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DOI: http://dx.doi.org/10.22296/2317-1529.

2014v16n2p241

Cidades, fronteiras as cidades mundiais (comércio, trabalho, comu-


e diversidades na nicações, mobilidades, turismo). A modernidade
Amazônia e suas diversas formas e interpretações têm como
elemento a vida urbana. As cidades no contexto
Resenha do livro: da modernização e da modernidade se transfor-
Cidades na Floresta maram e, atualmente, são representantes do que
Edna Castro (Org.) podemos chamar de vida urbana, essa dimensão
São Paulo: Annablume, 2009. que faz parte indelével de nossa sociedade. Entre-
tanto, de alguma forma, numa nova moderni-
Silvio Lima Figueiredo dade que se molda e desmolda, essa certeza parece
Graduado em Turismo e mestre em Planejamento do
que existe e não existe. Começa-se a observar a
Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará
dimensão urbana como diversa, e essa diversidade
(UFPA); doutor em Comunicação pela Escola de
é marcada principalmente pelo encontro do local
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
com o processo de urbanização.
(ECA/USP); professor e pesquisador do
A diversidade urbana da Amazônia se expressa
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
em sua territorialidade. É disso que o livro Cidades
Sustentável do Trópico Úmido da UFPA e do Programa
na Floresta trata. O livro apresenta a complexidade e
de Pós-Graduação em Turismo da Universidade Federal
a especificidade que marcam os territórios onde uma
do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil.
rede urbana específica se estabelece. Marcadamente
E-mail: slima@ufpa.br.
complexa e diversa, a rede urbana na Amazônia está
retratada em Cidades na Floresta de forma densa
Nirvia Ravena e detalhada, não deixando escapar as diversidades
Cientista social e mestre em Planejamento do e complexidades que se expressam nos territórios
Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará amazônicos. O primeiro capítulo, de Edna Castro,
(UFPA); doutora em Ciência Política pelo trata das conexões lógicas que permitem identificar
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro os efeitos da globalização e do mercado transnacional
(IUPERJ); professora e pesquisadora do Programa sobre os atores sociais e territórios-rede na Amazônia,
de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável demonstrando as cidades amazônicas como resul-
do Trópico Úmido da UFPA e do Programa de Pós- tantes, também, da diversidade de segmentos sociais
Graduação em Administração da Universidade da que intervêm no território. Do grande capital aos
Amazônia (UNAMA), Brasil. pequenos produtores rurais, o texto apresenta a
E-mail: niravena@gmail.com. dinâmica territorial criando novas estruturas urbanas
resultantes do confronto entre modelos diversos de
A sociedade industrial é urbana, assim Fran- apropriação do território, do uso da terra e da acumu-
çoise Choay (1965) inicia sua antologia L’urba- lação de capital em áreas amazônicas. A autora desvela
nisme, utopies et réalités. A relação entre as cidades as estruturas que envolvem a condução da Iniciativa
e a industrialização é evidenciada e, de alguma de Integração da Região Sul Americana (IIRSA) de
forma, aparece em vários estudos clássicos para a forma arguta e reveladora, apontando esse arranjo
compreensão moderna da cidade. A partir da ideia institucional como um mecanismo eficiente para o
relacional e dialética entre industrialização e urba- atendimento de interesses externos que, ao utilizar
nização, vão aparecendo indagações sobre cidades a cooperação e integração como recurso discursivo,
não industrializadas e que, mesmo assim, imbuem- legitimam a transformação da região em um corredor
se do modelo de urbanização fordista-keynesiano- de exportação de produtos agrícolas, florestais,
corbusiano – aqui, no sentido destacado por minerais, de recursos hídricos e de energia.
François Ascher (2004) em Les nouveaux principes Brasilmar Ferreira Nunes apresenta, no interior
de l’urbanisme. A imagem formada então é de uma do mainstream que insere a dinâmica da urbanização
“cultura urbana”, um avatar que avança e encontra no contexto da formação do capital, a especificidade

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que marca a Amazônia nesse processo que ainda se auge da economia da borracha, ser a “Paris n’Amé-
encontra inconcluso na região. Partindo de Marx, rica”; e Walter Benjamin, o fisiognomonista urbano.
passando por Weber, Simmel, Elias e chegando a A especificidade histórica dessa cidade é pontuada
Polanyi, o autor apresenta a Economia e a Socio- com precisão por Bolle, que adentra, através dos
logia imbrincadas em uma lógica assentada nos personagens de Dalcídio Jurandir, as especificidades
vínculos sociais que se constroem a partir de esferas culturais da metrópole Belém. Dalcídio Jurandir é
mercantis e não mercantis presentes no território. A apresentado através de Belém do Grão-Pará (1960),
partir de Polanyi, Nunes caracteriza a complexidade que compõe, com mais nove romances, entre eles
das relações econômicas e sociais que se encontram Marajó (1947), o Ciclo do Extremo Norte (1941-
em territórios amazônicos, pontuando a especifi- 1978), seu legado de alcance local e regional. Willi
cidade da região. A especificidade é marcada pelo Bolle se dispõe a enfrentar o desafio de expor os
processo de monetarização das relações sociais na elementos constitutivos locais e regionais da obra de
área, que ocorre por meio de mecanismos desiguais Dalcídio Jurandir enquanto recurso indispensável
e combinados, nos quais convivem processos sociais para um retrato fiel da cidade de Belém. Ao operar
tradicionais e outros extremamente modernos. a tradução dos componentes da obra de Dalcídio
Assim, as Cidades na Floresta também desempe- Jurandir para um código de compreensão mais geral,
nham um papel estruturante da lógica de acumu- através das categorias de Walter Benjamin, o autor
lação do capital. acaba transcendendo a leitura da cidade de Belém
As metrópoles na Amazônia são apresentadas pelo romancista local para uma compreensão plena
com o cuidado histórico que merecem e também dos leitores que não estão familiarizados com esse
no interior de sua importância geopolítica. José ambiente específico. Belém é apresentada a partir de
Aldemir de Oliveira e Tatiana Schor mostram uma uma descrição que propicia ao leitor uma transcen-
Manaus resultante das contradições que marcam a dência temporal e espacial. A descrição da cidade
construção da metrópole. Da apresentação da forti- permite que o leitor se veja atravessando ruas, praças
ficação utilizada como estratégia de ocupação até e canais. Willi Bolle pontua Belém em seu perten-
meados do século VIII e da criação de vilas para a cimento local e regional. Personagens dos romances
consolidação da conquista portuguesa; passando à de Dalcídio Jurandir associados a uma arguta apro-
análise da origem da Amazônia brasileira no início ximação da teoria Benjaminiana de legibilidade da
do século XIX, quando Manaus passa de povoa- cidade detalham a Belém metrópole.
mento à situação que oscila entre povoado e vila, até O conceito de fronteira se encontra com o de
ser elevada à condição de cidade e se transformar urbanidade nos textos de Germán Palacio, Ricardo
em capital da Província; e, com precisão, analisando Nogueira, Juan Carlos Peña Márques e Kazuo
o crescimento da cidade no período da borracha, Nakano. Essa dimensão tripla e múltipla, que marca
no final do século XIX, até a criação e implan- o encontro da cidade, da floresta e da fronteira, é
tação da Zona Franca na década de 1960 e suas capitaneada no texto de Palacio pelo espectro da
transformações, culminando, no início do século globalização, que, segundo o autor, apresenta-se
XXI, com o Polo Industrial de Manaus (PIM). Os muito fortemente em Leticia, cidade colombiana do
autores descrevem uma Manaus inconclusa na sua chamado “Trapézio Amazônico”, na tríplice fronteira
forma urbana, que deve ser descrita com densidade confluência do Brasil, Colômbia e Peru. Separada de
para expressar os modos de vida nela vivenciados Tabatinga (cidade amazonense) por uma rua apenas,
e resultantes das relações de produção continua- Leticia é uma cidade de pouco mais de 40 mil habi-
mente produzidas, reproduzidas, criadas e recriadas, tantes (em dados ainda de 2003), fundada em 1867 na
contendo as dimensões da sociedade de cada tempo região originada das disputas entre os três países com
da Metrópole Manaus. limites solidificados apenas no século XX; por isso a
Wille Bolle passeia por Belém tendo como guias região e suas cidades são marcadas por forte presença
Dalcídio Jurandir, alcunhado pelo autor de insider militar, para controle, até hoje. Leticia também foi
na Metrópole, a Belém metrópole, que pretendia, no base de estratégias para controlar e pressionar as guer-

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rilhas para o interior da floresta. O controle territo- cotidianidade que reconstrói a ideia de urbanização.
rial marcado pela presença dos militares se encontra Em “Mitú-Valpés: história e memória da
com as trocas culturais e também conflituosas entre origem de uma pequena cidade amazônica na
colombianos, brasileiros e peruanos, alguns de origem Colômbia”, Juan Carlos Peña Márquez apresenta
indígena, forte presença na tríplice fronteira. Para o mais uma cidade amazônica, suas contradições,
autor, o movimento entre-fronteiras, a mobilidade nos determinações e características. A cidade de Mutú,
rios, a presença militar, os índios (Tikunas), as poten- capital do Departamento de Vaupés no oeste de
cialidades turísticas e os conflitos do tráfico de drogas Colômbia, fronteira com o Brasil, é exemplo da
dão à Leticia uma feição local e globalizada indica- relação entre a dimensão urbana e as relações ético
dora das relações e interações complexas entre urbano -rurais. Segundo o autor, os indígenas da Região
e rural, marcadas por especificidades Amazônicas. têm papel importante na consolidação do “tempo
O debate sobre fronteira e urbanidade continua urbano”, de forma que, mesmo que o urbano
com o estudo de Ricardo Nogueira sobre Tabatinga. promova transformações nos povos indígenas, elas
A principal questão agora é entender uma segunda vêm acompanhadas do que chama de “domesti-
relação, a de fronteira política e de fronteira de cação” do espaço urbano pelos mesmos indígenas;
“desenvolvimento”. Para o autor, a cidade não pode nesse movimento, criam-se novas identidades cultu-
ser olhada unicamente como forma, produto apenas rais e sociais e novas estratégias de sustentabilidade
da estrutura, e mesmo que questões mais gerais que ambiental, social e cultural. Mitú nasceu aldeia dos
pautam as análises sobre o processo de urbanização índios Cubeo, território que no século XIX teve seu
e as cidades sejam mais ou menos presentes – como primeiro contato com a cultura ocidental e passou a
a organização funcional das cidades, as relações ser entreposto importante no comércio da borracha.
entre rural e urbano, cidade e campo, polarização e As missões ali instaladas também tiveram grande
atrações, problemas e conflitos urbanos, segregação atuação, aldeando os povos indígenas, base para
espacial, pressão imobiliária e grande capital, polí- grande parte dos primeiros centros povoados da
ticas públicas, movimentos sociais, etc. –, é preciso Amazônia colombiana. A escravidão, o aldeamento
dar conta do conteúdo das cidades, pois é sua diver- e a evangelização fizeram os indígenas se reorga-
sidade (conteúdo diverso) que cria processos e dá nizarem, reacomodando suas estruturas sociais;
movimento e vida às mesmas. As características e a relação com os colonos que chegaram à fron-
da diversidade de Tabatinga, dessa vez, expressam- teira, ocasionando muitos conflitos, produziu uma
se nesse conteúdo e na diversidade de redes que a cidade/sociedade mestiça, com colonos indializados
cidade participa ou sua exclusão de outras, além ou amazonizados formando famílias mestiças. Os
de sua condição locacional e fronteiriça, e tudo conflitos entre índios e colonos são posteriormente
isso é analisado por meio do conceito de território, resignificados pelos filhos mestiços, com trans-
que, segundo Nogueira, consegue dar conta dessa formações de igual forma no sentido de pertenci-
complexidade. A circulação e a mobilidade fazem mento dos habitantes de Mitú. A indigenização dos
parte dessa complexidade, já que Tabatinga é uma processos de relação com o capital externo passaram
das muitas cidades da Amazônia baseadas no trans- pela extração da borracha, madeira e, atualmente,
porte fluvial, dependentes da condição ribeirinha, pelo cultivo da coca. Os relatos dos indígenas,
sendo esse um dos quatro tipos de cidade da Região imigrantes, colonos, populações negras do pacífico
(juntamente com cidades localizadas ao longo de colombiano e comerciantes servem de base para
rodovias, as ribeirinhas atingidas por rodovias e as Peña Márquez construir um estudo importante
que surgiram dos grandes projetos minerais e hidroe- do movimento – mediado pela e na cidade – de
létricos – company town). Assim, o autor destaca em desestruturação dos povos indígenas de Mitú para
sua análise alguns lugares chaves na compreensão uma posterior reconstrução de sua territorialidade e
dos processos socioespaciais de Tabatinga (o porto, identidade, em que se “civilizam” para depois “indi-
o mercado, a Av. da Amizade, a igreja e os pontos de genizar” a cidade, reconfigurando Mitú e o próprio
venda de drogas), observando a construção de uma sentido do urbano.

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Próximo à Colômbia e à Venezuela, São relações de poder e contrapoder entre esses aspectos,
Gabriel da Cachoeira é um município fronteiriço do mostrando inclusive uma interpenetração produtora
noroeste do estado do Amazonas, cujo processo de de multiterritorialidades.
formação e desenvolvimento é apresentado no texto Em “Vilas e cidades e a Usina Hidrelétrica
de Kazuo Nakano. O autor apresenta inicialmente Tucuruí”, Gilberto Miranda Rocha apresenta a
as taxas de urbanização nos estados da Amazônia especificidade da Cidade que sucumbe e emerge
Legal, a partir das quais é possível observar o franco na Floresta. Essa dinâmica não está associada à
crescimento da urbanização na região, mesmo que questão ambiental propriamente dita ou à lógica
esses índices mostrem uma inequívoca desacele- regional e local de formação do território. Tucuruí
ração. Apesar disso, existe uma certa difusão de existe como resultante da abrangência espacial dos
valores urbanos no seio da população rural, prin- impactos que grandes projetos promovem em vilas e
cipalmente em função de redes de comunicação e cidades, assim como em todo o sistema urbano e nas
de trabalho. O recorte apresentado por Nakano diz redes que estruturavam a vida regional. De forma
respeito às experiências que esse município teve nas crítica, o autor apresenta como estruturas logísticas
relações e produção de territorialidades vindouras regionais adaptadas ao extrativismo foram abrup-
da experiência de planejamento e gestão territorial tamente subsumidas ao que o autor denominou de
participativa. O conceito de territorialidade é usado Grandes Projetos de Investimento. O reservatório,
expressando o encontro das territorialidades insti- assim, desarticula a integração regional no Pará,
tuídas juridicamente, de territorialidades produ- que era realizada através de um sistema flúvio-ferro-
zidas nos usos, significados e representações cultu- viário que utilizava um conjunto de embarcações
rais dos lugares, principalmente pelas principais constituído pelos pentas, barcos a motor de popa,
etnias indígenas que vivem no município. Indica, batelões, barcos a remo e navios gaiolas que obede-
portanto, relações de poder dinâmicas, com ações ciam o trajeto desde os locais da extração até Belém,
de domínio, controle e submissão e de resistências passando por Marabá e Tucuruí. Mesmo com as
a isso. Dessa forma, poder e contrapoder estão no características ímpares que marcam a topografia
cerne da produção de territorialidades (governa- do Tocantins, que em alguns trechos apresenta
mentais, familiares, grupais, étnicas). Para isso, o cachoeiras, estas se constituíram no desafio que
autor lança mão das teorias de Thomas Hobbes e proporcionou a complementaridade modal entre
Michel Foucault (a partir de Andreas Novy em A ferrovias e hidrovias no Tocantins. Rocha descreve
des-ordem da periferia) para dar forma às analises a especificidade que marcou a conversão desse
do “espaço de poder” e do “poder sobre o espaço”. território, marcada pela violência. A densidade das
São Gabriel da Cachoeira, com mais de 29 mil habi- descrições de paisagens e fluxos econômicos que
tantes, enquadra-se na condição de cidade média e ocorriam em espaços que não existem mais – em
passou, no momento da pesquisa evidenciada no função da submersão de cidades, ferrovias, portos
texto, por processo de instalação de Plano Diretor e de toda uma infraestrutura que espacializou terri-
com destaque para a investigação das múltiplas torial e historicamente a vivência de grupos sociais
territorialidades provindas de algumas situações negligenciados pelo Estado – apresenta também
características do município: a localização frontei- a cidade planejada e discriminatória presente nas
riça; a localização ribeirinha no Alto Rio Negro; e vilas permanentes destinadas aos trabalhadores que
a presença de diversas etnias indígenas. A cidade de atualmente se encontram na Eletronorte. O autor
São Gabriel da Cachoeira faz parte, portanto, de um revela um processo de mudança e apropriação do
rol de cidades amazônidas onde se encontram ações território que corresponde a uma especificidade
governamentais (segurança nacional, ambiente), da região. A disponibilidade hídrica da Amazônia
valores provenientes das práticas culturais e simbó- ainda se constitui em um problema que é revelado
licas do seus moradores e relações complexas entre na rede urbana da região. A contradição do fede-
rural e urbano. Os bairros da cidade são informa- ralismo brasileiro, associada ao regime autoritário,
dores dessa relação e estão configurados mediante as permitiu que a União se apoderasse de áreas para

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grandes projetos hidrelétricos, desorganizando as nadas da chegada de frentes de migração relacio-


trajetórias de autonomia dos habitantes desse terri- nadas à intensificação da cultura da soja e à chegada
tório na bacia do Tocantins. Essa desorganização de empresários mato-grossenses, paranaenses, cata-
deixou marcas que Gilberto Rocha (2009, p. 306) rinenses e gaúchos, adquirindo terras e empurrando
assim apresenta: “uma nova rede urbana compõe a as famílias agrícolas para outros municípios ou para
estrutura espacial, no passado sob os auspícios da as periferias da cidade. Dessa forma, Santarém vem
Estrada de Ferro Tocantins, hoje sob o comando de apresentando uma ocupação desordenada, com
processos ligados a produção de energia elétrica e especulação imobiliária e caracterização de alguns
atividades agropecuárias”. bairros como recebedores dos grupos ligados à soja,
Ana Cláudia Duarte Cardoso, José Júlio enquanto a população mais pobre ocupa áreas peri-
Ferreira Lima e Gisele Joicy da Silva Guima- féricas ao longo de rodovias ou rios, sem saneamento
rães tratam do impacto da Usina Hidrelétrica de e com transporte precário. Algumas pequenas
Tucuruí à jusante. A cidade de Cametá é descrita propriedades da periferia mantêm a agricultura
como um exemplo da desestruturação urbana que familiar, sendo importante para criar um movimento
se apresenta em territórios onde os impactos são de resistência e suscitando a auto-organização. A
percebidos mais tardiamente e, principalmente, na forma da cidade demonstra dois campos opostos,
sua lógica socioeconômica. A cidade se constitui de um lado agricultores familiares, movimentos
num exemplo de ocupação ribeirinha com um papel urbanos, mulheres, quilombolas, indígenas, sindi-
estratégico do ponto de vista do deslocamento no catos, comunidades eclesiais e Organizações Não
território, compreendido pelo que é denominado Governamentais ligadas ao movimento ambiental;
baixo Tocantins. Também é descrita como histori- e, de outro, empresários ligados ao grande capital e
camente dotada de infraestrutura e capital intelec- empresas multinacionais articuladas com os poderes
tual que a credenciou no período da Cabanagem públicos. De acordo com o autor, o quadro apresen-
como núcleo de resistência. Cametá é apresentada tado é o de injustiça ambiental e é necessário fazer
como entreposto comercial regional e sub-regional e frente aos problemas de desmatamento relacionados
cidade dotada de uma posição de liderança regional. à expansão da produção de soja, além de apresentar
Os autores apresentam sua estrutura urbana como alternativas para as populações pobres da periferia
específica, uma vez que, em torno da sede do muni- de Santarém, que vêm crescendo ao longo dos anos.
cípio, uma miríade de vilas e ilhas se organiza A coleção de textos que produz o livro
mantendo uma identidade ribeirinha de ocupação Cidades na Floresta, organizado por Edna Castro,
do território. Essa diferenciação das demais redes evidencia indiscutivelmente algumas ideias trazidas
urbanas que ocorrem nos outros estados do Brasil é pela organizadora no seu texto que abre a coletânea.
uma das especificidades das Cidades na Floresta. Os Sabiamente, alerta para a necessidade de mediação
autores apontam a mudança como fruto da opção de teorias clássicas sobre o urbano na relação com a
das elites políticas em não fixar a rede urbana espe- realidade amazônica. Manaus, Belém, Leticia, Taba-
cífica que ocorre em Cametá. A consequência é o tinga, Mitú, São Gabriel da Cachoeira, Tucuruí,
crescimento urbano ao longo das estradas e não Cametá, Santarém e outras, tantas outras, são teste-
mais ao longo dos rios. munhos de uma Amazônia que se transforma e se
Santarém é a principal cidade do Oeste do Pará, reconfigura a cada momento, quer pela ação do
e o texto de José Carlos Matos Pereira a apresenta capital na exploração dos recursos naturais e na sua
com um papel diferenciado na rede urbana regional, tentativa de reorganizar os espaços e culturas (nem
na mesorregião do Baixo Amazonas. De entreposto sempre conseguindo), quer pelas ações e políticas
comercial, sede de instituições militares e religiosas públicas desejosas do desenvolvimento da região ou
e com papel político importante, Santarém é hoje o de uso de seus recursos, quer ainda pela dinâmica de
município mais populoso da região e o terceiro mais suas populações que aderem, resistem ou ignoram
populoso do Pará. Santarém é também uma cidade lógicas exógenas e constroem cotidianamente sua
na qual é possível identificar as mudanças origi- própria territorialidade. Na obra podemos perceber

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a importância da territorialidade como conceito de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade


para compreensão dessas dinâmicas híbridas e Estadual Paulista (UNESP - Presidente Prudente)
multidimensionais. De tal forma se faz presente a e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
relação rural-urbano como complexidade. Também compõem o Grupo de Estudos Urbanos (GEU), for-
faz parte dos textos a demonstração das particu- mado durante os encontros da Associação Nacional
laridades e diversidades da Região Amazônica, de Pós-graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege).
contribuindo finalmente para a compreensão do Os pesquisadores deste grupo buscam na Geografia
fenômeno urbano. o debate e a compreensão da realidade brasileira, a
partir de questões do urbanismo contemporâneo.
Referências bibliográficas É uma obra que procura construir um exercício
reflexivo por meio de uma Geografia Urbana,
ASCHER, F. Les nouveaux principes de l’urbanisme. todavia, as discussões articuladas no livro podem
Paris: Éditions de l’Aube, 2004. ser inseridas e trabalhadas no campo da História
CHOAY, F. L’urbanisme, utopies et réalités: une antho- Urbana, da Gestão Urbana, da Requalificação
logie. Paris: Editions du Seuil, 1965. Urbana, da Sociologia Urbana, ou seja, nos mais
diversos campos que têm como recorte de estudo o
espaço urbano. Hoje esse espaço é flexível, permeável
e carece de análises e discussões consideráveis sobre
sua dimensão, espacialidade e relações.
O que torna o livro apreciável é que ele prima
pelo rigor teórico-metodológico, fazendo com que
A produção do espaço sua leitura seja lenta, cuidadosa e ruminativa. O pen-
urbano: agentes sar e o refletir devem ser “digeridos em camadas”. A
e processos, escalas notoriedade desta obra só foi possível em razão dos
e desafios workshops promovidos pelo GEU; nesses encontros,
os pesquisadores debatiam os textos de cada autor,
Ana Fani Alessandri Carlos, propiciando um longo processo de amadurecimento
Marcelo Lopes de Suouza coletivo a partir de distintos pontos de vista. Atual-
e Maria Encarnação Beltrão Sposito (Org.) mente, o meio acadêmico vem sofrendo com a intole-
São Paulo: Contexto, 2013. rância à “lentidão” da produção do conhecimento. O
que se observa é um “ fast food acadêmico” estimula-
Dirceu Piccinato Junior do a partir dos números estabelecidos pelas agências
Arquiteto e urbanista pelo Centro Universitário Moura de fomento à pesquisa e que devem ser alcançados
Lacerda (CUML); mestre e doutorando em Urbanismo pelos pesquisadores. São sinais da superficialidade de
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas nossa sociedade de consumo, em que o tempo lento
(PUC-Campinas), Brasil. do devir filosófico vem sendo gradativamente substi-
E-mail: piccinato.jr@gmail.com tuído por informações relativas e imediatistas. É nes-
sa contracorrente que se destaca a obra, por recusar
Organizado pelos Geógrafos Ana Fani Alessan- o pragmatismo acadêmico e demonstrar ao leitor o
dri Carlos, Marcelo Lopes de Souza e Maria Encar- elevado grau teórico da produção do conhecimento
nação Beltrão Sposito, o livro A Produção do espaço sobre o espaço urbano.
urbano: agentes e processos, escalas e desafios é resultado A Produção do espaço urbano: agentes e processos,
de reflexões de um conjunto de pesquisadores que escalas e desafios é composto por onze capítulos, ou
vêm se dedicando ao debate sobre o fenômeno urbano olhares, sobre a mesma temática, embora os recortes
brasileiro. Tanto os organizadores da obra como ou- analíticos sejam diversos, assim como as perspecti-
tros geógrafos da Universidade de São Paulo (USP), vas teórico-conceituais abordadas pelos autores são
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universida- multidisciplinares.

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