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JORNAL DA USP

A destruição do meio ambiente e a


abertura de espaços para novos vírus
Por Moisés Stahl, doutorando em História Econômica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP

19/11/2020 - Publicado há 1 ano

Moisés Stahl – Foto: Arquivo pessoal

E m 1992 foi realizada na cidade do Rio de Janeiro a 2ª Conferência


das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que a
Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu para, na esfera da
cooperação internacional, dar atenção à questão do meio ambiente e trazer soluções dentro do
chamado desenvolvimento sustentável, colocando a questão como central para o desenvolvimento
humano no futuro. Com a 2ª Conferência, também chamada de Eco-92 ou Rio-92, a questão do
meio ambiente entrou na esfera de discussão global, sendo sintomático o número expressivo de
representantes e chefes de Estado presentes na Conferência, sobretudo quando comparamos com a
1ª Conferência realizada na cidade de Estocolmo, em 1972. Desde 1992, a crise ambiental foi
colocada, porém pouco se avançou em ações práticas para conter a degradação do planeta. O que
atualmente a sociedade experimenta é um recrudescimento de ações destrutivas do meio ambiente e
significativas transformações no clima que está a afetar, inicialmente, as populações mais pobres.
Nesse sentido, é fundamental colocar a questão ambiental como central e limite para a continuidade
do tempo humano no tempo da Terra.
O tempo é a matéria dos historiadores, “os homens no tempo”, como disse o historiador francês
Marc Bloch. Quando o historiador elege um tema para ser pesquisado, geralmente ele realiza um
recorte histórico que situa seu assunto no tempo. Assim, Eric J. Hobsbawm escreveu sua série de
livros A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e, por fim, a Era dos Extremos,
utilizando um recorte relacionado a momentos políticos, econômicos e sociais. Nesse sentido, dos
acontecimentos que vão da Revolução Francesa (1789) aos anos da Primeira Guerra Mundial (1914-
1918), ele chamou de “o longo século XIX”; dos acontecimentos que vão da Primeira Guerra
Mundial até o que seria o fim da Guerra Fria, culminando com o desmembramento da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, Hobsbawm chamou de “o curto século XX”.
Desta forma, como definiu o historiador alemão Reinhart Koselleck, o conceito de século fica
desvinculado do cálculo aditivo dos cem anos: “Com um novo século não tem início de imediato
uma nova configuração do mundo. Muitos empreendimentos que há muito se tinham iniciado no
século anterior só vêm a desenvolver-se mais tarde”. Em argumentação recente, a historiadora
ligada à Universidade de São Paulo, Lilia Moritz Schwarcz observou que a pandemia causada pelo
coronavírus marcaria o fim do século XX, ou seja, 2020 seria o início do século atual.
Se para Hobsbawm o século XX terminou em 1991 com o fim do socialismo soviético, podemos
observar que 1992 marca o início do século XXI. Se Hobsbawm norteou suas periodizações
enfatizando questões políticas e sociais para classificar os séculos XIX e XX, o norte, a direção para
a classificação de 1992 como o início do século XXI é o da emergência das preocupações
ambientais. A 2ª Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento surge
como consequência de preocupações novas, lança propostas, insere os problemas ambientais na
esfera de discussão das nações. Pela primeira vez uma grande quantidade de chefes de Estado e de
governo, ministros e diplomatas, representantes de diferentes matizes e países, reuniram-se para
discutir as consequências das emissões de poluentes na atmosfera terrestre, do desmatamento de
florestas, do esgotamento dos recursos naturais, da destruição da fauna, do impacto dos efeitos
gerados por essas ações na vida dos seres vivos do planeta.

Ao todo, 175 países mandaram delegações para a 2ª Conferência. Durante o encontro, realizado no
Rio de Janeiro dos dias 3 a 14 de junho de 1992, o então presidente Fernando Collor transferiu a
capital do Brasil para aquela cidade, que voltou a ser a capital, função que deixou de exercer desde a
fundação de Brasília, no início da década de 1960. A 1ª Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente ocorreu em Estocolmo, na Suécia, em 1972. Contudo, como observa Washington
Novaes, tal evento não teve o impacto de colocar a questão ambiental no cotidiano dos cidadãos,
aspecto que se processou com a 2ª Conferência realizada no Rio de Janeiro, incorporando o meio
ambiente no jogo democrático.

O núcleo de discussão da 2ª Conferência esteve ligado ao crescimento da poluição causada pelos


países mais industrializados, e com as consequentes mudanças climáticas que poderiam afetar a vida
na Terra. Era preciso conciliar o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente. Quase
trinta anos após o evento, pode-se observar que os objetivos do encontro não tiveram grande êxito
até o momento, mas causaram certo eco. Hoje a causa ambiental entra na discussão pública da
esfera municipal à federal, sendo gerenciada em nível global pelas mãos da ONU. Todavia, mesmo
no âmbito da ONU, de acordo com José Antonio Ocampo, algumas áreas da cooperação
internacional enfrentam problemas, como aquelas ligadas ao caráter incompleto das agendas
internacionais e os frágeis mecanismos de supervisão e de cumprimento dos acordos internacionais,
sendo tais problemas decorrentes das relações de poder que envolvem agentes privados e países
poderosos.

Em outras áreas existem acordos, mas lacunas são observáveis, como a área das mudanças
climáticas, ou seja, a questão do meio ambiente dentro da ONU encontra dificuldade de ser mais
bem tratada porque esbarra em frentes detentoras de poder, que manifestaram desde o início das
discussões suas posições contrárias às medidas de resolução dos problemas ambientais. Em muitos
aspectos, a questão ambiental se subordinou ao capital, se adequou às engrenagens, assumindo
características que tendem a legitimar o prolongamento da estrutura capitalista, atualizando o atraso,
os mecanismos de devastação. Com efeito, dentro da realidade econômica atual a saída é difícil,
sendo necessário superar as arcaicas estruturas de produção que prolongam um passado de
degradação ambiental, pobreza e desigualdade social, que grassa sem cessar. Propostas foram
lançadas, porém, ao girar na dinâmica da economia global, tais propostas perdem o efeito. Se, em
outros tempos, o medo era do fim dos tempos, da ameaça nuclear, dos comunistas, hoje o medo é
das catástrofes ambientais, das pandemias. Parafraseando Mike Davis, a catástrofe bate à nossa
porta.

Em recente artigo, o professor e ex-ministro da Cultura da Argentina, José Nun, tratou do tema
ambiental colocando-o como questão maior por trás da pandemia, já que a destruição do meio
ambiente segue em continuidade e abrindo espaço para novos vírus. Nesse sentido, a pandemia de
2020 pode ser compreendida dentro dos limites do universo de discussão ambiental. Tal relação
entre a devastação do meio ambiente e o aparecimento de novos vírus é indicada por Jared
Diamond, que destacou que atualmente as novas doenças advêm de patógenos vindos de animais
silvestres, por meio do contato gerado pela devastação dos hábitats naturais de animais. Com a onda
crescente de desmatamento, abre-se caminhos para novos contatos com novos patógenos.
O historiador francês Pierre Rosanvallon ao tratar do método do historiador indica que “a história
objetiva entender como em uma época, um país, ou um grupo social tenta construir respostas para
aquilo que, com maior ou menor precisão elas percebem como um problema”. Assim, seguindo a
proposta de Rosanvallon, se olharmos atentamente para a realidade é possível notar a ausência de
soluções efetivas para o grave problema que é a questão do meio ambiente. No calor das discussões
sobre o meio ambiente em 1992, observou o professor Umberto Cordani:

“(…) a Rio-92 representou uma inflexão na história da humanidade, com a redefinição do


direcionamento do desenvolvimento humano. Novos caminhos, em busca de um novo equilíbrio,
que envolva uma situação de desenvolvimento ‘sustentável’, em bases equitativas para a
humanidade, devem estar no horizonte”.

Nesse sentido consideramos 1992 como o primeiro ano do século XXI porque marcou o
aparecimento de alterações importantes nas relações entre os indivíduos e destes com o meio
ambiente. Entretanto, os interesses econômicos do capitalismo não cederam lugar aos interesses
ambientais, e os países mais desenvolvidos continuam a poluir mais que os países em
desenvolvimento. Enquanto os países do centro do sistema ditam as regras da destruição, os países
da periferia serão os primeiros a sofrerem com as consequências desastrosas das alterações
climáticas. O fomento de um projeto de superação das estruturas econômicas arcaicas,
incompatíveis com o novo futuro, urge, sobretudo no momento em a humanidade se encontra
defronte às catástrofes advindas da natureza como reação da ação devastadora da humanidade sobre
a Terra.

Fenômenos climáticos pouco descritos passam a se repetir com constância, incêndios incontroláveis,
secas prolongadas, chuvas intensas, temperaturas acima da média, frio extremo, poluição dos
recursos naturais, acúmulo de lixo, devastação de florestas e a abertura para novas categorias de
vírus até então ocultos em seu hábitat passam a preencher o cotidiano do cidadão. Não há mais
tempo e espaço para a humanidade se adequar à realidade das alterações climáticas. O homem
construiu a sociedade utilizando o máximo dos recursos naturais, é preciso superar a etapa da
destruição e chegar a uma nova etapa de desenvolvimento sustentável social e científico via
transformação profunda, ou melhor, superação das estruturas arcaicas do capitalismo.

Em 1992 começou, agora o que resta é fazer deste século o século onde as soluções foram
encontradas e possibilitar que o século XXII tenha um início. Isto é, não se apresenta no horizonte o
fim do século XXI.

(Este artigo foi publicado originalmente no site A Terra é redonda)

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