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{O QUE SAO OS

RAFAEL BARRETT
Rafael Barrett

O ({u e s ã o o s e r v a i s

GOLECÃOl
W ÉÜ iV ISl

Cultura e Barbárie
D esterro , 2012
T ítulo Original
Lo que son los yerbales

Tradutora
Alai G ard a Diniz

Revisão
Rodrigo Lopes de Barros, Leonardo D’A d la

C apa
Renato W ilm ers de Moraes

C on selh o E d ito ria l


A lexandre Nodari, Diego Cervelin, Flávia Cera, Leonardo
D’Avila de Oliveira, Rodrigo Lopes de Barros

B274<) Barriítt, Rafael


0 que são os ervais / Rafael B arrett; tradutora Alai Garcia
Diniz. - Desterro, PlDrhinópolis: Cultura e Barbárie, 2012.
55 p- - (Coleção-Ruivos)

Tradução de: Lo que son los yerbales


Inclui bibliografía
ISBN; 978-85-63003-04-1

1. Literatura hUpano-americana. 2. Ensaios. I. Diniz, Alai


Garcia. II. Tirulo.

CDU: 860(7/8)

Catalogação na publicação p o r Onélia Silva Guimarães CRB -14/07Í

E d ito ra C u ltu ra e B arbarie


R. José João Martendal, 145 / 304
Carvoeira - 88040-420
Florianopolis/SC
editora@culturaebarbarie .org
w.culturaebarbarie.org
25
o QUE SÃO OS ERVAIS
’ Rafael B arrett

C o n ju n to de artigos publicados no jornal E l Diario.


na cidade de Assunção, sobre a situação e o cotid ian o
dos trabalhadores dos en^ais na T ríp lice Fronteira no
p eríodo de 15 a 27 de junho de T908.

T rad u ção do espanhol


por /\lai G arcia D in iz
A KSCRWI DÃO E O ESTADO
{El D ia r i o , 15 d e j u n h o de 19 0 8 )

É PRECISO QUE o MUNDO SAI BA dc uma vez por todas


o que acontece nos crvais. E preciso que quando se queira
citar um exemplo moderno de rudo o que pode conceber e
executar a cobiça humana, não se falo somente do Congo,
mas do Paraguai.
O Paraguai se despovoa. É castrado c exterminadt)
ñas " ou 8 mil leguas entregues à Companhia Industrial
Paraguaia, à Mate Laranjeira e aos arrendatários
e proprietários dos latifúndios do A lto Paraná. A
exploração da enn-mare descansa na escravidão, no
tormento e no assassinato. O s dados que vou apresentar
nesta serie de artigos destinados a ser reproduzidos nos
países civilizados da América e da Europa, devem-se a
testemunhas presenciais c foram confrontados entre
28 R.\fael Bakxe '1

si c confirmados uns com outros. Não cscolhi o mais


horrendo, mas o mais freqüente; não a exceção, mas a
regra. E aos que dinddem ou desmintam lhe.s direi;
“Venltam comigo aos er\'ais, e com seus olhos verão a
\erdade”.
N ão espero justiça do Estado. O Estado se apressou em
restabelecer a escravidão no Paraguai depois da guerra. E
que então tinlia eivais. Eis aqui o essencial do decreto de
1“ de janeiro de i8“ r:

O presidente da Republica, tomando conhecimento de que o.<


beneficiadores de ervas e outros r.amos da industria nacional,
sofrem constantemente prejuízos que lhes ocasionam o.s
operários, abandonando os estabelecimentos com contas
atrasadas...

Decreta;
Artigo t". ...
Artigo 2". Em todos os casos que n |icâo precisar separar-se dc
seus trabalhos temporariamente deverá obter... consenrimento
por meio de uma declaração Firmada pelo parrão ou capataz do
cstabclceimento.
Artigo 3". O peão que abandone seu traballio. sem este
requisito, será conduzido preso ao estabelecimento, .se assim
o pedir o patrão, onerando se a ele a conta dos gastos dc
renússão e demais que por tal estado origine.

Rivarola

iuan R. Gil
o QCE SÃO OS E rvais 29

o mecanismo da escravidão é o seguinte: jamais se


conchava o peão seni llie antecipar urna certa quantia que
o infeliz gasta no ato ou deixa para sua familia. Firma se
diante do juiz um contrato no qiial consta o montante
da antecipação, estipulando se que o patrão .será
reembolsado cm trabalho. Lma vez levado à selva, o peão
fica prisioneiro os doze ou quinze ajtos que, no máximo,
resistirá aos labores e às penalidades que lhe aguardam. E
um escravo que se vendeu a si mesmo. Nada lhe salvará.
Calcula-se de tal modo a antecipação, com relação aos
salários e aos preços dos viveres e das roupas no en^al, que
o peão, ainda que se arrebente, estará sempre em dhádas
com os patrões. Sc tentar fugir, se lhe caça. Se não se
consegue trazê-lo \'ivo, se lhe mata.
Assim se fazia em tempos de Rivarola.' .Assim se faz
hoje.
Sabe se que o Estado perdeu seus en'ais. O território
paraguaio foi repartido entre cjs amigos do governo
c depois a Industrial foi ficando com quase tudo. O
Estado chegou ao extremo de regalar cento e cmqíienta
léguas a um personagem influente. Aquela foi uma época
interessante de venda c arrendamento de terras e de
compra de agrimensores e juizes. Mas não nos importam

' Cirilo Antonio Rivarola Acosta, presidente do Paraguai de 1870


a 1871. (N.T.)
Rafael Barrett

agora os costumes políticos desta nação, mas o referente à


escravidão nos eiTais.
Na regulamentação de 20 de agosto de 1885, escret e -
se:

.\rtigQ u®. - 'lodo contrato entre o explorador da er\a e seus


peões. par?, que renha validade, deverá ser feito diante da
autoridade local respectiva, etc..

Nem urna palavra especificando que contratos são


legais e quais não são. O juiz continua pondo sua chancela
à escravidão.
Em 1901. ao cabo de trinta ano.s, rcvoga-sc
especialmente o decreto de Rivarola. Mas como 0
Estado não tinha en^ais, o not o decreto é uma nova
autorização, mais dissimulada, da escravidão no Paraguai.
Fica proibido ao peão abandonar o trabalho, sob pena de
danos e prejuízos aos patrões, .'\gora: o peão deve sempre
ao patrão, não lhe é possível pagar e, legalmente, ele é
detido.
O Estado teve e tem seus fiscais, os quais comumente
se enriqueceram de maneira rápida. Os fiscais vão aos
etTais para:
“1“) Reconliecer toda a jurisdição de sua seção: 2“)
Fiscalizar a elaboração da en^a; 3“) Cuidar para que os
industriais não destruam a plantação dc erv-a; 4“) Exigir
o Q L E SÃO OS E r v a [S 3'

que cada arrendatário lhe apresente a patente do rancho


arrendado, etc.".
Nenliuma ordem de verificar se nos en’ais se exerce a
escravidão, e se o operario é atormentado ou fiuilado.
Esta analise das leis é um pouco inocente, pois ainda
que a escravidão não se apoiasse na lei, de todas as
maneiras seria praticada. Na selva, o escravo está tão
desamparado como no fundo do mar. Don R. C., cm
1877. dizia que a Constituição se dctinlia no no Jejuy.
.Supondo que um peão tirasse de seu cerebro doente um
resto de independencia, e de seu corpo dolorido a energia
necessária para atravessar imensos desertos cm busca de
um juiz, encontraria um juiz comprado pela Industrial, a
Matte ou os latifundiários do .^to Paraná. As autoridades
locais compram-sc mensalmente mediante um soldo
extra, segundo me ratifica o senhor contador da Industrial
Paraguaia.
O juiz e o chefe comem, pois, no mesmo prato.
Costumam ser simultaneamente autoridades nacionais
e en'atciros habilitados. Assim o senhor B. A., parente
do atual presidente da republica, é chefe político de
San Estanislao e habilitado da Industrial. O senhor
M.. também parente do presidente, e juiz no feudo dos
senhores Casado, sendo empregado deles. O s senhores
R,^fael Barrett

Casado exploran! (3s campos do quebrachos’ por nielo da


escravidão. Ainda se recorda o assassinato de cinco peões
do quebracho que tentaram fugir em um barco. Portanto,
nada há que esperar de um Estado que restabelece a
escravidão, com cia lucra c com frcqüência vende a justiça.
Oxalá me equivoque.
E entremos agora nos detalhes dos fatos.

RrXRüTAMF.NTO
{ f íi. D , 17 de j u n h o de 1908)
ia r io

De quinze .a vinte mil escr.avos de diferentes sexos


0 idades se extinguem atualmente nos ervais do Paraguai,
da Argentina e do Brasil. As très repúblicas estão sob
idêntica ignomínia. São mães negreiras de seus filho.s.
Porem, o escravo torna-se rapidamente um cadáver
ou um espectro. Há que scr renovada constantemente
a polpa fresca no lugar, para que não falte o sumo. O
Paraguai foi sempre o grande provedor da carne que sua

* Do quebracho (quebracho schinopsis) se extraía o tanino. m a­


téria indispen.sável para a industria de curtume. Segundo Melo e
Silva, a extração desse produto deu-se inicialmente na Argentina e
Paraguai (1895) e só ein 1935 o Bra.sil instala a primeira fábrica na
região; Florestal Brasileira (Mello e Silva, José de. Fronteiras gua­
ranis (com um estudo sobre o idioma guarani ouAvañe-é. São Paulo:
Impren.sa Metodista, 1939. p. 228-229). (N.T.)
o Q L E SÃO OS E r NAIS 33

ouro. É que aqui os pobres já são mais ou menos escravos.


Carne escremecida pelas úlrimas chicoradas do chefe
político e as últimas patadas do quartel, carne escura e
triste, que liá em ti? A sombra da tirania e da guerra?
fatalidade da raça? Crianças doentes, que o vicio, fêmea
ou álcool, consola um instante na noite sinistra cm que
voces naufragaram. Quem terá piedade de vocês? Deus
meu! Tão desgraçados que nem sequer se espantam de sua
própria agoiria! Não. Essa carne é sagiada; é a que mais
sofreu sobre a terra. Salvá-la-emos também.
Enquanto i.sso, está sobre o balcão, oferecida ao
lárego do agente crvateiro. No Paraguai não é necessário
aguardar, como na índia, que a fome ou a peste abata a
vida humana. O mcoletir^ da Industrial examina a presa,
mede a e a pega, calculando o vigor de seus músculos
c o tempo que resistirá. Engana a - coisa fácil e a
scdu/.. Pinta o inferno com cores de Eldorado. Ajusta a
antecipação, às vezes pagável em mercadoria desviada da
empresa, estafando assim o peão antes dc contratá-lo. Por
fim. fecha-se o acordo. O coveiro conquistou seu cliente.
E tudo com as formalidades de um ingresso em
jiresídio. O juiz assessora a escravidão. Vejam-se os
fonniilários impres.sos da Industrial e da .Mate Laranjeira.
Em Posadas e \'illa Encarnación, importantes mercados

®Do francês, “agente de recrutam ento”. (N.T.)


34 Rafael Barrett

de brancos, instalam-sc escritórios antropométricos


a sem ço dos empresários, como se a selva não fosse
suficiente para aniquilar toda esperança de fuga.
Entretanto, durante algumas lloras ainda, a vítima ó
rica c livre! ,\maiiliã, o trabalho forçado, a fadiga infinita,
a febre, o tormento, o desespero que não acaba senão com
a morte. Hoje, a fortuna, os prazeres, a liberdade. 1 loje,
viver, viver pela primeira e última vez! E a criança doente
sobre a qual vai se fecliar a verde imensidade do bosque,
onde será para sempre a mais fustigada das bestas, reparte
seu tesouro entre as chinas-' que passam, com|ira em
dúzias frascos de perfume que atira sem esvaziar, adquire
uma loja inteira para dispersa la aos quatro ventos, grita,
ri, dança ai, frenesi funerário! abraça-se a rameiras tão
infelizes quanto ele, embriaga se em um afã supremo de
esquecimento, enlouquece, .'\lcool asqueroso a dez jicsos
o litro, fêmea roída pela sífilis, eis aqui o sorriso derradeiro
do mundo dos condenados aos ervais.
Com o exploram esse riso, bandidos! A antecipação,
paga com dez, doze, quinze anosde horror, depois dosquais
os sobreviventes não são mais que mendigos decrépitos,
que invenção admirável! A antecipação c a glória dos
alcagüetcs da avareza milionária. Assim se captam os
mártires das seringueiras bolivianas c brasileiras, dos

•> Pessoa com caiacterisücas fisicas indígenas, no espanhol do


Paraguai.
o QUE SÃO OS E k v a is 35

engenhos do Peni. A.s.sim se capram a.s jovens do centro da


Europa, prostituídas cm Buenos Aires. A antecipação, a
divida, c a cadcia que arrasta de lupanar em lupanar, como
a arrasta o peão de um habilitado a outro. \ antecipaçãão!
Um jov'cm cm Caacupé é contratado pela ^4ate à razáis
de 150 pc.sos mensais. Oferecem uma antecipação, ele a
rejeita. I..e\ am o de.sgraçado a 80 leguas de Concepción,
ali Ihe dizem que do salário há que deduzir-se a comida, a
não ser que se aceite a antecipação. O jovem verifica que
■ scii trabalho não consegue saldar seu miserável guisado e
por milagre consegue escapar e regressar a seu potmado.
A antecipação! A Industrial alegará que seus peões ¿/evem
a ela. sobre o Paraná, um milhão de pesos. Deduzam o
que a empresa roubou a sua gente desde que a encerrou
e vocês obterão o preço bruto dos escravos. Um bom
escravo custa hoje apro.vimadameiite o que custava antes;
de trezentos a quinltentos pesos.
A antecipação foi cobrada e dissipada. Lasciate ogtü
sperauza'. Agora. 0 arreio.' O rio; a pontapés c chicotadas
os encai.xam a bordo. E o gado da Industrial. Centenas
de seres humanos em cinqüenta metros. Bazófia imunda,
escorbuto, diarréia negra, e a trabalhar pelo caminho!
Adole.scentcs esquálidos descarregam 0 buque; sobem em

’ “A m o ” . 110 original; utilizada com sentido de recrutamento,


daí 0 título da crônica, mas também porta referência ao ato dc ar­
rear (animais). (N.T.)
3Ô Rafael Barrett

quatro patas as barrancas com 8o Idlos às costas. E eles


têm que ir se acostumando.
O monte; a tropa, o rebanho de peões, cora suas
mulheres c seus pequenos, se a família é permitida. A pé.
e o en'al está a cinquenta, a cem léguas. Os capatazes \ ão
a cavalo, revolver na cinta. São chamados tropeiros ou
contadores. O s habilitados que transpassam o negiicio
escrevem: "com tantas cabeças”. E o gado da Industrial.
E o gado escasseia. E forçoso perseguir os jovens
paraguaios em Villa Concepción c \Sllarica. Os
departamentos de ervais, Igatimi, San Estanislao,
converteram-se cm cemitérios. 'Frinta anos de exploração
e.xtcrminaram a virilidade paraguaia entre o 'Febicuari
sul e o Paraná. "Fucurú-pucú foi despovoado oito vezes
pela Industrial. Quase todos os peões que trabalharam
no alto Paraná de 1890 a 1900 morreram. De 300 homens
levados de Villarica em 1900 aos ervais de Tormenta, no
Brasil, não voltaram mais que 20, ,\gora, alastram-se pelas
Missões argentinas, Corrientes e Entre Rios.
No Paraguai, fieam os menores de idade, e também o.s
levam. 70% dos eaptados para o .'\lro Paraná são menores.
De 1903 até hoje (1908). foram uns dois mil de Villa
Encarnación e de Posadas: troo eram paraguaios. Restam
uns 7 00 , dos quais apenas uns 50 saudávets. Naniralmente.
ninguém, pois, opõe-se a semelhantes infâmias. Esta é a
o QUK SÃO OS E r VAIS 37

verdade feroz: remos que defender nossas crianças das


garras usurarias que estão esquartejando o país.

O JUGO K.Ã SELV.Ã


{El D ia r io , 2 0 de ju .v h o de 1908)

N em sempre se recruta a PEÃOZADA mediante


contrato previo. As vezes, os racoleurs preparam noticias
de recrutamento militar ou de revoluções e oferecem ao
cándido camponês um refúgio nos ervais. dais ocasiões
de adquirir grátis a fazenda humana são facilitadas se o
empresário, entcndendo-sc com as altas autoridades
do pais, dispõe de força publica, não só para assegurar
fraudes e contrabandos, mas para organizar razzias^ que
arreiem os que querem vir, c cacadas que cobrem aos
que querem ir-se. Recentemente, a Matte Laranjeira fez
um pacto desta natureza com Bentos Xavier, ao qual
adiantou fiindos para que derrotasse um governador
pouco complacente no M ato Grosso.
Seja por um sistema, seja pelo outro, o peão acabou
na selva. Contra uma, há mil probabilidades de não sair.
.Antes, hat'ia a suspensão de trabalho de fim de agosto até
dezembro. Dava-se licença ao pessoal, acrescentando o elo

Palavra francesa de origem árabe, significa “ataque ou cam-


panlia m ilitar”. (N.T.)
3« R vfaei.B.wrett

de lima nova anTccipação à antiga cadeia. Mas a Marte


suprimiu essa semi-libcrdade de dois ou três meses. Era
um gasto inútil: com a antecipação primitiva bastava c
sobrava! A Industrial imita à Marte; no ano passado não
.suspendeu a safra. Podc-sc afirmar ao pc da letra que o
operário não voltará da selva até que tenha suado todo
seu sangue e o despeçam por usado, convertido não em
um velho, mas na sombra de um idoso, se é que não o
fu/ilaram como desertor, ou não o encontraram morto
uma manliã e jogaram no rio o seu cadáver.
A selva! Dela os negreiros cm levitas" que passeiam
pelas ruas de .Assunção, de Buenos Aires ou do Rio de
Janeiro extraem enormes fortunas, c a cia não chega
uma rajada espiritual, um eco da cultura, um consolo
da sociedade não perdida. Kas cinco mil léguas do .Alto
Paraná, não há mais que um juiz comprado pela Industrial
e um professor de escola, o de l'ucurú-pucú. Jurem sem
medo que ao mestre não lhe subvencionam! Nessas
cinco mil léguas, não há um boticário nem um médico.
Se os médicos manejassem o látego ou o fuzil, haveria!
Dois tipos de extrema degcncração: o cscra\'0, pobre
besta assustada, c o habilitado, besta feroz, proxeneta da
avareza urbana. Eis aqui tudo o que a humanidade deixou

’ Tipo de roupa masculina em moda no século XIX. (N.T.,1


o ql:e são o s E rvais 39

na selva. Que importa! Esses dois tipos são suficientes


para constituir nossa citálização legal: provem o ouro.
A selva! A milenar camada de húmus, banhada na
transpiração acre da terra; o monstro inextricável, imóvel,
feiro de milhões de plantas atadas num só nó infinito; a
úmida .solidão onde a morte espreita e onde o horror
goteja como nas grutas... A selva! z\ rama serpente e a
elástica zarpa e o devorar silencioso dos insetos invisíveis...
Vocês, os que sc apagam num calabouço, não invejem o
prisioneiro da selva. A vocês, ainda lhes c possível deitarem
em um canto para esperar o fim. ,A ele, não, porque seu
leito ê dc e.spinhos envenenados; mandíbulas inumeráveis
e minúsculas, engendradas por uma fermentação
infatigável, que Ute dissecarão vivo se não vai embora. ,A
vocês, só um muro os separa da liberdade. ,'\ ele, o sej^ara
uma imensa distância, os muros de um labirinto que não
.se acaba nunca. Meio nu. desamparado, o operário do
crval é um vagabundo perpétuo dc seu próprio cárcere.
Ele tem que andar sem parar e o caminho é uma luta; tem
que avançar de foiçada cm foiçada e a vereda que abre
com a foice torna a se fechar detrás dele como uma estrela
no mar!
Assim trabalha, escavando no bosque suas galerias de
topeira, estendidas: ¿n picada cm picada, buracos cm fundo
de saco por onde busca c traz a erva. Ele de.sgalha. junta c
carrega a ramagem ao fogão. Arrasta-se penosamente sob
40 R.\fael Barrett

O peso que Ihe abruma. Reduz se a isso a estúpida tarefa


do erval, a de urna muía que focinha diante de seu caminlio
de retorno. A paragem se chama vmia. c o peão. mineiro. A
Cámara de Apelação paraguaia opinou que o erval c urna
mina. Esta designação terrível c mais eloqüente que tudo.
Sim: há minas ao ar livre e sob a luz do sol. O homem
desaparece, sepultado .sob a cobiça humana.
O mineiro desgalha e earrega de dia. De noite - porque
se pena de dia e de noite no crv'al! - passa ao fogão, sapeca
a folhagem, quer dizer, tosta-a na chama, abrasando-sc
as mãos, de.sfolha a rama, destroçando-se os dedos: pisa
a folha no terreno, amarrando com riras dc couro a carga,
que levará nas costas até a balança onde será pesada...
Sabem quantas folhas a Marte l.aranjcira c a Industrial
Paraguaya exigem diariamente do mineiro? Oiro arrobas
no mínimo! O ito arrobas ao ombro, trazidas dc légua
em légua pela picada! Quando o mineiro solta o feixe,
ninguém sc aproxima do desgraçado, que comumente
desfalece no solo. Os capatazes respeitam-no nesse
instante. Um desespero sem nome apodera se dele, e seria
capaz de assassinar. .A lástima c que jamais o faça. que
jamais execute seus verdugos.
.'\gora, 0 barbacuá, o forno rudimentar no qual se
ferve a folha. Lá no alto, sobre a boca fulgurante, o ura
eiacarapitado, respirando fogo, vigia a queimação. Quantas
vezes caiu desmaiado e o reanimaram a pontapésr O
o guE SÃO os Erva]

trabalho mais cruel c rah-cz o carregamento da lenha ao


barbacuá, setenta oii oitenta qui los de troncos grossos, sob
os quais, no caK’ário de urna longa caminhada através da
selva, as costas desnudas sangram. E, a carne crepita nua
no erval, porque ali as camisas são muito caras!
.Acrescentem o e.vército dos peões, atacadores
de mboroviré. tropeiros de carreta, picadores, boyeros
[condutores}, expedicionários desprovidos do mais
necessário, obrigados a cruzar desertos e pântanos
intermináveis; chateros a quem se paga pela viagem de um
mês e que regressam entorpecidos pelas secas, depois de
três ou quatro meses de combate águas acima, com o peito
tumefacto pelo uso da zinga. Somem tudo isso e vocês
obterão a turba maldita dos eivais, agitando-se quatorze,
dezesseis horas por dia, para a qual não há domingo, nem
outro feriado que a Sexta-feira Santa, recordação do
martírio dejesus, pai dos que sofrem...
E essa gente, o que come? De que maneira é tratada?
Que salário recebe e que ganlto produz aos habilitados e
à empresa?
Responde lo é revelar uma série de crimes. Passemos
a isso.
4^ R.\faiílBarrett

D e g e n ERAÇÃo
{E l D ia r i o , 23 de j u n h o de 1908)

P rrscrute;,m sob a sei .va: voces v io descobrir um


fardo que caminha. Olhem sob o fardo; vão descobrir
uma criatura agoniada em que já vão apagando os traços
de sua espécie. Aquilo não é mais um ser humano: é apenas
um peão en-ateiro. Talvez haja nele rebelião e lágrimas. Já
foram vistos mineiros chorarem com a carga nas costas.
Outros, impotentes para o suicídio, sonham com a evasão.
Pensem que muitos deles amda são adolescentes.
Seu salário é ilusório. O s criminosos podem ganhar
dinheiro eni alguns presídios. Eles não. T êm que comprar
da empresa o que comem e os trapos que usam. Em
outro artigo, eu informarei a vocês dos preços. São tão
e.Korbitantes que o peão, ainda que se mate trabalhando,
não tem probabilidade de saldar sua dívida. Ano a ano. a
escravidão e a miséria se afirmam mais ii remediavelmente
cm uma única maldição. 90% dos peões do Alto Paraná
são explorados sem outra remuneração que a comida. Sua
sina é idêntica a dos escravos de dois séculos atrás.
E que comida! Em geral se reduz myapará, mistura de
milho, feijões e charque (carne velha) e sebo. Topará de
manhã e à noite, a semana toda, todo mes, o ano inteiro.
Alimento tão ruim e tão exclusivo bastaria por si mesmo
para danificar profundamente o organismo mais i'obusto.
o gt-E SÃO os E rvais 43

Mas, além disso, rrata-sc, sobretudo no /Vito Paraná,


onde os horrores que conto chegam ao inaudito, de
alimentos mcio podres. O charque, elaborado no sul do
Paraguai, contem terra c vermes. O milho e os feijões são
da pior (jualidade c transportados de longas distâncias,
acabando por apodrecer. Esta é a mercadoria resen'ada
especialmente à gleba dos ert'ais e levada de contrabando
de um país a outro pek« honoráveis bandoleiros da alta
banca. /\ssim se come na mina, nenhuma agricultora
civilizada consentirá em cevar com semelhante bazofia
seus porcos.
A moradia do operário do erval é um toldudio para
muitos, cobeito de rama de pindó. V'is'er ali é viver sob
a inrempéne. Dorme se no chão sobre folhas mortas.
Com o fazem os animais. A chuva o empapa todo. O vapor
mortífero da selva penetra até os ossos.
Acrescenta-se, à fome e à fadiga, a doença. Esta horda
de alcoólatras e sifilíticos treme continuamente de febix'.
É o chucho dos trópicos. A terça ]tarte torna-se tísica sob
a carga de trabalho que atiram para cima deles.
Ai! E as delicias miúdas? Ayarará, cobra rapidíssima e
mortal: as aranhas e os escorpiões que caem do teto. O euf,
inseto impetccptívcl que abraça a epiderme: o yatehípytá.
carrapato colorado que produz chagas incuráveis: a ura dos
cr\-ais. mosca grande e peluda, cujos ovos, abandonados
sobre as roupas. desenvoKxm se no suor e enam sob a
IIafael Barrett

pele vermes enormes que devoram os músculos; a legião


terrível dos mosquitos, desde o ñati'u. cabayií ao mbarigüi
e ao microscópico mbigüi que se levanta em nuvens sob
os charcos c provoca acessos de loucura nos infelizes
privados ate do leve bálsamo do sonho... C'oinprecnderáo
que o mosquiteiro é demasiado caro para o escravo dos
ert'ais; é o negreiro empreuirio da capital que o usa.
Com que tentará o peão erx ateiro consolar suas doresr
Com a mulher....^ Nas zonas do norte, a Industrial não
o permite. Ñas do Sul, sim. Por um lado, Ihe convém
fer novas bocas a quem vender o hediondo grudc do
yapará. Por outro lado, Ihe irrita que o trabalhador se
distraia. Em alguns lugares, é negocio levar fémeas; cm
outros, não. Sempre se proíbem as galinhas. Pretexte.):
causam transtornos nas mudanças dos harhacuás. Motivo
real: evitar a rodo custo que o servo goze de qualquer
propriedade.
y o% das mulheres da mina são prostitutas profissionais;
apesar da fome, da fadiga, da doença, e da pro.stÍTuição
em si, estas infelizes parem, como as bestas parem
em suas tocas. Crianças desnudas, magras, enrugadas
antes de ter aprendido a ficar cm pé, extenuados pela
disenteria, formigam no lodo, lan'as do inferno a que,
vivos ainda, foram condenados. io% atingem a virilidade.
A degeneração mais espantosa abate os peões, a suas
mulherees e a seus filhos. O erval extermina urna geração
o QfE SÃO OS Ek\AIS 45

cm quinze anos. .\os qnarcnta anos de idade o hoincm


se converteu eni utti mísero despojo da avareza alheia.
Dei.xou nelc a lona de .sua carne. Caduco, embrutecido
até o e.xtremo de não recordar quem foram seus pais. é o
que .se chama “um velho peão”. Seu rosto foi uma lívida
máscara, logo tomou a cor da terra, por último o da cinza.
E um morro que anda. E um cx-empregado da industrial.
Seu filho não necessita ir aos cribáis para adquirir os
estigmas da degeneração. A descendencia se extingue
prontamente. Fez-$e algo mais com o operário que Ihe
son’er a medula: ele foi castrado.
Entretanto, o peão Velho é unía raiidade. (Arstuma-
se morrer na ¡nhui antes de tornar-se v'clho. Um dia o
capataz encontra sua vitima habitual deitada. Empenha-
se em levantá lo a pauladas e não o consegue. Ele
fica abandonado. Os companheiros \ão trabalhar e o
moribundo fica só. Está na selva. E o empregado da
Industrial, devolvido diabólicamente pela escravidão k
vida selvagem. Grita, miserável! Ninguém o ouvirá. Para
você não há .socorro. V'océ expirará sem uma mão que
aperte a sua, sem uma te.stemunha. Sozinho, sozinho,
sozinho! Os réus têm assistência médica, e antes de subir
ao patíbulo se oferece a eles um copo de vinho e um padre.
,'\i! Você não é um criminoso. E apenas um operário. Você
e.xpirará na solidão da selva como um animal ferido.
4Ó R afael Barrett

Desde a guerra, rrinta oii quarenta mil paraguaios


foram bemfkiados e aniquilados assira nos en'ais das
três nações. Quanto aos que atualmente sofrem o jugo,
muitos deles menores, conforme expliquei, um dado será
suficiente para pintar seu estado. São muito inferiores
aos índios em inteligência, energia, sentimentos de
dignidade c em qualquer aspecto que se lhes considere.
Eis aqui o que as empresas en^ateiras fizeram com a raça
branca. Entremos agora no monstruoso; o tormento e o
assassinato.

T orm ento e ass .\ssinato


{El D ia r io , 25 de ju n h o de 1908)

“\qui só há um Deus: eu", Diz de uma vez por todas


o capataz ao novo peão. E sc não bastasse o chicote para
demonstrá-lo, o revolver do feitor o demonstraria. No
erval não se fala, castiga se.
Quando em plena capital a policia tortura os presos
por “amor à arte”, acreditam que seja possível que não se
torture o escravo na selva, onde não há nenhuma outra
testemunha que a natureza idiota, e onde as autoridades
nacionais servem de verdugo, postas à serviço da cobiça
mais vil c mais desenfreada?
O que são os E r\'ais 47

Cnminhe, carregue, sue c sangre, carne maldita! Que


importa que vocc caia extenuado e morra como a vellia
rês à margem do pantano? Você é barato e se encontra
em toda parte. .'\.i de vocc se se re\'oIta ou se se ergue em
um espasmo de protesto! A i do asno que se esquece uin
momento de ser asno.
Ai então, á fonie, à fadiga, à febre, ao mortal desalento
se acrescentará o açoite, a tortura com seu material
simstro e complicado. Conheceram a inquisição política
e a religiosa. Cionheçam agora a mais infame, a inquisição
do ouro.
íVr que mencionar os gritos c o cepo? São clássicos no
Paraguai, e não sei por que não constituem o problema
da justiça, em vez da inepta matrona da espada de
papelão e da balança falsa. Em Yaguatirica, se admira o
celebre cepo da empresa .VI.S. Um cepo menos ciismso
é o de laço. 'lãmbém se costuma muito estirar os peões,
isto é, amarrá-los pelos t]uatro membros muito abertos.
Ou então são pendurados pelos pés a uma án'orc. O
estaqueamento é interessante: consiste cm amarrar a vírima
p>elos tornozelos c pelas munhecas a quarro estacas, com
correias de coro cru, ao sol. O couro encolhe e corra o
músculo; o coi-po se desconjunta. Chegou-se a estaquear
os peões sobre tacurus.^ aos que se haxáa colocado fogo.

*Ninlio de cupim branco. (N.T.)


48 Rvt'AK!. R a RBKTT

Pena minha, nao trema, vai cravando até o pulso! Mas


05 miseráveis que executo não tem sangue nas veias, vnas
pus, e 0 cirurgião se enche de imundície.
E raro que o peão tente escapar. Isto exige uma energia
que estão muito longe de ter os degenerados do erval.
Se o caso ocorre, os habilitados armam comissões nas
companhias (soldados da nação) c caçam o fugitivo. Uns
habilitados avisam os outros. O lema c; "trazê-lo \-ivo ou
morto."
-Alt! A alegre caçada liumana na selva! As mensagens
levadas aos postos vizinhos!
'‘A noite, fugiram-me dois. Se saem por esses rumos,
metam-lhe hala" (te.xtual). N o ano passado, nas Missões
argentinas, assassinaram sete operários, um dos quais era
um menino. Em Ponta Porã. quando a delegacia dá por
fugido um trabalhador - “fugido" significa “degolado".
Há dois meses, o patrão D. C., habilitado da Marte
Laranjeira, que tinha comprado a amante de um peão
por seiscentos pesos, teve o desgosto de saber da fuga
da fêmea com seu antigo amante e um irmão dele. D.
C. perseguiu os com gente armada de Winchester, e uni
dos peões morreu em seguida. O outro foi arrematado à
facada. Costuma-se fazer fogo sem dar aviso. A s empresas
sacrificam não somente peões, mas os demais cidadãos
que não fazem sua vontade. A Industrial Paraguaia,
famosa cm Tacurú-pucú por suas atrocidades, expulsou
o QUK, SÃO OS K rvais 49

recentemente as familias do pcjvoado para apoderar se


das plantações de cana, e tendo -se oposto a isso, o senhor
E. R. foi morto na porta do quarto pela polícia.
Todos estes crimes ficam impunes. Nenhum juiz se
ocupa deles c se tivesse se (K’upado ocorreria o mesmo.
È um vendido!
Espanta me pensar nos assassinatos que a .selva oculta.
.As picadas estão semeadas de cruzes, a meratlc das quais
assinala o lugar onde sucumbiu um menor de idade.
Muitas dessas cruzes anônimas recordam uma caçada
terminada por um fuzilamento.
E ape.sar das mil probabilidades contra uma que a
desertor (é essa a designação consagrada pelo uso) tem de
perecer, o sonho do mártir dos crv'ais c evadir se, ganhar
a fronteira ou os campos, a região livre que brilha a
cinqüenta. a cem. a cento cinquenta léguas de distância...
Léguas de monte cerrado, de pântanos, léguas que é
preciso cruzar sem roupa, débil c tremulo, como uma
ratazana que os cães rastream... O escravo não dorme,
agita seus pobres ossos sobre a ramagem sórdida que
lhe serve de cama. e agita as esperanças loucas cm seu
cérebro dolorido. O silêncio da noite o convida. O poder
formidável do ouro. que ele mesmo arrancou à terra,
lhe dcTcm. A Empresa recobrou desertores que depois de
quatro anos ou cinco de ausência acreditavam se salvos.
■ AEmpresa é mais forte que tudo. Para que ir de encontro
50 K,\fael Barrett

à morte? Mellior desfalecer pouco a pouco, perder gota a


gota a savia da vida, renunciar a não ver nunca mais o vale
em que se nasceu.,. No dia seguinte o escravo irá trabalhar
c oferecerá ao empresário as oito arrobas regulares, .^i!
Para pretender fugir dos eivais é preciso ser um herói ou
não estar em seu juízo perfeito.
Deste modo, o opulento canalha que triunfa em nossos
salões extermina sob o jugo imlhares de paraguaios ou os
fuzilam como a chacais do deserto, se buscam a liberdade.
As gerações de escravos duram pouco, mas os negreiros se
conservam bem. .Aqueles que eu acuso são os de cima. Eles
são os verdadeiros assassinos, e não os habilitados nem os
capatazes. O s responsáveis são os chefes do bando, porque
são os que menos riscos correm e os que mais lucram com
o crime.
E eis aqui oque me falta: detalhar o butim da escravidão,
e mostrar entre quem c como ele é repartido.

\ PILHAGEM
(/?/. D ia r io , 27 o e j u n h o de 1908)

A Industrial Paraguaia podería servir de e.vcrnplo


típico.
Começou com quatrocentos mil pesos.
o QUE SÃO OS K r v a is

Quem não sabe dos acordos da Industrial para


apoderar se das terras, os ei'vais convertidos cm campos
c os campos convertidos em ervais, os montes e os rios
desaparecendo do mapa e surgindo a cem leguas de onde
deveriani estai; os i'einates c as vendas, não de terrenos,
mas de agrimensores c de juízes?
Ao ineu alcance está um plano do departamenro de
\'illa Concepción, documento curioso em que se marca
o escamoteio de doze leguas de ervais por meio de
retificações de medidas em propriedades anteriores, a
fim de l eclamar a compensação de um novo cn'al de doze
leguas que seria para’ pescar sem desembolsar um centavo.
E a estafa se realizou c mil como esta. Entretanto, o teiTÍvel
é que o Estado, que não soube defender o território, nem
sabe hoje sequer que a Empresa contrabandeia para a
.-Vrgentina milhões e milhões de arrobas, não soube nem
sabe proteger a carne inocente dos cidadãos, E a Industrial
tem anualmente a quantidade de vítimas que necessita
para levar a cabo uma das mais abjetas e.splorações do
mundo moderno.
Eis aqui o quadro dos salários medios que a Industrial
paga atualmente cm moeda paraguaia. ,As cifras são
apro.ximadamente as mesmas nas ourras empresas. Os
erateiros formam hoje um tnist invencível e fixam os
preços que desejam. Não há competição que alivie a sina
do escravo:
52 Rakaei.Barret

Mineiros por arroba................................................................o,6o


Barbacuá por arroba............................................................... 0,2c
Atacadores e maquinistas por mês....................................... 45-00
Capatazes por mcs........................................................... tio.oo
Tropeiros por mês.................................................................“o,oo
Guias por mês........................................................................55-oo
Condutores por mcs............................................................. 60,00
Balseiros. por viagem (um a três meses).............................. 90,00
Peões vários a........................................................................ 30.00

Estes infelizes tem que comprar quase sempre da


empresa o imundo alimento que comem, e sempre os
andrajos com que se vestem. E com que preços!
Fiapos de carne com ossos custam o que custa a carne
sem ossos em Assunção. Uma libra de sebo custa um
peso c cinquenta. Uma libra de farinha dc quarta cla.sse,
dois pesos. O milho chegou a dois pesos a libra. A roupa
é um escândalo. Um metro dc pano do pior tipo, quinze
pesos; vale três. Uma calça do pior tipo, vinte pe.sos:
vale quatro. Uma camisa do pior tipo, quinze pesos;
vale três. Um chapéu do pior, sessenta pesos; vale doze.
Um poncho(ideal do paraguaio), duzentos pesos, vale
.sessenta. Uma caixa de fósforos, um peso.
Tomemos o melhor caso, o de um mineiro eximio que
carrega trezentas arrobas por mês. Ele ganhará cento e
oitenta pesos. Sutraiam o que ele que gasra para mal se
alimentar e para cobrir sua nudez. F. com que fica? Trinta
o QUE SÂO O S l^RVMS 53

ou quarenta pesos no máximo, com o que demorará


anos e anos para saldar a antecipação de rail a dois mil
pesos com que foi recrutado. A sina dos outros pcõc.s
é incomparavelmente pior. Muito,s ficam reduzidos a
alimentar se de água, feijão e sal cora esperança de se
salvar algum dia. V'ã esperança!
Observem que os salários não cresceram muito ile
quinze anos para cá, no entanto o ouro atinge a mil e
quinhentos. Naturalmente! A Industrial embolsa em
ouro seus lucros e cobre seus gastos em papel. Convem
a essa e às demais empresas exportadoras que o ouro
suba. Puseram-se de acordo com os agiotas e o ouro
sobe, e subirá até onde deseje esse grupo de bandidos que
ninguém decide colocar na prisão.
Um cálculo simples, recordando o número dc bolsas
que um arador despacha diariamente c as que uma carreta
ou uma balsa transpoita a uma distancia média de trinta
léguas, com o valor comum do im'ólucro, dá ura preço
máximo de 2.50 pesos para a arroba de cn ’a pronta para
ser exportada.
E ainda este preço de custo é nominal. A Empresa
paga os salários em mercadoria, roubando uns 300%
(mercadoria de contrabando no A lto Paraná). Não são
estes negócios os de menor importância aos olhos da
Industrial, que e.xpulsou os habitantes dc 'lucurü-pucú
de suas casas, para que ela vendesse cana sozinlia. Agora a
54 R\fAEL B arrett

destila, vende-a a to pesos o litro, e a revende à peãozada


por meio de cortesas que cobram três pesos a polegada de
álcool. O operario retira a crédito unía camisa, empenha -a
e a bebe eni troca de uiis minutos de esquecimento. A
Industrial ocupa todos os balcões!
Não é só isso. A Industrial usa de duas arrobas
diferentes, unía de on/e quilos e meio para o peão e outra
de dez quilos para ela. Se o mineiro traz ao barbacuá oito
arrobas e dezenove libras, não lhe pagam as libras, e ai dele
se não traz as oito arrobas!
Conhecem o patrão negieiro, o patrão que tortura, o
patrão que assassina. Este é o patrão ladrão. Aqui é onde
rev'ela o fundo de sua alma.
Então, admitimos como preço dc custo da arroba dois
pesos.
A Empresa vende por trinta.
Entre as duas cifras 2 e 30, introduzam o berço feroz
dos intermediários suce,ssivos c martelem a máquina!
Embaixo fica o peão.
O primeiro intermediário compra por dois e vende por
quatro, o seguinte compra por quatro c vende por sete.
A empresa compra por sctc e vende por trinta. Assim sc
divide a pilhagem da escravidão. Então, não estranhemos
que os intermediários enriqueçam c que a Industrial
recolha cinco milhões anualmente e extraia 44% dc
utilidade.
o QUE SAO OS RnVAIS 55

O s diretores da Industrial são exímios banqueiros.


Saquearam a terra e exterminaram a raça.
N ão construíram uma estrada.
Para que? 44% de utilidade! Já disse tudo.
Acuso os administradores da Industrial Paraguaia e das
outras empresas de enxiis de espoliadores, torturadores
de escravos e homicidas. Maldigo seu dinheiro manchado
de sangue.
E eu anuncio a vocês que não continuarão desonrando
durante muito tempo este país desgraçado.
D e q u in z e a v in te m l! e s c ra v o s d e d ife re n te s sexos e
idades se extinguem a tua lm ente nos ervais do Paraguai, da
A rgentina e d o Brasil. A s três repúblicas estão sob idêntica
igno m ín ia . São niSes negreiras de seus filhos. Porém , o
escravo torna-se rapidam ente unn cadáver ou u m espectro.
H á que ser renovada constantem ente a polpa fresca no luèar,
p a a q ue n ã ò fa lta o sum o. O Paraguai foi sem pre o grande
provedor da carne q ue sua ouro, É q ue aqui os pobres jã são
m ais ou m enos escravos. Carne estrem ecida pelas littim as
jêfeicoíadas do chefe político e as últim as patadas do quartel,
carne escura e triste, q u e há em ti? A som bra da tiraina e da
guerra? A fatalidade da raça? Crianças doentes, q ue o vicio,
fêm ea ou álcool, consola um instante na noite sinistra em
que vocês naufragaram . Q u e m terá piedade de vocês? Deus
m eid Tã o d e ^ r a ç a d o s q u e nem sequei se espantam de sua
p ró p ria a g onia ! M ão. E ss a c a rn e ã sa gra d a , é a q u e m a is
sofreu sobre a terra. Saivã-la -em os tam bém .

Cultura e Barbárie

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