Você está na página 1de 13

TURISMO COMUNITÁRIO: ALGUNS APONTAMENTOS CONCEITUAIS

Lívia Lima Pinheiro1


Universidade Federal da Paraíba livia.ufpb@yahoo.com.br

PALAVRAS PRELIMINARES

O artigo que ora o leitor tem em mãos possui sua origem no meu trabalho de
conclusão do curso de Turismo da Universidade Federal da Paraíba, intitulado O turista
aprendiz: uma viagem na dimensão pedagógica da atividade turística em Pipa e na
Prainha do Canto Verde. Na ocasião eu me propus a estudar, através de uma análise
comparativa, as contribuições que o turismo de massa e o turismo comunitário dão aos
turistas no que diz respeito a suas mais diversas dimensões, principalmente no que
concerne ao processo formativo da pessoa humana. Em virtude deste objeto de estudo,
comecei um prazeroso percurso de pesquisa sobre o turismo comunitário. Ao longo
desse processo observei que existiam poucas obras conceituais sobre este modelo de
turismo, para não chamá-lo simplesmente de segmento e assim confundi-lo com apenas
um grupo de pessoas com interesses comuns, o que instrumentaliza o mercado
meramente economicista2. O que existe em quantidade razoável são inúmeros exemplos
e estudos de caso sobre experiências comunitárias de gerenciamento turístico; o que é
muito bom, diga-se de passagem. No entanto, tal modelo de atividade e gerenciamento
turístico merece contribuições de cunho conceitual-reflexivo, sustentados obviamente
sobre os relatos de experiências e estudos de casos. O presente artigo mostra-se como
uma pequena colaboração nessa discussão com intuito de contribuir para a
sistematização de elementos que tipificam ou caracterizam o turismo comunitário.
Porém deixo claro que esta é uma colaboração, portanto de caráter aberto, o que sugere
o diálogo com outras reflexões que porventura venham ter com as idéias aqui propostas.
O conjunto de referenciais utilizados como fontes para as reflexões contidas neste artigo
baseia-se principalmente em estudos de casos, relatos de experiências de comunidades
que vivenciam este modelo turístico, documentos propositivos de gerenciamento
turístico comunitário do WWF e alguns outros referenciais bibliográficos.
Antes de adentrarmos na proposta de categorias para análise do turismo
comunitário- principal colaboração deste artigo- é necessário apresentar algumas

1
Bacharel em Turismo e Professora Substituta do Departamento de Comunicação e Turismo da
Universidade Federal da Paraíba
2
Uma referência à ótica economicista citada por Manfred Max-Neef no prefácio de SAMPAIO, 2005.
considerações de ordem econômica, social e histórica a fim de bem compreender o
contexto em que o turismo comunitário se apresenta.
É de conhecimento e certo consenso dentro da comunidade científica estudiosa
do turismo que a atividade recebeu um forte impulso no período do pós-guerra, por
volta de meados do século XX. Neste período os avanços tecnológicos e principalmente
o início da massificação do uso do avião para fins turísticos representou um importante
elemento para se compreender tal crescimento. É portanto também nesse período
histórico que se encontram os fatores contribuintes do aceleramento de diversos
problemas causados pelo turismo, aqui chamado de turismo de massa. Tais problemas,
por já serem bem conhecidos e tratados por diversos e bons autores e autoras, não
receberão aqui grande espaço de discussão, até porque não é este o objetivo principal
deste trabalho. Porém, é importante apenas citar alguns desses problemas a fim de
contextualizar o assunto e assim situar o leitor e a leitora para mais a frente
compreender melhor as motivações do turismo comunitário. Esses impactos são
basicamente: o acúmulo de lixo; falta de água; inchaço urbano; inflação;
descaracterização cultural; concentração de renda e tantos outros que com certeza devo
ter esquecido ou desconheço, já que cada caso é um caso e o que representa um
problema na minha região pode não o representar nas vossas. Neuhaus aponta
claramente alguns dados que comprovam esses problemas, principalmente no que diz
respeito à concentração de renda e aos impactos ambientais:

Em 1998, as 10 maiores companhias aéreas mundiais aferiam


2/3 dos lucros. Em 1999, 5 cadeias de hotéis forneceram 14%
da hospedagem mundial [...] No Brasil a operadora CVC foi
responsável por 6 de 10 pacotes turísticos vendidos [...] a
OMT estima que 50% da receita turística acaba vazando de
volta aos países de origem dos investimentos, pela presença
de empresas estrangeiras, gastos promocionais no exterior e
pagamentos pela importação de bens e mão-de-obra.
Atualmente 80% dos gastos dos turistas já ficam para o hotel
e a empresa aérea no lugar de origem [...] Os impactos
ambientais mais graves da atividade turística são: O uso
excessivo de energia, a geração de grandes quantidades de
lixo e as emissões de gases de efeito estufa [...] O turismo
favorece o tráfico de animais silvestres e a introdução de
espécies exóticas. A especulação imobiliária, frequentemente
precedida por atos de grilagem de terra e destinada à
implementação de empreendimentos turísticos, é responsável
pela expulsão de populações tradicionais em muitas
comunidades. (NEUHAUS, 2006)
Essas e outras situações são por vezes causadas pelo turismo, mas são sobretudo
reforçadas por ele, uma vez que a atividade turística não é responsável isoladamente por
todos esses danos e problemas. A análise de tal situação não pode ser feita de modo tão
simplista e ingênuo a risco de tornar-se uma análise equivocada e, o que representa
maior perigo, ideológica. O planeta vive tempos conturbados em diversas dimensões. O
espírito competitivo estimulado pelo sistema capitalista levou-nos a extremos. O tão
famoso e moderno estresse é reflexo de um estilo de vida massacrante. O
individualismo assume um lugar de destaque nas características sociais dos grandes
centros urbanos, o que está relacionado, como diz Sampaio, ao “modelo de
desenvolvimento economicista” (2005), no qual, como diz Max-Neef de modo irônico
em um trecho claro de desabafo, “vale dizer que a economia não está para servir às
pessoas, senão as pessoas para servir à economia” (SAMPAIO; 2005,13). É neste
contexto de exploração de uns (capitalistas) pelos outros (trabalhadores), intensa
concentração de renda e conseqüente desigualdade social que surge novos movimentos
tentando pensar e mostrar alternativas a este modelo dominante que está oprimindo as
relações humanas. Sobre isso Luzia Neide Coriolano aponta caminhos ao refletir sobre
o chamado desenvolvimento na escala humana, sobre o qual ela diz:

Voltar o desenvolvimento para a escala humana e o turismo


para benefício local significa adotar políticas que possam
ocasionar trabalho e ocupação para todos [...] mas requer,
sobretudo, o homem no centro do poder, de forma que possa
promover a sua realização. [...] As atividades planejadas
voltam-se para o desenvolvimento social e cultural do grupo
e as atividades econômicas passam a contribuir para que isto
aconteça. (CORIOLANO 2006)

Pela declaração de Coriolano percebe-se que nesta concepção de desenvolvimento o ser


humano é posto como prioridade, o que significa considerá-lo de forma holística e
completa, onde o objetivo final é o bem-estar do ser humano entendido de forma ampla;
e a economia assume uma posição instrumental de viabilização deste bem-estar. No
mesmo artigo a autora, fazendo referência a Milton Santos, diz que ele “repetiu em seus
livros e na imprensa falada que o que globaliza separa: é o local que permite a união e
que só é possível humanizar a partir do local.” (CORIOLANO, 2006). É dentro desta
lógica que diversos movimentos passam a valorizar a dimensão local, sem no entanto
desvalorizar o global, na tentativa de buscar alternativas econômicas que tragam
melhores condições de vida notadamente às populações pobres dos países
subdesenvolvidos. A concepção do turismo comunitário surge nessa onda, assim como
outros movimentos e ações tais como a economia solidária, a agricultura familiar e
outros. O que há de comum entre todos eles é justamente o fato de trabalharem com a
esfera local/ comunitária. Por fim repito que trabalhar com a esfera local não significa
isolar-se do restante do globo, mas sim priorizar os interesses locais comunitários dentro
de um processo de relação com o todo (mundo).

TURISMO COMUNITÁRIO: CATEGORIAS PARA O SEU ENTENDIMENTO

Como já fora explicado, as categorias que serão trabalhadas neste artigo


surgiram sobretudo da constatação da repetição de alguns princípios presentes nas
diversas experiências de turismo comunitário ou de base local detectados ao longo da
pesquisa. Um desses exemplos tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, que foi o
caso da Prainha do Canto Verde, situada no município de Beberibe no Ceará. Márcio
Félix, atual coordenador de turismo da comunidade, foi meu principal interlocutor neste
processo, juntamente com o João, dono de restaurante pousada, René e alguns outros
moradores da Prainha. Outros exemplos dentro do território brasileiro podem ser
citados, a exemplo da Associação Acolhida na Colina, localizada em Santa Rosa de
Lima – SC3, que trabalha com agroturismo. A partir dessas experiências percebi a
constância de princípios que orientavam todas essas comunidades no que diz respeito à
atividade turística. E é baseado nessa observação e em alguns documentos que versam
sobre o tema que agora apresento as categorias propostas neste artigo a fim de
caracterizar o turismo comunitário.
Apenas uma observação se faz necessária antes da abordagem das categorias. É
bom esclarecer que o turismo comunitário, “mais que um simples tipo de atividade
turística praticada pelos visitantes, representa um modelo de gerenciamento turístico de
caráter sobretudo inclusivo e que tem como desdobramento desse aspecto o
oferecimento de produtos diferenciados” (PINHEIRO; 2006,31). Tal afirmação torna-se
mais clara quando se percebe o forte respeito aos aspectos locais (cultura, meio
ambiente, tradições e bem-estar da comunidade local) dentro das experiências
comunitárias de gerenciamento turístico.

3
Sobre este caso ver SAMPAIO, 2005 ou http://www.acolhida.com.br/index.html
Dito isto, podemos agora trabalhar diretamente com as categorias propostas.
Estas se dividem em dois grupos: elementos característicos e elementos estratégicos.
A divisão em dois grupos atende muito mais a uma necessidade didática do que uma
cisão que de fato exista e se perceba nas experiências reais de turismo comunitário. No
primeiro grupo estão presentes as categorias essenciais à caracterização de uma
experiência de gerenciamento comunitário do turismo, ao passo que no segundo
encontram-se elementos facilitadores desta prática (gerenciamento). Nas experiências
reais as categorias propostas nos dois grupos assumem graus de importância
praticamente equivalentes.
Dentro dos elementos caracterizadores estão:
• Protagonismo comunitário
• Organização comunitária
• Rentabilidade para a comunidade

A primeira categoria, protagonismo comunitário, está dentro da lógica do


Planejamento Estratégico Participativo (PEP)4 e consiste na garantia da participação da
comunidade em todo o processo produtivo do turismo (planejamento, execução e
monitoramento) de uma forma autônoma, consciente e livre. As vontades e decisões
comunitárias devem assumir um grau de importância diferenciado em função da
prioridade estar voltada para o coletivo (comunidade). Esta concepção obviamente não
exclui a iniciativa privada e o poder público, porém representa um modelo onde a
sociedade civil, através de outro modo de participação, assume seu papel de
protagonista5 dos rumos históricos da comunidade. Esta categoria é claramente
percebida e confirmada em trechos de dois textos, um de cunho acadêmico-científico e
outro oriundo de uma carta escrita pelos povos indígenas e de comunidades rurais da
América Latina. Esses textos dizem:

Turismo comunitário é aquele desenvolvido pelos próprios


moradores de um lugar que passam a ser os articuladores e os
construtores da cadeia produtiva, onde a renda e o lucro
ficam na comunidade e contribuem para melhorar a
qualidade de vida; levar todos se sentirem capazes de
contribuir, e organizar as estratégias do desenvolvimento do
turismo. (CORIOLANO, 2006)

4
Autor referencial para o PEP: Joel Souto-Maior IN: SOUTO-MAIOR apud SAMPAIO, 2005.
5
“Fig. Pessoa que tem o primeiro lugar em um acontecimento” (Pequeno dicionário
enciclopédico KOOGAN LAROUSSE).
3- Somos conscientes de que el turismo puede ser una fuente
de oportunidades pero también una amenaza para la cohesión
social de nuestros pueblos, su cultura y su hábitat natural. Por
ello, propiciamos la autogestión del turismo, de modo que
nuestras comunidades asuman el protagonismo que les
corresponde en su planificación, operación, supervisión y
desarrollo […] (DECLARACIÓN DE SAN JOSÉ6, 2003.
grifo nosso)

A segunda categoria dos elementos caracterizadores é a organização


comunitária. A organização social é uma premissa para todo aglomerado humano. Não
existe possibilidade de convívio humano sem determinadas regras que o ordenem. Toda
comunidade ou sociedade possui regras que regem as relações existentes dentro de um
grupo. Estas regras podem ser explícitas, como por exemplo as leis dos mais diversos
códigos que compõem nosso sistema legislativo; ou implícitas, como no caso das regras
morais, como a “boa educação” em determinadas sociedades. Não está escrito em lugar
algum que ao chegar em determinado recinto devemos desejar bom dia às pessoas que
já lá se encontram, porém somos induzidos a fazer isso, às vezes sentindo o peso da
“obrigação” de ser educado, às vezes simplesmente sem nos darmos conta dessa
pressão. Pois bem, podemos dizer que a organização é quase inerente aos grupos
humanos. Todavia, a organização a qual me refiro nesta categoria, é uma organização
que permita e estimule o protagonismo comunitário, primeira categoria citada. Se esta é
essencial para a caracterização do turismo comunitário, as condições para o seu
funcionamento efetivo também o devem ser. Sendo assim, a organização necessária é
aquela que permita amplas discussões dos temas de interesse do coletivo/comunidade.
Os conselhos comunitários são ótimos exemplos de espaços propícios para o exercício
do debate e de tomadas de decisões coletivas. Permito-me abrir um parêntese aqui para
fazer um esclarecimento que talvez seja óbvio para muitos, porém quando escrevemos
estamos sujeitos a diversas interpretações, por isso peço um pouco de vossa paciência.
As decisões coletivas não pré-supõem de forma alguma unanimidade de pensamento no
interior de uma mesma comunidade. Sinto-me na obrigação de fazer esta afirmação para
fugir da aura romântica da comunidade idealizada onde as relações pessoais são
perfeitas e longe do “risco” dos conflitos inter-pessoais. Como em todo espaço aberto à
expressão de pensamentos, as divergências são “naturais”, benéficas e necessárias sob o
ponto de vista da dialética.

6
Disponível no sítio <http://www.ecoturismolatino.com/ebiblioteca/ebiblioteca.htm>. Acesso em:
25/03/06
Mesmo com o respeito e a valorização do coletivo, pessoas com espírito e perfil
de liderança sempre surgirão e são necessárias. Porém liderança não é sinônimo de
hierarquia unidirecional. A pessoa-líder tem um papel representativo e motivador do
restante da comunidade, nunca ditador. É por isso que o WWF-Internacional, no
documento Diretrizes para o Desenvolvimento do Turismo Comunitário atenta para a
importância das representações e delimitação da comunidade ao dizer:

La definición de la comunidad dependerá de las estructuras


sociales e institucionales en la zona de que se trate, pero la
definición supone alguna forma de responsabilidad
colectiva y aceptación de los órganos representativos.
(WWF INTERNACIONAL, 2001, grifo nosso)

Por fim podemos dizer então que “este modelo turístico [turismo comunitário] não pode
existir sem uma organização da comunidade que viabilize mecanismos de consulta e
tomadas de decisões que respeitem o protagonismo comunitário” (PINHEIRO;
2006,33).
A rentabilidade para a comunidade é a terceira categoria dos elementos
caracterizadores. Peço novamente licença às leitoras e leitores para utilizar neste ponto
grande parte do meu texto monográfico que acredito explicar bem esta categoria. Sinto-
me a vontade para fazer isto por ser esse o trabalho que originou e que possui grande
parte do conteúdo deste artigo:

“Sabe-se que o atual modelo econômico dominante é


comprovadamente gerador de uma significativa concentração
de renda em todo o planeta. Este fato, por sua vez, acarreta
um quadro de pobreza espalhado em grande parte do globo
[...] O modelo dominante de turismo faz parte dessa
engrenagem e é contribuinte da concentração de renda nas
mãos de um número reduzido de pessoas. Este fator é uma
das principais conseqüências negativas que se abatem sobre
as populações pobres do planeta. A concentração de renda
gera o distanciamento econômico das pessoas, o que traz
imbricado em si os distanciamentos sociais geradores de
acentuados preconceitos e discriminações. Neste ponto já
entramos na dimensão cultural que apresenta um cunho
subjetivo, portanto de maior complexidade, logo “mais
difícil” de ser transformado. E assim vai-se construindo uma
rede que engloba dominantes e subalternos em situações de
convívio extremamente desconfortáveis a todos, dificultando
o diálogo e assim reforçando a situação vigente. Em razão
desta conjuntura, diversos movimentos mobilizam-se com o
intuito de incluir e fomentar novas alternativas de geração de
renda que, ao invés de concentrar, distribuam de forma justa
a renda gerada a partir dessas atividades. [...] O turismo
comunitário surge [...] dentro desta lógica e com o objetivo
de ser mais uma alternativa de trabalho e renda, gerada e
distribuída na comunidade. É por isso que a rentabilidade
da atividade turística revertida para a comunidade é
condição sine qua non para caracterizar este modelo de
gerenciamento turístico, já que ele surge para combater a
concentração de renda característica das conseqüências do
turismo dominante. (PINHEIRO, 2006, 34)

Em complemento a isto, os povos indígenas e de comunidades rurais da América Latina


reforçam tal aspecto ao dizerem: “Queremos explorar toda iniciativa produtiva sustentável que
contribua para o desenvolvimento econômico local e gere novos empregos e trabalho decente
em nossas comunidades”. (DECLARACIÓN DE SAN JOSÉ, tradução nossa).
O segundo grupo de elementos abrange os elementos estratégicos que são
aspectos importantes para a boa e efetiva realização de um turismo de base comunitária.
As categorias pertencentes a este grupo são:

• Turismo como atividade econômica complementar


• Posse da terra pela comunidade
• Conservação ambiental e cultural

A macro e a micro economia contemporâneas são extremamente complexas. Sob


este rótulo está a concepção que Morin e Libânio dão ao termo “complexo”: tecido
junto. Ou seja, a complexidade caracteriza-se não só pela união de diversos elementos
mas também e principalmente pela relação entre esses elementos. Sobre isso Libânio
nos diz que:

À primeira vista, a complexidade é um tecido


(complexus: o que é tecido em conjunto) de
constituintes heterogêneos inseparavelmente associados:
coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Na segunda
abordagem, a complexidade é efetivamente o tecido de
acontecimentos, ações, interações, retroações,
determinações, acasos, que constituem o nosso mundo
fenomenal. (LIBÂNIO; 2002,19)

Nesse sentido percebemos que a economia contemporânea é complexa também no


sentido de interligação do mundo num contexto de globalização. Os setores econômicos
são hoje todos interligados. Daí entender que quando há uma crise no setor aviário do
outro lado do planeta, nossa produção de soja aqui no Brasil sofra reflexos; e isso para
ficar em um exemplo facilmente compreensível. Diante de tamanha complexidade
compreende-se o risco que representa um país ou uma localidade basear sua economia
na produção de um único artigo ou serviço. No caso do turismo isso pode ser inclusive
mais arriscado porque, apesar de ser um dos setores da economia que movimenta maior
fluxo de capital no planeta, é um serviço classificado como supérfluo. Na necessidade
de corte de gastos as viagens de férias são as primeiras a serem lembradas. Além disso o
turismo também é muito suscetível a fatores inesperados de cunho natural ou social,
vide o que causaram o tsuname e o 11 de setembro no setor turístico.
Outro fator entra na análise desta categoria ao lembrarmos que a concentração
de renda é uma das preocupações do turismo comunitário e outros movimentos e ações
alternativas ao modelo econômico dominante. Um dos objetivos é então a geração e a
distribuição da renda; e isso só pode ser realmente efetivado no âmbito do turismo se
este for fator de multiplicação de oportunidades econômicas para a comunidade, e não a
única alternativa. No modelo turístico dominante vimos através dos dados trazidos por
Neuhaus que a renda e as ações operacionais do setor turístico são na verdade
concentradas em poucas e grandes empresas. Isso representa grande problema em
comunidades onde o turismo assume o papel de carro-chefe da economia local. Além de
oferecer empregos com pouca perspectiva de crescimento profissional, parte
significativa da renda gerada com o turismo volta aos países de origem das empresas
multinacionais. Por essas e outras razões o turismo ao invés de dominar o cenário
econômico local deve integrar-se a ele, representando mais uma opção de geração de
renda para a comunidade e não o portador de todas as esperanças econômicas da
mesma. É neste sentido que no turismo comunitário a atividade turística deve
representar apenas um complemento à renda dos moradores. As pequenas
comunidades geralmente estão inseridas em ambientes que a categorização espacial
proposta por Boullón chamaria de espaço natural adaptado ou espaço rural (BOULLÓN
apud BENI; 2004,56). Estes possuem áreas naturais que muitas vezes tornam-se
atrativos naturais. A tentação de viver apenas do turismo torna-se então um perigo. Nem
sempre o número e a freqüência necessária de turistas para manter o negócio durante
todo o ano são compatíveis com o número e a freqüência de turistas suportável pelo
meio ambiente.
A posse da terra pela comunidade é a segunda categoria desse grupo. Ela
representa a garantia da soberania e autonomia da comunidade nos processos decisórios
referentes ao local. A especulação imobiliária é fator característico do sistema
capitalista competitivo; e nesse contexto só participa das discussões, e por conseqüência
dos processos decisórios, quem tiver trunfo para barganhar, assim dita a cartilha do
sistema. Para a comunidade esse trunfo é a posse da terra. “Em outras palavras, se a
comunidade perde a posse da terra, perde também seu poder de barganha e o elemento
que lhe garante o controle da situação. Donos da terra, donos de tudo que nela houver e
se desenvolver; a história caminha por aí” (PINHEIRO, 2006,37). A Prainha do Canto
Verde é um exemplo vivo desta afirmação. Por várias décadas a comunidade travou
uma luta primeiramente com o grileiro Antonio Sales Magalhães e depois com a
Imobiliária Henrique Jorge que desejavam construir naquelas terras grandes
empreendimentos imobiliários de cunho turístico e residencial. A batalha foi em última
instância pela posse da terra porque ambos os lados tinham consciência que, uma vez
possuidores da terra legal e reconhecidamente, tinham o controle da situação porque
tinham autonomia decisória sobre o espaço. A comunidade da Prainha do Canto Verde
saiu vitoriosa dessa batalha judicial (que por vezes chegou ao viés armado) no ano
passado, tendo ganho definitivamente a causa no Superior Tribunal de Justiça.
Os povos indígenas e de comunidades rurais da América Latina, cientes disso
declararam:

7 - Reafirmamos el derecho de propiedad de nuestras


tierras y territorios – fuente de subsistencia, identidad y
espiritualidad - , derecho consagrado en el Convenio número
169 de la OIT, ratificado por todos los países presentes en
este evento. Consideramos que al emprender cualquier
actividad económica, y el turismo en particular, ha de
adoptarse una política de planificación y gestión sostenible
de los recursos naturales (…). Declinamos vender o ceder
en concesión nuestras tierras a personas que no sean de
nuestras comunidades. Desaprobamos toda decisión que
contravenga este principio. (DECLARAÇÃO DE SÃO
JOSÉ, 2003, grifo nosso)

A última categoria proposta como estratégia é a conservação ambiental e


cultural. Esta concepção está relacionada à tendência do desenvolvimento sustentável,
onde os usos atuais dos recursos socioambientais devem ser pautados também sobre a
preocupação com o bem-estar das gerações futuras. O turismo comunitário, assim como
outras ações, surge com o intuito claro de gerar melhores condições de vida às
populações exploradas pelo modelo de desenvolvimento economicista-explorador
preponderante no mundo. Sendo assim, não há como pensar boas condições de vida sem
considerar a relação ser humano- ambiente natural. Os últimos relatórios da ONU,
amplamente divulgados pela grande mídia, apontam cenários preocupantes e até mesmo
amedrontadores no que concerne às condições em um futuro próximo do meio
ambiente, com reflexos diretos sobre o cotidiano das sociedades.
As categorias anteriores trabalham bem os aspectos organizacionais e
econômicos, dimensões componentes desse amplo espectro que é o bem-estar coletivo,
agora é chegada a vez do aspecto ambiental ser contemplado, abarcando assim três
pontos importantes da engrenagem social contemporânea: o econômico (produção); o
político-organizacional (onde também entra a cultura) e o natural (meio ambiente e
recursos vitais). Estes três pontos obviamente abrem-se para tantos outros e possuem
relações estreitas entre si.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estão dadas as seis categorias propostas de estruturação do turismo comunitário. É bem


verdade que estas categorias podem aplicar-se também a outras ações cujo objetivo seja
o fomento de novas oportunidades econômicas que escapem à lógica excludente da
economia dominante. Este é um caso a se pensar para outros artigos e estudos. Gostaria
no entanto de concluir estes pensamentos atentando para o fato de que essas categorias
não objetivam fechar a concepção do turismo comunitário apenas nessas seis premissas.
Muito mais que classificar determinado tipo de atividade turística que esteja sendo
desenvolvido em algum lugar do planeta como turismo comunitário, de base local,
solidário ou qualquer outra nomenclatura, estas categorias têm muito mais a contribuir
no sentido de oferecer referenciais tanto a futuros estudos sobre o tema quanto servir
também de referência a comunidades que almejem orientar o turismo na direção do
gerenciamento coletivo. Por fim, é preciso também compreender que o poder público
tem forte papel nesse processo. As políticas de turismo adotadas no Brasil, ainda que
indiretamente e através de omissões, continuam beneficiando grandes empreendimentos
turísticos concentrados nas mãos de poucas empresas multinacionais. O investimento e
o incentivo ao gerenciamento comunitário da atividade turística por parte
principalmente do governo federal representaria grande contribuição no processo de
descentralização da renda, talvez mais que o PRT (Programa de Regionalização do
Turismo) e o antigo PNMT (Programa Nacional de Municipalização do Turismo) que
continuaram privilegiando grandes empresas, mesmo que indiretamente. É portanto
partilhando desse espírito transformador e militante dos que buscam mecanismos
alternativos à voracidade economicista que o turismo pode dar sua contribuição ao real
desenvolvimento democrático do bem-estar das populações empobrecidas dos países
subdesenvolvidos do globo.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BENI, Mário Carlos. Análise estrutural do turismo. 10ª ed. São Paulo: SENAC São
Paulo, 2004.

BOYER, Marc. História do turismo de massa. Trad: Viviane Ribeiro. Bauru, SP:
EDUSC: EDUFBA, 2003. (Coleção Turis).

CORIOLANO, Luzia Neide M. T. O desenvolvimento voltado às condições humanas


e o turismo comunitário. Disponível em: <http://www.naya.org.ar/
turismo/congreso2003/ponencias/Luzia_Neide_Coriolano.htm> . Acesso em:
23/02/2006.

HOUAISS, Antonio (direção). Pequeno dicionário enciclopédico Koogan Larousse.


Rio de Janeiro: Editora Larousse do Brasil,1984

LIBANIO, João Batista. A arte de formar-se. 4ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
(Coleção CES).

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina


Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. Revisão técnica de Edgar de Assis Carvalho. São
Paulo: Cortez; Brasília – DF: UNESCO, 2000.

NEUHAUS, Esther. Turismo comunitário – instrumento para inclusão social e


desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://soscorpo.org.br/
download/turismo_comunitario.doc.> Acesso: em 05/05/2006

PINHEIRO, Lívia Lima. O turista aprendiz: uma viagem na dimensão pedagógica da


atividade turística em Pipa e na Prainha do Canto Verde. Monografia (Graduação do
Curso de Bacharelado em Turismo). João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba

SAMPAIO, Carlos Alberto Ciocce. Turismo como fenômeno humano: princípios para
se pensar a socioeconomia e sua prática sob a denominação turismo comunitário. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.

SCHERER, René. O Turismo sustentável: um estudo de caso sobre a experiência da


comunidade da Prainha do Canto Verde no litoral do Ceará. IN: PASOS: Revista de
Turismo y Patrimonio Cultural. Vol 1 nº 2. p 231 – 242. Disponível em:
<http://www.pasosonline.org/Publicados/1203/PS100603.pdf.> Acesso em: 24 de
novembro de 2006.

WWF INTERNACIONAL. Diretrizes para o desenvolvimento do turismo


comunitário. 2001
SÍTIOS CONSULTADOS

Sítio Ecoturismo Latino (sessão de ebiblioteca)


http://www.ecoturismolatino.com/ebiblioteca/ebiblioteca.htm

Sítio da Associação Acolhida na Colina


http://www.acolhida.com.br/index.html

Sítio do Fórum Internacional de Turismo Comunitário e Comércio Justo


http://www.fits.chiapas.gob.mx/

Sítio do Instituto Terramar


http://www.terramar.org.br/

Sítio da Prainha do Canto Verde


http://www.prainhadocantoverde.com.br/

Sítio da Rede Brasileira de Turismo Solidário e Comunitário


http://redebonja.cbj.g12.br/ielusc/rbtsc/contatos.htm

Sítio da Rede de Turismo Comunitário da América Latina


http://www.redturs.org/inicio/index.php?option=com_frontpage&Itemid=1

Para usar este texto como referência em outras publicações referenciar da seguinte
forma:

PINHEIRO, Lívia Lima. Turismo comunitário: alguns apontamentos


conceituais. Anais do X Encontro Nacional de Turismo de Base Local –
ENTBL, Tomo III. João Pessoa, 2007.

Você também pode gostar