exére- “pipi” cresce e transforma-se em pênis. O pênis
se de mamas. Além do aspecto psicológico, ge- do adolescente já tem característica de forma,
ralmente negativo, do aumento das mamas nos volume e dimensões de adulto, acrescido da sen-
rapazes, pode o tecido mamário inflamar pro- sibilidade erótica, pois o que havia era sensibi-
vocando uma dor conhecida como mastodinia. lidade corporal sem conteúdos erótico-sexuais.
Este acontecimento pode ocasionar no púbere A puberdade dá ao púbere um recurso a mais de
uma grande preocupação em relação a sua mas- amadurecimento que muda a qualidade de sen-
culinidade, principalmente se o mesmo for alvo sações, sintetizando visivelmente, as grandes al-
de brincadeiras pelos seus colegas. terações hormonais que ocorrem neste período.

510
Capítulo 55 • Aspectos psicossociais do desenvolvimento e da sexualidade na adolescência

O crescimento do pênis é menos notado Razões históricas transformaram a sexualidade


pelo ambiente que o crescimento dos seios; mas em um tema desfigurado, pouco transparente
também repercute na área mente conforme o seu e abordado sem a percepção de sua essência. O
amadurecimento e a sua matriz de identidade. desenvolvimento de pesquisas, de atividades de
O ambiente também pode atingi-lo com maior extensão e publicações, mostrou a necessidade
ou menor intensidade. O amadurecimento dos de ampliar a compreensão da sexualidade, de
seios não implica em sua manipulação, mas o aprofundar conceitos e revisar valores, através
crescimento do pênis geralmente implica em sua de cursos de formação de profissionais que li-
manipulação, principalmente através da mastur- dam com a educação de crianças, de adolescen-
bação. Isto é apenas uma constatação, sem querer tes e de adultos.
discutir os fatores relevantes, culturais ou bioló- A constatação nos dias atuais de proble-
gicos. O púbere também pode ingerir bem esta mas relacionados diretamente a falta de educa-
novidade ou usar de mecanismo de defesa histé- ção sexual, tais como, o crescente número de
rico ou fóbico. Geralmente, os sintomas surgem gestações não planejadas, a prática desenfreada
em situações específicas como vestiários de es- de abortos por jovens e adultos, o aumento dos
cola ou clubes, quando o mesmo tem que se de- casos de AIDS e outras doenças sexualmente
frontar com sua própria nudez perante a nudez transmissíveis, reforçam a necessidade de re-
dos outros. Nestes momentos parece que toda a pensar o ver, o sentir e o agir no que se refere
identidade está localizada nos órgãos genitais. à sexualidade, enquanto dimensão fundamental
A puberdade corporal é nitidamente vi- da integridade humana. Atualmente há muita
sível, aos outros e a si mesmo, pelas concretas discussão sobre a sexualidade humana, seja com
e irreversíveis modificações que ocorrem no fins educativos, esclarecedores ou repressivos,
corpo humano. Já a “puberdade psíquica” não não sendo mais possível deixar este assunto
é visível, nem aos outros nem a si mesmo, e é como tema secundário.
reversível nos momentos de tensão. Seu início Falar em educação sexual requer uma re-
é suave e sua evolução é lenta, sem grandes e flexão sobre um assunto amplo e constante, que
bruscas modificações. A mente do adolescente é é muito mais que o ato de informar, orientar e de
percebida principalmente quando ela reage aos aconselhar, pois se refere ao processo de formar
diversos estímulos corporais e ambientais. Di- os indivíduos pelo conhecimento dos aspectos
ficilmente ela manifesta por si mesma. Quando biológicos, psicológicos, sociais e éticos. Mes-
o adolescente estiver mais integrado psíquico e mo sem percebermos, o contato social influen-
fisicamente consigo mesmo, terá maior seguran- cia nossas acepções de comportamento moral,
ça para buscar o relacionamento com pessoas do do que é permitido, digno e correto. Limitando
outro sexo e viver com mais alegria e prazer à quanto ao conhecimento e a vivência de uma se-
descoberta e a busca da plenitude sexual tão al- xualidade sadia, livre de preconceitos e tabus. Os
mejada por todos nós. programas de orientação sexual podem também
A sexualidade humana, nas ultimas déca- servir como processo de “deseducação”, contra-
das, tem despertado o interesse de inúmeros pes- riando os objetivos ideais, se contar com pesso-
quisadores em diversas áreas do conhecimento, as despreparadas, imaturas, preconceituosas, ou
não só pela complexidade que a envolve, como então se basearem em programas inadequados,
também por se configurar como uma questão com conteúdo e abordagens em que se reduz a
que requer uma intervenção social, uma vez que sexualidade à mera genitalidade.
pelos seus fins mais específicos, a sua projeção se A transformação da educação sexual exis-
dá na sociedade e sobre ela produz seus efeitos. tente é, sem dúvida, uma tarefa difícil, mas não

511
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

impossível. Para tal, é preciso que trabalhemos Bibliografia


não no sentido restrito de informar ou aconse-
lhar, mas de também sermos agentes ativos da Bastos AC. Ginecologia. 10. ed. São Paulo: Gua-
educação. Uma orientação sexual sistematizada nabara-Koogan; 1998.
pode influenciar e fazer parte da educação se-
Bragante L. Amor e sexualidade: a resolução dos
xual dos indivíduos em diferentes instituições
preconceitos. 2. ed. São Paulo: Gente; 1994.
sociais, assim como: família, escola, empresa,
comunidade, creches e hospitais, possibilitando Maakaroun MF. Violência e adolescência. São
a reflexão deste processo em que vivemos. Paulo; 2000. Doutorado [Tese].
É preciso considerar que não basta garan- Masters WH, Johnson VE, Kolodny R. O relacio-
tir um espaço para se falar de sexualidade, mas namento amoroso. Rio de Janeiro: Nova Frontei-
sim que seja de qualidade e acima de tudo, pri- ra; 1982.
me pela ética. A educação sexual deve ser, por- Osório LC. Adolescente hoje. Porto Alegre: Artes
tanto, um exercício de sabedoria e de reflexão; Médicas; 1991.
devendo ser um espaço aberto em que especialis-
Ribeiro M. Educação sexual. Rio de Janeiro: Rosa
tas educadores e familiares possam expandir os
dos Tempos; 1993.
conhecimentos e as informações dentro de um
processo amplo na formação de cidadãos mais Tiba I. Puberdade e adolescência: desenvolvimen-
to biopsicosocial. São Paulo: Agora; 1986.
conscientes e reflexivos e, por isso mesmo, mais
livres e voltados para a transformação da socie- Vitiello N. As bases anatômicas e funcionais do
dade vigente. exercício da sexualidade. São Paulo: Iglu; 1997.
Vitielo N. Educação sexual: reprodução e sexua-
lidade: um manual para educadores. São Paulo:
CEICH; 1994.

512
Capítulo 56
Saúde reprodutiva 30 por cento mais alta entre adolescentes que em
na adolescência mulheres de 20-29 anos de idade, porém menor
que a taxa para mulheres acima de 30 anos. As
zenilda vieira Bruno
complicações de gravidez, parto e o período pós
parto são a sexta causa mais freqüente de morte
para mulheres com idades de 15-19 anos.
Consideramos que existem dois momen-
tos e formas de trabalhar com os adolescentes:
primeiro, a discussão sobre a gravidez antes de
Caso clínico ela ter acontecido, e segundo, o apoio quando o
fato já está consumado, ou seja, o que nós (adul-

M árcia, 15 anos, tem um namorado de 17 anos.


Eles moravam separados, mas estão pensando
em morar juntos porque Márcia está grávida de três
tos/profissionais) podemos fazer quando “elas
estão grávidas”. Uma abordagem com um cará-
ter menos coercitivo, possibilita formular pro-
meses. Eles tinham relação sexual esporádicas, porém gramas mais adequados às necessidades enfren-
nunca usaram nenhum método anticonceptivo porque tadas pelos adolescentes.
não acreditavam que ela pudesse engravidar. Seus pais Uma vez grávida, há duas alternativas: dar
ainda não sabem da gravidez e ela ainda não iniciou à luz ou o aborto. Aborto é ilegal no Brasil com
pré-natal. Tem receio de continuar seus estudos, pois as exceção de duas circunstâncias: se uma mulher
professoras e mesmo colegas podem lhe recriminar. concebe como resultado de estupro ou se uma gra-
As taxas de fertilidade diminuíram drama- videz coloca a vida da mulher em risco. Como em
ticamente no Brasil durante os últimos 20 anos, outros países, a verdadeira prevalência de aborto
especialmente entre mulheres de 20 a 34 anos de é desconhecida. Estimativas variam de um a cin-
idade. Durante este período, a taxa de fertilidade co milhão de abortos cada ano. O Ministério de
para mulheres na faixa de idade de 15 a 19 anos Saúde estima que um quarto de todos os abortos
permaneceu relativamente estável, ou, como re- acontece entre adolescentes. Vários estudos no
sultados do Instituto Brasileiro para Geografia e Brasil sugerem que as adolescentes grávidas de
Estatísticas (IBGE) sugerem que eles aumenta- famílias de renda superior buscam mais o aborto
ram. O resultado foi uma contribuição crescente do que aquelas menos privilegiadas.
de adolescentes para fertilidade global. Enquanto A decisão de provocar um aborto é com cer-
isso, a proporção de mulheres adolescentes de 15 teza um passo difícil na vida de uma adolescente,
a 19 que informam fazer sexo pré-marital mais da mesma forma, que ter um filho nesta faixa etá-
que dobrou, entre 1986 e 1996, de 13,9 a 29,5%. ria. Por isso é importante que façamos um traba-
As conseqüências da gravidez na adoles- lho educativo e preventivo para que as adolescen-
cência são bem conhecidas: um risco aumentado tes de hoje tenham mais e melhores opções.
de mortalidade materna e infantil e morbidade
entre as mães muito jovens, fertilidade de vida
global mais alta, e as conseqüências sociais, como Maternidade na adolescência: aspectos
deixar de estudar, diminuir a capacidade de ga- biopsicossociais
nhar dinheiro e relações instáveis com o parcei-
ro. Segundo Rodrigues, a mortalidade materna é A idade materna é um fator demográfico

513
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

de risco obstétrico. Muitos autores colocam que dos, mesmo sendo um direito garantido pelo
os extremos da idade materna podem trazer con- Estatuto da Criança e Adolescente (ECA);
seqüências tanto para a mãe como para o feto, já • Influência da mídia podendo estimular a se-
que essas apresentam maior risco de desenvolver xualidade dos jovens despertando a curiosi-
complicações durante a gestação e parto ou ainda dade em experimentar o sexo, sem a aborda-
refletir em problemas para o feto, sendo conside- gem da prevenção e do cuidado;
rada de maior risco para a adolescente a gestação • Pobreza e bai�a e�pectativa de vida, ocasionan-
ocorrida na faixa etária inferior a 16 anos. do a falta de objetivos e planos para o futuro;
A idade materna não pode, isoladamente, • �ai�a escolaridade. O bai�o nível educacional é
ser considerada causa de conseqüências adversas causa e também conseqüência da gestação, vis-
da gravidez entre adolescentes. Em geral, condi- to que a maioria deixa de estudar quando en-
ções inadequadas de acompanhamento em torno gravida, ou então é expulsa de forma velada ou
dos processos de gravidez, início do pré-natal literal das escolas. Além de que, muitas vezes
tardio ou inadequado, gravidez não planejada, essas meninas já tinham abandonado a escola;
mau estado nutricional da adolescente, infec- • Transformações físicas, psicológicas e sociais
ções não tratadas antes do parto, falta de bom da idade fazem o adolescente ficar mais sus-
acompanhamento no parto e puerpério, podem cetível ao risco de tornar-se mãe ou pai, já que
aumentar as complicações para a mãe e o recém a adaptação às mudanças é, na maioria das ve-
nascido (RN). zes, difícil, fazendo-o procurar meios de esca-
Vários fatores podem ser responsáveis pelo par dos conflitos.
acontecimento de uma gestação na adolescência:
• Antecipação da menarca, que pode levar a
iniciação sexual mais cedo; Riscos maternos
• Iniciação se�ual sem devida orientação sobre
os riscos e conseqüências;
• Desconhecimento sobre as questões da se- Riscos biológicos
xualidade;
• Pouca participação da família, escola e dos Problemas como: eclâmpsia, anemia, in-
serviços de saúde no processo educativo dos fecção urinária, trabalho de parto prematuro, la-
adolescentes, sendo os próprios colegas ado- cerações do trajeto do parto, hemorragia, despro-
lescentes a principal fonte de informação so- porção céfalo-pélvica, parto difícil e prolongado
bre sexualidade; são considerados riscos biológicos e podem lavar
• Questões familiares, em que os pais se ne- à morte materna. A taxa de mortalidade mater-
gam a aceitar a iniciação sexual de seus filhos na é mais elevada entre adolescentes, mesmo em
e acaba por não interferir de forma positiva países desenvolvidos. No entanto, é importante
neste acontecimento, tornando o adolescen- enfatizar que esses riscos não estão diretamente
te vulnerável a experiência da maternidade e relacionados apenas com a idade, mas também
paternidade; com as condições precárias de vida das adoles-
• Dificuldade na prática da contracepção por centes, inclusive ausência de assistência médica
falta de conhecimento ou por a mesma neces- durante a gravidez. Outro aspecto importante a
sitar de motivação e planejamento, comporta- ser considerado é que a gravidez na adolescência
mento pouco apreciado entre os adolescentes, é, em algumas situações, não planejada, levando
além da recusa, por parte de alguns profissio- freqüentemente ao aborto induzido.
nais, da orientação e da concessão dos méto- Muitas são as questões relacionadas à

514
Capítulo 56 • Saúde reprodutiva na adolescência

gestação entre adolescentes, dentre as quais po- • Dificuldade para inserção no mercado de tra-
deríamos citar a discriminação da família, dos balho e, consequentemente, para o sustento
amigos, o abandono aos estudos e ainda, muitas de ambos; alguns estudiosos consideram a
vezes, a falta de apoio do companheiro. Todos gravidez na adolescência como fator de en-
esses fatores psicológicos podem vir a repercutir trada para o ciclo da pobreza ou manutenção
tanto na gestação quanto no parto, que se cons- dessa condição;
titui num dos momentos de maior tensão emo- • Interrupção no processo normal de desenvol-
cional da gravidez. vimento psico-afetivo e social para assumir o
O pré-natal é amplamente reconhecido papel de mãe ou pai, causando muitas vezes
como um dos principais determinantes da evo- ansiedade, solidão e depressão, podendo ser
lução gestacional normal. Existe um elevado per- somatizado em manifestações clínicas do tipo
centual de parturientes adolescentes que não rece- anorexia, hiperêmese, o que pode ocasionar
bem assistência pré-natal, ou a recebem de forma riscos para o feto;
inadequada. Para a adolescente nem sempre é • Adiamento e/ou modificação dos projetos de
possível a iniciação precoce do pré-natal como é vida futura do(a) adolescente e família;
recomendada (1º trimestre), devido aos conflitos • Relacionamentos maritais prematuros e algu-
do início da gestação, que vai desde a própria acei- mas vezes forçados, marcados por muitos con-
tação da gravidez à aceitação pelo parceiro, família flitos em conseqüência da imaturidade psico-
e sociedade. Geralmente, elas procuram o serviço lógica e dependência econômica da família;
quando já estão com a gravidez avançada, dificul- • Falta de apoio ou abandono do parceiro, em de-
tando o trabalho do profissional de saúde em ten- corrência da instabilidade psicológica e social
tar prepará-las para a gestação, parto, puerpério, destes, muitas vezes também adolescente. Este
assim como corrigir anemia, tratar sífilis, realizar fator pode precipitar sentimentos de insegu-
teste de HIV, prescrever coquetel para evitar a rança e baixa auto-estima, os quais comprome-
transmissão vertical (se for o caso), ou prevenir tem o estado de saúde da gestante adolescente.
eclâmpsia. Daí a grande importância do profissio-
nal do Programa de Saúde da Família (PSF), para Riscos para o recém-nascido
a captação precoce destas adolescentes.
O parto deve ser conduzido por via vagi-
nal, salvo se tiver indicação formal para o parto Prematuridade
abdominal.
Nos extremos da vida reprodutiva estão os
Riscos psicossociais mais altos índices de prematuridade, com uma
conseqüência maior nas mulheres mais jovens.
Para a maioria dos estudiosos a ocorrência A freqüência de prematuridade entre RN
da gestação, freqüentemente, traz conseqüên- de mães adolescentes pode ser atribuída ao de-
cias para o desenvolvimento psicossocial da mãe ficiente controle pré-natal, intercorrências mé-
adolescente, destacando-se: dicas na gestação, a própria imaturidade física
• Abandono da escola formal, o evento da ma- materna, imaturidade da fibra muscular uterina
ternidade muitas vezes a obriga (ou é obri- e tensões emocionais.
gada) a deixar de estudar. O baixo grau de
escolaridade resulta em menor acesso ao co- Baixo peso ao nascer
nhecimento sobre sexualidade, com isso au-
mentam as chances de engravidar; O baixo peso ao nascer (BP), definido pela

515
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Organização Mundial de Saúde (OMS) como Paternidade na Adolescência


peso de nascimento abaixo de 2.500g, é uma pre-
ocupação de Saúde Pública, devido a maior mor- A paternidade, ao longo do tempo históri-
bidade e mortalidade neonatal associada a este co, tem funcionado como um reforçador da mas-
grupo de recém-nascidos. culinidade. O ato de ser pai insere o homem no
Para a OMS o aspecto biológico da gravi- contexto da cultura, tornando-o um responsável
dez na adolescência não pode ser analisado de for- pela perpetuação da tradição.
ma isolada, já que as condições psicossociais têm O controle da gravidez, geralmente é en-
grande importância. A gestação na adolescência carado pelos adolescentes como uma questão fe-
tem sido referida como um fator de risco para o minina, cabendo ao rapaz, a responsabilidade de
BP ao nascer, mas consideram que existem resul- tomar cuidado com as DST e a AIDS.
tados contraditórios em diferentes pesquisas. Al- O pai adolescente muitas vezes se ausenta
guns autores alegam que existiria uma competição do processo de gestação e paternidade por medo,
pelos nutrientes entre mãe e feto, já que os dois pressão ou exclusão. Este adolescente foge, ou
estão em período de desenvolvimento, o feto na simplesmente se afasta do problema e da respon-
vida intra-uterina e a mãe na época da adolescên- sabilidade e os pais da gestante muitas vezes, em
cia. Outros autores acreditam que há interação en- nome da defesa da moral vigente, gritam, esbra-
tre fatores psicológicos, nutricionais, sociais e am- vejam, podendo chegar até a agressão física e mo-
bientais que interfeririam no peso ao nascimento. ral, o que pode levar a jovem mãe à depressão.
Estudos realizados em diferentes regiões e
centros urbanos do Brasil indicam que o número
de RN com baixo peso e peso insuficiente é maior Considerações
entre filhos de adolescentes comparadas às adultas
do mesmo nível social. A avaliação estatística dos Algumas atitudes podem ser tomadas para
diferentes fatores de risco para baixo peso e peso minimizar a gravidez, tais como:
insuficiente indica a baixa idade materna como um • Sensibilizar e capacitar profissionais de saúde
dos fatores de risco, quando outras variáveis são para trabalhar com adolescente, com uma vi-
controladas como idade gestacional e pré-natal. são holística, não julgando o adolescente;
• Oferecer orientação se�ual desde a infância,
pela família e escola;
Mortalidade Infantil • Orientar os pais para que estes assumam o di-
álogo sobre o tema;
A gravidez em adolescentes aumenta o • Abrir outros canais de comunicação: sites de
risco do óbito fetal pela imaturidade da muscu- internet, rede de ajuda, jornal do adolescente
latura uterina e a própria nutrição e desenvolvi- nas escolas e comunidades; grupo de igrejas;
mento do feto. • Tornar o adolescente participativo, discu-
Prematuridade e baixo peso ao nascer são tindo situações reais, tais como: perspectiva
condições que também favorecem o aumento de vida, uso clandestino de anticonceptivos,
das mortes perinatais. pensamento mágico, bloqueios emocionais,
desejo inconsciente de provar fecundidade;
• Produzir material educativo e divulgação dos
já existentes;
• Interferir nos meios de comunicação para ter
mais compromisso educativo e preventivo;

516
Capítulo 56 • Saúde reprodutiva na adolescência

• Oferecer maior acesso aos métodos anticon- mente prejudicial a adolescente e seu concepto,
cepcionais, com discussão das questões liga- embora a gravidez possa interferir no processo
das à sexualidade, gênero e orientação correta natural da adolescência.
sobre a utilização e possíveis efeitos colaterais Os resultados de estudos podem ajudar os
dos mesmos; provedores de serviço e gerentes de programa a
• Formar adolescentes multiplicadores, onde entender por que os adolescentes engravidam e
estes poderiam repassar informações com têm seus filhos. Ter um bebê para muitas adoles-
a mesma linguagem, trocando experiências centes parece impulsionar a percepção da pessoa
com os outros adolescentes nas escolas e nas do seu valor. Diminuir o desejo de um adoles-
comunidades; cente para ter um bebê requer um jogo diferente
• Difundir a anticoncepção de emergência, de intervenções usadas atualmente para prevenir
ainda pouco conhecida por profissionais e gravidezes não planejadas. Esforços para encora-
por adolescentes; jar as mulheres jovens para ficar em escola preci-
• Realizar trabalho intersetorial, onde a escola sam ser implementados.
deve contribuir no desenvolvimento de ati- Estudos sugerem por que as adolescentes
vidades de caráter educativo e preventivo. terminam as gravidezes, até mesmo quando o
Preparar os professores para serem educado- aborto é ilegal. Deve ser considerado ainda que
res no tema transversal de educação sexual, a maioria das adolescentes não pretende ficar
discutindo temas polêmicos com os profis- grávida. Isto aponta a uma necessidade séria
sionais de saúde e ainda identificar, apoiar e para serviços anticoncepcionais melhores e edu-
encaminhar as adolescentes grávidas para os cação de sexualidade para adolescentes na nossa
serviços de pré-natal; região.
• Oferecer maior apoio e incentivo ao desen-
volvimento de pesquisas voltadas a gravidez
na adolescência. Anticoncepção na Adolescência

Não é suficiente o(a) adolescente conhe- Nas três últimas décadas, a prática do sexo
cer os métodos anticoncepcionais para garantir tem se difundido em todas as camadas sociais e,
o seu uso, necessitamos aumentar sua auto-esti- cada vez mais, está sendo estimulada à liberda-
ma, melhorar suas perspectivas de futuro, e de- de sexual. Daí, a grande importância do Plane-
senvolver a noção de auto cuidado, visando tan- jamento Familiar, que deve ser iniciado o mais
to à prevenção da AIDS, como a possibilidade precoce possível, inclusive, introduzindo a edu-
de escolha de não ter filhos. cação sexual nas escolas de Primeiro Grau.
Tanto os riscos maternos como os riscos Para indicarmos um método anticoncepti-
para o recém-nascido podem ser sensivelmente vo temos que analisar cada caso individualmen-
diminuídos se adolescentes grávidas forem ade- te, sem nunca generalizá-los. Devemos procurar
quadamente assistidas. Existe a necessidade de ouvir o(a) adolescente, suas queixas, analisando-
ampliação dos mecanismos sociais de suporte as convenientemente e orientando nas suas in-
(creches, escolas, serviços de saúde, áreas de la- certezas, que, quase sempre são muitas. Há uma
zer, entre outros) dos quais necessitam os pais necessidade de discorrer sobre todos os métodos
adolescentes e seus filhos, por conta da particu- anticoncepcionais, adaptando o mais efetivo
laridade do evento da maternidade e paternidade método para adolescentes, para cada casal.
nesta faixa etária. Não se pode generalizar que a
maternidade na adolescência seja sistematica-

517
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

O que fazer: pode conter espermicida. É colocado no pênis


• Encaminhar as meninas, a partir de 11 anos ereto, antes da penetração, onde é deposita-
de idade e os meninos a partir dos 14 anos, ao do o líquido espermático, evitando que este
Planejamento Familiar; chegue ao trato reprodutor feminino, e, con-
• Realizar reunião com grupos, se possível, seqüentemente, que aconteça uma gravidez
com produção de vídeo educativo, discorren- e/ou que adquira alguma DST. Para que isto
do sobre todos os métodos anticoncepcionais de fato aconteça, é necessário uso do condon
existentes; masculino em toda relação sexual. O condon
• Se já tem atividade se�ual, oferecer um mé- possui eficácia 85 a 90%.
todo após devida orientações sobre todos os
métodos e, em especial, o da escolha do casal, Este método deve ser oferecido para todas
preferencialmente e com o apoio de familia- as adolescentes que comparecem ao planejamen-
res; to familiar, porém é mais usado por paciente no
• Orientar o retorno ao planejamento familiar puerpério ou como método provisório. Pode ser
em caso de dúvidas ou mudança de método; e usado como único método ou associado, o que
periodicamente de 3/3 meses ou 6/6 meses de chamamos de “dupla proteção”, uso de condom
acordo com o método escolhido; e da pílula, por exemplo.
• Retornar ao planejamento familiar, após uma O condon ou camisinha feminina é um tubo
gravidez e/ou aborto, mesmo que já tenha de poliuretano com cerca de 16cm de comprimento
participado de outros ou o mesmo serviço an- por 7,8cm de diâmetro, acoplado a dois anéis flexí-
teriormente. veis também de poliuretano. O anel que fica solto
e dentro do tubo, serve para ajudar na inserção e
na fixação do preservativo no interior da vagina,
Anticoncepcionais junto ao colo uterino. O segundo anel constitui
o reforço externo do preservativo que, cobre par-
Os anticoncepcionais são classificados de te da vulva. O produto já vem lubrificado e deve
acordo com o modo de atuação em comportamen- ser de uso descartável. E ao contrário do condon
tais, métodos de barreira, métodos hormonais. masculino que só pode ser colocado no momento
• Comportamentais: Os comportamentais da relação, o condon feminino pode ser colocado
como o nome indica depende de ter ou não ati- antes do início da relação sexual e retirada tranqüi-
vidade sexual de acordo com o período do ciclo lamente após o coito. O condon feminino surgiu
menstrual. São eles a “tabela” ou abstinência como alternativa para a mulher com o propósito
periódica, método de Oginus Knaus; método de proporcioná-la autonomia no ato sexual.
de Billings ou identificação do período fértil,
de acordo com a presença de muco cervical e • O DIU: Apenas deve ser indicado para as
ainda o coito interrompido. São métodos uti- adolescentes com gestação anterior, ou com
lizados pelas adolescentes, porém pouco efica- um único parceiro, quando o risco de DST
zes, devido ciclos menstruais irregulares, não for mínimo. Tipos: DIU que liberam cobre;
saber identificar o muco cervical, indisciplina DIU que liberam progestágenos; DIU inerte.
e falta de controle do parceiro no momento da
ejaculação, além da presença de espermatozói- São ainda métodos de barreira: o diafragma
de no líquido uretral antes da ejaculação. e espermicidas. Pouco usados entre adolescentes.
• Barreira: O Condon Masculino é um revesti-
mento fino, de látex, lubrificado ou não, que • Anticoncepção hormonal: Podem ser orais,

518
Capítulo 56 • Saúde reprodutiva na adolescência

injetáveis, adesivos, anéis vaginais, implantes. profundo, sem massagear, do 7º ao 10º dia
• Oral: Pílulas esquecidas: Somente 1 pílula- do ciclo. Ou aplicar 1 ampola do 1º ao 5º dia
tomar a pílula quando lembrar e continuar a do ciclo e a seguir a cada 30 ± 3 dias aplicar
cartela normalmente. Duas ou mais pílulas uma nova ampola. Ou ainda 1 amp. IM pro-
– tomar duas pílulas, todos os dias, até che- fundo, sem massagear, no 1º dia do ciclo e
gar no dia certo na cartela, usar um método repetir a cada 90 dias.
complementar e, se sangrar, parar de tomar as
pílulas e começar nova cartela 7 dias depois.
Método de Amenorréia por Lactação (LAM)
Anticoncepção de emergência: Principais
indicações: Relação sexual não planejada e A amamentação exclusiva se caracteriza
desprotegida (comuns em adolescentes); uso pela não substituição de amamentação por outra
inadequado dos métodos anticoncepcionais; alimentação, seja ele sólido ou líquido, sempre
emprego incorreto do Condon, ruptura ou que o bebe solicitar (pelo menos de 4/4h por dia);
vazamento de liquido seminal, devido retira- e amamentar a noite pelo menos a cada 6h.
da tardia do pênis da vagina; deslocamento A amamentação é o método que utiliza a
ou remoção antecipada do Diafragma; expul- infertilidade temporária. As sucções freqüentes
são do DIU; esquecimento do uso da pílula por parte do bebê enviam impulsos nervosos à
hormonal oral por três ou mais dias em um hipófise materna, que libera prolactina e baixa
ciclo; presumida violência sexual. FSH, LH e conseqüentemente o estrogênio le-
vando a anovulação e amenorréia.
A eficácia é tanto maior quanto mais pre-
coce for o uso do esquema, no máximo até 72 Devem ser rotinas:
horas, após o coito suspeito. A droga utilizada é • Incentivar o aleitamento materno e�clusivo
o levonorgestrel 0,75 mg, na dose de 1,5 mg di- como método contraceptivo nos 6 primeiros
vidida em duas tomadas, um comprimido a cada meses de vida do bebê.
12 horas ou em dose única. • Orientar a paciente como utilizar o método.
Este método não deve ser usado de forma ha- • Orientar as vantagens do método tanto para a
bitual, pois pode trazer danos a saúde das usuárias mãe como para o bebê.
e deve ter ampla divulgação e acesso garantido. • Acompanhar mensalmente a paciente para
esclarecer dúvidas e favorecer a permanência
Mecanismo de ação: envolve uma ou mais fa- do uso do método.
ses do processo reprodutivo, interferindo na • Oferecer outro método quando a paciente não
ovulação, na espermomigração, no transporte desejar utilizar o LAM, no entanto, sem sus-
e nutrição do ovo, na fertilização, na função pender a amamentação.
lútea e na implantação. • Oferecer outro método quando for introdu-
zido outros alimentos à dieta do bebê e/ou
• Injetável: Este tipo de anticoncepção per- quando a paciente menstruar, método este
mite manter o sigilo de que se está usando que não deva influenciar negativamente na
algum método, e também para os usuários amamentação ou saúde do bebê.
de pílula que esquecem facilmente, como as
adolescentes. É considerada uma forma de
contracepção muito segura, efetiva e bastan-
te simples de se utilizar. Aplicar 1 amp. IM

519
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Bibliografia Hofferth S, Hayes C. Risking the future: adoles-


cent sexuality, pregnancy, and childbearing. Na-
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1998.

520
Capítulo 57
Protagonismo juvenil ao envolvimento em atividades ou práticas que
Francisca Maria de oliveira andrade (tati) possam comprometer seu desenvolvimento ou
colocar em risco sua vida.
A inclusão dos adolescentes e jovens na
solução de problemas coletivos colabora não só
para o seu desenvolvimento pessoal e social, mas
contribui também para a organização e fortaleci-
mento da sociedade. São exemplos desses ganhos,
a melhoria do nível de informações e formação da
Introdução população jovem, desenvolvimento de lideranças,
soluções de problemas e necessidades da comuni-

A palavra “protagonismo” vem da junção de


duas palavras gregas: protos, o primeiro, o
principal; e agonistes, que significa lutador, com-
dade, articulação e amadurecimento da sociedade
civil, e construção de um novo imaginário social
de cidadania com base na responsabilidade, coo-
petidor, contendor. Quando falamos em prota- peração, solidariedade e compromisso.
gonismo juvenil, estamos nos referindo, obje-
tivamente, a atuação dos jovens, com um papel
central, em movimentos sociais. Protagonismo Caso Clínico
Juvenil é, pois, a participação do adolescente e
do jovem em atividades que extrapolam o âmbito João tem quinze anos e esta na oitava serie do
de seus interesses individuais e familiares e que ensino fundamental. Sua mãe agendou uma consulta
podem ter como cenário a escola, outros espaços para ele na unidade de saúde da família da comuni-
da vida comunitária (igrejas, clubes, associação) dade porque, segundo ela, ele estava comendo muito
e até mesmo a sociedade em sentido mais amplo, mal, desobediente e demonstrando desinteresse pelas
através de campanhas, movimentos e demais for- diversas atividades que sempre desenvolveu, tais como
mas de mobilização que inclusive transcendem ir à escola, à igreja e acompanhar a família em visita
os limites do seu entorno sócio–comunitário. aos parentes.
O reconhecimento e a valorização das po- Após uma consulta individual com João, con-
tencialidades dos adolescentes e jovens podem versas com os membros da família e alguns exames
contribuir significativamente para um desen- laboratoriais básicos de puericultura, a equipe de
volvimento integral saudável, além de melhorias saúde chegou a conclusão que João não tinha ne-
para a comunidade. Em geral, os adolescentes e nhum problema físico, mas que apresentava sinais de
jovens se mobilizam a partir de grupos organiza- timidez, insegurança, com pouco interesse pela vida
dos por instituições. Na ausência de instituições comunitária e sem idéia do que gostaria de fazer no
capazes de mobilizar a ação solidária dos jovens, futuro.
é possível que estes continuem objeto de políti- Além de aplicar as vacinas básicas que estavam
cas, sem capacidade de influir sobre as mesmas, faltando e de dar orientações sobre sua alimentação, a
ou seja, dificilmente serão agentes de constru- equipe recomendou que ele participasse de outras ativi-
ção do seu próprio destino1. A falta de oportu- dades que fossem do seu interesse e sugeriu que procu-
nidades construtivas e positivas de participação rasse o grupo de jovens criado pela unidade de saúde,
tambem deixa esses grupos mais vulneráveis juntamente com os professores e o grêmio da sua escola.

521
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

A equipe recomendou a família que proporcionasse ao mios estudantis, grupos de danças...) e de re-
João mais oportunidades de falar sobre suas necessida- cursos comunitários para essa clientela (qua-
des e de escolha das atividades que faria durante suas dras de esporte, praças, centros comunitários,
horas de lazer, inclusive estimulando sua participação centros de referência...);
em atividades com seus amigos da escola e da rua. • Capacitação de jovens para atuarem como mul-
Casos como esses são comuns na prática tiplicadores na prevenção de DST/Aids, de gra-
do Saúde da Família. Adolescentes que são tra- videz, de drogas, na educação ambiental, etc.;
zidos à unidade de saúde por seus pais porque • Mobilização de jovens para debate sobre as
estão demonstrando alguma mudança de com- condições de saúde de seu bairro e as neces-
portamento daquela que tinham quando eram sidades específicas para o bem-estar social
crianças. Diversos aspectos precisam ser consi- dessa faixa etária, resultando na elaboração
derados neste caso tais como a não participação de propostas e execução das mesmas;
do adolescente nas decisões da família e de par- • Convite aos jovens para planejar, e�ecutar e ava-
ticipação em atividades comunitárias. liar campanhas e ações de promoção à saúde,
prevenção de agravos (dengue, violência...);
• Identificação e valorização de lideranças es-
Desenvolvimento da Atenção tudantis e juvenis com vistas a participarem
dos conselhos de saúde e criação de conselho
Favorecer o protagonismo juvenil é uma es- municipal da juventude, prticipando assim
tratégia eficaz de promoção da saúde dos adoles- do controle social;
centes e jovens, uma vez que contribui para o for- • Apoio à criação de canais para a e�pressão e
talecimento da sua auto-estima, da assertividade, reconhecimento de jovens, como atividades
da autonomia e da construção de projeto de vida. artísticas e culturais, rádio ou jornal comuni-
É importante que a equipe do PSF desen- tário, campeonatos, gincanas, grupos de vo-
volva algumas ações de forma preventiva com luntários, palanque da cidadania, olimpíadas
os muitos adolescentes e jovens da comunidade, desportivas ou intelectuais etc.;
mas que utilize tambem as ações de protagonis- • Envolvimento dos adolescentes na avaliação
mo para casos clínicos que procuram a unidade dos serviços de saúde oferecidos por meio
de saúde, como o apresentado nesse texto. de mecanismos permanentes, nos quais essa
Vale lembrar tambem que na organização clientela possa expressar suas opiniões, de-
da atenção à saúde do adolescente e do jovem de- mandas, críticas e sugestões;
vem ser levadas em consideração as necessidades • Encorajar e valorizar as iniciativas de ado-
específicas desses grupos, levando-se em conta lescentes e jovens em prol da comunidade ou
que a captação da clientela jovem terá mais êxito de seus pares. Colocar-se à disposição para
se contar com a valiosa ajuda de adolescentes ja apoiar, prover materiais, disponibilizar o es-
sensibilizados para a importância do auto cuidado paço físico da unidade, divulgar etc., mas sem
e das ações desenvolvidas pela equipe de saúde. tomar a liderança das mãos dos jovens;
A seguir, são enumerados alguns exem- • Aproveitar a ida de estudantes à unidade de
plos de diferentes formas e graus de participação saúde para buscar informações e neste mo-
dos jovens junto aos serviços de saúde: mento combinar uma atividade conjunta (por
• Levantamento, realizado pela equipe de saú- exemplo: oferecer as instalações da unidade
de e parceiros da comunidadee, dos diferentes para a realização de uma feira de saúde, quan-
grupos de adolescentes e de jovens existentes do o espaço físico permitir);
na comunidade (grupos ligados a igreja, grê- • Convidar os adolescentes das escolas da co-

522
Capítulo 57 • Protagonismo juvenil

munidade para conhecerem a unidade de decidimos destacar nesse espaço duas experiên-
saúde e os serviços que são oferecidos; cias que têm sido desenvolvidas no Ceará, nos
• Envolvimento dos adolescentes/jovens na últimos quatro anos.
identificação dos preconceitos de sua comuni- Inicialmente falaremos do Projeto Espa-
dade que possam estar trazendo prejuízos para ço Jovem.
o desenvolvimento da mesma, assim como os Este projeto tem como base a proposta
meios para a construção de hábitos saudáveis. do Ministério da Saúde de criação de “Espaços
• Um estratégia prática poderia ser identificar jovens”, que segundo documentos sobre esta
ou selecionar, na escola de ensino médio mais iniciativa, trata-se de “um lugar estratégico para
proxima da unidade de saúde da familia, de a construção da cidadania onde os jovens possam
dois a quatro estudantes que tenham interes- participar, solicitar informações e orientação sobre
se em colaborar com a equipe de saúde. Esses as diferentes necessidades de saúde, educação,lazer,
adolescentes seriam treinados para atuarem esporte, cultura e as instituições desenvolvam ati-
como colaboradores da equipe, convidando vidades integrais e intersetoriais, em nível comuni-
outros adolecentes e jovens a virem à unidade tário, garantindo a melhoria do atendimento inte-
para a puericultura e tambem quando tiverem gral na promoção da saúde, a inclusão na escola,
queixas. Recepcionariam e acompanhariam os em cursos profissionalizantes e no emprego, hábitos
adolescentes e jovens antes e após as consul- saudáveis e redução de riscos como a gravidez na
tas e participariam das atividades educativas adolescência, exploração sexual, doenças sexual-
dentro e fora da unidade sanitária. Ao final de mente transmissíveis, AIDS e o uso de drogas”. É
seis meses ou um ano, esses adolescentes se- também um espaço de convivência que facilite
riam certificados (o que seria importante para o acesso e a produção de cultura... que valorize
o início de sua vida profissional) e um novo a expressão da criatividade e espontaneidade
grupo assumiria esse papel. Com esse grupo de do jovem, tornando-o protagonista de sua pró-
voluntários a unidade de saúde passaria a ter pria história.
mais clientes adolescentes e jovens e poderia Como principais protagonistas destes es-
obter mais êxito em suas ações preventivas e paços, os jovens são capacitados para o desenvol-
curativas. vimento de atividades de promoção de hábitos e
estilos de vida saudáveis, incluindo a prevenção
O protagonismo juvenil deve se tornar um da violência, do uso de drogas, o estímulo a prá-
objetivo prioritário para os profissionais de saúde ticas de esportes e de atividades culturais.
da família, pois a participação ativa e autônoma Mais informações sobre este projeto po-
de jovens no planejamento, execução e avaliação dem ser obtidas na Prefeitura do seu municí-
das ações do setor é decisiva para o impacto social pio ou no Núcleo de Saúde do Adolescente e
das mesmas. Portanto, tanto os jovens quanto o do Jovem na Secretaria de Saúde do Estado,
setor saúde são beneficiados por esse processo, (0xx85) 3101.5124.
além da comunidade como um todo. Outro projeto de grande alcance tem
sido a eleição do Prefeito Mirim nos municí-
pios cearenses.
Alguns exemplos práticos de promoção do Este projeto foi proposto pelo UNICEF
protagonismo infanto-juvenil aos municípios participantes do Selo UNICEF
Município Aprovado.
Existem vários exemplos de protagonismo Os municípios participantes do proje-
juvenil que poderiam ser aqui descritos, porém to devem eleger os(as) seus(suas) prefeitos(as)

523
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

mirins dentre os alunos das escolas públicas, Sites de interesse em Saúde da Criança
na faixa etária entre 12 e 16 anos incompletos. e do Adolescente
A eleição deve ser realizada em cada uma das
escolas do município, que elege, cada uma, o • http://www.saude.gov.br/programas/adolescente/
seu representante e posteriormente, uma co- adolescen.htm
missão organizada pelo Conselho Municipal de Este site é o site oficial da Área Técnica de Saúde
do Adolescente. Traz em linhas gerais o Programa
Direitos da Criança e do Adolescente e a Se-
de Saúde do Adolescente - PROSAD e algumas
cretaria de Educação do município elegem o(a)
informações estatísticas importantes.
prefeito(a) mirim do município, dentre aqueles
• http://ral-adolec.bvs.br/revistas/ral/paboutj.htm
eleitos nas escolas.
htpp://www.adolescenciaesaude.com.br
Esse (a) prefeito (a) mirim municipal tem • http://www.unesco.org/
como papel representar e defender os interesses Site dessa instituição voltada especialmente para
das crianças e adolescentes do município. Dentre projetos sociais e áreas prioritárias de ação.
as atividades que eles/elas participam, podemos • http://www.saude.gov.br/programas/acidviol/aci-
citar: reuniões com o prefeito e secretários muni- dente.htm
cipais, eventos de interesse de seus pares, visitas a Site do Ministério da Saúde voltado para essa te-
equipamentos públicos e encontros de formação. mática que traz essencialmente informações sobre
Maiores informações sobre este projeto acidentes de trânsito.
podem ser obtidas na Prefeitura do seu municí- • http://www.bireme.br/bvs/adolec
pio ou no UNICEF (0xx85) 3306.5700. Site da Biblioteca Virtual em Saúde - Adolescên-
cia - (BVS - ADOLEC) especializado em promo-
ver acesso online a informação científica e técnica
relevante para a saúde do adolescente no Brasil.
Essa rede estimula o contato entre especialistas e
adolescentes para a consulta de temas específicos,
solução de dúvidas, fórum de discussão e etc.
• http://www.scielosp.org/
Site organizado pela rede Bireme e apoiado pela FA-
PESP. Traz artigos na íntegra das principais revistas
latinoamericanas de saúde pública, a partir de 1997.
• http://www.rebidia.org.br/
Site da Rede Brasileira de Infância e Adolescên-
cia. Traz sites importantes para questões sociais
em relação à essa população.
• http://www.medlinks.com.br/
Site contendo referências médicas e endereços das
principais revistas de medicina, tanto nacionais
quanto internacionais.
• http://www.saude.gov.br/psf/inde�.htm
Site do Ministério da Saúde, do Programa de Saú-
de da Família com informações gerais sobre o pro-
jeto e publicações acerca do tema.
• http://www.saude.gov.br/programas/pes/princi-
pal.htm
Site do Ministério da Saúde sobre Educação em
Saúde. Traz os principais conceitos, com links a

524
Capítulo 57 • Protagonismo juvenil

respeito da área.
• http://www.saude.gov.br/programas/cardio/car-
dio.htm
Site do Ministério da Saúde contendo resumo so-
bre Cardiologia e os diagnósticos das principais
patologias.
• http://www.geocities.com/neapiufc/
NEAPI – Universidade Federal do Ceará – Servi-
ço de Pediatria
• http://www.geocities.com/pediatriaufc/
Universidade Federal do Ceará – Serviço de Pediatria

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Zagury T. O adolescente por ele mesmo. Sao Pau

525
Capítulo 58
Saúde mental da criança e do Caso clínico 1
adolescente: principais quadros
Pedrinho foi encaminhado à consulta médica
clínicos e abordagens terapêuticas
por sua professora, que tem notado considerável de-
clínio de seu rendimento escolar e a presença de difi-
Gilson holanda alMeida culdades com o aluno na sala de aula. Pedrinho tem
Marcela de cavalcante alMeida
8 anos de idade e atualmente cursa a segunda serie
do primeiro grau. Na sala é inquieto, vive provocan-
do os colegas, não se concentra. Teve um desenvol-

S egundo estatísticas americanas, cerca de 10%


das crianças e adolescentes apresentam algu-
ma manifestação psiquiátrica, destacando-se o
vimento neuro-psico-motor normal e encontra-se no
percentil apropriado de peso, altura e desenvolvimen-
to psicossocial para a idade. Suas dificuldades vêm
papel das contribuições genética e familiar nos se mostrando há cerca de dois anos, na realização das
transtornos mais prevalentes desta faixa de ida- suas tarefas escolares, na interação com colegas e nas
de. Para fins didáticos, esses transtornos estão atividades domésticas, como arrumar suas roupas
divididos em: transtornos do comportamento, e seus brinquedos. Suas notas tiveram considerável
da conduta, do humor, de ansiedade, psicóti- baixa durante esse período, e Pedrinho, por vezes, se
cos, globais do desenvolvimento, do aprendi- mostra marcadamente irritado e impaciente.
zado, de comunicação, motores e outros, como A descrição acima ilustra um caso de
tiques, encoprese/enurese, mutismo seletivo, transtorno do déficit da atenção e do comporta-
transtornos alimentares, etc. mento disruptivo, a exemplo do Transtorno do
A grande maioria dessas doenças tem uma Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
boa resposta ao tratamento farmacológico. No que é o mais comum dos transtornos mentais
entanto, diversas considerações devem ser fei- em crianças, prevalente em 3-5% das crianças
tas para a população pediátrica, haja vista que, em idade escolar, segundo o DSM-IV, e em até
em geral, crianças e adolescentes metabolizam 8% segundo levantamentos feitos no Brasil. O
mais eficientemente os fármacos do que adultos, TDAH É composto pela tríade de falta de aten-
e suas concentrações plasmáticas podem diferir ção, hiperatividade e impulsividade. Algumas
significativamente quando comparadas às des- crianças podem ser mais hiperativas, outras
tes. Em razão da complexidade no manejo de mais desatentas, outras mais impulsivas, ou
muitos casos de transtornos mentais nas crian- mostrarem formas combinadas. Dois grupos de
ças e adolescentes, exigindo por vezes aborda- sintomas orientam a codificação do transtorno:
gens multiprofissionais especializadas, é possí- da desatenção e da hiperatividade e impulsivi-
vel que limitações sejam identificadas por parte dade. No primeiro grupo estão: prestar pouca
das equipes do PSF na condução desses casos, atenção, dificuldades de se concentrar, mostrar-
não lhes diminuindo, contudo, a importância se desatento em uma conversa, dificuldades de
na detecção precoce do funcionamento mental seguir instruções, em se organizar, perder obje-
anormal e mesmo de permitir intervenções bem tos, distrair-se, etc. No segundo grupo citam-se
sucedidas. a inquietação dos pés e das mãos, dificuldade de
se manter sentado, correr ou escalar obstáculos
de maneira inapropriada, dificuldade de se man-

527
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

ter em silêncio, falar demais, responder antes da zinhos. É bastante comum envolver-se com a depre-
formulação da pergunta, não esperar a vez, in- dação do patrimônio alheio (como quebrar vidros e
terromper os outros. Os sintomas do grupo da telhados das casas dos vizinhos) ou maltratar ani-
desatenção são mais comuns segundo as queixas mais domésticos.
dos pais ou dos professores; menos comuns são Com freqüência recebe castigos, parecen-
as queixas de hiperatividade e impulsividade. do não aprender com as experiências e logo se
Para o diagnóstico, os sintomas devem existir envolvendo com novas aventuras
antes da idade de 7 anos e os problemas devem O caso do Zeca ilustra um típico transtor-
ser observados em pelo menos dois contextos no da conduta. Suas principais características
(por exemplo, em casa e na escola) e atrapalham são:
claramente a vida dos indivíduos, não podendo • Agressão a pessoas e animais
ser explicados por situação claramente identifi- • Destruição de propriedade
cada. O problema comumente persiste na ado- • Furtos e roubos
lescência e idade adulta em pelo menos 50% dos • Violação séria de regras sociais.
casos e há um marcado predomínio no sexo mas-
culino (5:1). A terapia farmacológica se mostra Para o diagnóstico, a criança deve apre-
bastante eficaz e é feita com psicoestimulantes, sentar os sintomas da doença durante o ano pre-
tais como metilfenidato, anfetaminas, pemolina, cedente e pelo menos um sintoma nos últimos
etc. seis meses. Essas pessoas geralmente terão pro-
• Metilfenidato (Ritalina) deve ser iniciado na blemas nas esferas social, escolar e ocupacional.
dose de 2,5-5 mg/d e aumentado, se neces- O início pode se dar tanto na infância quanto
sário, em 2,5-5 mg por dia até atingir a dose na adolescência, sendo que mais comumente os
ideal de 0,3-2 mg/kg/d. Efeitos colaterais in- sintomas aparecem dos 10 aos 12 anos nos meni-
cluem insônia, falta de apetite, alteração do
nos e em torno dos 16 anos nas meninas. O tra-
humor, cefaléia, problemas gastrointestinais.
tamento é predominantemente através de psico-
• De�troanfetamina tem cerca de duas vezes a
terapia e a doença está relacionada ao transtorno
potência do metilfenidato e apresenta efeitos
colaterais semelhantes. Não existe no Brasil. de personalidade anti-social no adulto.
• Nos casos de efeitos colaterais que inviabili-
zam o uso do Metilfenidato, estão indicada as Caso clínico 3
medicações anti-hipertensivas, como clonidi-
na (alfa-agonistas), bastante úteis quando há Ana tem 11 anos e é trazida à consulta porque
presença de tiques ou agressividade. Clonidi- “está diferente”. Durante quase um mês, só chora,
na deve ser iniciada na dose de 0,025 mg duas já não quer freqüentar as aulas de vôlei no Centro
vezes ao dia e pode ser aumentada até 4-5 mi- Comunitário a que costumava ir com muito entusias-
crogramas/kg/dia. Efeitos colaterais são seda- mo, já não gosta de brincar com suas colegas e tem
ção e depressão. tido dificuldades de se concentrar na escola. Não tem
• Os antidepressivos tricíclicos e a �uproprio- dormido bem à noite e seu apetite encontra-se dimi-
na têm mostrado eficácia de até 70% para o nuído.
tratamento de TDAH. Tristeza, falta de interesse, problemas na
escola, dificuldade de concentração, queixas
Caso clínico 2 somáticas, irritabilidade ou agressividade, mu-
danças no peso e apetite são alguns dos possíveis
Zeca tem 7 anos e sempre teve problemas de sintomas de depressão na criança, que é uma
relacionamento, seja com colegas, irmãos, pais e vi- das expressões do transtorno do humor, como

528
Capítulo 58 • Saúde mental da criança e do adolescente:principais quadros clínicos e abordagens terapêuticas

no caso descrito acima. A prevalência é de 0,3% cial, transtorno de ansiedade generalizada, etc.
em crianças pré-escolares, 1-2% em crianças em O transtorno ansioso de separação é de-
idade escolar e 5% em adolescentes. A prevalên- finido como uma ansiedade excessiva que ocor-
cia é igual entre homens e mulheres até a ado- re quando uma criança é separada de um lugar
lescência, idade a partir da qual assume o padrão ou de uma pessoa com quem mantém uma li-
do adulto de 3 mulheres: 1 homem. Opções de gação significativa. Esse problema, que é parte
tratamento incluem antidepressivos inibidores do desenvolvimento normal da criança por volta
seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) dos 2 anos de idade, podem se tornar excessivos
e os tricíclicos. Por alguns anos se pregou que ao ponto de prejudicarem o funcionamento da
os ISRS aumentavam os riscos de suicídio em criança, ponto em que o transtorno é diagnosti-
crianças e adolescentes, mas estudos mais recen- cado. Os sintomas devem perdurar por pelo me-
tes derrubaram tais idéias e os inibidores de se- nos 4 semanas e ter seu início antes dos 18 anos
rotonina voltaram a ser amplamente prescritos de idade. A prevalência é de 4% em crianças
para a população pediátrica. em idade escolar e 1% em adolescentes e o tra-
tamento é feito com terapia (as abordagens que
Episódios maníacos na criança quase utilizam o modelo cognitivo-comportamental
sempre se manifestam através de humor extre- são as mais indicadas) e medicações, tais como
mamente irritável ou explosivo, elevação do os inibidores de recaptação de serotonina e ben-
nível de energia, pensamentos acelerados, fala zodiazepínicos.
rápida, falta de sono. Estudos com transtornos O transtorno obsessivo-compulsivo
bipolares em crianças hoje são mais disponí- (TOC) se manifesta por idéias obsessivas, com-
veis, embora com freqüência o diagnóstico se pulsivas ou ambas. Obsessões são idéias, impul-
preste a confusão com outros quadros dos quais sos ou representações mentais recorrentes e in-
devem ser diferenciados, como o TDAH, trans- trusivas, percebidas sem significado particular
tornos de conduta, depressão e transtornos psi- para quem as experimenta, e que podem levar
cóticos. O tratamento se faz com estabilizadores às compulsões, entendidas como atos repetiti-
do humor e antipsicóticos atípicos. vos e intencionais, cognitivos ou motores, rea-
lizados com uma determinação e permanência
Caso clínico 4 que freqüentemente ultrapassam a livre vontade
do indivíduo. As obsessões mais comumente se
Gabriela tem 5 anos e, de algumas semanas expressam através de conteúdos de agressão, se-
para cá, tem tido dificuldades de ir para a escola. Ao xual, de contaminação, dúvida, simetria ou na
acordar, sempre se queixa de dores de cabeça, dores esfera somática, enquanto as compulsões mais
no corpo, mal-estar...Chama a atenção o fato de que, freqüentes estão relacionadas aos conteúdos de
nenhum desses sintomas, está presente nos finais de limpeza, verificação, rituais, ato de contar, or-
semana ou nos dias em que Gabriela não tem aula. denar, colecionar, tocar, entre outros. Os rituais
Ao ser deixada na porta da escola pela mãe, Gabriela trazem alívio momentâneo para os sentimentos
treme, chora, parece aflita e insegura. desencadeados pela situação desagradável, mas
Os transtornos de ansiedade em geral - e também pode suscitá-los. O tratamento é o mes-
não apenas o transtorno ansioso de separação- mo para o adulto, ou seja, ISRS (em doses mais
podem se manifestar desde a infância. Desta for- elevadas que as utilizadas como antidepressivos)
ma, podemos observar, desde idade muito preco- ou clomipramina (o mais serotoninérgico dos
ce, o transtorno obsessivo-complusivo (TOC), o antidepressivos tricíclicos e o que foi utilizado
transtorno de estresse pós-traumático, fobia so- em maior número de estudos), associado à psi-

529
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

coterapia. As psicoterapias de base cognitivo- nações, desorganização do pensamento e com-


comportamental são as mais indicadas, embora portamento bizarro) e sintomas negativos (falta
se saiba haver aí uma limitação para a sua utili- de atenção, de volição, apatia, isolamento social,
zação na Atenção Básica porque usualmente, na embotamento afetivo, pobreza de discurso). É
nossa realidade, não estão disponíveis. Estudos importante ressaltar que crianças costumam ter
mostram que 20% dos casos de TOC se iniciam fantasias ricas e elaboradas que são normais e
na infância e 29% na adolescência, o que reforça distingui-las de sintomas psicóticos pode ser di-
a necessidade de diagnóstico e intervenção pre- fícil. No entanto, crianças com psicose apresen-
coces por parte dos profissionais que cuidam dos tam pensamento extremamente desorganizado
pacientes dessas faixas etárias. e alucinações visuais são mais comuns que em
Crianças com transtorno de estresse pós- adultos. O início de esquizofrenia na infância é
traumático testemunharam um evento traumá- extremamente raro (1/10.000) e a grande maio-
tico e desenvolveram sintomas subseqüentes ao ria das crianças que possuem sintomas psicóti-
trauma. Estes sintomas podem ser lembranças cos tem, na verdade, um transtorno do humor
intrusivas do evento, pesadelos recorrentes, ou subjacente. O tratamento é o mesmo de adultos,
sintomas autonômicos, como palpitações ou au- isto é, drogas antipsicóticas, especialmente os
mento da pressão arterial. O tratamento, assim atípicos, devido a menos incidência de reações
como outros transtornos de ansiedade, é com distâncias.
ISRS, alfa-agonistas e psicoterapia. Os transtornos globais do desenvolvi-
Fobia social é um medo de fracassar ou se mento acometem crianças severamente em múl-
sentir desconfortável durante situações sociais. tiplas áreas do desenvolvimento. O tratamento,
Crianças podem expressar esses medos através do muitas vezes, é desapontador e requer a inter-
choro, do rubor facial, ou mesmo do isolamento venção de uma equipe multidisciplinar que in-
social, embora este último seja menos comum clui intervenções nas áreas cognitiva, comporta-
em crianças do que em adultos. Freqüentemente mental, ocupacional, da linguagem, e a maioria
estas crianças são muito tímidas, introvertidas, dessas crianças necessita de educação especial e
recusam participar de atividades coletivas (jo- programas individualizados, recursos nem sem-
gos, competições, etc.). O tratamento através de pre disponíveis na Atenção Primária. Exemplos
psicoterapia cognitivo-comportamental é o que destes transtornos incluem:
produz resultados mais eficazes. ISRS (fluoxeti-
na, sertralina, paroxetina, citalopram) também • Autismo - identificado por dificuldades de
são eficazes, principalmente quando associados interação social, de comunicação e de com-
à psicoterapia. portamento (i.e., olhar fixo, postura inade-
O maior componente do transtorno de quada, expressão facial diminuída, atraso ou
ansiedade generalizada é a ansiedade e preocu- ausência de linguagem, pouca habilidade de
pações excessivas por pelo menos seis meses. As manter conversações, inabilidade de brincar
preocupações podem girar em torno do rendi- com outros, padrões de movimento e com-
mento escolar, físico, e não raro as crianças são portamento estereotipados etc.). Cerca de três
perfeccionistas e detalhistas. O tratamento, mais quartos das crianças com autismo tem retar-
uma vez, é com ISRS (ou buspirona) e psicote- do mental.
rapia. • Síndrome de Asperger - é uma doença seme-
Ainda que raramente, psicose pode ser lhante ao autismo em termos de interações
observada na infância. Por psicose entende-se a sociais anormais e padrões repetitivos ou es-
presença de sintomas positivos (delírios, aluci- tereotipados, mas, ao contrario do autismo, a

530
Capítulo 58 • Saúde mental da criança e do adolescente:principais quadros clínicos e abordagens terapêuticas

linguagem e a função cognitiva estão preser- Transtornos alimentares


vadas.
• Síndrome de Rett - difere do autismo porque Na criança, citam-se os seguintes exemplos:
o indivíduo acometido tem funcionamento • Pica ou malácia - ingestão de substâncias
normal até os cinco meses de idade. Entre os não nutritivas como areia, fezes etc., por pelo
5 e os 48 meses de vida, as crianças acometi- menos um mês, comumente associado com
das apresentam atraso no crescimento cefáli- retardo mental, pobreza, deficiências nutri-
co, habilidade motora, marcha e movimentos cionais, etc. Requer sempre que se faça uma
do tronco e das mãos e da linguagem. Esse avaliação médica completa. Pode constituir
transtorno até agora Os foi observado em mu- um comportamento psicopatológico relativa-
lheres e é associado a retardo mental severo mente isolado ou fazer parte de um transtor-
ou profundo. no psiquiátrico mais grave, como o autismo;
• Transtorno desintegrativo da infância – a • Transtorno ruminativo - é caracterizado pela
criança tem funcionamento aparentemente regurgitação e mastigação do alimento obser-
normal nos dois primeiros anos (comunica- vada por um período de pelo menos um mês,
ção, relacionamento, etc.). Posteriormente, geralmente associada a atraso no desenvol-
aparecem perdas clínicas importantes das ha- vimento ou negligência pelos cuidadores. A
bilidades adquiridas, com comprometimento doença pode caminhar para resolução espon-
qualitativo d interação social, comunicação, tânea ou morte por desnutrição ou desidrata-
habilidade e presença de padrão restritivo, e ção. Ocorre entre os 3 e 12 meses de idade;
repetitivo do comportamento e interesses. • Anorexia, bulimia e obesidade – consti-
tuem-se exemplos de transtornos alimentares
Retardo Mental do adulto que podem ter seu início durante a
É o funcionamento intelectual reduzido infância ou adolescência e que foram enfoca-
com subseqüente declínio na função adaptativa. dos na seção de Saúde Mental da Mulher.
É baseado no teste de QI (leve, 55-70; moderado,
35-55; severo, 20-40; profundo, abaixo de 20). O Outros transtornos mentais na infância
início dos sintomas deve ocorrer antes dos 18 incluem:
anos de idade e a prevalência é de 2-3% na popu- • Encoprese - eliminação de fezes em lugares
lação em idade escolar. inapropriados (intencional ou involunta-
riamente) pelo menos uma vez por mês por
Transtornos do aprendizado pelo menos três meses. Pode ser primária (a
São associados com habilidades escola- criança nunca foi treinada a usar o vaso) ou
res abaixo da média para a idade, como leitura, secundária (quando representa uma regressão
matemática, escrita. O transtorno é geralmente de um comportamento anteriormente apren-
diagnosticado na alfabetização ou na primeira dido). A criança deve ter no mínimo quatro
série, época em que essas habilidades se desen- anos de idade e o tratamento é feito através de
volvem. Crianças com dificuldades de aprendi- técnicas comportamentais.
zado têm um índice de abandono escolar uma • Enurese - eliminação de urina em lugares
vez e meia mais alta que a população geral. O inapropriados (cama ou roupas) que pode
tratamento, idealmente, é através de acomoda- ocorrer voluntária ou involuntariamente em
ção escolar apropriada. crianças acima dos cinco anos de idade, por
pelo menos três vezes por semana em três me-
ses consecutivos. O tratamento deve começar

531
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

por técnicas comportamentais e, caso não se- média quando se considera a população como
jam suficientes, farmacoterapia com imipra- um todo. Os métodos mais eficientes tem
mina ou vasopressina está indicado. Tanto na sido arma de fogo, seguidos de enforcamento,
encoprese quanto na enurese deve-se descar- sufocamento, envenenamento/overdose. Fa-
tar uma condição médica como sendo respon- tores de risco incluem: tentativa prévia, abu-
sável pelo quadro. so de substância psicoativa, doença crônica,
• Tiques - são movimentos súbitos e recorren- depressão, psicose, transtornos de identidade
tes, estereotipados e não-ritmicos, que podem sexual (homossexualidade) e problemas fami-
ser motores (piscar os olhos, mover o pesco- liares em geral.
ço, etc.) ou vocal (gemer, ladrar, etc.). São mo-
vimentos involuntários, mas que podem ser Bibliografia
voluntariamente suprimidos. Durante o sono
ou durante períodos que requerem maior American Psychiatic Association. Referência Rápi-
atenção, como jogar videogame, por exemplo, da aos Critérios Diagnósticos do DSM-IV-TR, 4ª.
eles são normalmente suprimidos. A doença Edição ver- Porto Alegre: Artmed, 2003, 336 p.
de Tourette é um exemplo em que existem
Eyberg SM. Assessing therapy outcome with pres-
múltiplos tiques motores e pelo menos um
chool children: progress and problems. J Clin
tique vocal, mas eles não necessariamente Child Psychol. 1992; 33:45
precisam ser coexistentes. Os tiques, nessa
condição, geralmente ocorrem todos os dias Fu-I, L. (Coord.) Transtorno bipolar na infância e na
adolescência- São Paulo: Segmento Farma, 2007.
e não há nenhum momento isento de tiques
por pelo menos três meses. É freqüente a co- Kaplan HI, Sadock BJ. Sinopse de psiquiatria. Li-
morbidade com TDAH, TOC e outros trans- ppincott: Williams & Wilkins; 1998.
tornos de ansiedade. Mattos P. No mundo da lua- pergunta e respostas
• Mutismo seletivo - ocorre quando a criança sobre o TDAH em crianças, adolescents e adultos.
se recusa a falar em determinadas situações 4a. ed rev. e atualiz.- São Paulo: Lemos Editorial,
sociais, apesar de sua linguagem ser absoluta- 2004. 167 p.
mente normal em outras circunstancias. Está OPAS/OMS (2003). Classificação Estatística Inter-
associado com ansiedade e timidez e os sin- nacional de Doenças e Problemas Relacionados à
tomas devem estar presentes por pelo menos Saúde – Transtornos Mentais e do Comportamen-
um mês. O transtorno é incomum e prevalen- to.(Décima Revisão), v. 1. São Paulo, SP: EDUSP.
te em apenas cerca de 1% das crianças. O tra-
Pataki CS. Child psychiatry: introduction and over-
tamento se faz por meio de psicoterapia (TCC view. In: Sadock BJ, Sadock VA. Comprehensive
é a mais indicada) e, por vezes, uso de ISRS. textbook of psychiatry, 7th ed. Vol 2. Baltimore: Li-
• Suicídio - é a terceira causa de morte em ado- ppincott Williams & Wilkins; 2000. 2532 p.v.2.
lescentes, ficando atrás apenas de acidentes
Practice parameters for the psychiatric assessment
e homicídios. Nos Estados Unidos, o índice
of children and adolescents. J Am Acad Child Ado-
de morte por suicídio em adolescentes é de lesc Psychiatry. 1997; 36:45.
13/100.000 e a taxa de homens para mulhe-
res é de 4:1 (o contrário, 1:4, corresponde ao Wilens, T., Spencer,TJ,Frazier, JA, Biederman, J.
Child and adolescent psychopharmacology. In:
índice de tentativas de suicídio). As pesqui-
Ollendick T, Hersen M, eds. Handbook of child
sas brasileiras apontam taxas mais baixas:
psychopatology. 3th. Ed. New York: Plenum Press;
0,2/100.000 na faixa etária dos 5 aos 14 anos
1998. p.603-36.
e 4/100.000 dos 14 aos 24 anos, que é a taxa

532
Capítulo 59
Doença de pele na criança superficiais, leishmaniose tegumentar america-
e no adolescente na e hanseníase, além de um apêndice tratando
dos cuidados básicos com a pele na prevenção
tânia Maria Poti sales
hélio alexandrus WaGner Poti sales das dermatoses.

Piodermites

Introdução Introdução

A pele é o maior órgão do corpo humano, uma


barreira importante entre nosso organismo
e o meio exterior. Pode expressar diversos sinais
Piodermites são infecções da pele cau-
sada por bactérias piogênicas, principalmente
Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes,
e sintomas que são de auxílio fundamental na com destaque para este, predominante em nos-
identificação de doenças. so meio. Dentre as piodermites, algumas com
O exame físico da pele deve ser feito sob maior ocorrência na atenção básica são os impe-
iluminação adequada, preferentemente luz natu- tigos, as foliculites e o furúnculo.
ral e, luz fluorescente, quando essa não for pos-
sível. Deve-se valorizar sinais como alteração de
cor e de espessura, presença ou ausência de sinto- Caso clínico
mas como prurido, dor e ardor para o diagnóstico
e a instituição de uma conduta adequada.
Criança de seis anos de idade, procedente da
As dermatoses continuam figurando entre
zona rural, acompanhada da mãe, procura serviço mé-
as três primeiras causas de demanda aos serviços
dico devido a feridas pelo corpo há aproximadamente
de saúde. Podem estar restritas à pele ou apre-
uma semana. Ao exame clínico, sem anormalidades,
sentar-se como manifestações de doenças sis-
exceto por lesões dermatológicas em face, perna e ante-
têmicas. Muitas delas se caracterizam pela alta
braço. As lesões de face são crostosas e amareladas ao
contagiosidade ou pelo potencial lesivo a órgãos
redor das narinas, já a lesão da perna é hiperemiada,
vitais. Daí a importância epidemiológica, de-
com pústula e um pêlo central, enquanto que as lesões
mandando do médico a procura por diagnóstico
no antebraço são em número de duas, drenando subs-
e tratamento precisos e precoces.
tância esbranquiçada de odor fétido, com hiperemia e
Esse capítulo pretende servir de auxílio
edema intensos, além de dor à palpação. Foi diagnos-
aos colegas profissionais de saúde, ratificando
ticado impetigo na face, foliculite na perna e furún-
a importância dos mecanismos de referência
culos no antebraço. Foi recomendado, à mãe, higiene
e contra-referência que poderão e deverão ser
adequada da criança, com banhos diários utilizando
acionados para atender os pacientes que necessi-
sabão, limpando bem as feridas e removendo as cros-
tarem de assistência especializada. Apresentare-
tas e, após os banhos aplicar neomicina pomada sobre
mos algumas das dermatoses mais freqüentes no
todas as lesões. Após duas semanas o paciente retorna
dia-dia do médico de família, a saber: piodermi-
sem lesões.
tes, dermatoviroses, dermatozoonoses, micoses

533
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Desenvolvimento da atenção seis em seis horas ou cefalexina na dose de 30 a


50mg/kg/dia dividida em quatro tomadas.
Impetigos: trata-se de uma infecção cutâ-
nea superficial (epidérmica), comum em crian- • Foliculites: consistem em piodermites que se
ças, ocasionada principalmente por estafiloco- iniciam no folículo piloso. Têm como habitu-
cos e, menos freqüentemente, por estreptococos al agente etiológico, o estafilococo coagulase
hemolíticos. Pode-se encontrar duas formas: positivo. Podem ser superficiais ou profun-
impetigo bolhoso e não-bolhoso. das. Caracteriza-se por uma pústula centrada
• Impetigo não-bolhoso: responde por cer- por um pêlo e pequeno halo eritematoso na
ca de 70% dos casos de impetigo, ocorrendo forma superficial, também chamada ostiofo-
em crianças de todas as idades (faixa etária liculite. As lesões são geralmente numerosas,
mais acometida - 2 a 5 anos), assim como em localizando-se em geral no couro cabeludo,
adultos. Caracteriza-se por vesícula ou pústu- extremidades, pescoço, tronco e mais rara-
la que evoluem rapidamente para uma placa mente nas nádegas. Podem ter duração de al-
crostosa, cor de mel, com até 2cm de diâme- guns dias ou tornar-se crônicas.
tro, cercada por eritema. Tais lesões surgem,
geralmente, na pele da face (principalmente Já nas formas profundas, pode-se verificar
ao redor das narinas) e em extremidades após edema, eritema e a presença ou não de pústula.
trauma. Pode surgir adenite regional, porém Dentre estas formas, destaca-se o hordéolo ou
sem elevação da temperatura. Tem como terçol. Trata-se da infecção profunda dos cílios
agente etiológico além do S. aureus (60% dos e das glândulas de Meibom (localizadas nas pál-
casos), o Streptococcus pyogenes, responsável pebras), apresentando-se com pápula ou nódulo
pela glomerulonefrite pós-estreptocócica, a folicular sob pele eritêmato-edematosa.
mais grave complicação dos impetigos (2 a O tratamento da foliculite superficial com-
5% dos casos). preende a limpeza das lesões utilizando sabões e
• Impetigo bolhoso: causado principalmen- soluções anti-sépticas associados à aplicação de
te pelo Staphylococcus aureus, é caracterizado antibióticos tópicos. Casos disseminados ou de
por vesículas que rapidamente evoluem para foliculite profunda (ex.: hordéolo) requerem an-
bolhas de conteúdo claro ou turvo, com até tibioticoterapia sistêmica.
2cm de diâmetro. Em 1 a 2 dias as bolhas se
rompem, dando lugar a crostas finas de colo- • Furúnculo: trata-se de uma infecção estafilo-
ração acastanhada. Acomete recém-nascidos cócica aguda e necrosante da unidade pilos-
e crianças maiores, também com pico de inci- sebácea (folículo piloso + glândula sebácea
dência na faixa etária de 2 a 5 anos. anexa). É caracterizado por um nódulo erite-
matoso com sinais flogísticos que aumenta de
O tratamento do impetigo compreende a tamanho e, após certo tempo, torna-se flutu-
limpeza e remoção das crostas infectadas com ante. Em seguida, a lesão fistuliza e o material
soluções anti-sépticas como água boricada a 3%, necrótico central (carnegão) é drenado para
solução de permanganato de potássio 1:40.000, o meio externo. É localizado, habitualmente,
ou solução de povidine. Em caso de lesões lo- em áreas de fricção, oclusão e perspiração.
calizadas: antibiótico tópico (neomicina ou gen-
tamicina) duas a três vezes ao dia. E, em caso Quanto ao tratamento, aplicações de com-
de lesões disseminadas, antibioticoterapia oral: pressas de água morna (15 minutos, 3 vezes ao
eritromicina na dose de 40mg/kg/dia dividida de dia) tem bons resultados quando a lesão é úni-

534
Capítulo 59 • Doença de pele na criança e no adolescente

ca. Incisão e drenagem podem ser necessárias ambulatorialmente a cauterização química com áci-
em casos mais profundos (lesões maiores, loca- do tricloroacético a 70% das verrugas e a curetagem,
lizadas, dolorosas e flutuantes), associadas ao após anestesia local das pápulas na nádega. Após 20
uso de antibióticos tópicos nas lesões abertas. A dias, a genitora retorna com a paciente, relatando o
antibioticoterapia sistêmica associada à tópica desaparecimento completo das lesões da mão e que
é utilizada em casos cronificados e recorrentes. ainda restavam três lesões na nádega. Foi então repe-
Recomenda-se neomicina e bacitracina como tida a curetagem, com sucesso.
antibióticos tópicos e, sistêmicos, eritromicina
na dose de 30 a 40mg/kg/dia, dividida de 6 em
6 horas ou sulfametoxazol/trimetropina na dose Desenvolvimento da atenção
de 20 a 30/mg/kg/dia calculada em relação ao
sulfametaxazol, dividida em duas tomadas. • Verruga vulgar: é uma dermatovirose conta-
giosa e benigna, causada geralmente pelo ví-
rus HPV 2 (papiloma-vírus humano 2). É o
Dermatoviroses tipo mais comum de verruga humana e é mais
freqüente em escolares, com pico entre 10 e
16 anos. A transmissão se dá pelo contato di-
Introdução reto ou indireto das lesões, sendo comum em
freqüentadores de piscinas e ginásios espor-
Os aspectos dermatológicos das doenças tivos. As lesões podem ser auto-inoculadas,
virais são de suma importância para a prática clí- principalmente através de traumatismos.
nica da atenção básica devido à alta contagiosida-
de, principalmente, em se tratando das doenças Caracteriza-se clinicamente por pápulas ou
sexualmente transmissíveis, e, particularmente grupo de pápulas, de consistência firme e super-
na infância, das doenças exantemáticas (assunto fície rugosa, geralmente localizadas em dorso das
abordado em outro capitulo deste livro). Abor- mãos e dedos, leito ungueal, dobras periungueais
daremos a seguir duas dermatoviroses bastante e joelhos. Em cerca de 65% dos casos, as verrugas
freqüentes no atendimento a crianças e adoles- desaparecem espontaneamente após 2 anos.
centes: verruga vulgar e molusco contagioso. O diagnóstico é clínico e o tratamento
pode ser realizado pela destruição química com
ácido tricloroacético a 50-75%, ambulatorial-
Caso clínico mente, em várias sessões, até o desaparecimento
das verrugas. Eletrocauterização e cirurgia (re-
Paciente feminino, 5 anos de idade, compa- servadas para uso no nível secundário ou terciá-
rece ao atendimento médico, acompanhada da ge- rio) devem ser solicitadas quando a cauterização
nitora que refere a presença de “berrugas” na mão química é mal-sucedida.
direita e pequenas bolhas na nádega esquerda da
menor há 20 dias, apresentando prurido. Ao exame • Molusco contagioso: é uma doença conta-
físico, sem anormalidades, exceto pela presença de giosa causada pelo Vírus do Molusco Conta-
múltiplas pápulas, rugosas e coalescentes no dorso gioso MCV. É bastante freqüente em escola-
da mão esquerda e, vesículas firmes e umbilicadas, res, principalmente do sexo masculino, entre
em número de 12, localizadas na nádega esquerda. 3 e 7 anos de idade. A transmissão é por con-
Após o diagnóstico clínico de verruga vulgar na mão tato direto das lesões, que podem ser auto-
e molusco contagioso em nádega, foram realizadas inoculadas. Tem duração autolimitada a 6 a 9

535
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

meses, podendo persistir por 3 a 4 anos. glútea homolateral, sugerindo larva migrans como
hipótese mais provável, além de pequenos nódulos
Clinicamente, observam-se pápulas com esbranquiçados aderidos aos cabelos, sugestivos de
centro umbilicado, semi-esféricas, com a cor da lêndeas presentes na pediculose.
pele e diâmetro de 3 a 5mm. Apresenta distri- As condutas tomadas foram, respectiva-
buição assimétrica, em número variável, geral- mente as seguintes:
mente agrupadas. Em crianças, tem localização • Prescrição de solução contendo monossulfi-
em áreas de dobras, face, pálpebras, tronco e ram 25%, diluída adequadamente e aplicada
extremidades. As lesões, após regredirem, não após banho noturno sobre as feridas, para a
deixam cicatrizes. criança (sendo retirado pela manhã) durante
O diagnóstico é clínico e o tratamento de 3 noites consecutivas e repetida após 7 dias;
escolha deve ser a curetagem das lesões (procedi- • Prescrição de albendazol 400mg, em dose
mento realizado em serviços de referência) e acom- única oral;
panhamento após 2 semanas do tratamento, para • Prescrição de �ampu contendo permetrina
flagrar o possível aparecimento de novas lesões. 1%, para lavagem dos cabelos e repouso de
15 minutos antes do enxágüe, repetido após
7 dias. Deve-se tratar todos os moradores da
Dermatozoonoses residência, além de outras pessoas de conví-
vio mais íntimo, deve-se também examinar e
tratar todas as crianças em convívio (creche,
Introdução escola).
Após 1 mês do tratamento, o paciente re-
Corresponde a toda e qualquer alteração torna e a genitora refere melhora das queixas por
dermatológica, produzida por ação lesiva, prin- completo.
cipalmente de helmintos ou artrópodes, em
qualquer fase do ciclo evolutivo, sendo parasitas
ou não. Apresentaremos a seguir, algumas des- Desenvolvimento da atenção
tas patologias, tão comuns na população mais
carente atendida pelos programas de saúde: es- • Escabiose: também chamada sarna, é uma
cabiose, pediculose do couro cabeludo, tungíase dermatose zooparasitária endêmica no Brasil,
e larva migrans. causada pelo ácaro Sarcoptes scabiei hominis.
É uma doença social, já que está relacionada
com fatores como nível sócio-econômico, má
Caso clínico higiene e número de indivíduos habitando o
mesmo domicílio. A transmissão ocorre pelo
Criança de 10 anos, chega ao consultório, contato interpessoal e, menos freqüentemen-
acompanhado da mãe. A queixa principal é de pru- te, por roupas. Ocorre em qualquer idade, sen-
rido intenso pelo corpo e couro cabeludo há cerca de do mais comum em crianças e adolescentes.
15 dias, ocasionando feridas. Ao exame físico, foi
constatado presença de lesões escoriadas com padrão Clinicamente, o principal sintoma é o
linear e pápula terminal, sugestivas de escabiose em prurido, intensificado à noite. Pode-se obser-
abdome e face anterior dos membros superiores. Tam- var inúmeras micropápulas ou vésico-pápulas,
bém foram encontradas lesões eritematosas de trajeto sendo a maioria encimada por pequenas crostas,
tortuoso em região maleolar lateral direita e região além de escoriações provocadas pelo ato de co-

536
Capítulo 59 • Doença de pele na criança e no adolescente

çar. As lesões se distribuem preferencialmente cutivos. Deve-se repetir o tratamento com 10


nos espaços interdigitais das mãos, superfícies dias. As crianças de convívio direto ou da mes-
flexoras dos punhos, nádegas, axilas, região in- ma família devem ser examinadas e devidamen-
guinal e abdome (especialmente, região perium- te tratadas.
bilical). Em lactentes, há envolvimento da face,
couro cabeludo, palmas, plantas e região retro- • Tungíase: popularmente chamada “bicho-
auricular, além das áreas clássicas já citadas. de-pé”, é causada pela Tunga penetrans, uma
O diagnóstico é eminentemente clínico. espécie de pulga que tem predileção por ter-
O tratamento é tópico e se faz por meio de es- renos secos e arenosos. Bastante prevalente
cabicidas, devendo ser aplicados do pescoço aos em crianças, tem sua transmissão por meio
pés, à noite, sendo retirados pela manhã (devem do contato direto dos pés descalços com solo
permanecer no corpo por um mínimo de 8 ho- habitado pelo parasita.
ras), durante três noites consecutivas. Deve-se
repetir o tratamento após sete dias da primeira Manifesta-se clinicamente por meio de
aplicação. O paciente deve ser alertado de que o prurido local intenso, seguido de sensação do-
prurido pode permanecer por até duas semanas lorosa. Observa-se pápula amarelada com ponto
após o termino do tratamento. Todos os mem- escuro central, acometendo, geralmente, região
bros da família e de convívio íntimo devem ser periungueal dos pododáctilos, plantar e entre
submetidos ao tratamento, mesmo que não apre- os artelhos. É comum a presença de infecção se-
sentem sintomas. cundária nas lesões.
Escabicidas recomendados: permetrina Após o diagnóstico, clínico, parte-se para
a 5% e monossulfiram a 25%. Este deve ser di- o tratamento, que consiste na enucleação da
luído em duas (adultos) ou três (crianças) partes pulga com agulha estéril e posterior aplicação
de água, imediatamente antes da aplicação. de tintura de iodo. Também é preconizada,
como tratamento, a curetagem e cauterização
• Pediculose do couro cabeludo: é dermatose da cavidade residual após anestesia local. Em
das mais freqüentes, ectoparasitose causada caso de infestação maciça, é indicado o uso de
pelo Pediculus humanus capitis, uma espécie tiabendazol 25mg/kg via oral, duas vezes ao
de piolho. Dá-se por transmissão interpesso- dia, durante 3 dias.
al. De maneira geral, apenas as crianças são
infestadas, sobretudo as escolares, podendo • Larva migrans: também conhecida como bi-
levar a surtos epidêmicos nas escolas. cho geográfico, bicho de praia ou dermatite
linear serpeante, é a presença na pele huma-
Clinicamente, a queixa principal é o pru- na de um helminto parasita do intestino de
rido em região occipital e retroauricular, poden- cães e gatos, o Ancylostoma braziliensis, que se
do-se observar nódulos ovais e esbranquiçados, desloca dentro da pele após sua penetração.
com 0,8mm de diâmetro, aderidos ao cabelo Pode ser causada também pelo Ancylostoma
(lêndeas). O piolho ocasionalmente pode ser en- caninum. É dermatose comum em crianças
contrado vivo. e adolescentes. Sua transmissão ocorre pelo
O diagnóstico é clínico e o tratamento é contato direto da pele com solos, contamina-
feito pela aplicação de xampus à base de perme- dos (ex.: jardins, campos de futebol, terrenos
trina a 1% ou deltametrina a 0,2%. Estes devem baldios, monturos, playgrounds e praia) com
ser aplicadas no couro cabeludo, com massagem fezes de cães e gatos, infestados pelo parasita.
vigorosa, durante 15 minutos, por 2 dias conse-

537
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Clinicamente, o sintoma prevalente é o tiríase versicolor. Pode-se, também, observar lesão


prurido constante, podendo levar à eczematiza- eritêmato-descamativa bem delimitada com diâme-
ção e infecção secundária. As lesões têm locali- tro de 8cm em flanco direito, levando à suspeita de
zação mais freqüente em pés, mãos e nádegas. hanseníase ou tínea corporis. O teste de sensibilidade
Caracterizam-se pela presença de erupção ser- é realizado, sem alteração de sensibilidade na lesão.
piginosa (trajeto tortuoso) e eritematosa, com Outro achado do exame físico é a área de rarefação
pápula terminal. capilar com descamação, bem delimitada, de cerca de
Em caso de infestação mínima, por uma 5cm de diâmetro em região occipital, suspeitando-se
ou duas larvas, pode-se fazer uso de tiabendazol de tínea capitis. A conduta adotada foi a prescrição
creme a 5% (três vezes ao dia, por até 15 dias). de cetoconazol 200mg/dia, via oral, por 4 semanas.
Já em infestações maciças, por mais de 3 parasi- A terapia foi bem sucedida.
tas, geralmente com infecção secundária, o tra-
tamento é sistêmico, com o albendazol (400mg
em dose única) ou a ivermectina (200mg/kg em Desenvolvimento da atenção
dose única), via oral.
• Pitiríase versicolor: conhecida popularmen-
te por “pano branco”, é uma ceratofitose cau-
Micoses Superficiais sada pela levedura Malassezia furfur, presente
na pele de cerca de 90% da população hígida,
como saprófita. Tem ocorrência cosmopoli-
Introdução ta (maior freqüência em regiões tropicais e
subtropicais), acometendo indivíduos de am-
São afecções causadas por fungos, com bos os sexos, geralmente adolescentes após a
localização na camada queratinizada da pele, puberdade e adultos jovens, não sendo inco-
anexos e mucosas. Podem ser classificadas em muns casos em crianças.
ceratofitoses, dermatofitoses e candidíase. Esco-
lhemos para a abordagem seguinte três das mais A doença se caracteriza clinicamente por
freqüentes dermatoses acompanhadas na rotina múltiplas manchas ou máculas confluentes, de
da atenção básica e que acometem destacada- coloração variável dependendo da tonalidade
mente crianças e adolescentes. São elas pitiría- de pele do paciente. Manchas hipocrômicas são
se versicolor (ceratofitose), tínea capitis e tínea visualizadas em pele negra e morena, enquanto
corporis (dermatofitoses). manchas eritematosas ou acastanhadas são ob-
servadas em brancos. As lesões apresentam fina
descamação ao ser raspadas com a unha (sinal da
Caso clínico unha) ou ter a pele local esticada (sinal de Zile-
ri). Têm distribuição corporal em áreas ricas em
Menina de 13 anos, acompanhada da avó, glândulas sebáceas (face, pescoço, tronco supe-
procura atendimento médico por queixas de manchas rior e porção proximal dos membros superiores)
pelo corpo, além de perda de cabelo devido a feri- e nunca afetam região palmo-plantar.
da no couro cabeludo há 20 dias. Ao exame físico, Recomenda-se o tratamento tópico com
observam-se diversas lesões hipocrômicas de diâmetro xampu contendo sulfeto de selênio a 2,5%, sen-
não superior a 2cm em região interescapular, ombros do massageado no couro cabeludo (principal
e pescoço, apresentando descamação fina ao serem fonte da levedura) e passado sobre as lesões cor-
raspadas com a unha, sugerindo diagnóstico de pi- porais, devendo ser enxaguado após 15 minu-

538
Capítulo 59 • Doença de pele na criança e no adolescente

tos (uso diário por 4 semanas). Em casos mais finitiva. Apresentam odor característico de
extensos ou resistentes, está indicado a terapia “ninho de rato”.
oral utilizando derivados imidazólicos, princi-
palmente o cetoconazol 200mg/dia ou 4-7 mg/ O diagnóstico é clínico (exame micológico
kg/dia, após o almoço durante 10 dias (alerta direto confirma a suspeita clínica) e o tratamen-
para hepatotoxicidade). to exige terapia oral sistêmica com griseofulvina
na dose de 10 a 15mg/kg/dia por 8 a 12 semanas,
• Tínea capitis: consiste em afecção do couro terbinafina em dose adequada por 4 a 8 semanas
cabeludo causada por dermatófitos do gênero ou, derivados imidazólicos. Em casos de kerion,
Microsporum ou Tricophyton. Bastante comum faz-se necessária, além da terapia antifúngica
em crianças entre 4 e 14 anos, pode ser di- sistêmica, aplicação local de compressas de per-
vidida em duas entidades, tínea tonsurante e manganato de potássio 1:40.000 e, drenagem em
tínea favosa. casos mais graves.
• Tínea tonsurante: é a apresentação clínica
mais freqüente e tem como principal agente • Tínea corporis: é a tínea que acomete a pele
o Microsporum canis, seguido do Tricophyton glabra (pele sem cabelos), também conhe-
rubrum. O primeiro tem transmissão media- cida por “impingem”. É causada principal-
da pelo contato com cães e gatos, enquanto mente pelos dermatófitos Microsporum canis
o outro é responsável por pequenos surtos ou Tricophyton rubrum. Tem sua transmissão
em populações fechadas (ex.: creches), sendo inter-humana (contato direto ou indireto) ou
transmitido através do contato inter-humano pelo contato com cães e gatos. Clinicamen-
direto ou por meio de pentes e escovas. Ca- te, observam-se lesões eritêmato-papulares,
racteriza-se clinicamente por área de alopecia descamativas, anulares com bordos eleva-
focal, descamativa, com ou sem eritema. As dos eritêmato-descamativos ou vesiculosos.
áreas afetadas apresentam pequenos cotos de Apresenta-se em número e tamanhos variá-
cabelo, correspondendo ao nível da fratura da veis. Acomete tronco, membros e face.
haste capilar, próximo à pele. O padrão das
lesões pode variar em dependência do agen- O diagnóstico é clínico (confirmado pelo
te etiológico. Lesões tricofiticas múltiplas e exame micológico direto). O tratamento se faz
ocupam pequenas áreas, já a lesão microspó- com uso de antifúngicos tópicos por cerca de 4
rica é única e ocupa grande área, podendo semanas. Recomendam-se os derivados imida-
evoluir para uma variante aguda inflamatória zólicos (tioconazol, miconazol e cetoconazol)
chamada kerion, caracterizada por formação em creme a 1%. Em casos disseminados ou re-
de placa elevada de limites precisos, dolorosa, fratários, prescreve-se terapia oral por 4 sema-
com eritema, pústulas e microabscessos que nas (cetoconazol 200mg/dia ou 4-7mg/kg/dia;
drenam pus à expressão. terbinafina 250mg/dia; itraconazol 100mg/dia
• Tínea fávica: causada principalmente pelo ou fluconazol 150mg/dia), orientando a tomada
dermatófito antropofílico Tricophyton schoen- após o almoço.
leinii. Ocorre prevalentemente na zona rural
e em pequenas comunidades interioranas. É
doença crônica, e se caracteriza pela presença
de pequenas lesões crostosas branco-amare-
ladas, côncavas, acompanhadas de descama-
ção e supuração local, gerando alopecia de-

539
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

Leishmaniose Tegumentar Americana ro encontradas no Brasil, a mais freqüente é a


Leishmania braziliensis.
Sua transmissão se dá pela picada da fê-
Introdução mea do mosquito-vetor (gênero Lutzomyia), in-
fectada previamente com os parasitas presentes
As leishmanioses cutâneas constituem no sangue dos reservatórios selvagens e domés-
importante problema de saúde pública mundial, ticos (preguiças, roedores, gambás, cavalos, mu-
sendo endêmicas em quatro continentes (regiões las, cães) e o homem. O contágio pode ocorrer
tropicais e subtropicais), com aumento progres- no interior da mata ou domiciliar/peridomici-
sivo da incidência nos últimos anos. No Brasil, liar. Esta forma de contágio encontra-se hoje em
as áreas de maior incidência são norte (70%) e ascensão, devido ao avanço urbano desenfreado
nordeste (25%). sobre as matas, sem a adequada análise de im-
pacto ambiental.
Na manifestação clínica, inicialmente, a
Caso clínico lesão aparece apenas no ponto de inoculação do
parasita, geralmente nas áreas mais expostas a
Paciente masculino, 13 anos, acompanhado picadas do mosquito (face, membros e extremi-
pelo genitor, compareceu à consulta médica com quei- dades). A lesão, então, passa por fases evolutivas,
xa de ferida em perna, surgida há 1 mês e meio, sem cada uma com suas características.
cicatrização. Ao exame físico, observou-se, em região
pré-tibial esquerda, úlcera com cerca de 3cm de diâ- • Lesão inicial: formação de pápula eritema-
metro, com bordos elevados e fundo vermelho, com tosa que evolui para lesão pápulo-crostosa,
exsudato abundante, sem prejuízo da sensibilidade pápulo-vesiculosa ou pápulo-pustulosa.
local. Sob a suspeita de leishmaniose tegumentar, foi • Lesão ulcerada: após dias ou semanas, a le-
solicitada a biópsia do fundo da úlcera e encaminha- são se torna ulcerada. A úlcera tem aspecto
mento da peça ao exame histopatológico, no serviço peculiar, com bordos elevados e bem delimi-
de referência mais próximo. Após 15 dias da reali- tados, com centro granulado, vermelho-vivo
zação dos procedimentos, o laudo histopatológico foi e secreção serosa. É dita “úlcera em moldura
positivo para leishmaniose tegumentar. Foi prescrito de quadro”.
ao paciente, Glucantime 15mg/kg/dia por 20 dias. • Lesão vegetante: pode então evoluir para ci-
A família do paciente foi orientada a se proteger de catrização espontânea ou formação de placas
mosquitos, com telas, repelentes ou inseticidas e afas- vegetantes e verrucosas, crônicas, de lento
tar da moradia animais domésticos e silvestres. Após crescimento.
30 dias do início da medicação, o menor retorna com • Lesões mucosas: podem aparecer em estágio
cicatrização completa da úlcera. precoce, porém é mais comum o aparecimen-
to só após 1 a 2 anos da lesão inicial. Tem pre-
dileção pelo acometimento do nariz, inician-
Desenvolvimento da atenção do com eritema, edema e infiltração discreta
do septo nasal, asas do nariz e mucosa. Evolui
A leishmaniose tegumentar americana, para maior infiltração com lesão úlcero-vege-
forma prevalente no Brasil, também chamada tante, estendendo-se para as regiões laterais,
“úlcera de Bauru” e “ferida braba”, tem como lábios superior e inferior. Pode avançar para
agente etiológico um protozoário do gênero orofaringe, com lesões de palato, gengiva, la-
Leishmania. Dentre as 6 espécies deste gêne- ringe e faringe. O pavilhão auricular raramen-

540
Capítulo 59 • Doença de pele na criança e no adolescente

te é acometido. As lesões mucosas são devidas evitar abandonos e conseqüentemente, novos ca-
à disseminação hematogênica do parasita. sos na comunidade e resistência medicamentosa.

O diagnóstico, após a suspeita clínica, é


confirmado com o auxílio de métodos labora- Caso clínico
toriais, principalmente: o exame direto do ras-
pado da lesão, com a observação do parasita. Após assistir ao alerta do Ministério da Saú-
Também tem importância o exame histopato- de na TV, conscientizando quanto ao diagnóstico
lógico da lesão, com visualização de infiltrado precoce da hanseníase, paciente masculino, 15 anos
linfo-histiocitário. O teste de Montenegro (ino- de idade, comparece ao atendimento médico, acom-
culação intradérmica contendo parasitas mortos panhado da mãe, referindo lesões dormentes em dor-
no antebraço), de relevância considerável para so. Observa-se à inspeção 2 lesões eritematosas de
a leishmaniose tegumentar americana, quando cerca de 6cm de diâmetro em região interescapular.
positivo, indica infecção, e se mantem positivo Utilizando uma agulha estéril e um chumaço de al-
mesmo após a cura. godão, testo a sensibilidade da lesão, alterada. Colho
A droga de escolha para o tratamento é o amostras de tecido e envio à baciloscopia, iniciando
N-metil glucamina (Glucantime), nas doses de o tratamento para a forma paucibacilar. Após 10
15mg/kg/dia nas formas cutâneas puras ou de dias, o laudo da baciloscopia confirma o estado pau-
20mg/kg/dia nas formas cutâneo-mucosas, por cibacilar. Após 6 meses de tratamento e acompanha-
via intramuscular ou intravenosa, durante 20-30 mento mensal rigoroso o paciente tem alta. Nenhum
dias. Nos casos de lesões mais avançadas, faz-se contactante examinado teve diagnóstico fechado e
necessário o emprego de cirurgia corretiva. Cabe todos foram (re)vacinados com BCG.
ao clínico, também, promover a prevenção de
novos casos, identificando e tratando adequada-
mente novos casos, orientando quanto ao uso de Desenvolvimento da atenção
telas nas casas em área de risco, inseticidas, re-
pelentes e quanto ao controle dos reservatórios Hanseníase é uma doença infecto-conta-
domésticos. giosa com acometimento preferencial da pele e
tecido nervoso periférico. Tem evolução crônica
e é causado pelo bacilo Mycobacterium leprae. A
Hanseníase transmissão se dá, principalmente, através da
via respiratória.
A OMS recomenda, para fins de tratamen-
Introdução to em programas de controle (saúde publica),
uma classificação simplificada baseada nas ma-
A hanseníase é endêmica em nosso país. nifestações clínicas e na baciloscopia, dividindo
Persiste ainda como grave problema de saúde a doença nas seguintes formas:
pública. Nosso país é o primeiro lugar do mun- • Paucibacilar: caracterizada clinicamente pela
do em prevalência da doença e o segundo em in- presença de uma a cinco lesões eritematosas
cidência, perdendo apenas para a Índia. Cabe a ou hipocrômicas, dispostas assimetricamente,
todos os níveis de atenção à saúde (em especial com perda de sensibilidade e comprometi-
o básico) a vigilância para garantir diagnóstico e mento de um só tronco nervoso. A bacilosco-
tratamento precoces, assim como monitoramen- pia é negativa. Corresponde às formas indeter-
to rigoroso do tratamento, principalmente para minada e tuberculóide segundo a Classificação

541
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

de Ridley e Jopling (ver adiante). que 100) simétricas e bilaterais, com aspec-
• Multibacilar: caracteriza-se pela presença de to de pápulas, placas ou nódulos eritemato-
mais de cinco lesões eritematosas ou hipo- sos ou eritêmato-acastanhados (lepromas ou
crômicas, com disposição simétrica, perda de hansenomas). Há acometimento de face e pa-
sensibilidade e comprometimento de vários vilhão auricular com infiltração difusa (face
troncos nervosos. A baciloscopia é positiva. leonina) além de madarose (alopecia do terço
Corresponde às formas borderline e virchowia- lateral dos supercílios) e edema de membros.
na na Classificação de Ridley e Jopling.
A clínica tem grande valor presuntivo no
Para melhor descrevermos as manifesta- diagnóstico, contudo, para garantir confirmação
ções clínicas da doença, utilizaremos a classifi- de positividade e classificação, deve-se lançar
cação de Ridley e Jopling: mão do teste de sensibilidade, da baciloscopia e
• Forma indeterminada (I): é a fase inicial da do- da histopatologia.
ença, podendo evoluir para as formas tubercu- O teste de sensibilidade avalia hipoestesia
lóide, borderline, virchowiana, ou ainda, desapa- ou anestesia, podendo ser realizado no consultó-
recer sem qualquer tratamento (70% dos casos). rio, examinando-se lesões suspeitas com estímulos
Caracteriza-se por lesão única ou em pequeno térmicos, dolorosos e táteis, nessa ordem. Primei-
número, hipocrômica ou eritematosa, de forma ramente, o paciente deve ser orientado quanto ao
oval e diâmetros variando de 1 a 5cm, apresen- procedimento a ser realizado para que fique tran-
tando hipoestesia (perda das sensibilidade). qüilo e colabore. Com o paciente de olhos fecha-
• Forma tuberculóide (TT): caracterizada dos, a pesquisa deve ser realizada na área suspeita,
pela presença de lesões em pequeno número e fazendo-se a contraprova em área de pele normal
assimétricas, bem delimitadas com até 10cm simetricamente oposta. A pesquisa da sensibilida-
de diâmetro, formando placas eritematosas de térmica é feita com dois tubos de ensaio, um
anulares e/ou lesões tricofitóides (semelhan- contendo água morna e o outro, água em tempera-
tes às tineas) com hipoestesia ou anestesia. tura ambiente. A sensibilidade dolorosa é pesqui-
• Forma borderline: dividida em três subti- sada com a ponta de uma agulha estéril, que deve
pos: borderline tuberculóide (BT), borderli- ser desprezada após o teste. Para a pesquisa da sen-
ne borderline (BB) e borderline virchowiana sibilidade tátil, utiliza-se um chumaço de algodão.
(BV). A forma BT apresenta placas eritêma- A baciloscopia é necessária para adoção da
to-infiltradas, bem delimitadas, com loca- conduta adequada, devendo, as amostras (frag-
lização assimétrica e em número de 2 a 10. mento da pele de 3mm), ser colhidas nos lóbulos
A forma BB apresenta placas múltiplas, in- das duas orelhas, nos dois cotovelos e na lesão
filtradas, de coloração ferruginosa, anulares suspeita. E, quando há duvida no diagnóstico, o
com centro de pele aparentemente normal. exame histopatológico de amostra profunda da
As bordas internas são nítidas e as externas lesão é bastante esclarecedor.
são imprecisas, com aspecto de “queijo suí- O tratamento poliquimioterápico é pro-
ço”. Hipoestesia pode ou não estar presente. posto de acordo com a classificação em pauci ou
A forma BV apresenta uma grande número multibacilar e a idade do paciente (Ver diagra-
de lesões (acima de 20) simétricas e bilaterais, mas a seguir).
com características tanto da forma BB quanto No caso de crianças menores de 10 anos,
da forma virchowiana. deve-se adaptar a dosagem dos esquemas: rifam-
• Forma virchowiana: caracterizada por múlti- picina 10mg/kg/dia; dapsona 0,9 a 1,4mg/kg/dia
plas lesões (em número não raramente maior e, clofazimina 100mg uma vez ao mês e 50mg,

542
Capítulo 59 • Doença de pele na criança e no adolescente

duas vezes por semana. enças e, mais importante, em conscientizar a po-


As medidas profiláticas recomendadas pelo pulação quanto a hábitos e procedimentos que
Ministério da Saúde são diagnóstico precoce dos previnam a evolução e a disseminação dessas.
casos e aplicação do BCG (confere proteção supe- Sugere-se a orientação da população, por meio
rior a 50% para todas as formas clínicas). O alvo de palestras ou mesmo no diálogo direto com os
da profilaxia são todos os contatos domiciliares do pacientes no consultório, sobre:
paciente diagnosticado nos últimos 5 anos. Após • Hábitos de higiene: lavar as mãos com freqü-
o exame clínico, o contato deve ser encaminhado ência, tomar 1 a 2 banhos diários com sabone-
à aplicação do BCG. Aqueles sem cicatriz vacinal te lavando o cabelos, manter cortados unhas
prévia, deverão receber duas doses do BCG com e cabelos, lavar o vestuário e roupas de cama
intervalo de 6 meses entre elas. Aqueles com uma regularmente e evitar andar descalço fora de
cicatriz receberão uma dose do BCG. casa. Além disso, evitar compartilhar roupas
e utensílios de uso pessoal.
Entre 10 a 14 anos Acima de 14 anos • Roupas arejadas: Evitar o uso de roupas de
Paucibacilar: dapsona Paucibacilar: dapsona material sintético e apertadas, que favoreçam
(50mg, uma vez ao dia, (100mg, uma vez ao dia,
domiciliar) + rifampicina domiciliar) + rifampicina calor e suor excessivos.
(450mg, uma vez ao mês, (600mg, uma vez ao mês, • Diagnóstico e tratamento precoces: procu-
sob supervisão na unidade sob supervisão na unidade
de saúde), até completar de saúde), até completar
rar o médico e orientar contactantes (família,
6 doses mensais em até 9 6 doses mensais em até 9 creche e escola) a fazê-lo em casos de doenças
meses. meses. contagiosas.
Multibacilar: dapsona Multibacilar: dapsona
(50mg, uma vez ao dia, (100mg, uma vez ao dia,
• Desmistificação das doenças: esclarecer,
domiciliar) + rifampicina domiciliar) + rifampicina numa visão geral e simples, os principais as-
(450mg, uma vez ao mês, (600mg, uma vez ao mês, pectos relacionados às doenças de pele.
sob supervisão na unidade sob supervisão na unidade
de saúde) + clofazimina de saúde) + clofazimina • Auto-medicação: não utilizar fármacos indus-
(50mg uma vez ao dia, em (100mg uma vez ao dia, em triais ou naturais sem a devida orientação médi-
dias alternados, domiciliar dias alternados, domiciliar
ca, resguardando o paciente de piora do quadro
e 150mg, uma vez ao mês, e 300mg, uma vez ao mês,
sob supervisão, na unidade sob supervisão, na unidade por ineficácia ou ação lesiva do medicamento.
de saúde), até completar 12 de saúde), até completar 12
doses mensais em até 18 doses mensais em até 18
meses. meses. Apesar de o câncer de pele ser raro em
Diagrama do tratamento crianças e adolescentes, é sempre válido abordar
alguns aspectos de sua prevenção.
Cuidados com a pele A exposição solar abusiva nos primeiros
vinte anos de vida, é o principal fator predispo-
A maioria das dermatoses observadas no nente ao surgimento desse tipo de câncer, princi-
consultório do médico de família tem estreita palmente a partir dos 40 anos de idade. A popu-
relação com as condições sócio-econômicas da lação jovem deve ser orientada a evitar exposição
população. Melhorias de base (educação, mora- solar prolongada dentro do horário crítico das
dia, saneamento) seriam ideais como método de 10 às 15 horas e, quando possível, utilizar filtros
prevenção dessas e de outras tantas doenças, mas solares com fator de proteção igual ou superior a
isso cabe às autoridades governantes. A parcela 15, aplicando na pele 20 minutos antes da expo-
de contribuição do profissional de saúde consis- sição ao sol e repetindo a aplicação a cada duas
te no diagnóstico precoce e tratamento das do- horas e/ou se a pele for molhada (banho, suor).

543
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

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Afecciones cutâneas relacionadas com Malassezia

544
Capítulo 60
Serviço de Atenção 2000 no Hospital Infantil Albert Sabin, a seguir
Domiciliar – SAD Hospital Waldemar de Alcântara. Com o objeti-
vo de aperfeiçoar o programa foram feitas visitas
luís carlos reBouças de França
cristiane rodriGues de sousa ao Hospital das Clínicas de São Paulo e ao Sis-
tema de Internamento Domiciliar em Londrina
no Paraná objetivando a ampliação da atenção
para as microrregiões do Estado do Ceará.
A terminologia inicial, utilizada no Hos-
pital de Messejana, mencionava Programa de

S erviço de Assistência Domiciliar, um hospi-


tal em casa.
Voltar mais cedo para o seu domicílio, de
Internamento Domiciliar – PID e foi modifica-
da pela Secretaria da Saúde do Estado do Cea-
rá para Programa de Assistência Domiciliar –
forma responsável, ficar junto de quem se quer PAD.
bem. Há quem duvide de que essa é a vontade do O Hospital Infantil Albert Sabin – HIAS
paciente hospitalizado e de sua família? formalizou convênio com o SUS no ano de
É o Home Care ou assistência de saúde 2002, possibilitando a solicitação de laudos para
domiciliar. O termo correto seria Home Health emissão de AIH, gerando recursos hospitalares
Care, atenção à saúde no lar. para custeio do atendimento. Desde 1990 já es-
tava regulamenta por lei decretada e sanciona-
Um breve histórico da pela Presidência da República a assistência e
a internação domiciliares que seriam realizadas
O pioneiro da implantação do Serviço de por equipes multidisciplinares que atuariam
Atenção Domiciliar no Estado do Ceará foi o nos níveis de medicina preventiva, terapêutica
Hospital de Messejana (do Coração) em Maio e reabilitadora.
de 1996. Neste hospital foi criada uma equipe A Agencia Nacional de Vigilância Sa-
mínima composta por Médico, Enfermeiro e As- nitária, ANVISA, em janeiro de 2006 aprovou
sistente Social que acompanhava os pacientes no uma Resolução da Diretoria Colegiada – RDC
domicílio e eram incluídos no programa confor- que dispõe sobre o Regulamento Técnico de
me um perfil clínico e social pré-definido. Em Funcionamento de serviços que prestam Aten-
1997 este programa foi premiado pelo Programa ção Domiciliar, considerando a necessidade de
de Gestão Pública e Cidadania da Fundação Ge- propor requisitos mínimos de segurança para o
túlio Vargas e Fundação Ford, concorrendo com funcionamento de Serviços de Atenção Domi-
iniciativas de todo o Brasil. Em 1999 esta experi- ciliar – SAD, nas modalidades de Assistência e
ência foi repassada para os demais profissionais Internação Domiciliar.
da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará e Em 19 de outubro de 2006, foi instituí-
passou a ser coordenada pela CORUS (Coorde- do a Internação Domiciliar no âmbito do SUS,
nadoria da Rede de Unidades de Saúde), com a através da portaria Nº 2.529, do Ministério de
implantação em vários hospitais da rede estadu- Estado da Saúde, ficando revogada a portaria nº
al. Em novembro de 1999 no Hospital Geral de 2.416/GM de 23 de março de 1998.
Fortaleza, em fevereiro de 2000 no Hospital Ge- A Atenção Domiciliar de acordo com
ral César Cals e Hospital São José, em julho de esta resolução é um termo genérico que envol-

545
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

ve ações de promoção à saúde, prevenção, trata- - Integrando o paciente em sua família, co-
mento de doenças e reabilitação desenvolvidas munidade e escola.
em domicílio que pode ser realizada na forma de • �enefícios para o hospital e Sistema Único de
assistência ou internação domiciliar. Saúde-SUS:
A assistência domiciliar consiste em ati- - Reduzindo o tempo de internação hospitalar;
vidades desenvolvidas em domicílio de caráter - Aumentando a oferta de leitos;
ambulatorial, programadas e de forma contínua, - Diminuindo o índice de infecção hospitalar;
visa basicamente dar continuidade ao trata- - Aumentando a satisfação do usuário;
mento do paciente após alta hospitalar em sua - Diminuindo os custos.
residência, o que é realizado por uma equipe
multidisciplinar de saúde atuando numa visão • �enefícios para a equipe multidisciplinar:
humanizada e integral, sendo formada por Mé- - Resgatando a figura do médico de família;
dicos, Fisioterapeutas, Enfermeiros, Assisten- - Interagindo a equipe com tomada de deci-
tes Sociais, Auxiliares de Enfermagem, Nutri- sões por profissionais de diversas áreas;
cionistas e, se necessário, outros profissionais - Identificando os fatores ambientais e fami-
como equipe de apoio atuando no hospital nos liares que podem agravar a patologia;
Ambulatórios de Pneumologia, Neurologia, Fo- - Fortalecendo os laços de confiança entre
noaudiologia, Terapia Ocupacional, Psicologia, equipe e família, estimulando uma melhor
Ortopedia, Cardiologia e Cirurgia, podendo re- participação;
tornar à internação hospitalar para a realização - Gratificando profissionalmente a equipe
de procedimentos complementares programa- com a satisfação de um melhor desempe-
dos como pulsoterapia, quimioterapia, laringos- nho e resultados satisfatórios.
copia e gastrostomia.
A atenção domiciliar nestes últimos anos A operacionalização do programa visa
tem evidenciado sua importância fundamental disciplinar o ingresso dos pacientes, seguindo
no âmbito do Saúde da Família, trazendo bene- critérios, etapas e planejamento da assistência
fícios incontestáveis para as famílias, pacientes, domiciliar:
hospitais e equipe multidisciplinares, como: • Critérios para inclusão:
• �enefícios para a família e paciente: - Estar hospitalizado;
- Humanizando o tratamento; - Apresentar quadro clínico estável;
- Abreviando o tempo de permanência hos- - Ser residente no mesmo município;
pitalar; - Ter aceitação por parte da família;
- Melhorando a qualidade de vida; - Dispor de um cuidador em casa;
- Reduzindo o risco de infecção hospitalar; - Necessitar de no máximo duas visitas se-
- Elevando a satisfação; manais;
- Diminuindo a morbidade; - Atender a critérios socioeconômicos básicos;
- Facilitando a readaptação do paciente ao - Apresentar certidão de nascimento.
seu meio familiar e social;
- Racionalizando custos; • Etapas para inclusão:
- Estabilizando emocionalmente e encurtan- - Solicitação de inclusão pelo médico do hos-
do o tempo de recuperação; pital, após avaliar se o perfil do paciente
- Evitando transtornos de novas hospitali- está de acordo com os critérios de inclusão;
zações; - Parecer da Coordenação Técnica (Assisten-
- Promovendo educação em saúde; te Social) do programa;

546
Capítulo 60 • Serviço de Atenção Domiciliar – SAD

- Parecer da Coordenação Médica do programa. Em atendimento Atendidos Altas Óbitos


- Antes da alta hospitalar e início da Assis- 08 08 0 0
tência Domiciliar é realizada uma entrevista Tabela 2. Atendimento – Internação domiciliar pelo PAVD/HIAS
pela Coordenação Técnica do Programa com (20.01.2004 a 24.10.2006)

o (a) cuidador (a) responsável e é assinado São realizados periodicamente Encontros


termo de Autorização e Responsabilidade. de Cuidadores dos Pacientes, com participação
das equipes, com atividade sociocultural, com
• Planejamento da Assistência Domiciliar: palestras, dinâmica de grupo coordenada por
- Equipe visitadora multidisciplinar dis- Psicóloga, avaliando, estimulando e aprimoran-
ponível; do os conhecimentos. Os registros de depoimen-
- Decidido a inclusão do paciente é traça- tos espontâneos das mães cuidadoras nos dão a
do o plano de visitas pela coordenação do idéia de uma avaliação positiva da satisfação da
programa; clientela.
- A família é previamente avisada quando A Assistência Domiciliar é uma ativi-
ao dia das visitas que se realizam de uma a dade humanizada, gratificante, participativa,
duas vezes por semana; interdisciplinar, apaixonante e nos torna mais
- O cuidador domiciliar é treinado no hospital compromissados principalmente com as pessoas
durante o período de internação e é orien- mais humildes.
tado pela coordenação do Programa para o
melhor desempenho de sua responsabilida- Caso Clínico
de. A atuação do cuidador é fundamental
no bom resultado do tratamento e deve ser A.M.V. Data do nascimento: 25 de março de
valorizada e avaliada continuamente. 1999.
- Nas intercorrências domiciliares de ur- Primeira internação no HIAS com a idade
gência deverá ser acionado por telefone o de um ano e oito meses, em 22/11/2000 com alta em
SAMU para transporte do paciente para o 01/12/2000 com diagnóstico de Pneumopatia Crôni-
atendimento hospitalar. ca a esclarecer. A partir dos oito meses de idade, foi in-
ternada sete vezes em vários hospitais com diagnóstico
No Hospital Infantil Albert Sabin do Ceará, de pneumonia. Após a alta do HIAS em 01/12/2000,
o Serviço de Atenção Domiciliar (SAD) é operacio- ficou recebendo acompanhamento no Ambulatório de
nalizado por três programas que atuam integrados. Pneumologia do HIAS por dois anos sem interna-
A Assistência Domiciliar é realizada pelo mentos com consultas ambulatoriais com intervalo de
Programa de Assistência Domiciliar (PAD) e seis meses.
pelo Programa de Oxigenoterapia Domiciliar Em 07/07/2003 foi internada no HIAS para
Prolongada (ODP), conforme tabela 1. realização de biópsia pulmonar para esclarecimento
de diagnóstico cujo laudo histopatologico foi Pneu-
Em atendimento Atendidos Altas Óbitos monia Intersticial Não Específica (PINE). Recebeu
42 228 122 64 alta hospitalar em 15/07/2003 e por ter evoluído com
Tabela 1. Atendimento – Assistência domiciliar pelo PAD/HIAS dependência de oxigênio foi iniciada a assistência do-
(01.07.2000 a 24.10.2006)
miciliar pelo Programa de Assistência Domiciliar do
HIAS, recebendo visitas médicas semanais com ava-
A Internação Domiciliar é realizada pelo
liação da saturação de oxigênio através da oximetria
Programa de Assistência Ventilatória Domici-
de pulso e tratamento das intercorrências. Com in-
liar (PAVD), conforme tabela 2.
tervalo regulares, aproximadamente de dois meses, é
feito acompanhamento ambulatorial pelo Programa

547
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

de Oxigenoterapia Domiciliar Prolongada (ODP). merosa evidenciando a grande complexidade


Por ser portadora de Cifose Torácica por orien- familiar. No inicio um casal com oito filhos e a
tação do médico ortopedista usa colete para correção seguir aumento do número de familiares com o
da anomalia. nascimento de netos e outros agregados passan-
Aos sete anos e seis meses de idade, uma ava- do a 14 membros em uma mesma residência. Re-
liação no ambulatorial do ODP detectou que a crian- centemente constatamos que houve o casamento
ça está evoluindo bem, a hipertensão pulmonar está de três filhas que passaram a morar em outros
resolvida, há diminuição da dependência de oxigênio domicílios continuando a ajudar o núcleo fami-
domiciliar embora não se possa predizer o prognóstico liar, o pai com profissão de pedreiro, alcoólatra,
por tratar-se de uma doença ainda pouco referida na prejudicando a organização familiar, já se recu-
literatura. A dependência ao oxigênio persiste após pera do alcoolismo de que é portador e trabalha
o exercício e provavelmente vai evoluir com algum atualmente na reforma de sua residência com
déficit da função pulmonar e provável fibrose. recurso financeiro ofertado por um dos genros.
Esta família caminha para um ajuste favorável,
apesar das condições sócio-econômicas ainda
Comentários e conclusões adversas. Observa-se melhora da auto-estima de
todos os seus membros.
No caso clínico referido acima, destaca- O caso descrito nos estimula à criação
mos que desde abril de 2004 é realizada avalia- de uma associação beneficente, já em fase em-
ção nutricional trimestral, (tabela 3) com acom- brionária há mais de dois anos, A Associação de
panhamento sócio-econômico. Houve evolução Combate à Desnutrição e às Agressões Bio-Psi-
de Desnutrição Crônica para Desnutrição Leve, co-Sociais à Família (ACODE), com o objetivo
estando atualmente eutrófica. A família recebe de ajudar a estas famílias carentes através de do-
de voluntários auxilio nutricional com dieta pa- ações e apadrinhamento do paciente e da família
dronizada para a criança e uma cesta básica para separadamente, com o objetivo de manter uma
os demais. Esta estratégia favorece para que a fa- qualidade nutricional adequada contribuindo
mília não necessite utilizar a cesta alimentar des- para o equilíbrio da saúde do paciente (criança)
tinada ao paciente. A atuação da equipe multidis- colaborando para o não agravamento da pato-
ciplinar é demonstrada no âmbito da família e da logia inicial e possíveis reinternações. Criar-
comunidade com ações diversas objetivando me- se-iam condições para a recuperação da família
lhores resultados no tratamento do paciente. A como um todo, educando, profissionalizando e
nutricionista avaliando e orientando em sua área, gerando oportunidades de emprego, colaboran-
a assistente social detectando e corrigindo distor- do com o resgate da cidadania.
ções, o médico da unidade hospitalar atuando a
nível ambulatorial, o médico visitador identifi-
1ª avaliação 2ª avaliação
cando fatores ambientais e familiares buscando (inicial) (atual)
combater as causas de desajuste familiar, dando Eutrófico 52% 69%
apoio procurando orientar a pai quanto aos agra- Desnutrição leve 35% 21%
vos trazidos pelo alcoolismo e as suas graves con- Desnutrição moderada 4% 6%
seqüências. No Brasil o consumo de álcool está Desnutrição grave 9% 4%
associado, normalmente, ao machismo, à alegria, Tabela 3. Avaliação Nutricional PAD/HIAS (01.01.2004 a
a sexo e ao carnaval. Ele é parte indispensável de 24.10.2006)
nossa cultura e de nossas tradições.
Constatamos tratar-se de uma prole nu- Há famílias que recebem mensalmente o

548
Capítulo 60 • Serviço de Atenção Domiciliar – SAD

Benefício de Prestação Continuada – BPC, (ta- ção de acidentes.


bela 4) no valor de um salário mínimo – garan- A Internação Domiciliar, é uma atenção
tido pela Constituição Federal de 1988, em seu especial prestada no domicílio, em tempo inte-
artigo 203, inciso V – para a pessoa portadora de gral para aqueles pacientes com quadro clínico
deficiência sem limite de idade e ao idoso com mais complexo e com necessidade de tecnolo-
mais de 67 anos, que comprovem não ter condi- gia especializada. Dentre estes estão inseridos
ções econômicas de se manter e nem de ter sua os pacientes com necessidades especiais, porta-
subsistência mantida por sua família. dores de seqüelas por traumas raquimedulares,
doenças neuromusculares, pneumopatias e en-
Paciente com
BPC
cefalopatia crônica que necessitam de ventilação
PAD 47 30 63.82
mecânica para sobreviver.
PAVD 8 6 75
Há também a necessidade de acompanha-
TOTAL 55 36 64.45 mento por equipe interdisciplinar semelhante o
Tabela 4. Paciente com BPC (07.07.06)
que ocorre com a Assistência Domiciliar.
A estratégia para o atendimento domiciliar
Uma proposta viável seria a formação jun- de pacientes dependentes de tecnologia envolve
to às equipes do Programa de Saúde da Família em ações que se iniciam durante a hospitalização:
todo o Estado do Ceará, de uma condição técni- • Visita ao domicílio pela assistente social para
ca mínima necessária para viabilizar o Serviço de verificar localização, condições físicas, sanitá-
Assistência Domiciliar – SAD (Através do Progra- rias, fornecimento de água e energia elétrica.
ma de Assistência Domiciliar - PAD), no interior, • Treinamento dos cuidadores familiares e adap-
devido à impossibilidade de nossas equipes locais tação do paciente ao equipamento de suporte
atingirem áreas distantes fora de nosso alcance e ventilatório (ventilador mecânico portátil).
de nosso município de origem. A Residência Mé- • A transição da UTI para o domicílio aconte-
dica do Programa de Saúde da Família poderia ce na Unidade de Pacientes Especiais – UPE
utilizar a estrutura já existente para a formação de (unidade de internação específica para os pa-
seus profissionais. Esta idéia foi utilizada no HIAS cientes em condições clínicas estáveis). Esta
em Janeiro de 2003 com a participação dos Médi- unidade conta com médico pediatra diarista,
cos Residentes de Pediatria. duas auxiliares de enfermagem para cinco lei-
Neste contexto a Equipe de Atenção Do- tos, enfermeira supervisora e fisioterapeutas
miciliar se beneficiaria profissionalmente, pres- no horário diurno. Os cuidadores são treina-
tando um atendimento à população com qualida- dos para realização de aspiração de vias aéreas
de, buscando a excelência técnica; contribuindo e traqueóstomo, uso do ambú, administração
para a formação de profissionais nas diversas de dieta por sonda, banho no leito, postura
categorias de saúde estabelecendo parcerias com correta do paciente, curativos, manuseio do
a sociedade civil, fortalecendo o terceiro setor ventilador portátil e providências necessárias
como coadjuvante no processo de transforma- nas intercorrências.
ção social e, notadamente, resgatando os valo- • Programação do cronograma de equipe inter-
res pessoais, proporcionando a aproximação do disciplinar:
médico com a família, a inserção das relações de - Médico Clínico ou pediatra – semanal;
humanização do atendimento na formação e na - Enfermeiro – 2x /semana;
prática profissional, sempre educando e orien- - Nutricionista – 1x/mês;
tando a família nas ações de imunização, higiene - Fisioterapeuta – 3x/semana;
ambiental, cuidados com alimentação e preven- - Assistente Social – 1x/mês;

549
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

- Cirurgião – a cada três meses para troca de Bibliografia


traqueóstomo e a cada seis meses para troca
de sonda de gastrostomia. Barbosa MNL, Oliveira CF. Manual de ONGS.
• Organização dos materiais médico-hospitala- Guia Prático de orientação jurídica. 4ª ed. Rio de
res descartáveis e permanentes para disponi- Janeiro; FGV, 2003.
bilização semanal.
Barros D. Breve histórico da implantação do Pro-
• Prescrição dos medicamentos padronizados
grama de Internação Domiciliar no Ceará. Forta-
no hospital de referência com disponibiliza- leza; 2000.
ção mensal.
• Antes da remoção para o domicílio é preen- Brasil. Constituição (1988). Seção IV. Da Assis-
tência Social, Artigo 203, Inciso V. BPC.
chido check-list com o cuidador responsável
e assinado termo de responsabilidade. É for- Brasil. Lei Nº 10.424 de 15.04.2002, acrescentan-
necida a família declaração para registro do do o Capítulo VI à Lei nº 8080 de 19 de Setembro
domicílio junto a Companhia de Energia Elé- de 1990, estabelecendo o atendimento domiciliar
trica como área de risco. no âmbito do SUS.
• Nas intercorrências o médico assistente é Brasil. Presidência da República. Lei n.° 10.406,
acionado por telefone e se necessário o SAMU. de 10 de janeiro de 2002 [on-line]. Institui o
Caso seja necessária a remoção para hospital Código Civil[capturadoem10dez.2006]Dispo-
haverá a participação do médico assistente nível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/
dentro das ações de promoção da saúde e pre- leis/2002/L10406.htm
venção de agravos. França LCRF, Araújo TMS. Projeto Pediatra
Amigo. Fortaleza: HIAS; 2003.
Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 2.410
de 23 de Março de 1998. Do ministério da
Saúde. Programa de Internação Domiciliar -
PID.3.Portaria nº 2.410 de 23 de Março de 1998
do Ministério da Saúde. Programa de Interna-
ção Domiciliar - PID.
Ministério da Saúde (BR).Resolução da Direto-
ria Colegiada – RDC nº 11 de 26 de Janeiro de
2006 da Agencia Nacional de Vigilância Sanitá-
ria, ANVISA. Dispõe sobre o Regulamento Téc-
nico de Funcionamento de serviços que prestam
Atenção Domiciliar.
Mota LA. A Dádiva da Sobriedade. São Paulo,
Paulus; 2004.
Revista Nacional de Reabilitação. São Paulo.
1999; 3 (11).

550
Capítulo 61
Saúde Bucal seguida das doenças da gengiva e a perda dentária
leni lúcia leal noBre precoce. Outra situação apresentada no levanta-
caroline Ferreira Martins lessa mento foi o difícil acesso da população aos ser-
viços odontológicos, o que gera uma enorme de-
manda reprimida por assistência odontológica5.
As doenças da boca podem acometer
qualquer faixa etária ou grupo populacional.
Os grupos prioritários para o desenvolvimento
de ações de promoção da saúde e prevenção das
Considerações Iniciais doenças bucais são as crianças de 0 a 14 anos e
as gestantes.

S endo um dos princípios do Sistema Único de


Saúde – SUS, a Integralidade afirma que a
atenção à saúde do indivíduo deve ser prestada
O obstetra, durante o pré-natal, deve aler-
tar a futura mãe sobre a importância da sua saú-
de bucal e dos cuidados que deve ter para preser-
de forma integral desde a promoção da saúde até vação dos dentes e gengivas do filho.
a recuperação dos danos causados pelas doenças. O pediatra e a equipe de enfermagem que
Integralidade também no sentido de que, no de- têm acesso ao bebê e à criança muito antes do den-
senvolvimento das ações de uma equipe de saúde, tista, além dos agentes de saúde que estão mensal-
a totalidade do indivíduo deve ser considerada. mente nos domicílios, devem estar atentos para
A Norma Operacional da Assistência à evitar que as doenças bucais apareçam, orientan-
Saúde – NOAS, do Ministério da Saúde4 e a Po- do as crianças e seus responsáveis quanto aos cui-
lítica Nacional de Atenção Básica expressa na dados de higiene e alimentação como também na
Portaria n. 648/GM de 28/03/06 incluem a saúde identificação de sinais e sintomas que necessitam
bucal como uma das áreas estratégicas de atua- dos cuidados profissionais dos dentistas.
ção obrigatória pelas Equipes de Saúde da Fa- A situação apresentada demonstra a real
mília. Desse modo, além do Dentista, os demais necessidade do envolvimento de todos os pro-
membros da equipe sendo co-responsáveis pela fissionais de saúde na construção de modelos de
saúde da população a ela adscrita devem estar atenção mais humanos e eficientes no controle
capacitados a atuarem em processos de trabalho das doenças da boca, compromisso que, segura-
integradores, com maior poder resolutivo. mente, contribuirá na reversão da imagem do
A cavidade oral é muitas vezes o local de desdentado como símbolo comum e caricatural
escolha para as primeiras alterações de doenças da sociedade brasileira.
sistêmicas ou a resposta para situações que não Portanto, conhecer o sistema estomatoló-
respondem a contento mesmo sendo instituído gico ou cavidade oral, identificar as característi-
correto tratamento como é o caso dos pacientes cas da sua normalidade e das suas principais do-
diabéticos que não estabilizam devido à presen- enças devem ser temas presentes na rotina dos
ça de foco infeccioso de origem dentária. membros da equipe de saúde a fim de que sejam
O último levantamento epidemiológico, potencializadas as medidas de controle dessas
o SB Brasil6, apresentou resultados importantes patologias. Assim, a saúde bucal dependerá das
que reafirmam a importância da cárie dentária no ações multiprofissionais de atuação nas áreas es-
perfil das doenças bucais da população brasileira, tratégicas: atenção à criança, atenção à mulher,

551
Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

atenção ao adulto e ao idoso e comporá a rotina Atenção redobrada com os primeiros molares permanen-
de acompanhamento dos hipertensos, hansenia- tes que surgem no período dos cinco aos sete anos de ida-
de e são muitas vezes confundidos com dente de leite, o
nos, diabéticos e tuberculosos. que causa frequentemente sua perda precoce e prejuízos
Este capítulo destaca aspectos relevantes para a normalidade das arcadas dentárias.
na abordagem dos indivíduos, conforme os ci-
clos de vida e as alterações orais.
Observações e Orientações sobre saúde
bucal durante o atendimento dos
Conhecendo o Sistema Estomatológico diferentes grupos populacionais

O Sistema Estomatológico é composto de Nas consultas de rotina bem como nas vi-
alguns elementos que merecem atenção especial sitas domiciliares, orientações devem ser presta-
durante o exame físico. São eles: lábios, boche- das aos indivíduos e suas famílias sobre a impor-
chas, gengivas, palato, língua, freio lingual, as- tância da higiene dos dentes, gengivas e língua
soalho bucal, ossos mandibular e maxilar, ATM para a saúde em geral e dos cuidados necessários
– articulação temporo-mandibular, músculos e para prevenir as doenças da boca.
dentes. As funções principais desse Sistema são: Um simples exame da boca e dos elementos
mastigatória, digestiva, fonética e estética. que a compõe, utilizando-se somente o abaixador
Dentre as doenças e agravos que acometem de língua e a luz ambiente, pode e deve ser reali-
a boca destacam-se: as manchas brancas caracte- zado por qualquer membro da equipe de saúde.
rísticas da fase inicial da cárie, cárie com cavi- Este procedimento permite detectar as condições
tação, doenças gengivais, fluorose dental, trau- de saúde/doença bucal, auxiliar no diagnóstico e
mas dentários, fístulas, abscessos, mal-oclusão, na descoberta das causas de algumas patologias
granuloma gravídico, lesões dos tecidos moles, gerais, e traduz-se numa excelente oportunidade
fendas palatais ou labiais, cânceres, disfunção da de orientação sobre o auto-cuidado e para a rea-
ATM e as aftas. lização dos encaminhamentos, quando necessá-
rios, para a equipe de saúde bucal.

As Duas Dentições
Gestantes
A dentição decídua, composta por dez
dentes em cada arcada é popularmente conheci- Observe as condições de higiene da ges-
da como dentes de leite, pois aparece na fase em tante, com atenção para: presença de placas bac-
que a criança faz uso do leite materno. Inicia-se terianas ou tártaros (pedras causadas pela calci-
por volta dos seis meses de vida e termina aos ficação das placas) que se localizam próximo às
dois anos de idade, totalizando 20 dentes de gengivas e entre os dentes, inchaço, gengivas do-
tamanho menores e mais branquinhos quan- loridas, presença de granuloma gravídico, san-
do comparados aos permanentes. Já a dentição gramento no ato da escovação e desgarramento
permanente aparece por volta dos cinco anos de das gengivas aos dentes (gengiva frouxa), situa-
idade e aos 13 ou 14 está quase completa, faltan- ções que indicam estágios avançados da doença.
do os terceiros molares, siso ou dente do juízo, Observe ainda a presença de cáries ou
que irrompem aos 18 anos. dentes fraturados na boca. Pergunte se ela sente
dores de dentes ou algum outro incômodo.

552
Capítulo 61 • Saúde Bucal

Em nenhuma situação a higienização com escova, den- duo com cárie dentária e nas crianças com cinco
tifrício e fio dental deve ser suspensa, pelo contrário, a anos de idade este dado chega a 60% de indiví-
limpeza é importante nos casos de gengivas normais e
principalmente nas alterações gengivais que, embora
duos acometidos5. Dessa forma, há grande ne-
sangrem, devem ser higienizadas. cessidade de intensificar medidas de cuidados
em saúde bucal neste grupo populacional.
Oriente-a agendar consulta com o dentis- A puérpera deve estar ciente da importân-
ta da Unidade de Saúde onde ela faz o pré-natal, cia que a sua saúde bucal representa para a confi-
ou na Unidade mais próxima. guração da sua saúde bucal e de seu filho. A mãe
deve intensificar a higiene dos seus dentes, lín-
Lembre que isto é um direito dela e dever da equipe gua e gengivas, pois o contato direto e próximo
de saúde.
com o bebê viabiliza a transmissão das bactérias
associadas à cárie dentária.
Caso ela use dentadura, peça-a para retirá-
la e observe se o palato e a mucosa oral apresen-
É fato cientificamente comprovado que, ao nascer, a crian-
tam alterações de cor, consistência e volume. ça encontra-se livre da bactéria que causa a cárie, mas
Em todos os casos oriente sempre que a próte- pode ser rapidamente contaminada pela saliva da mãe ou
cuidadora que não mantém uma boa higiene oral.
se deve ser higienizada e removida para o sono
noturno, pois, o uso ininterrupto pode levar ao
Por conseguinte, torna-se imprescindível o
surgimento de calo na abóbada palatina. Outras
acompanhamento das condições de saúde bucal
alterações na coloração ou anatomia das estrutu-
da mãe e da criança, bem como o encaminhamen-
ras moles ou duras da boca devem também ser
to das situações em que se configure a necessidade
encaminhadas para o profissional dentista.
de tratamento dentário por profissional da área.
Ressalte a auto-estima da futura mãe e a
Segundo Pereira8 “Durante a primeira in-
importância da saúde bucal para a saúde dela em
fância, a realização desse amplo diagnóstico tor-
geral e para o desenvolvimento saudável do bebê.
na-se relativamente difícil, visto que é comum
a procura por um profissional da área somente
Não é verdade o dito popular: “Para cada gravidez um
dente perdido”. quando a doença já apresentou clinicamente
sinais e sintomas, deixando os pais surpresos
Lembre-se de orientá-la sobre a impor- quanto à possibilidade da ocorrência de cáries
tância da amamentação para o bebê no desen- em indivíduos tão jovens”. Portanto, o trabalho
volvimento das suas arcadas dentárias e na pre- da equipe de saúde, dentistas, médicos, enfermei-
venção da cárie e das doenças gengivais além da ros, agentes de saúde e demais membros, deve ser
nutrição e defesa que somente o aleitamento na- uma constante na rotina dos serviços de saúde.
tural pode oferecer. Mas, informe também que Sabe-se que, culturalmente, não há em
a mamentação exclusiva tem vantagem para a nossa população o hábito de higienizar a cavida-
mulher na redução de hemorragia interna e do de oral de crianças que ainda não apresentam ele-
planejamento reprodutivo. mentos dentários em sua boca. No entanto, esse
simples hábito pode representar um ganho con-
siderável na busca da saúde bucal destas crianças
Mães no Puerpério, Bebês e Crianças até 5 anos ainda que o único alimento seja o leite materno.
Após cada mamada, é necessário a higieni-
Segundo o levantamento epidemiológico zação da língua, palato e gengivas do bebê. Neste
SB Brasil5, quase 27% das crianças de 18 a 36 momento, deve ser utilizada uma gaze ou mesmo
meses apresentam pelo menos um dente decí- uma fralda limpa. Sugere-se a limpeza por fric-

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Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

ção suave dessa gaze nas estruturas mencionadas Ao surgirmento dos dentes a higienização
de forma a remover os vestígios de leite retidos deve ser intensificada através do uso de pano lim-
na cavidade oral do bebê. Isso evita o acúmulo po envolvido na unha da mãe que raspa a superfí-
de placas bacterianas, estimula a gengiva onde cie dos dentes da criança de forma suave, após cada
futuramente irão romper os dentinhos, além de alimentação ou através de escova dental macia. A
dar prazer ao bebê, o que facilitará o desenvolvi- criança deve possuir uma escova dental individu-
mento da rotina de limpeza oral no futuro. al e de tamanho apropriado e acompanhando o
Um outro aliado no desenvolvimento ade- ato escovatório dos adultos começa a adquirir o
quado das estruturas orais é o aleitamento mater- controle motor e o hábito da escovação.
no, pois colabora na maturação de ossos e mús-
culos do sistema estomatognático. Caso a criança Atenção: Por conterem flúor, substância tóxica quando
ingerida intensamente ou continuamente, o dentifrício
não esteja em regime de aleitamento materno ex- (creme dental) não deve ser colocado na escova até a
clusivo ou por algum outro motivo necessite do criança adquirir o reflexo e a capacidade de cuspir du-
rante as escovações dentárias. Isto se dá normalmente
uso complementar de leite industrializado, orien- por volta dos três anos de idade.
te sempre que a utilização do açúcar pode trazer
graves prejuízos aos futuros dentes do bebê. Fique atento também a situações sugestivas
O aparecimento de cáries na primeira infân- de processos infecciosos como a presença de fístula,
cia indica maus hábitos como a não higienização “botãozinho” amarelo que aparece sobre os dentes
da boca e o consumo de bebidas altamente açuca- anteriores, muitas vezes indolor, e que representa
radas. Portanto, o uso do açúcar nesta fase deve um foco que precisa ser tratado pelo dentista.
ser evitado sempre que possível inclusive para
evitar que o paladar da criança não fique tão ávido
por alimentos açucarados, o que pode contribuir Crianças de 6 a 14 anos e Adolescentes
na prevenção da obesidade e sobrepeso, situações
cada vez mais comuns em nossa sociedade. O quadro epidemiológico deste grupo
As manifestações clínicas das lesões de cá- aponta a média de 2,8 dentes cariados, perdidos
rie nesta fase, as famosas “cáries de mamadeiras”, ou obturados aos 12 anos de idade, com tendên-
são principalmente provocadas pelas mamadeiras cia crescente para os adolescentes, que já apre-
durante a noite. Como o fluxo salivar é diminuí- sentam 6,2 dentes cariados, perdidos ou obtura-
do durante o sono, o efeito auto-limpante e remi- dos5. Este quadro reflete bem a tradicional ação
neralizante da saliva fica reduzido, aumentando preventiva através de procedimentos coletivos
assim, a probabilidade do surgimento de cáries destinados aos escolares de 6 a 14 anos de idade,
que podem destruir a coroa de todos os denti- das escolas públicas.
nhos, provocando dor, focos, prejuízo na estética Durante o exame clínico deve ser investi-
e perda de espaço para os dentes permanentes. gada a presença de manchas brancas opacas na
Observe se o bebê apresenta lesões esbran- superfície dos dentes, além da presença de cárie
quiçadas na mucosa oral, o “sapinho”, como é com cavidades e focos. É pertinente esclarecer
popularmente conhecido. A monilíase ou can- que estas manchas brancas são cáries no estágio
didíase que é provocada por um fungo – Candi- inicial e que podem ser revertidas caso o con-
da albicans, habitante da microflora da cavidade sumo de alimentos que contenham açúcar seja
oral que pode se tornar agressora da mucosa7. A diminuído e espaçado em intervalos maiores de
mãe deve ser orientada a proceder com maior tempo e a higienização dos dentes seja intensifi-
rigor de higiene além de levar a criança para a cada ou através de tratamento adequado median-
unidade de saúde. te o emprego do flúor. Se essas manchas forem

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Capítulo 61 • Saúde Bucal

extensas, acometendo muitos dentes, se persisti- uma arcada. Desses, mais de 15% necessitam de
rem ou aumentarem de tamanho, a criança deve pelo menos uma dentadura8.
ser encaminhada ao dentista. Portanto, esclarecimentos quanto à im-
Observe a presença de fístula, muitas ve- portância de manter os dentes sadios para as
zes indolores, e que representa um foco que pre- funções a eles destinadas são imprescindíveis à
cisa ser tratado pelo dentista. A gengiva elevada saúde geral de todos os cidadãos.
na região dos dentes posteriores (molares), por Sabe-se que a cavidade oral é o local onde
vezes drenando secreção purulenta à palpação é se iniciam processos vitais como a digestão dos
sinal de abscesso, o paciente também deve ser alimentos e a correta absorção de nutrientes ne-
referenciado para unidade de saúde. cessários para o estabelecimento da saúde. Um
Nesta faixa etária é comum a queixa de que belo sorriso facilita relações sociais e é o princi-
a criança apresenta algumas alterações durante a pal canal de comunicação entre os indivíduos.
troca dos dentes. Colabore explicando a criança e
A perda de dentes acelera o envelhecimento, prejudi-
a mãe de que se trata de um processo natural e que cando a estética e dificultando a inserção das pessoas no
o apoio da família nesse momento é muito impor- mercado de trabalho.
tante desmistificando o medo do dentista. Oriente
sobre a necessidade da limpeza dos dentes, gengi- O mesmo levantamento epidemiológico
va e língua após as refeições e que o uso de alimen- informa que as doenças gengivais representam a
tos ou substâncias açucaradas deve ser evitado. segunda causa de perda dos elementos dentários
e que apenas 22% dos adultos no Brasil apresen-
Mais importante que a quantidade é a freqüência do con- tam gengivas sadias5.
sumo do açúcar nas suas várias formas.
Focos dentais, gengivites / periodontites
ou gengivose / periodontose são infecções que,
Os dentes de leite merecem grande aten-
se não tratadas a tempo, podem disseminar por
ção e cuidado, pois guardam o espaço do dente
outras estruturas nobres do corpo, o que em si-
permanente evitando a perda de espaço.
tuações mais graves culminam com alterações
Atenção redobrada com os primeiros mo-
na visão, otites, endocardite bacteriana, dentre
lares permanentes que surgem no período dos
outros transtornos.
cinco aos sete anos de idade. Oriente para que
Oriente-os sobre o auto-exame da boca na
esses dentes sejam incluídos na escovação e, não
prevenção do aparecimento dos Cânceres Orais.
confundidos com dente de leite.
Aos que se expõe com freqüência ao sol alerte
para a necessidade de proteção dos lábios.
Adultos Uso de bebidas alcóolicas e fumo aumentam a probabili-
dade de câncer de boca.
Conforme a tendência epidemiológica re-
ferida para os adolescentes, os indivíduos adul-
tos apresentam maior número de dentes acome- Idosos
tidos por doenças dentárias e gengivais. Assim,
temos a média de 20,1 dentes cariados, perdidos O envelhecimento do sistema estomatog-
ou obturados nesta faixa etária. A situação neste nático acompanha o processo percebido por todos
grupo é alarmante, visto que mais de 28% dos os outros órgãos e estruturas do organismo. Algu-
adultos não possuem nenhum dente funcional mas dessas alterações se tornam mais aparentes
(todos os dentes foram extraídos ou os que res- quando se associa limitações advindas de interfe-
tam têm sua extração indicada) em pelo menos rências clínicas como é o caso das perdas dentá-

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Livro do Médico de Família • Seção 2 – Saúde da Criança e do Adolescente

rias. Sabe-se que o processo de abrasão associado As alterações orais mais comuns no idoso
à exodontias (extração de dentes) leva a queilite relacionam-se a situações como o alto consumo
angular devido à perda da dimensão vertical2. de medicação contínua, estado físico e emocio-
Um evento comum é o ressecamento da nal, insegurança, estilo de vida, auto-estima bai-
mucosa oral, pois a atividade das glândulas saliva- xa e pelo maior risco a patologias bucais como
res reduz em muito caracterizando o surgimento periodontoses e câncer bucal nesta fase da vida.
de xerostomia. Há também perda da elasticidade Os idosos geralmente apresentam um
e fibrose que pode provocar o aparecimento de quadro clínico caracterizado por falta de dentes
lesões erosivas com mínima ação traumática. ou edentulismo, doença periodontal, halitose,
A princípio, deve-se partir da máxima que xerostomia, atrição e abrasão dos remanescentes
o edentulismo na terceira idade não é uma condi- dentários, lesões da mucosa bucal (candidíase,
ção natural do processo de envelhecimento, mas, hiperplasia, eritoplasia, leucoplasia) decorrentes
que o atual quadro de saúde bucal da maioria dos não só do envelhecimento, mas, das freqüentes
idosos seja resultado de uma realidade cultural e morbidades: hipertensão arterial, enfermidades
histórica vivenciada no Brasil e no mundo. cardíacas, diabetes mellitus, patologias mentais
Segundo dados de 2006 fornecidos pelo e motoras e as doenças sociais (abandono, maus
Ministério da Saúde6, três a cada quatro idosos tratos, exploração e outras).
não possuem nenhum dente funcional. Desses,
mais de 36% necessitam de pelo menos uma Na abordagem ao idoso, deve-se evitar o emprego de
dentadura e menos de 8% apresentam gengivas termos impessoais como acontece quando ao invés de
sadias. Estima-se que para este grupo há, em chamá-los pelo nome, usamos apelidos como “Tio” ou
“Vozinho”. É essencial demonstrar respeito e paciência,
média, 26 dentes extraídos por pessoa. usar tom de voz suave a fim de envolvê-lo na conversa
A principal razão para que os idosos não durante as consultas.
utilizem os serviços de odontologia consiste no
fato de que eles não se identificam como deman-
da para esses atendimentos. Portadores de Doenças Cardiovasculares,
Em nossa sociedade, há o consenso de que Hipertensão e Diabetes Mellitus
a perda dos dentes pode ser considerada como
uma “carta de alforria” aos sofrimentos e dores Alguns autores vêm desenvolvendo estu-
que envolvem o atendimento odontológico. dos no intuito de contribuir para a elucidação da
É de fundamental importância o grande associação entre doenças periodontais e doenças
compromisso humano, cidadão e assistencial que cardiovasculares. Segundo Page e Kornman e
a equipe de saúde deve ter para com este grupo po- Chiapinotto, citados por Pereira8, a periodonti-
pulacional, prioritário e meta expressa como uma te é um fator de risco importante nas doenças
das responsabilidades, no Pacto pela Vida 2006. coronarianas e respiratórias e no nascimento de
Portanto, a troca de saberes e o caminhar bebês prematuros de baixo peso.
solidário neste intuito tornam-se ferramentas No entanto, Lunardelli et al3 afirma que
indispensáveis. não há ainda estudos com base em evidência
Esses cidadãos devem ser observados cri- epidemiológica conclusiva quanto à relação cau-
teriosamente quanto à presença de cáries, focos, sal em estudo.
problemas gengivais, alterações no palato pro- Há ainda outro aspecto a ser considerado,
vocadas por dentadura, lesões brancas (leuco- pois, a relação inversa, ou seja, o fato de que al-
plasias) às vezes provocadas pelo uso de piteiras, gumas alterações sistêmicas, como o diabetes, al-
charutos ou cigarros entre outras alterações. teram o risco para o desenvolvimento de doença

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Capítulo 61 • Saúde Bucal

periodontal. Assim, torna-se pertinente a inclu- Câncer Bucal


são da inspeção da cavidade oral durante o exa-
me físico do paciente com alteração sistêmica. Como mencionado anteriormente, em
A equipe de saúde deve estar atenta para todas as patologias orais é imprescindível o tra-
os seguintes detalhes: balho em equipe. Entretanto, quando tratamos
• Pacientes com diabetes mellitus e hipertensão de câncer oral a urgência em viabilizar a atuação
arterial devem sempre estar compensados para conjunta e responsável no controle dessa patolo-
se submeterem ao tratamento odontológico; gia torna-se preponderante.
• Paciente com doenças cardiovasculares, pre- Segundo o Instituto Nacional do Câncer,
ferencialmente, devem ser atendidos após as no ano de 1999, a lesão oral maligna é uma das
9h da manhã. causas mais comuns de morte entre homens e
• Portadores de válvulas cardíacas artificiais mulheres, sendo que para os primeiros ocuparia
necessitam de cobertura antibiótica para a re- a sétima posição e que para o sexo feminino es-
alização de procedimentos invasivos. taria na 13ª posição1.
• O fumo é considerado o maior fator de risco O câncer bucal é mais comum entre ho-
para doenças do periodonto. mens, com idade acima de 40 anos e que fazem
• Os idosos devem ter atendimento preferencial uso de bebidas alcoólicas e de tabaco. O fumo é
nas unidades de saúde e serem orientados so- considerado o principal fator de risco. Entretan-
bre as medidas de higiene oral, uso e cuidados to, nas lesões de lábios, considera-se a exposição
com a prótese bucal e sobre o uso de proteto- aos raios solares o fator mais importante8.
res labial para evitar o contato direto do sol. A apresentação clínica mais comum con-
siste em uma lesão ulcerada, com bordos ele-
vados e que em algumas situações apresenta-se
Tuberculose e Hanseníase como uma lesão vermelha e/ou branca.

O cuidado em saúde bucal para este grupo Todos os profissionais de saúde devem estar atentos a lesões
não deve ser desconsiderado, colaborando inclu- na mucosa oral que não regridem em 14 dias bem como es-
timular o hábito do auto - exame das estruturas orais.
sive para o seu resgate social. Deve-se apenas ter
atenção sobre as condições desse paciente bem
Outro aspecto relevante a ser considerado
como a data de início do tratamento, pois após o
na abordagem do câncer de boca, é que a maioria
primeiro momento, ou seja, quando não há mais
dos pacientes acometidos por essa neoplasia é de
a liberação do bacilo causador da patologia, o
baixo nível econômico e social, os quais geral-
atendimento pode transcorrer sem problemas.
mente tem maiores dificuldades no acesso a in-
Deve ser estimulada a remoção de focos in-
formação e ao acompanhamento adequado por
fecciosos para um maior conforto desses pacien-
um profissional habilitado.
tes bem como a manutenção dos cuidados com a
Por fim, percebe-se a necessidade de in-
higiene oral. O ideal é sempre a aproximação da
tensificar as ações preventivas no controle dessa
equipe a fim de que a melhor atenção possível
patologia oral que tem grandes repercussões no
possa ser destinada a este grupo de indivíduos.
perfil epidemiológico da população.
Vale ainda ressaltar a importância do en-
volvimento do profissional dentista nos mo-
Conclui-se que a soma dos saberes e o trabalho em equi-
mentos de treinamentos na abordagem destes pe devem ser entendidos como uma estratégia para me-
pacientes no intuito de que assim a equipe possa lhorar a efetividade das ações, elevar o grau de confiança
dos membros da equipe e a satisfação dos usuários.
estar mais segura e participativa.

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Referências

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tório. São Paulo: Sarvier, 2000.
8. Pereira AC. Odontologia em saúde coletiva: pla-
nejando ações e promovendo saúde. São Paulo:
Artmed, 2003. 440 p.

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Este livro foi composto nas fontes Butter, corpo 26 e Aldine721 BT, corpo 11.
O miolo foi impresso em papel AP 75 g/m2 e a capa em cartão supremo 250 g/m2, na Gráfica LCR, em setembro de 2008.

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