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O Lado Obscuro da Pornografia

Reportagem de Gabriella Feola - Publicada originalmente em "Papo de Homem"


(Um site péssimo para a masculinidade, mas essa matéria é boa)

Você chega em casa e abre o computador. Acessa a internet, olha o Facebook, e vai pra um site
qualquer, um desses de filmes pornôs. Escolhe o vídeo que tem a imagem mais interessante, bate
uma, toma uma água e liga a TV... Normal. Inofensivo. Muitos diriam: saudável.

Mais um dia. Você chega em casa, vai pro computador, acessa a internet e, desta vez, clica em uma
dessas reportagens que aparece na timeline. Na imagem que chama para o texto, destaque para uma
mulher americana de meia idade: o nome dela é Shelley Lubben.

Bastante revoltada, ela fala de garotas que, durante a gravação de pornôs, foram forçadas a fazer o
que não queriam. A reportagem mostra vídeos de mulheres chorando de dor, enquanto os parceiros
de atuação não param de meter e machucá-las. Em seguida, ela fala sobre dados de atores e atrizes
que morreram de AIDS – afinal, não é aceitável gravar pornô usando preservativos. Shelley mostra
também a lista das muitas atrizes que se suicidaram por depressão ou morreram de overdose.

Para ela, tudo isso é reflexo de uma indústria pornô hardcore que vitimiza e danifica
permanentemente aqueles que fazem parte dela.

Inclusive ela mesma.


 
Shelley atuava em pornôs nos anos 90. Depois de ser expulsa de casa e ir trabalhar em uma boate,
viu nos filmes uma oportunidade de ganhar mais dinheiro e dar uma boa vida à filha pequena.
Durante os 4 anos de carreira, sofreu agressões. Chegou a perder metade do útero por um câncer
causado pelo HPV. Mesmo assim, a atriz só largou a indústria quando contraiu herpes e teve
grandes problemas de saúde por que esta se espalhou pelo resto do corpo. Se enxergou alcoólatra e
só deu uma guinada na vida pessoal ao casar com um filho de pastor e construir a família tradicional
com que sempre sonhou.
Hoje é presidente da Pink Cross Foundation, organização voltada para os trabalhadores do pornô
americano, acusa a indústria pornográfica de realizar tráfico sexual e acobertar estupros, além de
exibir alguns deles na íntegra.
Eu a conheci clicando em um destes links, e fiquei com isso na cabeça. Ela te mostra uma lado tão
feio e tão perturbador do pornô que fica difícil navegar pelos sites ou pensar em assistir aos filmes
da mesma maneira. Todas as vezes em que um cara apertar o pescoço da garota, você
pensará: “Será que isso é uma expressão de tesão ou de dor? Será que nós, espectadores
voyeristas, continuamos consumindo porque é justamente a dor alheia que alimenta o nosso
prazer? Será que eu tô contribuindo e sendo conivente com a destruição da vida de algumas dessas
pessoas?”
Trabalhando na TV USP, eles me deram a liberdade de fazer uma reportagem sobre o assunto.
Afinal, será que no Brasil é assim também? Será que os mesmos problemas da maior indústria
pornográfica do mundo também são problemas aqui, na nossa pequena fábrica de pornôs?
Eu fui atrás da Shelley Lubben, de algumas atrizes brasileiras e de mais um monte de gente
interessante pra falar sobre o assunto. Foram poucos os que toparam me dar entrevista. O vídeo a
seguir, uma reportagem feita e exibida pela TV USP, é o resultado dessa busca.

 
Na visão da ex-atriz, a degradação psicológica e a pressão causada pelos desempenhos humilhantes
e fisicamente difíceis obriga as garotas a recorrerem ao álcool e às drogas. .
Com essas situações em mente, a ativista não quer apenas que sejam garantidos direitos básicos e
segurança aos profissionais que trabalham com filmes. Ela quer o fim da indústria pornô. “Shelley
tem muita razão em algumas coisas que diz, mas é uma fanática religiosa. Esse é o problema dela”,
diz Valter, católico praticante. Fanática ou não, fizemos o teste que ela propôs: olhamos para a vida
real de Patrícia.
Em uma conversa informal, ela contou sobre a relação com a família. Sua mãe e seus irmãos sabem
da sua carreira: “minha mãe não deixou de me apoiar”. Nos dias de lazer vive normalmente, conta
histórias corriqueiras da sua relação com a família, como ir em quermesse de igreja na época das
festas juninas. Ela conta que alguns garotos e homens a reconhecem. Quando está em família, pede
pra eles respeitarem seu momento.
Apesar de demonstrar que é possível viver de sexo sem ser emocionalmente demolida, Patrícia sabe
que sua situação não é a de uma atriz qualquer. Ela tem nome, fama e 10 anos de carreira. Para as
novatas, é muito mais difícil impôr respeito. E essa é a grande diferença.
 

Meu corpo, minhas regras


Ainda que aquela garota de que você gosta aceite ir ao motel contigo, isso não significa que você
pode fazer o que quiser com ela. Mas por que ainda soa estranho ouvir que uma atriz pornô se
recusou a fazer sexo anal? E que ela não aceitou apanhar durante uma cena? Ou, em um exemplo
mais severo, classificar como estupro o desrespeito a qualquer um desses limites?
Decidir sobre como dispor do próprio corpo é um direito básico de cada um de nós – incluindo as
atrizes pornôs e as prostitutas. A impressão de glamour que envolve algumas superproduções faz
parecer que todas as garotas são bem tratadas, pagas e protegidas como se deve, mas ainda que o
pagamento que ambos os tipos de trabalhadoras do sexo seja relevante, isso não é algo que tire delas
a garantia à integridade física e psicológica.
E apesar do foco dessa reportagem recair sobre a questão da mulher na indústria do pornô, isso não
quer dizer que são só elas que sofrem. Muitos atores são constantemente submetidos a injeções e
remédios para manterem ereção por um período que a natureza não permitiria. Os atores homens,
inclusive, são as maiores vítimas da Aids no universo pornô.
 

Camisinha: usar ou não usar?


A proteção é uma peça chave na discussão sobre o respeito e segurança dos profissionais do sexo.
Aqui no Brasil, depois de alguns anos de pressão do Ministério da Saúde, a maioria dos filmes são
gravados com preservativo – mas muitos empresários da pornografia alegam que esse modelo não é
rentável.
Produtores americanos acreditam que não é isso que o público quer ver e, por isso, garantem que os
consumidores não compram filmes do tipo. Shelley rebate dizendo que são os produtores que
determinam o que o público vai assistir: se só houver filmes com preservativos, os espectadores só
assistirão a filmes com preservativos. E não adianta ficarmos alheios à discussão, pois a decisão dos
EUA afeta o mundo todo. Os filmes gravados “para exportação” aqui no país, por exemplo, também
são gravados sem preservativo.
Atualmente, as produtoras dos Estados Unidos estão sendo pressionadas a aderir ao uso de
camisinha por causa da Medida B, lei aprovada no Estado da Califórnia, coração da indústria
pornográfica.
A legislação trabalhista americana já determinava que empresas que submetam profissionais a
entrar em contato com fluídos potencialmente contaminantes devem fornecer e aplicar toda a
proteção necessária, mas a nova regra especifica que atores e atrizes pornôs estão inseridos nessa
legislação.
Para evitar que a camisinha seja obrigatória, as produtoras recorreram à primeira emenda da
Constituição americana: acusam a medida B de interferir na liberdade de expressão artística de seus
contratados.
Parece muito razoável exigir o uso de preservativos na gravação de filmes. Mas para dimensionar a
polêmica, é importante lembrar que a proteção não seria apenas no momento da penetração: de
acordo com a Medida B, homens e mulheres deveriam usar camisinhas masculinas ou femininas no
sexo oral também.
Pense consigo. Se usar uma camisinha feminina para fazer um sexo oral numa mulher não é algo
que normalmente se pratica na vida real, será que a prática deveria mesmo ser obrigatória nos
vídeos? Ou seria uma prova de que usar camisinha, não importa em que circunstância, pode ser
excitante? É parte da função de um filme pornô participar de um processo educativo para mudar
nosso hábito e cultura?

Que outro pornô é possível?

 
Se como espectadores nós encaramos a questão da segurança, as agressões, cenas extremas e a falta
de reconhecimento dos direitos como parte da causa dos danos que podemos perceber entre os
membros e ex-membros da indústria pornográfica, também precisamos entrar no debate.
Ao contrário do que pensa Shelley, que quer acabar de vez com os pornôs, eu acredito que a solução
não é eliminar os filmes, e sim, a violência e as opressões cometidas dentro de um set.
 
“O pornô é um microcosmos do mundo em que a gente vive. O que se vê nos filmes é o que se vê
no mercado. É como a marca de cerveja competindo pra ver quem faz o comercial mais babaca. Um
diretor faz um filme de anal, aí vai o outro e tem que fazer o super super anal e assim por
diante...” –Valter
 
“Não dá pra voltar pro pornô arroz com feijão. (...) Elas usam álcool e drogas porque sabem que não
dá pra cumprir certas exigências sóbrias.” –Shelley
Tanto na fala da Shelley quanto na do Valter pode-se perceber a falta de perspectivas que amenizem
o problema. Os dois falam sobre a competição cada vez mais agressiva e mais distante do sexo
comum: é a cultura do sexo hardcore. As orgias têm que ser cada vez mais numerosas; o freak, cada
vez mais freak; e assim o sexo "comum" se torna cada vez menos atrativo comercialmente e,
portanto, inviável.
Diretor das antigas, Valter critica a estrutura comum, não concorda com o modelo de produção
atual e tem saudades da época em que os filmes eram mais eróticos, mais únicos e feitos em escala
menor. “Se você for observar, os filmes seguem todos uma mesma estrutura, 4, 5 posições, ângulos
de câmera muito parecidos, e até o ponto de corte chega a ser o mesmo”. Será que não é mesmo
possível apostar em um modelo que não seja esse?
Será que não é possível fazer um filme que excite, que instigue, sem machucar? A maior parte da
indústria pornô atende determinados grupos de homens héteros e outros grupos de homens gays. E
digo ‘determinados grupos’ porque nem todos os homens héteros tem como fetiche ver mulheres
com um padrão de beleza questionável, gemendo de maneira mais questionável ainda. Nem todos
os homens héteros ou gays acham que os filmes com aquele sexo exagerado e tão claramente atuado
é o que se pode ter de melhor num filme pornô.
Que tal pensar em algo que possa valorizar mais o casal, em que a interação e fetiches sejam
mútuos e não levem em conta só o prazer masculino? E se fossem produzidos filmes em que o
homem também seja objeto de prazer (não necessariamente voltados para o público gay)? Será que
não é possível que o público lésbico seja de fato atendido, sem ficar refém do pornô em que duas
mulheres se tocam com o claro objetivo de satisfação hétero-masculina?

Há até um vídeo em que garotas homo fazem comentários sobre o pornô lésbico main


stream: https://www.youtube.com/watch?v=PJvYprLDcRs

 
É possível encontrar filmes e produtoras alternativas, claro, mas ainda em uma quantidade muito
pequena, com dificuldade para se manter e, por muitas vezes, com custo acima do pornô comum. Se
você não é uma pessoa que se sente plenamente atendida pelo modelo atual e resolver procurar
outro tipo, muito provavelmente vai levar três vezes mais tempo buscando um vídeo do que se
masturbando.
Uma das alternativas atuais é o site “Make Love, Not Porn”. Criado por Cindy Gallop, pessoa chave
na briga por novos modelos de pornô, o site tenta trazer o sexo da vida real para as telas. A criadora
incentiva que casais normais façam filmes amadores reais e forneçam esse material para o site. Os
visitantes pagam um taxa para assistir ao vídeo por um período determinado (algo em torno de
US$5 por 3 semanas) e os usuários que fizeram a filmagem ganham metade dos lucros que o filme
arrecadar.
No Brasil, a X-Plastic tem um trabalho relevante – até por ser a única grande produtora de pornô
alternativo. Fundada por três integrantes de uma banda de rock, tem nas músicas um forte atrativo,
assim como a inspiração na pornochanchada. A fotografia bem cuidada também chama atenção, e
as garotas fazem o estilo de pin-ups modernas: tatuadas, com corpo natural e cabelos
cuidadosamente diferentes (Patrícia Kimberly, nossa entrevistada, é uma das profissionais que
gravam com a X-Plastic).
Alt Porn ou amador. Gonzo ou super produção. Tapas, apertões, puxadas de cabelo… Orgias, vários
homens e uma só mulher... todas essas opções podem ser muito excitantes e não têm nada de
errado, mas pra isso, é preciso que os envolvidos estejam gostando. Sentir prazer com algum desses
tipos de interação é diferente de sentir prazer vendo uma mulher gritar aflita porque a penetração
em grupo, os tapas, os puxões estão doendo sem lhe dar nenhum prazer.
Acredito que o ponto não é criar uma cartilha de “pode” e “não pode” dentro do pornô. A intenção
desse texto, inclusive, é levantar o questionamento sobre os padrões que temos hoje. Creio que seja
preciso encontrar um ponto de equilíbrio que garanta o bem estar dos profissionais, seja
economicamente rentável e que, ao mesmo tempo, não criminalize as práticas sexuais de alguém.
O sexo agressivo não é, necessariamente, errado. O sexo com abuso é.
Como a Patrícia disse pra gente: “Enquanto eu estiver gostando e enquanto eu estiver tendo prazer,
tudo vale.”
https://www.youtube.com/watch?v=hIok-mr12P0

https://www.youtube.com/watch?v=oBx4lgieMAs

https://www.youtube.com/watch?v=G7YoXJ4eXr8

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