Você está na página 1de 5

XXV Semana de Geografia – 2018

“Novas Tecnologias: aplicações na Geografia” ISSN 2317-9759

A TEORIA DOS DOIS CIRCUITOS DA ECONOMIA URBANA DE


MILTON SANTOS: SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DA ECONOMIA
URBANA CONTEMPORÂNEA
Simone Koniski Guimarães;

Luiz Alexandre Gonçalves Cunha

Introdução
O presente resumo é baseado na teoria dos dois circuitos da economia urbana,
proposta por Milton Santos e publicada no Brasil na década de 1970 (SANTOS, 1979), e faz
parte de exercício reflexivo vinculado à construção do projeto de pesquisa de doutorado da
autora, na qual pretende-se analisar a dinâmica territorial de um seguimento específico do
circuito inferior da economia urbana no município de Ponta Grossa (PR), as organizações
coletivas de produção, comercialização e consumo.
Essa teoria considera a existência de dois circuitos de produção, distribuição e
consumo dos bens e serviços na sociedade urbana, o circuito superior, constituído por
atividades econômicas com grandes dimensões, ligadas a processos modernos e com
relações mais estreitas com a economia em escala global, e o circuito inferior, constituído
por atividades econômicas de pequena dimensão, que possuem mais influência na escala
local. No entanto, o autor ressalta que a existência desses dois circuitos é decorrente de um
mesmo processo denominado por ele de modernização tecnológica, e que os dois circuitos
são sistemas em interação permanente, sendo o circuito inferior, dependente do circuito
superior. (SANTOS, 1979).
Conforme destacado pelo próprio autor, o circuito inferior “[...] está em processo de
transformação e adaptação permanente [...]” (SANTOS, 1979), assim, algumas das variáveis e
características levantadas e discutidas por ele, com base em seus estudos e experiências em
países subdesenvolvidos, têm sido revistas por diversos autores em função dessas
transformações. No entanto, para além das atualizações dessas variáveis e características,
considera-se que a base da teoria dos dois circuitos da economia urbana fornece subsídios para
a interpretação de problemas atuais.

Objetivos
O objetivo do presente resumo é apresentar a teoria dos dois circuitos da economia
urbana proposta por Milton Santos (1979) e discutir sua utilização em estudos sobre a
economia urbana dos municípios brasileiros na contemporaneidade.

Metodologia
O presente resumo foi elaborado a partir de discussões contidas no livro O espaço dividido:
os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, de autoria de Milton Santos
(1979) – através do qual a teoria dos dois circuitos da economia urbana foi sistematizada e
popularizada –, e de apontamentos de autores que discutem esta teoria e/ou sua aplicação como
Spósito (1999), Marina (2012) e Cataia e Silva (2013). Assim, apresentamos de forma breve a teoria
dos dois circuitos da economia urbana conforme

129
XXV Semana de Geografia – 2018
“Novas Tecnologias: aplicações na Geografia” ISSN 2317-9759

proposta por Santos (1979) e na sequência destacamos algumas contribuições dos


autores supracitados para a discussão/atualização dessa teoria.

A teoria dos dois circuitos da economia urbana


Conforme apontado por Marina (2012), Milton Santos já apontava a existência de
dois circuitos da economia urbana nos países subdesenvolvidos no último capítulo do livro
Em Les Villes Du Tiers Monde (1971), no entanto, é em L’Espace Partagé (1975) que a
teoria é sistematizada. A obra em questão foi publicada no Brasil somente no final da
década de 1970, intitulada como O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana
dos países subdesenvolvidos (1979).
No livro o autor propõe a teoria dos dois circuitos da economia urbana como uma
alternativa teórica mais ajustada à realidade dos países subdesenvolvidos, apontando que
muitos dos estudos realizados até então, eram baseados em teorias formuladas a partir da
realidade ocidental dos países desenvolvidos, e que isso levou à problemas de interpretação
e a formulação de teorias, metodologias e levantamentos estatísticos insuficientes para
compreender essa realidade.

[...] o espaço dos países subdesenvolvidos é marcado pelas enormes diferenças de renda na
sociedade, que se exprimem ao nível regional, por uma tendência à hierarquização das atividades e,
na escala do lugar, pela coexistência de atividades de mesma natureza, mas de níveis diferentes.
Essas disparidades de renda são menos importantes nos países desenvolvidos e influenciam muito
pouco o acesso a um grande número de bens e serviços. Ao contrário, nos países subdesenvolvidos,
a possibilidade de consumo dos indivíduos varia muito. O nível de renda também é função da
localização do indivíduo, o qual determina, por sua vez, a situação de cada um como produtor e como
consumidor. (SANTOS, 1979, p. 15).

Assim, de acordo com o autor a desigualdade de renda e a consequente


dificuldade de acesso ao consumo e aos bens e serviços considerados essenciais,
propiciou a existência de dois circuitos de produção, distribuição e consumo na
sociedade urbana, o circuito superior e o circuito inferior.

A existência de uma massa de pessoas com salários muito baixos ou vivendo de


atividades ocasionais, ao lado de uma minoria com rendas muito elevadas, cria na
sociedade urbana uma divisão entre aqueles que podem ter acesso de maneira
permanente aos bens e serviços oferecidos e aqueles que, tendo as mesmas
necessidades, não têm condições de satisfazê-las. Isso cria ao mesmo tempo
diferenças quantitativas e qualitativas no consumo. Essas diferenças são a causa e o
efeito da existência, ou seja, da criação ou da manutenção, nessas cidades, de dois
circuitos de produção, distribuição e consumo dos bens e serviços. (SANTOS, 1979,
p. 29).

O circuito superior seria “constituído pelos bancos, comércio e indústria de exportação,


indústria urbana moderna, serviços modernos, atacadistas e transportadores” (SANTOS, 1979, p. 31)
e o circuito inferior seria constituído “por formas de fabricação não-‘capital intensivo’, pelos serviços
não-modernos fornecidos ‘a varejo’ e pelo comércio não-moderno e de pequena dimensão”
(SANTOS, 1979, p. 31). A existência desses dois circuitos é decorrente de um mesmo processo
denominado pelo autor como modernização tecnológica.

O circuito superior originou-se diretamente da modernização tecnológica e seus

130
XXV Semana de Geografia – 2018
“Novas Tecnologias: aplicações na Geografia” ISSN 2317-9759

elementos mais representativos hoje são os monopólios. O essencial de suas relações


ocorre fora da cidade e da região que os abrigam e tem por cenário o país ou o exterior.
O circuito inferior, formado de atividades de pequena dimensão e interessando
principalmente à populações pobres, é, ao contrário, bem enraizado e mantém relações
privilegiadas com sua região. (SANTOS, 1979, p. 16).

Milton Santos (1979) destaca que os dois circuitos são sistemas em interação permanente, ou
seja, não podem ser considerados isoladamente ou de forma dualista, no entanto, o circuito superior
ou moderno recebeu mais atenção dos pesquisadores ao longo da história do pensamento
econômico e geográfico. Além disso, o Estado acaba por privilegiar as atividades do circuito superior
tendo em vista que seus mecanismos são baseados na produção, porém, os mecanismos do circuito
inferior são baseados no consumo, ou seja, nas necessidades correntes da população, além disso, o
circuito inferior é mais flexível em relação
- necessidade de especialização do trabalho, assim, este circuito possui maior fluidez para
absorver a massa de trabalhadores das cidades.
O circuito inferior, “um circuito não moderno, que compreende a pequena produção
manufatureira, frequentemente artesanal, o pequeno comércio de uma multiplicidade de serviços de
toda espécie” (SANTOS, 1979, p. 155) é dependente do circuito superior, ou seja, sua existência e
sua manutenção são decorrentes das desigualdades produzidas pela modernização tecnológica
excludente, assim, o autor aponta que:

O problema é encontrar as formas de relações entre os dois circuitos capazes de abrir


uma comunicação entre ambos e, ao mesmo tempo, melhorar a situação dos indivíduos
atualmente envolvidos no circuito inferior, transformando este último para melhorar sua
produtividade. Essa solução deverá provocar uma organização do espaço mais capaz de
favorecer a redistribuição dos recursos nacionais, e ao mesmo tempo, uma organização
da produção que autorize uma distribuição mais eqüitativa dos recursos e dos homens no
espaço. As duas soluções estão necessariamente interligadas. (SANTOS, 1979, p. 289).

O autor aponta que para superar as desigualdades e acabar com a pobreza


entendida por ele como a privação do acesso aos bens de consumo considerados
indispensáveis em determinada sociedade, é necessário substituir o atual sistema de
produção por outro sistema em “que a ideia de produtividade econômica ceda lugar à
ideia de produtividade social” (SANTOS, 1979, p. 291).

A atualização da teoria dos dois circuitos da economia urbana


De acordo com Marina (2012) a teoria dos dois circuitos da economia urbana foi
debatida e adotada por diversos autores em diferentes contextos, porém, Spósito apontava,
em 1999, que no Brasil a teoria dos dois circuitos da economia urbana "foi mais esquecida
do que debatida, foi mais abandonada que superada, dada a ausência de uma ampla
discussão sobre ela” (SPÓSITO, 1999, p. 50).
De fato, essa discussão tem sido feita com mais intensidade no Brasil após a década de 1990
em diversos estudos sobre a economia urbana das cidades brasileiras conforme apontado por Marina
(2012) e por Cataia e Silva (2013), em função das novas dinâmicas dos dois circuitos com a
ampliação do crédito e do consumo e o uso de novas tecnologias.
No livro, Milton Santos (1979) aponta diversas variáveis e características que diferenciam
os dois circuitos, como a tecnologia empregada, a forma de organização, a

131
XXV Semana de Geografia – 2018
“Novas Tecnologias: aplicações na Geografia” ISSN 2317-9759

participação dos capitais, a geração de emprego assalariado, a existência de estoques, os


preços, a disponibilidade e o uso de crédito, as margens de lucro, as relações com a clientela, a
existência de custos fixos, a utilização de publicidade, a reutilização dos bens, a existência de
ajuda governamental, a dependência direta do exterior, dentre outras.
Ao analisar essas variáveis e características a luz da realidade atual da sociedade
brasileira, são evidentes as transformações ocorridas, principalmente no circuito inferior, assim,
considera-se que a atualização dessa teoria reside na atualização dessas variáveis, o que não
desqualifica a base da teoria que considera a existência de dois sistemas em interação
permanente, sendo que um desses sistemas, o circuito inferior é dependente do outro, o circuito
superior. Mesmo com as transformações do período recente, essa dominação ainda é
observável. Conforme apontado por Cataia e Silva (2013):

O circuito inferior ganha novo conteúdo quando incorpora algumas tecnologias em suas
atividades. Além disso, a expansão do crédito trouxe a ampliação do consumo da
população pobre ocasionando um empobrecimento ainda maior das classes populares. A
difusão do cartão de crédito, dos financiamentos pessoais e serviços financeiros
oferecidos por redes de lojas coexistem com as antigas formas de crédito do circuito
inferior como fado, o crediário e mesmo os empréstimos realizados com agiotas. Dessa
forma, o circuito superior aprofunda a dominação sobre o circuito inferior por meio das
finanças. (CATAIA; SILVA, 2013, 71).

Os autores destacam nesse trecho a expansão do crédito e a incorporação de


tecnologias, porém, as novas tecnologias da informação têm influenciado também em outras
variáveis, como a utilização da publicidade, facilitada pela utilização das redes sociais e de
aplicativos instalados em dispositivos móveis. Além disso, a difusão de informações possibilitada
por esse contexto influencia também os hábitos de consumo da população, tanto em relação à
criação de novas necessidades quanto em relação a popularização de modelos de consumo
mais éticos ou ecologicamente corretos.
Dessa forma, o circuito inferior da economia urbana, que já era dinâmico por sua
tendência de adaptar-se às diferentes conjunturas econômicas, tem a seu dispor novas
ferramentas que auxiliam no esforço de subsistência e geração de renda. Além disso, de
acordo com Cunha (1998) o capitalismo contemporâneo evolui em direção à economia
de dispersão, oposta à economia de concentração orquestrada pela racionalidade
econômica capitalista tradicional.

Geoeconomicamente, esta economia [de dispersão] é voltada em parte para mercados


restritos e rarefeitos, regionais e locais. É o padrão da economia de pequenas escalas, de
pequenas e micro-empresas, de pequenos investimentos, do micro-crédito, dos bancos
do povo, do comércio popular, dos trabalhadores por conta própria, da agricultura familiar
e camponesa, do cooperativismo autêntico. Imaginar essa pequena economia como rival
da grande economia é um enorme engano, pois elas podem ser complementares. A
grande economia pode melhorar com o sucesso da pequena. (CUNHA, 1998, p. 103).

Ainda que voltadas para a pequena economia, ou economia de dispersão, as alternativas de


desenvolvimento social e de gestão da economia, são determinadas pelos interesses e necessidades da
grande economia ao priorizar a preocupação com o desemprego. (CUNHA, 1998). Nesse contexto, a
superação das desigualdades passaria então pela maior

132
XXV Semana de Geografia – 2018
“Novas Tecnologias: aplicações na Geografia” ISSN 2317-9759

participação do Estado de forma a considerar a dinâmica espacial e as


necessidades da pequena economia. Assim, o papel do Estado seria o de:

[...] incentivar alternativas para produtores e trabalhadores marginalizados e espaços


decadentes e subtilizados, para que possam melhorar o seu desempenho produtivo
gerando os recursos necessários à sua própria inserção, que, por sua vez, não deveriam
ser desviados para a grande economia. Em outras palavras, defende-se que o importante
é criar as condições, de forma criativa, para que, a partir do trabalho produtivo, os
excluídos possam pelo menos encontrar um lugar digno no palco, mesmo que não seja
ainda no centro. (CUNHA, 1998, p. 111).

Essa perspectiva, não depende da superação da ideia de produtividade


econômica, proposta por Santos (1979), porém, considera a busca por
possibilidades dentro da realidade vigente.

Considerações Finais
Elaborada na década de 1970, para compreender as dinâmicas da economia urbana dos

países desenvolvidos, a teoria dos dois circuitos da economia urbana (SANTOS, 1979), fornece

subsídios importantes para a compreensão da economia urbana contemporânea mesmo com as

transformações da sociedade que demandam a atualização de algumas variáveis e características

utilizadas pelo autor para diferenciar os dois circuitos. Mesmo com as transformações nas dinâmicas

dos dois circuitos, a existência deles e a dominação do circuito superior sobre o circuito inferior ainda

é patente. Sendo necessária ainda a busca por meios de superação e/ou minimização dessa

dominação.

Referências Bibliográficas

CATAIA, Márcio; SILVA, Silvana. Considerações sobre a teoria dos dois circuitos da
economia urbana na atualidade. Boletim Campineiro de Geografia, Campinas, v. 3,
n. 1, p. 55-75, 2013.

CUNHA, Luiz Alexandre Gonçalves. Por um projeto sócio-espacial de Desenvolvimento.


Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 3, n. 2, p. 91-114, inverno, 1998.

MARINA, Regitz Montenegro. A teoria dos circuitos da economia urbana de Milton


Santos: de seu surgimento à sua atualização. Revista Geográfica Venezolana,
Mérida, Venezuela, v. 53, n. 1, p. 147-164, jan./jun. 2012.

SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países
subdesenvolvidos. Tradução de Myrna T. Rego Viana. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
(Coleção Ciências Sociais).

SPÓSITO, Eliseu Savério. A teoria dos dois circuitos da economia urbana nos
países subdesenvolvidos: seu esquecimento ou sua superação? Caderno
Prudentino de Geografia. Presidente Prudente, n. 21, p. 43-51, 1999.

133

Você também pode gostar