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Reflexão crítica sobre o futuro distópico do livro AI Superpowers: China and the

Silicon Valley and the New World Order


 
Cassius Cley Oliveira Santos, NºUSP: 11269122
Tomás Ruschel Saiter Mota, N° USP: 11204317

Palavras Chave: Inteligência artificial, desemprego, sociedade, China, EUA

A resenha crítica que se segue discute as implicações e consequências da

implementação da Inteligência Artificial (IA) nas várias esferas cotidianas, tendo como

base o livro “AI Superpowers: China, Silicon Valley and the New World Order” do

autor Kai-Fu Lee. Kai-Fu Lee nasceu em Taiwan em 1961 e aos 11 anos de idade se

mudou para os Estados Unidos em busca de melhores condições de estudo. PhD em

ciência da computação pela Carnegie Mellon University (EUA), Lee é mundialmente

conhecido por ter desenvolvido o primeiro sistema contínuo de reconhecimento de fala

independente, sendo assim, um dos pioneiros nesse tipo de tecnologia. A trajetória

laboral do autor é extensa, trabalhou para grandes corporações da tecnologia, como

Apple, Google e Microsoft, até se estabelecer no ascendente mercado de tecnologia

chinês após se desvincular do Google em 2009, e a partir de então ele se concentra no

desenvolvimento e aperfeiçoamento de sua própria empresa de fundos de capitais, a

“Sinovation Ventures”.

Grande entusiasta das facilidades que a IA pode trazer aos humanos, em seu

livro o autor se debruça na crescente concorrência existente entre China e Estados

Unidos no campo da tecnologia, mais precisamente da inteligência artificial. Conforme

o autor, durante décadas os EUA predominaram as pesquisas e o desenvolvimento de

tecnologias, ficando anos à frente dos demais países. Entretanto, Lee demonstra como

essa balança de poder mudou em direção à China nos últimos anos, país que hoje

concorre praticamente em pé de igualdade com o país americano no desenvolvimento de

tecnologias. Nesse ínterim, o livro aborda como a China chegou a seu estágio atual,
como os Estados Unidos lidam com essa concorrência, quais as implicações da

implementação da IA no dia a dia das pessoas, como os empregos serão afetados por

esse novo paradigma e também discute a nova ordem mundial que pode emergir da

aplicação da inteligência artificial em larga escala.

Nessa resenha, a perda de empregos decorrente da implementação da

inteligência artificial é um tema central abordado, pois além do próprio autor discorrer

sobre o assunto em grande parte do livro, entende-se que essa será uma das

consequências mais devastadoras da implementação da IA no cotidiano, sendo,

portanto, um tópico que precisa ser discutido urgentemente nos dias atuais. Além disso,

algumas implicações subjacentes à implementação da inteligência artificial também são

debatidos neste trabalho, como a concentração de renda, a perda de privacidade

decorrente do uso recorrente de dados da população por empresas e governos e a crise

de identidade humana causada pela substituição do homem por máquinas “pensantes”. 

Durante o livro há uma frequente comparação contrastante entre a ruptura de

paradigmas econômicos causados pela revolução industrial e pelo avanço da IA.

Durante as duas primeiras revoluções industriais, o avanço tecnológico levou a uma

súbita mudança da estrutura econômica, fato apontado pela obra “A Era das

Revoluções” (HOBSBAWN, 1962). A era pré industrial concentrava tarefas de alto teor

hábil nas mãos de uma pequena população, artesãos, paradigma esse questionado

quando os inúmeros avanços tecnológicos distribuíram essas tarefas nas mãos de

enormes massas operárias desqualificadas. O autor critica duramente o anacronismo da

narrativa tecno-otimista, que afirma que esse processo de ruptura econômica atual pelo

avanço da IA levaria, no longo prazo, a criação de novos trabalhos suficientes para

evitar o desemprego em massa dos trabalhadores substituídos por máquinas. Lee é

lapidar ao afirmar que a nova era que se está por construir com a inteligência artificial
não distribuirá empregos como ocorreu nas revoluções dos séculos XVIII e XIX, mas

sim assumir por completo tarefas que possuem dois critérios: podem ser otimizados

pelo uso de dados e não requerem interação social. Tal perspectiva é confirmada por

Frey e Osborne (2013), que dizem que ao contrário das transformações das Revoluções

Industriais, o século da computarização (XXI) causou um esvaziamento de empregos de

renda média. Assim, percebe-se que é descabida a comparação proposta pelos tecno-

otimistas.

Desemprego das massas parece ser a primeira característica marcante sobre o

que se especula da sociedade da era da inteligência artificial. Entretanto, apesar de

colocar isso como fato ao atacar a narrativa tecno-otimista como explicado, o livro

explica os debates em torno do tamanho do desemprego e a dificuldade de se achar um

consenso sobre as proporções que esse fenômeno tomará. O autor cita e explica diversos

estudos que estimam o tamanho do desemprego causado pela automatização em massa

no mercado de trabalho americano, desenvolvendo no caminho as dificuldades de se

fazer estimativas reais em torno do assunto. Porém, ele mesmo acaba por desvalidar o

caráter empírico da discussão ao sugerir que nenhum dos estudos sobre o tópico

apresentado no livro é válido por não conseguirem prever o real avanço que o deep

learning teve no período estimado. Ao fazer isso, Lee confirma a linha de argumentação

delicada que vinha se apresentando durante a leitura: o autor se utiliza majoritariamente

de argumento de autoridade -que não lhe falta- em suas especulações ao negar estudos

científicos sobre o futuro. Apesar de ser uma escolha delicada, o autor consegue se

equilibrar de forma a persuadir o leitor a admitir suas opiniões, mesmo que grande parte

do que ele escreve acabe caindo sobre o embasamento exclusivo de sua posição de

autoridade.
Talvez uma das partes mais importantes do livro seja a apresentação das ideias

do autor sobre a tendência das pressões de mercado sobre os empregos na era da

inteligência artificial. A ideia é simples e bem apresentada ao decorrer do livro: a IA

tem capacidade de executar tarefas simples (single domain) e repetitivas, mas faltam a

capacidade de possuir criatividade ou de interação social genuína, sendo dessa ausência

que a nova demanda por empregos surgiria. Disso, Lee constrói um sistema cartesiano

de classificação de perigo de automação de empregos, em que as abscissas representam

a capacitação requisitada e o quão complexo são as tarefas executadas e as ordenadas

representam o quão social é a profissão. Dessa forma, o primeiro quadrante

(denominado de Safe Zone pelo autor) seria o com menor risco de automatização, uma

vez que se trata de tarefas extremamente sociáveis e complexas, como CEO, psiquiatria

e etc. -esse quadrante será responsável pela maior oferta de empregos na conforme o

avanço do deep learning. O segundo e quarto quadrante (Human Venner e Slow Creep,

respectivamente) correm riscos notáveis de substituição por máquinas, porém nem todas

suas tarefas podem ser automatizadas com a tecnologia atual, apesar de enfrentarem

esse perigo com o desenvolvimento da IA. O terceiro quadrante é claramente o mais

ameaçado e o primeiro a ser afetado, posto que não requer capacitação ou interações

sociais.

Durante o livro, Kai-Fu Lee segue conectando essa tendência do mercado de

trabalho com a parte mais humana de suas ideias, afirmando que isso possibilitará o

homem a se libertar dos valores industriais e podendo assim achar validação de seu

próprio valor em outros quesitos de sua existência, mais especificamente no amor. Essa

reconexão do homem com sua própria humanidade e a tradução desse feito no mercado

de trabalho e nos paradigmas econômicos marcariam uma nova sociedade, o início de

um novo zeitgeist.
Entretanto, por mais persuasivas e belas que sejam as ideias do autor, assim

como a forma que ele narra sua história de batalha contra o câncer, o leitor deve atentar-

se a não cegar-se à realidade fria que ele descreve para o futuro, especialmente ao notar

que ele fala de um lugar de completo privilégio. O enorme desemprego somado com a

concentração da inteligência artificial na mão de grandes empresas nos direciona para

um futuro de incrível desigualdade social e econômica. Lee se dá o privilégio de focar

na parte humana e um tanto espiritual das suas especulações porque ele se encaixaria na

parte superior do sistema de castas tecnológicas que ele mesmo cunha no livro. No

futuro mais humano de Lee, países subdesenvolvidos não teriam mais as mesmas

chances de desenvolverem-se, presos na sua condição de subsistência diante os dois

gigantes da inteligência artificial -China e EUA- que teriam superado a demanda da

massas de baixo custo do 3° mundo, retirando-lhes sua frequente chave para o

crescimento. Acerca dessa perspectiva, Hidalgo e Hausmann (2013) em seu livro “The

Atlas of Economic Complexity” trazem uma relação que corrobora com o que é exposto

no livro de Lee. Segundo os autores, países com rendas mais altas são aqueles que

conseguem combinar diferentes conhecimentos entre si de forma que outros países não

o conseguem. Dessa forma, percebe-se que China e Estados Unidos saem na frente

nesse quesito, uma vez que ambos possuem ferramentas tecnológicas (conhecimento)

que os impulsionam economicamente a ponto de que o mercado internacional seja

dominado por eles nesse setor, impedindo outros países de se inserirem nesse mercado.

Doravante, a desigualdade de renda entre países e entre pessoas dentro um

mesmo país tenderá ser uma constante exponencial, em que quanto mais se atinge o tão

desejado progresso, mais concentrados ficam os frutos desse avanço. O autor do livro

comenta sobre o assunto de forma breve, sem se aprofundar nas principais implicações

da crescente concentração de renda que IA proporciona, como instabilidade social e


política, aumento da miséria e violência, problemas que podem ser fatais para países em

desenvolvimento, como os da América Latina e África. De acordo com a tese de Castro

(2006), a desigualdade de renda impacta de forma negativa o crescimento econômico.

Dessa forma, percebe-se que o avanço da inteligência artificial pode ser ambíguo para a

economia: ao mesmo tempo que aumenta a produtividade das empresas e indústrias, a

IA pode reforçar as assimetrias sociais e até mesmo causar estagnação econômica se

não forem tomadas medidas para cercear o desemprego em massa e a concentração de

renda.

Nesse escopo, torna-se necessário avaliar a situação brasileira em meio a esse

paradigma de sociedade que Lee descreve no livro. Em 2020, o deputado brasileiro

Eduardo Bismarck levou à Câmara dos Deputados o projeto de lei 21/2020, emenda que

estabelece princípios, direitos e deveres do uso da inteligência artificial no Brasil.

Segundo esse projeto, o uso da IA no país deve levar em conta os Direitos Humanos,

igualdade, pluralidade e privacidade, além de exigir dos agentes implementadores um

relatório sobre o impacto do uso da IA que deve ser entregue ao poder público, que por

sua vez, tem o direito de postular mudanças no sistema caso ache necessário. Apesar de

ainda não ter sido aprovada  e colocada em prática, tal medida é de extrema

importância, pois além de mostrar que o governo já discute sobre o assunto, essa lei

foca nos usuários como necessitantes de proteção, evidenciando que a era da IA terá

grande impacto, muitas vezes negativo, na vida das pessoas. As autoridades públicas,

entretanto, não mencionam medidas a serem tomadas para combater o desemprego em

massa e a concentração de renda no país, que segundo um levantamento da FGV/IBRE

(2019) vem aumentando pelo 17º trimestre consecutivo, alcançando seu maior nível no

ano passado. Dessa forma, verifica-se que muito ainda se deve fazer em relação ao uso

da IA em larga escala no Brasil, tanto para que ela não aprofunde ainda mais a
desigualdade social no país e também para que os brasileiros possam usufruir dessa

tecnologia da melhor maneira possível, respeitando o espaço alheio.

Lee chega a tratar de forma mais justa o futuro que prevê, discutindo possíveis

soluções trabalhistas para crise empregatícia da próxima geração. O autor aborda os

novos três R’s: reduce, retrain e redistribute. Os dois primeiros são opostos, mas

igualmente em partes verdadeiras e aplicáveis, não podendo serem considerados como

mais do que medidas de redução de danos. Os defensores do retraining acreditam que o

nível de emprego da sociedade não sofrerá grandes impactos -o que se encaixaria na

narrativa tecno-otimista que já foi desvalidada aqui-, pois os trabalhadores se

readaptariam por meio da aprendizagem de novas habilidades frente às pressões do

mercado. O problema com essa teoria é que ele cai no utopismo liberal, que assume a

capacidade do mercado de permanecer intacto frente ao que potencialmente mudará

nossa sociedade. O que não significa que de fato essa readaptação não irá acontecer -e é

por isso que ela é em partes verdadeira e aplicável-, ela só não irá ser suficiente a

poupar catástrofe econômica que está por vir caso o desemprego se torne comum.

Reducing é pouco mais realista, mas igualmente problemática e insuficiente.

Diferentemente da afirmativa anterior, reconhece-se o choque no nível de emprego, e a

solução proposta seria a divisão de empregos partilhando com várias pessoas tarefas que

antes eram cumpridas por um só trabalhador, reduzindo o número de dias e horas de

trabalho semanais como consequência. O autor não chega a se aproximar dos que

defendem retraining, já desconsiderando a narrativa de início, mas enquanto reducing

ele é lapidar ao afirmar:

I fear workers will find themselves in a state of constant retreat,

like animals fleeing relentlessly rising flood waters, anxiously

hopping from one rock to another in search of higher ground.


Retraining will help many people find their place in the AI

economy, and we must experiment with ways to scale this up

and make it widely available. But I believe we cannot count on

this haphazard approach to address the macro-level disruptions

that will sweep over labor markets

O momento em que Lee trata o assunto com maior seriedade é quando ele

discorre sobre o Redistribute, que basicamente consiste em uma discussão sobre uma

renda básica universal (RBU). O autor não erra ao dar o holofote a essa proposta por

mais tempo que as outras, a ideia de uma RBU é a única drástica o suficiente para ser

levada a sério no cenário da crise que ele constrói durante o livro. A ideia de que o

dinheiro não seria mais exclusivamente fruto do trabalho, mas agora também da simples

dignidade humana está em perfeita sincronia com a libertação dos valores industriais

que Lee tanto reitera durante o livro. Não destacar e enfatizar a ideia de uma RBU seria

mais uma afirmação do privilégio do autor tão evidente na obra assim como também

contraditório com o que ele tanto sugere.

Apesar de demonstrar um maior entusiasmo e apoio ao discutir a possibilidade e

questões em volta da RBU o autor também critica a narrativa, caracterizando-a como

uma crença de varinhas mágicas do Vale do Silício, uma espécie de Deus Ex Machina.

Nesse ínterim, trabalhos como o de Acemoglu (2019) e de Araújo e Flores (2016)

apontam que o estabelecimento de uma renda básica universal pode ser desaconselhável

para o bom funcionamento da máquina pública, dado que tal medida pode trazer

externalidades indesejáveis. Portanto, apesar de parecer uma solução prática e fácil, a

RBU precisaria de outras abordagens para tornar-se suficiente.  Lee então expõe sua

opinião da educação como principal solução para o que está por vir. O autor não chegar

a justificá-la, o que a torna um pouco mal posicionada no livro. Sem desenvolvimento,


esse posicionamento colabora com a narrativa tecno-otimista do retraining e contradiz

grande parte das especulações e críticas do autor no resto do livro. Lee falha em manter-

se consistente e em enxergar o mundo além do sudeste asiático, América do norte e

Europa, regiões que estaticamente possuem coeficiente positivos para a correlação entre

educação e desenvolvimento econômico (GALAL, 2005).

O avanço de políticas como a RBU com o crescente desemprego e a mudança na

autovalidação humana exposta por Lee, certamente, mudariam dinâmicas sociais. O

conhecimento do próprio “eu” será impactado por essa mudança de paradigmas, e assim

reverberando por todas interações sociais centradas em indivíduos -relacionamentos,

intimidade e etc. A geração Z será o grupo demográfico impactado por essa crise, posto

que a crescente exponencial da IA tomará proporções drásticas no espaço temporal de

uma só geração. Não só essa geração será a que terá maior dificuldade de se inserir no

mercado de trabalho provavelmente em toda a história humana, mas ela já é a mais

influenciada pelo avanço tecnológico e pela inteligência artificial. 

Também conhecidos como nativos digitais, os jovens nascidos entre o final dos

anos 1990 e 2010 desenvolveram uma relação única com o espaço digital no qual eles

nasceram inseridos, conectando-se no nível emocional com o ambiente virtual

(TURNER, 2015). De acordo com um estudo, mais de 90% desses jovens preferem

outros meios de punição ao invés de serem desconectados do mundo online,

aproximadamente 60% afirmaram que a vida social começa na internet, mais da metade

afirmam que se sentem mais confortáveis conversando com outras pessoas online e 70%

acreditam ser mais conveniente interações sociais online (PALLEY, 2012). Conforme o

tecido da compreensão humana e da sociedade alteram-se, será necessária a adaptação

dos estudos sociológicos para um maior entendimento da civilização que estamos

construindo. 
O avanço da sociologia digital será crucial para entender as reverberações desses

novos paradigmas e os efeitos do avanço tecnológico sobre o modo de produção. Como

subdisciplina da sociologia, responsável pelo estudo do impacto dos meios digitais no

tecido social, o desenvolvimento e reconhecimento da sociologia digital torna-se mais

importante conforme o peso do ambiente online aumenta em nossas vidas. Para além

disso, outros ramos das ciências sociais também deverão ganhar mais peso conforme as

mudanças aqui tratadas se consolidam. Sociólogos serão responsáveis pelos estudos das

inúmeras inovações científicas e tecnológicas que estão por vir, dos valores econômicos

gerados por essas e como esses serão distribuídos, além de observar a profunda

reformulação do pacto social induzido por todas as mudanças já descritas. A sociologia

deverá se reinventar frente o espaço multidisciplinar e conectado que se está por

construir, questionando os seus próprios métodos científicos e ideias centrais

(JOHNSON e PRIOR, 2013).

Nesse ínterim, verifica-se que o campo da sociologia tem muito a contribuir com

o padrão de sociedade que Kai-Fu Lee demonstra surgir nos próximos anos com o

avanço das tecnologias digitais. Isso porque, dada a presença maçante das máquinas

“pensantes” no cotidiano das pessoas, as relações sociais, os valores construídos durante

séculos e a importância dada ao trabalho sofrerão fortes modificações e impactarão no

modo de vida dos humanos, fazendo com que a sociologia ganhe um papel mais

preponderante nos estudos sociais, penetrando mais a fundo nos pressupostos das

relações humanas resultantes do novo paradigma já mencionado.

Todavia, a identificação e o tratamento dado aos problemas gerados pelo avanço

da inteligência artificial deverão alcançar não somente o campo da sociologia, mas

também vários âmbitos da esfera social, com ênfase, principalmente, nos governos e em

instituições internacionais. Durante o livro, o autor atribui grande responsabilidade aos


governos e aos empresários no que concerne à formulação de possíveis soluções para os

problemas gerados pela IA, porém, há uma contradição nisso. Ao mesmo tempo em que

fala que a tendência é que a renda fique concentrada cada vez mais nas mãos dos

magnatas da tecnologia e que eles, principalmente na China, buscam peremptoriamente

o lucro, não é de se esperar que essa classe contribua notoriamente para superar os

entraves causados, em boa parte, por suas próprias empresas. Assim, espera-se que os

governos, principalmente, busquem formas de atenuar o impacto da implementação da

IA na sociedade, garantindo empregos, impedindo a invasão de dados e da privacidade

dos usuários em meio ao mundo dos algoritmos, além de oferecer tratamento e

acompanhamento àqueles que se tiveram seu senso de humanidade afetados pela

“maquinização” das tarefas, aspecto também abordado pelo autor. Ademais, organismos

internacionais também deverão ter um papel de destaque no debate e na aproximação

dos países que buscam soluções para os entraves da IA, pois eles facilitam o

intercâmbio de ideias, processos e informações entre os membros (KEOHANE, 2003).

Um ponto interessante para se discutir nesse escopo é o uso massivo de dados de

usuários por governos e empresas com a justificativa de acelerar o desenvolvimento.

Kai-Fu Lee ao longo do livro afirma que a China é o país que mais detém dados de seus

habitantes, fato decorrente de aplicativos multitarefas que armazenam diferentes tipos

de dados de um único navegante, além do uso de reconhecimento facial em diversos

lugares. Levando em conta que isso ocorre em diferentes graus em outras regiões do

planeta e que empresas como Google, Amazon ou Facebook sabem, muitas vezes, mais

de nós que nós mesmos, o uso de dados por terceiros é uma preocupação real de muitas

pessoas, haja vista que, dessa forma, a liberdade de escolha é afetada e um sentimento

de vigilância é sentido por muitos. Apesar do autor discutir brevemente acerca desse

assunto, verifica-se que Lee não está tão preocupado com o uso indevido desses dados,
afirmando, inclusive, que a população chinesa está disposta a abrir mão de parte de sua

privacidade em nome do progresso. Tal afirmação é problemática, pois sendo um dos

beneficiados do avanço da inteligência artificial e não levando em consideração a

heterogeneidade de opiniões existente em um país tão grande e populoso quanto a

China, Kai-Fu Lee parece estar menosprezando possíveis fraudes e o uso antiético de

informações alheias.

As próximas décadas serão decisivas para a implementação das tecnologias de

inteligência artificial em larga escala no mundo, com as perspectivas apontando para a

preponderância chinesa no desenvolvimento e distribuição dessas novas maneiras de

realizar tarefas. Não dá para negar que a IA tem um grande potencial para facilitar a

vida dos humanos, realizando incumbências de forma muito mais rápida, prática e

satisfatória do que é possível fazer hoje. Entretanto, esse futuro distópico carece de

abordagens mais realistas e pragmáticas, principalmente concernente à qualidade de

vida daqueles que viverão a era dos algoritmos. Não há um horizonte claro de quais ou

quantos empregos serão substituídos ou eliminados, mas sabe-se, a partir das

experiências do século XXI, que a velocidade que isso acontecerá será

surpreendentemente rápida, com os principais estudos mostrando que nos próximos

quinze ou vinte anos a inteligência artificial estará presente em grande parte da vida

humana.

A humanidade, ao longo de seus milhares de anos de existência, passa por

transformações e adaptações ao contexto que se vive, o que mostra uma alta capacidade

da espécie de acomodação às intempéries do destino. Acreditamos que com a era da

inteligência artificial não será diferente, muitos problemas e engasgos sociais irão surgir

e serão tema de acaloradas discussões e tratamento pelas autoridades e sociedade civil,

mas com diferentes abordagens e soluções, além de uma firme ponte de comunicação
entre as esferas sociais, concordamos que os obstáculos podem ser superados em favor

da harmonização da vida em sociedade.

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