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Boneco do livro de artigos

Primeira Parte
Uma questão terminológica

David Brion Davis. Antiescravismo ou abolição?......................................... 6

Segunda Parte
O legado de Eric Williams: Capitalismo e escravidão

Seymour Drescher. O “declínio do sistema escravista britânico


e a abolição do tráfico................................................................................ 12

Howard Temperley. Eric Williams e a abolição:


o nascimento de uma nova ortodoxia....................................................... 36

Segunda Parte
Abolicionismo: novas abordagens

David Brion Davis. Capitalismo, abolicionismo e hegemonia................... 66

Moses I. Finley. A ideia de escravidão...................................................... .... 85

Seymour Drescher. O debate sobre o abolicionismo: capitalismo

e abolicionismo como um problema de interpretação histórica...................... 93

Howard Temperley. Capitalismo, escravidão e ideologia.............................. 118

Howard Temperley. Abolicionismo como uma forma de imperialismo cultural 147

David Brion Davis. Escravidão e “progresso”............................................... 164

Nicholas Hudson. “Britânicos nunca serão escravos”: mito nacional,


conservadorismo e os primórdios do antiescravismo britânico....................... 181
David Eltis. Os europeus e a ascensão e queda da escravidão
africana nas Américas: uma interpretação……………………………………. 205

1
Quarta Parte
Religião, missionarismo e abolicionismo

C. Duncan Rice. O contexto missionário do movimento abolicionista britânico 241

J. William Frost. Introdução às origens quacres do antiescravismo............ 257

Andrew Porter. “Comércio e cristianismo”: a ascensão e


queda de um slogan missionário do século XIX......................................... 281

2
Relação dos artigos originais:

DAVIS, David Brion. Antislavery or Abolition? Reviews in American History, v. 1, n.


1 (mar., 1973), p. 95-99. Trata-se de resenha do livro Abolitionism: A New
Perspective, de Gerald Sorin (New York: Praeger Publishers, 1972).

DRESCHER, Seymour. Le “déclin” du système esclavagiste britannique et l’abolition


de la traite. In Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 31, n. 2, mar.-abr., 1976, p.
414-435.

TEMPERLEY, Howard. Eric Williams and Abolition: The Birth of a New Orthodoxy.
In SOLOW, Barbara L.; ENGERMAN, Stanley L. British Capitalism and
Caribbean Slavery. The legacy of Eric Williams. Cambridge, Cambridge University
Press, 1987, p. 229-257.

DAVIS, David Brion. Capitalism, Abolitionism and Hegemony. In SOLOW, Barbara


L.; ENGERMAN, Stanley L. British Capitalism and Caribbean Slavery. The legacy
of Eric Williams. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 209-227.

FINLEY, M. I. The Idea of Slavery. In New Yorker Review of Books, January 26 1967,
v. 8 n. 1. Trata-se de resenha ao livro de David Brion Davis, The Problem of Slavery
in Western Culture.

DRESCHER, Seymour. The antislavery debate: capitalism and abolitionism as a


problem in historical interpretation. Edited by Thomas Bender. Berkeley:
University of California Press, 1992. Review Essays. In History and Theory, v. 32,
n. 3 (Oct., 1993), p. 311-329.

TEMPERLEY, Howard. Capitalism, Slavery and Ideology. In Past and Present, n. 75,
(May, 1977), p. 94-118.

TEMPERLEY, Howard. Anti-Slavery as a Form of Cultural Imperialism. In BOLT,


Christine; DRESCHER, Seymour (eds.). Anti-Slavery, Religion and Reform. Essays
in Memory of Roger Anstey. Hamden, Conn.: Archon Books, 1980, p. 335–50.

DAVIS, David Brion. Slavery and “Progress”. In BOLT, Christine; DRESCHER,


Seymour (eds.). Anti-Slavery, Religion and Reform. Essays in Memory of Roger
Anstey. Hamden, Conn.: Archon Books, 1980, p. 351-66.

3
HUDSON, Nicholas. “Britons Never Will Be Slaves”: National Myth, Conservatism,
and the Beginnings of British Antislavery. Eighteenth-Century Studies, v. 34, n. 4
(Summer, 2001), p. 559-576.

ELTIS, David. Europeans and the Rise and Fall of African Slavery in the Americas: An
Interpretation. In The American Historical Review, v. 98, n. 5 (Dec., 1993), p. 1399-
1423.

RICE, C. Duncan. The Missionary Context of the British Anti-Slavery Movement. In


WALVIN, James (ed.) Slavery and British Society, 1776-1846. London;
Basingstoke: The Macmillan Press LTD, 1982, p. 150-63.

FROST, J. William. Introduction. In J. William Frost (ed.) The Quaker origins of


antislavery. Norwood: Norwood Editions, 1980, p. 1-30.

PORTER, Andrew. “Commerce and Christianity”: The Rise and Fall of a Nineteenth-
Century Missionary Slogan. In The Historical Journal, v. 28, n. 3 (Sep., 1985), p.
597-621.

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Primeira Parte

Uma questão terminológica

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Antiescravismo ou abolição?

David Brion Davis

(95) O livro de Gerard Sorin levanta um problema de terminologia (e, portanto,


de definição) que nenhum historiador americano resolveu. Em 1906, Albert Bushnell
Hart popularizou uma rígida distinção que era adequada a certos reformadores e que, em
geral, ganhou aceitação entre os historiadores norte-americanos: “O antiescravismo foi
uma força negativa, uma tentativa de construir um muro para cercar um sistema
de trabalho odioso a fim de que ele pudesse morrer por si mesmo; a abolição foi
uma força positiva, baseada em considerações morais, que negava categoricamente
que a escravidão pudesse ser uma coisa boa (96) para alguém e que claramente
desejava ver a disrupção do sistema econômico e social do Sul” (Slavery and
Abolition p. 173-174). Essa distinção é o tema dominante do novo livro do Prof. Sorin,
embora ele acrescente que o teste essencial do abolicionismo seja um comprometimento
com alguma forma de igualdade racial: “a maioria dos homens e mulheres
antiescravistas, pelo menos até a Guerra Civil, se satisfaziam apenas em advogar
que instituição se restringisse aos seus limites existentes. E até mesmo quando os
antiescravistas consideraram a injustiça da própria escravidão e contribuíram
para a emancipação, não mostraram interesse pela integração racial, e foram, de
fato, muitas vezes violentamente contra ela” (p. 17). O abolicionismo, por outro
lado, foi equivalente à “crença da igualdade política e econômica para os negros,
mas não necessariamente a crença da igualdade social”. Os abolicionistas, em
consequência, estavam divididos entre “imediatistas” e “gradualistas”; Sorin não
nos ajuda a distinguir os últimos das “pessoas antiescravistas”.
Em 1911, Edward Raymond Turner argumentou a favor de uma completa
reversão da terminologia de Hart. Em The Negro in Pennsylvania, um estudo
incomensuravelmente superior ao de Hart, Turner indicou que “abolição” tinha
sido o rótulo das primeiras sociedades favoráveis à reforma, visto que
“antiescravismo” apareceu somente nos anos 1830. Como exemplo, pode ser citada a
Sociedade da Pensilvânia para Promover a Abolição da Escravidão, para o Amparo dos


Publicado originalmente em DAVIS, David Brion. Antislavery or Abolition? Reviews in American
History, v. 1, n. 1 (mar., 1973), p. 95-99. Trata-se de resenha do livro Abolitionism: A New Perspective,
de Gerald Sorin (New York: Praeger Publishers, 1972).

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Negros Livres Ilegalmente Mantidos em Cativeiro, e para a Melhoria da Condição da
Raça Africana, que, em 1804, transformou-se na Convenção Norte-Americana para
Promover a Abolição da Escravidão e Melhorar a Condição da Raça Negra. Como seus
nomes indicam, esses grupos “antiescravistas” tinham preocupações com a condição
dos negros livres. Contudo, só em 1831 encontramos uma Sociedade Antiescravista da
Nova Inglaterra, que foi seguida por uma Sociedade Antiescravista Norte-Americana,
uma Sociedade Antiescravista Norte-Americana e Estrangeira, e uma Liga
Antiescravista, todas elas compostas por “abolicionistas”! Turner pensava que a palavra
“abolicionista” era mais apropriada para os primeiros reformadores, que tinham um bom
motivo para pensar que a escravidão poderia ser abolida pacífica e gradualmente. Mais
tarde, o termo seria vagamente usado como um epíteto, mas o “antiescravismo” sugeria
uma luta mais ativa contra inimigos autodeclarados.
Historicamente, a transformação dos rótulos envolve um intercâmbio complexo
entre os reformadores britânicos e norte-americanos. Os primeiros imitaram os últimos
ao fundarem uma Sociedade Instituída em 1787 para Efetuar a Abolição do Tráfico de
Escravos. Todavia, nos Estados Unidos, os objetivos abolicionistas incluíam a total
erradicação tanto da escravidão quanto do tráfico. Na Inglaterra, “abolicionismo”,
mesmo “abolicionismo imediatista”, referia-se somente ao tráfico negreiro (97)
(embora a maioria dos “abolicionistas” presumisse que o fim do tráfico conduziria
à emancipação gradual). Os fundadores da Sociedade de Londres para a Mitigação e
Gradual Abolição da Escravidão se consideravam “abolicionistas”, uma vez que a bem
sucedida luta inicial contra o tráfico deu ao termo conotações heróicas. Contudo, a
alteração dos objetivos também obrigou o novo movimento a se distinguir do velho. Por
isso, a Sociedade de Londres se tornou conhecida como a Sociedade Antiescravista. O
rótulo foi adotado pelas sociedades provinciais e, em seguida, apropriado por William
Lloyd Garrison. Na história britânica “movimento abolicionista” refere-se ao
movimento que terminou em 1808, sendo distinto do “movimento pela
emancipação”. Ainda assim, para os ingleses e norte-americanos contemporâneos
de Garrison, “abolicionismo” e “antiescravismo” também eram termos
intercambiáveis.


N. do T. Em 1775, foi formada a Society for the Relief of Free Negroes Unlawfully Held in Bondage na
Pennsylvania. Essa Sociedade foi reorganizada, em 1784, com o nome de Sociedade da Pensilvânia para
Promover a Abolição da Escravidão, para o Amparo dos Negros Livres Ilegalmente Mantidos em
Cativeiro, conforme indicado por Davis nas linhas acima.

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Obviamente não teria sentido falar de “proponentes antiescravistas” ou de
“indivíduos antiescravistas”. O substantivo “antiescravista” (antislavist [de
“eslavo”]) de Jeremy Bentham nunca ganhou ampla circulação. Uma vez que não
há palavra alguma para descrever o não-abolicionista “indivíduo antiescravista”
(antislavist [de “eslavo”]), os historiadores ignoraram-na ou representaram-na
como uma parede cinza na qual os abolicionistas estavam em alto-relevo. Os
próprios termos ditam o conteúdo das nossas concepções.
Assim, o problema envolve mais do que um subterfúgio verbal ou uma
conveniência verbal. Nós claramente precisamos distinguir o homem que devota sua
vida à erradicação da escravidão do homem que acredita que a escravidão é
perniciosa para a nação e espera que ela possa ser geograficamente contida e
gradualmente abolida. Por essa razão, precisamos de rótulos que não sejam ambíguos,
especialmente para os anos 1840 e 1850, quando havia tantas nuances de opinião
“antiescravista”. Mas o livro de Sorin ilustra as lacunas de uma dicotomia conceitual
rígida entre “antiescravismo” e “abolicionismo”. Uma vez que essas mesmas lacunas
podem ser encontradas em incontáveis outros estudos, não vou insistir sobre elas nesta
resenha. É suficiente notar umas poucas complexidades que a distinção tende a
obscurecer: a maioria dos primeiros “gradualistas” sustentava visões muito similares às
visões dos “antiescravistas” posteriores, embora sejam classificados como
“abolicionistas”; é altamente ilusório reunir as visões “antiescravistas” de homens como
Jefferson, Patrick Henry, Rufus King, John Quincy Adams, Joshua Giddings, John P.
Hale e Lincoln; durante algum tempo, o “imediatismo” radical foi compatível com o
apoio à colonização; muitos dos abolicionistas bona fide, como Sorin reconhece, não
tinham interesse na igualdade racial ou na integração: as visões de muitos
“antiescravistas”, especialmente dos que permaneceram dentro da maioria das igrejas
protestantes, eram virtualmente indistinguíveis das visões dos abolicionistas,
especialmente no que diz respeito ao pecado de ter escravos. “Abolicionismo” é um
(98) termo mais específico que antiescravismo, e não há dúvida de que poderia ser
confinado à doutrina de que a escravidão devia ser abolida, em oposição à
esperança que, no fim das contas, ela desapareceria como resultado de causas
naturais. Além do mais, hipostasiar esses termos descritivos em substancias sociais é
perder as gradações sutis entre categorias, tanto quanto entre as mutáveis energias da
opinião. Eu argumentaria, portanto, a favor de uma maior flexibilidade da
linguagem que reconhecesse que os abolicionistas se pensavam como

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“antiescravistas” e que fariam distinções de acordo com o contexto histórico, em
vez de se contarem com categorias abstratas e mutáveis.
O tráfico atlântico, que começou antes da descoberta da América, persistiu
por mais de quatrocentos anos. Correu um século entre a emergência do
abolicionismo organizado – que nos anos 1780 era um fenômeno novo na história
humana – e a erradicação da escravidão negra no Brasil, sua última fortaleza no
Novo Mundo. Retrospectivamente, isso parece, pelo menos, um período notavelmente
breve (apesar de tudo, nos anos 1970 ainda não temos a completa realização dos
objetivos dos direitos civis da Reconstrução). Em que medida a emancipação foi um
resultado da agitação abolicionista? E até que ponto as concepções e táticas dos
abolicionistas foram responsáveis pela opressão universal e abandono das populações de
ex-escravos?
Durante os últimos quinze anos muita luz foi lançada sobre essas questões,
especialmente no que diz respeito aos Estados Unidos. Talvez seja tempo de uma
síntese, ou de uma “nova perspectiva” que possa reunir as visões dos diversos estudos
especializados. Isso é, com efeito, o que Gerald Sorin tentou fazer. Ele leu amplamente
a literatura secundária recente (também fez uma importante pesquisa sobre os
abolicionistas de Michigan e Nova Iorque e publicou um livro mais tarde). Ele foi
particularmente atraído pela obra deste comentador, Winthrop Jordan, Carleton Mabee,
Lewis Perry, Bertram Wyatt-Brown, George Frederickson, Aileen Kraditor, Benjamin
Quarles, Leonard Richards, Eric Foner e James McPherson. Seu livro deve ser muito
útil para alunos de graduação, em cursos de história “orientados para o problema”, que
não têm tempo para ler toda a literatura, mas que querem ir além do tratamento
superficial da maioria dos livros didáticos. Uma vez que assumo que o estudo destina-
se, em grande parte, para o uso em sala de aula, seria injusto esperar que ele oferecesse
“uma excelente síntese da mais recente produção acadêmica sobre o abolicionismo”,
como afirma o editor no prefácio (p. 11). Por outro lado, a afirmação de que a síntese
proporciona uma ocasião para ponderar a respeito das dificuldades de qualquer
sintetizador terá que ser enfrentada.
Por um lado, uma sucessão de resumos não é o mesmo que uma síntese. Alguns
resumos de Sorin são excelentes, mas outros lembram paráfrases bastante truncadas
comumente encontradas em (99) exames de redação. Por exemplo, parece-me que a
condensação abaixo do meu próprio trabalho não possui sentido: “O Iluminismo
também forneceu munição para os críticos da escravidão ao enfatizar a mobilidade

9
econômica, o esforço e a responsabilidade individual. Mas o racionalismo também foi
usado para defender a escravidão, pois ele destacou a evolução lenta das instituições e
da noção de que “Tudo que existe, é correto”. Os defensores da escravidão poderiam
citar o apoio do Iluminismo à propriedade privada e poderiam encontrar em John Locke
uma explicação ‘natural’ da desigualdade hereditária [não é verdade]” (p. 24).
Problemas mais graves surgem quando Sorin se esforça para mencionar todas as
principais questões, para incluir breves resumos de todas as interpretações recentes (que
estão apenas vagamente identificadas em um ensaio bibliográfico). Por exemplo, deve-
se aceitar ou rejeitar o argumento brilhante de Aileen Kraditor, apresentado em Means
and Ends in American Abolitionism. Ele não pode ser refutado com argumentos
incompatíveis, nem se pode fazer uso da análise da política garrisoniana de Kraditor e
ainda praticamente ignorar “a questão da mulher”. Sorin dá pouca ênfase às
interpretações conflitantes sobre raça e classe. Ainda que bastante simples, para um
livro didático que se propõe passar em revista a política abolicionista, há poucas
observações a respeito de contextos mais amplos – como a mudança de atitudes em
relação ao trabalho e à exploração; as conexões entre abolicionistas norte-americanos e
britânicos; ou o papel do abolicionismo para contestar ou reforçar a hegemonia de uma
classe social dominante.
Uma série de pequenos erros merecem menção: havia organizações
abolicionistas no Tennessee, bem como na Carolina do Norte (p. 35); os ingleses não
adotaram um plano de emancipação em 1831, nem havia um milhão de escravos nas
Índias Ocidentais britânicas (p. 53); John Allen não era “um abolicionista de New
Hampshire” (p. 30). Porém, o mais importante são as realizações genuínas de Sorin. Ele
nos apresenta um relato claro e admirável da “ascensão do imediatismo”. Ele
corretamente aponta para a experiência evangélica da maioria dos abolicionistas, e
arruma um bom bocado de provas para se opor às teses bem conhecidas de David
Donald e Stanley Elkins. Ele dá atenção detalhada aos abolicionistas negros, que tantas
vezes têm sido ignorados pelos historiadores brancos. Ainda que o Abolitionism de
Sorin seja algo inferior a uma síntese imaginativa, é provavelmente a pesquisa mais
agradável e informativa até então disponível.

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Segunda Parte

O legado de Eric Williams: Capitalismo e escravidão

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(414) O declínio do sistema escravista britânico e a abolição do tráfico

Seymour Drescher

No desenvolvimento da economia do Império britânico, de 1775 a 1850,


nada apresenta tanto contraste quanto o dinamismo da industrialização da
metrópole comparado à aparente estagnação de seu sistema escravista colonial. A
partir deste conjunto de coordenadas, surgiu uma tese estabelecendo que a
abolição realizada pela Grã-Bretanha possuiu fundamento econômico: as leis que
sancionaram a abolição do tráfico e da escravidão foram a sequência e a
consequência de um declínio do sistema econômico colonial, declínio que acometeu
tanto a economia imperial britânica quanto os sistemas escravistas coloniais
concorrentes. As etapas sucessivas da abolição podem, nesta ótica, ser assimiladas
às diferentes fases de uma operação de cirurgia radical, no curso da qual a parte sã
– o elemento vital – fora amputada do membro economicamente gangrenado, e isto
sem levar em consideração o contexto ideológico e político.
A “tese do declínio” já foi muito nitidamente esboçada nas análises
contemporâneas; entretanto, é na obra de Ragatz que ela aparece sob a forma mais
percuciente: The fall of the Planter Class in the British West Indies (1928). Segundo
Ragatz, o sistema escravista britânico se encontrava numa encruzilhada desde o
fim da Guerra dos Sete Anos; ele tornou-se incapaz de se desenvolver a uma taxa
comparável à dos outros elementos constitutivos do Império 1. A obra de Ragatz
tornou-se, por seu turno, o ponto de partida do estudo mais célebre de Eric
Williams: Capitalism and Slavery (1944)2. William completava o quadro construído
por Ragataz a respeito do declínio das ilhas ao acrescentar-lhe o impulso do
capitalismo industrial britânico3. O golpe de mestre de Williams consistiu em


Publicado originalmente em DRESCHER, Seymour. Le “déclin” du système esclavagiste britannique et
l’abolition de la traite. In Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 31, n. 2, mar.-abr., 1976, p. 414-435.
1
Lowell J. Ragatz, The Fall of the Planter Class in the British West Indies, 1763-1833. New York, 1928
(reimpresso em 1963 por Octagon Books), cap. IV e passim.
2
Eric Williams, Capitalism and Slavery, Chapel Hill, N.C., 1944 (reimpresso em 1966 por Capricorn
Books. A obra de Williams é dedicada a Ragatz.
3
Williams retoma seus argumentos, sem lhes apresentar a menor correção, em: From Columbus to
Castro: The History of the Caribbean, 1492-1969, New York, 1970, p. 280-281; “A criação e o
desenvolvimento do sistema das ilhas caribenhas resultaram essencialmente, assim como se indicou, da
importânc]ia que um tal sistema tinha para a economia dos governos da metrópole. Reciprocamente, a
abolição do sistema foi em grande parte a consequência de seu menor valor no curso do século XIX”.

12
apresentar uma equação estabelecendo uma relação causal entre os dois
desenvolvimentos, e isto em termos neomarxistas rigorosos. O estudo de Williams pode
parecer mais esquemático que o de seu predecessor: com efeito, as hipóteses que ele
elabora partem explicitamente dos trabalhos de Ragatz.

Os pesquisadores da geração posterior à de Williams tenderam geralmente


a estabelecer uma correlação entre a importância decrescente do sistema escravista

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para a economia política europeia e a aparente facilidade que presidiu a abolição
do trabalho servil nas colônias durante o século XIX. Williams (415) afirmava, em
sua obra bastante sintética, que a escravidão era uma etapa do capitalismo
comercial que perdera sua razão de ser – daí os ataques reiterados a ela – desde o
momento em que deixou de desempenhar sua função: esse ponto de vista, que fazia
da escravidão uma fase transitória do capitalismo, que permitiu a industrialização
da Grã-Bretanha, graças ao acúmulo de capital, tornou-se rapidamente objeto de
vivas críticas. Williams também foi repetidamente atacado e de modo convincente
por sua descrição das forças políticas e ideológicas (416) abolicionistas na
Inglaterra4. Mas, a despeito das análises e averiguações cada vez mais precisas e
aprofundadas às quais suas afirmações foram submetidas, Williams não mudou nada em
sua hipótese fundamental referente ao declínio; ele transformou inclusive a perspectiva
dos que rejeitavam seu materialismo histórico em geral, e sua concepção dos
abolicionistas em particular. Nos três decênios que se seguiram ao surgimento de
Capitalismo e escravidão, os postulados de que Williams partira foram
reafirmados, e suas conclusões tornaram-se parte integrante e fundamento do
corpo de conhecimentos acumulados sobre a abolição do tráfico e da escravidão na
área caribenha.
Assim, não somente a tese de Williams sobre a abolição permaneceu
praticamente incontestada, mas ela foi reafirmada com uma constância que lhe dá
o direito de ostentar o título de “nova ortodoxia”. David Brion Davis lhe consagrou
um resumo em seu estudo: O problema da escravidão na cultura ocidental. Ele diz,
nessa obra, que não se pode fazer abstração do “simples fato” seguinte: “a
escravidão colonial era mais importante para a economia britânica em 1750 que
em 1789”; e: “nenhum país teve a ideia de abolir o tráfico antes que o interesse
econômico que ele representava não estivesse consideravelmente em declínio”.5
4
Sobre a concepção que Williams tinha do papel dos abolicionistas, ver Capitalism and Slavery, p. 146-
150, assim como From Columbus to Castro, p. 243-245. Para as críticas dessa concepção, ver
particularmente G. R. Mellor, British Imperial Trusteeship 1783-1850, Londres, 1951, p. 50-60, 75, 118-
120; e R. T. Anstey: “Capitalism and Slavery: A Critique”, Economic History Review, 2ª série, XXI, n. 2,
1968, 307-320.
5
David Davis, The Problem of Slavery in Western Culture, Ithaca, N.Y., 1966, p. 153 e nota. Davis
retoma a tese de um declínio econômico para explicar as consequências da abolição inglesa – mas não as
da abolição norte-americana – em The Slave Power Conspiracy and the Paranoid Style, Baton Rouge,
La., 1969, p. 33; ver também Patrick Richardson, Empire and Slavery, N.Y., 1972, p. 87; E. V. Goveia,
Slave Society in the British Leeward Islands at the End of the Eighteenth Century, N.Y., 1965, p. 335-
336; Howard Temperley, British Anti-Slavery 1833-1870, Londres, 1972, p. 276; J. H. Parry e P. M.
Sherlock, A Short History of the West Indies, 3ª ed., Londres, 1971, p. 175-176; Jack Gratus, The Great
White Lie, N.Y., 1973, p. 14. Para um desenvolvimento mais completo dessa tese, ver Williams, From

14
É difícil negligenciar este “simples fato”, pois, atrás de Williams, se erguia
imponente a obra de Ragatz. E a tese do “declínio” permanecerá oficial até que este
“simples fato” não seja contestado pela historiografia da escravidão.
Propomos, neste estudo, tratar da tese sustentada por Ragatz e Williams, ou pelo
menos a parte desta tese consagrada à primeira etapa importante na destruição do
sistema escravista: a abolição, entre 1788 e 1807, do tráfico de escravos. Fundamentar-
nos-emos principalmente nos diferentes dados econômicos utilizados por Ragatz e
Williams na elaboração de sua demonstração, assim como em dados novos, mas que
mantenham uma relação estreita com os precedentes e igualmente acessíveis àqueles
que participam da controvérsia sobre a abolição. Uma vez que a aritmética política de
Ragatz e de Williams está extremamente próxima daquela dos protagonistas por eles
estudados, nossa tarefa será bem facilitada.
Os argumentos favoráveis a um declínio dos sistemas escravistas podem ser
classificados em duas grandes categorias: primeiramente, uma comparação entre o
sistema escravista colonial da Grã-Bretanha e o sistema econômico global da metrópole;
em segundo lugar, uma comparação entre o mesmo sistema e os sistemas econômicos
de outros produtores coloniais envolvidos no comércio do Atlântico norte. A alegação
de um declínio no contexto do Império repousa sobre o seguinte postulado: em um
determinado momento (que se situa posteriormente ao último terço do século
XVIII), as colônias antilhanas produziram menos lucros que antes. É importante
notar que não há consenso geral quanto ao momento em que realmente começou –
em valor proporcional – esse declínio secular, ainda que a Revolução norte-
americana seja frequentemente representada como o fator decisivo. Ora, a tese do
declínio só pode ser enunciada a partir do momento em que se determina o ponto
decisivo desse declínio secular, uma depreciação nas economias escravistas coloniais
devendo obrigatoriamente vir precedida ou acompanhada pelos principais assaltos
políticos contra o sistema, anteriormente a 1806-1807.

Columbus to Castro, p. 226 e passim; Capitalism and Slavery, p. 120-127; Ragatz em The Fall of the
Planter Class, cap. IV, situa a virada a partir de 1763. Williams data o declínio a partir de 1783. Outros
sugerem, em termos bastante vagos, o fim do século XVIII. Roger Anstey em “A Re-interpretation of the
Abolition of the Bristish Slave Trade, 1806-1807”, English Historical Review, vol. LXXXIII, abril 1972,
p. 304-322, também postula a existência de um declínio secular anterior a 1787; porém, em seguida, ele
reviu sua asserção num estudo mais documentado: The Atlantic Slave Trade and British Abolition.
Glyndwr Williams, The Expansion of Europe in the Eighteenth Century: Overseas Rivalry, Discovery and
Exploration, Londres, 1966, p. 278-279, explicitamente salientou que para quase todo o período
imediatamente anterior à abolição, as Antilhas conheceram uma vaga de prosperidade, e que o tráfico de
escravos não deixara de ser florescente.

15
A demonstração é habitualmente apresentada nos seguintes termos: a metrópole
extraía mais lucros de suas colônias antes dos anos 1763-1775 (417) do que
posteriormente. Elas eram importantes na medida em que seus rendimentos, sua
produção e, sobretudo, suas relações comerciais com a metrópole prosperavam em
proporções maiores que as das outras regiões econômicas significativas para a
Grã-Bretanha. As campanhas abolicionistas sucessivas e a legislação posterior a
1788 não fizeram mais que acelerar um processo de declínio já bem adiantado
antes daquela data.
O principal dado utilizado por Williams para medir o “valor” global das
colônias escravistas para a Grã-Bretanha é a parte representada pelas Índias
Ocidentais britânicas na balança comercial britânica. Williams conclui, a partir
deste dado, que houve um progresso geral das colônias, tanto do ponto de vista das
importações quanto das exportações, nos três primeiros quartos do século XVIII.
Outros documentos, mais dispersos, lhe permitem diagnosticar um declínio no
período imediatamente anterior à emancipação de 1833. 6 A comparação desses
dois períodos permite efetivamente afirmar que as colônias conheceram uma
expansão (ao mesmo tempo em valor absoluto e em valor relativo) no período
anterior a 1773, e um declínio – em valor relativo pelo menos – no início dos anos
1830. Mas isso não nos informa sobre o período compreendido entre a Revolução
norte-americana e os anos 1805-1807, quando ocorre a abolição, por etapas
sucessivas, do tráfico britânico de escravos. Ora, a validade da tese de Williams e de
Ragatz repousa sobre o declínio – relativo ou absoluto – das economias escravistas no
curso desse período intermediário essencial. Os dados comerciais – aqueles em todo
caso que vão até o final das guerras napoleônicas – permitem infelizmente afirmar o
contrário. As trocas entre a Grã-Bretanha e as Índias Ocidentais britânicas
(importações e exportações) não diminuem, nem em valor nem em volume, no
curso dos anos 1783-1815. Pelo contrário, elas conheceram uma expansão
importante até o fim do século, para em seguida se estabilizar num nível bem
superior a alguma hipotética era de ouro anterior à Revolução norte-americana
(ver as curvas I e II). As cifras da porcentagem do comércio das Índias Ocidentais
britânicas no comércio ultramarino britânico em geral são ainda mais
impressionantes. A curva 3 mostra que, ao utilizar o ano de 1773 (ano terminal aos
olhos de Williams) como mediana entre 1723 e 1822, o comércio global das Índias
6
Williams, Capitalism and Slavery, p. 52-55 e 225-226, para os quadros estatísticos.

16
Ocidentais britânicas representou uma proporção – em relação ao conjunto do comércio
britânico – mais elevada em praticamente todos os anos posteriores a 1773 do que
aquelas que precederam essa data, quer as importações e as exportações fossem medidas
separadamente ou não. Portanto, as próprias fontes utilizadas por Williams
mostram que, naquilo a que concerne o comércio ultramarino, a Grã-Bretanha
obteve mais vantagens das Índias Ocidentais britânicas durante o período de vivas
controvérsias sobre o tráfico (1788-1807) do que anteriormente à Revolução norte-
americana, uma época que, entretanto, não foi marcada por nenhuma pressão ou
agitação metropolitana contra o tráfico. A tabela 1 também permite comparar as
colônias escravistas das Índias Ocidentais com as outras principais regiões que
praticavam o comércio ultramarino. De todos os territórios “coloniais”, britânicos ou
estrangeiros, são as Índias Ocidentais britânicas que aparecem como o setor mais
importante para a Grã-Bretanha, e isso durante todo um século (de 1722 a 1822).
A participação das colônias escravistas britânicas no comércio da Grã-Bretanha só
cresceu em relação à dos seus concorrentes mais imediatos do Império, durante o
período que se estende de 1793-1797 a 1808-1812.
(418) Se deixamos de lado os dados relativos referentes apenas ao comércio
e se examinamos aqueles referentes ao valor relativo da propriedade e da
produção escravista no momento da abolição do tráfico, a “tese do declínio” torna-
se ainda mais difícil de ser sustentada. Os fazendeiros caribenhos estimavam que
as Índias Ocidentais valiam £60 milhões em 1775, e £70 milhões em 1789. 7 Se
recorremos aos dados utilizados por P. Colquhoun em sua descrição estatística do
Império britânico (1815), constatamos então que as colônias escravistas antes de
1790 representavam sozinhas £100 milhões durante as guerras napoleônicas. E se
adicionamos o valor das colônias conquistadas em 1806 (e incorporadas definitivamente
em 1814) ao das colônias de 1790, verificamos que seu valor real era, em 1807-1812,
de £145 milhões, isto é, quase o triplo de duas gerações anteriores. 8 Enfim, em
termos de valor real e de comércio ultramarino no Império, o sistema escravista
estava em expansão, e não em declínio, no final do século XVIII. Um declínio
7
Ver Williams, From Columbus, p. 125; Bryan Edwards, The History Civil and Commercial of the
British West Indies, 5 volumes, II, Londres, 1819, p. 473; Thomas Southey, Chronological History of the
West Indies, 3 volumes, II, p. 14. Essas estimativas, às quais sempre se censurou por terem superestimado
em duas vezes o seu valor, foram objetos de muitas controvérsias. Mas parece que as “distorções” foram
praticadas a uma taxa constante, cada um dos “adversários” efetuando quase exatamente uma
multiplicação ou uma divisão por dois para melhor sustentar sua tese.
8
Ver Patrick Colquhoun, A Treatise on the Wealth, Power and Resources of the British Empire, Londres,
1815, p. 59.

17
secular das colônias escravistas no interior da economia política imperial, que teria
ocorrido anteriormente às campanhas – levadas a bom termo – dos abolicionistas parece
ser pura ilusão estatística, resultando simplesmente numa completa ocultação da
verdade sobre o período de 1788-1815.
Se observamos bem de perto o objeto dos ataques mais diretos, o tráfico de
escravos africanos, constatamos que ele também atingiu um pico no início do
século XIX. No curso de um período em que o comércio extra-europeu constituía uma
parte crescente no conjunto do comércio britânico9, as Índias Ocidentais e a África
estavam cada vez mais representadas e seu valor atingiu o cume no último decênio
anterior à abolição. É preciso observar que tanto o comércio da Inglaterra com a África
quanto com as Índias Ocidentais não estava em declínio em relação àquele praticado
antes de 1775-1783, ou em relação ao resto do mundo entre 1783 e 1806. A Tabela 2
apresenta o valor das exportações britânicas em direção à África, de 1749-1755 a 1817-
1823, agrupadas tendo em conta períodos de guerra e de paz. Mesmo que o montante do
comércio africano apareça sempre menor do que o ocupado pelas Índias Ocidentais no
comércio britânico, seu papel, bem como o do sistema escravista que ele alimentava,
parece mais importante para a economia inglesa, nos momentos em que as campanhas
abolicionistas atingiam sua plenitude (1787-1792 e 1804-1807), do que durante o
período anterior a 1787. Além disso, após a Revolução norte-americana, em valor
(libras esterlinas), o comércio africano foi mais importante quando calculado sobre
longos períodos do que havia sido antes. Aqui também existe um paralelo com as Índias
Ocidentais. Uma conclusão se impõe: a virada do século XIX não foi marcada por
nenhum declínio do componente africano no sistema escravista britânico.
Se, abandonarmos o índice do valor e voltarmos para o do volume, os resultados
são idênticos. A Tabela 3 – elaborada a partir da excelente compilação de dados
comparativos de Philip Curtin: The Atlantic Slave Trade: A Census e do estudo mais
exaustivo de Roger Anstey sobre os últimos anos desse comércio: The volume and
Profitability of the British Slave Trade 1761-1807 – mostra que o tráfico britânico
atingiu seu apogeu, naquilo que concerne às exportações médias anuais provenientes da
África, no último decênio de sua existência. 10 O mesmo ocorre em relação aos valores
9
E. B. Schumpeter, English Overseas Trade Statistics, 1697-1808, Oxford, Clarendon Press, 1960, 72p,
introdução de T. S. Ashton.
10
Ver Roger Anstey, The Volume and Profitability of the British Slave Trade 1761-1807 (a ser
publicado), Tabelas 1-3 e também Philip Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison, Wis.,
1969, p. 136, Tabela 38. Seguindo um esquema decenal, as variações da balança comercial são avaliadas
sem levar em conta outros acontecimentos. De onde as distorções para o período de 1801-1807, em razão

18
do comércio total com as Índias Ocidentais, as estimativas – tanto as de Curtin como as
de Anstey – indicam que as exportações médias anuais africanas foram (419),
logicamente, mais elevadas nos decênios posteriores à Revolução norte-americana (aí
compreendido o quinquênio 1801-1805), do que em qualquer decênio anterior a 1781.
A posição relativa da Grã-Bretanha no conjunto das principais potências
comerciais era mais impressionante em 1805 do que em 1775, e sua hegemonia
estava muito melhor assegurada. Todavia, mesmo que as restrições políticas
impostas ao tráfico de escravos após 1805 possam falsear a interpretação das cifras
para o período 1806-1807, é permitido sublinhar o fato de que o nível geral das
exportações de escravos chegou ao seu cume no decênio de 1795-1804, justamente
no momento em que estava sendo decretado o seu fim.
Outro contra-senso na tese de Ragatz-Williams, comparativamente ao
contexto imperial da abolição: o argumento segundo o qual a perda das colônias
continentais foi um golpe fatal para o tráfico de escravos britânicos.
Evidentemente, é impossível mensurar com precisão o alcance no longo prazo da
perda das colônias continentais escravistas para o tráfico de escravos britânico e
para o sistema comercial em geral. A perda dessas colônias encorajou, de início, os
abolicionistas britânicos a pensar que a abolição da escravidão seria facilitada.
Todavia, deve-se ter na memória que o movimento abolicionista tinha uma base
política própria na América do Norte, capaz de proceder à abolição do tráfico
exatamente ao mesmo tempo em que os abolicionistas britânicos. Os documentos
parecem indicar que as colônias continentais eram, em conjunto, mais
desfavoráveis ao tráfico.11 Mesmo que a divergência de atitude das principais regiões
exportadoras norte-americanas impedisse de extrair conclusões quanto à existência de
uma corrente constante em favor da abolição, nada, no desenvolvimento dos Estados
do Norte, após 1783, indica uma viravolta da opinião que dessa vez fosse favorável
ao tráfico de negros da África. Nada leva a pensar que eles – antes ou após a
Revolução – se repugnassem a aboli-lo do conjunto territorial do qual faziam
parte: o Império britânico antes de 1776, os Estados Unidos, depois de 1783.

das restrições legais sucessivas que incidiram sobre o tráfico nos anos imediatamente anteriores à
abolição completa.
11
Ver Betty Fladeland, Men and Brothers: Anglo-American Anti-Slavery Cooperation, Urbana,
University of Illinois Press, 1972, cap. 1; e Arthur Zilversmit, The First Emancipation: The Abolition of
Slavery in the North, Chicago e Londres, 1967, cap. IV a VIII.

19
Além do mais, a Grã-Bretanha não deixou de se interessar pelo tráfico de
escravos para os Estados Unidos depois de 1783. Existe um paralelo marcante
entre os movimentos em favor da abolição do tráfico norte-americano, após a
independência, e os que existiram no próprio interior do Império britânico.
Cálculos recentes mostraram que as importações de escravos para os Estados
Unidos entre 1790 e 1810, longe de declinar, “foram maiores durante esses anos do
que haviam sido vinte anos antes” e que entraram tantos africanos entre 1780 e
1810 quanto durante “os cem anos precedentes, época na qual, entretanto, os
Estados Unidos praticavam o tráfico”. 12 Há ainda um elemento mais significativo:
o tráfico em direção aos Estados Unidos representava uma parte muito importante
do comércio britânico. A Grã-Bretanha continuava a obter a parte do leão no tráfico de
escravos em direção aos Estados Unidos: no período imediatamente anterior à abolição
norte-americana, 50% das importações totais da Carolina do Sul eram encaminhadas por
navios ingleses. Os mercadores britânicos, que comercializavam com as Carolinas,
foram os adversários mais virulentos da abolição de 1806 (da Grã-Bretanha). Portanto, a
Grã-Bretanha sempre manteve interesse no tráfico em direção à América do Norte (e
não se fala aqui dos investimentos britânicos no sistema (420) escravista norte-
americano exteriores ao próprio tráfico), e esses interesses continuavam a ser tão
poderosamente representados no Parlamento quanto os do próprio escravismo britânico,
subsistindo oficialmente no Império mesmo após 1783. Os dois tipos de interesses se
uniram, mas foram aniquilados separadamente.
O tráfico britânico com destino à América estava ao abrigo de duas críticas
de peso que lhe opunham os abolicionistas após 1783. A primeira era dirigida
contra o tráfico em geral: segundo os abolicionistas, os carregamentos de escravos
britânicos intensificavam a concorrência pelo açúcar. Ora, os principais gêneros
norte-americanos eram o tabaco e o algodão, não o açúcar. A segunda crítica
recaía sobre os riscos de uma revolução colonial, que aumentavam em razão das
chegadas de escravos nascidos na África. Mas os escravos eram transportados
doravante para uma América pós-revolucionária: a economia política da Grã-Bretanha
estava desde então ao largo dos eventuais riscos sociais, e não suportava mais os custos
gerais que, do ponto de vista social, oneravam tais importações. Por uma ironia do
destino, parece que a perda das colônias continentais privou a Grã-Bretanha da

Robert W. Fogel; Stanley Engerman, Time on the Cross: The Economics of American Negro Slavery,
12

Boston, 1974, p. 24-25 e Gráfico 6, “Importações norte-americanas decenais de escravos, 1620-1860”.

20
parte do seu Império que, justamente, se desprendia mais facilmente da influência
africana; o membro gangrenado havia sido preservado, portanto, em detrimento
do membro são. A Inglaterra teria perdido as Índias Ocidentais, e não as colônias
continentais, caso o movimento demográfico, após 1783, tivesse se tornado muito
mais favorável aos abolicionistas da metrópole.
Se nos reportamos aos dados do comércio e da produção do Império
britânico13, uma evidência se impõe: foi posto fim a esse sistema, não num período
de estagnação geral e progressiva, mas num momento em que a expansão era
extraordinária e sem precedente. Ao chamar a atenção sobre o período de guerra
marcado por um declínio comercial (1776-1783), e ao afastá-la de outra época, ela
também de hostilidades, mas onde o Império estava em plena expansão (1793-1806), os
defensores da tese do “declínio” colocam arbitrariamente em relevo as consequências de
um enfraquecimento inabitual, passageiro, e ignoram a fase muito mais decisiva da
expansão. Entre 1755 e 1775, a expansão britânica se manifestou principalmente
nas zonas não-escravistas e não-tropicais, tais como a América do Norte e a
Austrália (a Índia constituía um caso intermediário e ambíguo), mas isso não
suscitou nenhuma reação imediata dos abolicionistas contra os fundamentos da
escravidão. De 1775 a 1783, a Grã-Bretanha perdeu tanto possessões não-
escravistas quanto colônias escravistas. A expansão foi, em definitivo, irresistível
nas partes tropicais e escravistas do Império entre 1793 e 1806 (Trinidad, Guiana,
Tobago, Santa Lúcia, a colônia do Cabo, Ceilão). Todas, com exceção talvez do
Ceilão, ofereceram novas ocasiões de desenvolvimento econômico no interior do
próprio sistema escravista tradicional. Estimava-se, em 1802, o potencial de terras
agricultáveis – e destinadas exclusivamente ao açúcar – de Trinidad como igual ao
do conjunto das superfícies cultivadas da Jamaica. A Guiana também estendeu
enormemente os limites das possessões britânicas no Caribe14, e a colônia do Cabo,
depois mais tarde as Ilhas Maurício, apresentaram um potencial ainda mais
importante – no curto e no longo prazo – ao sistema escravista britânico. 15 O
potencial do sistema escravista entre 1803 e 1814 foi superior a tudo o que ele fora

13
Para as produções, ver Ragatz, The Fall of the Planter Class, p. 215-231 e passim.
14
Segundo George Canning, que cita as estimativas oficiais, as superfícies suscetíveis de serem
cultivadas com cana-de-açúcar eram de 420.000 acres (168.000 ha) em Trinidad, em 1802, ao passo que
na Jamaica, por volta de 350.000 acres (140.000 ha) produziam açúcar em 1791 (ver William Cossett,
The Parliamentary History of England, vol. XXXVI, Londres, 1802, p. 863-864). A Tabela seguinte
permite ter noção da expansão da produção de Demerara (que passou a se chamar Guiana Inglesa em
1814) durante esse período:

21
antes ou durante as grandes campanhas públicas empreendidas contra o tráfico
entre 1788-1792, o que colocava o comércio britânico numa posição bastante
vantajosa. O sistema escravista (421) já apelava, no período de 1788-1807, cada vez
mais às manufaturas britânicas para seu consumo interno: ele também podia
parecer mais interessante aos olhos do mercador inglês em 1805 do que em 1788 ou
1783.
Resta-nos considerar um dos aspectos da tese de Williams que não é tributário
do trabalho de Ragatz. Não queremos falar mais de dados globais do comércio
britânico, mas dos interesses de cada setor econômico específico no interior do sistema
metropolitano. Os dados utilizados aqui por Williams são menos quantitativos, e
também menos precisos, do que aqueles de que ele se serviu anteriormente. A
argumentação de Williams sobre esse assunto pode ser resumida da seguinte
forma: com o crescimento da industrialização nos três últimos decênios do século
XVIII, alguns setores da economia britânica, até então partidários do – ou
indiferentes ao – sistema escravista, se opuseram por razões econômicas à sua
continuação ou, pelo menos, dele se desinteressaram. A tese de Williams, referente
a este ponto específico, repousa sobre a afirmação segundo a qual alguns grandes
interesses comerciais ingleses, em particular das indústrias têxteis e metalúrgicas,
foram levados a se transformar em defensores do abolicionismo no período
posterior a 1783. As tarifas preferenciais praticadas no interior do Império, e
particularmente as das colônias escravistas das Índias Ocidentais, representavam,

Açúcar (em barris Algodão (em Café (em libras) Rum (em pipas)
de 800 a 1000 fardos de 240 a
Ano
libras) 300 libras)
1797 1483 2425 1.937230 720
1798 6472 14738 6.506877 1803
1799 5392 15758 3.846877 501
1800 10361 31433 11.633136 2486
1801 9154 17822 8.636786 2520
1802 17520 25413 11.539497 4326

Uma libra = 453,6g; uma pipa = 325 litros (aprox.) a 550 litros.
Cf. Fonte: J. Holland Rose, “British West India Commerce as a Factor in the Napoleonic War”,
Cambridge Historical Journal, III, outubro 1929, p. 36.
15
O Ceilão constitui talvez uma exceção ao sistema escravista; com efeito, ainda que a Grã-Bretanha não
se opusesse às importações de escravos, não existia, em 1800, um importante tráfico de escravos em
direção à ilha.

22
segundo Williams, um entrave para as indústrias 16 que se sentiam restritas aos
mercados medíocres do velho Império. Aos velhos consumidores sem apetite, elas
preferiam novos mercados de dimensões “continentais”.
O que ocorria exatamente nas Índias Ocidentais, em relação ao consumo de
produtos das indústrias em expansão, considerados por Williams como setores de ponta
no momento da hipotética “grande queda” do último quarto do século XVIII? A Tabela
4 indica que tais indústrias continuaram a ocupar posições sólidas, no nível do consumo
metalúrgico e têxtil. Ao que parece, os industriais da metalurgia e dos têxteis
praticamente não tinham motivos para afirmar que as Índias Ocidentais eram
economicamente menos interessantes em 1800 do que em 1750. Os tecidos de
algodão ingleses para exportação eram menos caros do que em qualquer outro país
do globo entre 1800 e 1815, e o crescimento máximo dessa indústria foi assegurado
pelo livre comércio dos escravos, não por sua proibição.17
Existe um último argumento, que advoga em favor de uma crescente perda
de interesse de ao menos uma das principais indústrias das Índias Ocidentais entre
1780 e 1830. A indústria do algodão conhecia, nesse momento, um crescimento
extraordinário. Ela tornou-se a primeira indústria têxtil da Grã-Bretanha no
segundo decênio do século XIX. As importações de algodão se elevaram de 42
milhões de libras em 1772-1774 a 65 milhões em 1811-1813, depois a 100 milhões
em 1815-1817. Além disso, durante o mesmo período, as importações de algodão
para o interior do Império foram suplantadas pelas importações de algodão
estrangeiro (essencialmente provenientes dos Estados Unidos). O que pareceria
advogar em favor da tese de um declínio do sistema escravista imperial em relação
à metrópole.18 Entretanto, sempre naquilo que se refere à produção de algodão, o
16
Williams, Capitalism and Slavery, p. 154 e passim, p. 154-157 para os manufatureiros de algodão; p.
157-159 para a metalurgia; p. 160-161 para a lã. Entretanto, em 1813, por exemplo, as Índias Ocidentais
britânicas eram de longe o primeiro importador de cobre inglês: 190 toneladas (aprox.) contra 130 para a
Irlanda e 70 para a América do Sul. 39,4% das exportações de cobre britânicas do ultramar (Irlanda
excluída) iam para as Índias Ocidentais, contra 45% em 1770, Parliamentary Papers, 1813-1814, XII, p.
227.
Obviamente, isso permite presumir que os africanos tinham menos acesso que os habitantes das Índias
17

Ocidentais ao mercado de têxteis britânicos: efetivamente, parece que este foi o caso.
18
Williams, Capitalism and Slavery, p. 162-163 e 251. As Índias Ocidentais eram tão importantes para as
indústrias escocesas quanto inglesas. As exportações de algodão das Índias Ocidentais ainda eram
superiores às dos Estados Unidos no início do século XIX, apesar do extraordinário crescimento norte-
americano dos anos 1790. Por outro lado, a Guiana (principal território tropical conquistado pelos
ingleses em 1803 e 1806) era um grande exportador de algodão. Consequentemente, a continuação do
tráfico permitiu o aumento da produção de açúcar assim como de algodão. Em 1804, a Grã-Bretanha
ainda recebia quantidades de algodão quase iguais das Índias Ocidentais e dos Estados Unidos. E, ainda
em 1814, uma das razões invocadas para manter Demerara em estado de subdesenvolvimento era sua

23
sistema escravista dos Estados Unidos não tinha, de modo algum, se distanciado
das Índias Ocidentais no início do século XIX. Ainda no período 1801-1803, as
importações de algodão das Índias Ocidentais ultrapassavam as de algodão dos
Estados Unidos. Aliás, em 1808, a expansão norte-americana ainda era tributária
da continuação do tráfico de escravos africanos, via navios britânicos. E mesmo
(422) que, depois de 1815, tivesse havido uma substituição quase completa pela
produção norte-americana, como justificar isso na medida em que a concorrência
industrial – têxtil entre outras – ocorreu no quadro das restrições trazidas ao trabalho
escravista das Índias Ocidentais? Pois, em 1805, não somente as Índias Ocidentais em
muito contribuíam para as importações britânicas de algodão bruto, mas eram,
além disso, as colônias mais recentes, dinâmicas e bem providas de escravos, que
tinham um lugar cada vez mais importante nesta produção. Em 1796, após a
primeira ocupação de Demerara pelos britânicos, as exportações de algodão em
direção à Grã-Bretanha aumentaram em 6.000% (e as de açúcar em 1.200%).
Portanto, a proporção do algodão produzido sob a soberania britânica aumentava
após cada conquista. Em 1807, um pouco menos de dois terços da produção de
algodão das Índias Ocidentais britânicas provinha de Demerara. Em 1811, essa
proporção era de praticamente três quartos. E a importância dessa produção se revelou
provavelmente mais decisiva no período 1812-1814, em consequência da queda das
importações de algodão dos Estados Unidos, e as fábricas de fiação de Lancashire e de
Lanarkshire deveram sua sobrevivência aos aportes da Guiana britânica. 19 Diante disso,
nada permite afirmar que os industriais, entre 1788 e 1815, tinham algum interesse
econômico para reivindicar a limitação do tráfico britânico. Quer se trate de fontes
de matérias primas ou de perspectivas de mercado para as exportações, o sistema
escravista era – em si mesmo, independentemente do tráfico – completamente
lucrativo para os industriais britânicos: do mesmo modo, sua atitude só pôde
evoluir consecutivamente à abolição, não antes.

produção potencial de algodão bruto. Ver J. H. Rose, “The Struggle with Napoleon, 1803-1815”,
Cambridge History of the British Empire, Cambridge, 1940, p. 127 e nota; e Alan H. Adamson, Sugar
Without Slaves: The Political Economy of British Guiana, 1838-1904, New Haven, Yale University
Press, 1972, p. 24-25.
19
J. H. Rose, “British West India Commerce as a Factor in the Napoleonic Wars”, Cambridge Historical
Journal, III, outubro 1929, p. 44; Adamson, Sugar without Slaves, p. 24-25.

24
Abordamos agora a segunda parte da tese do declínio: o lugar do sistema
escravista britânico no mercado mundial. Ainda sobre isso, a tese é peremptória: os
sistemas escravistas declinaram historicamente, tanto do ponto de vista da produtividade
naquilo que se refere aos lucros realizados, paralelamente aos prejuízos inevitavelmente
provocados pelo sistema da monocultura do açúcar sobre a fertilidade dos solos. A
partir deste modelo, as colônias britânicas, descritas como ilhas onde era permitido
realizar lucros consideráveis graças à sua produção de açúcar no último terço do século
XVII e nos dois primeiros terços do século XVIII, são descritas por Ragatz e Williams
como quase agonizantes ao redor do final do século XVIII, em razão de concorrentes
mais jovens e mais vigorosos.
Esse quadro do sistema escravista britânico não resiste a uma análise, ainda que
superficial. Em primeiro lugar, a supremacia da Grã-Bretanha sobre o mercado de
açúcar na metade do século XVIII, de que fala Williams, é pura invenção. As
colônias francesas eram “as primeiras produtoras de açúcar no mundo” bem antes
da Revolução norte-americana.20 Do ponto de vista do volume, o comércio
britânico só reinou como senhor incontestável sobre a produção após a revolta dos
escravos de Santo Domingo, em 1791. Entretanto, ainda que secundariamente, o
sistema britânico obteve enorme progresso entre 1750 e 1790, mas isso ocorreu
com praticamente todos os sistemas das diferentes nações, que, durante esse
período, conheceram taxas de crescimento muito semelhantes. As ligeiras flutuações
da parte da Grã-Bretanha na produção mundial, entre 1740 e 1790, resultaram (423)
essencialmente do fluxo e do refluxo das aquisições ou das perdas de guerra, assim
como das perdas ou dos ganhos territoriais consecutivos à guerra.
Mas isto não é nada em comparação com o que se produziu no curso do
período 1788-1815. As exportações de açúcar provenientes das colônias britânicas
atingiram então picos jamais vistos, proporcionalmente às importações do
Atlântico norte. Em 1806, o sistema britânico – não compreendidas as colônias
adquiridas posteriormente ao tratado de Amiens em 1802 – importava quase tanto
quanto todos os outros países do Atlântico norte reunidos. Se a isso se acrescenta as
colônias incorporadas à Grã-Bretanha em 1806, dois terços das exportações coloniais de
açúcar do mercado atlântico estavam sob o controle direto do Reino Unido. Enfim,
mesmo após as restituições coloniais de 1814-1815 (em benefício da França, da

20
Ver John J. McKusker, The Rum Trade and Balance of Payments of the Thirteen Continental Colonies,
1650-1775, Phi. D., University of Pittsburgh, 1970, p. 302.

25
Dinamarca e dos Países Baixos), a parte das colônias britânicas ainda era
considerável e atingia, nos tempos de paz, o pico de 57%. Em qualquer momento
considerado, de qualquer forma que se o meça, todo o período de 1790 a 1815 foi
aquele em que o sistema escravista britânico conheceu o apogeu da cultura do açúcar
(Ver a Tabela 5).
O segundo argumento em favor de um declínio no plano do mercado mundial
tem sua origem na produtividade e no custo da produção dos diferentes sistemas
escravistas. Conforme afirmam Ragatz e Williams, sem sequer terem recorrido a
dados seriados que lhes permitissem mostrar um aniquilamento no nível regional,
a produção açucareira da Grã-Bretanha deixou de ser competitiva no mercado
mundial após a Revolução norte-americana. A partir de uma escolha arbitrária – a
conquista colonial britânica teria conhecido seu apogeu durante a Guerra dos Sete Anos
–, Ragatz dá uma falsa imagem do “declínio” da competitividade da Grã-Bretanha
no mercado europeu depois do retorno à paz. Ao comparar as exportações das
colônias britânicas ao fim de um período de 15 anos de paz (1774-1775) com as de uma
época marcada pela guerra (1777-1783), Williams transforma uma baixa de
produção passageira num declínio secular.21 Por outro lado, ele se esquece de
distinguir nitidamente as colônias já em pleno desenvolvimento em 1787, e aquelas
ainda parcialmente ou mesmo completamente em estado de subdesenvolvimento no
período de 1787-1806. Em 1790, o açúcar francês era vendido mais barato que o
britânico em todo lugar da Europa. Mas o mesmo já ocorria bem antes da Revolução
norte-americana. E isso em nada implica um “declínio” do sistema escravista britânico
na medida em que, assim como mostrou McKuster em seu magistral estudo das colônias
britânicas produtoras de açúcar, o mercado interior britânico foi capaz de absorver uma
alta de 300% da produção colonial no período compreendido entre 1700 e a Revolução
norte-americana.22
Os limites deste estudo não nos permitem tratar do problema bastante complexo
da rentabilidade comparativa das diferentes colônias. Mas é preciso notar que, apesar da
soma impressionante de argumentos que eles empregam, Ragatz e Williams fazem
21
Ver Ragatz: The Fall..., p. 126; Williams, Capitalism and Slavery, p. 146-146.
22
Ver o testemunho de Peter Rose, no que concerne à Guiana Britânica em Parliamentary Papers, 1831-
1832, XX; Minutes of Evidence on the State of the West India Colonies, 852 (Question, 1675), para o
período 1800-1825. Ver também J. F. Barham, Considerations on the Abolition of Negro Slavery and the
Means of Practically Effecting It, Londres, 1823, p. 52, nota. Curtin toma o cuidado de salientar que
mesmo na metade do século XIX, a ruína da indústria açucareira das Índias Ocidentais era, sobretudo,
consequência do declínio da Jamaica e das ilhas do Caribe. Ver P. Curtin, “The British Sugar Duties and
West Indian Prosperity”, Journal of Economic History, XIV, n.1, spring 1954, p. 157-164.

26
vistas grossas sobre as variações regionais no próprio interior do sistema escravista
britânico, sem falar das exteriores ao sistema. Basta-nos dizer que ainda existiam na
metade dos anos 1820 colônias britânicas onde as plantations de cana-de-açúcar
permitiam realizar lucros iguais aos obtidos pela Jamaica em seus anos mais prósperos
(isto é, os anos 1760). Na ausência (424) de séries cronológicas para esses lucros,
somente se pode afirmar o seguinte: o declínio relativo dos lucros, por região,
parece ter variado, sobretudo, em razão da disponibilidade de mão-de-obra, ou
seja, em função das chegadas de escravos para as terras virgens férteis; do mesmo
modo, as ilhas menos vastas e (ou) já exploradas há muitos anos apresentaram no
final das contas dificuldades para rivalizar com os custos de produção das
concorrentes mais jovens, pertencentes ou não ao Império. Essas diferenças não
tinham nada a ver com as linhas de partilha da soberania colonial. A chegada no
mercado da produção de novos territórios, pertencendo ou não ao Império, constituía
uma ameaça constante para as “velhas” colônias. Isso não é motivo de dúvida, assim
como, aliás, a conquista para o Império de novos territórios graças à Marinha britânica
entre os anos de 1792 a 1807. Provavelmente, a verdadeira questão refira-se
simplesmente a uma mudança no capital e no trabalho no interior do Império, que
teria ocorrido nas Índias Ocidentais britânicas de um modo tão insensível quanto
no Brasil e na América do Sul. Cuba e Brasil, é verdade, começaram a aumentar
sua produção açucareira após o desaparecimento de Santo Domingo do mercado
quando da Revolução francesa; mas Trinidad e Guiana, em razão de seu
dinamismo, possuíam uma capacidade de desenvolvimento igual ou até mesmo
superior. Um desenvolvimento novo, regular, de grande envergadura no interior do
Império era mais considerável, é preciso sublinhar, na década posterior a 1797 do que
em qualquer outro momento posterior à Guerra dos Sete Anos. A abolição do tráfico se
efetuou, portanto, numa época em que a Grã-Bretanha, em relação a seus
concorrentes mundiais, dispunha de um potencial de solos virgens jamais visto:
estamos bem distantes da “época de vacas magras”, sublinhada por Ragatz e
Williams.
Existe um último índice ao qual desejamos fazer alusão no contexto
intercolonial. Trata-se da “dimensão” relativa dos sistemas escravistas no período 1783-
1815. Em 1783, a população de escravos das colônias britânicas diminuíra pela metade

27
em relação a 177523, e, pela primeira vez, ela estava decrescendo a um nível inferior à
da sua principal rival sob os trópicos: a França (ver a Tabela 6). Entretanto, tratava-se
menos do ponto de partida de um movimento de longa duração do que de um acidente
demográfico limitado aos anos 1783-1790. A partir de 1806, a população de escravos
voltou a crescer de forma extremamente rápida e alcançou, comparativamente à França,
o seu nível de 1775 (sem levar em conta as colônias reconquistadas pela Grã-Bretanha
após a retomada das hostilidades em 1803). Caso se adicione as populações escravas
dos dois Impérios (escravos franceses + escravos britânicos), em 1790, 40% pertenciam
ao sistema britânico e 60% à França, ao passo que, em 1805, as proporções eram de 2/3
para os britânicos e de 1/3 para os franceses, com exclusão das conquistas não
sancionadas por algum tratado. Enfim, em 1814, após as integrações (ou reintegrações)
ao Império de colônias conquistadas entre 1807 e 1814, a Grã-Bretanha dispunha de
quatro vezes mais escravos do que a França.
Quanto à população ativa, seu crescimento foi ainda mais rápido do que da
população britânica no momento da “decolagem” de 1790-1806. Enquanto a população
britânica aumentou algo em torno de um sexto, a de escravos aumentou pelo menos um
quarto, isso contando apenas as colônias cuja ligação com o Império estavam
sancionadas por algum tratado. Caso se acrescente as colônias das índias Ocidentais
conquistadas em 1804, obtém-se então um acréscimo (425) superior a 50%; e a fração
da idade mais produtiva aí está sobre-representada em razão do tráfico. Esse acréscimo
da mão-de-obra coincidia perfeitamente com as previsíveis necessidades do mercado
interior britânico de produtos tropicais. Em 1814, a população de escravos das colônias
britânicas ultrapassava em 86% a de 1790. Por volta de 25% dessa população residia
nas novas conquistas, em sua grande maioria subdesenvolvidas, obtidas durante as
guerras com a França. Assim, do ponto de vista demográfico, o sistema britânico
aumentara em tamanho sem, entretanto, aumentar em densidade. Em 1790, contava-se
37 escravos por milhas quadradas (259 h.) para o conjunto das colônias britânicas.
Somente na Guiana, reconquistada em 1803, havia menos de um escravo por milha
quadrada. Mesmo que seja difícil formar uma ideia das superfícies cultivadas, a
tendência relativa aparece claramente. Em relação às condições anteriores, o sistema
escravista britânico se ampliou, e em nenhum caso se retraiu entre 1787 e 1807. E isso

23
As estimativas demográficas (1790-1814) estão baseadas nos dados de A. Moreau de Jonnes,
Recherches Statistiques sur l’esclavage colonial, Paris, 1846, ou na sua falta, nas extrapolações a partir de
duas estimativas compostas anuais da população da França, da Espanha, da Alemanha e da Dinamarca
durante o período referido.

28
num período em que as outras grandes potências coloniais, os Países Baixos, a Espanha,
Portugal e França estavam se enfraquecendo: somente a Grã-Bretanha conhecia a
expansão. Os anos 1804-1806 representaram um pico para o sistema britânico,
comparativamente a todos os seus rivais europeus. Além disso, quando posteriormente
ela recuperou algumas de suas conquistas coloniais no fim das guerras napoleônicas, a
Grã-Bretanha ocupou uma posição florescente em relação às potências coloniais da
Europa do Norte. Seu sistema escravista – do ponto de vista da população, capitais,
produções e comércio – representava três vezes o valor das colônias francesas,
holandesas e dinamarquesas reunidas. Mesmo que a isto se acrescente aquilo que
restava das colônias espanholas, o Império britânico possuía, em 1815, 60% de todas as
colônias escravistas europeias.

Entre a arrancada da campanha abolicionista (1787) e a entrada em vigor


da abolição (1807), a parte das Índias Ocidentais no comércio britânico só cresceu
– e não diminuiu – quer se trate das importações ou das exportações. A produção
britânica de açúcar aumentou mais (e não menos) rapidamente do que antes de
1788. A produção e a população escrava aumentaram de modo espetacular. Enfim,
e, sobretudo, as reservas britânicas em terras virgens aumentaram em proporções
consideráveis após 1790. O tráfico abandonou, de fato, as “velhas” ilhas nos anos
1803-1804, marcando o fim de um tráfico de escravos desenfreado.
É igualmente bastante interessante, do ponto de vista econômico, considerar a
função da “válvula de segurança” desempenhada pelas colônias como parceiras
comerciais da Grã-Bretanha no período (posterior a 1806) marcado ao mesmo tempo
pela guerra econômica e militar. De um lado, ao passo que as exportações britânicas
com destino à Europa, à América do Norte e à Ásia diminuíram entre 1802 e 1806 e
1807-1811, o comércio com a América Latina e as Índias Ocidentais esteve em
expansão. Nesse período crítico, os únicos mercados britânicos em expansão eram,
portanto, os dos principais sistemas escravistas. Por outro lado, os mercados norte-
americanos e europeus, e mesmo os dos sistemas escravistas estrangeiros, eram bem
mais imprevisíveis que os das Índias Ocidentais britânicas. 24 Parece que, de 1805 a

24
Ver François Crouzet, L’économie britannique et le Blocus continetal, 1806-1813, 2 volumes, II, Paris,
1958, Apêndice II, Tabela 1 a 7, valores do comércio britânico: 1802-1812, p. 883-889.

29
1813, o cliente mais seguro da Grã-Bretanha foram as Índias Ocidentais. Na (426)
ausência de alternativas, o Império não podia retirar das Índias Ocidentais o papel
predominante na rede comercial britânica. E o fato de que a partir de 1806 elas
estiveram ao abrigo de um ataque militar explica a suprema importância que elas
desempenharam durante as guerras napoleônicas, tal como sublinhado por J. H. Rose na
Cambridge History of the British Empire. Pois, seguramente, os produtos coloniais
foram a razão do Bloqueio continental.25

Muito ainda há para ser dito em relação às condições econômicas do período


1787-1806. Como nosso propósito é de outra ordem, evitaremos insistir sobre as
importantes flutuações das riquezas que dissimulam os dados globais. Basta-nos
salientar que as estratégias da economia política desse período utilizaram, no debate
sobre a abolição, os índices que nos serviram como quadro de referência. Nada, no
conjunto dos debates parlamentares dos anos 1788-1807, nos permite afirmar que
o sistema das Índias Ocidentais era considerado naquele momento como
relativamente sem interesse ou como se perdesse cada vez mais importância. Os
deputados das Índias Ocidentais tinham certamente todo interesse em destacar o
papel cada vez mais importante do comércio caribenho para o Império. E não
deixaram de fazê-lo. Porém, mesmo os partidários das restrições impostas ao sistema
escravista jamais afirmaram que este comércio tinha pouca importância ou que estava
em declínio. Pelo contrário, eles afirmavam que o sistema podia sobreviver sem aportes
suplementares de mão-de-obra africana. Entretanto, é necessário insistir sobre a imensa
diferença que pode haver entre uma sobrevida assegurada no curto prazo e um
crescimento no longo prazo. Além disso, os abolicionistas declaravam, pelo menos
entre 1792 e 1797, que a continuação do tráfico equivaleria a uma rápida ruína das
colônias, com o risco dos escravos se revoltarem a exemplo de Santo Domingo. Isso
equivalia a dizer que o tráfico podia, ou devia, ser separado do sistema escravista:
nada a ver com uma ameaça econômica que surgiria do próprio sistema. Pelo
contrário, os abolicionistas reconheciam a importância econômica, presente e
futura, do sistema escravista britânico e sublinhavam o papel dos mercados na
rápida expansão da economia tropical entre 1787 e 1805.
25
Ver J. H. Rose, The Struggle..., op. cit.

30
Quaisquer que fossem os argumentos empregados quanto ao valor econômico
teórico que representavam as colônias para a Grã-Bretanha, jamais, ao longo dos
debates sobre a abolição, a importância econômica das colônias escravistas para o
Império foi posta em questão. Quando os anti-abolicionistas mencionaram dados
precisos (para as importações e as exportações), eles não foram questionados. Basta
percorrer os textos dos discursos pronunciados no Parlamento entre 1788 e 1807 para
perceber que a importância do sistema das Índias Ocidentais foi estatisticamente
estabelecida desde 1788, e depois reconhecida em várias ocasiões, de 1789 a 1807.
Diante da impossibilidade de contestar essa importância, os abolicionistas tiveram
consequentemente alguma dificuldade para demonstrar que não havia interdependência
entre as economias escravistas e o tráfico africano, fato sobre o qual justamente
insistiam seus adversários. Apesar disso, os abolicionistas contestaram essa
interdependência ou lhe acusaram de trazer prejuízos à economia. Lorde Greville,
principal porta-voz dos abolicionistas na Câmara dos Lordes em 1806-1807,
reconheceu francamente que em 1807 o tráfico (427) era lucrativo, declarando que
sem isso tal medida seria decididamente inútil. 26 De outro lado, os abolicionistas
prudentemente evitavam abordar a questão das consequências da abolição para as
Índias Ocidentais: segundo eles, tudo isso era puramente conjectural. Eles
acrescentavam bem firmes que, dada a situação estratégica da Grã-Bretanha, essas
consequências não podiam ser, no curto prazo, desfavoráveis. Entretanto, eles
admitiam e previam o fim do crescimento rápido. Lorde Howick, o relator da lei
da abolição na Câmara dos Comuns, reconhecia que era óbvio que os
arroteamentos não poderiam ser realizados sem novas importações de escravos
africanos.27 Portanto, ao votar a lei da abolição, o Parlamento tinha perfeitamente
consciência de que estava em vias de matar um comércio lucrativo e de causar
prejuízo a uma economia em plena expansão.
Mas, nos debates de 1788 a 1806, não havia dúvidas sobre a importância e o
crescimento econômico do sistema escravista. O tráfico era lucrativo, e nenhum
dos dois “partidos” presentes negava isso. A controvérsia girava em torno de três
pontos principais: 1º era necessário e benéfico economicamente que o sistema
escravista tivesse uma expansão máxima? 2º tal crescimento tinha sua razão de ser,

26
COBBETT, Parliamentary Debates, vol. VIII, 1806-1807, p. 613-614.
27
Ibid., 943. The Edinburgh Review, IV, Julho de 1804, p. 481, afirmava que o tráfico permitia a abertura
de “novas plantations” e o revigoramento rápido das antigas.

31
em comparação com os problemas morais que a Grã-Bretanha deveria afrontar, e
a hemorragia de homens que ele infligia à África? 3º os ganhos da economia
bastavam para compensar a escalada dos “perigos” revolucionários? Era o temor
de uma explosão mais do que a capacidade – ou a incapacidade – de expansão do
sistema que oprimia os parlamentares favoráveis à abolição. Por isso, sua
argumentação era quase sempre dialética: uma chama expansiva de curta duração
levaria a uma desordem imediata (uma revolta de escravos), ou a um declínio no longo
prazo (um inchaço especulativo do endividamento). O que explica também porque os
parlamentares adversários da abolição se mantinham quase sempre em seu papel de
graves empiristas, refugiando-se atrás de seus dados sem quase nunca ir além. Os
abolicionistas resistiram finalmente fazendo abstrações dos fatos concretos que se
interpunham entre eles e o fim que desejavam: nisto, eles foram os precursores de
muitos revolucionários que viriam.

Tabela 1
Importância das trocas entre a Inglaterra e as cinco regiões não-europeias do globo no
comércio global da Grã-Bretanha: médias percentuais quinquenais, de 1713-1717 a
1818-1822
Ano Antilhas América do América do Ásia África
britânicas Norte Sul
EW* 1713-1717 10,7% 6,5% 1,8% 6,3% 0,9%
EW 1718-1722 9,9 7,2 1,7 8,3 1,2
EW 1723-1727 10,9 7,8 2,4 6,6 1,7
EW 1728-1732 11,7 7,8 2,2 7,2 1,8
EW 1733-1737 10,1 8,7 1,3 7,9 1,4
EW 1738-1742 11,1 10,3 2,1 8,6 1,4
EW 1743-1747 10,3 9,4 2,1 9,2 1,1
EW 1748-1752 11,5 11,5 0,6 9,2 1,3
EW 1753-1757 14,0 12,8 0,0 10,2 1,3
EW 1758-1762 14,3 14,9 2,6 9,3 1,5
GB 1763-1767 15,3 14,6 1,1 10,6 2,3
GB 1768-1772 17,7 16,6 0,4 12,1 3,0
GB 1773-1777 19,7 12,1 0,3 9,8 2,8
GB 1778-1782 21,0 7,9 0,7 12,6 1,5
GB 1783-1787 19,1 14,3 0,4 15,1 3,0
GB 1788-1792 17,8 15,9 0,9 15,4 2,9
GB 1793-1797 18,0 17,5 2,4 16,6 1,7
GB 1798-1802 20,2 17,3 4,1 13,7 2,3
GB 1803-1807 29,8 19,1 2,9 12,7 2,1
GB 1808-1812 20,9 13,8 14,4 9,6 1,1

32
GB 1813-1817 17,6 14,4 9,1 12,1 0,9
GB 1818-1822 15,9 15,1 8,7 13,2 1,0
UK 1818-1822 16,1
UK 1823-1827 13,8
1828-1832 12,3
*EW: England and Wales (Inglaterra e Escócia); GB: Great Bretain (Grã-Bretanha); UK: United
Kingdom (Reino Unido).
Fonte: B. R. Mitchell and P. Deane, Overseas Trade”, Abstract of British Historical Statistics,
Cambridge, England, 1962, p. 309-311.
Tabela 2
Exportações britânicas para a África, 1749-1822
(1749-1755 = 100)
Período Índice Média anual Guerra ou Paz
1749-1755 100 (213,841) Paz
1756-1762 112 (240,488) Guerra
1763-1774 285 (609,893) Paz
1775-1783 180 (384,166) Guerra
1784-1792 379 (809,546) Paz
1793-1797 287 (612,763) Guerra
1798-1802 589 (1259,265) Guerra
1803-1807 488 (1042,725) Guerra
1808-1812 232 (496,792) Guerra
1813-1817 199 (425,264) Paz
1817-1822 265 (566,800) Paz

Até 1792, as médias quinquenais utilizadas correspondem a períodos sucessivamente


marcados pela paz, depois a guerra; esse esquema é rompido a partir de 1807. A
comparação de qualquer período quinquenal, anterior a 1792, com o período de 1792-
1807 faz ressaltar o impulso comercial dos anos 1792-1807. A queda súbita das
exportações após 1807 foi de fato mais importante do que a Tabela deixa supor. Após
1810-1813, as exportações em direção à Colônia do Cabo (conquistada em 1806),
representavam perto da metade das exportações britânicas para a África.

Fontes: J. Marshall, A Digest off All the Accounts relating to the Population, Production, Revenues,
Financial Operations, Manufactures, Shipping, Colonies, Commerce of the United Kingdom from more
than 600 Volumes of Reports, London, 1833; Parliamentary Papers, 1813-1814, XII, p. 200-201.

Tabela 3
Médias das exportações anuais do século XVIII em três “escalas de exportação”
Período Total Média anual Média anual britânica Porcentagem britânica
(1) (2) (3) (4) (5) (6)
1701-1710 31.000 12.000 39
1711-1720 33.200 14.100 42
1721-1730 38.100 14200 37

33
1731-1740 49.800 20.700 42
1741-1750 54.400 25.500 46
1751-1760 48.500 23.100 48
1761-1770 56.500 59.900 27.200 30.600 48 51
1771-1780 46.900 52.700 19.600 25.400 42 48
1781-1790 79.600 79.300 32.600 32.300 41 41
1791-1800 62.400 71.800 32.600 42.000 52 59
1801-1805 60.700 58.200 38.000 35.500 63 61
1801-1807 60.700 59.300 38.000 36.600 63 62

Os dados da coluna 3 foram extraídos da obra de Curtin, Atlantic Slave Trade, p. 150,
Tabela 43, que cobre o período 1701-1710 a 1800-1807. Os dados da coluna 1 também
foram deduzidos da mesma obra: a tabela 63 da p. 211 indica os dados para Portugal,
França e Grã-Bretanha durante o período de 1701-1710 a 1801-1810. No que concerne
ao período 1701-1807, acrescentou-se as médias anuais britânicas às de Portugal
(sempre a partir dos dados de Curtin). Para a coluna 4, utilizamos as Tabelas 1 a 3, p. 5,
7 e 9 da obra de Roger Anstey: Volume and Profitability of the Slave Trade, 1761-1807
nas quais se encontram as médias para o período 1761-1790 e as estimativas anuais para
os anos de 1791-1807. Procedeu-se para a coluna 2 do mesmo modo que para a coluna
1, mas a partir do livro de Anstey. Os dados da coluna 5 foram calculados a partir dos
dados das colunas (3: 1) de Curtin, os da coluna 6, das colunas (4: 2) de Anstey.

Fontes: Curtin, Atlantic Slave Trade, quadros 43, 63, p. 150, 211. R. Anstey, The Volume and
Profitability of the Slave Trade, 1761-1807, Tabelas 1, 2, 3. Gomer Williams indica também em sua
History of Liverpool (p. 680) que de 1801 a 1807 (último período do tráfico legal de escravos) os navios
britânicos transportavam em média 35.100 escravos por ano. São cifras muito próximas das de Curtin
(38.000) e de Anstey (36.000). Em todo caso, uma destas cifras basta para nossos propósitos.

Tabela 4
Porcentagens de exportação de alguns produtos típicos da indústria britânica (por
quantidade) em direção às Índias ocidentais, 1770-1800
Ano Latão Cobre Ferro Prego Lou Sed Tecido e Pelotas Pelotas Flane
traba- batido forjado -ça a algodão de lã de lã la
lhado estampado simples duplas
1770 15 45 33 __ 25 10 12 3 3 4
1775 16 53 41 50 30 14 39 2 4 10
1780 11 10 26 79 18 8 19 7 2 10
1785 10 16 22 25 __ 5 15 3 2 3
1790 12 __ 27 19 16 4 __ 3 11 15
1795 15 18 26 24 13 6 25 10 14 19
1800 9 24 21 30 17 6 16 11 35 12
1805-07 __ __ 43,3 __ __ __ __ __ __ __

34
Fontes: Elizabeth Schumpeter, British Overseas Trade Statistics, 1697-1808, Oxford, 1960, p. 62-69.
Quadros XIX, XXI, XXIV, XXV, XXVI, XXVIII, XXXII, XXXIV; Parliamentary Papers, 1813-1814,
xii, p. 225.

Tabela 5
Repercussões (máxima e mínima) das transferências de soberania sobre a divisão da
produção mundial de açúcar, 1797-1814
Potência (1) (2) (3)
Soberana 1797-1801 1802-1806 1810-1814
Antes + após Amiens + antes Paris
após Amiens antes PAris
Grã-Bretanha máximo mínimo máximo mínimo máximo Mínimo
65,5 47,3 64,6 49,1 74,7 49,1
mínimo máximo mínimo máximo mínimo Máximo
Dinamarca __ 6,1 __ 6,5 __ 8,0
Holanda 0,9 6,0 0,5 6,7 __ 6,7
França 2,8 13,2 6,3 10,3 0,7 11,6
Portugal 15,3 15,3 9,1 9,1 4,6 4,6
Espanha 12,2 12,8 14,7 14,7 16,3 16,3
Estados __ __ 0,9 0,9 2,0 2,0
Unidos
Haiti 3,5 __ 2,7 2,7 1,7 1,7
* = proporção efetiva ao fim do período considerado
Fontes: Deer, History of Sugar, I, p. 59-203; Parliamentary Papers, 1831-1832, XX, Report, p. 942.
Marshall, A Digest; Southey, Chronological History, IV. John G. Clark, New Orleans, 1718-1812: An
Economic History, Baton Rouge, 1970, LSV 219, p. 305.

Tabela 6
Importância da força de trabalho servil nos impérios britânico e francês, 1710-1814 (em
milhares de escravos)
Ilhas do Caribe Total
Ano Francesas Britânicas Francês Britânico
1710 88 148 90 197
1730 169 219 169 310
1750 265 295 270 531
1770 379 428 445 880
1790 675 480 735 480
1805 175(a) 585(b) 290(a) 605(e)
620(c) 640(c)
715(d) 735(d)
1814 178 755 230 870
a) Haiti, St. Lúcia, Tobago excluído.
b) não compreendido St. Lúcia, Tobago, Demerara e Berbice.

35
c) não compreendido Demerara e Berbice apenas.
d) não excluindo nenhum dos nomes que figuram em b).
e) compreendendo Ceilão (estimativa). Ceilão incluído em todos os “totais” para 1805.

Fontes: Para o Caribe, 1710-1770: McKusker, The Rum Trade and the Balance of Payments of the
Thirteen Colonies, 1650-1775, Ph. D. Dissertation, Univ. of Pittsburgh, 1970, 602-712. Para as colônias
norte-americanas continentais do Sul, “Colonial Statistics”, em United States Department of Commerce,
Bureau of the Census; Historical Statistics of the United States, Colonial Time to 1957 (Washington,
1960), 756; para outras áreas, 1750-1814, e para o Caribe, 1790-1814: Moreau de Jonnes, Recherches
statistiques sur l’esclavage colonial et sur les moyens de le supprimer (Paris, 1842), capítulos sobre as
colônias francesas e britânicas. As estimativas aproximadas dos não-brancos livres foram tomadas das
tabelas de McKusker para cada ilha, utilizando a tabela-sumário da página 712.

36
Eric Williams e a abolição: o nascimento de uma nova ortodoxia

Howard Temperley

(229) Em 1 agosto de 1984, o primeiro-ministro Forbes Burnham disse a


5000 pessoas num comício em Georgetown – a capital da Guiana – que a Grã-
Bretanha não abolira a escravidão em 1834 por razões humanitárias, mas sim
porque o sistema havia se tornado “desvantajoso, arriscado e caro”. É pouco
provável que essa informação constituísse uma novidade para a maioria da sua
audiência.28 Dois dias antes, Marylin Gordon, que ocupava o Ministério dos
Esportes, Cultura e Assuntos da Juventude, fizera comentários similares em uma
reunião no Instituto de Relações Internacionais da Universidade das Índias
Ocidentais, em S. Augustine, Trinidad.29 Decerto, esses comentários também não
causaram surpresa alguma. Por mais revolucionários que pudessem parecer em
Oxford ou em qualquer outro lugar nas décadas de 1930 e 1940, ele já reproduzia
“dogmas estabelecidos dentro da UCWI na década de 1950” e estava penetrando
em um grande número de escolas de todas as Índias Ocidentais, como Elsa Goveia
nos diz.30
É claro que a Dra. Goveia estava se referindo especificamente às visões de
Eric Williams. Como político, é possível suspeitar que Williams não ficaria aborrecido
por causa da frequência das citações das suas ideias no aniversário de 150 anos da
abolição da escravidão nas Índias Ocidentais, embora não tenhamos segurança para
afirmar que ele, como acadêmico, concordaria com tudo o que lhe era atribuído. Para
quem quer que esteja familiarizado com a série completa dos seus escritos, e com a
mudança das suas ideias com o passar dos anos, é óbvio que os pronunciamentos
públicos feitos nessa ocasião não refletiam adequadamente a sutileza, a complexidade e
também, o que deve ser confessado, a absoluta contrariedade do seu argumento.


Publicado originalmente em TEMPERLEY, Howard. Eric Williams and Abolition: The Birth of a New
Orthodoxy. In SOLOW, Barbara L.; ENGERMAN, Stanley L. British Capitalism and Caribbean
Slavery. The legacy of Eric Williams. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 229-257.
28
. Conforme uma reportagem do The Times, de Londres, de 3 de agosto de 1984.
. A Sra. Gordon estava abrindo uma conferência patrocinada pela Universidade das Índias Ocidentais,
29

na qual o autor estava presente.



N. do T. University College of the West Indies, na Jamaica.
30
. Elsa V. Goveia, “New Shibboleths for Old”, Social and Economic Studies, v. 10, n. 2 (1964), p. 53.

37
(230) Em lugar algum esses traços estão mais reveladoramente expostos do que
no tratamento de um dos fenômenos destacados por uma menção particular de Burnham
– nomeadamente ao humanitarismo britânico. “Os humanitaristas britânicos”, como
Williams afirma na sua principal obra publicada sobre o assunto, o Capitalismo e
Escravidão (1944), “formaram um grupo brilhante”. Eles estiveram na “linha de
frente do ataque devastador que destruiu o sistema das Índias Ocidentais e
libertou o negro”. No fim das contas, foi “o humanitarismo que destruiu esse
sistema”. Contudo, “a importância dos humanitaristas tem sido seriamente mal
compreendida e grosseiramente exagerada”. Alguns, como Clarkson,
personificaram “o que havia de melhor do humanitarismo na época”, mas outros
não se igualaram aos seus velhos padrões. Foram conservadores, inconsistentes e
transviados. Comparado com Clarkson e Ramsay, “Wilberforce, com seu rosto
afeminado, parece de baixa estatura... Como um líder, ele foi inepto, obsecado pela
moderação, pelo acordo e pela protelação... Foi um lobista, e se dizia comumente que o
seu voto era seguramente previsível, pois estava sempre na contramão do seu discurso”.
Buxton, o sucessor de Wilberforce, era ingênuo e indeciso. Há até mesmo a
possibilidade de que, em alguns casos, o zelo abolicionista foi estimulado pela
expectativa de ganho pecuniário. Esse argumento é difícil de provar, mas as
circunstâncias são sugestivas, e a suspeita levantada a esse respeito prejudicou a causa.
E, finalmente, eles simplesmente abandonaram o negro. “A Lei de Emancipação marcou
o fim dos esforços abolicionistas. Eles ficaram satisfeitos. Nunca se deram conta de que
a liberdade do negro podia ser apenas nominal enquanto a grande lavoura de açúcar
fosse mantida”. Até mesmo o apoio de Clarkson tinha pouca firmeza. No fim, somos
levados a nos interrogar se eles realmente foram brilhantes.31
Com base nessa afirmação, fica uma dúvida: seria possível justificar o tipo de
conclusão a que Forbes Burnham e Marilyn Gordon chegaram? Mas o que está claro é
que, pelo menos à primeira vista, a visão do Dr. Williams parece um tanto contraditória.
De fato, hoje poucos se identificariam com todos os aspectos da causa tal como ela
foi apresentada pelos abolicionistas durante a longa campanha pela emancipação
dos escravos, menos ainda com suas visões sobre outras questões. Eles foram
homens de uma época e seus argumentos (231) não seriam necessariamente os que
usaríamos. O mais importante é que se engajaram em uma luta que demandava o

31
. Eric Williams, Capitalism and Slavery (Chapel Hill, N. C., 1944). Cap. 9. Doravante serão feitas
referências a essa obra no texto.

38
exercício de habilidades políticas, que, por sua vez, impunha constrangimentos
poderosos para que eles pudessem expressar livremente suas visões. Por exemplo,
aquilo que disseram no curso dos debates parlamentares frequentemente não
refletia suas crenças fundamentais, mas sim as necessidades políticas do momento.
É desnecessário dizer que os próprios abolicionistas tinham discordâncias sobre
essas questões. De uma maneira ou de outra, eles faziam parte de um grupo
singularmente variado. Na prática, muitas das suas discordâncias eram sobre
questões de táticas, mas elas se estendiam frequentemente para pontos polêmicos
mais básicos.
Todavia, essas discordâncias não explicam o caráter aparentemente
contraditório da narrativa de Williams. Afinal, foi esse humanitarismo que
derrotou a escravidão, ou a escravidão foi completamente rejeitada por outras
razões? Os abolicionistas eram verdadeiros amigos do escravo e lutaram uma longa e
árdua batalha pela emancipação, ou eram incompetentes hesitantes que no fim das
contas abandonaram o negro? Os escritos de Williams parecem dar apoio a cada uma
dessas opiniões em diferentes passagens.
Essas questões podem ser esclarecidas se forem observados, em primeiro lugar,
o caminho percorrido pelas ideias de Williams, e, em seguida, o contexto mais amplo,
conforme sua descrição, dentro do qual ocorreu a luta antiescravista.

Eric Williams nasceu em 1911, sendo o primogênito de um funcionário de baixo


escalão do correio de Port-of-Spain, em Trinidad. Sua família era grande e o tempo era
difícil. Era difícil encontrar um lugar para viver, como ele nos diz. Como era o filho
mais velho, ele passou a ser o principal ajudante dos seus pais para garantir a
sobrevivência da família, um problema que se tornara progressivamente mais difícil de
resolver à medida que a família crescia mais rapidamente que os fundos disponíveis
para sustentá-la. “O decrescente padrão de vida da família”, ele lembra na sua
autobiografia, “se refletia no declive do sanitário para a fossa, e, num cenário
pessimista, o administrador da propriedade podia aparecer. A tortura da mudança, o
horror da fossa, o medo do despejo eram apenas os aspectos externos” de uma
existência que incluía a inadequação das roupas, da dieta e da assistência médica.32
Williams nunca se esqueceu da amargura causada por essas experiências, (232)
nem das circunstâncias políticas e econômicas que as causaram. A Trinidad da sua

. Eric Williams, Inward Hunger: The Education of a Prime Minister (London, 1969), p. 26-28.
32

39
juventude, como ele escreveu mais tarde, tinha “um governo que não representava o
povo e não era responsável por ele; a economia estava quase exclusivamente nas mãos
de estrangeiros; a população era formada de cortadores de lenha e carregadores de água
que serviam seus suseranos estrangeiros”. Ainda assim, em comparação com a maior
parte da população, a família de Williams era privilegiada; pelo menos tinha uma renda
regular e acesso à educação, ao contrário da maioria dos trinidadianos. No século XIX,
o imperialismo britânico havia justificado a sua expansão por meio de slogans:
“‘Devemos educar os nossos senhores’ e ‘Abrir uma escola e fechar uma prisão’”. Por
outro lado, a marca do domínio britânico em Trinidad foi a recusa à educação de massa
e a prioridade dada às prisões”.33 Em geral, o povo de Trinidad tinha poucos motivos
para se sentir satisfeito com o que o domínio britânico havia feito por ele.
De todo modo, Eric Williams foi para a escola e não para a prisão. No colégio
Queen’s Royal, em Trinidad, ele ganhou uma bolsa de estudos que o levou a Oxford,
onde obteve a nota mais alta do curso de graduação de História e, no tempo apropriado,
ele fez o doutorado. Ainda assim, as memórias de Williams sobre Oxford estavam longe
de ser felizes. Seus tutores viam-no com bons olhos, a ponto de sugerirem que ele
concorresse a uma bolsa, que também lhe daria posto acadêmico, do All Souls College,
a mais elitista das instituições britânicas. Nos exames escritos, ele ficou em nono lugar
entre dezesseis candidatos. De qualquer maneira, esse episódio, ao qual ele devotou três
páginas da sua autobiografia, causou-lhe aborrecimento. “Eu fiquei zangado. Não
porque senti que havia ganhado o prêmio. Eu sabia que não o ganhara. Mas sim porque
sabia que nunca o ganharia”. A lição que extraiu dessa sua experiência foi a de que
“Nenhum ‘nativo’, mesmo que fosse destribalizado, poderia se encaixar socialmente no
All Souls”, ou decerto em qualquer sala de professores de Oxford. Os tutores se
apressaram para assegurar-lhe de que estava errado e de que, pelo menos em Oxford, a
raça era irrelevante, mas o argumento não o convenceu. Um tutor que ele encontrou
mais tarde era, conforme sua própria observação, “um homem da minha idade, que
obteve a nota mais alta no curso de Filosofia no mesmo ano que obtive a do curso de
História. No entanto, sendo branco, ele conseguiu a bolsa e o posto sem fazer o exame”.
Apesar da declaração solene de tolerância de Oxford e de tudo que Williams fizera para
conquistar sua aprovação, a universidade revelava que não estava disposta a admiti-lo.34

. Ibid., p. 11, 18, 21.


33

. Ibid., p. 30-31, 43, 45-47.


34

40
(233) Essas são as lembranças de Williams, e não podemos saber com segurança
se elas refletem corretamente o que ele sentia na época. Em particular, não temos
certeza sobre como ele via exatamente a Oxford History School, à qual dirigiu críticas
muito severas especialmente porque considerava inadequado o tratamento que ela dava
às questões das Índias Ocidentais. Em British Historians and the West Indies (1966), ele
caracterizou a Grã-Bretanha como “um mundo velho e cansado, cujos historiadores
representativos, que ornamentam as maiores universidades metropolitanas, procuravam
apenas justificar o indefensável e buscar apoio para preconceitos antiquados”.35 Afora
Thomas Carlyle, a quem ele dedicou todo um capítulo desse livro (e que,
incidentalmente, não ocupou uma cadeira universitária), a figura que ele destaca para
uma crítica especial é Reginald Coupland, que na época de Williams era Beit Professor
de História Colonial de Oxford e, por isso mesmo, membro do All Souls. Coupland foi,
entre outras coisas, biógrafo de Wilberforce e também autor de The British Anti-Slavery
Movement (1933).36 Suas visões sobre esses assuntos, assim como sobre a maioria de
outras questões, eram características das visões sustentadas pelos intelectuais liberais do
período entreguerras. Suas credenciais eram impecáveis, tanto como historiador Whig
quanto como um dos pilares do sistema liberal (não foi à toa que ele recebeu o título de
Sir pelos serviços prestados).
Além disso, conforme a avaliação de Williams, a obra de Coupland, “pelo
menos no que diz respeito às Índias Ocidentais, se distingue por um total desprezo pelas
fontes fundamentais que devem ser usadas por um historiador”. 37 A visão dominante,
exposta por Coupland e pelos historiadores britânicos por mais de um século era a de
que

um grupo de humanitaristas – “os Santos”, como foram apelidados – se reuniu para a abolir a escravidão
e, depois de muitos anos, foi bem-sucedido em despertar a consciência do povo inglês contra a maior
inumanidade do homem para com o homem. A Grã-Bretanha se arrependeu da abolição e testemunhou
esse arrependimento ao aprovar uma indenização de 20.000.000 de libras esterlinas aos senhores por eles
terem libertado seus escravos. 38

(234) Se essas fossem realmente as visões de Coupland, é fácil ver por que elas
deviam parecer inadequadas para Eric Williams, ou, na verdade, para qualquer habitante

. Eric Williams, British Historians and the West Indies (London, 1966), p. 12.
35

. Reginald Coupland, Wilberforce (London, 1923); The British Anti-Slavery Movement (London, 1933).
36

. British Historians, p. 199.


37

. Williams, Inward Hunger, p. 49-50.


38

41
das Índias Ocidentais. C.L.R. James, compatriota de Williams e seu professor no
colégio Queen’s Royal, escrevendo na mesma época em que Williams trabalhava na sua
tese, recomendou os livros de Coupland para que seus leitores vissem como são
“típicos, além de terem outros vícios, de um sentimentalismo presunçoso que é
característico da abordagem acadêmica oficial da abolição feita por Oxford. Como visão
oficial, eles podem ser recomendados pela rematada má interpretação do assunto”.39 Isso
certamente está de acordo com as opiniões ulteriores de Williams. Afinal de contas, o
tema dominante da história imperial britânica era a realização do interesse nacional. Foi
a busca de lucros que criou o sistema escravista das Índias Ocidentais, e não faltam
provas para mostrar que esses motivos operaram até a extinção do sistema. Basta ter em
conta a introdução do trabalho contratado de coolies, a abolição das taxas preferenciais
do açúcar e a brutal repressão da revolução jamaicana pelo governador Eyre. Seria
realmente possível que Coupland tivesse declarado que somente a criação do sistema
escravista foi absolutamente “limpo”? Mesmo se fosse, concentrar-se somente nele
criaria uma falsa impressão das relações entre a metrópole e a colônia. Em geral, o
problema de Coupland e dos porta-vozes da Escola Whig era o de que eles efetivamente
acreditavam no “palavrório despropositado” do governo britânico sobre os direitos
constitucionais e a democracia que, como qualquer negro das Índias Ocidentais
testemunharia, tinha pouca relação com as realidades da existência naquelas colônias
empobrecidas e brutalmente exploradas. As Índias Ocidentais praticamente não tinham
motivos para manifestar gratidão. Ao celebrarem as realizações dos “Santos” e ao
apoiá-los para fins de emulação como exemplos da benevolência desinteressada, os
intelectuais liberais estavam agindo como apologistas inconscientes das políticas
empreendidas por motivos mercenários inteiramente diversos. “Os historiadores
britânicos”, Williams concluiu, “estiveram a ponto de escrever que a Grã-Bretanha
introduziu a escravidão negra unicamente para ter a satisfação de fazer a sua
abolição”.40
De fato, essa é uma representação muito equivocada das visões de Coupland.
Não só Coupland registra pleno conhecimento do papel que a Grã-Bretanha
desempenhou na construção do sistema escravista das Índias Ocidentais, como (235)

. C.L.R. James, The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution ([1938]
39

2nd edn. New York, 1963), p. 386.


. British Historians, p. 173-74, 197, 199, 202, 205-208, 233.
40

42
também ele é particularmente severo (na verdade, mais severo que Williams) ao fazer a
condenação moral da influência que ele exercera sobre os senhores e os escravos.

Se o mundo estava avançando em outros campos das relações humanas, nesse campo estava retrocedendo
ao dar uma vida nova e inatural aos erros mortos do passado; e, embora os historiadores devam evitar
julgar seus ancestrais pelos padrões da época em que vivem, é difícil não considerar esse tratamento dado
pela Europa cristã à África, e, em seguida, à Ásia muçulmana, como o maior crime da história.41

Nem tampouco The British Anti-Slavery Movement ignora absolutamente as


influências econômicas que contribuíram para a abolição, embora o tratamento desse
assunto tivesse sido necessariamente breve em virtude do escopo geral do trabalho e do
espaço concedido a ele pelos editores da Home University Library Series.

A perda das colônias norte-americanas acentuou o valor econômico das “ilhas açucareiras” e intensificou
o desejo de adquirir mais colônias, como a direção da guerra com a França estava prestes a mostrar. Mas,
longe de implicar qualquer mudança nas relações entre brancos e negros, isso fez com que a manutenção
do sistema escravista fosse mais do que nunca uma “necessidade” econômica. 42

De qualquer maneira, o “declínio inevitável das ‘ilhas açucareiras’ britânicas já


havia se iniciado por volta de 1807” e nenhum reparo econômico feito pelo Parlamento
seria capaz de reduzi-lo. A exaustão do solo, a concorrência do açúcar estrangeiro de
Cuba e do Brasil e o desafio dos produtores da Índia Oriental – alguns dos quais, como
Coupland observou, eram apoiadores da Sociedade Abolicionista – inevitavelmente
minaram a influência do lobby da Índia Ocidental no Parlamento.

As causas perdidas têm a propensão de ser impopulares; e, embora a causa da escravidão ainda não
estivesse inteiramente perdida, o empobrecimento constante dos seus defensores nas ilhas certamente
arrefecia as simpatias de quem quer que (236) duvidasse da conveniência, tanto na política quanto nas
finanças, de desperdiçar ainda mais dinheiro.43

Afora o fato de considerar o início do declínio econômico das Índias Ocidentais


anterior e não posterior a 1807, a explicação de Coupland permanece em pé

. Coupland, The British Anti-Slavery Movement, p. 35: ver também p. 21-22, 28-34. Curiosamente,
41

Williams tem pouco a dizer a respeito dos horrores da escravidão; por outro lado, Coupland insiste muito
sobre eles e os considera profundamente chocantes.
. Ibid., p. 63, 64, 82, 105-106. É interessante que Coupland especula (p. 62-63) sobre o que poderia ter
42

acontecido à causa abolicionista se a Grã-Bretanha tivesse conseguido reter suas colônias norte-
americanas.
. Ibid., p. 123. Ver também p. 122, 124.
43

43
notavelmente bem diante da crítica moderna e, como veremos, não estava muito
desalinhada com o que o próprio Williams argumentou na sua tese de doutorado.
Sendo assim, a autocaracterização posterior de Williams, retratando-o como um
rebelde contra as visões predominantes da Oxford da sua época, precisa ser tratada com
cautela. Certamente não há nada particularmente rebelde no título de sua tese, “O
aspecto econômico da abolição do tráfico de escravos e da escravidão nas Índias
Ocidentais”.44 Nunca foi negado que a abolição teve aspectos econômicos. Na época em
que Williams estava escrevendo, a mais notável obra nesse campo era The Fall of the
Planter Class in the British Caribbean, 1763-1833 de Lowell J. Ragatz (Washington.
D.C., 1928). Trata-se de um estudo volumoso, baseado em estatísticas, que se propõe a
explicar o declínio econômico e social das Índias Ocidentais britânicas a partir da
Revolução norte-americana. Mais tarde, Williams dedicaria o Capitalismo e Escravidão
a Ragatz. Mas, embora Ragatz tivesse incluído um capítulo sobre os abolicionistas, ele
não disse nada de novo sobre esse objeto, ou sobre o assunto – a abolição. Em geral, ele
se limitou a endossar as interpretações idealistas predominantes desses eventos. A ideia-
chave do seu trabalho era a de mostrar o modo pelo qual, da época da Revolução norte-
americana em diante, a base da antiga prosperidade da classe dos fazendeiros foi
erodida em consequência da má administração, da exaustão do solo, da política tarifária
imperial, da concorrência estrangeira e da guerra, e suas descobertas serviram de base
para que Williams fizesse a sua própria interpretação dos eventos. Estando as Índias
Ocidentais em processo de contínuo declínio, logicamente este processo foi notado na
metrópole e exerceu influência sobre as ideias a respeito da questão da abolição. Não
menos estimulante foi o fato de que essas mudanças coincidiram com o início de um
período de rápida transformação econômica e de um crescimento industrial sem
precedentes dentro da própria Grã-Bretanha. É difícil acreditar que esses três
desenvolvimentos não estivessem conectados de alguma forma. (237) Assim, Williams,
voltou sua atenção para descobrir as origens dessas conexões.
A tese que Williams defendeu em Oxford difere do Capitalismo e escravidão em
vários pontos importantes. Como o título sugere, ela cobre um espaço de tempo mais
limitado. Essencialmente, sua narrativa dá conta do período que vai da década de 1780
até a emancipação em 1833. Nada é dito sobre o papel do capital britânico na
construção do sistema escravista das Índias Ocidentais, ou sobre a maneira pela qual os

. Eric Williams, “The Economic Aspect of the Abolition of the West Indian Slave Trade and Slavery”
44

(Ph. D. thesis, Oxford University, 1938).

44
lucros gerados por esse sistema contribuíram para o próprio crescimento econômico da
Grã-Bretanha. Tampouco ela dá muita atenção às ações dos próprios escravos ou ao
impacto do medo da rebelião sobre a definição das políticas britânicas, embora o
trabalho faça referências a esses assuntos. Por outro lado, as questões que ele de fato
aborda são tratadas mais extensamente. A tese é dividida em doze capítulos mais um
epílogo e três apêndices, em comparação com os cinco capítulos correspondentes do
Capitalismo e escravidão que, recorrendo a cerca de 100.000 palavras, é
aproximadamente três vezes mais longo que a tese. Não causa surpresa que esse último
usa muitas das ideias prefiguradas na obra anterior, mas o tom predominante do
argumento da tese é mais cauteloso, e a referência a eventos particulares é mais
específica. Em parte, isso se dá porque, em geral, predomina o tratamento cronológico
das questões. Por exemplo, há frequentes alusões ao problema do monopólio e da
superprodução, mas em cada caso fica evidente no contexto a que formas de monopólio
e de superprodução o autor está se referindo. O mais surpreendente de tudo é a omissão
das principais afirmações concernentes ao predomínio das forças econômicas que
caracterizam o seu trabalho ulterior. Longe de demandar a abolição, os
desenvolvimentos econômicos nada mais fizeram que criar um contexto dentro do
qual a abolição se tornou uma proposição prática. Além do mais, ele alerta
constantemente os leitores contra o perigo de ver a história como uma mera ação
combinada de interesses econômicos ordenadamente empacotados. “Os homens”,
ele nos diz, “não agem absolutamente de acordo com as tendências econômicas
que, centenas de anos mais tarde, quando elas já seguiram o seu curso, possamos
distingui-las com uma clareza inexistente na época. Se assim fosse, a escrita da
história seria uma questão muito simples de dedução geométrica”. 45 A economia
era um fator, mas não o único ou, na maioria dos casos, nem mesmo o primordial.
Quanto aos humanitaristas, na tese de Williams, (238) eles foram em geral
perspicazes e judiciosos, embora não acrescentassem muita coisa ao que já era
conhecido. Ele leva em conta as circunstâncias políticas dentro das quais os
humanitaristas foram compelidos a agir. Como ele afirma, “Deve ser reiterado
que, para os abolicionistas, era imperativo tentar convencer as forças hostis
pensando fundamentalmente em termos econômicos”, 46 e, em uma longa análise
que ocupa a maior parte do primeiro capítulo, ele mostra como eles recorreram a

. Ibid., p. 152.
45

. Ibid., p. 12
46

45
argumentos convincentes sobre o assunto. Deve ser enfatizado que ele não afirma que
os próprios abolicionistas agiam por motivos econômicos, embora haja referências
incidentais aos escritos de Arthur Young e Adam Smith e ao fato de que “a burguesia
estabeleceu o princípio da superioridade do trabalho livre sobre o trabalho escravo no
início da Revolução Industrial”.47 Ele também se refere ao fato de que muitos dos
que defendiam a abolição tinham investimentos pesados na Índia Oriental 48;
contudo, esta linha de argumentação não foi completamente desenvolvida. Em
geral, ele concorda com a interpretação idealista dominante relativa ao comportamento
tanto dos militantes abolicionistas quanto do grande público. Por volta de 1833, a
oposição à escravidão fora do Parlamento “Havia se tornado um sentimento religioso
estabelecido”.49 Essa oposição era também um subproduto de um impulso amplamente
difundido de reforma que, por razões que não tinham conexões com a economia, estava
se espalhando não só na Grã-Bretanha como também na França:

Em meio ao ardor humanitário [...] ocorreu a bem-sucedida revolução francesa de 1830 que aumentou a
pressão do movimento pela reforma na Grã-Bretanha. A agitação pela emancipação foi protelada até a
aprovação da Lei da Reforma [...]. [O] poderoso movimento de reforma na Grã-Bretanha deu um grande
impulso à demanda pela reforma de todos os abusos, entre os quais a escravidão era o maior e o mais
óbvio. Na excitação humanitária e religiosa nada havia em absoluto que desse sinais de considerações
econômicas. O povo se mobilizou pela convicção de que a escravidão era um sistema repugnante e
imoral, e que, portanto, tinha de ser desmantelado.50

Nem aqui e nem em qualquer outro lugar da sua tese encontra-se alguma
alusão à determinação econômica. Uma simples leitura da tese de Williams (239)
permite concluir que a intenção do autor era a de suplementar e não de desafiar a
interpretação prevalecente. O próprio Williams notou que Reginald Coupland, por
sinal um dos examinadores da sua tese, admitia que “se ele tivesse de revisar a sua
própria obra, teria de fazer mudanças fundamentais”.51 Aqui cabe perguntar:
precisamente quão fundamentais seriam essas mudanças? Evidentemente, Coupland não
havia lido Ragatz, o que pode ser considerado como um descuido sério que levou
Williams a censurá-lo mais tarde.52

. Ibid. p. 59.
47

. Ibid. p. 387-391.
48

. Ibid. p. 240.
49

. Ibid. p. 237.
50

. Inward Hunger, p. 51.


51

. Ibid. p. 49-50; e British Historians, p. 197-208.


52

46
Entretanto, desapontado por não ter obtido o posto acadêmico em Oxford,
Williams foi para a Howard University, em Washington D.C., com um contrato para
lecionar Política durante nove anos. Ele também viajou para Cuba, Haiti e Porto Rico,
onde entrou em contato com os principais intelectuais caribenhos, inclusive com o Dr.
Fernando Ortiz e Hermino Portell Vilá, de Cuba. 53 A influência deles, dos seus colegas
da Howard e da comunidade negra dos EUA, em cujo círculo agora ele se
movimentava, sobre o seu pensamento só pode ser conjecturada. Que suas ideias
estavam em um processo de mudança radical é evidente no seu primeiro livro – The
Negro in the Caribbean (New York, 1942) –, que, entre outras coisas, é uma
condenação sem reservas do colonialismo branco. Nos seus agradecimentos, há um
débito em particular com seus colegas da Howard – Alain Locke, Ralph J. Bunche e W.
O. Brown.54 Durante esses mesmos anos ele escreveu os primeiros seis capítulos do
Capitalismo e Escravidão, que cobriam o período que vai até a Revolução norte-
americana e o último capítulo, “Os escravos e a escravidão”. Contudo, no que diz
respeito ao período da abolição, nada sugere que ele tivesse estendido suas pesquisas
para novas áreas. Por exemplo, ele nunca se empenhou em observar o que aconteceu
com o movimento abolicionista depois de 1833, um tema que já havia sido
razoavelmente tratado nas obras de Coupland e Mathieson. 55 O que ele fez foi
reorganizar e reformular os materiais da sua tese e apresentá-los de uma forma nova e
altamente condensada. Isso envolveu, entre outras (240) revisões, o abandono da
estrutura narrativa anterior em benefício de uma série de retratos e colagens: “O
desenvolvimento do capitalismo britânico, 1783-1833”, “A ‘parte comercial da nação’ e
a escravidão”, “Os ‘Santos’ e a escravidão”, e assim por diante. Outra mudança
fundamental foi a inserção de grandes afirmações categóricas que desde então atraem
muita atenção e pelas quais o livro é principalmente lembrado.
Ao contrário da tese, essa nova versão representou uma clara ruptura com as
visões historiográficas dominantes da época. Quanto mais não fosse, a abordagem de
Williams é audaciosa. Uma consequência disso é que o Capitalismo e escravidão teve
um efeito raro entre as obras da pesquisa histórica moderna, o de ser esteticamente
agradável. A sensação de que ele está se referindo às principais questões econômicas e

. Inward Hunger, p. 64.


53

. The Negro in the Caribbean, “Acknowledgments”.


54

. Coupland, The British Anti-Slavery Movement; W. L. Mathieson, British Slavery and its Abolition,
55

1823-1828 (London, 1926), Great Britain and the Slave Trade, 1839-1865 (London, 1929) British Slave
Emancipation, 1838-1849 (London, 1932) e Sugar Colonies and Governor Eyre (London, 1936).

47
sociais da época, as afirmações convincentes relativas aos motivos que em épocas
diferentes agitaram a ordem pública, a hábil disposição dos detalhes e, sobretudo, o
amplo alcance do seu argumento persuadem o leitor como pouquíssimas obras de
história.
No entanto, da mesma forma que muitos inovadores, Williams não se opunha ao
uso da hipérbole. Isso fica evidente no Capitalismo e escravidão, que, como o leitor
logo fica sabendo, vai além da sua tese de doutorado e é, de fato, nada menos que uma
explicação econômica da abolição.

Quando o capital britânico dependia das Índias Ocidentais, [os capitalistas] ignoravam a escravidão ou
defendiam-na. O capitalismo britânico eliminou a escravidão como primeiro passo para a destruição do
monopólio das Índias Ocidentais quando considerou nocivo o monopólio das Índias Ocidentais. (p.16)

Em resumo, as mesmas forças que haviam edificado o sistema escravista – o


interesse próprio, a cobiça e ânsia de poder – foram as que, no fim das contas, se
coligaram para destruí-lo. Se as colônias escravistas dependentes tinham parecido
vantajosas na era do mercantilismo, elas se tornaram um obstáculo na nova era do
capitalismo maduro. Ele expõe seu argumento de forma convincente:

O ataque se dividiu em três fases: o ataque ao tráfico de escravos, o ataque à escravidão e o ataque às
tarifas preferenciais do açúcar em 1846. Esses três eventos são inseparáveis. (p.136)

(241) Mas, podemos perguntar, em que sentido eles foram inseparáveis?


Embora à primeira vista a tese de Williams, como ela se tornou conhecida, pareça
extremamente simples, em um exame mais profundo ela não é nada disso. Em um
nível ela se propõe a mostrar como, a partir da Revolução norte-americana, os
interesses econômicos e políticos que sustentavam o sistema colonial escravista se
enfraqueceram progressivamente e foram substituídos pelas forças emergentes do
capitalismo industrial. Em outro nível, ela parece mostrar que esses novos
interesses eram inerentemente hostis à escravidão. Já em outros níveis ela é uma
afirmação acerca da importância relativa do econômico em contraste com outros
tipos de motivos e, intimamente ligado a isto, encontra-se a responsabilidade da
contribuição do idealismo altruísta, tal como ele foi atribuído aos abolicionistas,
para o resultado final.

48
De qualquer maneira, como todas as explicações reducionistas, ela tem os seus
problemas. Um deles foi o de decidir qual peso, se é que houve algum, deveria ser
atribuído ao trabalho dos humanitaristas. A tese lidou facilmente com isso ao
reconhecer que as considerações econômicas constituíram somente um fator entre
muitos. Mas se, como está sendo afirmado agora, essas considerações constituíram o
único fator, ou em todo caso o fator primordial, segue-se necessariamente daí que a
contribuição humanitária foi correspondentemente reduzida. Em suma, para provar esse
novo argumento, seria necessário não apenas mostrar que as influências econômicas
foram importantes, mas – e isso era muito mais difícil – que as influências humanitárias
não tiveram importância.
Antes de considerar como ele se dedicou à solução desse problema, é preciso
observar a versão dos eventos dada por Williams.

Ao escolher como base dos seus estudos as descobertas de Ragatz, Williams


estava edificando sobre fundações precárias. O que só está claro agora, é que Ragatz
tomou as reclamações de longa duração dos fazendeiros muito literalmente e, em
consequência, antecipou o início do declínio das Índias Ocidentais em uma geração.
Como Seymour Drescher já mostrou,56 até 1807, e decerto por alguns anos depois,
o sistema escravista britânico continuou a aumentar a sua cota na produção
mundial de açúcar e de café, bem como sua proporção no comércio britânico em
(242) termos de exportação e importação, e a ocupar a terra virgem disponível. Por
quaisquer que sejam as formas de mensuração econômica, verifica-se que as
colônias açucareiras, longe de estarem em processo de declínio, eram efetivamente
muito importantes para a metrópole. Isso, como já vimos, está muito próximo das
suposições de Coupland.57 Segue-se daí que, pelo menos no que diz respeito à
abolição do tráfico de escravos, o declínio econômico não pode ter sido um fator
causativo. O declínio que efetivamente começou subsequentemente não está em
discussão, mas o efeito do trabalho de Drescher sugere um padrão causativo que é
exatamente o oposto do que foi apresentado por Williams; ou seja, o declínio
econômico foi realmente a consequência da abolição, ao invés de ter sido a causa.58

. Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolition (Pittsburgh, 1977).


56

. The British Anti-Slavery Movement, p. 63.


57

. Para um breve sumário das descobertas de Drescher e das suas relações com as teses de Ragatz e
58

Williams, ver Seymour Drescher, “Capitalism and the Decline of Slavery: The British Case in
Comparative Perspective”, Annals of the New York Academy of Sciences, v. 292 (1977), p. 132-142.

49
Ainda assim, supondo que a teoria de Ragatz fosse correta, é difícil compreender
os argumentos usados por Williams. De acordo com Williams, houve duas razões
para a eliminação da escravidão: o monopólio e a superprodução.
Na narrativa de Williams, o monopólio, que era objeto da veemente
oposição dos capitalistas britânicos, era de fato o acesso privilegiado ao mercado
britânico que os produtores de açúcar das Índias Ocidentais usufruíam porque o
produto pagava tarifas de importação reduzidas. Como vimos, foi para se livrar
desse monopólio que supostamente os capitalistas deram “o primeiro passo” a fim
de “destruir a escravidão nas Índias Ocidentais”. (p. 169) Mas, podemos
perguntar, por que no fim das contas se incomodar com a escravidão; por que não
abolir simplesmente as tarifas preferenciais? De qualquer modo, coloca-se mais
concretamente a questão de saber por qual motivo os capitalistas teriam feito objeção ao
monopólio das Índias Ocidentais antes de tudo, uma vez que ele não era em absoluto um
monopólio no sentido de que os produtores coloniais tinham o controle dos preços dos
seus produtos. O fato é que as Índias Ocidentais produziam mais açúcar do que o
mercado britânico podia absorver, e o excedente tinha de ser vendido no mercado
mundial, concorrendo com o açúcar proveniente de outros lugares. Assim, pelo menos
depois de 1833, foi o preço mundial que determinou grandemente a remuneração dos
produtores das Índias Ocidentais. Isso fica evidente na Tabela 1.

(243) Tabela 1. Preços comparativos do açúcar (per cwt.), excluindo os impostos do


mercado de Londres, 1823-1847.
Ano Índias Ocid. Brasil Cuba Ano Índias Ocid. Brasil Cuba
Britânicas Britânicas
s. d. s. d. s. d. 1836 40 10 27 11 33 2
1823 32 11 28 9 32 10 1837 34 7 21 3 27 10
1824 31 6 24 2 26 10 1838 33 8 21 3 27 3
1825 38 6 35 3 37 6 1839 39 2 22 1 26 8
1826 30 7 28 9 32 8 1840 49 1 21 6 25 4
1827 33 9 29 9 37 0 1841 39 8 20 9 21 6
1828 31 8 27 10 34 8 1842 36 11 18 4 20 1
1829 28 7 21 8 30 8 1843 33 9 17 2 21 2
1830 24 11 18 11 24 2 1844 33 8 17 0 21 8
1831 23 8 17 11 23 10 1845 32 11 20 6 26 4
1832 27 8 21 5 24 10 1846 34 5 19 11 24 6
1833 29 3 22 5 24 9 1847 28 3 21 2 25 10
1834 29 5 23 3 25 11 1837 34 7 21 3 27 10
1835 33 5 27 5 31 4 1838 33 8 21 3 27 3

50
Fontes: Parliamentary Papers: 1841, XXVI (290), p. 281; 1847-48, LVIII (422), p. 535; 1852-53, XCIX
(461), p. 569.

Esses números [da Tabela 1] decerto não incluem os custos adicionais pagos
pelos consumidores britânicos por conta dos impostos, que aumentaram bruscamente
durante as guerras napoleônicas e, em consequência, o preço do açúcar vendido no
varejo dobrou em 1805.59 Essa, no entanto, foi uma questão à parte. Se o açúcar
estrangeiro tivesse sido admitido com a mesma quantia proporcional de impostos que a
do açúcar das Índias Ocidentais, o preço do açúcar no varejo só seria afetado por uns
poucos pontos percentuais a mais.
Sendo assim, pode-se perguntar: de onde vem a prova de Williams sobre a
oposição ao monopólio? A resposta é que ela veio inicialmente dos produtores das Ilhas
Maurício e da Índia Oriental, que, respectivamente até 1825 e 1836, foram obrigados a
colocar o açúcar na Grã-Bretanha a preços menos favoráveis que o das Índias
Ocidentais. Mas, como as próprias notas finais de Williams deixam claro 60, não houve
um protesto geral até 1838, quando, em consequência da abolição, (244) a produção
ficou abaixo das próprias necessidades da Grã-Bretanha, o que permitiu que os
produtores coloniais, pela primeira vez, cobrassem preços acima da média mundial.
Assim, tal como a tese do declínio das Índias Ocidentais, os desenvolvimentos citados
por Williams – neste caso uma discrepância acentuada entre o açúcar britânico e o
estrangeiro – pós-dataram os eventos que supostamente teriam de ser explicados e que,
na realidade, são consequências e não causas.
A “superprodução” é, para Williams, o segundo motivo da abolição. Como
sempre, ele apresenta o seu caso com ousadia: “A superprodução em 1807
demandou a abolição do tráfico; a superprodução em 1833 demandou a
emancipação” (p. 152). Isso permite, mais uma vez, fazer uma indagação: se a
superprodução era de fato um problema, o governo não teria formas menos
drásticas de reduzi-la? O modo óbvio seria a redução das tarifas, o que diminuiria
o preço e encorajaria o consumo. Essa redução não seria de fato um problema que
necessariamente perturbaria os capitalistas britânicos que, estando interessados no
açúcar barato, tinham motivos de sobra para dar boas vindas ao corte no preço
como resultado inevitável da saturação do mercado. Se, em consequência, os

. Para um gráfico que mostra o aumento acentuado das tarifas depois de 1796, ver L. J. Ragatz, The Fall
59

of the Planter Class, p. 380.


60
Ver as notas finais ao Capítulo 8, “The New Industrial Order”, Capitalism and Slavery, p. 243-245.

51
produtores das Índias Ocidentais quebrassem, isto não dizia respeito aos
capitalistas.
O que também precisa ser mostrado é que os dois conjuntos de motivos
citados são mutuamente incompatíveis: o monopólio favorece os produtores à
custa dos consumidores, ao passo que a superprodução tem precisamente o efeito
oposto.61 Assim, de que lado o governo britânico estava? Supondo, com base na
ideia-chave do argumento de Williams, que ele estivesse do lado dos consumidores
britânicos (que, com efeito, incluía “os capitalistas”), sua política pareceria ser
totalmente contraproducente. Como a Tabela 2 mostra, os preços do açúcar estavam
notavelmente baixos em 1807 e subiram de 1833 em diante.

(245) Tabela 2. Variação do preço do açúcar mascavo em Londres (em shillings per
cwt.) e consumo de açúcar no Reino Unido (em libras per capita por ano), 1790-1849
ano preço consumo ano preço Consumo ano preço Consumo
1790 38-46 1810 43-54 1830 23-40
1791 47-65 1811 35-45 1831 23-25
1792 48-76 1812 42-49 1832 23-30
1793 41-73 1813 52-75 1833 26-31
1794 32-67 1814 54-97 1834 31-33
1795 42-75 1815 57-75 1835 30-38
1796 61-78 1816 49-60 1836 38-45
1797 52-75 1817 44-54 1837 33-37
1798 59-83 1818 47-55 1838 33-42 17.8 (1830-1838)
1799 26-87 13.0 (1790-1799) 1819 36-51 17.0 (1810-1819) 1839 39
1800 32-70 1820 34-37 1840 49
1801 32-75 1821 29-35 1841 40
1802 26-55 1822 28-34 1842 37
1803 30-58 1823 27-37 1843 37
1804 44-66 1824 30-34 1844 33 16.4 (1840-1844)
1805 48-59 1825 32-41 1845 33
1806 39-49 1826 30-39 1846 33
1807 32-38 1827 32-36 1847 27
1808 32-50 1828 32-38 1848 26
1809 36-51 18.0 (100-1809) 1829 26-30 17.6 (1820-1829) 1849 22 22.6 (1845-1849)
Fonte: Noel Deerr, History of Sugar (2 vols. London, 1949-50), v. 2, p. 531-532.
61
. Williams confunde a questão ao se referir à sua conexão como os “subsídios” para a reexportação da
Grã-Bretanha para o continente: “Os fazendeiros das Índias Ocidentais eram efetivamente pagos a fim de
que fossem capazes de concorrer com povos... que eram os melhores consumidores da Grã-Bretanha...
Para os capitalistas, isso era intolerável” (p.152). Na realidade os “subsídios” eram meros abatimentos das
quantias pagas que tinham a forma de impostos sobre a entrada do açúcar no país. Similarmente, as
chamadas “gratificações” eram pagamentos sobre o açúcar refinado na Inglaterra que tinha os requisitos
necessários para receber uma soma adicional por ter sofrido uma substancial redução do volume. É difícil
ver por que os capitalistas, ou quaisquer outros grupos, teriam feito objeções a isso. As gratificações
foram, em todo caso, interrompidas em 1819 com o resultado destas reexportações, que, longe de serem
subsidiadas, estavam realmente sendo taxadas. Isso, o que não causa surpresa, provocou muitas
reclamações do Comitê das Índias Ocidentais. Ver Ragatz, The Fall of the Planter Class, p.136.

52
De todo modo, o mais surpreendente de tudo é o fato de que entre 1760 e
1839 as únicas vezes em que realmente o consumo per capita de açúcar na Grã-
Bretanha caiu foi nos anos entre 1810-1819 e entre 1840-1849. 62 No primeiro caso,
isso foi causado pelos altos preços provocados pelo aumento da taxação e pelas
vicissitudes da guerra, mas no segundo foi o resultado direto da escassez da
produção que acompanhou a abolição. Durante algum tempo, pelo menos, os
britânicos tiveram de pagar pela filantropia. Se a emancipação fosse o resultado de
uma demanda capitalista por açúcar barato ela aparentaria ter sido
extraordinariamente irracional.
(246) Isso revela que a explicação econômica da abolição é completamente
menos persuasiva do que Williams quer que acreditemos. Em particular, ele não
consegue demonstrar a existência de qualquer conexão plausível entre os interesses dos
capitalistas britânicos e a destruição do sistema escravista das Índias Ocidentais, menos
ainda como esses supostos “interesses” foram transferidos para a ação legislativa. É
notável que Ragatz, de quem ele extrai a maioria dos dados, não faz essa conexão. O
que faz o argumento apresentado por Williams parecer convincente é o poder retórico
da sua exposição, e não a prova utilizada que é particularmente incapaz de apoiar suas
pretensões, nem tampouco a lógica do seu argumento, uma vez que ambas se mostram
incompatíveis à luz de um exame minucioso. Longe de ser um trabalho de história de
fácil compreensão, como pode parecer à primeira vista, o Capitalismo e Escravidão é,
de fato, uma obra polêmica de muita astúcia e paixão.

Em lugar algum isso fica mais evidente do que no tratamento dos


abolicionistas, que não poderiam se ajustar facilmente ao esquema geral do livro,
na medida em que foram claramente humanitaristas e claramente agiram por
motivos humanitários. Como já foi observado, Williams viu poucos motivos para
celebrar o modo pelo qual as Índias Ocidentais tinham sido tratadas pelos britânicos.
Como se as Índias Ocidentais fossem o principal legado da Grã-Bretanha aos seus
súditos negros, ele se ressentia, juntamente com outros intelectuais do Caribe britânico,

62
. Esses números se encontram em Noel Deerr, The History of Sugar (2 vols., London, 1949-1950), v. 2,
p. 532. Mas a melhor fonte para o julgamento da precisão dos argumentos econômicos de Williams está
nos Parliamentary Papers, 1852-53, XCIX (461). Tabular Return showing the Quantities of Sugar of the
several Sorts Imported into the United Kingdom... from 1800 to 1852, followed by a Comparative
Statement of the Average Prices of British Plantation and Foreign Sugar (ordinary Yellow Havannah) for
the same Series of Years, p. 568-569.

53
da maneira pela qual os historiadores entoaram louvores aos abolicionistas. A isso tudo
deve ser acrescentado o fato de que, segundo o próprio argumento de Williams, esses
abolicionistas podiam ser vistos como representantes da pretensiosa cultura liberal à
qual Coupland e seus colegas do All Souls pertenciam e pela qual ele próprio fora
rejeitado.
Sua caracterização do seu próprio trabalho no British Historians and West Indies
é reveladora a este respeito.

Exclusivamente quanto às Índias Ocidentais do seu ponto de vista e de seus interesses [...] Williams
procurou iluminar a cena das Índias Ocidentais por meio da experiência internacional. Seu Capitalismo e
escravidão foi um ataque explícito à tese britânica convencional sobre a abolição do sistema escravista;
ele viu a abolição como o resultado lógico de um desenvolvimento econômico que, tendo se tornado
demasiadamente grande para ser sustentado pelas suas fundações, aboliu o sistema da escravidão que lhe
havia proporcionado suas vantagens no mundo.

(247) Outros escritores das Índias Ocidentais fizeram oposição ao establishment


britânico,

Mas a força plena da hostilidade aos britânicos foi empregada por Williams, ele mesmo um produto de
Oxford, que se rebelou contra a tradição histórica britânica que Oxford havia se empenhado em
desenvolver. Sua análise histórica sofreu as mais sinistras ameaças. Seu Capitalismo e escravidão,
saudado com altos elogios nos Estados Unidos, quando foi publicado em 1944, só atraiu a atenção dos
editores britânicos em 1964.63

Nada é revelado a respeito dessas “sinistras ameaças”. Em 1944, os britânicos


tinham outras questões que os preocupavam, o que fez com que o aparecimento do
Capitalismo e escravidão passasse em brancas nuvens.64 De qualquer maneira, ele
atribui a recusa à publicação do seu trabalho a uma atitude tipificada pelo comentário de
um editor inglês a quem, em 1939, ele havia oferecido sua tese de Oxford antes de ser
revisada: “Eu nunca publicaria um livro deste tipo. Ele é contrário à tradição
britânica”!65
Mas se Williams não podia glorificar os abolicionistas e suas realizações,
tampouco podia ignorá-los. Apenas um dos 13 capítulos, “‘Os Santos’ e a

. British Historians, p. 210.


63

. As reações norte-americanas, que ele cita na sua autobiografia, foram principalmente calorosas.
64

Contudo, é notável que Elizabeth Connan, na sua resenha do Capitalismo e escravidão para a American
Historical Review de abril de 1945, opinava que “o Sr. Williams, no seu zelo para estabelecer a primazia
das forças econômicas, é um bocado injusto em relação aos humanitaristas, cujas vozes se levantaram
contra o tráfico de escravos e mais tarde contra a escravidão”. Inward Hunger, p. 71.
. British Historians, p. 211.
65

54
escravidão” foi dedicado especificamente aos abolicionistas, mas há comentários
frequentes sobre eles e suas atividades em quatro outros capítulos. Na verdade,
muitas das provas que ele usa para ilustrar as atitudes dos capitalistas britânicos
derivam de fontes abolicionistas. Isso está claramente exemplificado no capítulo
“O capitalismo e as Índias Ocidentais”, onde ele cita as provas de atividades
abolicionistas nas várias regiões britânicas como indicativas das atitudes e
interesses dos que controlavam as principais indústrias nestas áreas (p. 154-167).
Elas são essencialmente impressionistas, o que é, em geral, uma característica da
sua técnica. Em nenhum desses capítulos ele tenta fazer uma narrativa cronológica
dos eventos que descreve.
(248) Uma das consequências disso é que ele fica livre para perambular
para trás e para frente no tempo, selecionando material para ilustrar os
argumentos que está desenvolvendo. Uma segunda consequência é que passa a ser
extremamente difícil refutar os seus argumentos, pois mesmo que possa ser
mostrado sem sombra de dúvida que os exemplos particulares citados como
evidências não sustentam suas amplas afirmações, resta a possibilidade de que
noutro lugar pode haver evidências que as sustentem.
De qualquer maneira, o que há de mais notável no enfoque dos abolicionistas
feito por Williams não são os detalhes – embora alguns deles, como veremos, sejam
impressionantes –, mas sim a estratégia retórica que ele adota. A respeito disso,
desperta interesse particular o modo como ele se previne da crítica ao prestar
homenagens aos abolicionistas – “eles formaram um grupo brilhante” –, ao mesmo
tempo que procura minimizar suas realizações – “a importância que tiveram foi
seriamente mal interpretada e grosseiramente exagerada”. Como a oração fúnebre
de Marco Antonio no Júlio César, o capítulo de Williams sobre os abolicionistas, que
começa com Clarkson e termina com Thomas Carlyle, é um exercício deliberado de
difamação. Como no discurso de Marco Antonio, ele é muito sutil ao recorrer mais à
sugestão e ao subentendido do que à afirmação direta, razão pela qual torna a refutação
muito difícil. É somente comparado com outros que Wilberforce “parece de baixa
estatura”. Ele efetivamente não diz que Cropper, com os seus interesses nas Índias
Ocidentais, tinha motivos ocultos para apoiar a abolição, mas os subentendidos são
óbvios (p. 186-187).66 Tampouco ele especificamente nos diz que o açúcar das Índias

. Para um relato detalhado dos motivos de Cropper, ver Davis Brion Davis, “James Cropper and the
66

British Anti-Slavery Movement, 1821-1823”, in Journal of Negro History, v. 45 (1960), p. 241-258.

55
Orientais, que os abolicionistas tinham a intenção de importar, era produzido por
escravos (não era, de acordo com sua tese), mas novamente o leitor é levado a tirar suas
próprias conclusões (p. 184).67 E cada vez parece que ele vai longe demais ao
reassegurar ao leitor que não tem a intenção de fazer uma difamação e que, ao contrário,
os abolicionistas formaram um grupo esplêndido.
Não é difícil encontrar material para denegrir os abolicionistas. Os fazendeiros
proporcionaram uma profusão de material, e Williams não hesitou em usá-lo no caso de
Cropper. No entanto, o que está (249) faltando é qualquer indicação clara sobre o que os
abolicionistas poderiam ter feito para conquistar a aprovação de Williams. “Wilberforce
estava familiarizado com tudo que se passava no porão de um navio negreiro, mas
ignorava o que se passava no fundo do poço de uma mina” (p. 183). Ele deveria,
portanto, gastar mais tempo em poços de minas? Se tivesse feito isso é improvável que
receberia notas mais altas, pois quase imediatamente encontramos Williams
repreendendo o Dr. Merivale por sua afirmação de que a escravidão foi meramente um
“grande desastre social que se distingue em grau e em qualidade, mas não em espécie,
do... pauperismo, ou do excesso de trabalho de crianças” (p. 194). Como Williams devia
saber muito bem, a “traição” final da causa de Clarkson está relacionada com a sua
oposição à disposição legislativa que encorajava os navios de guerra a capturar navios
negreiros depois, e não antes, que tivessem feito o carregamento de africanos. 68 A
peroração conclusiva de Williams, destinada a ilustrar a mudança das intenções depois
de 1833 (“agora a escravidão passou a ser julgada sob outra luz [...]. Até mesmo os
intelectuais foram engolfados”) mistura citações que abarcam todo o período que vai da
década de 1790 à de 1840.
Decerto tudo isso ficaria mais claro se, em benefício do leitor, ele tivesse
realmente explicado com clareza quais eram as principais preocupações dos
humanitaristas britânicos depois de 1833: apoiar a causa dos libertos das Índias
Ocidentais, suprimir o tráfico por meio da intervenção naval e dos tratados
internacionais, patrocinar projetos de civilização da África, encorajar a atividade
abolicionista nos Estados Unidos e no Continente e fazer oposição à entrada do

67
. Williams, “Economic Aspects”, cap. 3. Não há prova de que o açúcar britânico das Índias Orientais
fosse produzido por escravos. Certamente, os abolicionistas britânicos e norte-americanos, tanto quanto o
governo britânico, supunham que ele era produzido pelo trabalho livre. Para um relato dos esforços
abolicionistas para substituir o açúcar das Índias Orientais pelo açúcar brasileiro e cubano, ver Howard
Temperley, British Anti-Slavery, 1833-1870 (London, 1972), p.165-66.
. Capitalismo e escravidão, p. 194 e nota de rodapé 104. A última se refere a Mathieson, e está em
68

Great Britain and the Slave Trade, p. 34-35, onde as razões da ação de Clarkson ficam bem esclarecidas.

56
açúcar produzido por escravos no Brasil e na China. 69 Com a ausência dessa
explicação, boa parte do que ele diz é confuso e muito simplesmente contém
conclusões erradas. Por exemplo, ele dedica três páginas (p. 172-175) à oposição dos
“capitalistas” na década de 1840 à “experiência nobre” da Grã-Bretanha de suprimir o
tráfico estrangeiro de escravos sem explicar o que era essa política, descrevendo os
sucessos que ela alcança, ou mencionando que a oposição a ela revelou-se um (250)
malogro na ocasião. Similarmente, vê Lorde Brougham, em 1843, “ainda esperando
ansiosa e ardentemente a abolição da escravidão na Índia” (p. 186), mas erra ao
mencionar que, depois de intensa agitação abolicionista, a escravidão na Índia foi
abolida exatamente nesse ano.70 Joseph Sturge é apresentado (p. 158) como um
representante da nova classe capitalista que na década de 1830 estava se voltando contra
as Índias Ocidentais. Sturge tinha em mente a destruição do monopólio nas Índias
Ocidentais? Simplesmente não. Pela explicação de Williams, quem imaginaria que nos
anos 1840 ele lideraria a organização abolicionista nacional em uma prolongada
campanha contra a admissão do “açúcar manchado de sangue” e a favor da manutenção
das tarifas preferenciais?71 Esses exemplos confirmam a afirmação de Roger Anstey: “o
Dr. Williams se equivoca no uso da prova, faz afirmações extensas com base apenas em
uma prova parcial, ou ignora a prova”.72
Na verdade, todos os historiadores cometem erros e mudam um pouco algumas
das suas opiniões. Esse é comumente o caso dos inovadores, e seria um ato de flagrante
injustiça rejeitar uma interpretação nova e impressionantemente única exclusivamente
porque ela contém certa quantidade de erros fatuais, ou porque parece afirmar mais do
que as evidências citadas autorizam prontamente. Apesar disso, é difícil aplicar critérios
generosos ao Capitalismo e escravidão, até porque o próprio Williams já havia feito
uma narrativa histórica mais acurada na sua tese de Oxford. De novo, deve haver
tolerância para com o modo usado por ele para condensar sua versão anterior. Mesmo
69
. Um relato dessas atividades poderá ser encontrado nos livros de Coupland, Mathieson e Temperley já
citados. Entre as organizações a cujas atividades Williams faz vista grossa estão o Central Negro
Emancipation Committe (1837-40), a African Civilization Society (1839-1843) de Thomas Fowell
Buxton, a British India Society de Joseph Pease (1839-1843) e a British and Foreign Anti-Slavery Society
(1839-até o presente) de Joseph Sturge.
. Temperley, British Antislavery, Cap. 5, esp. p. 107.
70

. Ibid., p. 167.
71

. Roger Anstey, “Capitalism and Slavery, A Critique”, Economic History Review, v. 21, (1968), p. 307-
72

320. Ver também G. R. Mellor, British Imperial Trusteeship, 1783-1850 (London, 1951), p. 54-57, 118-
120, 43-447. Mellor conclui sua descrição do Capitalism and Slavery com uma observação: “a não ser
que os que estão comprometidos com a pesquisa sejam muito cuidadosos, eles encontrarão o que estão
procurando”.

57
assim, é difícil supor que ele realmente acreditava, como afirmou no Capitalismo e
escravidão, que a “Lei de Emancipação assinalou o fim dos esforços abolicionistas” (p.
191). Se ele acreditasse, essa seria uma declaração excepcional. The British Anti-Slavery
Movement, de Coupland, dedicou três dos seus oito capítulos ao período posterior a
1833 e W. L. Mathieson escreveu três volumes completos sobre o assunto. Essas obras
são citadas por Williams.73 Além disso, afirmar que a cruzada abolicionista
britânica prosseguiu nos anos posteriores (251) significa reconhecer que ela não só
teve uma vida independente e própria, como também uma considerável força
política. Isso bastaria para minar a própria tese essencialmente econômica de
Williams. Apesar da insistência de Henry Steele Commager 74, é fácil ver porque ele
nunca voltou sua atenção para o abolicionismo norte-americano, que claramente
teve uma vida própria e exerceu uma considerável força política.
Williams nunca respondeu aos seus críticos, nem, depois do Capitalismo e
escravidão, mudou suas visões sobre quaisquer pontos essenciais. No seu livro de
1970, From Columbus to Castro: The History of the Caribean, 1492 to 1969, ele
reproduziu os mesmos argumentos, frequentemente palavra por palavra. 75
Todavia, seu tom é mais abertamente polêmico. Na ocasião, ele estava escrevendo
como primeiro-ministro e os seus julgamentos são apropriadamente ex cathedra. De
qualquer maneira, há mudanças. Aqui, o meio século de luta da Grã-Bretanha
para suprimir o tráfico atlântico de escravos também é tratado, embora apenas
superficialmente. E somos informados de que o objetivo “fundamental” da sua
orientação política era “proteger os fazendeiros das Índias Ocidentais britânicas,
por meio da proibição da importação anual de escravos, da concorrência com os
produtores de açúcar de Cuba e do Brasil, que mantinham o tráfico de escravos”. 76
Diferentemente de Coupland, ele nunca tratou dos horrores do tráfico ou da
iniquidade dos traficantes, nem tampouco demonstrou claramente qualquer
simpatia pelos que estavam tentando suprimir o tráfico. Por outro lado, ele
efetivamente nota que os capitalistas faziam objeção ao mau uso dos recursos britânicos
e cita extensos comentários de estrangeiros que faziam objeção ao que considera como
. Mathieson, Great Britain and the Slave Trade, 1839-1865, British Emancipation, 1839-1849 e The
73

Sugar Colonies and the Governor Eyre.


. Inward Hunger, p. 71, 77, 79.
74

. Eric Williams, From Columbus to Castro: The History of the Caribbean, 1492 to 1969 (London,
75

1970). Comparar, por exemplo, p. 269, 289, 293, 297 e 318-319 desse livro com p. 174-175 e 193-194 do
Capitalismo e escravidão.
. From Columbus to Castro, p. 311.
76

58
uma infração dos seus direitos de soberania. Como sempre, os britânicos foram
arbitrários; e ainda, pode também parecer, eles não foram bastante arbitrários, visto que

A campanha contra o tráfico estrangeiro de escravos fracassou porque o capitalismo britânico estava
muito interessado em fazer comércio com a América Latina, particularmente com o Brasil e Cuba. Ele
não podia matar a galinha dos ovos de ouro – ou seja, não podia se opor à introdução dos escravos que
produziam açúcar e café, tornando possível a compra dos tecidos britânicos e o pagamento de fretes aos
navios britânicos.77

(252) Pode parecer que a mão direita da Grã-Bretanha não sabia o que a sua mão
esquerda estava fazendo. Apesar dessa crítica, não é mencionado que a política de
supressão foi mantida, que ela reduziu substancialmente o volume do tráfico e
efetivamente pôs fim ao tráfico no Brasil por meio da intervenção armada.78
Ao lidar com a emancipação, ainda que reserve pouco espaço ao tópico,
Williams praticamente contradiz o seu próprio argumento. Atacar o monopólio numa
época em que os mercados estavam saturados foi “o auge da ilogicidade”. 79 Ele não dá
importância ao motivo pelo qual os capitalistas britânicos, que antes apresentou como
arbitrários, não perceberam isso, promoveram uma redução da oferta por meio da
abolição e duplicaram o preço do açúcar. Mais surpreendentemente, a prevalência da
atividade abolicionista nas áreas industriais, que ele usara como evidência do interesse
capitalista, agora é citada como prova de que “a emancipação dos escravos era parte do
movimento geral do proletariado industrial europeu em direção à democracia”.80
Enquadrar essas observações nos registros históricos não é fácil. Elas podem, de
qualquer maneira, ser rapidamente compreendidas se argumentarmos que a pesquisa da
verdade objetiva sobre o passado não é a única razão, ou necessariamente a principal
razão, da escrita da história. No seu prefácio do British Historians and the West Indies,
Williams nos diz que seu próprio trabalho não é,

em termos da sua responsabilidade para com a disciplina histórica, inferior ao trabalho da maioria dos
historiadores, que ele [...] procura analisar. E mesmo que ele esteja sendo demasiadamente otimista a esse
respeito, em última análise o coração importa mais do que a cabeça. O autor busca principalmente

. Ibid., p. 310.
77

78
. Para uma descrição dessas políticas, ver Christopher Lloyd, The Navy and the Slave Trade: The
Suppression of the Slave Trade in the Nineteenth Century (London, 1949). Os aspectos políticos são
tratados mais extensamente em Great Britain and the Slave Trade, de Mathieson.
. From Columbus to Castro, p. 289.
79

. Ibid., p. 292-293.
80

59
emancipar os seus compatriotas que os escritos históricos analisados por ele tentam depreciar e encarcerar
para sempre no status inferior em que estes escritos se esforçaram para condená-los.81

(253) É, portanto, para libertar os seus companheiros das Índias Ocidentais da


“mentalidade servil”, fomentada “pelos conceitos intelectuais e atitudes elaboradas
pelos acadêmicos metropolitanos na era do colonialismo”, que ele está escrevendo. 82
Como nota Alan Bullock no prefácio desse livro, esse é um objetivo plenamente
louvável.83 Há muito para ser dito sobre olhar a história de dois pontos de vista: o
novo e, em particular, o não metropolitano, uma vez que a maior parte da história
tem sido escrita nas metrópoles. Williams considera que os seus próprios escritos
se destinam às necessidades de nações que recentemente se tornaram
independentes. “O velho mundo intelectual está morto... O novo mundo do
intelecto aberto aos países emergentes nada tem a perder exceto os grilhões que o
prendem a um mundo que está morto”. 84 Até agora não tem sido fácil reconciliar
esses objetivos com as exigências rigorosas da pesquisa acadêmica. Como outro
habitante das Índias Ocidentais – Arthur Lewis, Vice-Chanceler da Universidade das
Índias Ocidentais (e subsequentemente premiado com um Nobel pelo seu trabalho sobre
desenvolvimento econômico) – lembrou à sua audiência em uma solenidade acadêmica
na Jamaica: “quando abandonamos a busca da verdade por algum motivo, seja pelo seu
perigo, seja por sermos preguiçosos, seja por qualquer outra razão, então nos tornamos
parasitas... É por esse motivo que os acadêmicos sempre têm de ser tão duros uns com
os outros”.85

Enfim, o que devemos concluir da descrição da abolição feita por Williams?


Suponhamos que pudesse ser mostrado que antes da emancipação os preços do
açúcar das Índias Ocidentais nunca estiveram significativamente fora da linha dos
preços mundiais. Suponhamos que cada uma das duas principais partes da
legislação abolicionista – a abolição do tráfico de escravos em 1807 e a
emancipação dos escravos em 1833 – ocorreu numa época em que os preços do
açúcar das Índias Ocidentais estavam baixos e o consumo britânico per capita de
. British Historians, p. 12. Para uma crítica desse trabalho, ver Elsa Goveia, “New Shibboleths for Old”,
81

p. 48-51.
. British Historians, p. 12, 13.
82

. Ibid. p. 7-8.
83

. Ibid., p. 13.
84

. Citado em E. C. Richardson, The Scholarship of Eric Williams (Port-of-Spain, Trinidad, 1967), p. 24.
85

60
açúcar estava alto. Suponhamos, em seguida, que cada uma foi acompanhada por
uma alta dramática do preço do açúcar no mercado britânico e por uma queda
correspondente no consumo. Finalmente, suponhamos que, pelo menos no segundo
caso, essa alta foi o resultado direto e claramente previsto das (254) políticas
adotadas. Ao fechar as contas, quanto restaria da tese de Williams?
Como já mencionamos, todas essas coisas podem ser mostradas. Certamente,
elas estão no trabalho de Ragatz. Talvez o mais impressionante é que Ragatz, que trata
exaustivamente da política tarifária e dos debates gerados pelo assunto, não faz as
conexões entre as duas e a abolição como Williams; e nem os próprios participantes
fizeram essas conexões. E Williams também não fez tais conexões, pelo menos na sua
tese de doutorado.
Apesar disso, ele efetivamente garantiu um lugar para si mesmo nos anais da
historiografia ao se tornar o primeiro acadêmico a explorar intencionalmente a relação
entre abolicionismo e a emergência do capitalismo industrial moderno. Nesse aspecto,
no entanto, seu trabalho é mais importante pelas questões que levanta do que pelas
respostas que oferece. O erro de Williams foi procurar uma solução na forma de um
nexo monetário. Era isso que ele esperava encontrar ao basear-se em suposições sobre a
política britânica em relação às Índias Ocidentais de outro período. Era um tipo de
explicação muito favorável nos anos da Depressão. Isso explica também por que o
Capitalismo e escravidão continua a ser considerado como um trabalho definitivo para
os que têm uma determinada convicção política. No caso, ele não foi capaz de encontrar
a evidência que procurava, pelo menos não uma da espécie que lhe permitisse construir
argumentos convincentes na forma narrativa convencional. Em vez disso, ele recorreu
ao que parecia ser a segunda melhor alternativa: pintou o retrato de uma
sociedade, que estava não só em processo de rápida transformação econômica
como também muito preocupada com questões financeiras, dentro do qual podiam
ser acomodados os itens fragmentários e frequentemente conflitantes da
informação que ele havia coletado. Seu método era em parte impressionista, em parte
pontilhista, consistindo de amplas afirmações gerais, seguidos de exemplos curtos
fortemente sustentados por notas de rodapé, sendo que, como um exame minucioso
pode revelar, nem todos os exemplos mantêm relações com o ponto em questão.
Como peça de retórica histórica, o Capitalismo e escravidão é grandioso, o que
se comprova pelo seu reaparecimento em sucessivas reimpressões. Contudo, pela luz
que Williams lança sobre a abolição, a tese de Oxford é muito mais sutil, aberta e

61
sugestiva. Em parte isso se deve ao fato de que ele ainda não havia se fechado dentro de
uma posição em que tinha de fazer uma escolha entre o idealismo e o interesse; mas foi
forçado a se fechar com seus argumentos sobre a predominância do interesse. Desse
modo, ele pode mostrar, frequentemente com muita perspicácia, (255) como o idealismo
interagia com o interesse. Os humanitaristas estavam plenamente conscientes da
necessidade de mobilizar argumentos econômicos a favor da causa, embora isso
não signifique de forma alguma que eles próprios estivessem economicamente
motivados, ou até mesmo que este fosse o caso daqueles a quem eles se dirigiam.
Para responder aos argumentos essencialmente econômicos dos seus oponentes,
eles simplesmente tiveram de demonstrar que também podiam argumentar em
termos econômicos e que o resultado final das suas orientações políticas não seriam
tão ruins como se dizia e, nalguns aspectos, poderiam até ser de interesse nacional.
É difícil de comprovar até que ponto eles próprios realmente se persuadiram
com esses argumentos. Nesses casos é sempre difícil traçar uma linha entre a crença, a
ilusão e um desejo compreensível de dar a melhor aparência possível ao problema. A
resposta óbvia é que isso tudo depende muito das circunstâncias e das pessoas. Que
houve quem adotasse literalmente os argumentos econômicos foi demonstrado
quando cartas começaram a chegar ao escritório da British and Foreign Anti-
Slavery Society perguntando por que, ao contrário das expectativas, o preço do
açúcar subiu em vez de cair. 86 Todavia, muitos abolicionistas provavelmente
teriam aceitado a máxima de Thomas Fowell Buxton, de 1833: “se a justiça for
incompatível com o cultivo do açúcar, prefiro a justiça”. 87 Se os parlamentares que
votaram pela abolição aceitavam essa visão é outro assunto, mas ninguém esperava
que os britânicos ficassem sem açúcar. O que é óbvio é que não há razão para a
adoção de um padrão duplo a fim de supor que enquanto o idealismo poderia ser usado
como um disfarce do interesse econômico, o interesse econômico não poderia ser igual
e prontamente usado como um disfarce do idealismo.
Vale a pena notar que comentaristas mais recentes rejeitaram
explicitamente esses simples dualismos. Embora aceitassem que a abolição e as
mudanças econômicas que ocorriam simultaneamente na Grã-Bretanha e em
outros lugares estavam intimamente conectadas, eles ficaram mais preocupados
em analisar o modo pelo qual esses desenvolvimentos desencadearam atitudes

. Temperley, British Antislavery, p.147-148.


86

. Hansard’s Parliamentary Debates, Third Series, 18 (10 de junho de 1833), 538.


87

62
hostis para com a escravidão do que com a tentativa de documentar a interação
dos interesses econômicos. Essa abordagem foi empregada para mostrar que a própria
Revolução Industrial, (256) ao requerer, como de fato ocorreu, uma flexibilidade maior
no uso do trabalho, e por abrir novos horizontes ao progresso econômico, desencadeou
uma ideologia – exemplificada nos escritos de Adam Smith – que foi fundamentalmente
hostil à escravidão.88 Como já foi demonstrado, a maior parte da base de apoio da
abolição era formada por pequenos empreendedores independentes, cujas experiências
pessoais dentro da florescente economia metropolitana faziam com que eles se
tornassem receptivos a essas noções.89 Outros exploraram as demais implicações da
questão ao indicar que o abolicionismo, longe de ser um fenômeno isolado, era parte de
um movimento humanitário mais extenso que se espalhou pelas sociedades do mundo
ocidental durante esses anos e levou à adição de novas atitudes em relação ao amparo
dos pobres, ao tratamento dos criminosos, ao cuidado dos insanos e a um grande
número de outras instituições e práticas. 90 A maneira pela qual as pessoas consideravam
a escravidão nas colônias tinha muito a ver com a que elas sentiam a respeito de
questões que envolviam liberdade e disciplina social em casa.91 Assim, justificar a
abolição se tornou parte de um projeto mais amplo que envolve a descoberta das
relações entre as mudanças da esfera econômica e as noções abrangentes sobre
progresso, instituições sociais e responsabilidade moral individual dentro da sociedade
ocidental como um todo.
Na medida em que Williams tinha condições para considerar esses aspectos mais
amplos do problema, como fez em certo grau na sua tese de Oxford, sua abordagem
estava bastante alinhada com o pensamento histórico moderno. O espaço dedicado à
abolição foi muito maior na tese do que em qualquer dos seus trabalhos publicados

. Howard Temperley, “Capitalism, Slavery and Ideology”. Past and Present, n. 75 (May, 1977), p. 94-
88

118; “Anti-Slavery as a Form of Cultural Imperialism”, in Christine Bolt; Seymour Drescher eds., Anti-
Slavery, Religion and Reform: Essays in Memory of Roger Anstey (Hamden, Conn., and Folkestone,
England, 1980), p. 335-350; “The Ideology of Antislavery” in David Eltis; James Walvin, eds., The
Abolition of the Atlantic Slave trade: Origins and Effects in Europe, Africa and the Americas (Madison,
Wisc., 1981), p.21-35; e “Abolition and the National Interest” in Jack Hayward, ed., Out of Slavery
(London, 1985).
. Seymour Drescher, Capitalism and Antislavery: British Mobilization in Comparative Perspective
89

(London, 1985).
. Ver o artigo, dividido em duas partes, de Thomas L. Haskell, “Capitalism and th Origins of the
90

Humanitarian Sensibility”, American Historical Review, v. 90 (April and June, 1985), 339-361, 547-566.
. Davis Brion Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution (Ithaca, N. Y., 1975).
91

63
posteriormente. (257) É uma pena que o editor, a quem ele aparentemente ofereceu o
original em 1939, se recusou a publicá-lo.92
Em todo caso, como vimos, ele publicou de uma forma bem diferente os frutos
da sua pesquisa nos Estados Unidos ao substituir a abordagem da narrativa cautelosa da
tese por outra mais impressionista e polêmica. Saber precisamente por que ele fez isso é
uma questão a ser resolvida por futuros biógrafos. De qualquer maneira, a publicação
foi um ato de um momento histórico no qual ela não só deu aos caribenhos o que muitos
têm considerado desde então uma declaração de independência da história – como
indicam os comentários de Forbes Burnham e de Marilyn Gordon –, mas também
constituiu um caminho das pedras para uma notável carreira política.
Uma questão que deveria provocar sentimentos contraditórios nos estudiosos é
que os eventos tomaram efetivamente esse rumo. A troca de emprego de Eric Williams,
primeiro indo para o Secretariado da Comissão Caribenha e, em seguida, para a política,
foi uma notável perda para a profissão. Capitalismo e escravidão, o trabalho pelo qual
ele é mais lembrado e que publicou enquanto estava no início da casa dos 30, é
profundamente defeituoso, pelo menos na sua abordagem da abolição. Para os de fora
do Caribe, hoje ele é lembrado nesse aspecto principalmente porque marca um dos
polos extremos de um debate em curso, sendo o outro polo a sempre citada observação
sobre a cruzada abolicionista britânica de W. E. H. Lecky, de acordo com a qual ela está
entre as “três ou quatro páginas perfeitamente virtuosas da história das nações”.93
Evidentemente, essa é uma polarização enganosa uma vez que Williams, nos seus
últimos escritos, nunca foi tão longe a ponto de afirmar que os abolicionistas careceram
de idealismo, menos ainda que não foram virtuosos, tampouco Lecky nunca disse que a
abolição não teve aspectos econômicos. A solução, como os historiadores modernos
estão bem conscientes e como o jovem Eric Williams esteve de algum modo perto de
mostrar, depende de encontrar os modos de relacioná-los.

. British Historians, p. 211.


92

. Lecky, William Edward Hartpole. History of European Morals from Augustus to Charlemagne. (7th
93

edn., Londres, 1886), v. 1, p.153. Esse foi simplesmente um comentário feito de passagem. Lecky estava
preocupado com a moralidade e não com a economia e também com um período bem anterior da história.

64
Terceira Parte

Abolicionismo: novas abordagens

65
Capitalismo, abolicionismo e hegemonia

David Brion Davis

(209) Novamente a atenção se volta para o aparecimento quase simultâneo


do capitalismo industrial com o sentimento antiescravista na Grã-Bretanha. Desde
a publicação do Capitalismo e Escravidão de Eric Williams, há mais de uma
geração, a relação entre essas duas forças de grande alcance tem provocado um
debate considerável. Como Howard Temperley demonstra no seu ensaio neste livro ,
as questões adquiriram uma alta voltagem ideológica no Terceiro Mundo assim como na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.
Williams e seus muitos seguidores procuraram retratar as medidas
abolicionistas britânicas como atos economicamente determinados do auto-
interesse nacional, cinicamente disfarçados de triunfos humanitários. Roger
Anstey, que tomou a iniciativa de minar o argumento da motivação econômica de
Williams, considerou o papel do cristianismo no abolicionismo como nada menos que
“um evento salvador dentro do contexto da História da Salvação”. 94 Embora poucos dos
oponentes de Williams compartilhassem essa fé explícita na emancipação dos escravos
como um passo em direção à redenção, é difícil achar um segundo termo que rejeite o
reducionismo cínico de Williams, mas que leve em conta as realidades do poder de
classe. Tomando emprestada uma frase que C. Vann Woodward aplicou à Guerra Civil
norte-americana, um historiador que investiga as pretensões morais dos abolicionistas
ou observa que a emancipação das Índias Ocidentais permitiu que a Grã-Bretanha
acrescentasse uma soma imensa ao “tesouro da virtude nacional” e contasse com ela no
“futuro como crédito moral” corre o risco de ser classificado como um seguidor de Eric
Williams. Além disso, como Reinhold Niebuhr lembra, o orgulho nacional é


Publicado originalmente em DAVIS, David Brion. Capitalism, Abolitionism and Hegemony. In
SOLOW, Barbara L.; ENGERMAN, Stanley L. British Capitalism and Caribbean Slavery. The legacy
of Eric Williams. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 209-227.

N. do T. Aqui o autor refere-se ao livro British Capitalism and Caribbean Slavery. The legacy of Eric
Williams, organizado por Barbara L. Solow e Stanley L. Engerman, do qual foram traduzidos os artigos
de David Brion Davis e de Howard Temperley para esta coletânea.
. Roger Anstey, “Reflexions on the Lordship of Christ in History”, Christian, v. 3, n. 1 (Michaelmas,
94

1975), 69-80. Ver também Davis Brion Davis “An Interpretation of Roger Anstey” in Anti-Slavery,
Religion, and Reform: Essays in Memory of Roger Anstey, ed. by Christine Bolt e Seymour Drescher
(Folkestone, England, 1980), p. 11-15.

66
especialmente perigoso e enganoso (210) quando se baseia nas mais altas realizações da
história humana.95
Em 1975, em O problema da escravidão na era da revolução, 1770-1823, sugeri
que o abolicionismo britânico prestou serviços a funções ideológicas conflitantes, mas,
no seu período inicial, reforçou a hegemonia dos valores capitalistas. Recentemente,
essa visão evocou críticas frutuosas de Seymour Drescher, Thomas Haskell e Betty
Fladeland, entre outras.96 Como arco com alguma responsabilidade pelas interpretações
errôneas que foram feitas à minha “tese”, aproveito a oportunidade para apresentar
novamente meu argumento, esclarecê-lo e opinar sobre algumas críticas feitas a ele.
Primeiro, quero enfatizar que meu argumento hegemônico preenche apenas
umas poucas páginas de um livro que contém 570, e que se dedica à história britânica
apenas no período limitado de 1790 a 1823, afora algumas breves especulações que vão
além dos anos 1830. Nesse livro, eu não estendi o conceito de hegemonia para os
Estados Unidos ou para a França, onde os movimentos pela abolição emergiram em
contextos completamente diferentes. Certamente não desenvolvi nenhuma teoria do
abolicionismo per se como um instrumento de controle hegemônico. Nunca tive a
intenção de sugerir que o abolicionismo pode ser mais bem compreendido como um
dispositivo para defletir o descontentamento dos brancos da classe trabalhadora, ou que
ele não fez parte de um movimento igualitário e libertador mais amplo que descrevi em
O problema da escravidão na cultura ocidental (1966).
É importante fazer a distinção entre as origens do sentimento antiescravista,
um assunto que discuti detalhadamente nesse livro, e as condições que favoreceram
a ampla aceitação da ideologia (211) abolicionista pelas várias elites governantes.
Essa é uma distinção que Thomas Haskell obscurece continuamente. Em toda minha

. C. Vann Woodward, Thinking Back: The Perils of Writing History (Baton Rouge, 1986), p. 186;
95

Richard Wightman Fox, Reinhold Niebuhr: A Biography (New York, 1985), p. 181.
. Ver especialmente Seymour Drescher, “Cart Whip and Billy Roller: Antislavery and Reform
96

Symbolism in Industrializing Britain”, Journal of Social History, v. 15, n. 1 (Sept., 1981), p. 3-24;
Drescher, Capitalism and Antislavery: British Antislavery in Comparative Perspective (New York, 1987);
e o ensaio de Drescher neste livro; Thomas L. Haskell, “Capitalism and the Origin of Humanitarian
Sensibility”, Part 1, The American History Review, v. 90, n. 2 (April, 1985), p. 339-361; e Part 2 The
American Historical Review, v. 90, n. 3 (June 1985), p. 457-566; Betty Fladeland, Abolitionists and
Working-Class Problems in the Age of Industrialization (Baton Rouge, 1984). David Eltis em seu
Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade (New York, 1987) e Robert William
Fogel em Without Consent or Contract ampliam os meus próprios argumentos e mostram que eles não
são incompatíveis com as principais descobertas empíricas de Drescher e de Fladeland. Agradeço aos
professores Eltis e Fogel por terem permitido que eu lesse as versões originais dos seus manuscritos
extremamente importantes. Tenho também uma dívida para com Christopher Lowe, estudante de pós-
graduação de Yale, cujo trabalho para um seminário sobre “Ideology, Hegemony and Class Rule in The
Problem of Slavery in the Age of Revolution” ajudou a esclarecer as minhas próprias ideias.

67
obra, me esforcei para enfatizar a importância das fontes religiosas do pensamento
abolicionista e as transformações religiosas que fizeram da emancipação dos
escravos um teste simbólico da eficácia da fé cristã. Em The Age of Revolution eu
não disse, e aqui Haskell me cita erroneamente, que a “origem” da nova sensibilidade
humanitária repousa nas “necessidades ideológicas de vários grupos e classes”. 97
Sustento que “a evolução contínua” da opinião abolicionista “refletiu as
necessidades ideológicas de vários grupos e classes”.98 Tenho em mente as
necessidades ideológicas geradas pela Revolução Francesa, pelo início da
Revolução Industrial, pela guerra, pelo nacionalismo, e pelo revivalismo religioso.
O que está em discussão são os usos da doutrina e da retórica abolicionista como
um movimento que partiu dos radicais que aderiram às ideias de Paine no começo
dos anos 1790, conquistaram legitimidade com os ministérios do governo em 1806-
07, foram apropriados pela aristocrática Instituição Africana e foram remodelados
pelos endinheirados comerciantes filantropos.
Em The Age of Revolution eu tive de lidar com a Grã-Bretanha do período que
vai de 1793 a 1823, décadas de política reacionária e de repressão doméstica que não
deve ser confundida com a era de efervescência social e de reforma que acompanhou a
emancipação escrava nas Índias Ocidentais e a abolição do aprendizado. A questão
crucial, portanto, não foi a de saber por que os grupos de ilustrados bretões,
franceses e norte-americanos atacaram a escravidão dos anos de 1760 aos de 1780;
foi, isto sim, a de saber por que só essa causa reformista, que atraiu apoio radical
significativo no início da década de 1790 e que foi denunciada por alguns
conservadores como um movimento de inspiração jacobina, ganhou aceitação das
elites políticas e sociais britânicas no começo do século XIX, que, por outras
circunstâncias, estavam obsecadas pelo medo de que a reforma social abriria os
portões para a revolução.
Durante o longo período dos fins da década de 1790 até 1823, o público
britânico mostrou pouco interesse pela questão da escravidão, exceto no fim das
guerras napoleônicas. Em 1814, uma erupção de petições expressou indignação
com a perspectiva de que o governo permitiria à França reiniciar o tráfico
negreiro atlântico, anteriormente renunciado pela Grã-Bretanha com base em
princípios morais. Essa breve explosão popular (212) valeu-se do orgulho nacional

. Haskell, “Capitalism”, Part 1, p. 344.


97

. Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823 (Ithaca, N.Y, 1975), p. 42.
98

68
e foi orquestrada pelos líderes abolicionistas ansiosos para demonstrar às cortes da
Europa que o povo inglês, “como uma única voz”, demandava a supressão
internacional do tráfico de escravos. A causa prestou serviços aos propósitos de
Wellington e Castlereagh, que colaboraram ativamente com os abolicionistas. Na
preparação do Congresso de Viena, Castlereagh até requereu um resumo das provas do
tráfico de escravos que pudesse ser traduzido para o francês. Esse foi um governo
britânico notavelmente reacionário e repressivo que tentava influenciar a opinião
pública e subornar Espanha e Portugal para pôr fim ao tráfico de escravos atlântico, ou
para restringi-lo.
Os historiadores exageram ao considerar a continuidade da agitação
popular abolicionista dos fins da década de 1780 até a década de 1830. As medidas
abolicionistas cruciais de 1800 a 1823 não resultaram da pressão popular. Os
líderes do governo e uns poucos abolicionistas influentes foram responsáveis pelas
decisões para restringir e depois suspender o fluxo de africanos para a Guiana e
para outras colônias estrangeiras conquistadas pelos britânicos, e, em seguida,
para proibir o tráfico de escravos britânico em outras nações e colônias
estrangeiras. O bem-sucedido projeto de lei nasceu na Câmara dos Lordes; a
apatia e a ignorância prevalecentes sobre a questão levaram Wilberforce a
publicar e divulgar amplamente A Letter on the Abolition of the Slave Trade;
Adressed to the Freeholders and Other Inhabitants of Yorkshire. A campanha
posterior para estabelecer um registro central de todos os escravos coloniais
despertou pouco interesse público, embora fosse vista como uma providência
preparatória para a emancipação. Já em 1823 e 1824, quando houve o avanço de
um movimento organizado pela emancipação, os abolicionistas que solicitavam
petições e as sociedades organizadas locais foram surpreendidos pela ignorância
pública geral em relação à escravidão nas Índias Ocidentais. Nessa ocasião, as
elites governantes passaram crescentemente a se comprometer com a reforma do
trabalho colonial. Por que a escravidão colonial parecia tão repugnante a esses
grupos?
À procura de uma resposta a essa questão, devo deixar claro que não
considero “ideologia” como um conjunto fixo de ideias e doutrinas usadas para
promover os interesses concretos de classe. Quando me refiro a uma ideologia
como um “modo de consciência”, tenho em conta uma lente de percepção, um
modo de ver a realidade social que ajuda a definir, bem como a legitimar uma

69
classe, um gênero, ou outros interesses coletivos. Mantendo essa elasticidade em
mente, é importante fazer uma distinção entre os motivos dos reformadores e o
(213) contexto ideológico que dá sentido hegemônico à retórica e à influência
desses homens.
Em 1786, quando Thomas Clarkson publicou o seu ensaio premiado pela
Universidade de Cambridge sobre os horrores do tráfico africano de escravos, ele
claramente não tinha a intenção de perdoar o trabalho infantil britânico nas
fábricas e minas. Mas os oponentes pró-escravistas de Clarkson, como Gilbert
Francklyn e Jesse Foot, imediatamente contrastaram o conforto e a segurança que
eram atribuídos aos escravos das Índias Ocidentais com a opressão dos
trabalhadores ingleses e com a condição precária das crianças inglesas expostas ao
“vapor pestilento” das fábricas. Francklyn levantou uma questão: por que as
universidades não ofereciam prêmios “para a melhor dissertação sobre os maus
efeitos que as manufaturas de Birmingham, Manchester e outras cidades
industriais causavam à saúde e às vidas dos pobres empregados por elas?” Ele foi
mais adiante ao mostrar como as técnicas de retórica de Clarkson podiam ser aplicadas
às consequências específicas do começo da Revolução Industrial.99
Essas contra-ofensivas abolicionistas apareceram até mesmo antes de se
tornarem um tema dominante dos escritos pró-escravistas britânicos e norte-
americanos. Pontos de vista similares foram construídos pelos porta-vozes radicais
dos trabalhadores que, em princípio, se opunham a todas as formas de sujeição
econômica e política. Tendo em vista a virulência do debate, nenhum abolicionista
podia alegar razões de ignorância à acusação de que a ofensa moral estava sendo
dirigida contra a opressão no ultramar, enquanto uma opressão similar, ou pior,
era complacentemente tolerada em casa. Em 1818, por exemplo, Sir Francis
Burdett quis saber por que William Wilberforce ficava chocado com a
escravização de africanos e ainda assim apoiava no Parlamento um projeto de lei
sobre reuniões que incitavam à sedição e a suspensão do habeas corpus, medidas
estas que permitiam que os ingleses fossem detidos e tratados como escravos
africanos.
Em face desses desafios, teoricamente os abolicionistas poderiam condenar
todas as formas de opressão e simplesmente priorizar o tráfico de escravos e a

99
. Citado em Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, p. 462-463. Como estou
respondendo aos erros de leitura desse livro, extrairei mais exemplos dele.

70
escravidão como propriedade como os mais flagrantes e corrigíveis crimes contra a
humanidade. Esse rumo levaria a uma negação das reclamações dos escritores pró-
escravistas e, pelo menos, a uma expressão privada de arrependimento pelas
consequências não intencionais do louvado trabalho livre assalariado. Como uma
segunda alternativa, exemplificada por alguns (214) dos subsequentes garrissonianos e
ativistas da reforma do trabalho, os abolicionistas poderiam reclamar que males
distantes ou próximos se originaram de uma causa comum. Em uma terceira escolha,
eles podiam negar qualquer termo da comparação entre os escravos negros que estavam
sujeitos à constante coerção física e os trabalhadores ingleses que enfrentavam apenas a
ameaça da fome, designada como um “motivo liberal” e um “apuro racional” pelo
reformador que esboçou a lei de emancipação dos escravos de 1833.100
Respondendo às acusações pró-escravistas do sistema de trabalho
assalariado, a maioria dos abolicionistas acentuou o contraste moral entre o que
imaginavam como dois mundos, o livre e o escravo. No fim das contas, a maior
esperança deles era eliminar o embarque forçado de africanos para o Novo Mundo
e transformar os escravos negros em trabalhadores alegres, obedientes e bem-
agradecidos, cujas necessidades podiam ser satisfeitas exclusivamente pelo
trabalho assalariado voluntário. Essa esperança baseava-se na suposição de que o
sistema britânico de trabalho tinha alcançado um equilíbrio razoável entre a
liberdade e a ordem e podia servir como uma norma em contraste com a qual os
regimes mais rigorosos podiam ser avaliados. Não estou sugerindo que os
primeiros abolicionistas foram principalmente conservadores que aceitavam o
status quo e se opunham às reformas domésticas, embora alguns deles se
ajustassem a esta descrição. Mas o contraste acentuado que eles viam entre a
sociedade britânica e a colonial tinha um significado ideológico, especialmente em
uma época em que havia uma necessidade crescente de valorizar o trabalho
assalariado como uma norma universal, quando a Revolução Industrial estava
introduzindo novas formas de exploração e de sofrimento e quando não era claro de
forma alguma que a classe trabalhadora britânica era menos vitimada que os escravos
das Índias Ocidentais.
Por exemplo, no início de 1807, em um estágio sombrio da guerra da
Inglaterra contra Napoleão, James Stephen, o velho, que era um mestre
estrategista dos abolicionistas, destacou que a depravação britânica na África e nas

. Davis, Slavery and Human Progress (New York, 1984), p. 218.


100

71
Índias Ocidentais era a causa da vingança de Deus. Stephen excluiu
especificamente os pecados domésticos e tratou de se mostrar admirado com a
“felicidade social [que se] precipita sobre nós com uma profusão singular”. “Em
nenhuma outra parte do globo, os pobres e os desamparados são tão bem
protegidos pelas leis ou tão humanamente tratados pelos seus superiores... Se for
como protetor dos pobres e dos destituídos que Deus entrou em juízo conosco,
precisamos, repito, olhar para a África e para as Índias Ocidentais, por causa da
sua ira”.101
Stephen era um homem profundamente religioso que estava genuinamente
preocupado com o crime coletivo e o castigo. A partir do que sabemos sobre ele,
podemos ter quase certeza de que sua pretensão consciente não era a de usar sua
aversão à escravidão e ao tráfico de escravos, que observara pessoalmente nas
Índias Ocidentais, como um meio de desviar a atenção do sofrimento doméstico.
Embora tivesse ficado detido na prisão para devedores, quando era criança e
juntamente com sua mãe, ele acreditava honestamente, pelo menos depois do
casamento com uma Wilberforce e depois de se aliar com os Tories paternalistas,
que o tratamento dado aos pobres na Grã-Bretanha não podia ser a causa do
descontentamento divino. Mais tarde, em 1807, Stephen desempenhou um papel
importante na consecução da abolição do tráfico de escravos britânico, uma lei
aclamada pelos líderes políticos como a mais altruísta desde a crucificação de
Cristo e como a prova de que a Grã-Bretanha estava em guerra pela fraternidade
humana.
Desde o tempo do Êxodo mosaico, escravidão e redenção têm sido paradigmas
extremamente poderosos que envolvem as derradeiras questões da vida individual e
coletiva relativas à passagem da miséria e da degradação atuais para a terra de Canaã.
Afora os seus sentidos religiosos, esses paradigmas não podem ser estendidos para uma
ampla gama de experiências sociais que dizem respeito à opressão e à libertação, ou de
serem confinados aos sofrimentos históricos de um povo em particular. De acordo com
Rousseau, “o homem nasce livre – e em todos os lugares está acorrentado”. Mas, pelo
menos desde Rousseau, sempre tem havido uma tensão entre essas proclamações

. Citado em Davis, Problem of Slavery in the Age of Revolution, p. 366-367. Wilberforce também
101

advertia em 1807 que as aflições dos britânicos podiam ser um prelúdio para uma muito pior
punição divina se a nação persistisse com o crime do tráfico de escravos (Letter on the Abolition of
the Slave Trade [London, 1807], p. 4-6)

72
generalizantes e as tentativas de dramatizar os horrores de um caso especial de sujeição
humana.
Para James Stephen, Wilberforce e os líderes do governo que deploravam o
tráfico africano de escravos e que procuravam pôr em prática políticas
abolicionistas gradualistas, o essencial era manter uma nítida distinção entre os
males do mundo escravista colonial e as instituições ostensivamente livres que
tinham sido colocadas em perigo pela tirania francesa e pelos jacobinos ingleses.
As comparações constantes na literatura abolicionista entre a agonia dos escravos
negros e a vida (216) alegre e contente do agricultor inglês não eram fortuitas.
Repetidamente os abolicionistas lembravam aos bretões que a decisão do caso
Somerset, em 1772, havia proscrito a escravidão na Inglaterra. Numa época em
que se dizia que muitos povos da Europa eram “escravizados” pelo despotismo
francês, era crucial definir a Inglaterra como uma nação “livre” – tanto no sentido
de não ter escravo algum quanto no de ter resistido à dominação estrangeira. Com
o aumento do nacionalismo na era napoleônica, liberdade significava cada vez mais
ser membro de uma nação que havia resistido ou se livrado da tirania estrangeira.
Quando os líderes nacionais foram tidos como protetores da liberdade no seu sentido
coletivo, foi mais difícil acusá-los de favorecer várias formas de opressão doméstica.
Se as colônias escravistas ajudaram a Inglaterra a se definir como solo livre – da
mesma forma que os países comunistas capacitaram os Estados Unidos a se definirem
como líder do mundo livre – também ajudaram a especificar a natureza da liberdade. O
tráfico africano de escravos definia, como polaridade negativa, as condições
necessárias para o transporte consensual e aceitável de trabalhadores. Era
inaceitável que um empregador reivindicasse a propriedade da pessoa de um
empregado, vendesse maridos separados das suas mulheres, ou crianças separadas
dos seus pais. Por outro lado, era aceitável comprar o trabalho de adultos ou de
crianças mesmo em condições que levassem à separação das suas famílias e que
zombassem do suposto consentimento do trabalhador.
A seletividade britânica, como eu sugeri em The Age of Revolution, deve ser
entendida em termos do contexto histórico. As primeiras intervenções do governo no
sistema colonial de trabalho coincidiram com os problemas domésticos urgentes de
disciplina e de administração do trabalho – que ainda não eram os problemas de um
proletariado industrial, mas os de uma imensa força de trabalho que havia sido libertada
das restrições e controles tradicionais, embora não tivesse sido privada da

73
independência da cultura pré-industrial da aldeia. Muitos bretões, inclusive
abolicionistas, tiveram sentimentos ambivalentes em relação às mudanças que
acompanharam o início da industrialização. As tensões se elevaram entre os advogados
do utilitarismo pragmático e os defensores do paternalismo tradicional ou da
benevolência evangélica. A questão da escravidão ofereceu um ponto de encontro para
esses diversos grupos e para os membros das diferentes classes proprietárias que
aspiravam assegurar a estabilidade enquanto se beneficiavam com as mudanças
econômicas em curso.

(217) Porque o sistema escravista era diferente e remoto, [eu escrevi] ele podia se tornar um tema para
fantasias experimentais que assemelharam as fantasias tradicionais às novas necessidades econômicas.
Um ataque ao tráfico africano de escravos podia merecer a atenção de algumas das inquietações dos
tradicionalistas sobre o desenraizamento e o deslocamento dos trabalhadores... Ao retratar a grande
lavoura escravista como totalmente dependente da tortura física, os escritores abolicionistas sancionavam
os modos menos bárbaros de disciplina social. Para os reformadores, a grande lavoura oferecia a
perspectiva da combinação das virtudes da antiga ordem agrária com os novos ideais de melhoria e de
incentivo planejado. Os abolicionistas podiam contemplar uma mudança revolucionária no status
precisamente porque não estavam considerando a mobilidade ascendente dos trabalhadores, mas sim a
dos negros distantes em direção ao nível da humanidade... O abolicionismo britânico forneceu uma ponte
entre os valores industriais e os pré-industriais; ao combinar insistentemente o ideal de emancipação com
o dever e a subordinação, ele contribuiu para aplainar o caminho para o futuro.102

Essa passagem tem sido citada muitas vezes, porque tenho sido algumas vezes
interpretado como se argumentasse que o abolicionismo britânico foi um “dispositivo de
ocultação”, destinado a desviar a atenção da exploração metropolitana. 103 Na verdade,
eu estava tentando sugerir um modelo muito mais complexo no qual o sistema da
grande lavoura colonial serviu como tela de projeção ou teatro experimental para testar
as ideias sobre libertação, paternalismo e mudança social controlada, que eram em parte
inspiradas pelas inquietações domésticas. Como se pode esperar em uma sociedade
tão profundamente dividida como a do começo da industrialização britânica,
diferentes audiências extraíam conclusões contraditórias das experiências da
reforma ultramarina. Mas é difícil negar que a causa da abolição ofereceu às elites
governantes, tanto à nacional quanto às locais, uma oportunidade crescentemente
atraente para demonstrar o seu comprometimento com a decência e a justiça.

. Davis, Problem of Slavery in the Age of Revolution, p. 466-467.


102

. Ver, especialmente, Drescher, “Cart Whip and Billy Roller”, p. 4.


103

74
Na passagem acima citada, eu também estava preocupado com as implicações de
se fazer uma separação nítida entre a escravidão e os outros tipos de trabalho forçado e a
dominação social. É notável que até mesmo Thomas Clarkson, que conservava muito do
espírito liberal dos fins dos anos 1780 e do início dos 1790, não considerasse o trabalho
forçado nem um pouco injusto. Qualquer Estado, ele dizia, tem poder legítimo de usar
os condenados (218) para trabalhar nas minas ou para desobstruir rios. O que ofendia
Clarkson e outros abolicionistas da sua época era o direito de propriedade da pessoa,
que justificava arbitrariedade e autoridade ilimitadas. Os direitos dos donos de escravos
contrastavam claramente com os do idealizado proprietário de terras da Inglaterra, cuja
autoridade era constrangida pela lei e pelo costume; e com os direitos do capitalista
emergente, que estava contente porque podia comprar trabalho no mercado como
qualquer outra mercadoria.
Acima de tudo, o sistema escravista resumia um inerente e inescapável
conflito de interesse, um tipo de guerra sublimada ou suspensa desencadeada a
partir do momento em que o cativo era subjugado. Durante algum tempo, os
abolicionistas mais moderados procuraram meios de mitigar esse conflito,
esperando que, por exemplo, o fim das importações de escravos persuadiria os
senhores a promover o bem-estar dos escravos como parte dos seus próprios
interesses de longo prazo. Além disso, a taxa de crescimento negativo da população
escrava das Índias Ocidentais parecia mostrar que o próprio sistema era irreformável e
conduziria a um eventual genocídio. Essa impressão era reforçada pela resistência
truculenta dos donos de escravos aos missionários, à elevação moral, à abolição dos
mercados de domingo, às restrições ao açoitamento de mulheres e a outras medidas
benevolentes. No início da década de 1820, toda a ofensiva do movimento abolicionista
britânico visava criar uma harmonia natural de interesses entre os senhores e os
trabalhadores negros, uma relação similar à suposta mutualidade entre os donos de
terras e arrendatários britânicos.
Ao discutir que o abolicionismo espelhava as necessidades e as tensões de
uma sociedade crescentemente concentrada nos problemas relativos à disciplina do
trabalho, eu não estava dizendo que essas necessidades e tensões eram suficientes
para explicar a emergência e a direção final do pensamento abolicionista. Embora
enfatizasse a importância das classes e do contexto social, eu especificamente
alertei contra “a impressão simplista de que os ‘industrialistas’ promoveram a
doutrina abolicionista como um meio de desviar a atenção de outras formas de

75
exploração”.104 Meu tema principal era que o abolicionismo não pode ser
divorciado das vastas mudanças econômicas que estavam intensificando os
conflitos sociais e o aumento da consciência de classe; que na Grã-Bretanha ele era
parte de uma ideologia maior que contribuía para assegurar estabilidade enquanto
acomodava a sociedade à mudança social e política.
Mesmo na Grã-Bretanha, onde a causa conquistou apoio significativo (219)
das elites governantes, o pensamento abolicionista continha aspectos conservadores
e radicais. Alguns leitores têm se concentrado exclusivamente na primeira parte do
meu argumento, no qual afirmo que os atos de seletividade dos abolicionistas
“contribuíram para fortalecer as cadeias invisíveis que estavam sendo forjadas em
casa”. Mas, enfatizo também que o abolicionismo “gerou uma nova sensibilidade
em relação à opressão social”, “que estabeleceu um modelo para a acusação
sistemática do crime social” e que, “no fim das contas, ensinou muitos ingleses a
reconhecer formas da opressão sistemática que estava mais próxima de casa” 105
Para ilustrar as potencialidades radicais do pensamento abolicionista, citei Friedrich
Engels precisamente porque ele mostrou como as percepções e locuções abolicionistas
foram universalizadas durante os anos 1840; até mesmo um estrangeiro residente, sem
raiz alguma no movimento abolicionista, se apropriou da linguagem e da perspectiva
dos abolicionistas anglo-norte-americanos ao expor a “escravidão” da classe
trabalhadora de Manchester. Já em 1817, quando Wilberforce e seus amigos do
Gabinete de Liverpool temiam que a Inglaterra estivesse à beira da revolução, outro
estrangeiro radical indicava as conexões entre a opressão sobre os escravos das Índias
Ocidentais e sobre os pobres. Ian McCalman descobriu recentemente que Robert
Wedderburn, um mulato jamaicano cuja mãe escrava nascera na África, editava um
periódico em Londres, o Axe Laid to the Root, [O machado deitado à raiz] que bradava
104
. Davis, Problem of Slavery in the Age of Revolution, p.455.
105
. Ibid., p. 455, 467-468. Seymour Drescher amplificou enormemente esses temas, o que não contradiz
minha posição, como ele parecer pensar. Não há dúvida de que eu deveria ter citado mais exemplos
variados das ligações entre denúncias da escravidão colonial e a escravidão assalariada, e eu ignorava a
linguagem das petições que Drescher descobriu. Tive a intenção de explorar esse assunto em um livro
sucessivo ao “Era da Revolução”. Drescher não parece negar que Wilberforce, Stephen, Macaulay,
Clarkson, Cropper, Buxton e outros líderes nacionais do período inicial eram insensíveis ao argumento da
escravidão assalariada, que associavam com o argumento dos seus inimigos.

N. do T. O título foi inspirado no Evangelho de S. Mateus, 3:10; de acordo com a A Bíblia de Jerusalém,
“O machado já está posto à raiz das árvores, e toda árvore que não produzir bom fruto será cortada e
lançada ao fogo”. Essa expressão também foi usada por Thomas Clarkson em seu elogio aos esforços dos
abolicionistas pela ocasião da abolição do tráfico negreiro pelo Parlamento britânico. Ver CLARKSON,
Thomas. History of the Rise, Progress, and Accomplishment of the Abolition of the African Slave Trade
by the British Parliament. 1ª ed. London: Longman, 1808, v. 1, p. 286.

76
por uma revolução simultânea dos escravos das Índias Ocidentais e dos escravos
assalariados ingleses. Associado a Thomas Spence, a Thomas Evans e a outros radicais
de Londres, Wedderburn popularizou uma retórica abolicionista plebeia em tavernas e
capelas desocupadas do submundo londrino.106
Frequentemente, os movimentos sociais prestam serviços a funções opostas ou
contraditórias, especialmente se eles perduram por algum tempo. Como já indiquei, a
escravidão e a emancipação têm sido desde há muito (220) paradigmas
extremamente complexos, visto que eles são capazes de abranger estados materiais
e espirituais quase infinitos. A agitação abolicionista da década de 1820 levou
radicais norte-americanos como Langton Byllesby e Thomas Skidmore à conclusão
de que a escravidão negra não era o único crime quintessencial norte-americano,
mas a de que ela revelava problemas estruturais que possibilitavam a uns poucos
afortunados viver às custas do trabalho da chamada maioria livre. Por outro lado,
quando os reformadores radicais norte-americanos argumentaram mais tarde que
o sistema assalariado era escravidão, que o casamento convencional era escravidão
e que a submissão a qualquer governo que emprega a coerção é escravidão, essa
retórica seguramente atenuou a acusação de que a escravidão negra no Sul era um
sistema de opressão excepcional e intolerável. Como Christopher Lasch observou a
respeito da nossa própria época, a linguagem do protesto radical empobreceu
quando foi apropriada pelos gordos, pelos baixinhos, pelos velhos e por outros
grupos que reclamam que são tão oprimidos quanto as minorias raciais: “Depois
que políticas de grupos de interesses encorajam reivindicações competitivas ao status
privilegiado do vitimado, a retórica do ultraje moral se torna rotina, perde o seu vigor
crítico e contribui para o aviltamento geral do discurso político”.107
Embora reconheçamos que o abolicionismo sempre foi ambíguo e abriu
precedentes ao atacar práticas e instituições que a maioria dos abolicionistas
tolerava, devemos lembrar que até mesmo nos Estados Unidos foram os irmãos Tappan
e os que estavam ligados a eles, e não Thomas Skidmore, que, pelo menos na década de
1830, deram forma ao caráter básico do movimento abolicionista. Por sua vez, os porta-
vozes do movimento trabalhista radical da cidade de Nova York haviam concluído por
volta de 1850 que era essencial “abolir a escravidão assalariada antes de nos ocuparmos

. Ian McCalman, “Anti-Slavery and Ultra-Radicalism in Early Nineteenth-Century England: The Case
106

of Robert Wedderburn”, Slavery and Abolition, v. 7 (September, 1986), p. 99-117.


. Christopher Lasch, The Great American Variety Show, New York Review of Books, 2 de fevereiro de
107

1984, p. 36.

77
com a escravidão como propriedade do trabalhador”. Confrontados com o ódio e com o
preconceito racial persistente dos moralizadores da classe média, os líderes trabalhistas
queriam adiar a emancipação dos escravos, “que estão em melhores condições do que
estariam se fossem libertados dentro do atual Sistema Competitivo de trabalho...”. 108 O
movimento pela abolição não foi monolítico nem inalterável: nos Estados Unidos, em
contraste com a Grã-Bretanha, ele representou um desafio fundamental aos sistemas
econômico, político e religioso. (221) Além disso, prestou serviço a diversas funções
hegemônicas, particularmente ao promover uma ideologia do trabalho livre como a
antítese do poder escravista que ele atacava.
O conceito de hegemonia é facilmente desacreditado pelos erros de interpretação
e de compreensão – por exemplo, por atacar o argumento de que uma classe capitalista
impôs uma forma de falsa consciência a uma população passiva, enganando as pessoas
com a propaganda abolicionista destinada a desviar a atenção das mulheres e crianças
que trabalhavam nas fábricas e nas minas. Agora está claro que por volta do início da
década de 1830, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, o movimento
abolicionista atraiu apoio significativo de artesãos e de outros trabalhadores
qualificados; que na Inglaterra o aumento da “pressão de fora” foi anterior à da
liderança da elite abolicionista, embaraçando Thomas Fowell Buxton nas suas
negociações com os ministros do governo; e que uns poucos reformadores passaram do
aprendizado durante a campanha abolicionista para o ativismo mais radical como os
cartistas e os reformadores do trabalho. 109 Mas, de maneira alguma, esses fatos
invalidam o argumento hegemônico se ele for apropriadamente compreendido.
Hegemonia, como Eugene D. Genovese escreveu, implica tão somente a
habilidade de uma classe particular para conter antagonismos de classe “num terreno no
qual sua legitimidade não é perigosamente questionada”. 110 A hegemonia ideológica é
um processo que nunca é completo ou total; ela pode ser entendida de modos
diferentes por grupos ou classes que se opõem, uma vez que ela limita os termos do
debate, impede os desafios mais fundamentais e serve para reforçar a legitimidade

. Sean Wilentz, Chants Democratic: New York City & the Rise of the American Working Class, 1788-
108

1850 (New York, 1984), p. 162-168, 183-190, 382.


. Para uma discussão a respeito da pressão exercida sobre Buxton e os abolicionistas parlamentares, ver
109

Davis, Slavery and Human Progress, p. 195-202. O Capitalism and Antislavery, de Seymour Drescher,
enfatiza o caráter popular e solidamente constituído do movimento abolicionista. Sobre os cartistas
abolicionistas, ver Betty Fladeland, “‘Our Cause being One and the Same’: Abolitionists and Chartism”,
in Slavery and British Society, 1776-1846, James Walvin, ed. (Baton Rouge, 1982), p. 69-99.
. Roll Jordan, Roll: The World the Slaves Made (New York, 1974), p. 26.
110

78
dos grupos governantes e da ordem vigente. Obviamente, a agitação abolicionista
teve diferentes significados em 1814, 1833 e 1838, e seria preciso fazer uma análise
detalhada para mostrar até que ponto o abolicionismo estabilizou ou desestabilizou a
ordem social e política da Grã-Bretanha em um determinado momento. Mas uns poucos
pontos preliminares podem ser estabelecidos em resposta à visão comum sobre uma
onda de consciência democrática expansiva e unidirecional.
(222) Sem dúvida, muitos trabalhadores britânicos manifestavam empatia pelos
escravos coloniais e entendiam os princípios abolicionistas de maneiras que
perturbavam profundamente Wilberforce, Buxton e Zachary Macaulay. Mas os soldados
rasos abolicionistas não podiam evitar o fato de que as classes governantes tinham se
apropriado da causa e definido os termos do debate. Donos de terra britânicos,
comerciantes e donos de fábricas deixavam claro que havia espécies de exploração que
não seriam mais toleradas na Inglaterra ou no ultramar; que havia formas de trabalho,
mesmo nas colônias distantes, que teriam de ser alinhadas aos padrões metropolitanos.
Essa afirmação sobre os padrões morais ajudou a legitimar o sistema vigente de poder
de classe e o conceito emergente de trabalho livre como uma mercadoria
comercializável impessoal. A lei de emancipação de 1833 assegurou aos bretões das
várias classes que havia limites para que houvesse a concretização das rápidas
mudanças socioeconômicas: os trabalhadores não poderiam ser literalmente reduzidos à
escravidão como propriedade; até mesmo os proprietários das mais questionáveis
formas de propriedade privada não poderiam ser privados do capital sem uma
compensação generosa.
Embora as orientações políticas da emancipação dos escravos fossem
extremamente complexas, a lei de 1833 nutria a ilusão de que um novo Parlamento
reformado tinha se tornado uma assembleia quase democrática que responderia aos
apelos de uma maioria moral. A sucessão de vitórias abolicionistas de compromissos
oficiais, começando com o decreto lei de 1805, que restringia o tráfico de escravos às
colônias conquistadas, impunha confiança no senso de justiça básico do governo. Não é
de se admirar que quando vários grupos políticos britânicos quiseram dramatizar a
própria opressão a que estavam sujeitos ou a falta de liberdade, queixaram-se de que as
suas condições eram pelo menos tão ruins quanto a dos escravos das Índias Ocidentais.
Os defensores da escravidão colonial tinham aberto essa porta, e o argumento implicava
duas proposições: primeiro, que para receber atenção era preciso passar pelo “teste da
escravidão”, que enumerava os horrores equivalentes aos da literatura abolicionista;

79
segundo, já que o Parlamento e o público da classe média estavam sintonizados com
essa linguagem, as mesmas técnicas que foram usadas pelo Parlamento para conceder
liberdade aos escravos das Índias Ocidentais também trariam liberdade e justiça em
casa.
Com efeito, os abolicionistas radicais passaram a se dirigir às classes
governantes nos seguintes termos: nas condições atuais, o trabalho assalariado acarreta
até mesmo uma miséria pior que a da escravidão como propriedade do trabalhador; uma
vez que vocês responderam aos argumentos morais com a abolição do tráfico de
escravos e com (223) a libertação dos escravos coloniais, agora vocês devem aliviar a
penúria dos pobres da Inglaterra. Mas esse reforço dos padrões da classe dominante é
precisamente o que se entende por hegemonia ideológica. As denúncias de
“escravidão assalariada” eram um modo de expressar a ofensa e o ressentimento
acerca das condições de trabalho na Grã-Bretanha industrial e nos Estados
Unidos. Mas, como Christopher Lower indica, não podia haver nenhum padrão
mais baixo que pedir que os trabalhadores livres fossem tratados melhor que os
escravos.111 Todos sabiam que os trabalhadores brancos não eram de fato escravos.
A analogia, qualquer que seja seu poder emocional, provocava uma resposta retórica
que celebrava os benefícios do mercado e do privilégio inestimável de ser livre para
mudar de emprego. Os termos dicotômicos desse debate obrigavam os radicais a provar
que em alguns aspectos fundamentais os assalariados não eram mais livres ou não
estavam em melhores condições que os escravos.
Não pode haver dúvida de que o abolicionismo contribuiu para tipos mais
radicais de crítica social. Especialmente nos Estados Unidos, onde a escravidão foi
abolida por um cataclismo de violência, os líderes trabalhistas radicais e os
socialistas acharam que os paralelos entre a escravidão negra e a branca teve
ressonância pelo século XX adentro. 112 Mas as analogias com a escravidão como
propriedade podem também ter retardado o desenvolvimento de um vocabulário que
podia representar mais sutilmente formas de coerção, de opressão e de domínio de
classe. Ser um trabalhador livre era ser tão diferente de um escravo negro quanto fosse
possível. A maioria dos oponentes da escravidão igualava a dominação injusta com a
concepção legalista do direito de propriedade sobre seres humanos. Essa abordagem

. Lowe, “Ideology, Hegemony and Class Rule”, p. 7.


111

. Barry Herbert Goldberg, “Beyond Free Labor; Labor, Socialism and the Idea of Wage Slavery, 1890-
112

1920”. Ph. D. dissertation, Columbia University, 1979.

80
absolutista frequentemente tornava difícil distinguir as formas de dominação
dissimuladas pelos contratos voluntários do “feixe de poderes” que podia ser exercido
sobre trabalhadores nominalmente livres.
Eu já respondi implicitamente a muitas das críticas feitas à minha tese
hegemônica, mas os poderosos argumentos de Seymour Drescher merecem
comentários adicionais.113 Há uma aparente disjunção entre os ataques de
Drescher à tese da hegemonia (especialmente em “Cart Whip and Billy Roller”) e
suas descobertas substantivas sobre a mobilização política popular. No seu ensaio
neste (224) livro, ele acusa-me e acusa outros “historiadores da ideologia” de
“aceitar a premissa de Williams de que os ideais humanitários por si só não podem
explicar a emergência e o triunfo do abolicionismo...” Mas essa premissa foi aceita
por Reginald Coupland, Roger Anstey e virtualmente por todos historiadores do
movimento abolicionista, inclusive pelo próprio Drescher. Até mesmo os
abolicionistas nunca presumiram que somente os ideais humanitários deviam ser
levados em conta nos seus triunfos.
Em diversas afirmações, Drescher também parece questionar os historiadores
que aceitam sua principal crítica da tese de Williams, mas continuam a procurar
“explicações alternativas de certo modo baseadas no desenvolvimento econômico
fundamental”. Ele cita a conclusão de Peter C. Emmer, segundo a qual, mesmo que o
Econocide de Drescher tenha virado de pernas para o ar a fundamentação fatual da tese
de Williams, ainda “alguma coisa concernente à conexão entre a economia e a abolição
permanece irrefutável nesta tese”. Dado que Drescher nunca revela sua própria
posição sobre essa questão e continua a expor as deficiências dos “historiadores
ideológicos” que buscam encontrar ligações indiretas entre o abolicionismo e a
mudança econômica, muitos leitores podem supor que ele rejeita qualquer conexão
entre ideais humanitários e interesses econômicos ou ideológicos. Além disso,
Drescher afirma que o abolicionismo britânico estava “enxertado em outras
práticas cotidianas do capitalismo comercial”. Ele se refere ao boicote ao açúcar
produzido pelos escravos como “uma arma do consumidor capitalista”. Foi só na
Grã-Bretanha, ele nos diz, que a ideologia abolicionista “se enraizou como um
113
Dirijo-me a alguns dos argumentos de Thomas Haskell em “Reflections on Abolitionism and
Ideological Hegemony”, The American Historical Review, 92/4 (Oct. 1987), parte dos quais replicam este
ensaio.

Trata-se do artigo de Seymour Drescher, intitulado “Paradigms Tossed: Capitalism and the Political
Sources of Abolition”, in SOLOW, Barbara L.; ENGERMAN, Stanley L. British Capitalism and
Caribbean Slavery. The legacy of Eric Williams, p. 191-208.

81
movimento social nacional de ponta da Revolução Industrial”. Drescher parece
positivamente exuberante quando descobre que a campanha de petições de 1787
surgiu em Lancashire e não em Londres, e que foi lançada por “uma parte da elite
de Manchester”, os mesmos interesses manufatureiros que haviam levado à
campanha de petições contra a proposta de união aduaneira com a Irlanda. O que
devemos concluir dessas ligações entre capitalismo e abolicionismo? Não é preciso pôr
em dúvida a sinceridade de Thomas Walker como um abolicionista radical para
suspeitar que abolicionismo e empresa capitalista fazem parte de uma visão de mundo
coerente.
A pesquisa de Drescher sobre as petições e a mobilização popular enriqueceu
grandemente nossa compreensão do abolicionismo britânico. Há muito tempo os
historiadores estão conscientes de que os líderes abolicionistas estavam ansiosos para
anunciar que a causa havia emanado da voz do povo unido. Embora alguns dos mais
conservadores abolicionistas de Londres temessem que a agitação popular ficasse fora
de controle, (225) esforços não foram medidos para circular petições nas reuniões
públicas, nas tavernas, nas oficinas e nas igrejas. Nunca poderemos saber as motivações
da maioria dos assinantes das petições, mas Drescher tem demonstrado a popularidade
da causa com novos detalhes gráficos. Poder-se-ia acrescentar que, em 1833, a
emancipação dos escravos foi igualmente popular na Câmara dos Comuns, onde o
projeto final foi aprovado por uma maioria esmagadora. Mas por que tantos bretões de
classes e de meios sociais diferentes estariam preocupados com a escravidão negra, uma
instituição assentada a milhares de milhas de distância do outro lado do Atlântico?
Drescher nunca enfrenta completamente essa questão. Ele efetivamente nota que
“a multidão abolicionista” “não estava procurando a correção local de um desvio da
ordem moral tradicional, mas demandando a conformidade crescente do ultramar com a
ordem moral emergente na metrópole”. Esse é precisamente o argumento que eu e
outros “historiadores ideológicos” construímos. Mas por que tantos bretões se
interessariam pela conformidade com o ultramar? Por que os capitalistas e artesãos de
Manchester queriam estender suas “atividades políticas e econômicas cotidianas” para
uma campanha que não lhes traria recompensas políticas e econômicas tangíveis?
Quando havia tantas causas humanitárias e tantos direitos humanos em competição, por
que a escravidão colonial estava no centro do palco? A ideologia do trabalho livre – que
erroneamente Drescher vê como alguma coisa inconsistente com a sua própria
abordagem – oferece uma resposta plausível. As petições contra o tráfico de escravos,

82
as medalhas de Wedgwood, as gravuras que retravam os navios negreiros, as inovações
na comunicação pública – tudo simbolizava o espírito “progressista” do sistema de
trabalho e do boom do algodão de Lancashire.
Drescher retrata o abolicionismo britânico como parte de um processo
liberalizante e modernizante mais amplo. Aceito esse ponto de vista com uma
reserva crucial: o processo era também opressivo, explorador e controlador.
Drescher enquadra o debate em termos binários, esse ou aquele. É inconcebível
que um movimento social possa inspirar reformas da classe trabalhadora e
oferecer capital moral para legitimar uma nova aliança das elites. Além disso, as
provas sugerem que o abolicionismo prestou serviços a diferentes funções sociais e
teve diferentes significados para vários grupos e classes. Como Drescher mostra, as
petições abolicionistas de 1823 e 1824 estimularam as petições para a reforma política e
para outras causas domésticas. Mas, Thomas Clarkson, que fez campanha pelo país por
muitos meses para solicitar petições abolicionistas e organizou cerca de 200 sociedades
abolicionistas, (226) enfatizava que o fluxo diário de petições de todas as partes do país
somente apoiariam o governo para que ele resistisse às “ameaças e ao clamor das
pessoas interessadas”. Clarkson também garantia ao Lorde Liverpool que petições eram
“mais respeitáveis que tudo que as precedeu” e mostrava uma unidade completa dos
Whigs e Tories, dos membros da Igreja Anglicana e dos dissidentes, dos apoiadores e
opositores da administração de Liverpool.114 Ninguém podia fazer essas mesmas
afirmações sobre as petições pela reforma doméstica.
A teoria da hegemonia ideológica pressupõe o conflito contínuo entre o sentido
das crenças partilhadas e os compromissos. A questão chave não é se o abolicionismo
“hegemonizou” a classe trabalhadora, como Drescher diz, mas o grau com que o
movimento encorajou outras formas de protesto ou reforçou a autoridade moral das
elites locais e nacionais. Ao viajar pela Inglaterra, Gales e Escócia, Clarkson procurou
altos magistrados, vigários, curas, banqueiros, procuradores, industriais e clérigos
dissidentes para que fundassem sociedades abolicionistas locais. Alguns desses
“homens importantes” se recusaram a organizá-las sob o argumento de que a questão
devia ser inteiramente tratada pelo governo. Outros aproveitaram a oportunidade para

N. do T. Trata-se de Josiah Wedgwood, avô materno de Charles Darwin, que confeccionou uma
medalha durante a campanha de petições de 1787, apresentando um negro acorrentado com a seguinte
inscrição: AM I NOT A MAN AND A BROTHER? Essa medalha tornou-se um dos símbolos mais famosos
do movimento abolicionista britânico.
Thomas Clarkson a John Gibson (?), 7 de março de 1824, Howard University Library; Clarkson a Lord
114

Liverpool, 3 de maio de 1823, British Library Add. MS 38,416, fols. 391-392.

83
liderar uma assembleia local. Alguns grupos preferiram a emancipação imediata e um
boicote a todos os produtos do trabalho escravo. Contudo, um comitê abolicionista de
Carlisle expressou o temor de que o boicote ao consumo seria muito prejudicial aos
escravos, que passariam fome ou “fugiriam para as matas e levariam uma vida
selvagem”.115 Isso requer um estudo detalhado das inúmeras cidades e distritos para
fazer um levantamento dos significados locais do abolicionismo e para determinar até
que ponto o movimento desestabilizou as estruturas de poder locais.
A mais valiosa contribuição de Drescher é a sua elucidação da cultura política
distinta que possibilitou que o povo exercesse pressão sobre o governo britânico. Sua
discussão a respeito dos países continentais sugere que “uma vida política altamente
articulada” foi a precondição necessária para um movimento abolicionista bem-
sucedido. No entanto, nota-se que os Estados Unidos não só tinham feito esse teste, mas
também tinham ultrapassado a Grã-Bretanha na concepção de instituições para a
expressão da soberania popular. Os abolicionistas norte-americanos (227) tentaram
seguir o exemplo britânico de mobilização política popular, mas os resultados foram
extremamente desapontadores. Drescher não parece avaliar o quanto os abolicionistas
norte-americanos eram fracos e estavam isolados, pelos menos até a ascensão do Partido
Republicano. Até mesmo nos fins da década de 1850, não houve uma onda de opinião
que demandava a emancipação dos escravos.
Seguramente, o povo britânico não era moralmente superior ao norte-americano;
deve ter havido tanto humanitarismo per capita nos Estados Unidos quanto na Grã-
Bretanha, e o cristianismo evangélico conquistou uma grande porção da população
norte-americana. Mas, nos Estados Unidos, diferentemente da Inglaterra, a emancipação
escrava ameaçava os interesses vitais dos centros metropolitanos. Na Grã-Bretanha,
onde ele nota que o abolicionismo “careceu do ingrediente da potencial agitação
metropolitana”, as elites governantes toleraram e até mesmo encorajaram reformas que
redimissem o caráter nacional e aumentassem a autoridade delas mesmas. Em contraste,
Drescher acha que o abolicionismo francês se “distinguiu pela sua inabilidade para
combinar uma liderança da elite estável com o apelo de massa”. 116 Isso é o que entendo
por hegemonia.

. Thomas Clarkson, MS Diary, 1823-1824, National Library of Wales.


115

. Drescher, Capitalism and Antislavery, p. 53.


116

84
A ideia de escravidão

M. I. Finley

No ano 61 AC, o prefeito da cidade de Roma, Pedanius Secundus, foi


assassinado por um escravo na sua casa. De acordo com a lei, não só o culpado, mas
também todos os outros escravos domésticos tinham de ser executados; nesse caso,
eram quatrocentos escravos no total. Houve um protesto popular, e o Senado debateu a
questão. Alguns senadores pediram clemência, mas o argumento vitorioso foi o
apresentado por um distinto jurista, Gaius Cassius Longinus: qualquer mudança das leis
e dos costumes ancestrais sempre piora as coisas. Quando um tumulto popular tentou
impedir a aplicação da sentença, o imperador interveio pessoalmente a favor da lei,
embora rejeitasse qualquer proposta de que os ex-escravos de Pedanius deveriam ser
punidos ou banidos. Isso, ele disse, seria uma crueldade desnecessária.
O imperador era Nero, e foi sugerido que um dos malsucedidos defensores da
misericórdia podia ser seu conselheiro pessoal, o filósofo estoico Sêneca, em cujos
escritos havia algumas passagens convincentes que defendiam que os escravos fossem
tratados como seres humanos. De qualquer maneira, muitas vezes Sêneca sugere que a
própria instituição era tão imoral que devia ser abolida. Para pôr em prática essa ideia
radical, o mundo ocidental ainda teria de esperar mais de 1500 anos, quando filósofos,
moralistas, teólogos e juristas – salvo por uma voz isolada aqui e acolá que ninguém
ouvia – descobriram e propagaram uma variedade de fórmulas que os satisfaziam e à
sociedade em geral, de acordo com as quais os homens podiam ser ao mesmo tempo
uma coisa e um homem. Essa ambiguidade ou “dualismo” é o “problema da escravidão”
ao qual o Professor Davis dedicou um livro volumoso, imensamente erudito, de leitura
agradável, emocionante, perturbador e algumas vezes frustrante, um dos mais
importantes que foi publicado sobre o assunto da escravidão nos tempos modernos.

A gênese do livro foi modesta. O Professor Davis se propusera a fazer um


estudo comparativo dos movimentos abolicionistas na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos. Gradualmente, ele começou a se dar conta de que “o problema da escravidão


Publicado originalmente em FINLEY, M. I. The Idea of Slavery. In New Yorker Review of Books,
January 26 1967, v. 8 n. 1. Trata-se de resenha ao livro de David Brion Davis, The Problem of Slavery in
Western Culture.

85
ultrapassava as fronteiras nacionais” de forma que ele “não havia suspeitado”. A
escravidão foi trazida para o Novo Mundo numa época em que havia desaparecido na
maior parte da Europa; ainda assim não houve hesitação ou incerteza alguma, na medida
em que os legados da Bíblia, da filosofia clássica e do Direito Romano forneceram um
conjunto de regulamentações e uma ideologia que estavam prontos para serem
utilizados. As diferenças dentro do Novo Mundo entre os anglo-saxões no norte e os
latinos no sul e entre as colônias protestantes e católicas, pareceram, num exame mais
minucioso, ser tangenciais e muito menos significativas que “seus padrões subjacentes
de unidade”. Nesse tópico particular o Professor Davis avançou com o poderoso apoio
da tendência da pesquisa recente que se opõe à imagem romântica idealizada da
escravidão latino-americana, e em particular da imagem das relações raciais no
hemisfério sul, que prevaleceram durante muito tempo. Essa visão talvez tenha sido
muito claramente conhecida graças às obras do brasileiro Gilberto Freyre e no seminal
pequeno livro de Frank Tannenbaum, Slave and Citizen. Em resumo, o Professor Davis
chega à conclusão de que “houve muito mais continuidade institucional entre a
escravidão antiga e a moderna do que geralmente se supõe” e de que “a escravidão
sempre levantou certos problemas fundamentais cuja origem está no simples fato de o
escravo ser um homem”.
A partir dessa conclusão segue-se uma questão fundamental. Se a “validade
legal e moral da escravidão foi uma questão problemática no pensamento europeu da
época de Aristóteles até a de Locke”, por que somente na década de 1770 houve “um
movimento de forças que levou a mobilizações organizadas para abolir [...] todo o
quadro institucional que permitia que seres humanos fossem tratados como coisa”? Esse
desenvolvimento, como ele corretamente diz, “foi uma novidade no mundo.” A
escravidão declinou marcadamente nos fins do Império Romano, não como resultado de
uma mobilização abolicionista, mas sim em consequência de mudanças econômicas e
sociais complexas, que substituíram a escravidão como propriedade humana por um tipo
diferente de cativo, o colonus, o adscriptus glebi, o servo. A escravidão moderna, em
contraste, não foi transformada lentamente. Ela foi abolida pela força e pela violência.
As tentativas de representar “o abolicionismo e os esforços para cristianizar e melhorar
a condição dos escravos como partes constitutivas de uma única corrente crescente de
humanitarismo” falsifica o registro histórico. “Todos esses sonhos e essas esperanças
encalham em um simples e sólido fato, obscurecido pela filosofia e pela lei durante

86
séculos: o fato de que o escravo não era uma peça de propriedade, nem tampouco um
instrumento meio-humano, mas sim um homem dominado pela força”.

O livro que o Professor Davis começou a escrever foi então convertido em um


projeto amplo; esse primeiro volume, embora seja autônomo, faz a história da
antiguidade até o início da década de 1770. O campo, é preciso destacar, é
essencialmente o da história das ideias. “Um problema da percepção moral”, é como ele
próprio a descreve.

Este livro […] não tem a pretensão de ser uma história da escravidão como tal, ou mesmo das opiniões
relativas à escravidão […]. Tenho me preocupado com os diferentes modos de reação dos homens à
escravidão, a partir da hipótese de que isso nos ajudará a distinguir o que foi peculiar da reação dos
abolicionistas. Também tenho me preocupado em quais tradições de pensamento e de valores se basearam
tanto os oponentes quanto os defensores da escravidão. Espero demonstrar que a escravidão sempre foi
uma fonte de tensão social e psicológica, mas que na cultura ocidental ela esteve associada com certas
doutrinas religiosas e filosóficas que deram a ela a mais elevada aprovação.

Como um ensaio de história das ideias – mais precisamente de história da


ideologia, uma expressão que o Professor Davis curiosamente não emprega por temor –
o livro é brilhante, repleto de detalhes sem nunca perder o fio da meada, sutil,
sofisticado e penetrante. Até mesmo a primeira parte, que é relativamente breve e pouco
original, sobre o pensamento antigo e medieval tem alguns excelentes insights. Então, o
Professor Davis entra no seu campo com a descoberta da América. Seguramente,
ninguém leu tanto ou tão profundamente sobre o assunto: as notas de rodapé fornecem a
mais completa bibliografia que temos a respeito dele; de fato, ela é muito completa e
seria desejável que o autor fosse mais criterioso na seleção dos títulos. Numa resenha é
impossível fazer um levantamento do campo coberto ou da multiplicidade de novas
ideias e sugestões. Mas uns pouquíssimos exemplos indicarão o quanto é complicado o
contraponto elaborado durante todo tempo em torno do conceito de “dualismo”. Logo
surge o leitmotiv. A questão levantada é por que, no fim do Império Romano e no início
da Idade Média, quando “a escravidão quase desapareceu na maior parte da Europa”,
não vemos “a Igreja rejeitar seus compromissos com o mundo romano e usar o seu
grande poder moral para apressar uma mudança aparentemente benéfica”. Conforme a
resposta do Professor Davis:

87
A explicação mais plausível parece estar na rede complexa de associações mentais, derivada da
antiguidade, que conecta a escravidão com as ideias de pecado, de subordinação e da existência de uma
ordem divina do mundo. Questionar a base ética da escravidão, até mesmo quando esta instituição estava
desaparecendo da vista, seria questionar concepções fundamentais dos propósitos de Deus e da história e
do destino do homem. Se ela era um mal e não desempenhava nenhuma função divinamente determinada,
por que Deus a autorizara nas Escrituras e permitira a sua existência em quase todas as nações? Se a
escravidão violava a lei natural da igualdade e a lei divina da fraternidade humana, a mesma coisa não
podia ser dita a respeito da família, da propriedade privada, da ordem social e do governo?

As seitas heréticas eram uma ameaça o tempo todo, pois elas se aproveitavam
dessas ideias implícitas no cristianismo, “que eram potencialmente explosivas quando
rasgavam os seus invólucros e as ascendiam na atmosfera carregada da rivalidade e do
descontentamento das classes”. Elas tinham de ser contidas, e foram contidas. Só nos
meados do século XVIII uma seita inglesa finalmente tomou uma posição oficial firme
contra a escravidão, enquanto a Igreja da Inglaterra permanecia indiferente. Os quacres
chegaram a esse ponto depois de um longo conflito interno sobre a questão, mas desde
então a Sociedade foi transformada de tal modo que as questões morais adquiriram
novas implicações práticas.
Num período de introspecção, de desejo de autopurificação e de preocupação
sobre a imagem deles aos olhos dos outros, a decisão dos quacres de se privarem dos
negócios com escravos foi um meio que encontraram para reafirmar o conteúdo
perfeccionista da fé. Foi uma maneira de prescrever uma forma de atividade econômica
egoísta sem repudiar a busca da riqueza; […] uma maneira de afirmar a vontade moral
individual e a missão histórica da Igreja sem desafiar a estrutura básica da ordem social.

Uma síntese tão simples pode levar à acusação de mero cinismo, mas nada seria
mais injusto. Atrás das sínteses estão explicações meticulosas de intensas lutas
intelectuais e morais que continuaram na busca de uma posição moral. A ideologia é
necessariamente ambivalente em todas as sociedades que se caracterizam pelos conflitos
nacionais ou de classes e pelas divergências de interesses. Nenhuma explicação é
adequada se não consegue revelar ao mesmo tempo como a ideologia serve tanto para
criticar quanto para preservar a ordem social, e o descuido ou a observação de vistas
curtas automaticamente rejeita como cínica qualquer análise que atribua o peso devido à
segunda função. No que diz respeito à escravidão como assunto, o paradoxo supremo é
o de que o ataque racionalista à teologia cristã no século XVIII não aproximou o

88
escravo da liberdade. Locke já havia mostrado como a defesa da escravidão podia se
reconciliar com os direitos naturais. Agora, “na medida em que a Ilustração divorciou a
antropologia e a anatomia comparativa das concepções teológicas, abriu o caminho para
as teorias sobre a inferioridade racial”.
Contudo, no ponto em que esse livro termina, o abolicionismo havia se tornado
um programa e, no fim das contas, se tornaria uma questão política fundamental bem-
sucedida. A escravidão foi finalmente abolida no Ocidente. Por quê? É sobre essa
questão decisiva que considero a explicação do Professor Davis frustrante. “Durante
cerca de dois mil anos os homens tiveram o pecado na conta de um tipo de escravidão.
Um dia eles passaram a ter a escravidão na conta de pecado”. Quem são esses “eles”?
“No início da década de 1770, um grande número de moralistas, poetas, intelectuais e
reformadores passaram a considerar a escravidão americana como um mal não
mitigável”. É um pouco injusto lembrar o Professor Davis da observação de Jim Farley
feita por volta dos fins da primeira campanha presidencial de Adlai Stevenson. Em uma
festa, alguém estava muito contente com o fato de que quase todos os intelectuais
apoiavam Stevenson. “Todos os sessenta mil”, replicou Farley. Moralistas, poetas,
intelectuais e reformadores nunca destruíram a escravidão. A Guerra Civil fez isso, e o
próprio Professor Davis lançou, em consequência, um golpe esmagador contra o
“conflito desnecessário” das escolas dos historiadores. Evidentemente eu não quero
negar o papel essencial das diversas gerações de abolicionistas. Mas nada podia
acontecer ou de fato aconteceria até que o fervor intelectual deles fosse traduzido para a
ação política e militar, e como isso ocorreu não pode ser respondido pela história das
ideias. Talvez nada seja mais difícil do que explicar como e por que, ou porque não,
uma nova percepção moral se efetivou na ação. Além do mais, nada é mais urgente se
um exercício de história acadêmica está para se tornar uma investigação significativa do
comportamento humano relevante no mundo em que vivemos.
Seria uma flagrante injustiça considerar esse livro como um exercício de história
acadêmica ou sugerir que o Professor Davis não tem consciência da questão central. Em
todo o livro há comentários penetrantes que são absolutamente pertinentes. Numa nota
breve sobre as explicações econômicas praticamente mecânicas do Capitalismo e
escravidão de Eric Williams, Davis se une à oposição a ele, mas então acrescenta que
não é possível “evitar o simples fato de que nenhum país pensava em abolir o tráfico de
escravos até que o seu valor econômico tivesse declinado consideravelmente”. Ele
conhece e usa as discussões mais recentes (a partir do Economia Política da Escravidão

89
de Eugene Genovese, publicado em 1965) sobre a lucratividade da escravidão e os seus
efeitos sobre o crescimento econômico. Ele concorda que é “teoricamente possível” que
as divergências relativas à libertação dos escravos, tal como existiram entre o Norte e o
Sul dos Estados Unidos, “tinham menos a ver com o caráter da escravidão nas duas
regiões do que com as estruturas sociais e econômicas que definiam as relações entre os
libertos de cor e a sociedade branca dominante”. Ele menciona as guerras do século
XVIII e as mudanças na balança de poder, que “levaram a uma consciência crescente da
instabilidade e da ineficiência do antigo sistema colonial”. E pode ser que aquilo que
estou procurando terá o seu lugar apropriado nos próximos livros.

Apesar disso resta o fato de que os comentários acima referidos são realmente
colocados de lado, frequentemente relegados a notas de rodapé, e não creio que a
justificativa de que um homem tem o direito de escolher o seu próprio assunto, nesse
caso a história das ideias, baste para fins de defesa. A escravidão não é um sistema
autônomo em uma estrutura social; ela é uma instituição embutida em uma estrutura
social. Ela não é mais a mesma instituição quando há uma alteração significativa da
estrutura social, e as ideias sobre escravidão também têm de ser examinadas
estruturalmente. Ao permanecer apenas no reino das abstrações, o Professor Davis dá
muita ênfase à “continuidade institucional” entre a escravidão antiga e a moderna. Em
consequência, ele se desnorteia a respeito de diversos aspectos importantes. Sua
explicação sobre a escravidão entre os hebreus e de outras sociedades do Oriente Médio
sofre precisamente da fraqueza que ele efetivamente havia exposto no caso da
escravidão latino-americana. Ele permitiu que suas fontes o enganassem, levando-o a
considerar esperanças piedosas como valor de face, às quais ele chega a compreender
facilmente quando elas aparecem em Sêneca ou nos escritores modernos. E ele
subestima o ambiente social ao não conseguir perceber suficientemente que na maior
parte da história humana trabalhar para os outros tem sido uma atividade involuntária
(muito além das compulsões exercidas pela família ou pelo salário, que são de uma
ordem diferente do tipo de força que é a sanção final contra os escravos, os servos, os
peões, a escravidão por dívida, o trabalho forçado ou os párias): a escravidão nesse
contexto deve ter diferentes conotações da escravidão no contexto do trabalho livre.
Repetindo um exemplo que já dei, o modo pelo qual a escravidão declinou no Império
Romano ilustra isso. Nem os valores morais, tampouco os interesses econômicos e a
ordem social foram ameaçados pela transformação dos escravos e dos camponeses

90
livres em servos cativos. Eles estavam – ou pelo menos muitos elementos poderosos da
sociedade pensavam que estavam – propondo converter os escravos em homens livres.
O que distingue o escravo das outras formas de trabalho involuntário é, no
sentido mais estrito, sua condição de estrangeiro. Ele é introduzido na nova sociedade
violenta e traumaticamente; seus laços humanos tradicionais de parentesco e de nação e
até mesmo da sua própria religião são cortados; ele é impedido, na medida do possível,
de criar novos laços, exceto com seus senhores e, em consequência, seus descendentes
serão tão estrangeiros e desenraizados quanto ele. A prova definitiva do seu não status é
a liberdade de acesso sexual aos escravos, que é uma condição fundamental da
escravidão (com o complexo de exceções das regras no que diz respeito ao acesso às
mulheres livres pelos homens escravizados). O Professor Davis deixa as coisas de
pernas para o ar ao escrever que as “escravas sempre foram as vítimas da exploração
sexual, o que talvez represente o mais claro reconhecimento da humanidade delas”. A
exploração sexual é a negação, e não o reconhecimento, da humanidade de uma mulher,
seja ela escrava ou livre.
Enunciei a fórmula do escravo-estrangeiro esquematicamente e, portanto, muito
rigidamente. As diferenças estruturais emergem claramente quando se considera o
quanto as sociedades se diferenciaram no que diz respeito ao escravo libertado. Em um
extremo encontra-se Roma, que não só permitia direitos praticamente ilimitados aos
senhores para que libertassem seus escravos, mas que também alistava automaticamente
os libertos como cidadãos se os donos fossem cidadãos. No outro extremo estava o Sul
dos Estados Unidos. O Professor Davis apresenta evidências de que, por volta de 1860,
até mesmo no Sul havia mais negros livres do que se admitia frequentemente. Todavia,
o processo de emancipação foi limitado por normas severas. E o destino do escravo
libertado nos Estados Unidos dispensa amplas explicações claras. O que efetivamente
precisa de um olhar cuidadoso é a questão da cor, que é demasiadamente central para
escapar do sentimentalismo e sobre o qual o Professor Davis tem um capítulo
importante (como de costume, no reino das ideias). Para o Dr. Williams, “a escravidão
não nasceu do racismo; ao contrário, o racismo foi consequência da escravidão”.
Desejaríamos profundamente acreditar nisso. Contudo, a fórmula do escravo-estrangeiro
indica outro caminho, como o fato de que já na década de 1660 as colônias do sul
decretaram que daí em diante todos os negros que fossem importados deveriam ser
escravos, mas os brancos seriam servos contratados, e não escravos. A conexão entre
escravidão e racismo tem sido dialética, na qual cada elemento reforça o outro.

91
O racismo já viveu mais de um século do que a escravidão. Por que, temos o
direito de perguntar, a “viragem revolucionária nas atitudes em relação ao pecado, à
natureza humana e ao progresso”, que podemos admitir como condição necessária para
o abolicionismo, não abrangeu o racismo? A escravidão é um pecado maior do que
negação dos direitos civis, campos de concentração, Hiroshima, napalm, tortura na
Argélia, ou apartheid na África do Sul e na Rodésia? Por que a nova percepção moral
foi bem-sucedida no extermínio de um pecado e não dos outros? Essa é uma questão
que torna esse livro profundamente inquietante. Há um pouco de consolo para quem
confia no lento processo de aperfeiçoamento de um crescente humanitarismo do
“desenvolvimento progressivo do senso moral do homem”, que Thomas Jefferson
encontrou na história. Na frase lapidar do Professor Davis, “a fé no progresso encobriu
o senso de urgência [de Jefferson]” no que toca à escravidão.

92
O debate sobre o abolicionismo: capitalismo e abolicionismo como um
problema na interpretação histórica

Seymour Drescher

(311) A interpretação predominante sobre a emancipação britânica de escravos


nos anos 1830 sustentou por mais de um século que a escravidão fora eliminada por
uma onda de sentimento humanitário que pôs de lado considerações econômicas. Em
1944, o Capitalismo e Escravidão de Eric Williams colocou em causa todo esse quadro
de referência ao ligar a ascensão e a queda da escravidão com duas fases sucessivas do
capitalismo, a mercantil e a industrial. Para Williams, o momento decisivo foi o
aparecimento dramático, em 1776, do Investigação sobre a natureza e as causas da
riqueza das nações de Adam Smith.117 Mesmo que as pesquisas subsequentes tenham
enfraquecido muitas das asserções específicas do Capitalismo e Escravidão, a
insistência de Williams sobre a coincidência entre o abolicionismo e a revolução
industrial continuou a atrair a curiosidade dos pesquisadores. A intenção de envolver a
revolução industrial com o desenvolvimento do abolicionismo e com o século das
emancipações dos escravos no Novo Mundo (1777-1888) dentro do âmbito do
desenvolvimento econômico desafia a imaginação histórica.
Contudo, no espaço de tempo de uma geração, as pesquisas sobre as economias
atlânticas durante o século da emancipação também deixaram muito claro que a
escravidão foi competitiva e compatível com as suas contrapartes em todo o mundo,
mesmo quando ela estava sendo dificultada e destruída em uma jurisdição política
depois da outra. Cada vez mais o processo parece ter sido uma série de “econocídios”,
ou seja, de desmantelamentos de sistemas de produção economicamente viáveis,


Publicado originalmente em DRESCHER, Seymour. The antislavery debate: capitalism and
abolitionism as a problem in historical interpretation. Edited by Thomas Bender. Berkeley: University
of California Press, 1992. Review Essays. In History and Theory, v. 32, n. 3 (Oct., 1993), p. 311-329. [
. Eric Williams, Capitalism and Slavery (Chapel Hill, 1944). Sobre a tese de Williams e suas
117

consequências ver, entre outros, S. Drescher, “Eric Williams: British Capitalism and British Slavery”,
History and Theory, v. 26 (1987), p. 180-196; British Capitalism and Caribbean Slavery: The Legacy of
Eric Williams, ed. Barbara L. Solow; Stanley L. Engerman (New York, 1987); Thomas C. Holt,
“Explaining Abolition” (review essay), Journal of Social History, v. 24 (1990), p. 371-378; e Michael
Craton, “The Transition from Slavery to Free Wage Labour in the Caribbean, 1790-1890: A Survey with
Particular Reference to Recent Scholarship”, Slavery and Abolition, v. 13 (1992), p. 37-67.

93
frequentemente próximos dos seus picos de importância para os Estados imperiais ou
para o mercado mundial.118
(312) Se não houve uma ligação necessária entre o declínio econômico do
sistema de trabalho baseado na propriedade humana e a sua abolição legal, de que outra
forma essa relação poderia ser compreendida? Nas últimas duas décadas, alguns
historiadores se propuseram a tirar de foco o desempenho produtivo e o valor dos
sistemas escravistas para enfocar as transformações econômicas e ideológicas ocorridas
no interior das metrópoles que empregavam o “trabalho livre”. Alguns afirmaram que as
explicações a respeito da superioridade geral do trabalho livre sobre o trabalho escravo
da periferia colonial derivaram do dinamismo do crescimento econômico no centro
metropolitano. Outros argumentaram que a transformação capitalista industrial,
especialmente na Inglaterra, exigiu uma mudança decisiva na disciplina do trabalho
livre, que enfrentava uma extrema resistência dos trabalhadores que ainda estavam
enraizados na velha economia moral. Nesse contexto, o abolicionismo teria servido para
validar a liderança da classe dominante e as novas relações de dominação entre o capital
e o trabalho durante o nascimento da nova ordem industrial. 119 Essa hipótese complexa é
o ponto de partida do The Antislavery debate.

The Antislavery debate é, ao mesmo tempo, mais e menos do que o título sugere.
Mais no sentido de que a variedade de analogias históricas e de argumentos teóricos
usados para estabelecer as conexões causais entre uma das abstrações mais
extremamente vagas da herança intelectual do Ocidente (o capitalismo) e um dos

. Ver, entre outros, Seymour Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolition (Pittsburgh,
118

1977); David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade (New York,
1987); Robert William Fogel; Stanley L. Engerman, Time on the Cross, 2 vols. [1974] (Boston, 1989);
Robert W. Fogel, et al., Without Consent or Contract: The Rise and Fall of American Negro Slavery, 4
vols. (New York, 1989-1992); Selwyn H. H. Carrington; Seymour Drescher, “Debate: Econocide and
West Indian Decline, 1783-1806”, Boletin de Estudios Latinoamericanos y del Caribe, v. 36 (June, 1984),
13-67; S. Drescher, “The Decline Thesis of British Slavery since Econocide”, Slavery and Abolition, v. 7
(1986), p. 3-24; John R. Ward, British West Indian Slavery, 1750-1834: The Process of Amelioration
(Oxford, 1988); S. Drescher, “Brazilian Abolition in Comparative Perspective”, in Hispanic American
Historical Review, v. 68 (1988), p. 429-460; Linda Colley, Britons: Forging the Nation 1707-1837 (New
Haven, 1992), p. 350-363.
. Howard Temperley, “Capitalism, Slavery and Ideology”, Past and Present n. 75 (1977), p. 44-118;
119

Stanley Engerman; David Eltis, “Economic Aspects of the Abolition Debate”, in Antislavery, Religion
and Reform: Essays in Memory of Roger Anstey, ed. C. Bolt; S. Drescher (Hamden, Conn. 1980), 272-
293; S. Drescher, Capitalism and Antislavery: British Mobilization in Comparative Perspective (London,
1986).

94
processos políticos mais claramente circunscritos na história legal ocidental (o fim dos
direitos de propriedade sobre pessoas) é muito mais conceitualizada do que em qualquer
trabalho anterior sobre o assunto. É impossível fazer justiça plena às extensas cadeias de
argumentação que foram mobilizadas pelos protagonistas para produzir o combate
verbal entre a crítica e o rebate à crítica. Com liberdade, os três interlocutores invocam
analogias prolixas que vão de Maria Antonieta, Hank Aaron, Big Jim Farley,
estrangeiros famintos em Bombaim e vítimas do terremoto no México até supostos
vegetarianos bem-sucedidos em alguma época do próximo século. Há também
evocações mais breves do sentimento contra os sindicados de trabalhadores no mundo
anglo-americano, da Guerra do Vietnã, do Holocausto, do perigo da Guerra nas Estrelas
e da aniquilação nuclear. Embora a argumentação histórica hipotética e contrafatual já
tenha se tornado uma moeda de troca largamente aceita nas discussões sobre a
escravidão e a abolição, este livro estabelece um novo padrão pela proporção da
presença de argumentos analógicos e sincrônicos na análise histórica empírica e
comparativa.
Além disso, os participantes também apelam para um elenco de pensadores
raramente invocado pelos historiadores do abolicionismo moderno. Em adição à reunião
dos usuais suspeitos – Aristóteles, Smith, Hegel, Marx, e Mill – há um impressionante
desfile de alusões aos mortos ilustres – (313) Freud, Nietzsche, Halévy, Weber,
Gramsci, Elias, Polanyi – e uma enxurrada de trabalhos acadêmicos atuais, inexplorada
anteriormente pela historiografia da escravidão moderna. De fato, antigos intrusos
recebem muito mais atenção nesse livro do que em toda a pesquisa acadêmica histórica
da escravidão e do abolicionismo.
The Antislavery debate é também um pouco menos do que o título sugere. Ele
poderia ter sido intitulado com mais precisão A tese de Davis ou (dada a aguçada e
cáustica controvérsia interna sobre a verdadeira natureza do argumento de Davis) A
“tese” de Davis. De qualquer forma, esse livro não é o debate de três pesquisadores
independentes sobre um problema histórico. John Ashworth e Thomas Haskell se
descrevem modestamente, mas de modo exato, como “passageiros clandestinos” na
magistral explicação do “problema da escravidão” de David Brion Davis. Eles
apresentam um comentário vívido sobre como Davis descreve a ação, identifica os
atores relevantes, seleciona e analisa os textos. Inflexivelmente, Haskell e Ashworth se
reservam apenas ao direito de trazer à luz as dificuldades e ambiguidades da explicação
original – ou de comentá-las. Além do mais, se concentram em uma parte de um volume

95
(The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823) dos três livros
penetrantes de Davis sobre a questão.120
The Antislavery debate é também excepcional quanto ao seu formato. Ele
consiste de quatro seções escritas em tempos diferentes ao longo de 17 anos. A Parte 1
reedita três segmentos do Era da revolução (1975) de Davis. A Parte 2 reedita quatro
ensaios que apareceram originalmente na American Historical Review e inclui um longo
ensaio de duas partes de Thomas Haskell (1985), uma réplica de Davis e uma
intervenção de John Ashworth, mais uma réplica de Haskell (1987) a Davis e a
Ashworth. A Parte 3 fecha o livro com duas réplicas (1992) de Ashworth e de Davis à
réplica de 1987 de Haskell.
Duas partes importantes pelo seu material significativo são assim reduzidas ou
marginalizadas. Provavelmente, na tentativa de torná-lo possivelmente completo e
independente, o editor incluiu somente um dos três capítulos que Davis considera
centrais do seu Era da revolução. Por isso, um dos dois capítulos, o que trata da
abolição inglesa (que inclui dois terços da análise sobre o assunto) é simplesmente
omitido.121 Por outro lado, o editor incluiu o capítulo sobre os quacres do Era da
revolução, essencial para o debate seguinte. De todo modo, a introdução não oferece ao
leitor nenhuma advertência sobre o que foi posto à parte, nem qualquer sumário das
outras análises da pesquisa do Era da revolução, de Davis. Por conseguinte, os leitores
podem ficar perplexos sobre por que a primeira réplica de Davis a Haskell (capítulo 6
nesse livro) devota realmente tanta atenção a desafios “fora da cena”, como ele devota
aos de Haskell.122
(314) Esse debate triangular, que se estendeu dos meados de 1980 ao início da
década de 1990, também apresenta dificuldades internas. Como Davis se concentra mais

. David Brion Davis, The Problem of Slavery in Western Culture (Ithaca, N.Y., 1966); The Problem of
120

Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823 (Ithaca, N.Y., 1975) (doravante, Era da revolução); Slavery
and Human Progress (New York, 1984); “Capitalism, Abolitionism, and Hegemony”, in Solow;
Engerman, British Capitalism, p. 209-227.
. O capítulo omitido é “The Preservation of English Liberty, II”, 386-468. Ver também p. 478, 493-500.
121

122
. Davis, “Reflections on Abolitionism and Ideology Hegemony” in The Antislavery Debate, p. 161-179
(cap. 6), especialmente, p. 165-174 (originalmente publicado na American Historical Review, v. 92
[outubro, 1987], p. 797-878, como parte do “Forum on abolitionism, capitalism, and ideological
hegemony”, promovido pela AHR). Infelizmente, todos os ensaios da AHR foram reeditados sem
alteração, de modo que as referências de cada participante às obras dos outros nas 250 páginas finais
deste volume não serão úteis aos leitores do The Antislavery debate. O editor também poderia ter incluído
o número original das páginas, ou ter alertado os leitores de que elas exigirão a versão original da Era da
revolução de Davis e os volumes de 1985 e 1987 da American Historical Review para terem acesso fácil
em The Antislavery debate (doravante ASD). Tentarei, sempre que for possível, usar o número das
páginas do ASD.

96
nos comentários de Haskell que nos de Ashworth, os leitores não se sentem seguros se,
quando cai a cortina, Davis silentemente aceitou, ou não pôde realmente ver, o ensaio
final de Ashworth, dirigido tanto a Davis quanto a Haskell.

II

Embora os três autores estejam longe de concordar sobre quais foram as ligações
precisas entre capitalismo e escravidão, todos eles têm um ponto de partida comum que
deriva do primeiro estudo de Davis, O problema da escravidão na cultura ocidental
(1966): nos meados do século XVIII houve uma profunda e dramática revolução moral
no Ocidente contra a sua antecedente tolerância para com a escravidão e o surgimento
de um novo insight sobre o problema da escravidão (p. 3, 12, 188, 202-203, 298-299).123
A sequência de Davis (no Era da revolução) procura explicar como as mudanças
econômicas, sociais e políticas, especialmente no mundo anglo-americano, encorajaram
o desenvolvimento histórico de uma nova atitude moral dentro de um novo movimento
coletivo, o abolicionismo, e dar conta das suas vitórias políticas iniciais durante o “Era
da Revolução” (1770-1823).
A poderosa combinação de duas tradições interpretativas, a marxista e a
freudiana, tem sido reconhecida há muito tempo como a mais importante contribuição
do Era da Revolução para a história do abolicionismo tanto pelos seus críticos quanto
pelos seus apoiadores. Nos seus capítulos fundamentais sobre o mundo anglo-
americano, Davis corajosamente segue um curso difícil entre a Scylla da história
exclusivamente intelectual (o que provocou uma censura branda de Moses Finley numa
resenha sobre o seu primeiro livro) e a Charybdis do determinismo econômico.124
123
. Ver especialmente Davis, Problem of Slavery in Western Culture, “Epilogue”, p. 483-493.

N. do T. Ver o artigo de Moses I. Finley, “A ideia de escravidão”, aqui nesta coletânea.
. Age of Revolution, p. 564; sobre o impacto de Finley, ver ASD, p. 299-300. Para uma avalição da
124

ideia-chave da tese da abolição capitalista de Davis, ver Eric Foner, “Abolitionism and the Labor
Movement in Antebellum America”, in Anti-Slavery, Religion and Reform, p. 254-272, especialmente, p.
267-269; Stanley L. Engerman; David Eltis, “Economic Aspects of the Abolition debate”, Ibid., p. 281-
282; H. Temperley, “Anti-Slavery as a Form of Cultural Imperialism”, Ibid., p. 339, 342; Seymour
Drescher, “Cart Whip and Billy Roller: Antislavery and Reform Symbolism in Industrializing Britain”,
Journal of Social History, v. 15 (September, 1981), p. 3-24; Betty Fladeland, Abolitionist and Working-
Class Problems in the Age of Industrialization (London, 1984), p. 339-342; Robin Blackburn, The
Overthrow of Colonial Slavery, 1776-1848 (London, 1988), p. 26-27, 152; e Holt, “Explaining
Abolition”. Holt estava preocupado com o Slavery and Human Progress, de Davis, razão pela qual ele viu
como o seu autor se afastou do uso da explicação capitalista-hegemônica do Age of Revolution. Ver Holt,
“Of Human Progress and Intellectual Apostasy”, Reviews in American History, v. 15 (March, 1987), p.
50-58. Holt aprova a aplicação da tese de Davis a uma maior extensão da “era da revolução”, que se
estenderia de 1780 a 1850. Ver Holt, The Problem of Freedom: Race, Labor, and Politics in Jamaica and

97
Resumidamente, Davis observa (315) que nos fins do século XVIII houve uma virada
capitalista dramática do abolicionismo, bastante visível na “internacional quacre”.
Dentro de um amplo movimento social, a vanguarda mercantil e industrial anglo-
americana atuou como pioneira no desenvolvimento do abolicionismo. Ela também
forjou quase ao mesmo tempo, embora inconscientemente, uma defesa ideológica da
ordem capitalista emergente. Nas cidades comerciais dos recém-independentes Estados
Unidos, as elites quacres ajudaram a conduzir o ataque contra a escravidão e a inventar
novos métodos de disciplina do trabalho e de controle social urbano. Na Grã-Bretanha,
os quacres, que eram mais proeminentes na vanguarda capitalista do que como
membros da elite política dirigente, alinharam seus esforços abolicionistas e
humanitários com os de outras forças políticas e religiosas de maior prestígio. Depois de
duas décadas de esforços árduos, essa aliança deu frutos na abolição do tráfico de
escravos britânico (1806-1807) (cap. 2).125
Davis também argumenta que a força do abolicionismo no início da
industrialização da Grã-Bretanha derivou da sua capacidade de resposta às
necessidades da elite política dominante e às da nova classe capitalista com seus
métodos de disciplina industrial. O Era da revolução explora esse processo por meio
do “conceito pérfido” de ideologia de classe. No caso britânico, os abolicionistas
provavelmente concentraram a atenção na intolerância a um mal distante, de modo que
tanto a visão que tinham da realidade social quanto os termos de argumentação
justificassem a estrutura política existente e refletissem as necessidades capitalistas da
economia emergente. Portanto, a função chave do abolicionismo no sistema social como
um todo foi de dissimulação, camuflagem e dessensibilização da sociedade inglesa para
com as mais novas formas de exploração do trabalho e para com os pouco visíveis
grilhões domésticos (p. 70-76, 99-103).
Embora Davis note de passagem que o abolicionismo também podia (como fez
mais tarde) catalizar a crítica social e aumentar a sensibilidade à exploração econômica,
nos capítulos centrais do Era das revoluções quase todos abolicionistas são
identificados como defensores conscientes ou inconscientes da hierarquia política
vigente, do mercado de trabalho livre e de uma nova disciplina industrial. Todos esses
abolicionistas, considerados usualmente radicais por outros historiadores, não eram, ao

Britain, 1832-1938 (Baltimore and London, 1992), p. 24-33.


. A discussão de Davis sobre os Estados Unidos na Age of Revolution alude à compatibilidade do
125

abolicionismo com a ideologia capitalista do Norte nos fins do século XVIII.

98
que parece, advogados de um futuro social mais igualitário ou menos explorador. Como
a economia política de Adam Smith, os abolicionistas britânicos espelhavam “as
necessidades e os valores da ordem capitalista emergente”. Eles eram, se bem que
inconscientemente, portadores da mensagem tranquilizadora da harmonia natural de
Smith. Na geração anterior a 1823, conclui Davis, o abolicionismo foi bem-sucedido ao
fazer de “um humanitarismo sincero parte integrante da ideologia de classe, e, deste
modo, da cultura britânica (p. 72)”.126
A base da explicação nesses capítulos centrais é esmagadoramente a de “classe”
e de cultura nacional, via classe. Uma cadeia retórica faz uma ligação contínua do
desenvolvimento econômico com a dominação de classe, com o escudo ideológico, com
o humanitarismo e com o nacionalismo. Davis também adiciona um elemento do
consentimento da classe mais baixa (316) a esse retrato do abolicionismo como um
bem-sucedido dispositivo ideológico. Na discussão teórica sobre a ideologia, ele se
refere à característica “hegemônica” do abolicionismo, por meio do qual as classes
sociais dominantes também obtêm a lealdade “espontânea” (citação de Davis) dos
grupos subordinados (p. 70).
Armado com esse modelo no início dos seus capítulos sobre a Inglaterra, Davis
detalha elaboradamente as correntes intelectuais (Economia Política, Utilitarismo,
Humanitarismo e assim por diante) que, com a ajuda dos desenvolvimentos políticos e
sociais contemporâneos, produziram uma triunfal convergência do abolicionismo com o
conservadorismo político e com o capitalismo empreendedor. A conjuntura surgiu entre
os meados da década de 1790 e o início da de 1820. Em toda essa era de reação, o
abolicionismo funcionou para reforçar a autoridade hierárquica, para legitimar os
valores capitalistas industriais e para salvar a estabilidade do Estado. O abolicionismo
tornou os novos grilhões da industrialização menos visíveis e, com isso, legitimou o
nexo entre o trabalho assalariado e a industrialização.127

III

Para explicar a origem, organização e triunfo do abolicionismo, grande parte da


discussão em The Antislavery debate gira em torno do significado do mercado
capitalista versus as tensões da classe capitalista. O ponto de partida da crítica de

. Ver também Age of Revolution, p. 451-468.


126

. Ver também Ibid., p. 14, 446-467.


127

99
Haskell provém de um desejo de formular mais rigorosamente a relação entre o
capitalismo e o abolicionismo no Ocidente. Para Haskell, o abolicionismo é acima de
tudo parte de uma “onda sem precedentes do sentimento de reforma que varreu as
sociedades da Europa Ocidental e da América do Norte no século seguinte a 1750”. Em
geral, Haskell está mais interessado na origem e na difusão do sentimento humanitário
do que na explicação da formação e do triunfo do abolicionismo, seja como ideologia de
classe ou como instrumento de dominação hegemônica. Sua questão histórica
primordial certamente não é a de Davis, ou seja, a de como o abolicionismo
inconscientemente fortaleceu ou legitimou a hegemonia da classe capitalista ou
dominante (p. 70-71, 107).
De fato, Haskell é inflexivelmente cético no que diz respeito à utilidade das
atribuições freudianas, ou quase freudianas, de autoilusão individual ou coletiva para a
análise histórica das relações entre capitalismo e abolição. Seu longo argumento baseia-
se na premissa fundamental de que, existindo ou não a autoilusão individual ou coletiva
como um fenômeno psicológico coletivo, é impossível para o historiador apresentar
uma prova concreta para sustentar qual seria a distinção entre intenção inconsciente e
consequências involuntárias. Ele também questiona a utilidade de se recorrer ao
conceito de “interesse”, seja individual ou de classe, como uma categoria analítica
eficiente. A conclusão a que ele chega em sua crítica ao aspecto “freudiano” da análise
de Davis é que qualquer interpretação que conta com a autoilusão ou com a intenção
inconsciente (nesse caso, a dos agitadores abolicionistas) é quase impossível de ser
testada ou verificada. Ashworth também considera insustentável (317) o argumento
sobre a intenção inconsciente. Conclui ainda que a hipótese psicossocial de Davis (a de
que o abolicionismo estava a serviço de uma função hegemônica) é afirmada em vez de
ser completamente provada (p. 116-121; 182).
Quanto ao argumento de que o abolicionismo serviu como uma arma em
proveito de uma classe capitalista, Haskell usa a própria afirmação categórica de Davis
de que o abolicionismo não era a expressão consciente do interesse da classe capitalista.
Sem motivação consciente não pode haver interesse algum: “Dizer que uma pessoa é
movida pelo interesse de classe é dizer que ela pretende promover o interesse da sua
classe, ou então é, em absoluto, não dizer coisa alguma” (p. 117, 182).
Haskell propôs uma ligação diferente entre o capitalismo e o abolicionismo. Para
Haskell, a expansão capitalista e especialmente o seu sistema de mercado levaram a
mudanças na percepção e no conhecimento que, em consequência, expandiram a

100
amplitude do campo da compreensão causal e da responsabilidade moral. O positivo
efeito retroativo da disciplina de mercado mudou as convenções sociais. Essas
mudanças encorajaram uma crescente quantidade de indivíduos a atravessar um limiar
cognitivo e comportamental para fazer uma condenação inteiramente ativa da
escravidão. A estratégia interpretativa de Haskell aparece em um modelo teórico tímido,
no qual a mudança social é progressivamente efetuada por meio de agentes individuais.
Contudo, o modelo não é (como conjetura a introdução do livro) uma extensão do
“projeto weberiano” de A ética protestante e o espírito do capitalismo. A interpretação
causal de Haskell é mais propriamente tawneyriana, que flui do mercado para o
“espírito” do abolicionismo, e não vice-versa. De fato, Davis condena a abordagem de
Haskell por ser mais parecida com um determinismo econômico quase marxista do que
com a afirmação weberiana da autonomia cultural (p. 7, 140-156, 297-298).
De todo modo, como indica Ashworth, a escassez da prova histórica de Haskell
mina o seu argumento no primeiro obstáculo crítico – “por exemplo”. Admitindo que o
mercado podia ter, e teve, como efeitos a redução do apoio à escravidão e a expansão da
escravidão, Haskelll fornece somente um exemplo histórico do seu modelo de mudança
moral em relação ao abolicionismo, o do quacre John Woolman. Até mesmo no próprio
ensaio de Haskell, esse exemplo é balanceado por um contraditório – Daniel Defoe. Por
isso, Ashworth desafia Haskell a fazer um balanço das economias de mercado e
sociedades com abolicionismo como um teste para validar o modelo.
Subsequentemente, tanto Davis quanto Ashworth pioram as coisas com muitos contra-
exemplos. Arrolam como provas sociedades comerciais e grupos empresariais da Itália
medieval ao Sul dos Estados Unidos, e todos eles fracassaram notoriamente ao cruzar a
linha das convenções sociais para o abolicionismo sob a indução do mercado. (p. 178-
179, 186-187, 199, 231-234, 264, 291-293).
A resposta geral de Haskell é a de que ele não está procurando uma interpretação
de uma mudança social geral nem sequer um mecanismo que provoque um efeito limiar.
Neste caso, o problema é tentar tornar compreensível a emergência de pessoas ou de
grupos que se tornaram sensíveis à “intolerabilidade” da escravidão. Mesmo nos termos
da sua meta limitada, o leitor nunca é informado sobre como poderia ser empiricamente
definido o ponto em que o fenômeno ocorreu. É quando um ou dois exemplares
atravessam do limiar da tolerância para o antagonismo acentuado, ou isso requer uma
grande (318) quantidade de pessoas, ou até mesmo uma maioria esmagadora? No plano

101
da hostilidade do indivíduo e mesmo do grupo, o limiar foi cruzado antes do século
XVIII.128
Em todo caso, a modéstia subsequente de Haskell parece estar em desacordo
com sua retórica inicial, salvo a respeito da “inédita onda de sentimento de reforma
humanitária” que varreu o Ocidente depois de 1750. Seu longo ensaio termina com o
mesmo comentário gigantesco, com a evocação de uma viravolta institucional
fundamental na civilização ocidental, não com a conversão de um pequeno grupo
sensível e descontente da elite. No seu ensaio final, Haskell ainda ansia ardentemente
alcançar algo mais amplo que uma interpretação da emergência dos pioneiros do
abolicionismo como John Woolman, ou até mesmo de um milhar de John Woolmans.
Esquivando-se do golpe de um contra-exemplo dado por Davis, Haskell pergunta
retoricamente “o que mais podia justificar o abandono da escravidão nas colônias
holandesas senão uma penetrante mudança de extensão marítima na perspectiva moral?”
A metáfora de Haskell permanece oceânica. (comparar p. 107, 141, 149, 154-156, 159-
160, 223-225, 233-234, 265-266).
A segunda principal área de discussão é a classe centrada no abolicionismo e a
classe interessada nele. A história social quase não desempenha papel algum nas
exposições iniciais, mas, a despeito disso, todos os três interlocutores presumem
que a atividade abolicionista inicial foi conduzida e realizada pelas classes
econômica e politicamente “dominantes” do mundo anglo-americano. Em contraste
com a sua posição no argumento sobre a intenção inconsciente e a autoilusão, neste
ponto Ashworth se alinha com Davis contra o modelo do mercado. De fato, enquanto
Davis reduz progressivamente a importância do seu quadro rígido da sociedade
britânica em 1800 como um mundo polarizado entre capital e trabalho (um ponto que
será retomado), Ashworth reitera essa dicotomia. Analiticamente, Ashworth define o
interesse de classe como o melhoramento econômico, político e ideológico “das
condições materiais usufruídas por uma classe em relação à outra classe” (p. 280-281).
Depois de discussões prolixas e intelectualmente astutas sobre as dificuldades de
medir empiricamente o interesse de classe e sobre a relação do conceito de classe com a
intenção inconsciente, com a situação social e com os resultados históricos imprevistos,

. De fato, o limiar da ilegitimidade moral de Haskell foi atravessado na Holanda muito antes do seu
128

século de humanitarismo de massa (1750-1850). Na década de 1620, os diretores da Companhia


holandesa das Índias Ocidentais, depois de consultarem teólogos, “concordaram que o tráfico de seres
humanos não era moralmente justificável e não deveria ser praticado pela companhia”. Sua revogação
oficial, no entanto, demorou mais de uma década. Ver Johannes Menne Postma, The Dutch in the Atlantic
Slave Trade, 1600-1815 (Cambridge, Eng., 1990), p. 11.

102
Davis e Ashworth continuam convencidos de que o abolicionismo dava sinais de
interesse de classe, uma vez que os abolicionistas se concentraram seletiva e
obsessivamente nos males da escravidão como propriedade e, desse modo, minimizaram
a importância ou legitimaram os novos males do trabalho assalariado contemporâneo.
Teoricamente, o problema da “seletividade” ideológica, embora não tenha sido
destacado pelo editor como uma das palavras-chave do debate, é provavelmente o
assunto central de The Antislavery debate. À réplica de Haskell de que os abolicionistas
logicamente atacaram o pior dos males da época, Davis e Ashworth respondem que
tanto a escravidão quanto o trabalho assalariado poderiam ter sido simultaneamente
atacados e não foram. A assimetria da seletividade é, portanto, logicamente atribuível a
algumas variáveis do interesse de classe ou da “falsa consciência” decorrentes (319) da
posição de classe ou da afiliação dos abolicionistas (p. 4-6, 9, 117 nota, 182, 184, 211-
216, 247-253, 271-272, 274, 280, 293-294, 304-307).129
Uma dificuldade em relação a essa posição está em saber se a prova dessa
assimetria “ideológica” foi apresentada convincentemente, uma questão que não foi
abordada sistematicamente pelos protagonistas. Nas primeiras décadas do século XIX,
os ataques britânicos à escravidão e ao tráfico negreiro foram legitimações ideológicas
do sistema social e político como um todo? Em The Antislavery debate, a prova
“ideológica”, na forma de textos contemporâneos contra a escravidão, é extremamente
escassa. Davis, embora observe que a sua hipótese de triagem de classe era “uma tese
difícil de provar”, conta, na sua exposição, com uns poucos exemplos escolhidos para
montar o caso britânico. Seu texto principal é um excerto de The Dangers of the
Country, de James Stephen, que contém um panegírico da sociedade inglesa. Davis
apresenta também uma longa análise de “Charity”, um poema de William Cowper (p.
85-92).130

. Ver Davis, Age of Revolution, p. 251-252, 349-350, 455-468. Para uma conclusão mais recente de que
129

a maioria dos donos de propriedade que apoiou o abolicionismo não foi, consciente ou
inconscientemente, incitada por um desejo de consolidar a base da sua riqueza e poder, ver R. W. Fogel;
S. L. Engerman, “Philanthropy at Bargain Prices: Notes on the Economics of Gradual Emancipation”, in
Fogel, et al., Without Consent or Contract, Technical Papers, II, p. 587-605. Esses autores se
impressionaram com “o quanto da retórica dos abolicionistas foi apropriado pelos críticos do capitalismo”
(Ibid., p. 602).
130
. Sobre a ideologia, ver p. 71; e Davis, Age of Revolution, Preface, p. 13. Sobre The Dangers como
propaganda, ver Roger T. Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, 1769-1810 (London,
1975), p. 194-198. Davis usa também o Crisis of the Sugar Colonies, de Stephen (London, 1802), para
ilustrar a legitimação de Stephen do sistema de trabalho inglês. Na medida em que o foco exclusivo na
abolição de The Danger’s “fez um ataque à escravidão negra, que prestou serviços a uma expiação
plenamente redentora” (85-87), Stephen recuou para uma posição menos abrangente no seu prefácio da
segunda edição do livro (1807).

103
Infelizmente para a clareza dessa análise, o texto de Stephen não se conforma
rigorosamente ao pré-requisito distintivo do discurso ideológico exposto por Davis.
Seguindo Peter Berger, Davis enfatiza que a ideologia é muito distinta da ilusão e da
propaganda. Mas, The Dangers de Stephen era um panfleto de propaganda, publicado
precisamente para influenciar o voto parlamentar destinado a abolir o tráfico de
escravos em 1807 (p. 71).131 Além do mais, a suposta opinião literária conservadora do
abolicionismo seria muito mais radical e desafiadora da hierarquia social e política se
Davis tivesse resolvido incluir as efusões inflamadas de Blake juntamente com o poema
quietista, apolítico (e pré-abolicionista) de Cowper, ou se ele tivesse incluído os
discursos abolicionistas e os escritos ironicamente subversivos de Coleridge juntamente
com as polêmicas do conservador James Stephen.
Por isso, a seletividade é tão problemática na historiografia contemporânea do
abolicionismo quanto nos textos abolicionistas de dois séculos atrás. Para ilustrar isso,
devo apenas colocar outro documento juntamente com o Dangers de Stephen. Por
comparação, um panfleto chamado Christian Policy, the Salvation of the Empire (1816)
empalidece o panegírico citado de Stephen. O escritor saúda “esta nação,... a mãe e a
ama da liberdade civil e religiosa – o esplendor cujo brilho tem penetrado em todos os
cantos da terra, oferecendo um conhecimento (320) das bênçãos da liberdade: toda a
ilustração atual da humanidade emana deste ponto, desta Inglaterra, bem como da
divindade”.
Poucas páginas depois, no entanto, o Christian Policy chega ao seu ponto
verdadeiro, o de que a escravidão foi um entre os muitos dos crimes da classe
dominante britânica:

Vocês, a oligarquia, os monopolizadores da terra, destes reinos, não têm sido os causadores de todos os
problemas, guerras e desordens na Europa e na América durante os últimos cinquenta anos...? Não são
atribuídos a vocês todos os horrores nas colônias, da escravidão, de homens caçados por sabujos – das
guerras no continente da América, dos escalpos, da queima de homens vivos e dos enforcamentos – na
Índia, da guerra, da rapina e da fome – na Irlanda, da rebelião, das execuções, da perseguição, da
degradação, da coerção militar e de várias espécies de opressão – na Inglaterra, das exações, do
endividamento, da tributação, da miséria, do pauperismo, da bancarrota, etc.: em consequência do
aumento da riqueza e do poder, o que vocês podem desfrutar garante segurança às suas famílias para
sempre em campos de sangue?132

. Ver também Davis, Age of Revolution, Preface, p. 13.


131

. Christian Policy (London, 1816), p. 7, 23-24, citado em Iain McCalman, Radical Underworld:
132

Prophets, Revolutionaries and Pornographers in London, 1795-1890 [Submundo radical: profetas,

104
Essas palavras foram escritas na mesma cidade durante o mesmo período
político repressivo e reacionário designado por Davis como o contexto da sua tese da
hegemonia de classe do abolicionismo.
O Christian Policy foi um manifesto de Thomas Evans, ex-secretário da London
Corresponding Society e, em 1816, líder dos “spenceanos” [referente a Thomas
Spence], uma das seitas mais radicais da Inglaterra do início do século XIX. O uso
polêmico e preciso da escravidão como um ultraje entre os demais podia ter sido
colocado ao lado do uso polêmico, feito por Stephen, do tráfico de escravos como um
dos males da Grã-Bretanha na avaliação da chamada questão-chave de Davis: a função
social do abolicionismo na sociedade como um todo. Por isso, é possível concordar com
a análise de Ashworth de que a emergência, a difusão e o sucesso definitivo do
abolicionismo não podem ser explicados em termos de “hegemonia” como foi
formulado originalmente na Era da Revolução (p. 289).

IV

Contudo, permanece uma questão importante a respeito da relação precisa entre


a ideologia abolicionista e o trabalho assalariado. Para Davis, é crucial a sua
coincidência com a emergência das mais sinistras formas de exploração doméstica e dos
grilhões menos visíveis do cativeiro industrial. Por que, como Davis e Ashworth
reiteram, o abolicionismo efetivamente não se concentrou na “escravidão assalariada”
tanto quanto na escravidão ultramarina? O derradeiro argumento “oculto” ou desviado
sustenta que os escritores abolicionistas ou condenavam apenas a escravidão ou
realmente louvavam a condição relativa do trabalhador assalariado.133
Pode-se recomeçar novamente com o texto acima. Thomas Evans, que
condenava a escravidão, não mirava especificamente o trabalho assalariado, a disciplina
fabril, o desemprego (321) tecnológico, os opressores da indústria ou qualquer arsenal
dos grilhões “menos visíveis” na sua lista dos horrores cometidos pelas classes mais

revolucionários e pornógrafos em Londres] (Cambridge, Eng., 1988), p. 102. Se Davis inicialmente


desmonta as análises de claro apelo do abolicionismo aos “líderes das classes trabalhadoras” (p. 87, nota),
na sua réplica a Haskell, contudo, ele fez uma observação com uma comparação radical do inglês pobre
em relação aos escravos da Índia Ocidental em 1817 (p. 117). Ver também The Horrors of Slavery and
Other Writings by Robert Wedderburn, ed. Iain McCalman (Edinburgh, 1991), p. 82, 114.
. Em adição ao argumento de Davis na p. 61-64, 92-103 e 169-171, ver o sumário de todo argumento no
133

Age of Revolution, 459-468.

105
altas. No entanto, eu não deduziria que, nesses termos, Evans estava legitimando a
classe capitalista ou ocultando do olhar nacional a nova ordem industrial. Além disso, se
aplicássemos o mesmo critério de legitimação pelo silêncio, isso seria o que Evans,
como Stephen, teria feito, a despeito da (ou de fato, talvez por causa de) sua diatribe
contra a guerra, escravidão, escalpe, tortura, enforcamento, rapina, fome, dívida,
impostos, pobreza e bancarrota causados pelos oligarcas da Inglaterra. As ideias
econômicas de Evans eram provavelmente as dos artesãos locais e dos mestres entre os
quais ele vivia e promovia a agitação.134
Na exploração da cultura política britânica, a justaposição dos radicais aos
abolicionistas do início do século XIX em The Antislavery debate pode levar a
descobertas imprevistas. O contra-exemplo mais frequentemente invocado sobre a
insensibilidade abolicionista para com o os trabalhadores livres é o de William Cobbett,
que não deixou dúvidas sobre a sua repulsa à hipocrisia dos “Santos” (evangélicos
parlamentares) e suas preocupações pelos escravos ultramarinos. Contudo, nenhum
“Santo” podia competir com Cobbett no que diz respeito a pôr de lado a importância
social e as privações dos pobres das manufaturas de Lancashire e de Yorkshire na época
da abolição do tráfico de escravos. Durante o inverno de 1807-1808, Cobbett garantiu
aos trabalhadores das tecelagens que seus empregos podiam desaparecer sem causar
dano à nação e que suas famílias poderiam cair na miséria, mas as Poor Laws [leis de
assistência social] seriam a segurança contra a fome absoluta. Não se sabe o que os
pobres das manufaturas pensavam sobre a visão de Cobbett, mas, seu caloroso consolo
não estava claramente inspirado em alguma estima pelo abolicionismo, qualquer que
fosse a sua variante – a conservadora ou a radical.135
Talvez haja uma explicação alternativa plausível para a hipótese de que os
abolicionistas ocultaram os males do trabalho assalariado. Os abolicionistas das
décadas de 1790 e 1800 não ignoravam ou desviavam um ataque ideológico de
âmbito nacional ao trabalho assalariado dos porta-vozes dos radicais ou dos

. McCalman, Radical Underworld, p. 103


134

. Sobre o uso de Cobbett como o principal contra-exemplo radical aos abolicionistas, ver p. 78 nota, 79,
135

86, 121 nota, 214; e Davis, Age of Revolution, p. 357, 359,367, 409,450,467. Para a perspectiva de
Cobbett em 1807-1808, ver “Perish Commerce”, em Cobbett’s Weekly Register, v. 12 (28 de novembro
de 1807), p. 836; (5 de dezembro de 1807), p. 875-877; v. 13 (28 de janeiro de 1808), p. 107-109. Outra
pesquisa considera que os adversários humanitários de Cobbett precederam-no efetivamente no
desenvolvimento dos novos usos da metáfora trabalho/escravo no movimento pela reforma fabril. Ver
Catherine Gallagher, The Industrial Reformation of English Fiction: Social Discourse and Narrative
Form, 1832-1867 (Chicago, 1985), p. 10-33. A mais abrangente comparação parlamentar dos escravos
com os trabalhadores fabris nas três décadas anteriores a Waterloo foi feita pelos porta-vozes da Índia
Ocidental; ver Hansard’s Parliamentary Debates 9 (1807), cols. 532-537.

106
trabalhadores. A analogia entre o escravo e o trabalhador fabril já existia antes da
emergência do abolicionismo e, de forma esporádica, continuou a emergir
regionalmente nas épocas de conflito econômico, especialmente depois da
aprovação do fim do tráfico de escravos. Mas, caso fosse aplicada a terminologia
recém-fabricada pela Revolução Francesa, no plano nacional o ataque à hipocrisia
abolicionista proveio quase exclusivamente dos donos de escravos da “direita” mais que
da “esquerda” radical.
(322) Desde o princípio, os abolicionistas haviam desenvolvido duas
respostas típicas ao ataque do interesse escravista. A primeira se destinava a
delinear com precisão as condições específicas do tráfico africano de escravos e da
escravidão colonial: massacre; sequestro; desterro sob grilhões; separação forçada
dos parentes, do lar e do país; sujeição à venda em massa; marcação com ferro em
brasa; trabalho em turmas; disciplina imposta pelo chicote, e assim por diante. O
segundo se destinava a afirmar muito explicitamente que as más condições dos
pobres ou dos trabalhadores da Europa não justificavam a escravidão. Até onde se
sabe, eles não argumentavam o contrário – isto é, que o abolicionismo justificava
implicitamente as condições de trabalho na Europa. De fato, no primeiro grande ataque
legal contra a escravidão no Império Britânico, os padrões de vida limitados à
subsistência dos ingleses da metrópole eram explicitamente apresentados como uma
sólida razão para que não fosse aumentado o trabalho coercivo não pago dos
empregados negros. Não é acidental que o pioneiro da oposição à escravidão na
Inglaterra esteve também entre os primeiros formuladores de um agrarismo utópico para
solucionar a questão da escravidão na África.136
. Ver Thomas Clarkson, An Essay on the Slavery and Commerce of the Human Species, particularly the
136

African (London, 1786), p. 136-137. Desde o seu início, o movimento abolicionista recebeu o apoio de
todas as classes das “principais vilas manufatureiras” de Manchester e Birmingham, o que deu um grande
conforto estratégico aos primeiros abolicionistas. Ver Clarkson, Two Essays on the Impolicy of the
African Slave Trade (London, 1788), p. 117-118; e S. Drescher, Capitalism and Antislavery: British
Mobilization in Comparative Perspective, cap. 4. Ashworth conclui que igualar hegemonia de classe com
o acordo entre classes é desvalorizar consideravelmente o termo “hegemonia”. (p. 286). Similarmente,
inferir que o silêncio sobre o trabalho assalariado é igual à legitimação de todos os seus efeitos é forçar o
sentido da legitimação. Quando Clarkson escreveu sobre a superioridade potencial do “trabalho livre”
sobre a escravidão, a sua imagem de trabalho estava ligada ao ideal de autodidatismo (Clarkson, p. 5).
(Clarkson estava interessado em fazer comparações entre o escravo e o trabalho livre na África.) Para
uma enérgica condenação de algumas condições metropolitanas como “abominações” (coincidentes com
a publicação dos Dangers de Stephen), ver Thomas Clarke, Letter to Mr. Cobbett on his Opinions
respecting the slave trade (London, 1807), p. 22, 48, 73, 87. David Turley, em The Culture of English
Antislavery (London, 1991), p. 147, não encontra nenhuma atitude unificada entre os primeiros ativistas
abolicionistas em relação à regulação do mercado de trabalho. Sobre o início do radicalismo e do
abolicionismo, ver Drescher, Capitalism, p. 258-259, que cita, entre outros A Representation of the
Dangerous Tendency of Tolerating Slavery, de Granville Sharp (London, 1769), p. 75. Ver também a
discussão do plano de Sharp para a colonização de Serra Leoa, em Philip Curtin, The Image of Africa:

107
Ironicamente, o abolicionismo em vez de ocultar os descontentamentos
metropolitanos, estimulou a discussão popular dos análogos domésticos da
escravidão: recrutamento, castigo, requisição de víveres, adversidades da
agricultura, prisão de devedores, trabalho doméstico, aprendizado paroquial,
como também maus-tratos de crianças nas escolas, de viúvas, de inquilinos, de
animais, do irlandês pobre, dos escoceses desalojados, e dos privados de direitos
políticos. Como na polêmica de Evan, essas denúncias populares tendiam a se
espalhar sobre uma ampla variedade de males domésticos e de questões que
provocavam tensão. Se alguém quer afirmar que todos os que falavam o que pensavam
contra esses diversos males também estavam validando desintencionalmente o trabalho
assalariado por meio do problema dos descontentamentos, então quase todos os grupos
do início da Grã-Bretanha industrial e todos escritores, de Paine a Pitt, estavam desse
modo desviando a atenção do trabalho assalariado. Uma tese sobre a ocultação do
trabalho assalariado que tem de incorporar a ausência de seletividade do discurso geral
durante o período aproximado entre 1795-1823 é difícil de se sustentar (p. 172, 178-
179, 293).
(323) Os historiadores deveriam estar preparados para considerar uma
análise minuciosa do complexo de atitudes em relação à escravidão ultramarina e o
trabalho doméstico de todas as classes. O mundo que partejou o abolicionismo de
massa era o mesmo no qual Thomas Paine, um notório radical abolicionista e
advogado dos ingleses pobres, exortava a liberação do mercado de trabalho
assalariado como um melhoramento das limitações e regulações existentes. Era um
mundo em que os trabalhadores de Manchester, que assinavam grandes
quantidades de petições abolicionistas, acreditavam nos seus direitos a salários
decentes por serem “ingleses nascidos livres”. O abolicionismo adicionou muito
menos que legitimação ou deslegitimação ao sistema de trabalho industrial inicial
que as ondas de prosperidade e de penúria que derivaram dos desenvolvimentos
políticos, militares e econômicos da era da revolução.137
Correspondentemente, só depois de Waterloo, e especialmente depois de 1823,
quando a elite abolicionista tornou manifesta a sua justificação do sistema de trabalho
britânico, o sistema foi mais agressivamente atacado pelos reformadores do trabalho

British Ideas and Action, 1780-1850 (Madison, Wisc., 1964), cap. 4, p. 99-101.
. Life and Works of Thomas Paine (New York, 1925), VII, Rights of Man, p. 78-79; Robert W.
137

Malcolmson, “Workers’ Combinations in Eighteenth-Century England”, in The Origins of Anglo-


American Radicalism, ed. Margaret Jacob; James Jacob (London, 1984), p. 153.

108
metropolitanos. O paradoxo parece ser facilmente explicável. Durante a geração anterior
a 1815, quando o tráfico de escravos era o foco do abolicionismo britânico, as
diferenças objetivas entre os africanos escravizados e transportados e os
trabalhadores britânicos eram muito óbvias. Depois de 1823, quando os
abolicionistas detalharam abundantemente as condições dos escravos caribenhos,
algumas das vantagens materiais relativas dos escravos sobre os trabalhadores
britânicos ficaram crescentemente mais claras e foram mais amplamente
conhecidas. Então, os agitadores trabalhistas britânicos perceberam uma enorme
vantagem polêmica em fazer a comparação. Exatamente quando o próprio
abolicionismo se tornou mais popular e mais radical, sua ideologia se voltou mais
efetivamente contra os industriais britânicos – inclusive contra muitos capitalistas
abolicionistas.138
Talvez o desenvolvimento mais interessante de The Antislavery debate esteja nas
sucessivas réplicas de Davis que refletem a sua atenção à crescente historiografia sobre
as formas não elitistas do abolicionismo na Grã-Bretanha. Nas suas réplicas, ele
crescentemente volta sua atenção, e chama a atenção do leitor, para a participação dos
grupos marginalizados nos capítulos sobre a Inglaterra em A era da revolução. Contudo,
é preciso acrescentar que esses grupos, inclusive o dos artesãos, estiveram presentes e
marcaram presença na orientação da política britânica abolicionista durante a maior
parte do período de 1795-1823, tanto quanto durante os períodos anteriores e
posteriores.
(324) Segundo, enquanto o Era da Revolução, de Davis, reúne muitas formas de
trabalho sem a propriedade do trabalhador globalmente legitimadas pela ideologia
abolicionista, seu ensaio final do The Antislavery debate enfatiza uma distinção crucial
entre as percepções históricas do “trabalho livre” de um lado, e as da escravidão como
propriedade do trabalhador e a “escravidão assalariada” de outro. Era uma distinção que
“atraia artesãos e trabalhadores de vários graus de habilidade” e, deve ser acrescentado,
também agricultores independentes e comerciantes (comparar p. 95-103, 171-172, 178-
138
. Ver Drescher, “Cart Whip”, p. 3-24, e Clarkson, Argument that the Colonial Slaves are better off than
the British Peasantry, answered from the Royal Jamaica Gazette (Whitby, 1824). O ensaio de David
Eltis, “Abolitionist Perceptions of Society After Slavery”, em Slavery and British Society, 1776-1846, ed.
James Walvin (London, 1982), p. 195-213, apoia essa periodização, talvez inintencionalmente. Todas as
citações das opiniões dos abolicionistas que reivindicavam a superioridade do trabalho livre datam de
1823 ou de mais tarde. Significativamente, o contexto cultural sugerido por Eltis para compreender as
comparações britânicas entre o trabalho colonial e o metropolitano não é dos fins da Grã-Bretanha
georgiana (1760-1837), mas do início da Grã-Bretanha vitoriana. Sobre os padrões de vida comparativos
dos trabalhadores britânicos e os escravos das Índias Ocidentais, ver Ward, British West Indian Slavery,
p. 261-263, 286-288.

109
179, 293, e especialmente p. 303-304).139 Esses grupos sociais e suas aspirações estavam
menos visíveis nos capítulos sobre a Inglaterra do Era da revolução.140
Quanto mais a base social do abolicionismo é completamente investigada,
menos significativo parecem ser os efeitos hegemônicos de “ocultação” da ideologia
abolicionista na sociedade britânica. Ashworth e Davis estão em uma posição segura ao
continuarem insistindo que as dinâmicas da posição social e dos grupos na análise dos
textos abolicionistas devem ser rigorosamente observadas, e deve ser admitida a
hipótese de que indivíduos de diferentes afiliações sociais provavelmente foram
responsáveis por diferentes visões do abolicionismo. Todavia, deve ser explicitado que
provavelmente nunca houve, em período algum, uma adequação ideológica entre o
capitalismo e o abolicionismo, nem tampouco uma função do abolicionismo na
sociedade britânica como um todo.
A questão final por resolver do The Antislavery debate diz respeito ao impacto
de longo prazo do abolicionismo. Que diferença o abolicionismo realmente provocou na
evolução da metrópole britânica (ou da América), especialmente no tocante à
legitimação (325) e à manutenção da “nova ordem industrial capitalista” (p. 308-

. A primeira réplica de Davis a Haskell afirma que o abolicionismo “sempre esteve relacionado com a
139

necessidade de legitimar o trabalho livre assalariado” (p. 162). Os significados de “relacionado” e de


“necessidade” são muito ambíguos, como Haskell e Ashworth observam (p. 202, 287). O texto de Davis
pode querer dizer que os capitalistas ou as elites contrários à escravidão precisavam valorizar o trabalho
assalariado. Ou pode querer dizer que o abolicionismo, simplesmente como um argumento contra a
escravidão, implicava a legitimação ou a reivindicação do trabalho assalariado. A segunda réplica de
Davis descarta a segunda opção: “Nunca procurei afirmar que o abolicionismo tinha de se basear na
exigência do trabalho assalariado; argumentei apenas que no início da industrialização britânica ele
exerceu essa função para uma determinada classe” (p. 293). O argumento implícito no silêncio parece ter
sido excluído agora. Com a ausência desse argumento, deve então ser demonstrado empiricamente onde e
quando a elite abolicionista reivindicou uma posição de item proeminente do trabalho livre na sua agenda.
140
. Na sua replica final, Davis nota que “o ideal de trabalho livre” como “diferente da escravidão como
propriedade do trabalhador e da ‘escravidão assalariada’”, era especialmente importante para os artesãos e
para os trabalhadores qualificados que enfrentavam e temiam a desintegração das práticas tradicionais de
trabalho (p. 304). Contudo, essa mesma situação era enfrentada por artesãos e trabalhadores qualificados
do início da industrialização na Inglaterra. Mais acima na escala social, em vez de desviar a preocupação
com as mais novas formas do abuso capitalista, o mesmo núcleo do abolicionismo popular e do início da
industrialização produziram simultaneamente críticos tanto da escravidão quanto do sistema fabril. Dr.
John Ferriar, de Manchester, na vanguarda do abolicionismo, foi também um pioneiro na denúncia das
condições de trabalho nas fábricas de fiação de algodão e das condições de vida dos trabalhadores das
manufaturas. Comparar o seu prefácio de The Prince of Angola, a Tragedy altered from the play of
Oroonoko (Manchester, 1788) com o seu Medical Histories and Reflections (1792). Outro abolicionista
de Manchester, Dr. Thomas Percival, foi um dos primeiros advogados britânicos da regulamentação
parlamentar das fábricas de fiação de algodão. Percival fez o seu apelo durante o auge da repressão
conservadora dos meados dos anos 1790. Seria difícil identificar não-abolicionistas proeminentes de
qualquer espécie política que fizeram tanto para dar publicidade à condição precária dos trabalhadores das
fábricas de algodão antes dos fins do século XVIII. Até que toda a série de atitudes em relação à
escravidão e ao trabalho livre entre 1795 e 1823 seja mais sistematicamente analisada, será impossível
avaliar as relações entre o abolicionismo e a cultura política.

110
309)?141 Davis defende que, a despeito das intenções dos abolicionistas, o abolicionismo
legitimou e sustentou moralmente essa ordem. Mas é possível aceitar esse enunciado
como uma hipótese viável? Do modo como foi originalmente formulado, ele pede uma
questão contrafatual, não diretamente enunciada pelos próprios participantes.
Podemos dar mais nitidez à questão de saber se o abolicionismo atrasou ou
distorceu de modo sensível a descoberta do lado mais repulsivo da nova ordem
industrial capitalista e seus múltiplos descontentes? As poucas citações usadas como
exemplos em The Antislavery debate não capacitam os participantes a aumentar nossa
confiança além do nível originalmente alcançado pelo Era da Revolução. De fato, esse
procedimento preferentemente paralisa os historiadores numa batalha arbitrária de
textos. Esse texto é ideologicamente mais representativo que aquele? Talvez haja um
modo melhor de verificar ou de invalidar a hipótese da “ocultação”. Podemos iniciar
com sondagens comparativas sobre a tensão industrial. A emergente denúncia dos males
da industrialização e a ação coletiva contra eles começaram mais tarde, ou avançaram
mais lentamente, em regiões, religiões, gerações, gêneros, comunidades, classes onde
prevaleceram o aumento do abolicionismo e o do trabalho assalariado mais que em
áreas e entre grupos similares que careciam desta preocupação abolicionista poderosa?
Ou, o abolicionismo, mais frequentemente ajudou a sensibilizar e/ou a mobilizar
gêneros, gerações, classes religiões, regiões, etc. para a reforma industrial? Obteremos
respostas diferentes em um prazo mais curto ou mais longo? Qualquer resposta a essas
questões possivelmente exigirá argumentos mais empiricamente fundamentados na
história social, política e comparativa.
De fato, todos os três participantes do The Antislavery debate parecem
efetivamente concordar que uma investigação empírica poderia resolver pelo menos
algumas das questões pendentes sobre o impacto do mercado ou do capitalismo
industrial sobre o abolicionismo (ou vice-versa). O editor do volume observa que um
novo corpo de materiais históricos sobre a escravidão foi consensualmente trazido à
baila na discussão – a via holandesa para a emancipação dos escravos. A princípio, a
. Em The Antislavery Debate algumas vezes é afirmado que o abolicionismo foi atraente para a elite
141

social e governante britânica porque ele deu a elas uma grande oportunidade de legitimar a autoridade
política e o capitalismo industrial. Os participantes também fazem uma segunda afirmação menos
ambiciosa de que a elite legislou um abolicionismo que contava com apoio popular porque ele era mais
conservador e era menos arriscado que os demais movimentos pelas reformas durante a geração seguinte
a 1790. Essas questões são compatíveis, mas não idênticas. A primeira transmite a afirmação central de
que o abolicionismo desempenhou um papel substantivo para assegurar o sucesso da industrialização sem
a sublevação política ou social. A segunda diz respeito à questão de por que uma reforma torna-se lei em
vez de outra. Finalmente, Ashworth faz essa importante distinção. Comparar p. 70, 163, 288-289, 304-
305.

111
questão foi levantada por Davis. Então, Haskell e Ashworth concordam que os
holandeses podem servir para a verificação da prova. Davis apropriadamente usa sua
réplica final para mostrar que os Países Baixos, como zona pioneira de intenso
capitalismo mercantil, não conseguiram produzir em absoluto um momento substancial
abolicionista, ou um fim antecipado da escravidão. A história da escravidão colonial
holandesa lança dúvidas sobre a hipotética propensão do capitalismo de mercado para
gerar abolicionistas. O mercado também não encorajou o governo holandês a
desempenhar um (326) papel pioneiro na história da emancipação dos escravos. Os
Países Baixos oferecem igualmente pouco encorajamento para hipóteses que vinculam o
abolicionismo e o capitalismo industrial em geral. E é ainda menos útil para os
historiadores que afirmam que o abolicionismo foi particularmente atraente para a
burguesia da Europa Ocidental. Os Países Baixos acabaram se tornando um campo de
extermínio da maioria das ligações teóricas que foram feitas até agora entre o
capitalismo e o abolicionismo (p. 9-10, 178, 233-234, 264, 292-296).142
Onde, portanto, ficamos no final das formulações e reformulações feitas por este
livro sobre a relação entre o desenvolvimento econômico e as transformações da
percepção moral, da ação coletiva e da legislação? Primeiro, com a sensação de que
seus brilhantes e resilientes participantes são extraordinariamente hábeis para mostrar as
fracas ligações dos argumentos dos seus colegas. The Antislavery debate será uma
excelente forragem para ruminação nos seminários sobre historiografia. Sob a pressão
dos contra-exemplos de Davis e de Ashworth, Haskell reduz (ou pelo menos clarifica) o
escopo da sua investigação original da história mundial: pesquisar os efeitos limiares
significativos da convenção na inovação moral. Ashworth abre potencialmente uma
nova frente – a do Norte dos Estados Unidos anterior à Guerra Civil – para testar a tese
de Davis fora da sua moldura temporal original. Nos seus textos, Ashworth se limita a
fazer a apresentação da ideologia da família norte-americana ou dos movimentos pela
temperança como variáveis correlatas ao abolicionismo. Todavia, somente pela
inferência é impossível evitar da conclusão de Haskell que a atividade abolicionista dos
reformadores não significa atitudes ou mesmo resultados que legitimaram ou
perpetuaram a opressão sistemática da dominação capitalista.
Davis, cujo Era da Revolução serviu de inspiração para a maioria das outras
interpretações do abolicionismo pós Williams baseadas nas interpretações da ideologia
de classe, reafirmou e modificou de uma só vez sua explicação original. Ele reafirma a

. Ver também S. Drescher, “The Long Goodbye: Dutch Capitalism and Antislavery” (a ser publicado).
142

112
correlação entre uma zona “livre” de conflitos de classe e a expansão do abolicionismo.
Contudo, limitou mais claramente seu foco hegemônico a uma fase do desenvolvimento
industrial em um país, e somente em certas classes. Ele também acrescentou muitos
novos elementos de fora do poder ou não-capitalistas para suavizar a severidade da sua
ênfase anterior sobre o papel do abolicionismo como um instrumento de defesa social
amplamente usado pela elite.
Mudanças de tom de um argumento são importantes numa disciplina discursiva
como a história. Deve-se apenas observar o modo pelo qual Davis lida com um totem
tradicional dos debates sobre o abolicionismo. Há mais de um século, W. E. H. Lecky
fez um hosana agora famoso à cruzada abolicionista inglesa, que a considera como
“uma das três ou quatro ações perfeitamente virtuosas registrados na história das
nações”. Como uma joia da coroa da historiografia triunfalista, a frase de Lecky se
tornou, nas décadas recentes, o exemplo arquetípico de uma historiografia naive e
filopietista. Previsivelmente, Haskell concorda com essa opinião, uma vez que o Era da
Revolução de Davis também cita as palavras de Lecky de modo irônico, como a única
(327) “prova incontestável” de que o humanitarismo inglês “ultrapassou a avareza e o
interesse de classe dos ingleses”.
Assim, Davis finaliza The Antislavery debate com uma visão mais irônica de
Lecky. Ele é muito mais que o derradeiro exemplo do abolicionismo triunfalista
britânico:

Realmente penso que há muito de verdade na frequentemente citada afirmação de W. E. H. Lecky,


segundo a qual “a cruzada perseverante, simples e inglória da Inglaterra contra a escravidão pode ser
considerada como uma das três ou quatro ações perfeitamente virtuosas registradas na história das
nações”. Mas, nos anos 1990, seria naive não acrescentar que essa cruzada inevitavelmente contribui para
valorizar e redimir a ordem social particular que a fez surgir. (p. 309)

Nesses termos, Davis encerra The Antislavery debate. Mas onde o livro deixa o
debate sobre a relação entre o capitalismo e o abolicionismo? Em alguns aspectos as
suas dimensões foram significativamente estreitadas. A aplicação da tese da ideologia
hegemônica foi muito nitidamente limitada tanto na duração quanto no espaço. A
réplica de Haskell até expressou decepção pela negligência de Davis com o que Haskell

113
presumia ser uma teoria poderosa e global relativa à mudança moral no Ocidente,
promovida pelo capitalismo ocidental (p. 204-205).
Contudo, Davis, não deixou de ampliar essa linha de argumentação. Na sua
réplica final, ele pergunta retoricamente a Haskell por que todos os estágios iniciais do
capitalismo europeu – a “revolução comercial dos meados do século X aos meados do
século XIV ou a expansão espetacular dos meados do século XV aos meados do século
XVII” – não conseguiram produzir um “desenvolvimento sincronizado do
humanitarismo ou do abolicionismo”. Nem o século XV no Mediterrâneo, nem o século
XVII na Inglaterra e na Holanda, nem o começo do século XVIII nos centros do
comércio de Londres, Bristol, e Liverpool (p. 291-293).143
Depois dessa extensa falta de conexão, toda a arcada haskeliana de uma vasta
transformação na civilização ocidental a Norbert Elias parece se tornar uma ruína. As
ligações virtuais do antiescravismo inglês com a “sociedade de mercado” do século
XVII e as outras transformações sociais iniciais burguesas de C. B. Macpherson
também ficam danificadas (p. 143n, 191n). Até mesmo a “longa revolução” invisível de
Adam Smith das relações de trabalho na Europa Ocidental não tem um lugar
confortável nessa retrospectiva histórica.
Essa sondagem devastadora pode ameaçar de desabamento os próprios pilares
dos conceitos originais do templo. Mesmo quando isenta parcialmente o capitalismo
industrial do seu (328) catálogo de economias comerciais sem abolicionismo, Davis
previne o leitor com um alerta sobre a frequência da industrialização não abolicionista e
das emancipações não industriais. No fim das contas, o abolicionismo se tornou uma
força poderosa somente em três (ou, mais generosamente, quatro) países: Grã-Bretanha,
Estados Unidos, Brasil e França. As abolições sem muito abolicionismo também foram
a regra, não a exceção, na era da emancipação dos escravos. (p. 296 e nota).
Como poderíamos ver esse final irônico e essa volta poderosa para a antiga
coincidência do “simples fato” entre o capitalismo industrial e a abolição outrora
reafirmada serenamente? Um caminho seria o de repensar algumas das concepções
historiográficas centrais do último meio século. Quase todos os historiadores recentes da
escravidão partiram da premissa dual sobre o “big bang” do abolicionismo e do
crescimento da indústria: ou seja, houve uma reavaliação moral explosivamente rápida
. Sobre os debates recentes da conexão entre o fim da escravidão e o crescimento econômico na Europa
143

Ocidental, ver Adriaan Verhulst, “The Decline of Slavery and the Economic Expansion of the Early
Middle Ages”, Past and Present, v. 133 (November, 1991), p. 195-203. Se o fim da servidão for
adicionado ao da escravidão, os modelos de conflito social da transição europeia ganham uma
plausibilidade considerável.

114
da escravidão e uma transformação igualmente rápida das relações de trabalho na Grã-
Bretanha por volta do fim do século XVIII. Essa “revolução dual” se tornou o quadro de
referência para explicar o triunfo do abolicionismo.144
Seja como for, em vez de propor uma inversão setecentista da aceitabilidade
para a inaceitabilidade nas atitudes para com a escravidão, suponhamos que, em vez
disso, enfatizemos o mais verdadeiro desaparecimento “sem ostentação e sem glória” da
escravidão como propriedade do trabalhador no noroeste da Europa. Essa foi uma
transformação que acompanhou a longa expansão comercial depois dos meados do
século IX. E esse desenvolvimento é mais compatível com o ritmo faustuoso do
processo civilizatório de Elias, ou com a revolução milenar do trabalho na Europa
Ocidental de Adam Smith. Essa não teria sido a transformação fundamental do
Ocidente? Então, que tal se conceituássemos a aceitação pela Europa setentrional da
escravidão colonial ultramarina como excepcional desde o seu princípio? Nosso ponto
de partida na longa duração seria o de que a escravidão não era norma nos países ao
norte dos Pireneus durante a espetacular expansão da conquista comercial nos três
séculos posteriores a 1450.145
Poder-se-ia (decerto ironicamente) jogar fora o ponto de partida de Haskell e
separar analiticamente o humanitarismo europeu moderno em geral do abolicionismo
ultramarino em particular. Acima de tudo, nunca poderíamos perder de vista o fato de
que, quando o século XIX estava bem avançado, a economia sustentava mais fortemente
a escravidão das grandes propriedades do Novo Mundo que o abolicionismo. O
problema histórico torna-se agora mais simples geográfica e moralmente – trata-se de
explicar a separação entre o noroeste europeu e o outro mundo. Por que os governantes
e os cidadãos europeus do noroeste não conseguiram reproduzir o sistema de liberdade
civil no estrangeiro e exportar os limites metropolitanos do trabalho e das pessoas para
suas áreas ultramarinas? Os “frutos do capitalismo mercantil distante” são o mais
simples modo de justificar (329) o espaço político e cultural atribuído aos emergentes
sistemas escravistas ultramarinos entre aproximadamente 1450-1860.
O que teve de ser dominado dos meados do século XVIII em diante foi a
liberdade de ação que fora oferecida aos capitalistas ultramarinos mais do que aos de

. Ver, entre outros, Eltis, Economic Growth, p. 18-20 e Fogel, Without Consent, p. 201-202. O Problem
144

of Freedom, de Holt, p. 3-4, 34-35, fixa a ruptura ideológica nos fins do século XVII. Ele destaca as
revoluções econômicas e políticas dos fins do século XVIII como o ponto culminante do início da
ideologia liberal burguesa.
. Ver Drescher, Capitalism and Antislavery, p. 12-24.
145

115
casa. A aceleração do crescimento econômico britânico dos meados do século XVIII
certamente parece ter melhorado o sentimento popular sobre a capacidade do governo
britânico para, em primeiro lugar, inibir e, finalmente, destruir o seu sistema de trabalho
escravo. O modelo da luta de classes também pode ser aplicado a esse processo de
destruição, mas ele requer uma correlação convincente das iniciativas abolicionistas
britânicas com os momentos e os lugares de tensões crescentes no capitalismo
industrial.146
Até mesmo a análise de classes da “ideologia do trabalho livre” britânica está
ainda muito estruturada pelas linhas da clivagem de classes posteriores, em vez dos
conflitos e coalizões dos fins do século XVIII que produziram os avanços do
abolicionismo de massa e da abolição do tráfico de escravos. Esforços pioneiros na
história intelectual e nas teorias sobre a mudança cultural sofrem da falta dos
indicadores precisos da história social. Sem esses indicadores não é possível relacionar
abolicionismo com o desenvolvimento capitalista ou com qualquer outro
desenvolvimento fundamental. Com eles uma explicação baseada nas classes sob a
orientação da elite corre o risco de se estilhaçar dentro das variáveis não-econômicas e
do cruzamento das classes. Mas é difícil ver como a questão pode ser desenvolvida de
outra forma. Em The Antislavery debate, os participantes, minimamente munidos com
textos selecionados, atribuem uma ideologia de “classe” preponderante a todo o
abolicionismo, ou negam completamente o significado da percepção de classe. O debate
sobre capitalismo e abolicionismo nos alerta sobre a natureza problemática do ponto de
partida historiográfico original. É possível reiterar incansavelmente que “não foi
acidental que” a revolução industrial e o abolicionismo atingissem juntos a massa
crítica, ou que as vitórias iniciais britânicas coincidissem com uma ou outra crise
industrial. Mas a coincidência temporal é a mais fraca forma da inferência causal. Ela
pode ser uma tentação que nos faz entrar em um beco sem saída. The Antislavery
debate mostra apenas o quão sedutor tem sido a concepção de senso comum de que o
abolicionismo não pode estar “divorciado das amplas mudanças econômicas dos fins do
século XVIII” (p. 171, 289). O par certamente não está ainda vivendo feliz para sempre.
É possível correr o risco de profetizar que para que a ligação mantenha a sua fertilidade,

. Ver especialmente Temperley, “Capitalism”, p. 101-105; Drescher, Econocide, p. 170-183; Eltis,


146

Economic Growth, p. 3-28; Fogel; Engerman, Time on the Cross, cap. 6; Fogel, Without Consent, I, p. 64-
72, 84-107; Davis, Slavery and Human Progress, p. 234-240; e Davis, Problem of Slavery in Western
Culture, ed. rev. (New York, 1988), p. 153-164. Ao contrário do fenômeno mais comum dos levantes
escravos, os recursos humanos e materiais foram mais intensivamente mobilizados, tanto para a
escravidão quanto contra ela, dentro das áreas de fala inglesa do mundo atlântico.

116
ela deve gerar mais estudos empíricos e comparativos. Senão, ditos espirituosos teóricos
só irão aumentar o que Davis adequadamente denomina de riscos da abstração a-
histórica.

117
Capitalismo, escravidão e ideologia

Howard Temperley

(94) Ao longo dos anos, um bom número de estudiosos tem se ocupado da


tarefa de relacionar escravidão e capitalismo. Algumas das razões disso são
bastante óbvias. Do ponto de vista daqueles que estão preocupados com a
tendência dominante do desenvolvimento social e econômico ocidental, a
escravidão tende a aparecer como uma anomalia. Ela parece regressiva moral e
socialmente – um anacronismo, um retrocesso às crenças e práticas de outros
tempos. Todavia, há provas substanciais de que, como modo de produção, ela em
geral foi muito bem-sucedida, fornecendo produtos baratos bem como um nível
alto de lucros. Portanto, ela é um fenômeno extremamente difícil de categorizar,
uma estranha exceção às regras. Por esta razão, não somente historiadores, mas
teóricos econômicos e filósofos sociais têm se voltado para ela para ver como esta
instituição aberrante pode, ou ao menos supostamente, estar relacionada com o
padrão geral de desenvolvimento ocidental.
Não tenho a intenção de repassar todos os seus argumentos, mas gostaria de
começar observando alguns deles para ver quais métodos de abordagem
consideram-na como rentável e quais não o fazem. Proponho iniciarmos com o que
foi dito sobre as origens da escravidão, em parte porque isso nos permite avançar em
ordem cronológica, mas, principalmente, porque aqui há pelo menos um grande
consenso.
Para calcular o crescimento da escravidão no Novo Mundo, os historiadores
têm quase sempre chamado a atenção para o importante papel desempenhado
pelas forças do mercado. Eles explicaram que, em circunstâncias como as que
prevaleciam nas Américas, onde eram escassas as formas alternativas de trabalho,
os recursos abundantes, e havia mercados elásticos para as mercadorias ali
produzidas, os atrativos da escravidão eram muito fortes para serem ignorados. De
fato, muitas vezes esses motivos econômicos têm sido vistos de forma tão


Publicado originalmente em TEMPERLEY, Howard. Capitalism, Slavery and Ideology. In Past and
Present, n. 75, (May, 1977), p. 94-118. Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada na
Conferência Anglo-Americana de Historiadores, realizada na Universidade de Londres, em junho de
1975. Gostaria de agradecer a Roger Anstey, Michael Craton, Seymour Drescher e Stanley Engerman por
seus valiosos comentários àquela versão.

118
convincente que chegam a tornar supérflua qualquer explicação adicional. Dada a
escolha entre empregar escravos e labutar por longas horas em climas debilitantes
– ou, na verdade, em qualquer tipo de clima – os colonos geralmente preferiram os
escravos.147 Outros sugeriram que a explicação poderia não ser tão simples. Afinal,
nem toda sociedade é regida pelas, ou até mesmo particularmente (95) suscetível às
forças do mercado. Foi necessário um conjunto particular de pressupostos
culturais, juntamente com estruturas econômicas e sociais específicas, para fazer
os homens agirem de determinado modo. Então, para explicar o crescimento da
escravidão, esses historiadores foram hábeis em observar o surgimento,
primeiramente na Europa e depois – muitas vezes em formas mais claramente
definidas – nas Américas, de sociedades comprometidas com a exploração de uma
nova ideologia e de um novo modo de vida, baseados no que hoje chamamos de
capitalismo. O que era notável nesta nova forma de vida, nos dizem, era o seu
compromisso implacável com o cálculo racional, com vistas ao controle da
natureza e, acima de tudo, à busca do lucro. Portanto, não havia nada de
surpreendente no fato de que homens assim possuídos pelo espírito empreendedor,
encontrando-se em uma nova terra onde não havia outras formas de cultura
solidamente estabelecidas, se voltassem para a escravidão. Livres dos usos e
costumes tradicionais da Europa, eles adotaram novas instituições que lhes
pareciam convenientes às suas necessidades.148
Todavia, há objeções a este ponto de vista. Pode-se argumentar, por
exemplo, que os colonos americanos não eram tão uniformemente cruéis e egoístas
como aqui é sugerido. O espírito capitalista não foi o único presente da Europa
para as Américas. Sabemos que os colonos do Novo Mundo muitas vezes
chamavam a atenção por sua inquietude de manter os costumes do Velho Mundo,
assim como por sua vontade de libertarem-se deles. E havia limites para a
rapacidade, até mesmo para os colonizadores mais inclinados materialmente. De que

147
Essa explicação é apresentada na maioria dos livros padrões: ver, por exemplo, Samuel Eliot Morison,
Henry Steele Commager e William E. Leuchtenburg, The Growth of the American Republic, 6th edn., 2
vols. (New York, 1969), v. 1, p. 46; John Blum et al., The National Experience (New York, 1963), p. 50-
1; Harold F. Williamson, The Growth of the American Econonly, 2nd edn. (Englewood Cliffs, N.J., 1951),
p. 69.
148
Lewis Cecil Gray, History of Agriculture in the Southern United States to 1860, 2 vols. (Washington,
1933), v. 1, p. 303; Stanley Elkins, Slavery: A Problem in American Institutional and Intellectual Life
(Chicago, 1959), p. 43-52; C. Duncan Rice, The Rise and Fall of Black Slavery (London, 1975), p. 1, 44-
6, 61-2. Para um comentário perspicaz sobre o papel do “capitalismo” na colonização do Novo Mundo,
ver Lewis Mumford, The Huntan Prospect (Boston, 1955), p. 191-201.

119
outra maneira podemos explicar a distinção quase universal entre índios e africanos, que
eram considerados como suscetíveis de serem escravizados, e os europeus, que não o
eram? Todavia, mesmo quando consideramos essas objeções, e olhamos a
escravidão como uma empresa capitalista peculiar – uma resposta a circunstâncias
particulares baseada em cálculos de interesse indivídual – ela continua sendo
atraente. A escravidão pode ser socialmente regressiva, mas economicamente ela
fazia sentido.149
Entretanto, se considerarmos o crescimento da escravidão como decorrente
em grande parte das forças do mercado, como daremos conta de seu
desaparecimento? Bem, inicialmente, uma maneira seria considerar situações em
que haveria motivos econômicos (96) igualmente fortes para querer livrar-se dela.
Isso poderia acontecer no caso da oferta de trabalho ser superior à demanda a tal
ponto que a dificuldade e a despesa com a manutenção de uma força de trabalho
servil já não parecesse valer a pena. Ou poderia acontecer a situação oposta, onde
a necessidade de trabalho excedesse de tal modo a oferta que os empregadores
começassem a recrutar qualquer um, através do encorajamento dos fugitivos, ou,
alternativamente, se unissem em um ato geral de manumissão, na esperança de
atrair trabalho livre.150 Historicamente falando, existem muitos exemplos da
ocorrência de tais situações.151 Em geral, a dificuldade está no fato de que isso não
aconteceu nas Américas. É tentador especular se, com o passar do tempo, tais
situações não ocorreriam. As previsões modernas que, independentemente das
circunstâncias políticas, sugerem que os dias da escravidão estavam contados, estão
149
É claro que os europeus foram submetidos a várias formas mais brandas de escravidão, tais como a
servidão contratada, mas houve uma grande diferença entre estas e escravidão que, pelo menos nas
Américas, esteve estritamente limitada aos não-europeus. Todavia, é preciso salientar que mesmo os
historiadores que enfatizam os fatores raciais e culturais não negam a importância dos motivos
econômicos; ver, por exemplo, Winthrop D. Jordan, White Over Black: American Attitudes Towards the
Negro, 1550-1812 (Chapel Hill, N.C., 1968), p. 47
150
Stanley Engerman, “Some Considerations Relating to Property Rights in Man”, Jl. Econ. Hist., xxxiii
(1973), p. 43-65.
151
W. L. Westermann, The Slave Systems of Greek and Roman Antiquity (Philadelphia, 1955), p. 120;
Marc Bloch, “The Decline in Slavery”, in Cambridge Economic History of Europe, v. 1, 2nd ed.
(Cambridge, 1966), p. 246-53; Maurice Dobb, Studies in the Development of Capitalism (London, 1946),
p. 48-70. No caso de Cuba, a interrupção do tráfico de escravos americano após 1865 incentivou os
proprietários de escravos a liberar o seu capital para investir em máquinas que poupavam trabalho e em
coolies. Aparentemente, alterações semelhantes também estavam ocorrendo no Brasil. Todavia, em
ambos os casos, a transição do sistema de trabalho escravo para o livre foi acompanhada de agitação
política. Herbert S. Klein, Slavery in the Americas: A Comparative Study of Virginia and Cuba (Chicago,
1967), p. 256-8; Rice, op. cit., p. 370-5. Para o exemplo de uma transição pacífica, ocasionada pela
demanda de trabalho ultrapassando a oferta, ver Baron F. Duckham, “Serfdom in Eighteenth-Century
Scotland”, History, liv (1969), p. 178-97.

120
baseadas principalmente em cálculos desse tipo.152 Mas, para os propósitos atuais, este
não é o ponto. O fato é que, com poucas exceções notáveis, o que acabou com a
escravidão no Novo Mundo não foi o trabalho benévolo das forças econômicas – a mão
invisível de Adam Smith – mas a intervenção do estado.
Obviamente, isto não significa que as considerações econômicas não
desempenharam nenhum papel no processo. Todavia, tornou-se extremamente
difícil essa demonstração. Não só devemos primeiramente identificar os motivos
econômicos do ataque à escravidão, mas é preciso ainda mostrar como, na prática,
estes se traduziram em ações políticas e, finalmente, em leis legislativas específicas.
Isso também levanta, de modo extraordinariamente complicado, o problema de
distinguir entre os diferentes tipos de motivação. Como Roger Anstey mostrou
recentemente em relação à Lei de 1806, que abolia o tráfico de escravos britânico
para os territórios estrangeiros e conquistados, os humanitários (97) eram capazes
de ser tão desonestos quanto os seus adversários.153 (Deliberadamente, o que eles
fizeram nessa ocasião foi suprimir o lado do argumento moral da sua posição e
ressaltar o lado do interesse nacional.) Este não foi, de modo algum, um exemplo
isolado. Uma vez que a questão da escravidão deixou de ser um cálculo sobre
lucros e perdas e tornou-se uma luta sobre a política governamental, os
protagonistas, não surpreendentemente, começaram a usar quaisquer argumentos
que estivessem disponíveis. Qualquer pessoa familiarizada com os debates
concordaria que não é mais inusitado encontrar profissionais humanitários
utilizando argumentos econômicos do que encontrar os seus adversários utilizando
os humanitários.
Mas se não podemos decidir a questão simplesmente pela soma dos argumentos,
talvez possamos chegar a algum lugar ao identificar os grupos envolvidos. E o que
encontramos aqui, praticamente sem exceção, é que os principais defensores da
escravidão eram, de fato, os próprios donos de escravos. Em contrapartida,
aqueles que lideraram o ataque à escravidão eram quase invariavelmente homens
sem interesse econômico direto na instituição. Ao analisá-los, percebemos que uma

152
“Na ausência da Guerra Civil, a escravidão nos Estados Unidos poderia ter durado apenas mais alguns
anos. Pois, em um tempo relativamente curto, a industrialização e o aumento dos padrões de vida do
Norte, juntamente com a melhoria das comunicações, teria tornado cada vez mais difícil manter os
escravos nos campos”: John Kenneth Galbraith. The New Industrial State (Harmondsworth,1969), p. 142.
153
Roger Anstey, The Atlantic Slave Trade and British Abolition, 1760-1810 (London, 1975), p. 364-90.
Para outros exemplos de insinceridades políticas, ver Howard Temperley, British Antislavery, 1833-1870
(London; Columbia, S.C., 1972), p. 137-61, 176-82.

121
percentagem muito elevada destes eram quacres ou membros de outros grupos
religiosos que pregavam o exercício da benevolência desinteressada como um meio
de realizar as reformas sociais necessárias. E, se olharmos para as carreiras desses
indivíduos, seremos capazes de descobrir que, embora a escravidão constituísse
muitas vezes o seu principal interesse reformista, raramente ele era o único. Isto
ocorreu não apenas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, mas também na
França, na Dinamarca, na Holanda e até mesmo no Brasil. Normalmente, eles
pertenciam a redes interconectadas de organizações dedicadas à temperança, aos
direitos das mulheres, à reforma penal, à paz, à hidropatia – na verdade, para
beneficiar a humanidade em quase todas as formas imagináveis.154
Estes abolicionistas tinham poucas dúvidas quanto à natureza do contexto
em que estavam envolvidos. Era uma luta entre a moralidade e o interesse
econômico entrincheirado. Eles estavam agindo por motivos desinteressados, seus
adversários, os proprietários de escravos, por motivos de interesse próprio. Era tão
óbvio que não havia espaço para a discussão. E, em retrospecto, eles não viam
necessidade de discutir. O sucesso de seu movimento representou o triunfo de altos
princípios morais sobre os interesses limitados de grupos específicos. O David
moral havia matado o Golias econômico.155
(98) É fácil distinguir por que eles devem ter acreditado nisso. Também é
fácil distinguir por que, por tanto tempo, os historiadores estiveram preparados
para aceitar a essa explicação. Trata-se, de início, de uma explicação
admiravelmente simples. Ela também se encaixava notavelmente bem nos
pressupostos da escola Whig. Os interesses econômicos construíram os sistemas
escravistas; a aplicação dos princípios iluministas os destruíram.156
Todavia, essa explicação não está isenta de problemas. Afinal de contas, não
foram os abolicionistas que destruíram a escravidão, mas os seus governos. Mesmo
admitindo, como em geral é preciso, que os abolicionistas estavam agindo de acordo

154
Anstey, op. cit., p. 157-235; Temperley, op. cit., p. 66-84, 184-91; David Brion Davis, The Problem of
Slavery in Western Culture (Ithaca, N.Y., 1966), p. 291 ff.; G. H. Barnes, The Anti-Slavery Impulse,
1830-1844 (New York, 1933), p. 3-58; D. L. Dumond, Antislavery: The Crusade for Freedom in America
(Ann Arbor, 1961), p. 158-203.
155
Thomas Clarkson, A History of the Rise, Progress and Accomplishment of the Abolition of the African
Slave Trade, 2 vols. (London, 1808); W. P.; F. J. Garrison, William Lloyd Garrison, 1805-1879, 4 vols.
(New York, 1885-9).
156
Reginald Coupland, The British Anti-Slavery Movement (London, 1933), p. 111, 250-1; G. M.
Trevelyan, English Social History (London, 1942), p 495-7.

122
com as razões alegadas por eles próprios, isso não significa que aqueles que
controlavam os negócios desses governos estavam agindo pelos mesmos motivos.
As dúvidas sobre esse ponto são reforçadas quando olhamos para outras políticas
adotadas por estes organismos, que geralmente não se esqueciam da necessidade de
fomentar a atividade empresarial. Se a abolição da escravidão representou o triunfo
do coração sobre a cabeça, isto não representava a forma característica das
políticas geralmente adotadas por esses governos.
O paradoxo se aguça se olhamos para essas lutas numa perspectiva
histórica. Uma maneira de definir uma sociedade capitalista é dizer que ela é uma
sociedade em que as funções sociais comuns estão subordinadas às leis do mercado.
Julgadas por este padrão, as sociedades escravistas do Novo Mundo estão entre as
sociedades capitalistas mais completas de que temos registro. Não apenas o
trabalho era uma mercadoria, mas também os próprios trabalhadores. O que
precisa ser explicado é por que este sistema deveria ser atacado precisamente num
momento – a última parte do século XVIII – em que, como dissemos, a ética do
mercado estava emergindo triunfante e a própria sociedade ocidental como um
todo estava se tornando um apêndice do mercado.157 Além disso, se olhamos para
os países mais envolvidos, descobrimos que eram justamente eles que estavam na
vanguarda desta revolução capitalista. Ademais, era a classe média desses países
que estava liderando o ataque; em outras palavras, aqueles que são vistos como os
protagonistas da nascente economia de mercado.
Considerações como essas levaram, ao longo dos anos, a uma sucessão de
avaliações revisionistas. É verdade que estas não apresentaram, em geral, a questão em
termos tão globais. A ideia de que as lutas nacionais individuais constituíram, em certo
sentido, um contexto internacional de base ampla é, historiograficamente falando, um
desenvolvimento recente, embora a ideia de que isso (99) estivesse ocorrendo era
bastante familiar aos próprios participantes. Todavia, o fato de que eles escolheram
descrever a questão a partir de contextos nacionais e não internacionais não impediu os
revisionistas de extraírem conclusões gerais. Assim, já em 1903, temos o crítico
marxista norte-americano, A. M. Simons, colocando a questão em termos de economias
rivais buscando o predomínio:

157
Para uma descrição dessas mudanças, ver Karl Polanyi, The Great Transformation (New York, 1944),
p. 40-1, 71, 128-9, 133.

123
Por volta de 1850, começou a surgir uma classe, de âmbito nacional, compacta em sua organização, com
objetivos definidos e destinada, muito em breve, a tomar as rédeas do poder político. Esta era a classe
capitalista... Tão logo a classe capitalista tomou o governo nacional das mãos dos proprietários de
escravos não havia nada que eles [os proprietários de escravos] pudessem fazer, a não ser se separar. A
margem de lucros na escravidão já estava demasiada estreita para permitir a sua continuidade em
competição com a escravidão assalariada, a menos que os proprietários de escravos controlassem o
governo nacional. Por conseguinte, a Guerra Civil foi simplesmente um pretexto para assegurar a posse
do “grande porrete” do governo nacional.158

Uma geração mais tarde, Charles e Mary Beard apresentaram uma versão não-
marxista do argumento econômico, interpretando a luta contra a escravidão como um
conflito entre o industrialismo agressivo do Norte e o agrarianismo do Sul, que teve o
efeito bastante paradoxal de apresentar os senhores de escravos como se estivessem
lutando do lado da democracia:

... a pressão da massa capitalista em direção ao Sul... conspirou para assegurar o triunfo final do que os
oradores apreciavam chamar de “o sistema de trabalho livre”. Este impulso dinâmico era muito forte
diante de fazendeiros que atuavam num território limitado, lidando com uma força de trabalho
incompetente e num solo de fertilidade limitada. Aqueles que o acompanharam, exultantes com o triunfo
da indústria de máquinas que se aproximava, alertaram os fazendeiros sobre sua sujeição final.159

Provavelmente, devido ao fato da questão escravista não ser uma preocupação


central para os britânicos, demorou a ocorrer uma interpretação revisionista das lutas a
respeito da escravidão nas Índias Ocidentais, mas, quando finalmente ela apareceu, com
a publicação do Capitalismo e escravidão, de Eric Williams (1944), a sua mensagem
não foi menos enfática:

Os capitalistas primeiramente incentivaram a escravidão nas Índias Ocidentais e depois ajudaram a


destruí-la. Quando o capitalismo britânico dependia das Índias Ocidentais, eles ignoraram a escravidão ou
a defenderam. Quando o capitalismo britânico considerou o monopólio das Índias Ocidentais um
incômodo, eles destruíram a escravidão das Índias Ocidentais como um primeiro passo para a destruição
do monopólio das Índias Ocidentais.160


N. do T. No original, “big stick”. Esse termo foi empregado pelo presidente norte-americano Theodore
Roosevelt para descrever o estilo de diplomacia empregada como corolário da Doutrina Monroe, a qual
defendia a América para os americanos.
158
A. M. Simons, Class Struggles in America (New York, 1903), p. 62-7.
159
C. A.; M. R. Beard, The Rise of American Civilization, 2 vols. (New York, 1927), v. 2, p. 6-7.
160
Eric Williams, Capitalism and Slavery (Chapel Hill, N.C., 1944), p. 169.

124
Assim, sem rodeios, a tese de Williams era ainda mais simples do que a dos
tradicionalistas. Onde eles tinham visto dois elementos em conflito, os interesses
econômicos que apoiavam a escravidão nas Índias Ocidentais e os interesses
humanitários que a atacavam – ele viu apenas um. “Os vários interesses ocultos que
foram construídos pelo sistema escravista agora voltaram-se e destruíram esse sistema...
A ascensão e queda do mercantilismo é a ascensão e queda da escravidão”.161
(100) Considerando que estas análises referem-se a duas sociedades para as
quais a luta contra a escravidão tinha implicações muito diferentes, é notável quantas
características elas possuem em comum. Uma delas é o rebaixamento deliberado da
posição dos abolicionistas e dos humanitários da luta em geral. De acordo com Simons,
o republicano “nunca acusa a escravidão, mas sempre o Sul por querer predominar
separadamente”. De acordo com os Beards, o credo abolicionista contava com tão baixa
estima que: “Ninguém, além de agitadores, sob o desprezo dos estadistas imponentes da
época, nunca se atreveu a defendê-lo”. De acordo com Williams, a importância dos
abolicionistas tinha “sido muito mal interpretada e grosseiramente exagerada”.162
Em segundo lugar, eles estavam muito impressionados com o poder crescente
dos “novos interesses industriais”, que “alcançaram o vale do Mississipi”, a “estrutura
econômica da indústria de máquinas”, que “ultrapassou a agricultura”, o Gulliver de
Lancashire que os “liliputianos das Índias Ocidentais não conseguiram deter”. Em
contrapartida, eles consideravam os regimes escravistas como antiquados e em declínio.
Enquanto nos Estados Unidos a questão girava em torno da “margem de lucros”, da
“diminuição da fertilidade” e da “mão-de-obra incompetente”, nas Índias Ocidentais o
sistema tornara-se “tão inútil que só por isso a sua destruição era inevitável”.163
Todavia, apesar disso, nenhum dos três considerou o capitalismo industrial e a
escravidão como inerentemente antagônicos. As verdadeiras questões diziam respeito às
estradas de ferro, terras, recompensas, subsídios e, acima de tudo, tarifas. Basicamente,
foi uma luta entre a burguesia em ascensão e uma plantocracia em declínio. Caso tivesse
havido uma vontade, da parte dos proprietários de escravos, de conceder desde o início
aquilo que a burguesia queria, não havia nenhuma razão lógica para que não lhes fosse
161
Ibid., p. 136.
162
Simons, op. cit., p. 62-7; Beard, op. cit., p. 38; Williams, op. cit., p. 178. De fato, a escravidão era uma
das poucas questões a respeito das quais os republicanos estavam unidos. Ver Eric Foner, Free Soil, Free
Labor, Free Men: The Ideology of the Republican Party before the Civil War (New York, 1970), p. 304.
163
Simons, op. cit., p. 62-7; Beard, op. cit., p. 6-7; Williams, op. cit., p. 135.

125
permitido manter a sua instituição peculiar. Dos três, Williams é o que mais se
aproxima de atribuir um papel independente aos abolicionistas quando lhes imputa
“uma linguagem que as massas podiam entender”. Entretanto, mesmo aqui ele
categoricamente admite que os abolicionistas só foram bem-sucedidos graças “à
deserção dos capitalistas das fileiras dos proprietários e traficantes de escravos”.164
Protelando momentaneamente a questão principal, que consiste em saber
verdadeiramente o que essas lutas representaram, podemos notar que em pelos menos
um aspecto os revisionistas prevaleceram sobre os tradicionalistas, pois tentaram
relacionar a controvérsia a respeito da escravidão com o que eles consideravam ser os
principais desenvolvimentos econômicos do momento. Todavia, uma análise mais
aprofundada do caso acaba por apresentar-se muito menos impressionante do que (101)
a sua retórica sugere. Certamente, se alguém esperar uma explicação temporal para o
desaparecimento da escravidão irá se decepcionar. Por isso, no final, ficamos com
castanhas mais familiares – tarifas, recompensas e assim por diante. Muitos delas eram
questões menores e algumas nem representavam verdadeiros problemas.
Williams é particularmente vulnerável. Para ele, o grande problema era o
monopólio do açúcar das Índias Ocidentais. “Quando o capitalismo britânico considerou
o monopólio das Índias Ocidentais um incômodo, eles destruíram a escravidão das
Índias Ocidentais como um primeiro passo para a destruição do monopólio das Índias
Ocidentais”. Todavia, a evidência de Williams de que o monopólio era considerado
como um incômodo surge integralmente no período posterior à destruição da
escravidão. Nos debates sobre o projeto de emancipação, a questão do monopólio foi
levantada uma única vez, por E. G. Stanley, que efetivamente a introduziu para salientar
que as Índias Ocidentais não possuíam um monopólio efetivo:

A quantidade de açúcar importada anualmente para este país excede a demanda em aproximadamente
1.000.000 cwt., e a consequência necessária disso é que o monopólio é praticamente e de fato letra morta.
O preço em nossos mercados é determinado pelo preço que pode ser obtido pelo excedente no exterior.165

Esta foi uma declaração perfeitamente precisa a respeito da situação. No início


da década de 1830, os preços do açúcar no mercado londrino estavam mais baixos do
que em qualquer momento de que se tem notícia. A diferença entre os preços das Índias

164
Ibid., p. 136.
165
Hansard, 3rd ser., xvii, col. 1.210 (14 de maio de 1833).

126
Ocidentais britânicas e dos cubanos nunca ultrapassou mais do que alguns pontos
percentuais e, por vezes, como em 1829 e 1832, o artigo britânico estava realmente mais
barato. Os consumidores britânicos não tinham nenhuma razão de queixa. O monopólio
só se tornou um problema quando, como resultado da abolição, a produção caiu, as
vendas para o continente cessaram e os preços subiram. Por volta de 1841, os britânicos
pagavam pelo açúcar mais do que o dobro do preço do mercado mundial. Não foi o
ataque ao monopólio que levou ao ataque contra a escravidão, mas o ataque contra a
escravidão que levou ao ataque do monopólio.166
A alegação de que os capitalistas do Norte dos Estados Unidos consideravam a
influência política dos sulistas um incômodo não é fácil de descartar, uma vez que,
muito claramente, isso ocorria. Todavia, requer certo ato de fé, assim como um alto grau
de seletividade, sustentar que as tarifas, as melhorias internas e o preço das terras
ocidentais eram problemas maiores do que a escravidão, ou até mesmo as questões
fundamentais dos anos ante-bellum. E contra tal inconveniência, do mesmo modo que
os sofrimentos nortistas resultantes das políticas do Sul, também devem ser
consideradas as vantagens substanciais que eles obtiveram graças às suas relações com
o Sul, fato que os sulistas enfatizaram eloquentemente. Os manufatureiros de algodão
do Norte eram dependentes da agricultura de plantation sulista para a obtenção de suas
matérias-primas. (102) As casas financeiras de Nova Iorque investiam grande parte de
seu capital nos sulistas e recebiam sua remuneração em forma de juros. Os
transportadores da Nova Inglaterra levavam o algodão do Sul para as manufaturas da
Europa e do Norte dos Estados Unidos. De acordo com Jefferson Davis, o Norte estava
vivendo como um abutre sobre a prosperidade do Sul. Na lista de queixas do Sul contra
o Norte, a principal era a crença de que tudo o que este realizava de bom não tinha
conexão com o Sul.167
Entre as vantagens auferidas pelos nortistas estava o fato não menos importante
de estar conectado, como muitas vezes foi dito, a um sistema de agricultura altamente
lucrativo, o que garantiu aos Estados Unidos algo próximo a um monopólio (80%) da
produção mundial da matéria-prima algodão – um monopólio que se perdeu em

Return of the Quantities of Sugar Imported into the United Kingdom from 1800 to 1852, Parliamentary
166

Papers, 1852-3 (461), xcix, p. 567-9.


167
Thomas P. Kettell, Southern Wealth and Northern Profits (New York, 1860); Charles S. Sydnor, The
Development of Southern Sectionalism, 1819-1848 (Baton Rouge, 1948), p. 144-56, 177-221; Avery O.
Craven, The Growth of Southern Nationalism, 1848-1861 (Baton Rouge, 1953), p. 246-82. Para conhecer
os pontos de vista do Norte a respeito dessa questão, ver Philip S. Foner, Business and Slavery: The New
York Merchants and the Irrepressible Conflict (Chapel Hill, N.C., 1940).

127
decorrência da Guerra Civil e nunca foi recuperado totalmente. Embora os estudiosos
possam argumentar sobre a relação custo-eficiência deste sistema em comparação com a
agricultura do Norte, poucos hoje em dia duvidariam que o retorno sobre o investimento
era geralmente satisfatório, e muitas vezes mais do que satisfatório, para permanecer
economicamente viável. Pelo menos sobre este ponto, Fogel, Engerman e seus críticos
estão de acordo.168 Agora, se esses estudiosos estão corretos sobre a agricultura de
plantation norte-americana, o que acontecia com outros sistemas escravistas? Em um
estudo prestes a ser publicado sobre o comércio das Índias Ocidentais britânicas,
Seymour Drescher, da Universidade de Pittsburgh, argumenta que os historiadores têm
se equivocado demais ao supor que a importância das Índias Ocidentais para a
metrópole começou a declinar por volta da época da Revolução norte-americana.169
Utilizando números oficiais do comércio, ele demonstra que ocorreu completamente o
oposto. Longe de diminuir, o comércio com as Índias Ocidentais continuou a crescer até
1807 e até mesmo depois. Isso se refletiu tanto nos valores de importação quanto de
exportação e representou não apenas um crescimento absoluto no comércio das Índias
Ocidentais, mas um aumento relativo no comércio ultramarino britânico como um todo.
Em suma, toda a ideia de declínio das Índias Ocidentais é um mito, pelo menos como
tem sido aplicada para o período anterior a 1820. Drescher não estendeu (103) de forma
significativa o seu estudo para além dessa data. Todavia, usando seus dados
conjuntamente com os de D. Eltis sobre o tráfico de escravos intercolonial como um
todo, surge um novo quadro.170 Os problemas econômicos das Índias Ocidentais, quando
começaram a aparecer, não foram o resultado da fraqueza inerente e da ineficiência do
sistema escravista, mas de influências externas exercidas sobre ele. Especificamente,
eles foram as consequências do declínio de uma força de trabalho promovido pela
abolição do tráfico de escravos, em 1807, e da consequente imposição de restrições, que

168
Kenneth M. Stampp, The Peculiar Institution: Slavery in the Ante-Bellum South (New York, 1956), p.
383-418; Alfred H. Conrad; John R. Meyer, The Economics of Slavery and Other Studies in Econometric
History (Chicago, 1964), p. 43-92; Robert William Fogel; Stanley L. Engerman, Time on the Cross: The
Economics of American Negro Slavery, 2 vols. (Boston, 1974), v. 1, p. 59-70. Um bom guia sobre o
debate a respeito da rentabilidade escrava é Hugh G. J. Aitken, Did Slavery Pay: Readings in the
Economics of Black Slavery in the United States (Boston, 1971). Para um breve levantamento da questão
do custo-eficiência, ver Thomas L. Haskell, “The True & Tragical History of ‘Time on the Cross’”, New
York Review of Books, xxii (2 Oct. 1975), p. 33-9.
169
Seymour Drescher, A Case of Econocide: Economic Development and the Abolition of the British
Slave Trade (Pittsburgh, 1977). Sou extremamente grato ao professor Drescher por me permitir consultar
o manuscrito deste trabalho.
170
D. Eltis, “The Traffic in Slaves between the British West Indian Colonies, 1807-1833”, Econ. Hist.
Rev., xxx (1972), p. 55-64.

128
impediram os fazendeiros de transferir os escravos das colônias mais velhas para as
terras virgens de Trinidad e da Guiana. Em suma, começa-se a considerar o que teria
acontecido se os fazendeiros norte-americanos, tal como os fazendeiros britânicos,
tivessem a sua força de trabalho diminuída e fossem obrigados a limitar suas operações
à costa leste.
Prosseguindo na mesma linha de argumentação, podemos notar o quão
catastrófico foi a queda na produção de açúcar nas Índias Ocidentais nos anos
posteriores à emancipação. Esta queda não ocorreu imediatamente porque durante os
primeiros quatro anos, 1834-1838, os libertos foram empregados como aprendizes –
uma condição que, como os abolicionistas rapidamente apontaram, não diferia
essencialmente em nada da escravidão, com exceção de que as horas de trabalho foram
reduzidas um pouco. Durante esses quatro anos, a produção total de açúcar diminuiu
apenas 10%. Mas, a seguir, ela declinou de forma muito acentuada. Comparando a
produção dos anos de 1839-1846 com a produção de 1824-1833, a queda total atingiu
36%. Em algumas ilhas menores, onde não havia alternativa a não ser trabalhar nas
plantations, a queda foi menos acentuada do que nas colônias maiores. Em Barbados e
Antigua, na verdade a produção aumentou. Mas, na Jamaica, onde os libertos afastaram-
se para as montanhas, a produção caiu por volta de 50%.171
Se os estadistas britânicos foram surpreendidos por estes desenvolvimentos, eles
não tinham o direito de sê-lo. Ocorreu o que os fazendeiros tinham dito o tempo todo
que ocorreria. Uma vez que a disciplina da escravidão fosse removida, os negros
abandonariam o trabalho ou, na melhor das hipóteses, trabalhariam apenas de forma
intermitente. A consequência imediata disso foi o aumento do preço para os
consumidores britânicos e a queda no consumo real. Alexander Baring, chefe da casa
financeira Baring Brothers and Co., não tinha dúvidas de que o efeito da abolição:

duplicaria, ou melhor, triplicaria o preço do açúcar no mercado interno. Pergunto, eles estão preparados
para triplicar o preço do açúcar para o povo da Inglaterra? O país está preparado para pagar £6.000.000
anualmente pelo... prazer de realizar experimentos humanitários dispendiosos?172

(104) O mesmo ponto foi levantado por muitos outros oradores, incluindo Sir
Richard Vyvyan, Membro Parlamentar por Bristol, que passou a extrair a conclusão
171
P. D. Curtin, Two Jamaicas: The Role of Ideas in a Tropical Colony (Cambridge, Mass., 1955), p.
104-9
172
Hansard, 3rd ser., xviii, col. 493 (7 de junho de 1833).

129
óbvia: se no futuro, o povo britânico quisesse açúcar, ele teria que se dirigir para outro
lugar, “consequentemente recompensando o trabalho escravo das colônias estrangeiras,
tais como os Brasis e as ilhas espanholas”.173 Na Casa dos Lordes, o duque de
Wellington expressou-se com a sua franqueza característica:

É impossível não perceber os graves males da emancipação imediata... Se o comércio das Índias
Ocidentais for abandonado, de onde poderemos obter açúcar? Somente das colônias escravistas, que,
neste momento, persistem no tráfico de escravos... Parece que estamos dispostos a sacrificar escravos e
senhores, e as colônias a perderem £7.000.000 de receita. Ainda que tal conduta pareça pouco, em tudo é
melhor que a insanidade.174

O que é tão surpreendente na leitura dos debates de 1833, e o mesmo se aplica


aos debates de 1806-7 sobre o tráfico de escravos, é como muitas vezes os adversários
da abolição, na ocasião, estavam providos de razão. Seguramente, algumas de suas
alegações mais alarmistas erraram o alvo. Os negros não se rebelaram como em Santo
Domingo. Mas, tratando especificamente das consequências econômicas das políticas
governamentais, os acontecimentos frequentemente corroboraram seus pontos de vista.
A retirada britânica levou a um aumento no tráfico de escravos estrangeiro para as
colônias dos rivais da Grã-Bretanha, o que os beneficiou; a abolição da escravatura
levou a uma drástica queda na produção, os preços aumentaram, o consumo declinou, e,
no final, a Grã-Bretanha, apesar dos protestos vigorosos dos abolicionistas, voltou-se
para Cuba e Brasil, cujas importações de escravos da África, consequentemente,
aumentaram.175
Não é possível atribuir exatamente o mesmo grau de perspicácia aos
proprietários de escravos norte-americanos uma vez que a abolição resultou da guerra e
não da deliberação. Todavia, a ideia de que o problema da escravidão, uma vez
considerado e estimulado o suficiente, levaria à guerra era comumente defendido por
homens de todos os setores.176 Também encontramos, por exemplo, nas respostas do Sul

173
Ibid., col. 123 (30 de maio de 1833).
174
Ibid., 3rd ser., xvii, col. 838 (2 de maio de 1833).
175
Temperley, British Antislavery, p. 43-9, 137-67, 270; W. L. Mathieson, Great Britain and the Slave
Trade, 1839-1865 (London, 1929), p. 1-27, 75-113; Christopher Lloyd, The Navy and the Slave Trade:
The Suppression of the African Slave Trade in the Nineteenth Century (London, 1949), v. 1, p. 24-7, 101-
3; P. D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census (Madison, 1969), p. 31-49, 231-64, 265-73.
176
Lorman Ratner, Powder Keg: Northern Opposition to the Anti-Slavery Movement, 1831-1840 (New
York, 1968), p. 35-64; Sydnor, Development of Southern Sectionalism, p. 130-2; John Hope Franklin, The
Militant South (Cambridge, Mass., 1956), passim.

130
à emancipação das Índias Ocidentais, relatos sobre o que poderia acontecer por lá caso
medidas semelhantes fossem aplicadas. E eles estão muito próximo do que realmente
aconteceu. Em 1848, uma comissão de congressistas do Sul retratou um Sul quebrado e
empobrecido, governado por uma aliança de (105) radicais do Norte e negros libertos.177
Ao todo, a questão da escravidão teve implicações muito mais catastróficas para os
norte-americanos do que poderia ser concebível aos britânicos.
Então, nos perguntamos por que homens responsáveis, homens que defendiam
os principais interesses econômicos e políticos de sua nação acompanharam os
abolicionistas. Os argumentos econômicos para atacar a escravidão eram, como vimos,
notavelmente frágeis. Longe de estar próxima ao colapso, a situação econômica parecia
mais robusta e saudável do que nunca. Os historiadores econômicos, assim,
efetivamente removeram uma perna do argumento revisionista. A outra perna, a noção
de que o capitalismo industrial de alguma forma era hostil à escravidão, nunca
convenceu muito, uma vez que os revisionistas estavam propensos a exagerar a
extensão em que os interesses estariam em conflito, ignorando o grau em que eles
mutuamente se auxiliavam. A intenção das minhas observações até agora tem sido a de
sugerir que eles entraram surpreendentemente pouco em conflito e que, através do
fornecimento de matérias-primas baratas, a escravidão, na verdade, serviu muito bem à
indústria. Então, o que pode ter sucedido com o Parlamento e o Congresso?
Uma possível explicação é que os tradicionalistas estavam certos o tempo todo e
que a abolição não tinha nada a ver com a economia, exceto na medida em que o
interesse econômico era um fator a ser superado. Todavia, se essa explicação for
correta, ela aponta para outras conclusões que são, para dizer o mínimo, um pouco
estranhas. Aqui nós temos um sistema – um sistema altamente bem-sucedido – de
agricultura capitalista em grande escala, de produção de matérias-primas em grande
quantidade para a venda em mercados distantes, que crescia num momento em que a
maioria da produção ainda era de pequena escala e estava projetada para atender às
necessidades dos consumidores locais. Mas, precisamente no momento em que as ideias
capitalistas estavam em ascensão, e a produção em larga escala de todos os tipos de
mercadorias estava começando, vemos este sistema ser desmantelado. Como isso pode
ocorrer sem que o “capitalismo” tivesse alguma responsabilidade? Se o nosso raciocínio

177
Thomas Hart Benton, Thirty Years View: or, A History of the Working of the American Government…,
1820-1850, 2 vols. (New York, 1857), v. 1, p. 734-5.

131
leva à conclusão de que o “capitalismo” não tinha nada a ver com isso, há boa
probabilidade de que há algo errado com o nosso raciocínio.
De fato, isso pode ser verdade. Se olharmos para a discussão precedente
veremos que até agora, tal como os revisionistas, utilizei os termos “capitalismo” e
“interesse econômico” como se fossem intercambiáveis. Ainda que esteja bem
fundamentado, certamente não é a única maneira de definir o capitalismo. A palavra em
si não entra no vocabulário inglês até a década de 1850, tanto que não temos quaisquer
usos contemporâneos aos quais possamos nos remeter. Contudo, desde então, ela
adquiriu uma grande variedade de significados. Muitas vezes ela é aplicada a qualquer
sociedade moderna que não seja enfaticamente socialista. Num comentário recente
(106) ao The Country and the City, de Raymond Williams, E. P. Thompson foi ainda
mais longe, argumentando que, ao longo dos últimos quatro séculos:

O capitalismo, como o pecado, está sempre presente; e se os trabalhadores do campo podem escapar do
chicote do moralista, uma vez que, em última análise, eles são sempre os explorados, todas as outras
classes, e sua cultura, tornaram-se de alguma forma contaminadas por sua associação aberta ou encoberta
com o pecado.178

Todavia, de um modo geral, o termo é usado de uma forma mais limitada. Em


primeiro lugar, ele é comumente usado para descrever o funcionamento de uma
economia de livre mercado – comprar na baixa, vender na alta, investimento de capital
privado e aplicação onde quer que possa produzir maior lucro. Em segundo lugar, ele é
usado para descrever a ideologia ou o sistema de crenças daqueles que acreditam no
estímulo de tais atividades. Associado a isso, nós comumente encontramos noções sobre
governo mínimo, um sistema universal de direito, a promoção do auto-interesse
individual e a remoção, tanto quanto a manutenção adequada da ordem social o permita,
de todas as restrições que possam impedir os homens de beneficiarem a si próprios e,
incidentalmente, de beneficiar a sociedade, por meio da livre utilização do seu capital e
do seu trabalho. Finalmente, o capitalismo é um termo usado para descrever o tipo de
sociedade que, aos olhos dos seus críticos, essas crenças e práticas realmente
produziram – a escravidão assalariada, o desemprego, a lógica do dinheiro como o
árbitro final nos assuntos humanos, a subordinação cruel de algumas classes a outras.

178
New York Review of Books, xxii (6 de fevereiro de 1975), p. 36.

132
Se pretendemos investigar a fundo a questão do capitalismo e da escravidão,
obviamente o primeiro passo é determinar qual destas definições estamos utilizando.
Até agora usei apenas a primeira, a versão da economia de livre mercado. Mas se
olharmos para a segunda, e penso que é legítimo considerar o capitalismo como uma
ideologia, surge uma nova gama de possibilidades.179
Obviamente, as obras dos economistas clássicos são o melhor local para
comerçarmos. Eles, afinal, foram os teóricos do capitalismo. Não quero dizer que eles o
inventaram, o que produziu o capitalismo foi a marcha dos acontecimentos. O que os
economistas fizeram foi descrever e, em certo sentido, legitimar algo que já vinha
acontecendo há muito tempo. Para os propósitos atuais, interessa-nos conhecer mais
sobre o que eles refletiram (107) do que propriamente sobre o que ensinaram, embora a
longo prazo isso também seja importante.
E uma coisa sobre a qual refletiram foi a hostilidade generalizada em relação à
escravidão. De acordo com Adam Smith: “A experiência de todas as épocas e nações...
demonstra que o trabalho realizado por escravos, embora pareça custar apenas a sua
manutenção, no final é o mais caro de todos”.180 Obviamente, isto é falso. A não ser que
imaginemos alguma outra forma de trabalho que, dadas as circunstâncias, não estava
disponível nem em perspectiva. Assim, a afirmação de Smith não só está em desacordo
com o que a erudição moderna revelou sobre a escravidão dos negros – e,
incidentalmente, sobre outros sistemas mais recentes de trabalho coercivo181 –, mas está
em desacordo com fatos perfeitamente bem conhecidos na época em que ele estava
escrevendo. Então, o que pode tê-lo levado a fazer tal afirmação?
Se olhamos para a prova apresentada por ele, algo fica imediatamente claro: ela
não se baseia em qualquer tipo de análise de custos. Isto é surpreendente, pois em outras

179
Algumas dessas estão descritas em David Brion Davis, The Problem of Slavery in the Age of
Revolution, 1770-1823 (Ithaca, N.Y., 1975). Na sequência do seu O problema da escravidão na cultura
ocidental, este é, de longe, o melhor relato das origens intelectuais do movimento antiescravista. Contudo,
parece que Davis não está completamente certo sobre qual definição de capitalismo ele está usando. Em
sua exposição precisa e brilhante dos pontos de vista dos pensadores individuais, muitos dos quais eram
altamente idiossincráticos, ele está claramente usando a segunda versão. Mas, na medida em que ele
aceita a noção de “hegemonia da classe”, de Antonio Gramsci, e considera a preocupação britânica em
relação à escravidão como uma culpa inconsciente despertada pelas condições do trabalho na metrópole
(que ele vê como sendo “psicologicamente deslocada diante da preocupação com o ‘escravo infeliz’”), ele
está usando a terceira versão, ou a marxista. Como todas as teorias que dependem fortemente de
inferência psicológica, estas são difíceis tanto de provar quanto de refutar. Davis, The Problem of Slavery
in the Age of Revolution, p. 254, 348-50, 361-2, 366, 384, 421.
180
Adam Smith, The Wealth of Nations, ed. Edwin Cannan, 2 vols. (London, 1904), v. 1, p. 364.
181
Ver, por exemplo, Edward L. Homze, Foreign Labour in Nazi Germany (Princeton, 1967), p. 262-3,
308-9.

133
passagens d’A Riqueza das Nações ele se mostra perfeitamente capaz de avaliar lucros e
perdas. A prova que ele realmente cita é de dois tipos. Primeiro, ele fornece uma série
de referências bastante vagas sobre Rússia, Polônia, Hungria, Bohemia, Moravia, sobre
a Grécia e Roma antigas, e sobre a Europa medieval, bem como para as Índias
Ocidentais britânicas e as colônias norte-americanas. Para um estudioso do século
XVIII isso não é surpreendente. Todavia, o mais curioso é a forma como ele reúne todos
esses sistemas num conjunto, como se fossem a mesma coisa. Para que não haja
dúvidas, ele diz que o cultivo do cana-de-açúcar e do tabaco poderia ser rentável. Mas
eles são rentáveis somente por causa do valor intrínseco do produto, e não como alguém
que encontrou uma montanha de ouro e que para obter lucro precisa cavá-lo, embora só
empregue octogenários. Em nenhum outro lugar há qualquer indicação de que ele
distinga em seu próprio pensamento entre os sistemas capitalistas em expansão das
Américas e os sistemas feudais ainda existentes em grande parte da Europa do Leste.
O segundo tipo de prova que ele menciona ajuda a explicar por que ele não
conseguiu fazer essa distinção. O trabalho escravo era caro porque:

Uma pessoa que não pode adquirir qualquer propriedade, não pode ter outro interesse senão o de comer o
mais que puder e o de trabalhar o menos possível. Qualquer outro trabalho que ela realize além do
suficiente para comprar a sua própria manutenção, só pode ser extraído dela pela violência e não por
qualquer interesse próprio.182

Esta é uma teoria geral da motivação humana, e ajuda muito a explicar por que
os economistas clássicos eram hostis à escravidão. Na verdade, ela é completamente
equivocada. Havia muitas razões pelas quais os escravos deveriam (108) trabalhar,
além da aplicação de formas externas de coerção. Em grande parte, elas eram as
mesmas razões pelas quais as pessoas trabalham em qualquer sistema – uma
ambição de elevar-se perante sua própria estima e em relação aos outros e um
desejo de obter algum benefício que, sob a forma de recompensa material ou
status, o sistema permitisse. Sob a escravidão, os benefícios aos quais seria razoável
esperar podiam ser muito severamente circunscritos, mas eles existiam claramente.
Além disso, o fato de que as recompensas eram limitadas não significava que os
homens não competissem com entusiasmo – ou desesperadamente – por elas. Adam
Smith ignora tudo isso. Como alternativa, ele nos fornece uma teoria grosseira que

182
Smith, op. cit., v. 1, p. 364

134
destaca um fator, o desejo de adquirir propriedade, como o principal motivo para o
trabalho.
Todavia, era uma teoria sobre a qual, especialmente devido à sua ênfase na
propriedade, os pensadores econômicos do século XVIII e do início do século XIX
atribuíram muita importância. Entretanto, isto não explica totalmente por que, com a
evidência das fortunas dos fazendeiros, eles acabaram aceitando tal noção. Afinal, não
havia lei que dissesse que o tabaco e o açúcar deveriam ser produzidos por escravos. Se
eles pudessem ter sido produzidos de forma mais barata pelo trabalho livre, então,
presumivelmente, alguém teria definido como fazê-lo. Por que isso não foi levado em
consideração?
A explicação reside na suposição dos economistas clássicos de que a liberdade e
a prosperidade andavam de mãos dadas. Essa feliz conjunção existiu porque as
condições mais favoráveis para a criação de riqueza foram as que deram aos homens a
maior liberdade para investir suas energias nas atividades em que obtinham as maiores
retribuições e que, uma vez alcançadas, lhes permitiam a maior segurança no gozo
dessas retribuições:

O esforço natural de cada indivíduo para melhorar suas próprias condições, quando lhe é permitido
exercê-lo com liberdade e segurança, é um princípio tão poderoso, que por si só, e sem qualquer
assistência, não só é capaz de levar a sociedade à riqueza e à prosperidade, mas de superar uma centena
de obstruções impertinentes com as quais a estupidez das leis humanas com tanta frequência estorva suas
ações.183

Esta tinha sido a experiência britânica. Beneficiando-se em grande medida de


uma liberdade maior do que outros povos, eles também tinham atingido um grau mais
elevado de riqueza. Esta também tinha sido a experiência dos colonos norte-americanos
vindos da Grã-Bretanha que, sendo mais livres para seguir seu próprio caminho, no
devido tempo superaram seus rivais franceses, espanhóis e portugueses. E ao longo da
história também tinha sido a experiência de outras nações que, ao encorajar a iniciativa
e prover a segurança, viram a sua prosperidade material aumentar. As mesmas leis que
regiam os assuntos das nações também foram aplicadas às iniciativas individuais.
Quanto maior a liberdade concedida, maior a probabilidade de sucesso. Embora a
escravidão fosse a forma mais cara de trabalho, sua (109) despesa diminuía à medida
em que eram concedidos aos escravos os privilégios dos servos livres. Assim, a
183
Ibid., v. 2, p. 43.

135
hostilidade de Smith à escravidão era uma extensão natural de sua crença geral na
liberdade econômica, nos efeitos benéficos do que podia ser observado em todos os
níveis, em todas as sociedades.184
Não foi difícil para os abolicionistas utilizarem essas noções de forma polêmica.
Embora eles rejeitassem a crença de que era o interesse individual, em vez da
benevolência, que fazia os homens trabalharem em benefício dos outros, eles se
serviram de modo conveniente do novo pensamento econômico. Eles também ficaram
impressionados com a crescente prosperidade da Inglaterra. Quaisquer que fossem os
sofrimentos dos pobres da Inglaterra, eles dificilmente poderiam ser comparados com os
ocasionados pela escravidão. De acordo com James Stephen, em Dangers of the
Country, um trabalho especificamente concebido para promover o apoio parlamentar ao
projeto de lei de abolição geral de 1807, o tratamento que a Grã-Bretanha dispensava
aos negros era intolerável porque:

Por nossa abundância, damos-lhes miséria; por nossa comodidade, labuta intolerável; por nossa riqueza,
privação do direito de propriedade; por nossas leis iguais, a violência desenfreada e injusta. A ciência
brilha sobre nós do alto do seu esplendor; contudo, mantemos estas criaturas, que são nossos
companheiros, degradadas nas sombras mais escuras da ignorância e da barbárie. A moral e os costumes
têm felizmente nos distinguido das outras nações da Europa; mas criamos e estimulamos nos outros dois
quartos do globo uma depravação sem precedente de ambos.185

Que os britânicos gozassem de tal fortuna não significava que ela não estivesse
relacionada com o fato de que eles possuíam o que, anteriormente, na mesma passagem,
ele descreveu como uma “porção sem precedentes de liberdade civil”. No passado, os
britânicos também haviam definhado na pobreza sob regimes tiranos, mas felizmente
esses dias passaram. A liberdade e, com ela, a riqueza e a felicidade haviam
prevalecido.
Isso foi exatamente o que Adam Smith havia dito. Era também a mensagem que,
debate após debate, os abolicionistas martelavam na casa. Liberdade significava
prosperidade; liberdade significava progresso; liberdade significava ter trabalhadores
dispostos e não com má vontade. Com a abolição do tráfico de escravos, os fazendeiros
não tratariam os seus escravos como dispensáveis, e seriam compelidos a se comportar
de forma mais humana; isto, por sua vez, aumentaria a produção de modo que, etapa
184
Ibid., p. 73, 88.
185
James Stephen, The Dangers of the Country (London, 1807), p. 195.

136
após etapa, a cada aumento de liberalidade seguir-se-iam rendimentos maiores e, aos
poucos, finalmente, ocorreria a emancipação completa.186 Escusado será dizer que nada
disso aconteceu.

Se alguém duvidava disso, então que olhasse para a Grã-Bretanha. Se alguém


duvidava que os negros trabalhariam, que observasse a experiência britânica para ver
como o amor pela riqueza tornou-se “cada vez mais intenso à medida em que
aumentava a posse de propriedades”. A liberdade consistia em incentivá-los a adquirir
conhecimentos, que estimulariam novas necessidades materiais (incluindo um desejo
pelas manufaturas britânicas) e assim seriam estimulados a um esforço maior. No
devido tempo, “todas as artes e elegâncias da vida progressivamente substituiriam os
rudes materiais agora em uso entre eles”.187
TEMPERLEY, Howard. Capitalism, Slavery and Ideology. In Past and Present, n. 75, (May,
1977), p. 94-118.
Vários oradores, incluindo alguns que não mantinham relação com o lobby das
Índias Ocidentais, consideraram esse pensamento com inquietação. Em auxílio a estes,
os abolicionistas não hesitaram em empregar outra arma extraída do arsenal dos
economistas clássicos. “Se o negro tornar-se um ocioso”, declarou Daniel O’Connell,
“deixemo-lo compartilhar o destino do ocioso – deixemo-lo perecer”.188
É notável a persistência dessas crenças, a despeito do acúmulo de evidências da
capacidade dos libertos de se afastarem do seu trabalho sem perecer. Do ponto de vista
dos abolicionistas, os fatos dificilmente poderiam ter sido mais embaraçosos. Todavia, o
que particularmente os desconcertou diz respeito a outras duas questões. Uma delas era
o plano de tornar as Índias Ocidentais uma peça do mostruário filantrópico, a fim de
persuadir outros países – e, em particular, os Estados Unidos – a seguir o exemplo da
Grã-Bretanha. Os abolicionistas norte-americanos exigiam continuamente a garantia de
que a emancipação estava se provando um sucesso.189 Todavia, agora que o açúcar das
Índias Ocidentais britânicas estava se tornando proibitivamente caro, umas das maiores
186
Clarkson, History of the Abolition of the Slave Trade, v. 1, p. 284-6.
187
Ibid.,cols. 476, 482 (7 de junho de 1833).
188
Ibid.,col. 314 (3 de junho de 1833).
189
Temperley, British Antislavery, p. 114-19. Quando os abolicionistas fracassaram em oferecer novas
garantias aos abolicionistas norte-americanos, eles não hesitaram em inventar evidências para provar que
a emancipação era um sucesso. Ver Ralph Waldo Emerson, An Address Delivered in the Court House in
Concord, Massachusetts, on the 1st August, 1844, on the Anniversary of the Emancipation of the Negroes
in the British West Indies (Boston, 1844), p. 4, 30; William Lloyd Garrison, West Indian Emancipation. A
Speech Delivered in Abingdon, Massachusetts, on the First Day of August 1854 (Boston, 1854), p. 40.

137
preocupações era a crescente demanda no país pela variedade cubana e brasileira, mais
barata. Isso era algo a que o Comitê de Londres se opunha, devido às suas implicações
no tráfico de escravos do Atlântico. Como resultado, choveram cartas no escritório dos
correspondentes querendo saber por que, em vez do trabalho livre expulsar o trabalho
escravo do mercado, estava ocorrendo exatamente o oposto. Descobriu-se que muitas
delas eram de apoiadores provinciais (111) que realmente acreditaram que à
emancipação prontamente se seguiria um enorme aumento na produção. Entretanto,
apesar das evidências, o Comitê de Londres nunca abandonou sua crença na maior
eficácia do trabalho livre. Inicialmente, ele atribuiu o declínio na produção de açúcar às
más condições meteorológicas; mais tarde, quando as condições meteorológicas
melhoraram, atribuiu aos reajustamentos necessários, à gestão incompetente, aos solos
esgotados e a outras circunstâncias excepcionais.190 Suspeita-se que, ainda que a
produção principal tivesse cessado por completo, tal fato não teria influenciado uma
reflexão sobre a proposição geral de que o trabalho livre era mais eficiente que o
trabalho escravo.
Que o público britânico não tinha perdido a fé nessa proposição é sugerido pela
recepção entusiástica dada ao The Slave Power: Its Character, Career, and Probable
Designs, de J. E. Cairnes, publicado pela primeira vez em 1862. O professor Cairnes foi
um economista da escola clássica e um discípulo de John Stuart Mill, a quem ele
dedicou a sua obra. Embora o despertar do interesse popular deveu-se muito à sua
atualidade, este não foi o aspecto que mais impressionou os comentadores. “Ao escolher
o tema da escravidão norte-americana”, ele escreveu em seu prefácio, “fui influenciado,
em primeiro lugar por considerações de natureza puramente especulativa – o meu
objetivo consistia em mostrar que o curso da história é amplamente determinado pela
ação das forças econômicas”.191 Todavia, o mais interessante é o relato do seu método,
não tanto pelo que ele apresenta sobre suas próprias atitudes, como pelo que revela
sobre a tradição acadêmica que ele representava:

O anatomista comparativo, raciocinando sobre as relações fixas entre as diferentes partes do esqueleto
animal que sua ciência lhe revela, é capaz a partir de um fragmento de um dente ou osso determinar a
forma, as dimensões e os hábitos da criatura à qual ele pertencia; e não com menos precisão, parece-me,
um economista político pode, por meio do raciocínio sobre o caráter econômico da escravidão e sua

190
Temperley, op. cit., p. 148.
191
John Elliot Cairnes, The Slave Power: Its Character, Career, and Probable Designs: Being an Attempt
to Explain the Real Issues Involved in the American Contest, 2nd edn. (London,1863), p. vii.

138
ligação peculiar com o solo, deduzir seus principais atributos sociais e políticos, e quase construir, por
meio de um argumento a priori, o sistema completo da sociedade que ela fundou.192

Não há nenhuma razão para supor que os contemporâneos considerassem esta


afirmação como extraordinária. Eles viram seu autor como – e de fato ele era – um
estudioso inteligente e erudito, bem versado na literatura de seu tema, e, assim,
excepcionalmente bem preparado para apresentar uma opinião fundamentada. Não
parece ter ocorrido a nenhum dos comentadores que, dado o seu método, o resultado do
seu trabalho obrigatoriamente não seria real, mas ficcional.193
(112) Embora o retrato do Sul apresentado em The Slave Power tenha pouca
relação com a realidade, ele é, no entanto, uma descrição muito precisa do que, de
acordo com os preceitos da escola clássica, o Sul deveria ter sido. Ao sul da Linha
Mason Dixon há uma vasta região, pouco povoada, de solos esgotados e habitações
abandonadas. Havia uma pequena oligarquia de fazendeiros que mantinha sua
influência sobre ela por meio do controle da única força de trabalho disponível, que era
composta por escravos. Todavia, como o trabalho era extraído pela coerção, ele era
relutante, não qualificado e menos versátil. Enquanto isso, a grande massa da população
do Sul, a escória branca, que chegava a quase quatro milhões, constituía “uma horda
promíscua, que, sendo pobre demais para manter os escravos e orgulhosa demais para
trabalhar, prefere levar uma vida precária e vadia no deserto a se engajar em ocupações
que possam associá-la aos escravos que tanto desprezam”. De certo modo, embora
representassem um embaraço para os fazendeiros, esses brancos pobres eram um
instrumento que, em tempos de conflito, poderiam ser utilizados para promover sua
ambição.194
O que pode ser dito sobre esse relato é que ele é internamente consistente e
admiravelmente bem-construído. Ele também foi muito ordenadamente ajustado às
pressuposições de seus leitores e, por essa razão conquistou elogios. Harriet Martineau
“concordando quase integralmente com todas as linhas deste volume”, alegou que “a
nossa maneira de ver os fatos é mais parecida com a ação de uma única mente e não de
192
Ibid., p. 69.
Para uma discussão da resposta à obra de Cairnes, ver A. N. J. den Hollander, “Countries Far Away –
193

Cognition at a Distance”, Comparative Studies in Society and History, ix (1967), p. 364, e Adelaide
Weinberg, John Elliot Cairnes and the American Civil War: A Study in Anglo-American Relations
(London, [1970]),p. 32-56.
194
Cairnes, op. cit., p. 44, 81-3, 95-8. Na primeira edição, a população considerada como “escória branca”
havia sido calculada em cinco milhões, mas em resposta aos críticos norte-americanos, ele a reduziu na
segunda edição para quatro milhões: den Hollander, op. cit., p. 366.

139
duas”. Na perspectiva de Stanley Jevons ele era um “fragmento de raciocínio quase ou
completamente irrefutável”. The Economist descreveu-o como “magistral” e destacou
para especial louvor “seu instinto discriminativo, que organiza os diferentes elementos
do assunto, por uma espécie de perspectiva natural em suas verdadeiras proporções e
relações mútuas”. O Spectator também descreveu o trabalho como “magistral”; a
National Review como “uma análise compacta e verdadeira”; o Northern Whig como
“uma contribuição permanente para a ciência econômica”.195 Quando houve críticas
adversas, elas se referiam mais a detalhes do que ao método do autor ou à sua avaliação
geral.196 Um dos admiradores não menos importantes de Cairnes foi Karl Marx, cujo
próprio ponto de vista sobre o Sul, expresso em seus artigos para o New York Daily
Tribune, o Vienna Presse, e em suas cartas a Engels, estava perfeitamente de acordo
com o delineado por Cairnes.197 Durante o (113) restante de sua vida, ele continuou a
citar The Slave Power como a principal autoridade em todos os assuntos relacionados à
escravidão norte-americana.198
Não é de surpreender que The Slave Power também foi bem recebido no Norte
dos Estados Unidos, embora tenha causado menos rebuliço por lá, uma vez que os
norte-americanos já estavam familiarizados com a maioria dos argumentos que ele
apresentava. De fato, havia muito pouco em Cairnes que já não tivesse sido ouvido
muitas vezes no Congresso ou nas tribunas políticas. Na verdade, em grande parte, ele
estava meramente repetindo o que veio a ser considerado como parte da ideologia
oficial do Partido Republicano, embora muitas das ideias que ele englobava possam ser
rastreadas até os federalistas do início do século.

195
Estes e outros comentários podem ser encontrados em den Hollander, op. cit., p. 364, e Weinberg, op.
cit., p. 32, 39-41. Para uma análise recente dos pontos de vista econômicos de Cairnes, ver Fogel;
Engerman, Time on the Cross, v.1, p. 181-90.
196
den Hollander, op; cit., p. 364
197
“... o número de proprietários de escravos reais no Sul da União não chega a mais de trezentos mil,
uma oligarquia estreita que se confronta com muitos milhões dos chamados brancos pobres, cujo número
cresceu constantemente graças à concentração da propriedade da terra e cuja condição somente pode ser
comparada com a da plebe romana no período do extremo declínio de Roma”: artigo para o Vienna
Presse, 20 de outubro de 1861, in Karl Marx; Frederick Engels, The Civil War in the United States, 3rd
edn. (New York, 1961), p. 68-9. Marx também tinha a impressão de que o Sul era “uma oligarquia, onde
todo o trabalho produtivo recaía sobre os negros e os quatro milhões da “escória branca” são flibusteiros
por profissão”: Marx to Engels, 10 de setembro de 1862, in ibid., p. 255. Ao contrário de muitos
marxistas posteriores, Marx não tinha dúvida de que a Guerra Civil era “no verdadeiro sentido da palavra,
uma guerra de conquista para a extensão e a perpetuação da escravidão”. Ele via o Norte responder “com
relutância, sonolência, como era de se esperar devido ao seu maior desenvolvimento industrial e
comercial”: ibid., p. 79, 165.
198
Karl Marx, Capital, 3 vols. (London, 1970 edn.), v. 1, p. 191, 254, 314, e v. 3, p. 376.

140
Como Eric Foner recentemente mostrou, a ideologia republicana era
verdadeiramente produto da cultura do Norte, ou seja, de uma sociedade composta por
fazendeiros e pequenos empresários e pelos que aspiravam a se tornar fazendeiros e
empresários.199 Ela ressaltava o valor do trabalho duro, da concorrência, da
engenhosidade, da frugalidade, da honestidade e da sobriedade – em suma, todas as
qualidades às quais os nortistas tinham tradicionalmente atribuído o caráter expansivo,
dinâmico de sua sociedade. Em seu coração havia uma crença na dignidade do trabalho
e do direito do indivíduo a adquirir bens, tanto como uma recompensa pelo seu esforço
quanto como garantia do seu futuro bem-estar econômico. Pelo trabalho duro, os
homens melhoravam suas condições e contribuíam para o bem-estar geral da
comunidade. Em outras palavras, a doutrina republicana foi muito mais uma ideologia
capitalista, aplicada a uma sociedade que ainda mantinha a promessa substancial de que
o esforço individual seria devidamente recompensado.200
Se os republicanos foram capazes de apresentar uma plataforma política com
valores defendidos pelos nortistas, isto em grande parte foi o resultado da luta seccional
sobre as terras do oeste e uma crescente convicção de que os sulistas não
compartilhavam os mesmos valores. Tradicionalmente, os norte-americanos
justificaram as práticas de sua sociedade, (114) referindo-se a uma suposta antítese
Europa-América. Escusado será dizer que a imagem empregada da “Europa” tinha
pouca relação com a realidade, sendo conjurada simplesmente para demonstrar a
superioridade da virtude e da façanha norte-americana.201 Todavia, com o avivamento
das tensões seccionais nas décadas de 1840 e 1850, os nortistas e sulistas empregavam
cada vez mais a mesma técnica em relação ao outro. O atraso do Sul não era nenhuma
ideia nova. Os nortistas patrióticos há muito consideravam-no como uma exceção
embaraçosa a praticamente tudo que se dizia a respeito do esclarecimento e do
progresso norte-americano. Todavia, a novidade consistiu na hostilidade política
baseada na crença generalizada de que o Sul representava valores completamente
diferentes do Norte. Enquanto o Norte representada a democracia, a energia e a
prosperidade, o Sul representava o privilégio, a letargia e a decadência. Não era difícil
encontrar as razões disso. “Escravize um homem”, declarou Horace Greeley, “e você

199
Foner, Free Soil, Free Labor, Free Men, p. 11-18.
200
Ibid., p. 11-72.
201
Ver, por exemplo, Daniel J. Boorstin, America and the Image of Europe (New York, 1960), e W. R.
Brock, “The Image of England and American Nationalism”, Jl. Amer. Studies, v. 5 (1971), p. 225-45.

141
destrói sua ambição, sua força de vontade, sua capacidade. Na constituição da natureza
humana o desejo de melhorar a sua condição é a mola mestra de esforço”.202 Todavia,
embora a escravidão fosse uma influência perniciosa a todos os envolvidos, a doença
era prontamente passível de cura. Acabe-se com a escravidão, argumentou Hinton
Rowan Helper, e os valores das terras do sul aumentarão em quatro vezes de um dia
para o outro.203
Naturalmente, é difícil traçar uma linha entre a crença, a formação da crença e a
vontade de utilizar quaisquer argumentos que pareçam melhor projetados para servir a
um propósito. Entretanto, mesmo se aceitarmos que muito do que foi dito se enquadra
nesta última categoria, é evidente que a ideologia capitalista serviu bem aos
abolicionistas. Este fato era reconhecido pelo mais competente polemista do Sul,
George Fitzhugh, que empreendera um ataque aos princípios dos economistas clássicos,
a peça central de seu argumento. “As máximas fundamentais, laissez-faire e pas trop
gouverner” dos economistas estavam em sua opinião, “em guerra com todos os tipos de
escravidão, uma vez que, de fato, afirmam que os indivíduos e os povos prosperam mais
quando são menos governados”.204
Essas noções tinham um apelo especial para os homens com pouco
conhecimento ou experiência prática do mundo. Adam Smith, o pai do movimento, era
em sua avaliação um exemplo perfeito desse tipo:

Para escrever uma filosofia unilateral ninguém estava em melhores condições do que Adam Smith. Ele
possuía poderes extraordinários de abstração, análise e generalização. Ele era recluso, solitário e
desatento. Ele viu apenas a parte próspera e progressista da sociedade que a liberdade e a livre
concorrência beneficiaram, e confundiu os seus efeitos sobre ela com os seus efeitos sobre o mundo
inteiro.205

202
Citado em Foner, Free Soil, Free Labor, Free Men, p. 46.
203
Hinton Rowan Helper, The Impending Crisis of the South: How to Meet It (Baltimore, 1857). Para uma
discussão sobre os pontos de vista econômicos de Helper, ver Fogel; Engerman, Time on the Cross, v. 1,
p. 161-9. The Impending Crisis foi a exposição contemporânea mais elaborada do argumento econômico
contra a escravidão e foi ostensivamente utilizado pelos republicanos como propaganda de campanha. Em
1859, por exemplo, um grupo de congressistas republicanos conjuntamente distribuiu 100.000 cópias do
trabalho. Todavia, o mais interessante a respeito dos números de Helper não é tanto que eles estavam
errados, mas que, como Stanley Engerman mostrou recentemente, números muito melhores estavam
disponíveis e foram ignorados: Stanley Engerman, “A Reconsideration of Southern Economic Growth,
1770-1860”, Agric. Hist., xlix (1975), p. 355-7.
204
George Fitzhugh, Sociology for the South: or, The Failure of Free Society (Richmond, Va., 1854), p.
1.
205
Ibid., p. 10.

142
Para os comerciantes e manufatureiros da Escócia e da Inglaterra e os seus
homólogos do Norte esta era, sem dúvida, uma filosofia admirável. Eles, afinal, eram os
que lucravam com o sistema, a “classe capitalista vampira”206 que espoliava o restante.
Mas o que Adam Smith e seus discípulos não reconhecem, porque não apontaram ou
porque eles próprios estavam cegos para as consequências, era que seu sistema de
liberdade universal era meramente uma receita para permitir que o astuto, o avarento e
mentiroso explorassem os ignorantes, os pobres e os fracos. Thomas Hobbes sustentou
que o estado de natureza era também um estado de guerra. Isso não era verdade, porque
o homem era naturalmente um animal associativo; mas este tornou-se enfaticamente o
caso da sociedade capitalista, que jogou homem contra homem e classe contra classe.207
Duas observações geralmente feitas a Fitzhugh são as de que seu ataque contra a
sociedade capitalista era mais persuasivo do que a sua defesa da escravidão e que num
grau notável ele mantinha um paralelo com os marxistas. Todavia, há outro aspecto de
seu pensamento que é comentado com menos frequência, mas que é altamente relevante
para o problema em questão. Trata-se da sua visão da luta escravista como uma
tentativa por parte de uma cultura metropolitana de impor os seus valores a uma
sociedade provincial. Esta ideia não era de forma alguma desconhecida dos defensores
britânicos da escravidão que argumentaram que a Lei da Reforma de 1832, que havia
emancipado as classes médias, tinha também, ao abolir os burgos podres, privado de
direitos as colônias, cujos porta-vozes tradicionalmente olhavam para elas em busca de
assentos. Como resultado, Sir Richard Vyvyan declarou: “a Câmara dos Comuns tinha
assumido para si um poder metropolitano nem sequer visto na Roma antiga”.208
Todavia, as implicações disso foram mais elaboradas e sutilmente descritas por
Fitzhugh. Segundo ele, a cultura que estava sendo imposta era a cultura capitalista. O
seu domínio devia-se ao seu sucesso inquestionável no aproveitamento da energia e da
tecnologia e, embora a riqueza assim criada houvesse sido monopolizada por poucos,
estes poucos tinham, em grande parte (116) por causa de sua riqueza, sido capazes de
impor suas normas sobre o resto da humanidade. Isso ficou evidente não só em matéria
de vestimenta e linguagem, mas também no campo das ideias. Infelizmente, os sulistas
acompanharam este processo, não percebendo para onde ele os levava:

206
George Fitzhugh, Cannibals All!: or Slaves Without Masters (Richmond, Va., 1857), p. 175.
207
Fitzhugh, Sociology for the South, p. 32.
208
Hansard, 3rd ser., xviii, cols. 113-16 (30 de maio de 1833).

143
Nós do Sul ensinamos economia política porque ela é ensinada na Europa. Contudo, a economia política,
e todos os outros sistemas de ciência moral, que derivam da Europa, estão contaminados com a abolição,
e em guerra com as nossas instituições. Temos de construir centros de comércio, de pensamento e de
moda nacionais. Devemos nos tornar nacionais, ou melhor, provinciais e deixar de ser cosmopolitas.209

Em suma, chegou o momento dos sulistas tomar uma posição contra o


imperialismo cultural da Europa e do Norte e reafirmar os valores de sua própria
sociedade. Em particular, havia chegado o momento deles mostrarem sua “mudança de
política e de opinião, e lançar Adam Smith, Say, Ricardo e companhia no fogo”.210
Que os defensores da escravidão tenham levado tanto tempo para apresentar uma
crítica efetiva aos economistas clássicos não é totalmente surpreendente. Afinal, os
socialistas europeus não conseguiram ser mais bem-sucedidos e os próprios
economistas clássicos, dado o grau em que a sociedade já havia sido transformada
precisamente pelos processos que eles se puseram a descrever, foram notavelmente
atrasados em suas descobertas. Todavia, até desenvolverem formas eficazes de
combater os argumentos derivados da teoria econômica, os defensores da escravidão
estiveram em uma séria desvantagem. Eles estavam numa posição particularmente
deficiente porque, como Fitzhugh ultimamente demonstrou, esses argumentos
derivavam de valores profundamente enraizados na cultura metropolitana dominante.
Obviamente, o que tornou a ideologia metropolitana do final do século XVIII e
do início do século XIX uma ideologia capitalista não foi qualquer lei de ferro da
economia. A escravidão e os sistemas relacionados de trabalho forçado podem ser
altamente rentáveis. Não há nenhuma razão lógica para que os escravos negros não se
transformassem em trabalhadores de fábrica. Ocasionalmente, isso aconteceu.211 Mas,
em geral isso não aconteceu, e uma vez que os homens tendem a generalizar a partir de
sua própria experiência, ocorreu naturalmente àqueles da metrópole supor que a
liberdade e a adoção de modos mais eficientes de produção caminham juntos. Em vão
os senhores de escravos argumentaram que as colônias, os estados do Sul, eram
diferentes, que a abolição significava produção menos eficiente, que era simplesmente
irrealista generalizar para o mundo todo aquilo que ocorria na Grã-Bretanha ou em

209
Fitzhugh, Cannibals All!, p. 88.
210
Ibid., p. 89
211
Antes da Guerra Civil cerca de 5% dos escravos do Sul estavam empregados na indústria
manufatureira. A maioria dessas empresas era rentável e o trabalho escravo era geralmente procurado por
ser mais econômico do que outras formas de trabalho disponíveis. R. S. Starobin, Industrial Slavery in the
Old South (New York, 1970), p. xii.

144
Massachusetts. No final, como vimos, os sulistas foram capazes de desenvolver uma
crítica da sociedade “livre” não (117) menos incisiva do que a crítica do Norte à
sociedade escravista, mas este foi um desenvolvimento tardio. Nesse meio tempo, eles
tiveram que se confrontar com o pesado fardo da sabedoria convencional.
Não estou sugerindo que isto “explica” o ataque à escravidão ou mesmo que
modifique substancialmente o que os tradicionalistas nos disseram sobre os impulsos
humanitários e religiosos que contribuíram para criar o movimento abolicionista. O que
estou dizendo é que, se o objetivo é relacionar capitalismo e escravidão esta é uma das
principais maneiras de mostrar como eles estavam relacionados. E eu gostaria de ir um
pouco mais longe e dizer que ela oferece uma solução para um problema que tem
intrigado muitos historiadores – a saber, como é que uma filosofia que exaltou a busca
do interesse próprio individual contribuiu, na ausência de qualquer expectativa de ganho
econômico, para a realização de um objetivo tão louvável como a abolição da
escravidão. Pois, embora um exame da ideologia capitalista não possa nos dizer muito
sobre a motivação dos abolicionistas, ela nos permite trilhar um bom caminho para
explicar por que homens com bom discernimento crítico, e que não compartilhavam a
repugnância moral dos abolicionistas, estavam preparados, na ocasião, para acompanhá-
los. Obviamente, ela não os impediu de agir de outras maneiras em várias ocasiões –
aceitando o açúcar brasileiro e cubano, concordando com um tráfico maciço de
trabalhadores coolies contratados, ou fazendo ouvidos moucos aos apelos dos libertos
norte-americanos. Nessas ocasiões, eles se comportaram como capitalistas devem se
comportar: eles avaliaram os seus próprios interesses e agiram em conformidade com
eles.
A ideia de que entre o final do século XVIII e no início do século XIX a
ideologia capitalista era um credo libertário pode deixar alguns perplexos. Os
capitalistas não estavam comprometidos em oprimir os pobres? Não era justamente este
o ponto alto da opressão capitalista às classes trabalhadoras? Bem, de fato, eles estavam.
Sabemos agora que o nascente capitalismo industrial foi muitas vezes um sistema de
exploração peculiarmente cruel, capaz de produzir uma miséria terrível. Mas esta não
foi a forma como ele apareceu para a maioria das pessoas de classe média do período. É
perigoso projetar ideias posteriores para o passado e atribuí-las, sob a forma de culpa ou
hostilidade inconsciente, às pessoas da época. Uma das contribuições mais importantes
tanto do Sul quanto dos críticos marxistas do capitalismo foi demonstrar que os seus

145
defensores genuinamente desconheciam as implicações práticas da sua filosofia. 212 Os
comentários de James Stephen são indicativos disso, (118) e ele tinha conhecido a
pobreza e viu o interior de uma prisão para devedores. De fato, o capitalismo não era
visto como um “sistema” no mesmo sentido em que a escravidão ou o feudalismo eram
considerados como sistemas. Pelo contrário, ele era uma emancipação das restrições
tradicionais, a liberação das energias, um deixar acontecer.
Para os homens cujos olhos foram formados por esta visão utópica, como
ocorreu com muitos estudiosos modernos, a escravidão aparecia como um anacronismo.
E, novamente, tal como os estudiosos modernos, ao entender que ela não se adequava às
suas crenças diante da maneira como o mundo estava se desenvolvendo, eles chegaram
à conclusão de que, por ser moral e socialmente regressiva, ela também devia ser
economicamente ineficiente e que, portanto, seria melhor substituí-la por um sistema
mais livre. Nem todo mundo acreditava nisso, porém o bastante para estimular
substancialmente a questão. A causa da humanidade, frequentemente se diz, é melhor
atendida pela verdade; mas, às vezes, ela pode ser ainda melhor atendida pelo erro.

212
Fitzhugh, por exemplo, retratou-os como sonâmbulos, tão fascinados pela beleza abstrata de suas
noções que eles não conseguiram perceber que os trabalhadores de sua própria sociedade tornaram-se
“escravos sem senhores” – isto é, escravos do Estado e, como tais, disponíveis para exploração
empresarial das classes médias. Fitzhugh, Sociology for the South, p. 44-7; Fitzhugh, Cannibals All!, p.
117. Foi também o que Engels, provavelmente, quis dizer com “a ilusão burguesa da eternidade e da
finalidade da produção capitalista”, que ele cita como um exemplo de “falsa consciência”; Engels to F.
Mehring, 14 de julho de 1893, in Karl Marx; Frederick Engels, Selected Works, 2 vols. (Moscow, 1951
edn.), v. 2, p. 451-2.

146
O abolicionismo como uma forma de imperialismo cultural

Howard Temperley

Nota-se frequentemente que as culturas tendem a sobreestimar os seus


próprios modos de vida e a subestimar os dos seus vizinhos. Por certo, essa não é
uma regra universal e há muitas exceções. Contudo, é fato observável que as
pessoas tendem não só a ficar apegadas aos seus modos de fazer as coisas, o que é
um exemplo inofensivo do poder do costume, mas também a considerá-los como
naturais e melhores e, em casos extremos, como provas inquestionáveis da
superioridade das suas características e virtudes. “A moralidade da nossa gente”,
escreveu John Adams em 1774, ao comparar bostonianos com filadelfianos, “é muito
melhor; suas maneiras são mais polidas e agradáveis; somos ingleses mais puros; nosso
modo de falar é melhor; nosso paladar é melhor; nossa gente é mais bonita; nosso
espírito mais aberto; nossas leis mais sábias; nossa religião é superior, e nossa educação
é melhor.”213 Excepcionalmente, Adams estava falando sem rodeios, mas essas crenças
têm longa duração na tradição ocidental, e sem dúvida também em outras tradições, e
são, entre outras coisas, fonte de muito humor popular.
Seja como for, o que preocupa no presente contexto não são esses sentimentos
como tais, mas o fato de que deles podem emergir imperativos morais que requerem
ação. Talvez seja desnecessário dizer, mas os dois não caminham necessariamente
juntos. Na maioria das vezes, os julgamentos que membros de uma sociedade fazem
dos membros de outra não requerem absolutamente qualquer tipo de ação.
Simplesmente fazem parte de um processo inconsciente de triangulação, por meio
do qual indivíduos e sociedades se localizam em relação à história e ao mundo que
os cercam. Essa é uma maneira, talvez a principal, pela qual as culturas obtêm um
sentido da sua identidade e do seu propósito. Afinal de contas, é frequentemente mais
fácil definir algo em termos negativos – como não sendo igual a qualquer outra coisa –
do que em termos positivos, particularmente quando a entidade a ser definida é algo tão
impalpável como a cultura. Em parte por essa razão, não há dúvida de que muitas


Publicado originalmente em TEMPERLEY, Howard. Anti-Slavery as a Form of Cultural Imperialism.
In BOLT, Christine; DRESCHER, Seymour (eds.). Anti-Slavery, Religion and Reform. Essays in
Memory of Roger Anstey. Hamden, Conn.: Archon Books, 1980, p. 335–50.
Citado por David M. Potter e Thomas G. Manning, Nationalism and Sectionalism in America, 1775-
213

1877: Select Problems in Historical Interpretation (New York, 1949), p. 1.

147
das respostas mais comuns relativas a percepções de diferença cultural têm um
caráter defensivo e envolvem a construção de barreiras contra influências
externas. Tudo indica que somente em circunstâncias excepcionais os homens
realmente se sentem motivados para sair do lugar onde vivem e fazer proselitismo
em benefício das suas próprias crenças culturais.
Até tempos relativamente recentes, tais exemplos desse fenômeno na história
ocidental estavam associados principalmente com a prática da religião cristã e, em
particular, com a suposição de que os princípios cristãos constituíam um padrão
universal, o que obrigaria todos os homens a adotá-los. Em apoio a essa asserção, pode
ser citada a própria ordem dada por Cristo aos seus discípulos para que se dispersassem
e pregassem o evangelho aos pagãos. Nesse ponto, os europeus, como cristãos, se
sentiram na obrigação específica de fazer catequese pelo menos em benefício de certos
aspectos da sua cultura; e desde que na prática não era fácil distinguir esses aspectos de
outros – derivados, por exemplo, da organização social ou da mudança tecnológica –
houve frequentemente um bocado de confusão a respeito do que exatamente estava
sendo propagado. Além disso, usualmente havia espaço, particularmente depois da
Reforma, para diferenças de opinião a respeito do que seria transmitido, dado que as
ideias sobre os princípios e práticas cristãos diferiam muito de um grupo para o outro. E
visto que era prática universal dos governantes da Europa argumentar que governavam
sociedades de acordo com os princípios cristãos, e realmente derivavam sua autoridade
desse fato, houve uma tendência persistente da evangelização cristã de se misturar com
o processo comum da política.
Um exemplo notável do modo pelo qual isso se dava era o costume dos
exploradores europeus da Era dos Descobrimentos, e mesmo pouco depois, de definir a
cristandade em termos amplamente culturais, referindo-se a si mesmos como cristãos e
aos povos alienígenas que encontravam como selvagens. Além do mais, o que
capacitava esses exploradores a se sentirem superiores e, na prática, exercerem a
dominação, era o fato de que as sociedades não-europeias tinham pelo menos tanto a
fazer com a tecnologia e a organização social quanto com a teologia. Certamente, a
atividade missionária desempenhou um papel importante na expansão ocidental; e, em
última instância, não há dúvida de que a cristandade teve pelo menos algo para fazer
com os desenvolvimentos que tornaram a Era dos Descobrimentos possível. Mas, hoje
poucos considerariam a colonização das Américas ou a conquista da Ásia e da África
como realizações especificamente cristãs.

148
Embora muitos desses sentimentos de superioridade tenham sido empregados
para explicar a emergência da escravidão moderna – a quase universal crença de que a
servidão hereditária deveria ser limitada a pessoas de origem não-europeia, por
exemplo, e a frequente visão estabelecida de que a sujeição era um meio efetivo de
promover a conversão –, eles têm sido frequentemente menos referidos em relação à sua
eliminação. Contudo, vale indicar que houve ao menos alguma semelhança superficial
entre a luta abolicionista e os conflitos religiosos de tempos anteriores. Em primeiro
lugar, muitas vezes a causa abolicionista foi considerada como uma “cruzada”. Esse é
um termo que foi muito depreciado, mas no sentido que lhe deram os abolicionistas não
é inteiramente fora de propósito. Os abolicionistas acreditavam na catequese ativa,
embora deva ser dito que ela foi mais um meio efetivo para estimular o entusiasmo dos
seus potenciais partidários do que para mudar o comportamento daqueles que tentava
reformar. Essa também foi uma das características conhecidas das lutas das quais a
metáfora foi retirada. Quanto a isso, estava a impaciência com que usavam o braço do
Estado como instrumento quando a pregação falhava. E, no caso, era usualmente
intervenção do Estado, sustentada pela ameaça da força, e não raras vezes pelo seu
verdadeiro uso, que levava a melhor. De tudo o mais que as lutas abolicionistas possam
ou não ter sido, foram uma tentativa feita pelos defensores de um conjunto de crenças
para impor seus valores – que envolvia muito mais do que a simples mudança do modo
como o trabalho estava organizado e remunerado – sobre os representantes de outras.
Essa, certamente, não foi inteiramente a descrição do conflito feita pelos
abolicionistas. Para eles era uma questão de obrigação moral. A escravidão estava
simplesmente errada. Estava errada porque violava ordens bíblicas específicas,
porque causava sofrimento às suas vitimas, e porque sua presença nociva pervertia
os trabalhos normais de qualquer que fosse o sistema que a contivesse. Por outro
lado, a ideia de que eles estavam engajados numa luta essencialmente religiosa, lhes era
inteiramente familiar. De fato, por serem homens educados na tradição cristã, que viam
nos princípios cristãos a derradeira fonte de orientação nos negócios humanos, causou
confusão a muitos deles apreender que as coisas podiam ser interpretadas de outro
modo.
Essa atitude está bem exemplificada na History of the Rise, Progress and
Accomplishment of the Abolition of the African Slave Trade by the British Parliament
(1808) de Thomas Clarkson, que é notável tanto como a primeira tentativa de oferecer
um balanço abrangente das origens do movimento quanto como um exemplo do modo

149
pelo qual esses desenvolvimentos podem ser interpretados em termos religiosos. De
acordo com Clarkson, o que levou o movimento adiante não tinha nada a ver com
economia, política ou eventos do mundo material, ou com uma repentina mudança dos
sentimentos dos cristãos em geral, mas era especificamente identificável nos
ensinamentos de um punhado de figuras que, como ocorreu, eram principalmente
reconhecidas como os mais importantes ministros da época pelas várias seitas a que
pertenciam. Daí, ele observava, pode ser inferida a “grande verdade”: “a abolição do
tráfico se originou, não de pessoas que levantaram protestos pela liberdade... nem de
pessoas que dele se aproximaram por ambição... mas de onde ela era mais desejável,
isto é, dos professores da cristandade daquele tempo”. E num esquema anexo ele mostra
como, começando em minúsculas nascentes e regatos e estando cada um deles marcado
pelo nome de algum proeminente “precursor ou cooperador”, as águas convergem para
se tornar cursos d’água e rios e finalmente “a torrente que acabou com o comércio de
escravos”. Talvez, o mais admirável de tudo seja a sua descrição de como essa
transformação foi provocada por meio de um processo de difusão intelectual.

“Um indivíduo, por exemplo, começa. Comunica seus sentimentos a outros. Então, ele
instrui, enquanto viver; depois de morrer, deixa seus trabalhos atrás de si. Assim, embora tenha
partido, ainda fala, e sua influência não fica perdida. Dos que foram ilustrados por ele, alguns se
tornam autores, e outros, por sua vez, atores. Enquanto estão vivos, instruem, tal como seus
predecessores; quando morrem também falam. Assim um número de mortos nos encoraja nas
bibliotecas, e um número de vivos permanece conversando e difundindo zelo entre nós ao
mesmo tempo”.214

Dessa forma, secamente enunciada, a narrativa de Clarkson pode parecer


singularmente ingênua ao leitor moderno. É também francamente elitista. Vê o impulso
para abolir o tráfico, que, por implicação, inclui a rejeição da instituição da escravidão
propriamente dita, sendo proclamado, em primeiro lugar, pelos principais pensadores
cujas ideias na altura devida infiltram-se e informam o corpo político. Essencialmente, a
narrativa de Clarkson constituía um modelo de um tipo de explicação histórica que
considerava que a mudança dos eventos ocorria antes no reino das ideias que na marcha
dos eventos, e, no seu caso, nas ideias de indivíduos identificáveis que, com bastante
frequência, estavam entre os principais filósofos e teólogos da sua época.

214
Thomas Clarkson, The History of the Rise, Progress and Accomplishment of the Abolition of the
African Slave Trade by the British Parliament (1808), v. 1, 264.

150
Num outro extremo, parece pertinente destacar a obra de Eric Williams, cujo
Capitalismo e Escravidão (1944) apresenta a questão em termos da ação combinada de
interesses econômicos. É verdade que ele não exclui inteiramente a influência das
ideias. Os abolicionistas eram peritos propagandistas que elevaram os sentimentos
abolicionistas “quase ao status de uma religião na Inglaterra”, 215 e, desse modo,
ajudaram a converter as massas à sua causa. Alguns, embora nem todos, eram
genuínos idealistas. E, certamente, a luta pode ser caracterizada pelos argumentos
empregados, muitas vezes com extrema astúcia, pelos dois lados. Nesse sentido o
conflito esteve longe de ser descuidado. Mas, no fundo, foi essencialmente uma questão
de importação e exportação, de uma plantocracia decadente e uma burguesia
ascendente, de um conjunto de interesses econômicos lutando contra outros – em
resumo, de forças que, embora não inteiramente impessoais, estavam além do poder de
controle de qualquer grupo inteligente ou idealista.
Talvez seja também relevante observar que a tendência das mais recentes
narrativas sobre o movimento tenha permanecido no meio dessas duas visões, embora
nos dois volumes de David Brion Davis, O Problema da escravidão na cultura
ocidental (1966) e The Problem of Slavery in the Age of Revolution (1975) tenhamos
indiscutivelmente a mais ambiciosa tentativa dos tempos recentes, ou, certamente,
de qualquer tempo, de colocar o movimento dentro do contexto da cultura, ou
talvez culturas, que o sustenta. É particularmente notável a análise de Davis sobre
as atitudes dos principais pensadores sobre cujas crenças a questão incide. A
relação disso com o problema da escravidão para questões de liberdade e disciplina
social em geral alterou significativamente os limites dentro dos quais as futuras
discussões serão conduzidas. Claramente qualquer relato extenso dos recentes
desenvolvimentos no campo terá necessidade de lidar com as diversas tendências
conflituosas que ele considera em operação dentro da sociedade ocidental e, em
particular, com o uso do conceito gramsciano de hegemonia ideológica como um meio
de aproximá-las. Mas, por um momento, tudo que podemos fazer é notar que do seu
relato, como foi desenvolvido – pelo menos um volume ulterior está projetado –,
emerge uma imagem não muito clara.
Desde que estes esforços para chegar à solução por meio da análise social e
intelectual provaram ser inconclusivos, pode-se supor que os historiadores usando uma
abordagem da história econômica seriam capazes de lançar luz sobre o assunto. E assim,
215
Eric Williams, Capitalism and Slavery (primeira edição, 1944; reimpressão 1964), p. 161.

151
num sentido, eles têm feito, mas não de modo a avançar significativamente o
argumento.
Seguindo as linhas de investigação sugeridas por Eric Williams, acharam não só
que a própria evidência de Williams não comporta suas conclusões, mas que a evidência
ulterior coletada mostra que os interesses econômicos dominantes na Inglaterra, longe
de impelirem o enfraquecimento ou destruir a escravidão, teriam obtido ganhos se a
fortalecessem e ampliassem-na. Esse foi um trabalho realizado por muitos, mas
destacadamente por Seymour Drescher em Econocide: British Slavery in the Era of
Abolition (1977) que virou Williams de ponta-cabeça (e ofereceu também uma
devastadora crítica de outras teorias importantes) ao mostrar que as colônias
britânicas de açúcar estavam numa condição saudável na época da abolição do
tráfico em 1807, e que seu declínio subsequente foi principalmente o resultado da
intervenção humanitária.216 Nesse meio tempo, a aplicação das técnicas econométricas
ao estudo da escravidão ante-bellum nos EUA forneceu evidência adicional sobre a
manutenção do vigor e da viabilidade econômica dessa instituição. 217 O efeito total das
medidas econômicas, portanto, sugere que a economia teve pouco a ver com o
assunto. Paradoxalmente, parece que agora estamos mais distantes de uma solução
do que estava a última geração quando aceitava, em geral, que a escravidão era
economicamente regressiva e que ninguém com uma razão melhor para
desaprovar isso estava apto para se opor nessas bases.
Em suma, os achados negativos dos analistas econômicos, combinados com o
enorme crescimento do conhecimento relativo ao escopo, flexibilidade, longa
duração e continuada viabilidade da escravidão, enfatizaram as dificuldades para
explicar por que num certo ponto da história os homens se voltaram contra ela.
Por que ela não foi atacada mais cedo – ou mais tarde? Por que, de fato, ela foi
atacada? Dizer que ela era contrária aos preceitos de muitas ideias dos fins do
XVIII e início do XIX não é uma verdadeira resposta, porque isso supõe o que
deveria ser demonstrado: por que o pensamento dos séculos XVIII e XIX foi diferente

216
Seymour Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolition (Pittsburgh, 1977). Outras
teorias são especialmente discutidas em Seymour Drescher, Capitalism and the decline of Slavery: the
British case in comparative perspective, Annals of the New York Academy of Sciences, n. 292 (1977), p.
132-142.
217
Alfred H. Conrad; John R. Meyer, Studies in Econometric History (1965), p. 3-114: Robert William
Fogel; Stanley L. Engerman, Time on the Cross: The Economics of American Negro Slavery (Boston,
1974). Embora muitas das inferências de Fogel e Engerman tenham sido criticadas, suas descobertas em
geral a respeito da rentabilidade e da viabilidade da continuidade da escravidão não foram seriamente
contestadas.

152
do de outros períodos. Isso não significa negar que as ideias adquirem uma energia de si
mesmas e que muito pode ser apreendido se seguirmos a lógica dos seus
desenvolvimentos. Por essa razão é compreensível que Clarkson e Davis puderam se
concentrar nas crenças daqueles que eram normalmente considerados como os
principais pensadores das suas épocas, dado que muito do que disseram antecipou e,
num certo grau, moldou o pensamento popular sobre o assunto. A esse respeito,
contudo, vale notar que as próprias concepções de Clarkson diferem das de Davis e de
outros investigadores mais recentes porque não vêem as crenças humanitárias
originadas pelas figuras humanas cujas ideias ele descreveu. Em última análise, foi a
Providência, o Espírito Santo, ou a Influência Divina, que falou através delas. Isso é
algo que ele enfatizou no primeiro capítulo do seu livro e ao qual ele continuamente
aludiu nos dois volumes seguintes. Pode-se dizer tudo sobre a explicação de Clarkson,
mas ela é eminentemente lógica, dadas suas concepções, sempre admitindo que os
caminhos da Providência são misteriosos. Esse, de qualquer maneira, é um dispositivo
que os modernos sucessores de Clarkson, obrigados a prestar contas do mesmo
desenvolvimento em termos estritamente seculares, são incapazes de adotar, embora
muitos deles sentissem que seriam necessários, como mostram suas predileções por
noções como a de “mão invisível” de Adam Smith, “hegemonia ideológica” de Antonio
Gramsci, e noções vagamente definidas de “capitalismo”.
Grande parte da moderna especulação sobre as origens do movimento pode, de
fato, ser vista como reflexo de uma consciência de que explicações baseadas somente no
pensamento e nas ideias são insatisfatórias, porque, ao fim, invocam a falácia de uma
regressão sem fim. É o velho problema do Fantasma e da Máquina. Num certo ponto as
ideias têm de ser relacionadas com as culturas que as nutrem, não só mostrando como
algumas crenças conduzem a outras, mas também como essas crenças em geral refletem
a maneira pela qual essas culturas organizam seus negócios materiais. Porque, a menos
que aceitemos alguma versão da ideia de Providência de Clarkson ou, alternativamente,
concebamos que as ideias estejam desencarnadas, devemos supor que uma das
principais agências que lhes dão forma tem sido a experiência do dia-a-dia dos homens
e mulheres em sociedade individuais dentro da qual essas ideias emergiram.
Assim, se procuramos explicar por que homens e mulheres dos fins do
século XVIII e início do século XIX consideraram que a escravidão não era mais
aceitável, pode ser útil começarmos perguntando simplesmente: quais eram as
tendências prevalentes da época e que influência elas tiveram sobre atitudes em

153
relação à escravidão? E aqui podemos começar notando o enorme crescimento da
riqueza que ocorreu durante aqueles anos. “A característica que distingue o período
moderno da história mundial de todos os períodos passados”, observa o Volume 6
da The Cambridge Economic History of Europe (1965), “é o fato do crescimento
econômico. Ele começou na Europa [século XVIII] e se espalhou primeiramente
para os países ultramarinos colonizados pela Europa. Pela primeira vez na história
humana foi possível encarar um crescimento sustentado no volume de mercadorias e
serviços produzido por unidade de esforço humano ou por unidade de fontes
acessíveis”.218 Carlo Cipolla inicia sua introdução ao Volume 3 da Fontana
Economic History of Europe (1976) dando grande ênfase ao mesmo ponto, findando
sua observação com a declaração de que “desde então, o mundo não foi mais o
mesmo”. Essas afirmações referem-se, no entanto, como os capítulos seguintes deixam
claro, não simplesmente aos novos elementos da produção das máquinas e à disciplina
industrial – imagens que normalmente aparecem por encanto, juntamente com o vapor
ejetado e sombrias paisagens urbanas, com a Revolução Industrial – mas a um processo
de crescimento econômico sustentado, cujos efeitos tornam-se aparentes primeiro na
Inglaterra e se manifestam, ao menos inicialmente, na forma de um crescimento do
comércio internacional, e, de 1740 em diante, num constante aumento da população. Só
num estágio ulterior ocorrem as inovações técnicas que revolucionaram a manufatura do
algodão e do aço, preparando o caminho para a posterior expansão do comércio
ultramarino e mais produção econômica doméstica. Tais desenvolvimentos têm um
significado especial no caso da Inglaterra, desde que ela se tornou o primeiro poder
industrial mundial, mas processos similares podem ser observados em curso em
qualquer outra parte. Na França, também, do início do século XVIII em diante, o
crescimento econômico seguiu uma curva ascendente contínua.219 E talvez em parte
alguma do mundo houve um aumento relativo de população e riqueza mais notável
do que na América do Norte, um processo que, como é frequentemente notado,
está atrás do desejo britânico de estabelecer estreito controle sobre suas colônias
de lá, o que se tornou um importante fator causal da independência norte-
americana.

218
Cambridge Economic History of Europe: The Industrial Revolution and After (1965), VI, parte 1, p. 1.
Claude Fohlen, The Industrial Revolution in France, 1700-1914, in Carlo Cipolla (ed.), The Fontana
219

Economic History of Europe: Emergence of Industrial Societies, Part One (1973), p. 11.

154
Todos esses desenvolvimentos são familiares a ponto de se tornarem banais e
seria tedioso trabalhar minuciosamente com eles sem explicar a influência crescente da
ideia de Progresso que, como tem se notado frequentemente, foi uma das principais
características distintivas da maior parte do pensamento dos séculos XVIII e XIX. Ela
não era, certamente, uma ideia inteiramente nova. Mas é plausível supor que sua
ascendência nesses séculos refletiu, ao menos em parte, as experiências cotidianas das
pessoas do período, tal como seu eclipse parcial em tempos recentes se deveu aos
horrores do presente século.
Por certo, essa não é a única visão sobre os desenvolvimentos desses tempos, e
muitos historiadores escolheram enfatizar o sofrimento, empobrecimento e exploração
que acompanharam a transição do modo de produção agrário ao industrial. Até onde o
debate sobre a escravidão avançou, isso ficou manifesto em sugestões que tentaram
obter simpatia por escravos distantes, sendo destinados, consciente ou
inconscientemente, para desviar a atenção de outros males domésticos. Não pode ser
negado que, algumas vezes, esse tenha sido o caso, embora seja difícil encontrar
evidência para ele, e, se o que está sendo sugerido é um comportamento baseado em
motivos inconscientes, possivelmente seja inencontrável. De qualquer modo, é difícil
considerar um movimento tão formidável quanto o assalto à escravidão, com todas as
suas implicações de mudança radical, simplesmente, ou, mesmo amplamente, como
uma forma de resposta negativa. No conjunto, é mais plausível supor que o
abolicionismo marchou em compasso com as principais tendências do período, e não
em oposição a elas.
Aqui vale notar dois aspectos do aumento de riqueza que poderiam ter uma
influência poderosa em como os homens respondem a ele. Primeiro, não é de pouca
significação que os mais dramáticos crescimentos da riqueza sejam encontrados nas
sociedades de trabalho livre. Esse foi o caso extraordinário da Grã-Bretanha que se
orgulhava da liberdade das suas instituições, e era amplamente admirada no estrangeiro
por isso. Mas, falando de uma maneira geral, o mesmo é verdadeiro para o noroeste
europeu como um todo, cujos governantes, embora ainda não aceitassem de modo
algum a ideia de livre mercado do trabalho, eram menos restritivos a esse respeito do
que tinham sido anteriormente. Provavelmente, as sociedades com o mais forte
comprometimento ideológico com o trabalho livre eram os estados nortistas da União
Americana, onde a escravidão nunca havia desempenhado um papel econômico
significativo, e onde estava em vias de desaparecer na primeira década do século XIX.

155
Seguramente, todas essas sociedades se aproveitavam de um modo ou de outro do
emprego de escravos em qualquer outra parte. Mesmo assim, permanece o fato de que
elas participavam do crescimento geral da riqueza sem que empregassem a escravidão,
ao menos em escala significativa.
Segundo, vale notar que o crescimento da riqueza em curso estava geralmente
associado com o abrandamento dos controles sociais tradicionais. Isso vai contra o que
nos tem sido dito sobre a “nova disciplina industrial”, e certamente é verdade que nas
fábricas, minas e outros lugares de trabalho, os trabalhadores eram frequentemente
arregimentados em maior escala do que antes. Mas isso em parte reflete meramente o
fato de que em outros aspectos eles experimentavam menores constrangimentos. Nas
vilas e cidades nas quais uma crescente proporção da nova riqueza era criada, e dentro
da qual a população excedente rural se acumulava, os trabalhadores não mais viviam
sob os olhos das autoridades da mesma forma que nas comunidades que deixaram. O
ato de mudar-se foi testemunha da maior flexibilidade exigida pelos novos métodos de
produção. Se isso significa que os trabalhadores eram “mais livres” que antes é uma
questão que pode ser debatida, mas nitidamente algumas das velhas rigidezes estavam
desaparecendo à proporção que as novas forças do mercado se afirmavam.
É sempre perigoso introduzir o nome de Adam Smith dentro de qualquer
discussão sobre as atitudes do século XVIII por estar associado com o movimento do
livre-comércio e pelo fato de que os princípios do livre-comércio, em geral, só foram
aceitos muito mais tarde. Contudo, se pensarmos Smith simplesmente como advogado
de uma economia de livre mercado, é claro que muito do que dissemos reflete
tendências já discerníveis no seu tempo. Como acontece com muitos outros notáveis
economistas, e certamente como acontece com intelectuais inovadores em geral, sua
realização deve ser julgada menos como um triunfo de um pensamento abstrato do que
como uma sensata avaliação de um processo em curso e principalmente sua boa-vontade
de aceitar conclusões não-convencionais – mais notavelmente a visão de que o sistema
mais livre provaria ser o mais produtivo, pelo menos no longo prazo. Como uma
proposição abstrata, essa crença era muito pouco recomendável. A maior parte da
história humana prova precisamente o oposto: isto é, que o relaxamento dos controles
leva ao caos. Contudo, ele fez uma descrição muito cuidadosa do processo em curso na
sua própria sociedade; embora ele não o compreendesse inteiramente, sua observação
permitiu-lhe propor leis universais que governariam todas as sociedades humanas de
todos os lugares.

156
As sociedades escravistas do Novo Mundo estavam entre as sociedades que não
poderiam se ajustar prontamente ao esquema de coisas de Smith. Sem dúvida, pode-se
argumentar, e muito convincentemente, que dar liberdade aos traficantes e aos donos de
escravos os encorajaria a organizar seus negócios em base rentáveis e, assim, contribuir
com a riqueza da sociedade. A dificuldade com esse argumento era de que excluía os
escravos, fazendo deles meros instrumentos de produção, e, desse modo, invalidando a
proposição geral de que mais ampla liberdade levaria inevitavelmente a maior
prosperidade; assim, se um grupo pode ser excluído, por que não outro? Como Clarkson
se deliciava ao notar, Smith investiu fortemente contra a escravidão, mas foi a lógica
(ajudada, talvez, pelas suas preferências humanitárias) e não a observação que o levou a
esta posição. De fato, ele realmente nunca considerou se as regras seguidas para
governar uma economia britânica em rápida diversificação eram igualmente apropriadas
para outros tipos de sociedade, tais como colônias que produziam gêneros de exportação
por meio de trabalho escravo importado, menos ainda que efeitos práticos surgiriam, em
tais casos, com uma frouxidão geral dos controles.
Mas, pode-se perguntar, que conexão há entre Adam Smith e os abolicionistas?
A mais óbvia, embora talvez menos interessante, foi o gosto deles por citá-lo – junto
com outros economistas como John Millar, que pertenceu à mesma escola de
pensamento – para evidenciar o fato de que a escravidão era impolítica. “Na sua
Riqueza das Nações”, nota Clarkson, “ele mostrou de maneira convincente (porque
apelou aos interesses daqueles a quem dizia respeito) a carestia do trabalho africano, ou,
a impolítica do emprego de escravos”.220
Mais significativos, talvez, foram seus argumentos baseados nas concepções dos
economistas políticos. “Se perguntou”, declarou Buxton em junho de 1833, “o que, no
caso da emancipação, devia ser feito com o trabalho dos negros? Deveria ser perguntado
o que faz as outras pessoas trabalharem? E ele diria salários e trabalho livre”. 221 Outros,
extrapolando mais ousadamente, argumentavam que a liberdade seria a salvação
econômica das Índias Ocidentais. Trabalhadores livres seriam trabalhadores dispostos.
Também seriam potenciais consumidores dos manufatureiros britânicos. Para todos, os
homens das Índias Ocidentais respondiam, sem causar espanto, que o Parlamento
precisava levar em conta as circunstâncias especiais que governavam as economias
escravistas. “Falta-lhes evidência”, indicava Hume, “para provar o que seria feito pelo
220
Clarkson, Abolition of Slave Trade, v. 1, p. 86.
221
Hansard’s Parliamentary Debates, 3rd series, 18 (10 junho de 1833), p. 517.

157
trabalho livre nas colônias; tampouco há evidência alguma para mostrar que os escravos
podiam ser conduzidos assim ao trabalho”.222 Grande parte do debate no Parlamento em
1833 sobre a emancipação nas Índias Ocidentais girou em torno de uma questão básica:
os padrões metropolitanos poderiam ser aplicados às colônias?
Isso ainda deixa em aberto uma questão: até que ponto os abolicionistas, e os
que votavam com eles, verdadeiramente acreditavam nos argumentos que estavam
usando? Buxton, ou James Stephen – ou James Silk Buckingham, que nessa matéria era
o mais poderoso intérprete do argumento do trabalho livre – acreditavam
verdadeiramente que a emancipação aumentaria a produção? Muitos apoiadores
populares acreditavam com sinceridade, se julgarmos pelas cartas de surpresa que mais
tarde inundaram a Anti-Slavery Society, quanto se tornou evidente que a produção caíra
e que a Inglaterra estava pensando em obter seu açúcar de qualquer outro lugar. 223 Mas
os líderes do movimento acreditavam nisso? Afinal, estavam tentando usar um
argumento (que o trabalho livre era melhor) para se opor a outro argumento (que
escravos emancipados não trabalhariam) sem pessoalmente ter muita fé no resultado,
cujos efeitos, afortunadamente, só se tornariam evidentes depois da emancipação ter
sido realizada.224 Além disso, para cada afirmação de que havia bases boas e práticas
para acabar com o tráfico ou com a escravidão, outra poderia ser citada, muitas vezes da
mesma fonte, levando em conta o efeito que as medidas teriam se as consequências não
fossem calculadas.225 Tomadas pelo aspecto exterior, essas asserções pareceriam apoiar
a visão de Clarkson de que o assalto à escravidão era essencialmente um fenômeno
religioso, ao qual somente é necessário acrescentar, para completar a imagem, que
mesmo os religiosos foram obrigados a ceder às polêmicas seculares.
O problema com esta explicação é que ela torna também artificial a distinção
entre pensamento religioso e secular e ignora a amplitude da qual ambos extraíam suas
forças de uma fonte comum, isto é a crença do século XVIII num mundo capaz de ser
melhorado e de progredir cada vez mais. Como uma ilustração do modo pelo qual esses
elementos estavam juntos, podemos apropriadamente começar notando o aparecimento,

222
Ibid. (7 de junho de 1833), p. 459.
223
Howard Temperley, British Antislavery 1833-70 (1972), p. 147-8. Para uma discussão mais geral a
respeito do debate sobre trabalho livre versus trabalho escravo, ver Howard Temperley, Capitalism,
slavery and ideology, Past and Present, n. 75 (maio 1977), p. 94-118.
224
Este foi um tema proeminente nos debates Lincoln-Douglas de 1858; ver, por exemplo, o discurso de
Stephen Douglas, em 9 de julho, em Chicago, in Robert W. Johnannsen (ed.), The Lincoln-Douglas
Debates of 1858 (New York, 1965), especialmente p. 29-31.
225
Ver, por exemplo, Hansard, 18 (maio-junho de 1833), p. 163, 516 e 538.

158
por volta de 1750, de uma nova marca da teoria social que sustentava que o fator chave
do desenvolvimento social era o modo de subsistência. As primeiras expressões escritas
dessa ideia são encontradas na França, mas ela foi logo desenvolvida pelos pensadores
da Ilustração Escocesa que com toda probabilidade a extraíram da Edinburgh lectures
de 1750-1, de Adam Smith. Especificamente, o que estava sendo argumentado era que
todas as sociedades tendem a evoluir através de quatro estágios consecutivos – caça,
pastoreio, agricultura e comércio – com cada estágio gerando seu próprio conjunto
distinto de crenças e instituições. Como foi desenvolvido mais tarde pelo próprio Adam
Smith, e mesmo com maiores detalhes por seu discípulo John Millar, a ideia cresceu
dentro de uma concepção materialista da história inteiramente desenvolvida.226
É evidente que essa ideia deve muito às reais circunstâncias da época que a
produziram. Mais ao ponto, no entanto, é a amplitude com que tais crenças seculares
permearam o pensamento até mesmo de um pensador manifestadamente religioso como
Willian Wilberforce, que também viu o mundo como uma coleção de sociedades em
diferentes estágios de desenvolvimento, com a Inglaterra, seguida de perto por outras
nações cristãs, na dianteira. A grande esperança do futuro, segundo Wilberforce,
repousa no processo de disseminação cultural por meio do qual as nações civilizadas
transmitiriam os elementos das suas culturas para que outras, menos afortunadas que
elas, pudessem melhor aproveitá-los. Se elas não tivessem ainda alcançado o estágio da
agricultura, teriam a necessidade de instrução em técnicas de cultivo; se elas já tinham
alcançado o estágio da agricultura, então o que precisavam era de comércio. Acima de
tudo, o que precisavam era uma introdução à religião cristã, que era importante não só
como um meio de salvar almas, mas também como um veículo para transportar valores
ocidentais em geral.227
Posto desse modo, pode parecer que essas ideias deviam se expressar mais
naturalmente em atividades missionárias no combate à escravidão; e é verdade que uma
das consequências da nova crença de que a história era um processo dinâmico,
progressivo, e que as nações ao derivarem suas culturas da Europa Ocidental
compartilhariam a vanguarda, foi o crescimento dramático na escala dos esforços para
levar “civilização” aos “selvagens”. Muitos abolicionistas estiveram envolvidos nesses
empreendimentos e a maior parte contribuiu para a visão contemporânea de que as

226
O melhor relato geral deste desenvolvimento está em Ronald Meek, Social Science and the Ignoble
Savage (Cambridge, 1975).
227
William Wilberforce, A Letter on the Abolition of the Slave Trade (1807), p. 73-4.

159
culturas que diferiam significativamente da norma europeia deveriam ser mantidas em
baixa estima. Wilberforce era absolutamente intolerante na sua visão da sociedade
hindu, como foi na das sociedades escravistas do Novo Mundo. Mas se o que nos
preocupa são as consequências práticas de um crescente orgulho na civilização
ocidental, combinado com a crença de que as sociedades eram maleáveis e que o
progresso humano podia ser compartilhado por todos, é fácil ver por que os
reformadores teriam sido não menos zelosos em desenraizar práticas “regressivas”,
“imorais” e “não cristãs” das suas próprias sociedades do que agindo como portadores
de cultura para povos remotos que nunca tinham tido o benefício da instrução segundo
os valores ocidentais.
Se a escravidão era realmente regressiva num sentido econômico está fora de
questão. É igualmente irrelevante se, a esse respeito, as culturas indígenas e africanas
estavam “atrasadas”. Em cada caso, o que impressiona os que catequizavam era o fato
de que eles representavam desvios dos quais, com base nas suas próprias experiências,
eles consideravam como normas civilizadas. Como Willian Robertson, o historiador da
Índia, notou em 1790, “os homens em qualquer estágio da sua carreira estão tão
satisfeitos com os progressos feitos pela comunidade da qual são membros que isso se
torna um padrão de perfeição, e eles estão aptos para considerar as pessoas cuja
condição não é similar com desprezo e aversão...” 228. Isso não era inteiramente verdade,
porque os novos reformadores estavam também tentando melhorar suas próprias
sociedades. Contudo, era um ponto frequentemente notado pelos defensores dos
interesses das Índias Ocidentais nos debates parlamentares de 1833. A desgraça dos
colonizadores ingleses foi, declarou Richard Vyvyan, Membro Parlamentar por Bristol,
“ser governado e controlado pelos delegados dos donos das lojas e das fábricas... do
Reino Unido”.229 Por isso, os fazendeiros dos estados sulistas norte-americanos eram
obrigados a competir pelo controle sobre o que consideravam como seus próprios
negócios domésticos com os fazendeiros e mecânicos do Norte.
Todavia, o que faziam as tendências culturais oporem-se à escravidão tão
formidavelmente não foi simplesmente a conjunção do trabalho livre e do crescimento
econômico, mas sua associação com outra força emergente do período: o nacionalismo.
A fusão do nacionalismo com a história progressista não se dá sem fundamentações
lógicas. A concepção de que a história é progressista, e de que a sua direção pode em
228
Citado por George D. Bearce, British Attitudes Towards India, 1784-1858 (Oxford, 1961), p. 27.
229
Hansard, 18 (30 de maio de 1833), p. 113.

160
certo grau ser controlada, implica a necessidade de um instrumento capaz de guiar o seu
desenvolvimento, e essa função tem sido atribuída principalmente ao governo nacional
que, por outro lado, a usa como um modo de justificar a maneira pela qual tem exercido
seus poderes. O nacionalismo, na forma moderna, é amplamente uma criação dos fins
do XVIII, e uma das suas características distintivas foi uma tendência em direção à
centralização e à uniformidade. Os efeitos disso têm sido tão evidentes no campo
cultural assim como no político e econômico, e nos padrões nacionais que emergiram
em relação à fala, às roupas, ao pensamento, e aos costumes sociais. As consequências
dessa tendência talvez sejam mais evidentes no caso dos Estados Unidos, onde a crença
do Sul de que os nortistas estavam tentando se apropriar do direito de definir o que era e
o que não era norte-americano e estavam impondo seus padrões à nação toda foi um
importante fator na hostilidade regional dos anos ante-bellum. George Fitzhugh foi um
dos muitos a exortar seus amigos sulistas a estabelecer seus próprios padrões e não se
sentirem envergonhados, quando estes diferissem dos do Norte e da Europa, de se
sentirem provincianos.230 Por essa mesma razão, o Partido Democrata apelou aos
sulistas (como fazia com os irlandeses e grupos imigrantes em geral) em virtude da sua
ênfase na necessidade de aceitar o pluralismo cultural e a diversidade regional, em
contraste com seus oponentes Whigs e Republicanos os quais via como
consolidacionistas, tentando fortalecer o poder do governo como um meio de assegurar
a uniformidade nacional. Embora essas tendências se destaquem mais claramente no
caso dos Estados Unidos, onde desafiaram a existência do estado nacional e só foram
resolvidas com o resultado de uma guerra civil longa e sangrenta, há abundância de
evidência de que essas forças similares estavam em curso dentro do Império Britânico.
Pois, assim como o maior passo do desenvolvimento nortista teve o efeito de fazer os
sulistas parecerem norte-americanos genuínos, também a rápida expansão da economia
metropolitana fez os defensores da escravidão parecer genuínos ingleses em virtude de
resistirem contra as mudanças que seus contemporâneos viam como a manutenção das
tendências prevalecentes da época.
Se, então, se perguntava por que homens dos fins do século XVIII
e início do século XIX voltaram-se contra uma instituição que tinham
anteriormente apoiado ou considerado com indiferença, podemos oferecer um
relato diferente do dado por Clarkson. Primeiro, podemos começar notando como

George Fitzhugh, Cannibals All, or Slaves Without Masters (1857; Cambridge, Mass., 1960 ed.), p. 57-
230

60.

161
as mudanças econômicas do período encorajaram uma visão progressista da
história. Segundo, podemos examinar o modo pelo qual as mudanças sociais
associadas com este desenvolvimento ajudaram a criar a crença de que havia leis
universais governando o progresso humano. Terceiro, podemos observar que havia
uma tendência, mesmo entre aqueles manifestamente movidos por noções
religiosas, de ligar essas leis com o que eles consideravam como valores essenciais
da cultura ocidental, e então acreditar que, ao menos potencialmente, eles
poderiam ser compartilhados por todos os homens de todos os lugares. E,
finalmente, podemos notar como essas crenças foram reforçadas pelo advento do
moderno nacionalismo. Elas eram, certamente, crenças arrogantes, embora no
caso dos abolicionistas este fato fosse irreconhecível, principalmente por causa da
aversão que a escravidão ainda inspira. De qualquer modo, é fácil ver por que os
donos de escravos sulistas, como os sepoys indianos, respondiam violentamente ao que
viam como uma tentativa deliberada de destruir seu modo de vida pela imposição de
padrões culturais que eles consideravam alienígenas.
Num sentido, o abolicionismo marca o estágio intermediário entre as lutas
religiosas de tempos anteriores e os recentes conflitos gerados pela oposição das
ideologias mais estritamente seculares. Não causa surpresa que os contemporâneos o
interpretaram em termos dos conceitos que lhes eram familiares, que significa enquadrá-
lo num contexto religioso. Todavia, olhando para trás, fica claro que o que eles viam
como consequência de crenças religiosas pode mais cuidadosamente ser tomado em
termos culturais, e em particular em termos do que empurra a reconstrução do mundo à
sua própria imagem que caracterizou a civilização ocidental durante o período da sua
ascensão.

162
Escravidão e “progresso”

David Brion Davis

(351) Por toda a história humana, a escravidão foi usada de modos diferentes
como um teste simbólico de otimismo ou pessimismo, de fé no progresso moral ou de
desespero sobre o que Mark Twain chamou, na sua velhice cínica, de a “desgraça da
raça humana”. Por exemplo, em 1759, quando Voltaire afirmou no seu satírico
comentário filosófico que “este nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis”,
imaginou o inocente Cândido, num dos seus muitos incidentes inesquecíveis, chegando
no Suriname e encontrando um escravo negro que estava estendido no chão. O escravo,
que havia perdido uma mão e uma perna, disse a Cândido que esse é “o preço pago pelo
açúcar que você consome na Europa”. O negro lembra que foi vendido na África por
sua mãe, que dissera: “você tem a honra de ser escravo dos nossos senhores, os homens
brancos, e, assim, você fez a fortuna do seu pai e da sua mãe”. Para os leitores do século
XVIII, os comentários amargos do negro eram uma óbvia paródia sobre a filosofia de
Leibniz, Jean Christian Wolff, e outros teodicistas que haviam encontrado desculpas
elaboradas para o mal, embora defendessem os caminhos de Deus para o homem. “Oh
Pangloss!”, grita Cândido, “essa é uma abominação que você não imaginava; isso é
demais, no fim eu renunciarei ao otimismo”. “O que é o otimismo?”, pergunta
Cacambo, o criado de Cândido. “Ai de mim”, diz Cândido, “é uma mania de sustentar
que tudo está bom quando tudo está ruim”. E Cândido chora ao entrar no Suriname.
Nos meados do século XVIII esse cinismo estava se tornando uma reação da
moda para a pouco convincente teodicéia e para as defesas da religião. Como uma
alternativa ao cinismo ou às tentativas de justificar o mal como parte do desígnio de
Deus, o século seguinte apresentou uma notável curva ascendente de fé no progresso
histórico, tanto moral quanto material. Já em 1759, os quacres norte-americanos e
britânicos concluíram que as atrocidades da escravidão eram um preço muito alto para o
açúcar, e essa iniciativa quacre levou ao protesto organizado contra o tráfico de escravos
Atlântico. Poucos eventos na história contribuíram mais substancialmente à (352)
crença no progresso que o sucesso, em 1807, dos movimentos britânico e norte-


Publicado originalmente em DAVIS, David Brion. Slavery and “Progress”. In BOLT, Christine;
DRESCHER, Seymour (eds.). Anti-Slavery, Religion and Reform. Essays in Memory of Roger Anstey.
Hamden, Conn.: Archon Books, 1980, p. 351-66.

163
americano para tornar ilegal a sua participação no tráfico de escravos. Em 1833, quando
a Grã-Bretanha emancipou cerca de 780.000 escravos coloniais, pagando
generosamente £20 milhões de indenização aos seus supostos proprietários, a lição
parecia clara. No mundo anglo-americano, excetuando os estados escravistas do Sul dos
Estados Unidos, historiadores, teólogos e filósofos morais se referiam crescentemente à
progressiva abolição da escravidão como prova de um propósito divino na história, um
propósito gradualmente revelado, que se manifestava por meio da ilustração humana.
O triunfo do abolicionismo britânico teve implicações profundas no
otimismo da classe média e na ideia de progresso. Embora os liberais tivessem
saudado a emancipação nas Índias Ocidentais como a culminação de um longo
processo histórico que havia se iniciado com o gradual desaparecimento da
escravidão e da servidão na Europa Ocidental, ela também se diferenciava das
emancipações anteriores. A maioria dos historiadores do século XIX atribuiu a
ascensão dos servos e escravos europeus à influência benéfica do cristianismo, embora
os filósofos sociais, de John Millar a Comte e Marx, tenderam a destacar as forças
sociais e econômicas impessoais. Em qualquer caso, o progresso da liberdade dependeu
do desdobramento de algum desígnio inconsciente ou imanente. Mas, a abolição do
tráfico de escravos anglo-americano e da escravidão nas Índias Ocidentais foi
supostamente o resultado de uma agitação apoiada por uma opinião pública
crescentemente ilustrada. Pela demonstração da força das ideias e da ação
organizada para fins de objetivos morais, o movimento antiescravista significou
uma nova fase ou uma entrega na luta pela liberdade humana.
Essa ênfase no poder de uma opinião ilustrada levou a uma segunda implicação
política, mais importante. A Revolução Francesa tinha causado uma desilusão em
muitos liberais britânicos e norte-americanos e havia aprofundado a suspeita da classe
média em relação à agitação popular. Mesmo deixando de lado o exemplo da França,
somente uns poucos radicais aceitariam confortavelmente a história do protesto popular
que ocorrera nos tumultos Wilkesite ingleses, da década de 1760, e dos American
Liberty Boys, da década de 1770, até os movimentos luditas ou outros movimentos
semi-revolucionários dos inícios do século XIX. Mas o movimento antiescravista da
Inglaterra ajudou a justificar a fé da classe média nos efeitos benéficos da opinião
pública. Ele apresentou um exemplo da influência pública controlada e desinteressada
na política nacional, um exemplo que fez a influência pública organizada parecer menos
perigosa que antes.

164
Mesmo nos Estados Unidos, onde o abolicionismo levantou mais (353) questões
explosivas, a demonstração britânica do idealismo prático apelou para a imaginação
religiosa e poética. O seu mais amplo sentido talvez tenha encontrado sua melhor
expressão num texto de Ralph Waldo Emerson, escrito em comemoração ao décimo
aniversário da emancipação das Índias Ocidentais britânicas, um evento que ele
descreveu como “singular na história da civilização; um dia de sensatez; de luz clara;
que nos faz melhor do que um bando de pássaros e de animais; um dia que deu o imenso
fortalecimento a um fato – de toda a história – para a abstração ética”. Emerson, deve-se
destacar, não era um abolicionista, mas considerava a abolição britânica como prova
tangível do progresso moral e como o alvorecer de uma nova era em que as massas
despertariam e insistiriam que um padrão moral claro fosse aplicado a toda questão
pública. “O poder que construiu esse edifício de coisas”, disse, “fez um sinal da sua
vontade para todas as épocas”. Como a maioria dos liberais norte-americanos e
britânicos, Emerson reconhecia confiantemente que a emancipação havia sido
encorajada pelo progresso material e pelo interesse próprio nacional. Os britânicos
sabiam que “a escravidão... não ama o apito da ferrovia; não ama o jornal, o malote do
correio, uma faculdade, um livro, ou um pregador que tem o capricho absurdo de dizer o
que pensa”. Além disso, restava o fato de que “outras revoluções foram a insurreição do
oprimido; essa foi o arrependimento do tirano”. Em outras palavras, pela primeira vez
na história, a mais ilustrada das nações estava começando a entender que a moralidade,
o interesse próprio e o progresso humano eram mutuamente interdependentes e
deveriam se realizar pelos mesmos meios.
Como Emerson expressava ideias que estavam ganhando ampla circulação na
década de 1840, ideias que afetariam mais tarde a opinião e a política não só em relação
à escravidão, mas também em relação à responsabilidade das nações progressistas para
ajudar a civilizar a África e o que agora se conhece como Terceiro Mundo, vale a pena
sublinhar dois pontos que podem ser facilmente perdidos. Primeiro, a unidade da
moralidade, interesse próprio e progresso humano só se tornou manifesta numa luta
contra uma instituição como a escravidão, um produto de “toda a história”, que poderia
ser designado como uma vergonha para o cristianismo e como um obstáculo ao
progresso econômico. Segundo, o que Emerson chamou de “arrependimento do tirano”
assumiu a forma de uma revolução do alto, uma revolução que beneficiava tanto o
oprimido quanto o opressor, mas com termos definidos pelo opressor. Emerson
assegurava ao seu público que os negros britânicos tinham celebrado a hora da

165
emancipação com a oração, não com desordem, festa, dança e mesmo música. Na
manhã da segunda-feira seguinte, “com muito poucas exceções, cada negro de cada
plantation estava no campo para o seu trabalho”.
(354) Só o mais amargo misantropo poderia argumentar que o mundo não se
beneficiou moralmente com a abolição do tráfico de escravos africano e com a
erradicação da escravidão na maior parte do mundo. Se Emerson e os abolicionistas
padeciam de certas expectativas ingênuas, suas expectativas merecem respeito como
poderosa força histórica – uma força que, como resignação pessimista, apresentara
efeitos tangíveis. Vale a pena enfatizar que quando Adam Smith publicou A riqueza das
nações, em 1776, a escravidão era uma instituição legalmente aceita em todas as
colônias do Novo Mundo. Embora Adam Smith procurasse provar os benefícios
econômicos do trabalho livre, admitia que “uma pequena parte da Europa Ocidental é a
única porção do globo que está livre” da escravidão e expressava pouca esperança de
que a instituição logo pudesse desaparecer das regiões produtoras de matérias-primas do
mundo. E até mesmo um jovem africano levado para o Brasil na década de 1780,
quando as primeiras sociedades antiescravistas estavam sendo organizadas na Inglaterra
e na América do Norte, dificilmente poderia ter tido um neto entre os escravos
libertados no Novo Mundo. Não estou aqui interessado em questões de causa, ou com a
explicação do por que a escravidão foi abolida dentro de um período de tempo
relativamente breve, embora me aventure a opinar que as teorias do determinismo
econômico não fornecem a resposta. Para colocar a realização em perspectiva,
precisamos apenas lembrar que a escravização de africanos por europeus começou
muito antes do descobrimento da América e que a escravidão durou por milênios sem
nenhum protesto moral significativo.
Mas antes de nos alegrarmos com essa notável evidência do progresso do século
XIX, devemos também nos lembrar brevemente dos horrores do nosso próprio século,
que eram totalmente imprevisíveis aos pregoeiros do progresso do século XIX. Muito
depois, em 1933, no centenário da emancipação britânica dos escravos e no ano da
subida de Hitler ao poder como Chanceler da Alemanha, Sir Reginald Coupland
proclamou que os princípios abolicionistas tinham finalmente triunfado e “que, exceto
talvez em regiões remotas e não colonizadas do mundo, que estão além do alcance da
opinião civilizada, a erradicação final do sistema escravista será assegurada num espaço
de tempo não longo”. Embora até mesmo as melhores estimativas não possam ser mais
que suposições meio-cegas, parece altamente provável que, desde 1933, muito mais

166
gente tenha sido submetida a novas formas penais e políticas de trabalho escravo que a
transportada como escravo da África para o Novo Mundo dentro de um período de
aproximadamente quatro séculos.
Certamente, pode-se argumentar que os submetidos aos campos de trabalho
escravo modernos não são realmente escravos. Ninguém reclama ser dono deles e das
suas proles como se fosse proprietário de um capital; a instituição não tem objetivo
econômico, (355) mas é antes parte de um sistema penal que subjuga a mando do
Estado. Esses pontos têm reiteradamente confundido os debates sobre escravidão nas
Nações Unidas e têm até mesmo dividido a British Anti-Slavery Society, que conclui
com maravilhosa concisão que nas sociedades comunistas “a escravidão foi retirada da
propriedade privada”. Porém, para complicar mais o assunto, pode-se observar que a
referência de Coupland ao “sistema escravista” homogeneizava a servidão tradicional
das populações tribais pré-modernas com a escravidão racial dos fazendeiros capitalistas
brancos; que a verdadeira escravidão raramente teve um papel importante nas
economias islâmicas, durante longo período o principal foco da Anti-Slavery Society; e
que o trabalho forçado tem sido de considerável importância econômica desde a II
Guerra Mundial na Rússia e no Leste Europeu. Além do mais, o rótulo “servidão penal”
poderia ser aplicado inicialmente a um grande número de escravos africanos enviados à
América, que eram vendidos juntamente com cativos de guerra depois de serem
condenados por crimes ou por forjadas violações de regras religiosas ou políticas. Não
estou resolvido a negar distinções importantes, mas para alguém que trabalha numa
plantation ou num campo penal, provavelmente faz pouca diferença se chegou lá por
uma ficção legal de uma venda como uma peça de propriedade ou como o resultado de
algum crime civil ou político alegado que tinha quase se apagado da memória. Até
mesmo a questão do status herdado tem menor importância quando a população é
predominantemente masculina e há pouca chance de estabelecimento de famílias
viáveis, uma privação familiar imposta tanto aos escravos negros de certas partes do
Novo Mundo quanto aos prisioneiros de campos de trabalho forçado.
Que o trabalho escravo é inerentemente improdutivo e antieconômico era uma
questão de fé, chave de Adam Smith a Emerson e a Coupland; ela escora muito da
segurança dos abolicionistas e se tornou embutida tanto no marxismo quanto na teoria
econômica liberal clássica. Mas, durante os últimos vinte anos, uma escola de
economistas, exemplificada mais recentemente por Robert Fogel e Stanley Engerman,
tem argumentado que os escravos do Sul dos Estados Unidos não só eram rentáveis

167
como investimento, mas também que o trabalho deles era mais eficiente que o trabalho
livre do Norte nas pequenas fazendas familiares; que o trabalho escravo contribuiu para
uma alta taxa de crescimento econômico e para uma renda per capita relativamente alta;
e que em 1860, a escravidão sulista nunca esteve tão forte ou mais estreitamente ligada
ao progresso material. Num estudo mais recente, Seymour Drescher apresentou novas
evidências para mostrar que antes de 1814 a importância econômica das colônias
escravistas britânicas não estava em declínio, como era comumente suposto, mas, ao
contrário, elas estavam adquirindo uma participação cada vez maior no comércio
britânico ultramarino (356) e também um valor cada vez maior na economia britânica
como um todo. As questões levantadas por esses historiadores e economistas são
difíceis e frequentemente técnicas; e é preciso ser cauteloso em aceitar até mesmo suas
tentativas de respostas. Contudo, não podemos mais supor que o sistema escravista é
intrinsecamente não-progressista e auto-destrutivo, e que a abolição da escravidão no
Novo Mundo se limitou a ocorrer como o resultado de forças econômicas norteadas
pelo interesse próprio. A ideologia liberal subestimou a flexibilidade e a capacidade de
crescimento dos sistemas de plantation do Novo Mundo, como, mais tarde, a ideologia
comunista subestimou a flexibilidade e a capacidade de inovação do mundo capitalista.
As democracias ocidentais continuaram a subestimar as capacidades científicas e
produtivas dos regimes totalitários, de esquerda e de direita, que fizeram uso extensivo
do trabalho sob coerção. Se há alguma confiança duradoura na inevitabilidade e
irreversibilidade da emancipação universal, devem ser considerados os horrores
possíveis da engenharia genética que, em linha com a agora fora de moda velha
tecnologia do Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, pode algum dia criar os
escravos naturais ideais, que a natureza se recusou a criar.
Mas, meu propósito aqui não é comprometer-me com uma profecia e sim
colocar a abolição no Novo Mundo dentro de uma perspectiva histórica mais
ampla, mostrando como várias percepções de escravidão estiveram ligadas, por
um largo espaço de tempo, a noções do progresso humano. Percebo que amplas
perspectivas podem ofuscar a concentração, e que saltar sobre séculos e de um
continente a outro é arriscar-se em confusões desesperadas. Mas o risco parece
valer a pena se for para chamar a atenção sobre uma curiosa simetria ou ciclo que
caracterizou a história da escravidão e do antiescravismo nos últimos seis séculos.
O que tenho em mente, se puder antes de tudo resumir brevemente esse
ciclo, começa com o fato de que a exploração europeia do trabalho africano foi o

168
desenvolvimento direto de séculos de guerra e comércio com o mais avançado
mundo islâmico, onde a escravidão negra era desde há muito tempo uma
instituição familiar. A difusão da escravidão negra do Mediterrâneo para as Ilhas
Atlânticas e finalmente para as Índias Ocidentais e para o Brasil esteve
intimamente ligada com a expansão do comércio, da tecnologia e da religião
europeus, e a partir daí a gradual estratégia da Europa venceu o mundo islâmico
rival. A escravidão de plantation, longe de ser uma aberração herdada de
bucaneiros fora-da-lei e de aventureiros ociosos do Novo Mundo, como os liberais
do século XX frequentemente supunham, foi a criação dos povos e das forças mais
progressistas da Europa – mercadores italianos, exploradores ibéricos, inventores
e cartógrafos judeus, banqueiros e investidores holandeses, alemães e britânicos.
(357) Da colonização da Madeira e de outras ilhas produtoras de açúcar ao longo
da costa da África Ocidental até o final da colonização do Novo Mundo, a
escravidão negra foi uma parte instrínseca da expansão europeia.
De fato, dada a espantosa mortalidade dos nativos do Novo Mundo,
principalmente por doenças europeias, e o fato de que os turcos otomanos tinham
sido excluídos das fontes tradicionais de trabalho escravo branco do Mar Morto,
pode-se argumentar que o desenvolvimento do Novo Mundo como um produtor de
produtos tropicais teria sido impossível sem os escravos africanos. Ainda durante o
século XIX, como já vimos, foi o abolicionismo que se enredou com as ideias de
progresso material e expansão comercial dos europeus, especialmente com a dos
ingleses. E, para completar o ciclo irônico, os alvos finais do movimento
abolicionista incluíram Cuba espanhola, o Brasil independente e a África
portuguesa, precisamente as regiões nas quais os europeus primeiramente
adaptaram a escravidão negra. Na virada do nosso próprio século [XX], os alvos
remanescentes eram o Oriente Médio islâmico e a África, regiões a partir das quais os
europeus derivaram a escravidão negra. A persistência de diversas formas de sujeição
provava supostamente que essas sociedades eram atrasadas e pré-modernas e, portanto,
sujeitas à emancipação externamente imposta, como um primeiro passo rumo à
civilização e ao progresso.
Se vamos fazer mais do que simplesmente descrever esse ciclo quase que
misterioso é importante notar que emergem os problemas da aplicação de um termo
como escravidão para formas de trabalho servil tão altamente diversificadas em
diferentes culturas por muitos séculos. Historicamente, o termo escravo foi aplicado a

169
cativos mantidos para sacrifício cerimonial: para escravos domésticos que eram parte
daquilo que os romanos chamavam de família e que, como crianças e esposas livres,
estavam sob o domínio de um paterfamilias; para as concubinas e eunucos dos haréns
muçulmanos; para as crianças mantidas como penhora pelas dívidas dos seus pais; para
as meninas vendidas como noivas; e, por analogia, às populações submetidas ou
conquistadas; ao proletariado industrial; e às vítimas da tirania racial ou política. Em
algumas sociedades, como na Índia, os escravos gozaram de um status mais alto que as
castas mais baixas dos trabalhadores livres. Escravos obtiveram postos de honra nas
cortes reais e em milícias, sendo-lhes permitido entrar nas artes e nas profissões com
mínima interferência. Pode-se citar exemplos de trabalhadores livres nominais que
foram transportados através dos mares para trabalhar em minas ou em plantations; que
foram segregados racialmente como um grupo pária; que foram submetidos à punição
corporal arbitrária e privados de ter acesso a direitos legais; (358) e cujos filhos, embora
tecnicamente nascidos livres, tiveram pouca chance de escapar do status dos seus pais.
Essa confusão constitui um fato social e psicológico. Por que a lei romana
colocava os cativos que trabalharam nas minas de prata da Espanha dentro da mesma
categoria jurídica que os escravos urbanos cujo peculium permitia-lhes participar dos
negócios ou do comércio por conta própria e que, exceto por ser teoricamente
propriedade de seus senhores, dificilmente poderiam ser distinguidos dos mercadores e
lojistas livres? Por que os muçulmanos aplicavam a mesma definição legal à elite negra
militar e aos funcionários da administração no Irã e na Índia que aplicavam aos milhares
de negros africanos orientais que trabalhavam em grupos organizados nos charcos do
sul do Iraque e que em 869 d.C. se revoltaram em massa numa insurreição? E,
completamente fora das discrepâncias comuns entre o status legal do escravo e suas
verdadeiras funções econômicas e sociais, por que líderes religiosos invocam a servidão
ideal para descrever a submissão adequada do homem a Jeová, Cristo ou Alá?
O que distinguia a escravidão na maioria do mundo pré-moderno não era sua
antítese ao trabalho livre, mas sua antítese à rede normal de laços parentais de
dependência, de proteção, de obrigação e de privilégio, laços que facilmente serviam
como um modelo para as formas não parentais de amparo, de clientela e de servidão
voluntária. O escravo arquetípico era um forasteiro, arrancado da matriz da sua família
protetora pela captura, venda falsa, crime, ou outra suposta auto-alienação. O Antigo
Testamento está repleto de exemplos como esses, e é significativo que pela lei saxônica
primitiva um estrangeiro que não tivesse a proteção de nenhum membro da família era

170
automaticamente considerado como um escravo. Poder-se-ia rapidamente acrescentar
que na maior parte da história a escravidão aparece como uma instituição doméstica. De
qualquer maneira, em sentido crítico o escravo não pertence à família que reclama seus
serviços. Sua identidade não cresce nas tradições e relações da família, mas depende da
sua aceitação de um estado adventício e existencial, e de sua lealdade a autoridades que
não são seus parentes. Por isso, tornar-se um escravo de Deus ou de Cristo não era
simplesmente imitar a humildade e a subserviência de um escravo. Era também
reconhecer a transferência das lealdades e obrigações primárias a um poder novo e
temível, na esperança talvez de uma liberdade nova e transcendente.
Desenraizado do seu próprio grupo de parentesco, o escravo ficava aparte da
dinâmica da psicologia familiar, ou daquilo que hoje podemos vagamente denominar de
sistema edípico. Por definição, ele não poderia progredir por estágios de dependência e
de afirmação de si mesmo, que (359) o prepararia para substituir seus modelos de
autoridade. Sua dependência era perpétua, a menos que acabasse pela rebelião física, ou
pelo ato transfigurador da manumissão. Esse status de dependente, que é também um
forasteiro, dava aos escravos um valor adicional em muitas sociedades patriarcais e
dinásticas. Não foi acidentalmente que os muçulmanos estenderam o conceito de
escravidão às concubinas, que complementavam o quinhão legal das esposas; ou aos
eunucos, cujas sementes não poderiam poluir as linhas da descendência familiar.
Como um tipo de raiz ou de conceito arquetípico, a escravidão comprometeu-se
com uma rica camada de significados metafóricos e alegóricos, que cristãos e
muçulmanos adotaram e acrescentaram às antigas tradições hebraicas da servidão,
tradições que os judeus continuam a comemorar na Páscoa. Em relação ao nosso tema
do progresso, as importantes extensões verbais pertenceram à história da redenção
humana. Por exemplo, São Paulo tratou toda criação como sendo gerada da corrupção
escravista para a liberdade das crianças de Deus. Os primeiros cristãos interpretaram as
histórias da salvação de Israel da servidão no Egito e do nascimento escravo de Abraão
e livre dos seus filhos como “prefigurações” da salvação do homem por Cristo. Pelo
menos desde os estóicos, filósofos e teólogos distinguiram a aplicação literal de termos
como “escravidão” de significados supostamente mais profundos e mais verdadeiros
que os termos encerravam. Sem aventurar mais longamente em ideias de linguagem
histórica, pode-se afirmar que virtualmente cada visão da salvação individual ou da
utopia coletiva foi concebida como um desprendimento ou emancipação de uma
genuína, mas definitiva escravidão. A liberdade perfeita, sem dúvida, não seria mais

171
alcançável neste mundo que a submissão perfeita e total. O ponto importante é que
associações simbólicas derivadas da escravidão pré-moderna, do exemplo de cativos
humanos meio domesticados por uma família alienígena, tornam-se profundamente
embutidas na literatura religiosa e secular. As associações sobreviveram em sociedades
como as da Europa Ocidental onde a escravidão havia desaparecido. Os conceitos
modernos de liberdade política, religiosa, econômica, e mesmo psicológica foram
originalmente definidos em referência a alguma imagem da escravidão. Pois a
instituição da servidão sugeria não só desenraizamento, submissão e alienação, mas o
“estado de guerra contínua”, na frase de John Locke, entre dois antagonistas com
interesses irreconciliáveis. Como guerra sublimada, a escravidão poderia representar
uma luta elementar entre exploradores e explorados; ou um estágio necessário da
jornada individual e coletiva do homem em direção à liberdade de consciência; ou um
modelo para converter os homens em mercadorias e para reificar todas as relações
humanas.
(360) Esse pano de fundo serve para iluminar a tensão antiga e contínua entre
escravidão e missão religiosa. Para judeus, muçulmanos e cristãos, todos os que
acreditam numa missão sob a direção de um Deus monoteísta, as normas religiosas
impedem a escravização dos membros da mesma fé. A antiga lei judaica limitava a
duração e as condições da servidão judaica; as leis muçulmanas proibiam
expressamente a escravização de judeus; e a prática cristã, embora fosse mais flexível
durante um período de tempo, tendeu a exigir nos fins da Idade Média que fossem
provadas as origens infiéis ou pagãs dos escravos. Todas as três religiões permitiam a
escravização de forasteiros, mas usualmente na suposição de que tal escravidão era um
benefício por oferecer aos não-crentes a chance de conversão religiosa, que foi a ideia
inicial de progresso moral. A questão crítica não era se a conversão traria a
emancipação imediata, que raramente ocorria em qualquer sociedade, mas se a
assimilação à religião da família poderia trazer um reconhecimento de laços de
parentesco legítimos e o direito de descendência natalício. Em particular, poderiam as
crianças dos escravos convertidos serem livres ou pertenceriam ao proprietário de suas
mães? Há evidência de que tanto para judeus, quanto para cristãos e muçulmanos,
algumas vezes essa era uma questão difícil de responder. Para os muçulmanos e para os
cristãos, a questão se tornou menos difícil, pois os escravos eram crescentemente
recrutados entre povos alienígenas que, devido às suas características étnicas e raciais,
eram facilmente distinguíveis, mesmo depois da conversão religiosa e da aculturação. A

172
permanência relativa do status de escravo era também reforçada onde quer que os
escravos substituíssem as formas mais tradicionais dos recrutados compulsoriamente, do
trabalho não-escravo em empreendimentos tais como as minas, os trabalhos públicos e a
agricultura comercial. E ainda os muçulmanos e os cristãos tendiam a igualar esses usos
do trabalho escravo com a servidão doméstica e paternalista que suas religiões tinham
sempre sancionado. Mesmo a extensão final da escravidão à plantation de larga escala
era justificada pelo velho ideal da família como uma agência de conversão e de
assimilação gradual. Num sentido, a escravidão africana moderna foi uma criação
islâmica. É verdade que os africanos tinham desde há muito tempo escravizado seus
pares africanos, e que os árabes sempre desejaram ardentemente comprar escravos
brancos nos mercados do Mar Morto e de outros lugares. Desde o princípio, o Islã foi
uma fé para ser espalhada pelas guerras religiosas ou jihads, que sujeitavam todos os
infiéis à escravidão. A missão religiosa, conjugada com o ideal paternalista ou com a
escravidão familiar, fez com que parecesse justo e natural que Dar-al-Islam, o mundo
onde o Islã governava, fosse povoado com servos do Dar-al-Harb, as terras da
infidelidade. As guerras religiosas trouxeram um fluxo contínuo de cativos, a princípio
predominantemente da (361) Europa, eventualmente das estepes asiáticas, Índia e África
subsaariana. Nos tempos de grande sucesso, os exércitos muçulmanos prometiam
exaurir o suprimento de infiéis. Nem as mulheres escravas no harém, tampouco os
escravos homens recrutados para o exército árabe estavam em condições de reproduzir
seus substitutos. Mas o desenvolvimento do comércio com o Dar-al-Harb,
suplementado mais tarde pela expansão turca e pela pirataria no Mediterrâneo, ajudaram
a preencher as vagas nos haréns, nas famílias e nos exércitos. Todavia, depois de fazer
todas essas reservas, resta o fato de que durante a Idade Média, quando os cristãos
europeus tinham reconquistado a maior parte da Península Ibérica e tinham começado a
competir com os muçulmanos nos termos do tráfico da África Ocidental, os mais baixos
e mais degradados escravos muçulmanos tornaram-se quase que exclusivamente negros.
A palavra árabe para escravo ‘abd, foi se tornando um sinônimo de negro, ao passo que
a palavra mamluk referia-se somente à elite escrava branca.
Os árabes, como antes os romanos e mais tarde os ibéricos, não conquistaram
impérios para adquirir escravos. Contudo, os três grandes períodos de conquista tiveram
um impacto decisivo sobre a história da escravidão. No século VII d.C. os árabes e seus
muçulmanos convertidos conquistaram uma área que se estendia dos Pireneus ao rio
Indo. Quando, mais tarde, perderam terreno na Europa Ocidental, durante o século XV,

173
os muçulmanos haviam rodeado a cabeça da África negra, da Tanzânia no leste até o
norte da Nigéria no oeste, obtendo escravos de regiões distantes do interior e preparando
o caminho para coisas que viriam. Pode-se enfatizar que a difusão do Islã na África
dependeu largamente dos convertidos de pele escura que obtiveram poder militar e
comercial com sua nova identidade religiosa. Além do mais, as sociedades da África
negra exibiam uma notável resistência, rendendo-se à influência islâmica somente nas
bordas do sul do Saara, na fronteira do extremo nordeste e em poucos lugares ao longo
da costa leste. Por outro lado, mesmo durante o século XI, os escritores árabes estavam
difundindo todos os estereótipos da inferioridade negra, que mais tarde seriam
invocados pelos donos de escravos cristãos no Novo Mundo. Os árabes citavam a
maldição bíblica de Canaan e sustentavam que os filhos de Ham tinham se tornado
negros como punição pelo pecado dos seus ancestrais. Para os árabes, como para os
europeus ulteriores, a pele negra sugeria o pecado, a danação e o demônio. A literatura
árabe está saturada de referências sobre a nudez, o paganismo, o canibalismo e a baixa
inteligência dos povos subsaarianos. Os reis negros, alegavam os árabes, vendem seus
súditos sem nem mesmo usar o crime de guerra como pretexto. Seria um erro considerar
tais crenças racistas como prova de uma sociedade racista. Os comentários derrogatórios
dos árabes sobre os negros eram parte do mais amplo (362) desprezo deles por povos
não-árabes. E o preconceito contra o negro nunca foi sistematizado por leis e
instituições discriminatórias.
Mas, por causa da proibição religiosa que tinham de escravizar muçulmanos, os
árabes foram o primeiro povo moderno a criar uma demanda contínua de um grande
número de escravos estrangeiros. A demanda persistiu do século VII ao XX. Os árabes
foram também o primeiro povo a desenvolver, numa escala massiva, um tráfico de
escravos de longa distância. Indiferentes à humanidade das leis muçulmanas,
indiferentes ao tratamento nas famílias urbanas, os escravos transportados pelas
caravanas através dos desertos, ou por pequenos botes através dos mares até o Golfo
Pérsico, até a Índia, ou tão longe quanto até a China, não devem ter sofrido menos que
os da assim chamada Atlantic Middle Passage. A falta de estatísticas impede
estimativas confiáveis sobre o número de africanos importados da Ásia para as terras
islâmicas, ou do número que morreu a caminho. Todavia, há pouca dúvida de que o
tráfico árabe se tornou crescentemente um tráfico africano, ou de que sua magnitude,


N. do T. Passagem do meio, em referência ao momento em que os escravos deixavam a África e
atravessavam o Atlântico em direção à America

174
por mais de dez séculos, se iguale ou exceda aquela da vergonhosa passagem do meio
para a América.
Como já sugeri, os europeus adotaram as práticas do tráfico de escravos dos
árabes quase incidentalmente no que lhes pareceu uma luta mundial – econômica,
militar e religiosa – com o Islã. Com o posterior descobrimento da América, os
empreendimentos exploratórios portugueses ao longo da costa da África Ocidental
foram parte de um movimento estratégico para rodear e cercar o mundo islâmico,
quebrando o monopólio árabe de comércio com a Ásia. Os escravos negros eram
originalmente pensados simplesmente como negros africanos, ou como negros
muçulmanos, e foi no interesse da conversão religiosa e na ajuda à cruzada contra o Islã
que o Papado do século XV autorizou a continuidade do carregamento de escravos
africanos para Portugal. Essa nova missão religiosa ocorreu coincidentemente ao
mesmo tempo em que a rápida expansão ocidental do açúcar, uma arte que
originalmente os cruzados haviam aprendido com os árabes na Palestina. E, durante a
segunda metade do século XV, o desenvolvimento econômico e comercial da Europa
Ocidental tinha criado um mercado em rápida expansão para o açúcar, sal, pimenta e
outras especiarias que tinham um incalculável valor numa época que nada se sabia sobre
comida gelada. Consequentemente, quando a ilha da Madeira experimentava um boom
do açúcar, que mais tarde iria atingir o Brasil e as Índias Ocidentais, ocorreu uma
mudança significativa. Os escravos, em vez de serem símbolos de luxo e ostentação,
como na maior parte do mundo muçulmano, tornaram-se produtores de artigos de luxo
demandados por uma classe de novos consumidores. Mesmo antes das viagens de
Colombo para a América, a maior parte da cana-de-açúcar das plantations portuguesas
(363) empregava majoritariamente trabalhadores negros. E dos cerca de dez milhões de
escravos negros enviados para a América, aproximadamente 70% foram destinados às
colônias açucareiras.
Antes de pular para a última fase do ciclo escravismo-antiescravismo, permitam-
me fazer um resumo com a observação de que a África foi a primeira vítima da
atividade religiosa missionária europeia combinada com o empreendimento econômico.
Alimentada primeiramente pelo conflito cristão-muçulmano e depois pela rivalidade dos
Estados católicos e protestantes para adquirir impérios, o missionarismo e os
empreendimentos legitimaram o tráfico de escravos e as colônias escravistas como
óbvios agentes de progresso – isto é, progresso rumo ao triunfo da verdadeira fé e do
poder econômico e estratégico nacional. Mas, por volta do final do século XIX,

175
dificilmente a África seria a menor vítima de uma diferente combinação de missão
religiosa e empreendimento econômico, desta vez destinada, em nome do progresso
histórico da civilização cristã, a abolir o tráfico nas suas fontes interiores. Se a demanda
europeia de escravos tinha ajudado a corromper as sociedades africanas, a influência
tinha sido indireta e não tinha desafiado o direito ou a capacidade de autogoverno dos
negros africanos. O abolicionismo encorajou uma intervenção mais direta. Em vez de
justificar a remoção de dezenas de milhares de escravos, supostamente pelo bem de suas
almas, o abolicionismo ajudou a justificar a sujeição de povos inteiros ao governo
colonial, supostamente pelo bem das suas futuras civilizações. Ironicamente, foi por
causa dos europeus desde há muito tempo terem associado africanos negros com a
escravidão e por causa da sua crescente associação da escravidão com os estágios
primitivos do desenvolvimento humano, que eles tão facilmente concluíram que os
africanos eram uma “raça infantil” que precisava da tutela dos povos mais progressistas
do mundo. Os britânicos, tendo tomado a dianteira no arrependimento e no
compromisso abolicionista, eram por auto-definição o povo melhor equipado para
assumir esse fardo.
Por volta de 1840, quando uns poucos abolicionistas britânicos concluíram que o
tráfico de escravos nos oceanos Índico e Atlântico só terminaria com a anexação do
território africano, Sir Robert Peel descobriu a ideologia do progresso que poderia ser a
base da política oficial nas últimas décadas do século. Peel (cuja aparente conversão ao
abolicionismo era muito recente) observou que enquanto o povo britânico tinha
alegremente garantido £20 milhões de libras numa época de grande dificuldade
financeira “com o objetivo de purificar-se da mácula de qualquer participação nos
horrores e nos complicados males da escravidão”, não poderia “esconder de si mesmo a
reflexão mortificadora de que, tendo assim resgatado seu caráter... não tinha sido bem-
sucedido em diminuir a soma do sofrimento humano”. “Até esse país resgatar (364) o
cristianismo e o caráter dos brancos” da infâmia do tráfico de escravos, Peel previa que
“nunca seria capaz de convencer a população da África da superioridade moral dos seus
pares europeus; certamente não poderia convencê-los das verdades do cristianismo, que
continuava a tolerar tais pecados monstruosos”. Ele então convidava seus compatriotas
“a preparar a pedra angular de um empreendimento que tem por objetivo salvar a África
de superstições aviltantes, e pôr fim às suas misérias pela introdução das artes da
civilização e da paz”.

176
Seis anos depois, Lorde Palmerston, então Secretário do Foreign Office,
escreveu um despacho igualmente revelador ao capitão Hamerton, que estava tentando
negociar um tratado com o Sultão de Zanzibar para encerrar o tráfico de escravos árabe.
Cada oportunidade deveria ser aproveitada, escreveu Palmerston,

“para convencer esses árabes de que as nações da Europa estão determinadas a pôr um fim no tráfico de
escravos africano, e que a Grã-Bretanha é o principal instrumento nas Mãos da Providência para a
realização deste propósito. Que é em vão que esses árabes se esforçam em resistir à consumação do que
está escrito no Livro do Destino, e que eles têm a obrigação moral de se submeter ao poder superior, para
deixar de procurar aquilo que está condenado à aniquilação... e que deveriam se apressar em se dedicar ao
cultivo do solo e ao comércio legal e inocente”.

É preciso destacar que tal moralismo despótico não era um manto usado para
esconder interesses econômicos. A longa cruzada britânica para destruir o tráfico de
escravos oceânico não só foi cara, envolvendo gastos com patrulhas navais e subornos
contínuos na forma de compensação; esteve também em conflito com os interesses
econômicos e políticos imediatos dos britânicos, como pode ser visto nas fortes pressões
para que acordos fossem estabelecidos pelos bem-informados funcionários que estavam
em campo. Como os árabes foram trazidos mais para dentro da órbita dos mercados
ocidentais em expansão, ficaram motivados a penetrar ainda mais profundamente no
interior da África em busca de trabalho escravo. Na costa e nas ilhas da África Oriental
eles também desenvolveram a plantation escravista orientada para o mercado, que
começou a se aproximar das plantations iniciais do Novo Mundo. Os bloqueios navais
britânicos e os ultimatos contra o tráfico ajudaram a retardar seu crescimento e minar o
poder político dos árabes aliados e fantoches dos próprios britânicos.
O ímpeto por trás das políticas abolicionistas britânicas era principalmente
religioso. Não foi por um acaso que o mais famoso explorador inglês da África no
século XIX, David Livingstone, era um missionário que estava disposto a sacrificar sua
vida se fosse necessário para encontrar as rotas mais curtas e fáceis para o interior, de
forma que o cristianismo, o comércio e a civilização pudessem extinguir a escravidão no
verdadeiro coração das trevas.
(365) Mas, esses esforços e políticas abolicionistas tiveram um efeito estratégico
de longo-prazo porque estabeleceram a hegemonia moral e ideológica inquestionável da
Grã-Bretanha sobre a maior parte da África e do Oriente Médio, principalmente à custa
dos árabes que foram postos no papel de delinquentes da civilização. Com isso, não

177
pretendo diminuir as genuínas realizações britânicas ou ofuscar a distinção moral entre
defesa da escravidão e abolição da escravidão em nome do progresso humano. Por outro
lado, a eficácia da retórica contra o tráfico, para ajudar a legitimação do império, pode
ser vista pelo modo como foi finalmente assumida pela França, Bélgica, Alemanha e
outras nações que tinham aspirações na África. Em 1889-90, foi realizada em Bruxelas
uma conferência internacional sobre o tráfico de escravos, em parte para pressionar os
muçulmanos com uma determinação unida da Europa cristã. Embora Lorde Salisbury a
tenha saudado como a primeira convenção reunida na história “com o propósito de
promover uma matéria de pura humanidade e de boa vontade”, a Conferência de
Bruxelas foi dominada pelas rivalidades territoriais e comerciais europeias. Todavia, a
Conferência efetivamente estabeleceu precedentes para um tipo de administração dos
povos coloniais, que mais tarde foi institucionalizada pela Liga das Nações.
Simbolicamente, ela serviu também para colocar o mundo islâmico num tipo de status
probatório, sugerindo que as práticas autorizadas pela lei e pelos costumes islâmicos
não poderiam ter lugar no mundo progressista e eurocêntrico do futuro.
Como nosso mundo se tornou menos eurocêntrico, as distinções morais entre o
Ocidente progressista e as assim chamadas regiões subdesenvolvidas se tornaram
bastante turvas. Durante um tempo as Nações Unidas seguiram os precedentes e as
políticas abolicionistas da Liga das Nações, dando sempre à British Anti-Slavery
Society o status consultivo no Conselho Econômico e Social. Durante os anos de 1970 a
escravidão tinha sido, pelo menos nominalmente, tornada ilegal nessas teimosas nações,
como a Arábia Saudita e Mascate [capital de Omã]. Mas na época em que as nações
comunistas acusaram as capitalistas de sancionar a escravidão, o racismo e o
colonialismo sob outros nomes, e quando o assim chamado mundo livre denunciou os
campos de trabalho escravo existentes atrás da Cortina de Ferro, a British Anti-Slavery
Society fracassou ao tentar levantara indignação pública contra a venda de crianças e
noivas em partes da América do Sul, no Oriente Médio e na África Subsaariana. Mesmo
no caso de atrocidades numerosas e óbvias, os exploradores eram os anteriormente
explorados que podiam obter apoio da hostilidade do Terceiro Mundo voltada contra
toda a herança do colonialismo. É significativo que Mohamed Awad, um egípcio que
presidiu as investigações da ONU sobre escravidão em meados da década de 1960,
tenha, no fim das contas, (366) atacado o apartheid e o colonialismo da África do Sul e
de Angola. Durante os anos 1970, a ONU estigmatizou o apartheid como a verdadeira
escravidão do século XX.

178
Talvez tenhamos perdido alguma coisa nessa confusão e no enfraquecimento da
fé no progresso moral. Um cinismo público sobre propaganda, cauteloso em relação aos
riscos de intervenção e saciado de histórias de horror dificilmente pode ser sensível à
causa dos direitos humanos. Já os excessos e a cegueira de um moralismo passado não
nos deveriam levar, como o Cândido de Voltaire, a cultivar resignadamente nosso
próprio jardim. Pois, se o estudo da escravidão e de formas relativas de servidão nada
prova, deveria alertar-nos para a precariedade de qualquer liberdade, e para o fato de
que a escravização tem sido usualmente considerada pelo escravizador como uma forma
de progresso humano.

Nota

Cheguei à conclusão de que seria pretensioso tentar “documentar” este artigo, que é
francamente especulativo e discursivo e que não possui qualquer pretensão de fornecer
novos conhecimentos empíricos. A maioria dos fatos mencionados é extraída de fontes
convencionais.

179
“Britânicos nunca serão escravos”: mito nacional, conservadorismo e
os primórdios do antiescravismo britânico

Nicholas Hudson

(559) De acordo com um aparente consenso dos modernos estudos acadêmicos


sobre a abolição da escravidão, este evento marcou uma vitória histórica dos não-
conformistas, dos radicais ou de quaisquer outros elementos contrários ao sistema
estabelecido da cultura britânica. Um historiador recentemente conectou a emergência
do antiescravismo com as tendências “wilkites” da classe média britânica, e outros
situaram o abolicionismo numa “reforma complexa” empenhada em promover uma
revisão radical do sistema político britânico 231. Supôs-se que, em geral, a escravidão
britânica era tolerada pela igreja anglicana oficial e que o movimento abolicionista foi
dominado pelos “quacres, evangélicos e dissidentes racionais”232. Alguns dos
maiores estudiosos do abolicionismo reconheceram a participação de anglicanos e
conservadores no início do movimento antiescravista, mas sempre interpretaram a
abolição como uma revolução social instigada por uma agitação intelectual e
econômica, como argumentaram David Brion Davis e Roger Anstey, ou pela alienação


Publicado originalmente em HUDSON, Nicholas. “Britons Never Will Be Slaves”: National Myth,
Conservatism, and the Beginnings of British Antislavery. Eighteenth-Century Studies, v. 34, n. 4
(Summer, 2001), p. 559-576.

NicholasHudson leciona na University of British Columbia. Ele é o autor de Samuel Johnson and
Eighteenth-Century Thought (Oxford, 1988), Writing and European Thought 1600-1830 (Cambridge,
1994), e numerosos ensaios sobre cultura e literatura no século XVIII, incluindo “From ‘Nation’ to
‘Race’: The Origin of Racial Classification in Eighteenth-Century Thought”, Eighteenth-Century Studies
v. 29, n. 3 (1996), p. 247-64.

N. do T. Referência a John Wilkes (1725-1797), político radical inglês.
. J. R. Oldfield, Popular Politics and British Anti-Slavery (Manchester; New York: Manchester Univ.
231

Press, 1995), p. 4; David Turley, The Culture of English Antislavery 1780-1860 (London; New York:
Routledge, 1991), p. 108-54. Ver também Betty Fladeland, Abolitionists and Working-Class Problems in
the Age of Industrialism (Baton Rouge: Louisiana State Univ. Press, 1984), p. 1-16.

N. do T. No original, “Rational Dissenters”. Os dissidentes racionais em muitos aspectos eram
próximos ao anglicanismo, contudo eles acreditavam que a religião do Estado colidia com a liberdade de
consciência, por isso discordavam dos laços financeiros entre a Igreja Anglicana e o Estado. Eles
baseavam suas opiniões na razão e na Bíblia e rejeitavam o apelo à tradição ou à autoridade.
. Turley, The Culture of English Antislavery, p. 17. Similarmente, Judith Jennings, em The Business of
232

Abolishing the British Slave Trade (London: Portland, OR: Frank Cass, 1997) concentra-se totalmente na
oposição dos quacres britânicos à escravidão.

180
dos trabalhadores durante os primórdios do capitalismo industrial, como sustentou
Seymour Drescher.233
Esses acadêmicos exemplificam uma historiografia “Whig” que rotineiramente
procura as fontes da mudança social no ataque promovido pelos grupos periféricos ou
não tradicionais ao centro. Nas palavras de Louis d’Anjou, o início da campanha
abolicionista mostra como o capitalismo criou “novos agrupamentos” que, tendo sido
“deixados à margem” política e religiosamente, dedicaram-se à recriação da sociedade a
partir da abolição do trabalho forçado.234 Contudo, esse quadro que apresenta o
abolicionismo como um assalto (560) de elementos marginalizados por um
establishment autoprotetor parece inconsistente com fatos importantes. Primeiro, as
maiores figuras radicais da política britânica, como John Wilkes e John Horne-Tooke,
não desempenharam um papel importante nos estágios iniciais do antiescravismo
britânico. Alguns radicais estavam até mesmo diretamente implicados no tráfico de
escravos: William Beckford era proveniente de uma próspera família jamaicana de
proprietários de escravos, ainda que fosse um dos mais veementes opositores da
administração na época. Segundo, a maioria das vozes mais ressoantes contra a
escravidão durante o século XVIII pertencia a homens e mulheres com fortes raízes na
Igreja Anglicana e com visões conservadoras sobre as questões políticas e sociais da
Grã-Bretanha. Entre eles estavam Samuel Johnson, William Warburton, Edmund Burke,
James Ramsay, William Wilberforce, Hannah More, e até mesmo, como argumentarei,
Granville Sharpe, cuja reputação de “radicalismo” foi exagerada.
Deveria nos causar surpresa que esses anglicanos socialmente conservadores, e
não os radicais e dissidentes, tivessem sido os pioneiros da acusação inicial contra a

. Ver David Brion Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution (Ithaca; London: Cornell
233

Univ. Press, 1975), p. 45-9. Davis afirma que figuras “conservadoras” ou pro-establishment apoiaram
fundamentalmente o abolicionismo em benefício dos próprios interesses econômicos e políticos,
utilizando amplamente as ideias da Ilustração como uma proteção dos seus esforços para sustentar e
justificar o poder que exerciam (p. 49). Em contraste, apresento as objeções conservadoras à escravidão
empreendidas por uma tradição ideológica (em vez de materialista) da cultura britânica que aceita a
interpretação de que a abolição representava um sacrifício do interesse próprio econômico em nome de
objetivos patrióticos e religiosos. Discordo também da posição de Roger Anstey de que o antiescravismo
é o produto de tendências subversivas e radicais na cultura religiosa, social, e intelectual, como Anstey
argumentou em The Atlantic Slave Trade and British Abolition 1760-1810 (London; Basingstoke:
Macmillan, 1975), p. 91-153. Seymour Drescher sustenta que, embora o abolicionismo tenha sido
conservador e hegemônico no princípio, ele se tornou mais radical nos últimos anos em decorrência de
sua principal base estar na classe trabalhadora emergente. Ver Capitalism and Anti-Slavery (Houndmills;
London: Macmillan, 1986), p. 135-61. Embora eu não discorde de que a nascente classe trabalhadora
opunha-se à escravidão, vejo esta oposição como fruto de incentivos essencialmente patrióticos e
piedosos que foram embutidos nela pelos canais oficiais da educação secular e religiosa.
. Leo D’Anjou, Social Movements and Cultural Change: The First Abolition Campaign Revisited (New
234

York: Aldine de Gruyter, 1996), p. 130.

181
escravidão? Neste ensaio, sustentarei que não havia contradição entre o
conservadorismo social ou o conformismo religioso e a oposição à escravidão no século
XVIII. Ao examinar as origens do antiescravismo no curso do século, descobrimos que
as objeções humanitárias emergiram dentro dos grupos que concebiam a Grã-Bretanha
como fundamentalmente anglicana, monárquica e hierárquica. Na história do
antiescravismo, como em outras áreas do pensamento do século XVIII, devemos
começar a questionar a hipótese de que o progresso sempre emana de grupos exteriores
ao establishment que se autoprotege e é intransigente. Pois, de fato, é incorreto
identificar a corrente principal dos valores britânicos com os mercadores e colonos que
controlavam o tráfico. Como argumentarei, o antiescravismo se formou dentro de um
conflito essencialmente ideológico sobre a natureza do “britânico”, entre os proponentes
do descontrolado capitalismo de livre-mercado e a concepção extremamente
conservadora e tradicionalista daqueles que queriam conter o capitalismo dentro das
restrições da moralidade, da religião e da imagem patriótica dos britânicos como um
povo amante da liberdade.
Numa história contada por Boswell, Samuel Johnson fez o seguinte brinde em
companhia de “alguns homens muito solenes em Oxford”: “um brinde à próxima
insurreição dos negros nas Índias Ocidentais”. 235 Este sentimento era típico de Johnson,
que nunca disfarçou sua profunda repugnância pela escravidão, e que apoiou fortemente
os primeiros esforços legais para acabar com a escravidão na Grã-Bretanha. No entanto,
Johnson não foi nenhum pensador radical que usualmente ofendesse o establishment.
Na mesma década em que proferiu a maioria de suas declarações mais fortes contra a
escravidão, ele escreveu um duro ataque em The False Alarm (1770) contra a tentativa
de reeleição de John Wilkes por Middlesex, e denunciou os opositores radicais à
administração em The Patriot (1774), e negou que os norte-americanos tivessem
qualquer direito de representação legislativa em Taxation No Tyranny (1775). Em
Oxford, que Johnson adorava visitar, a maioria de seus amigos era de fato conservadora
e “solene”. Ele considerou Oxford como o seminário da Igreja da Inglaterra, e esforçou-
se para acabar com a subscrição dos Trinta e Nove Artigos, e apoiou a expulsão dos
metodistas da universidade em 1776.

235
James Boswell, Life of Samuel Johnson, ed. G. B. Hill., rev. L. F. Powell, 6 vols. (Oxford: Clarendon
Press, 1934-50), v. 3, p. 200.

N. do T. Os “Trinta e Nove Artigos de Religião” são os que definem historicamente a posição da Igreja
da Inglaterra em relação às controvérsias da reforma inglesa.

182
Samuel Johnson era um Tory e um conservador anglicano incomum que se
opunha à escravidão?236 Vejamos mais de perto as perspectivas políticas e religiosas de
Granville Sharp, o homem que foi o principal responsável por promover a fase inicial
do debate jurídico e político da escravidão na década de 1770. Sharp foi retratado como
um “radical” (561) e um intruso excêntrico que enfureceu a ortodoxia inglesa ao
desafiar com sucesso o direito dos proprietários de escravos britânicos, mais
notavelmente a partir da divisão de águas que se tornou sua defesa do escravo James
Somerset em 1772.237 No entanto, Sharp estava profundamente enraizado no
establishment ortodoxo: era neto de John Sharp, capelão de James II e mais tarde
arcebispo de York, um dos teólogos mais eminentes e influentes da Igreja Anglicana da
Restauração. O pai de Granville e seu irmão mais velho deram continuidade a esta
poderosa herança eclesiástica, e ambos serviram como arquediáconos em
Northumberland. Granville, embora sendo o nono filho e encaminhado para o comércio,
não rejeitou seus laços familiares com a Igreja Anglicana: de 1784 a 1787, Sharp
empreendeu uma campanha vigorosa e bem-sucedida dentro dos mais altos escalões da
Igreja para estender o episcopado para os Estados norte-americanos recém-
independentes.238 Em 1778, ele utilizou suas habilidades consideráveis como estudioso
da Bíblia para argumentar que o uso do artigo definido grego no Novo Testamento
prova a doutrina da Trindade, uma afirmação que impulsionou uma controvérsia com os
dissidentes e os teólogos Unitários.239 Por outro lado, seus escritos políticos não
fundamentam suas supostas ligações com os radicais sociais. Ele defendeu parlamentos
anuais, ainda que os Tories tivessem feito campanha ao longo de todo o século por
eleições mais frequentes, como parte de sua estratégia contra a hegemonia Whig.240 Ao

236
A oposição de Johnson à escravidão tem por vezes sido citada como uma evidência de que ele era mais
“liberal” ou “progressista” do que se pensava. Ver Donald J. Greene, The Politics of Samuel Johnson
(New Haven: Yale Univ. Press, 1960), p. 237; Thomas M. Curley, “Johnson and America”, Age of
Johnson 6 (1994), p. 31-73; James G. Baxter, “Samuel Johnson and the African-American Reader”, The
New Rambler (1994-5), p. 47-57. Meu argumento neste ensaio, ao contrário, sugerirá que não há
inconsistência entre insistir no conservadorismo social de Johnson (como faço) e reconhecer sua oposição
à escravidão.
237
Ver Fladeland, Abolitionists and Working-Class Problems, p. 1-16; Oldfield, Popular Politics and
British Anti-Slavery, p. 31-2.
E. C. Lascelles, Granville Sharp and the Freedom of Slaves in England (London: Oxford Univ. Press,
238

1928), p. 47-9.
239
Ver Granville Sharp, Remarks on the Uses of the Definitive Article in the Greek Text of the New
Testament (London, 1778). O verbete Sharp do Dictionary of National Biography contém informação
sobre a controvérsia provocada por este panfleto.
240
Ver Linda Colley, In Defiance of Oligarchy: The Tory Party 1714-60 (Cambridge: Univ. Press, 1982),
p. 94-5.

183
contrário de Johnson, Sharp acreditava que as colônias deviam ter suas próprias
legislaturas, mas no fundo ele concordava até mesmo com Boswell, que se orgulhava de
ser um defensor apaixonado da ordem social tradicional. Embora fosse um homem de
compaixão destemida e de uma energia formidável, Sharp geralmente apoiava o status
quo social, limitando o sufrágio aos proprietários livres e emitindo repetidas notas bem
claras de lealdade ao Rei e à Igreja.241
Não é de admirar que o epitáfio de Sharp na Abadia de Westminster começa
declarando que ele era um filho leal da Igreja da Inglaterra: “Nascido e educado no seio
da Igreja da Inglaterra, / Ele sempre devotou às suas instituições a mais inabalável
consideração”.242 Tampouco devemos nos surpreender que Sharp tenha circulado no
mesmo meio que Samuel Johnson, um sólido sustentáculo da ortodoxia anglicana. A
família musical de Sharp executava concertos para um círculo que incluía muitos dos
amigos mais queridos de Johnson, especialmente Charles e Fanny Burney, David
Garrick, Oliver Goldsmith, e o General Paoli.243 Johnson manteve contatos pessoais com
dois irmãos mais velhos de Sharp244, e embora Granville fosse vinte e seis anos mais
novo que Johnson, certamente ambos dialogoram a respeito de diversas causas,
incluindo a pressão sobre os marinheiros  e muito provavelmente o caso Somerset,
como discutirei mais tarde.245 Esta rede de relações se estendia a outras grandes figuras
do nascente antiescravismo. John Wesley e Edmund Burke, ambos convertidos ao
antiescravismo, eram conhecidos e admirados pelo círculo de Johnson. Um dos mais
antigos amigos de Johnson, Bennet Langton, foi o anfitrião do jantar em que William
Wilberforce foi apresentado a Thomas Clarkson.246 Clarkson era um clérigo anglicano.

241
Em The Claims of the People of England (London, 1782), Sharp negou “a acusação odiosa da
inovação” (p. 12) e culpou os burgos podres e os homens desses lugares por minar o poder do “Rei e das
pessoas (cujos verdadeiros interesses são inseparáveis)” (p. 7). Sobre a defesa de Sharp do sistema
existente que restringia o sufrágio aos proprietários livres masculinos, ver A Declaration of the People’s
Natural Right to Share in the Legislature (London, 1775), p. 4-5.
242
Lascelles, Granville Sharp, p. 145.
243
Lascelles, Granville Sharp, p. 119-20.
244
Ver a carta de Johnson a William Sharp em The Letters of Samuel Johnson, ed. Bruce Redford, 5 vols.
(Princeton: Princeton Univ. Press, 1992), v. 3, p. 38. Quando em Cambridge, em 1765, Johnson foi
convidado por Topham Beauclerk para conhecer Thomas Sharp, irmão mais velho de Granville e
Arquidiácono de Northumberland. Ver Boswell, Life, v. 1, p. 517.

N. do T. No original, “pressing of seamen”. Tratava-se de subterfúgios utilizados pela Marinha Britânica
para arregimentar marinheiros à força.
Sobre a consulta de Sharp a Johnson a respeito da pressão sobre os marinheiros, ver Lascelles,
245

Granville Sharp, p. 92.


246
Ver Ellen Gibson Wilson, Thomas Clarkson: A Biography (London: Macmillan, 1989), p. 23-4.

184
O próprio Wilberforce apoiou a Igreja Anglicana oficial ao longo de sua vida, e se opôs
à reforma social radical, e foi um admirador especial das obras de Johnson.247
Há uma quantidade considerável de evidências de que essas pessoas
participavam de um meio social em que o ódio pela escravidão era um sentimento
confortável e até mesmo aprovado, ainda que não fosse um valor totalmente universal
(Boswell, na verdade, que raramente visitava Londres, apoiava a escravidão)248. A
adesão parcial deles ao anglicanismo pode surpreender-nos, porque isso podia levar à
suposição de que a Igreja oficial estava ligada economicamente aos que lucravam com a
escravidão. Além disso, muito antes das campanhas peticionárias das décadas de 1780 e
(562) 1790, as condenações de escravidão foram ouvidos até mesmo nos mais altos
escalões da Igreja oficial. Um dos grandes pilares da ortodoxia anglicana do século,
William Warburton, Bispo de Gloucester, um homem que uma vez condenou John
Wilkes como “pior que o diabo”, pregou em 1766 com toda a sua celebrada veemência
em nome da “grande multidão anualmente roubada do Continente Oposto [África], e
sacrificada pelos colonos ao seu grande ídolo, o DEUS DO LUCRO”.249 Warburton não
poderia negar que, em última instância, as próprias mãos da Igreja estavam sujas com a
escravidão: em 1703, a Igreja tinha herdado uma plantation, na Virginia, do General
Codrington, e este investimento valioso pode ter atenuado a disposição de alguns
clérigos de se opor à escravidão nas colônias. 250 Todavia, era inegável o intenso
desconforto do Bispo com a escravidão. Os teólogos anglicanos que inequivocamente
denunciaram o tráfico de escravos no final do século – incluindo Thomas Clarkson,
James Ramsay, Beilby Porteus, e William Paley –não estavam de forma alguma
247
Sobre o prazer que Wilberforce sentia pela leitura de Johnson, ver Garth Lean, God’s Politician (Lon-
don: Darton, Longman; Todd, 1980), p. 41. O conservadorismo social de Wilberforce é bem conhecido, e
discutido detalhadamente por Robin Furneaux em William Wilberforce (London: Hamish Hamilton,
1974), p. 188-94, 381-3, e 445.
248
Boswell acusou Johnson de mostrar “zelo sem conhecimento” em sua oposição à escravidão (Life, v. 3,
p. 200). Parece significativo que Boswell fosse amigo de um poderoso comerciante escocês, Richard
Oswald, um dos principais investidores no tráfico de escravos. Ver David Hancock, Citizens of the
World: London Merchants and the Integration of the British Atlantic Community 1735-1785 (Cambridge;
New York; Melbourne: Cambridge Univ. Press, 1995), p. 68.
249
William Warburton, Sermon Preached before the Incorporated Society for the Propagation of the
Gospel in Foreign Parts (London, 1766), p. 25. Entre os primeiros anglicanos que denunciaram a
barbaridade da escravidão na plantation estão Morgan Godwyn, com The Negro’s and Indians Advocate
(London, 1680), e Thomas Hayter, Bispo de Norwich, com A Sermon Preached before the Incorporated
Society for the Propagation of the Gospel in Foreign Parts (London, 1755).
250
Para relatos a respeito da posição do anglicanismo nas colônias escravistas, ver H. P. Thompson, Into
All Lands: The History of the Society for the Propagation of the Gospel into Foreign Parts (London:
Society for the Promotion of Christian Knowledge, 1951), p. 44-91; Denzil T. Clifton, “Anglicanism and
Negro Slavery in Colonial America”, Historical Magazine of Protestant Episcopal Church, 39 (1970), p.
29-70.

185
importando algum elemento exterior ou “dissidente” para o seio de sua igreja. Eles
estavam afirmando um contraponto à escravidão que tinha sido ouvido nos mais altos
níveis do episcopado e entre os partidários da Igreja Anglicana oficial.
Em suma, é impreciso conceber o abolicionismo como inteiramente ou mesmo
fortemente dominado por “quacres, evangélicos e dissidentes racionais”.251 Essa
impressão obscurece o papel principal dos anglicanos conservadores na liderança dessa
campanha e entre aqueles que assinaram petições durante as grandes campanhas de
1788 e 1792. Uma prova recente sugere que a participação de grupos que representavam
e apoiavam a Igreja oficial foi grandemente subestimada pelos estudos acadêmicos
recentes.252 A identificação do abolicionismo com a dissidência também tendeu a
ignorar a pesada participação de dissenters [dissidentes], de radicais e de grupos que
não participavam do establishment no próprio comércio de escravos. Em Citizens of the
World: London Merchants and the Integration of the British Atlantic Community 1735 –
1785, David Hancock oferece uma análise sociológica inovadora de um grupo que ele
chama de “associados”, um consórcio de comerciantes poderosos que, entre os seus
outros numerosos empreendimentos, operava uma lucrativa feitoria escravista na costa
de Serra Leoa. Hancock conclui que “na maioria das vezes, eles são provenientes das
margens étnicas, religiosas e comerciais da Grã-Bretanha do final do século XVII e do
XVIII”.253 Os dois principais investidores da feitoria escravista, Richard Oswald e Sir
Alexander Grant, eram escoceses; entre os sócios menores estavam Augustus Boyd, um
irlandês que tinha vivido nas Índias Ocidentais, e James Peckell, um huguenote. Algo
igual ocorreu em outros lugares na Grã-Bretanha. Em Bristol, o mais rico porto de
comércio de escravos no oeste da Inglaterra, a porcentagem de dissidentes era o dobro
da média nacional, e o governo Whig da cidade era dominado por comerciantes
presbiterianos e quacres.254 Semelhantemente, um estudo dos principais operadores do

251
Turley, Culture of English Antislavery, p. 17.
252
Embora conclua que o sucesso do abolicionismo reflete o apoio da classe trabalhadora emergente,
Drescher reconhece que “quase um quarto das petições de 1788 e um sexto das de 1792 foram
patrocinadas pelo clero da Igreja oficial” (Capitalism and Anti-Slavery, p. 124). Obviamente, esse dado
não inclui a participação dos anglicanos leigos nas campanhas de petições. Oldfield, que liga a ascensão
do abolicionismo com o radicalismo wilkite, mesmo assim indica que Drescher subestima a participação
da Igreja oficial, da aristocracia e dos grupos da pequena nobreza nas campnhas das petições (Popular
Politics and British Anti-Slavery, p. 107).
253
Hancock, Citizens of the World, p. 59.
254
Ver Nicholas Rogers, Whigs and Cities: Popular Politics in the Age of Walpole and Pitt (Oxford:
Clarendon Press, 1989), p. 258-303.

186
tráfico de escravos de Lancaster revelou que eles eram em grande parte quacres,
juntamente com alguns unitários.255
Essas comunidades que traficavam escravos estavam separadas política,
religiosa e culturalmente do círculo profissional e intelectual das pessoas que se
opuseram inicialmente à escravidão. Esta distância é sugerida, por exemplo, em Two
Dialogues on the Man-Trade (1760), um tratado antiescravista de J. Philmore. O autor
apresenta-se como um personagem que, após ter se desviado um dia para a City, acaba
expondo suas atitudes antiescravistas para um público horrorizado de mercadores e
comerciantes no Royal Exchange: “como não pertenço ao ramo do comércio ou das
mercadorias, raramente me dirijo para lá; mas enquanto lá estive hoje, falei sobre o que
acredito e isso foi considerado como uma (563) heresia por lá”.256 Seu interlocutor, um
comerciante chamado “Sr. Allcraft”, fica igualmente escandalizado com os pontos de
vista de Philmore, pois os considera contrários ao interesse nacional, mas no fim das
contas graças às convicções morais e religiosas do seu companheiro, passa a se opor ao
tráfico de escravos. Esse diálogo nos lembra que o centro nervoso do tráfico de escravos
estava firmemente posicionado em determinadas localidades geográficas (a City,
Bristol, Liverpool, Lancaster) e dentro de uma comunidade mercantil que literatos como
Philmore, Sharp e Johnson consideravam estranha ao seu meio e valores. Esses autores
não negavam que o tráfico de escravos e a escravidão eram lucrativos em termos
puramente econômicos. Mas insistiram que a “verdadeira” moral britânica proibia a
escravidão, “deixemos as consequências desta proibição serem o que quiserem”.257
A pista da ideologia que produziu esse moralismo deve ser seguida até o mito de
uma nação britânica que se opõe fundamentalmente à escravidão – um mito
desenvolvido dentro de alguns dos setores da nação mais ardentemente patrióticos e
conservadores. Depois da Restauração, os autores que defendiam o rei caluniaram
demasiadamente a “escravidão” como algo imposto ao povo britânico pelos puritanos.
Por exemplo, no sermão de coroação de Carlos II, Edward Boteler fez a seguinte
reclamação amarga: “pensamos muito tempo em libertação, gemendo… sob pressões:

255
Ver Melinda Elder, The Slave Trade and the Economic Development of Eighteenth-Century Lancaster
(Halifax, UK: Ryburn Publications, 1992), p. 26-7. Sobre o envolvimento quacre no tráfico de escravos
britânico, ver também Nigel Tattersfield, The Forgotten Trade: Comprising the Log of the “Daniel and
Henry” of 1700 and Accounts of the Slave Trade from the Minor Parts of England 1698-1725 (London:
Jonathan Cape, 1991), p. 32.
256
J. Philmore, Two Dialogues on the Man-Trade (London, 1760), p. 3.
257
J. Philmore, Two Dialogues on the Man-Trade, p. 60.

187
as imposições arbitrárias e injustas do faraó eram piores que as dos capatazes
egípcios”.258 O cativeiro “egípcio” do povo britânico sob Cromwell foi o tema principal
da Votiva Tabula: A Solemn Thanksgiving offered up to God, um tratado que
compreendia dois sermões pregados em 1660, de James Warwell. Antevendo que
“alguns homens” se oporiam à sua analogia entre o regime puritano e a escravidão,
Warwell descreveu o cativeiro e o assassinato brutal de Carlos I:

Não era nosso temido Soberano... o mais virtuoso, piedoso, justo, bondoso e paternal Príncipe,
que jamais reinara sobre estas Nações? não foi ele (digo eu) trazido como um cativo miserável? Não
importa qual liberdade lhe foi deixada, mas o que a graça de Deus e a nobreza de seu próprio espírito (que
não podiam ser cativadas) lhe proporcionaram? Sim, ele morreu e pereceu (como um homem) em tal
cativeiro, para grande pecado e vergonha de toda a nação... Se não tivéssemos sofrido pelo cativeiro ou
escravidão em nossas próprias pessoas, ainda não seríamos todos cativos junto a ele?259

De acordo com o texto bíblico utilizado nestes sermões, Salmos 126:1-2


(“Quando Iahweh fez voltar os exilados de Sião, ficamos como quem sonha”), Warwell
retrata os ingleses como se fossem os antigos judeus, libertados do cativeiro da tirania
cromweliana. Os britânicos eram o “o povo escolhido”, uma raça que repelia todas as
formas de cativeiro. O mito da fuga da Inglaterra monarquista do cativeiro “egípcio”
permeia a linguagem poética e religiosa da Restauração. Numa história bem mais
famosa, John Dryden desenvolve o topos dos ingleses como “israelitas” na sua defesa
poética de Carlos II durante a Rebelião Monmouth, Absolom and Achitophel (1681).
Durante a Commonwealth, escreve Dryden, os puritanos (“Levitas”) perseguidos por
sua antiga e querida Teocracia. / Sinédrio e Priest tornaram-se escravos da Nação, / e
justificaram seus despojos por inspiração.260
Obviamente, esse topos da escravidão não era exclusivo da linguagem política
dos Tories ou da cúpula da Igreja. Os Whigs deram boas-vindas a abdicação de James II
258
Edward Boteler, God’s Godnesse in Crowning the King, declared in a Sermon in the Church of
Kingston upon Hull, on the happy day of the Coronation of His Sacred Majesty Charls the Second April
the 23d. 1661 (London, 1662), p. 25-6.
259
James Warwell, Votiva Tabula: A Solemn Thanksgiving offered up to God (London, 1660), p. 44.

N. do T. Nessa passagem, foi adotada a tradução da Bíblia de Jerusalém.
260
“Absolom and Achitophel”, II. 522-4, in The Poems and Fables of John Dryden, ed. James Kinsley
(London: Oxford Univ. Press, 1958), p. 203. Sobre a identificação dos ingleses aos israelitas na literatura
da Restauração, ver Steven N. Zwicker, Dryden’s Political Poetry (Providence: Brown Univ. Press,
1972), p. 16-23 e 48-60; Linda Colley, Britons: Forging a Nation (New Haven; London: Yale Univ.
Press, 1992), p. 30-3. Sobre a Restauração como a libertação do “cativeiro”, ver Isabel Rivers, The Poetry
of Conservatism 1600-1745: A Study of Poets and Public Affairs from Johnson to Pope (Cambridge:
Rivers Press, 1973), p. 151-2.

188
com uma onda de ação de graças por sua libertação da “escravidão”. 261 A exposição da
teoria política Whig por John Locke nos Two Treatises of Civil Government (1690),
abre com uma denúncia patriótica da “escravidão”, esse “estado vil e miserável (564) do
homem... diretamente oposto à coragem e ao temperamento generosos de nossa
nação”.262 No entanto, enquanto os Whigs rotineiramente acusavam os Tories de querer
“escravizar” os britânicos263, eles próprios haviam feito os investimentos políticos e
econômicos mais pesados da classe mercantil que prosperava com o tráfico de escravos.
Não é de surpreender, por essa razão, que Locke diligentemente protegeu sua
sustentação filosófica da “liberdade” justificando a escravidão em determinadas
condições, ou que ele mais tarde confirmasse o “poder absoluto e a autoridade” dos
proprietários de escravos nas Constituições Fundamentais da Carolina.264 Os Tories, por
outro lado, estavam muito mais dispostos ideologica e economicamente a estabelecer
uma causa comum sentimental com as vítimas da aventura mercantil britânica. Proscrito
do poder após a sucessão hanoveriana, os jacobitas e Tories favoreceram
romanticamente num culto de martírio, perseguição e exílio, temas facilmente
associados com o destino dos africanos escravizados.265 Além disso, como E. P.
Thompson e Linda Colley indicaram, os fidalgos Tories encontraram aliados entre os
pobres trabalhadores, que também se apegavam nostalgicamente ao velho mundo
paternalista da mansão e do campanário, interrompido pela nova ordem dos Whigs
avarentos e irreverentes.266 Para os alienados pela hegemonia Whig, a escravidão
africana oferecia um símbolo convincente de como a relação tradicionalmente benigna

261
Ver, por exemplo, The Muses Farewell to Popery and Slavery. A Collection of Miscellany Poems, Sa-
tyrs, Songs &c. Made by the most Eminent Wits of the Nation (London, 1690).
262
John Locke, Two Treatises of Government, ed. Peter Laslett, 2d ed. (Cambridge: Cambridge Univ.
Press, 1963), pt. 1, cap. 1, secão 1, 175.
Por exemplo, como salientado por Bolingbroke em A Dissertation on Parties, in Political Writings, ed.
263

David Armitage (Cambridge Univ. Press, 1997), carta 1, p. 5.


264
Ver Fundamental Constitutions of Carolina, in Political Essays, ed. Mark Goldie (Cambridge: Univ.
Press, 1997), p. 179-80. Sobre as justificações teóricas de Locke da escravidão, que seguem o raciocínio
apresentado anteriormente na tradição da lei natural de Grotius e Pufendorf, ver Two Treatises of Civil
Government, cap. 4, sec. 24, p. 325-6, e cap. 16, seções 176-9, 432-5.
Ver Daniel Szechi, The Jacobites, Britain and Europe 1688-1788 (Manchester; New York: Manchester
265

Univ. Press), p. 32-7.


266
Ver E. P. Thompson, “Eighteenth-Century English Society: Class Struggle without Class?”, Social
History v. 3 (1978), p. 133-65; Colley, In Defiance of Oligarchy, p. 100. Sobre o apelo do jacobitismo
junto às classes baixas e entre os alienados e despossuídos, ver Szechi, The Jacobites, p. 32; Paul Kléber
Monod, Jacobitism and the English People 1688-1788 (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989), p.
161-266.

189
entre senhor e camponês tinha sido transfigurada em tirania pela ganância comercial
excessiva.
Ao traçar a oposição inicial à escravidão, portanto, nós nos encontramos olhando
repetidamente para a direita, não para a esquerda. Oroonoko, de Aphra Behn (1688), é
apenas o exemplo mais famoso desta ligação entre ideologia Tory dominante e uma
identificação sentimental com o sofrimento dos escravos africanos. A novela de Behn
dramatiza o topos da “escravidão” do monarca legítimo vividamente descrito por James
Warwell: Oroonoko, o príncipe africano escravizado é comparado diretamente com
Charles I, e seu martírio final evoca os temores Tory de que o mesmo destino aguardava
por James II.267 Seus algozes são patentemente Whigs e puritanos, hipócritas religiosos
que pisoteiam o código de honra de cavalheiros por uma questão de torpe ganância.
Embora Oroonoko não tenha condenado explicitamente o tráfico de escravos, ele
explorou o apelo sentimental de identificar um poderoso mito britânico, a “escravidão”
do verdadeiro monarca britânico, com a escravização real dos africanos no tráfico de
escravos do Atlântico. O apelo notavelmente duradouro desta conexão é testemunhado
pelo sucesso da versão dramática da novela de Behn por outro Tory da cúpula da Igreja,
Thomas Southerne, cujo apresentação arrancou lágrimas do seu público repetidas vezes
ao longo do século. Em uma performance de 1759, dois “príncipes” africanos assistiram
com grande interesse e prazer o Oroonoko, de Southerne, no Theatre Royal Drury Lane.
Eles demonstraram um desconforto evidente com o final sangrento da peça, e receberam
demonstrações de pesar dos frequentadores brancos.268 Houve pelo menos três versões
diferentes da peça de Southern nos anos 1759 e 1760, incluindo uma do colaborador
literário de Johnson, John Hawkesworth. Como J. R. Oldfield apontou, estas versões
posteriores do Oroonoko tornaram essa história cada vez mais explicitamente hostil à
instituição da escravidão, destacando o comportamento vil dos senhores escravistas.269
Estas peças tentavam capitalizar o sucesso provocado pelas identificações
emocionais entre os britânicos e os africanos, um tema extraído do rio de nostalgia
nacional, amplo embora superficial, do exílio do “Rei que some pelas águas”. A mesma
267
Sobre a tipologia realista [royalist] de Oroonoko, particularmente em conexão com a escravidão, ver
George Guffey, “Aphra Behn’s Oroonoko: Occasion and Accomplishment”, in Two English Novelists:
Apha Behn and Anthony Trollope (Los Angeles: Clark Library, 1975); Kathleen M. Rogers, “Fact and
Fiction in Aphra Behn’s Oroonoko”, Studies in the Novel, v. 20 (1988), p. 1-15; Laura Brown, Ends of
Empire: Women and Ideology in Early Eighteenth-Century English Literature (Ithaca: Cornell Univ.
Press, 1993), p. 23-40. Ver os ensaios críticos reimpressos na recente edição de Oroonoko feita por
Joanna Lipking (New York; London: Norton, 1997), p. 199-264.
268
Ver Gretchen Gerzina, Black England: Life before Emancipation (London: John Murray, 1995), p. 11.
269
Oldfield, Popular Politics and British Anti-Slavery, p. 24-7.

190
identificação foi feita em numerosas obras patrióticas e conservadoras ao longo do
século. Poucos trabalhos tornaram essa identificação tão explícita quanto a novela
anônima (565) cripto-jacobita Memoirs of an Unfortunate Young Nobleman, Return’d
from a Thirteen Years Slavery in America, publicado em 1743. Nessa obra, um jovem
nobre inglês, o Cavaleiro James é privado de seu direito de primogenitura por seu
perverso tio, que o vende para uma região onde “ninguém que seja feliz o suficiente
para ser batizado na fé cristã tem o direito ou pode legalmente sê-lo” – as colônias
escravistas.270 Aqui, o Cavaleiro James labuta nos campos com um grupo de escravos
que parece consistir inteiramente de aristocratas brancos exilados, incluindo um amigo
com o sugestivo nome de “Jacó”, que é chicoteado e preso pelo senhor de escravos cruel
e avarento.271 Apesar de estar nas proximidades da alegoria política, este tratado também
mira na própria escravidão, condenando “os sofrimentos da escravidão americana”
como “infinitamente mais terríveis do que a turca, por mais espantosa que esta seja
representada”.272
O jacobitismo é uma fonte reveladora do sentimento antiescravista, pois, em
muitos aspectos, os jacobitas carregaram o fardo de defender o mito nacional diante dos
ventos da mudança que sopravam da City e de Hanover. No entanto, este mito tinha
claramente um apelo que ia muito além dos portões do Palácio St. Germain entre os
britânicos patrióticos que, embora apóstatas dos Stuarts católicos, sentiam-se alienados
pela hegemonia Whig e desconfortáveis pela cultura mercantil do luxo e da ganância.
Um ataque anônimo contra a escravidão em 1709 escoriava a “avareza e o luxo” dos
mercadores de escravos, retratando os escravos africanos como o mesmo tipo de heróis
cavalheirescos e românticos celebrado em Oroonoko.273 O companheiro de Johnson,
Richard Savage, um Tory ardente e jacobita de primeira hora, atacou a escravidão “Of
Public Spirit in Regard to Public Works” (1737):

“Why must I Afric’s sable Children see


Vended for Slaves, though form’d by Nature free,
The nameless Tortures cruel Minds invent

Anon., Memoirs of an Unfortunate Young Nobleman, Return’d from a Thirteen Years Slavery in
270

America (London, 1743), p. 53-4.


271
Anon., Memoirs of an Unfortunate Young Nobleman, p. 76.
272
Anon., Memoirs of an Unfortunate Young Nobleman, p. 63.
273
Ver Anon., A Letter from a Merchant at Jamaica to a Member of Parliament in London, to Which is
Added, a Speech Made by a Black at Gardaloupe [sic] at the Funeral of a Fellow Negro (London, 1709),
p. 31.

191
Those to subject, whom Nature equal meant?
If these you dare, albeit unjust Success
Empow’rs you now unpunish’d to oppress,
Revolving Empire you and yours may doom,
(Rome all subdu’d, yet Vandals vanquish’d Rome)
Yes, Empire may revolt, give Them the Day,
And Yoke may Yoke, and Blood may Blood obey”.274

Como “London”, de Johnson (1738), o poema de Savage pertence ao fim do


período da Oposição Patriótica Tory a Walpole. Atacando o comércio imoral e o
“Estado refém de crédito”, ele imagina a prosperidade da Grã-Bretanha como a união da
“arraia miúda” com uma aristocracia benigna, coroada pelo hanoveriano queridinho da
Oposição, Frederico, Príncipe de Gales. O paralelo implícito entre os africanos
escravizados e o povo “oprimido” da Grã-Bretanha inspirou uma polêmica estridente
contra o tráfico de escravos no volume 5 da The Gentleman’s Magazine, em janeiro de
1735. Este ataque tomou a forma de uma carta de “Moses Bon Sàam”, um suposto
escravo liberto cujos estudos posteriores convenceram-no do mal absoluto e da
hipocrisia da escravidão. Deleitando-se com o seu próprio nome de escravo, Moisés se
baseia no grande topos de apoio à monarquia dos britânicos, que os considera como um
povo que escapou do “cativeiro”.

As soon as I cou’d read, I discover’d, the Holiest of all Books, the


Fountain of White Man’s Religion, with Amazement, and prophetic Joy,
that the very Man from whom they derive the Name given me, of
(566) Moses, had been the happy Deliverer of a Nation! A Nation, chosen
and beloved of God! from just such a Slavery, as That which You, and


N. do T. Em tradução livre: “Por que é que eu, África, preciso ver crianças negras / Vendidas como
escravos, embora nascidas livres pela Natureza, / As inomináveis torturas que as cruéis mentes inventam /
Por que sujeitar, se a Natureza significa igualdade? / Se estes se atreverem, embora com sucesso injusto /
Deixá-lo impune para oprimir, / Você e seu Governo rotativo podem condenar, / (Roma a todos subjugou,
contudo os vândalos derrotaram Roma) / Sim, o Governo pode revoltar-se, dê-lhe a oportunidade / O jugo
pode subjugar e o sangue pode chamar sangue”.
274
Richard Savage, “Of Public Spirit in Regard to Public Works” [Second Version], v. 11, p. 301-10, in
Clarence Tracy, ed., The Poetic Works of Richard Savage (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1962).
Este poema foi citado por Thomas Clarkson em The History of the Rise, Progress, and Accomplishment
of the Abolition of the African Slave-Trade, 3 vols. (New York: John S. Taylor, 1836), v. 1, p. 47.

192
your Forefathers have groaned under.275

Como esta carta mostrou, houve um apelo inequivocamente “britânico” ao


antiescravismo. Nesse sentido, o Moisés negro é seguramente um britânico simbólico,
musculoso e temente a Deus, uma resistência empolgante contra os vilões luxuosos e
hipócritas que escravizaram seus compatriotas. Esta carta também recorda os temas
jacobitas favoritos do exílio e da perseguição, topoi que novamente é conectado com o
sofrimento dos africanos no “Essay on Man”, de Pope (1733-1734). Neste poema, os
escravos africanos sonham com sua “terra natal”, onde “não há demônios atormentando,
não há cristãos sedentos de ouro!”276 A traição das vítimas negras é também o tema da
lenda imensamente popular de “Inkle e Yarico”, que narra o sacrifício de uma garota
negra pelo “interesse sórdido” dos traficantes de escravos.277 Nos últimos anos, muitos
poetas e artistas se voltariam para a mesma fonte de sentimento popular, incluindo
Francis Seymour William Shenstone, John Dyer, e Thomas Day – cujo primeiro poema,
“The Dying Negro” (1773), foi um sucesso e contribuiu com o duradouro reservatório
de simpatia para com os africanos nobres e sofredores na esteira do julgamento de
Somerset”.278
Como os poemas de Savage e Pope sugerem, o tema da escravidão tornou-se
particularmente atual durante os anos da Oposição ao primeiro-ministro Sir Robert
Walpole. Os escritores da oposição há muito estigmatizavam Walpole com acusações de
que ele tinha “escravizado” a nação ou, mais tipicamente, que ele se cercou de


N. do T. Numa tradução livre: “Tão logo pude ler, descobri, no mais sagrado de todos os livros, na /
Fonte da Religião dos homens brancos, com espanto e profética alegria / que o próprio homem do qual
deriva o nome que me foi dado, / Moisés, foi o feliz libertador de uma nação! Uma nação, escolhida / e
amada por Deus! Que vivia sob a escravidão, semelhante àquela em que você e / seus antepassados
gemeram subjugados”.
275
The Gentleman’s Magazine, v. 5 (1735), p. 22.
Essay on Man, epístola 1, 1l. 107-8, in The Poems of Alexander Pope, ed. John Butt (New Haven: Yale
276

Univ. Press, 1963), p. 508.


277
A história de “Inkle and Yarico” tornou-se muito bem conhecida na versão de Richard Steele, no
Spectator, nº 11. “Interesse sordid” é a expressão usada na versão poética desta história por Frances
Seymour, Countess of Hertford, v. 1, p. 84, in Roger Lonsdale, ed., Eighteenth-Century Women Poets: an
Oxford Anthology, (Oxford; New York: Oxford Univ. Press, 1989). Para um relato muito breve dos
escritos antiescravistas do início do século, ver Anthony J. Barker, The African Link: British Attitudes to
the Negro in the Era of the Atlantic Slave Trade, 1550-1807 (London: Frank Cass, 1978), p. 18-20.
278
Ver William Shenstone, “Elegy XX: He Compares his Humble Fortune with the Distress of Others;
and his Submission to Delia with the Miserable Servitude of an African Slave”, in The Poetic Works of
William Shenstone, ed. George Gilfillan (Edinburgh: James Nichol, 1854); John Dyer, The Fleece: A
Poem (London, 1757), p. 129-30; Thomas Day, The Dying Negro: A Poem (London, 1773).

193
bajuladores, avarentos e “escravos” afrancesados.279 Ironicamente, essa velha metáfora
ganhou uma realidade alarmante no final da década de 1730. Em 1737, começaram a
chegar relatórios com a informação de que a guarda costeira espanhola abordava navios
britânicos, conduzia a tripulação para baixo do convés para que ela dormisse com o
carregamento de africanos, e, de outro modo, usando e alimentando britânicos nascidos
livres como escravos. Pessoal e profundamente ligado aos interesses da City no tráfico
de escravos, Walpole havia diligentemente cultivado o apoio do lobby das Índias
Ocidentais no parlamento, protegendo seus interesses com a Lei do Melaço, em 1733, e
a Lei do Açúcar, em 1739.280 Todavia, durante o furor dos ataques e saques espanhóis na
América colonial, Walpole hesitou em intervir com canhoneiras, optando por prosseguir
na via menos onerosa da diplomacia. Como Walpole hesitou, os jornais saíram repletos
de relatórios enfurecidos com a “escravidão” dos britânicos: “Quando os 71
ESCRAVOS-INGLESES retornaram para casa”, escreveu o London Evening-Post:
“Esperamos que eles tragam consigo para casa alguns de seus GRILHÕES e a
PÉSSIMA COMIDA, e também contem-nos, se puderem, quantos ingleses ainda são
ESCRAVOS na Espanha e na América”.281 Na esteira deste alvoroço sobre a
“escravidão” das tripulações britânicas, Thomson escreveu o famoso refrão de “Rule
Britannia” (1740) – “britânicos nunca serão escravos” [Britons never will be slaves].282
A moralidade do tráfico de escravos provocou um debate público inédito, estimulado
pelos relatos de que os britânicos estavam sendo literalmente colocados a ferros, tal
como Oronooko. Em 1740, cartas atacando este comércio apareceram tanto na The
Gentleman’s Magazine quanto na The London Magazine.283 Thomson começou a revisar

279
O “filósofo” do movimento de Oposição, Bolingbroke, frequentemente levantou essa acusação contra
Walpole. Ver Isaac Kramnick, Bolingbroke and His Circle: The Politics of Nostalgia in the Age of
Walpole (Cambridge: Harvard Univ. Press, 1968), p. 129-30 e 134. Ver também a primeira peça proibida
sob a Lei de Licenciamento Teatral de Walpole (1737), Gustavus Vasa, o libertador de seu país, de Henry
Brooke (London, 1739), III, viii, p. 40.
Ver H. T. Dickinson, Walpole and the Whig Supremacy (London: English Universities Press, 1973), p.
280

110-1.
281
Citado in Philip Woodfine, Britannia’s Glories: The Walpole Ministry and the 1739 War with Spain
(Suffolk, UK; Rochester, NY: The Royal Historical Society and The Boydell Press, 1998), p. 140.
Woodfine discute a importância da escravidão no discurso da oposição em várias ocasiões. Ver também,
p. 100-1, 130-2, e 157-8.
282
“Rule Britannia”, l. 6, in James Thomson: Poetical Works, ed. J. Logie Robertson (London: Oxford
Univ. Press, 1908), p. 422. Esta canção apareceu pela primeira vez em Alfred: A Masque (1740), co-
escrita por Thomson e David Mallet.
283
The Gentleman’s Magazine 10 (1740), p. 341; London Magazine 9 (1740), p. 493-4.

194
The Seasons, adicionando linhas sobre “o cruel tráfico / que espolia a infeliz Guiné de
seus filhos”.284
Foi também neste momento que o jovem Samuel Johnson, com a tragédia em
mãos, chegou à capital em busca de fama literária e fortuna. Um “Tory” declarado,
Johnson tinha crescido em uma das cidades mais notoriamente monarquistas da
Inglaterra, Lichfield, a última cidadela de resistência à Cromwell nas guerras civis. Ele
imediatamente adotou o tema da Oposição, segundo o qual Walpole foi responsável por
“escravizar” (567) o povo inglês. No imensamente bem-sucedido início da cena do
escrito de oposição de Johnson, “London” (1738), Thales lamenta que, apesar de ter
nascido “longe da escravidão”, e de respirar o ar puro da liberdade britânica, o seu país
está sendo invadido por bajuladores e franceses parasitas. Esta prole servil da tirania
gálica, como o restante dos favoritos de Walpole, eram “Escravos do ouro”.285
Absorvido no ataque a Walpolle, Johnson não mencionou que os africanos estavam
sendo realmente escravizados pelos britânicos no Caribe. Todavia, trabalhando na The
Gentleman’s Magazine, um periódico que publicou três diferentes ataques à escravidão
entre 1735 e 1746286, Johnson não demorou para voltar a suas atenções diretamente para
o tráfico de escravos. Em 1740, ele escreveu “Life of Drake” para a The Gentleman’s
Magazine, expressando solidariedade com os “Symerons”, as comunidades de escravos
fugitivos que conhecemos agora como “maroons”. Durante sua campanha contra os
espanhóis no Caribe, escreveu Johnson, Drake fez uma aliança com os

Symerons, ou negros fugitivos, que, tendo escapado da tirania de seus senhores, em grande número,
tinham se estabelecido sob dois reis, ou líderes, em ambos os lados da estrada entre Nombre de Dios e
Panamá, e não só afirmaram seu direito natural à liberdade e à independência, mas esforçaram-se para
vingar as crueldades sofridas, e ultimamente lançaram os habitantes de Nombre de Dios na máxima
consternação.287

284
“Summer”, II. 1019-20, in The Seasons, in James Thomson: Poetic Works, p. 89.
“London”, II. 117 e 178, in The Poems of Samuel Johnson, eds. David Nichol Smith; Edward L.
285

McAdam (Oxford: Clarendon Press, 1974), p. 74 e 77.


286
Além dos artigos de 1735 e 1740, citados acima, ver The Gentleman’s Magazine 16 (1746), p. 479.
287
Life of Sir Francis Drake, in The Works of Samuel Johnson, L.L.D., 11 vols. (Oxford, 1825), v. 6, p.
313-4. Sobre os maroons e as revoltas de escravos no Caribe, ver Eugene D. Genovese, From Rebellion
to Revolution: Afro-American Slave Revolts in the Making of the Modern World (Baton Rouge; London:
Louisiana State Univ. Press, 1979); Orlando Patterson, “Slave and Slave Revolts: A Socio-historical
Analysis of the First Maroon War, 1665-1740”, in Maroon Societies: Rebel Slave Communities in the
Americas, 2d ed. (Baltimore; London: Johns Hopkins Univ. Press, 1979), p. 246-92; Michael Craton,
Testing the Chains: Resistance to Slavery in the British West Indies (Ithaca; London: Cornell Univ. Press,
1982).

195
Esses são os sentimentos que mais tarde inspiraram o velho Johnson a oferecer
um brinde em Oxford: “um brinde à próxima insurreição dos negros nas Índias
Ocidentais”.288 Todavia, como deveria estar claro, não havia nada de radical nesta
solidariedade com os maroons (que, na verdade, logo concluíram um tratado com as
autoridades na Jamaica em 1739). As rebeliões escravas foram anteriormente retratadas
ou esboçadas em Oroonoko, no “Of Public Spirit”, de Savage, e no discurso de Moses
Bon Sàam. Alguns jacobitas ainda sonhavam poder recrutar os marrons para ajudar a
restaurar a autoridade do “le roi Jacques”, no Caribe.289 Johnson retrata um dos heróis da
Oposição, Sir Francis Drake, em seu papel familiar de defensor da liberdade contra os
brutais espanhóis, cuja corrupção tirânica e a ânsia por ouro tinham um cheiro
distintamente walpoliano.290 Em suma, Johnson não cria, mas sim reforça a identificação
já bem estabelecida entre escravos africanos e britânicos “verdadeiros” que defendem a
liberdade e o cristianismo contra a opressão.
Portanto, muito antes da histórica objeção jurídica de Granville Sharp à
escravidão, em 1772, autores britânicos condenavam o tráfico de escravos como um mal
apoiado na ganância mercantil e na traição do cristianismo. Longe de serem “radicais”
ou contrários ao “establishment”, esses sentimentos antiescravistas derivavam de um
patriotismo profundo e frequentemente xenófobo, capturado pelo ataque apaixonado à
escravidão do anônimo An Essay Concerning Slavery and the Danger Jamaica is
Expos’d to from the Too Great Number of Slaves (1746):

... Seduzidos pelo ouro espanhol, os distritos comerciais não desdenharam a função de transportadores, ou
melhor, de cafetões e alcoviteiros, desta cruel luxúria! – que o francês, ele próprio um escravo, pense que
pouco importa submeter os outros a esta condição, não é de todo surpreendente; que o holandês sacrifique
tudo pelo ganho não é de se admirar; mas que o generoso e livre britânico, que conhece o valor da
liberdade, que a valoriza mais que a vida, e a ama mais do que a desfruta, comercialize a liberdade por
um vil lucro (568) e se torne o instrumento da privação da benção de outros – da qual ele não participa
exceto com a vida –, que escravize, é um acaso que me surpreende, aflige e atormenta.291

288
Para uma discussão sobre o apoio de Johnson às rebeliões escravas, ver James G. Basker, “‘The Next
Insurrection’: Samuel Johnson and Racial Violence”, The Age of Johnson, v. 10 (2000), p. 1-15.
289
Ver Woodfine, Britannia’s Glories, p. 177.
290
Sobre Drake como um herói da Oposição, ver Woodfine, Britannia’s Glories, p. 123.
291
Anon., An Essay concerning Slavery and the Danger Jamaica is expos'd to from the too Great Number
of Slaves (London, 1746), p. 27.

196
Os britânicos, e somente os britânicos, prezariam a liberdade acima de suas
vidas, e até mesmo do dinheiro: como os exploradores britânicos da escravidão
livrariam seus negócios desta auto-imagem nacional? São raras as defesas do tráfico de
escravos do Atlântico antes da década de 1740, quando os constantes ataques a ele
começaram a preocupar os traficantes da Guiné e o lobby parlamentar das Índias
Ocidentais. Todavia, quando essas defesas surgiram, elas evidenciaram uma
considerável incerteza sobre a forma de rebater a acusação de que tal comércio era
antipatriótico e anticristão. Os defensores da escravidão ainda não tinham acesso a uma
doutrina “científica” da inferioridade racial, que somente foi formulada na obra de
Lineu, e só se infiltrariam no discurso popular no final do século.292 Por exemplo, o
iminente economista inglês, Malachy Postlethwayt defendeu a escravidão dos africanos
em The National and Private Advantage of the Africa Trade Considered (1746) sem
utilizar sequer uma vez a palavra “raça” ou sugerindo que os africanos fossem
naturalmente inferiores.293 Sua posição consistia em afirmar que os “servos” africanos,
como ele preferia chamá-los, foram resgatados por comerciantes europeus de condições
muito piores em suas nações bárbaras e pagãs. Outros apologistas da escravidão
tentaram jogar toda a questão de volta no colo dos britânicos hipócritas. Em uma longa
defesa da escravidão na Gentleman’s Magazine, em março e abril de 1741, um
fazendeiro jamaicano anônimo ridicularizou “muitos Cavalheiros ilustres... que estão
sempre falando dos direitos naturais da humanidade, entre os quais está a liberdade, e
dizem que ela pode ser roubada do homem, mas que jamais poderá ser confiscada”. Tais
“dogmatizadores ousados”, continuou ele, emudeceriam se fossem apontados como os
principais beneficiários do tráfico de escravos. O fazendeiro confrontou os leitores da
The Gentleman’s Magazine com o seguintes desafio: se os britânicos acreditavam
seriamente que a escravidão era “uma clara violação da justiça comum”, então eles
deviam estar preparados para sacrificar tanto as riquezas do tráfico de escravos quanto
as suas colônias do Caribe aos seus inimigos, que as aceitariam de bom grado. Até que
isto ocorresse, deveriam limitar essa “prevaricação” moralista a eles mesmos.294

Ver meu ensaio “From ‘Nation’ to ‘Race’: The Origin of Racial Classification in Eighteenth-Century
292

Thought”, Eighteenth-Century Studies, v. 29, n. 3 (1996), p. 247-64.


293
Ver Malachy Postlethwayt, The National and Private Advantage of the Africa Trade Considered
(London, 1746), p. 4.
Ver “The Case of the Negroes and Planters Stated”, The Gentleman’s Magazine 9 (1741), p. 145-7 e
294

186-8.

197
O conflito, como este escritor reconheceu, foi entre a mitologia nacional dos
britânicos como cruzados da “liberdade” e a realidade lucrativa de um tráfico de
escravos em expansão no Atlântico. Os comerciantes da Guiné contavam com o poder
do interesse econômico próprio para superar qualquer oposição organizada a um
comércio que, de acordo com um sarcasmo de um agente da Real Companhia Africana,
“adoça o chá das senhoras, e permite uma generosa refeição”.295 No curto prazo, esta foi
uma aposta previsivelmente segura. Mas os traficantes e seus advogados haviam
subestimado a força dos sentimentos populares que começaram a se identificar pessoal e
profundamente com o destino dos africanos escravizados.
Estas foram as sementes do ativismo antiescravista que viria a florescer no
trabalho de Granville Sharp. Por sua própria conta, Sharp não estava propondo uma
revisão radical da justiça britânica, mas estava simplesmente defendendo o que ele
considerava como uma longa e oficial hostilidade da lei e da prática inglesa em relação
à escravidão. Em parte, ele ainda estava lutando a velha batalha contra Walpole e os
interesses da City. Na segunda página de sua A Representation of the Injustice and
Dangerous Tendency of Tolerating Slavery (1769), ele citou o julgamento de York, de
1729, e Talbot, o advogado-geral e procurador-geral nomeado por Walpole, tolerando
(569) a existência da escravidão na Grã-Bretanha.296 Contrariando um julgamento
anterior de Justice Holt sobre a liberdade dos escravos, esses políticos tinham aplacado
os temores dos aliados da City de Walpole, assegurando-lhes que os escravos
permaneceriam escravos até mesmo em solo britânico. Sharp tentou demolir esta
afirmação, citando vários casos para provar que

tem havido muitos casos de pessoas sendo libertadas da escravidão pelas leis da Inglaterra; mas
(graças a Deus) não há nenhuma lei nem sequer um precedente (pelo menos eu não tenho sido capaz de
encontrar um) de uma determinação legal, para justificar que um senhor possa alegar ou deter qualquer
pessoa como escravo na Inglaterra, desde que não tenha voluntariamente obrigado a si mesmo como tal
por um contrato por escrito.297

295
James Houston, Some New and Accurate Observations, Geographical, Natural and Historical
(London, 1725), p. 44.
296
Philip Yorke (1690-1764), mais tarde, o primeiro conde de Hardwicke, foi uma importante figura
jurídica no século XVIII, e talvez seja mais conhecido hoje por sua Lei do Casamento de 1753. H. T.
Dickinson chamou-o de “grande amigo” de Yorke Walpole (Walpole and the Whig Supremacy, p. 65).
297
Granville Sharp, A Representation of the Injustice and Dangerous Tendency of Tolerating Slavery; or
of Admitting the Least Claim of Private Property in the Persons of Men in England (London, 1769), p. 5.

198
Por isso, do ponto de vista de Sharp, “A escravidão é uma inovação totalmente
estranha ao espírito e à intenção das leis atuais”. 298 Ele desejava que o tribunal se
limitasse a meramente defender o que já estava em funcionamento no direito inglês,
posição esta afirmada pela decisão de Lorde Mansfield em 1772 (que provinha de uma
família jacobita).299 Sharp sabia exatamente de onde veio o elemento “estranho” que
havia permitido a escravidão. Esta perversão do costume legal britânico tinha sido
introduzida por “mercenários e egoístas”, os comerciantes imorais e gananciosos da
City, de Bristol e de Liverpool, que estavam dispostos a trair tanto a nação quanto Deus
por causa do lucro.300 Para Sharp, essa hipocrisia foi resumida pelos norte-americanos,
que, como seus primos radicais na Inglaterra, falavam em voz alta a favor da
“liberdade” somente na medida em que ela se adequava ao seu interesse privado:
“também parece muito claro, que eles [os norte-americanos] não mantêm uma
consideração real pela liberdade além dos seus próprios interesses privados, e
(consequentemente) eles têm tão pouca repulsa pelo despotismo e a tirania, e não têm
escrúpulos em desculpá-los... sempre que houver uma imposição do capricho, ou uma
exigência do interesse privado”.301
Samuel Johnson lançou a mesma acusação de hipocrisia contra os radicais norte-
americanos com uma eloquência fulminante em Taxation no Tiranny (1775): “Como é
que ouvimos os mais altos berros pela liberdade entre os feitores?”302 A semelhança das
declarações de Sharp e Johnson (que na verdade são ecoadas por outros conservadores
na década de 1770) indica que a fonte comum da linguagem de ambos encontra-se no
discurso anti-radical.303 Parece provável, aliás, que Sharp tenha solicitado conselho a
298
Sharp, Representation, p. 40.
299
Ver Gerzina, Black England, p. 94-5. A despeito de sua sentença a favor de Somerset, Mansfield
recentemente tem sido retratado como um racista e defensor da escravidão, que tomou sua decisão
somente com extrema relutância. Ver Florian Shyllon, Black People in Britain 1555-1833 (London; New
York; Ibadan: Oxford Univ. Press, 1972), p. 117-27; Gerzina, Black England, p. 90-132. Este argumento
parece inconsistente com os fatos de que Mansfield desnecessariamente chamou a escravidão de “odiosa”
no final do seu julgamento e que sua neta negra ilegítima foi adotada como um membro comum de sua
família. Ver James Oldham, “New Light on Mansfield and Slavery”, Journal of British Studies, v. 17
(1988), p. 45-68; William R. Cotter, “The Somerset Case and the Abolition of Slavery”, History, v. 79
(1994), p. 31-56.
300
Sharp, Representation, p. 92.
301
Sharp, Representation, p. 82.
Political Writings, ed. Donald J. Greene, in The Yale Works of Samuel Johnson, 14 vols. (New Haven;
302

London: Yale Univ. Press, 1957-), v. 14, p. 454.


303
A conexão entre a linguagem anti-americana e antiradical fica até mesmo mais clara na seguinte
declaração de Johnson no Idler nº 11: “em nenhum lugar a escravidão é mais pacientemente tolerada do
que nos países habitados pelos fanáticos da liberdade” (The Idler and the Adventurer, eds. W. J. Bate;
John M. Bullitt; L. F Powell, in Yale Works, v. 2, p. 37). Ver também John Millar, Observations

199
Johnson para formular sua objeção legal contra a escravidão. Sabemos que Granville
Sharp consultou Johnson sobre outras questões e que se moviam num círculo de
intelectuais em que Johnson era uma respeitada fonte sobre questões jurídicas.
Exatamente durante este período, Johnson estava auxiliando Sir Robert Chambers, o
recém-nomeado Vinerian Professor of Law, para compor suas palestras universitárias
oficiais sobre o direito inglês. Como Sharp e seu principal advogado no tribunal, no
julgamento de Somerset, Francis Hargrave, Johnson e Chambers negavam que a
escravidão era permitida sob a lei inglesa. Eles admitiam que uma forma de escravidão,
conhecida com “villeinage” havia existido na Idade Média, mas rejeitavam esta prática
como uma depravação extinta de uma era primitiva. A villeinage, diziam, pertencia à
“natureza primitiva dos governos feudais”.304 Desde essa época, tanto a Igreja como os
tribunais haviam determinado que a escravidão era contrária às leis e aos costumes
britânicos: “que um cristão possa ser mantido em cativeiro por outro, foi considerado
pelo clero como contrário à misericórdia ditada pela religião, e pelos legisladores como
contraditória com a justiça que é o fim das instituições legais”.305
(570) Esse argumento contra a legalidade da escravidão é acima de tudo
significativo porque foi exposto pelo Vinerian Professor of Law diante do establishment
legal no lugar tradicional da política conservadora na Inglaterra, a Universidade de
Oxford. Ele também está próximo do caso apresentado por Sharp e Hargrave diante do
Lorde Mansfield em 1772. Sharp devotou toda a sessão final da sua Representation of
the Injustice and Dangerous Tendency of Tolerating Slavery (1769) à villeinage,
admitindo, como Johnson, que ela era uma relíquia da “tirania feudal” 306, “a usurpação
violenta e não cristã de barões incivilizados de uma era das trevas”. 307 Sharp e Johnson
estavam falando a mesma linguagem de solidariedade patriótica com as leis e costumes
britânicos, como novamente ficou evidenciado pela declaração mais longa de Johnson
contra a escravidão, feita em 1777. Tratava-se de um ditado de Johnson a Boswell sobre

Concerning the Distinction of Ranks in Society (London, 1772), p. 312.



N. do T. O título completo dessa função é: Vinerian Professorship of Common Law e ela foi criada por
Charles Viner, em 1755, para que se ensinasse Common Law na Universidade de Oxford. Até o
estabelecimento da cátedra vineriana, somente direito canônico e romano (civil) eram ensinados nas
Universidades de Oxford e Cambridge.
Sir Robert Chambers, A Course of Lectures on the English Law, ed. Thomas M. Curley, 2 vols.
304

(Madison: Univ. of Wisconsin Press, 1986), v. 2, p. 105.


305
Chambers, Course of Lectures, v. 2, p. 107.
306
Sharp, Representation, p. 112.
307
Sharp, Representation, p. 126.

200
o julgamento de James Knight, um escravo fugido, na Escócia. Nesta declaração,
elaborada para o advogado de Knight, John Maclaurin, Johnson repetiu quase
exatamente os argumentos utilizados no caso Somerset. Ele negou que a lei jamaicana
tivesse qualquer validade na Grã-Bretanha, ou que a escravidão existisse no estado de
natureza. Ele admitiu, como também fez a Sharp, que o direito natural à liberdade pode
ser confiscado por crime ou contrato. Mas nenhuma dessas excepções ao direito natural
à liberdade existia no caso de James Knight: “ele não está submetido a nenhuma lei, que
não seja a violência, de seu senhor atual”. Knight apenas tinha sido comprado por seu
senhor, que não apresentou nenhuma das justificativas legais admissíveis para a
escravidão sob a lei natural. Antes de tudo, a declaração de Johnson está repleta de
profunda desconfiança dos motivos apresentados pela classe comerciante para justificar
a escravidão. Knight havia sido preso por “um mercador de escravos, cujo direito de
vendê-lo nunca foi examinado”. Ele tinha sido “inicialmente trazido ao poder do
mercador” por meio da “fraude ou da violência”. 308 Como Sharp, que culpou a
escravidão pelos “homens mercenários e egoístas”309, Johnson acreditava que ele estava
travando uma batalha pelos valores jurídicos, religiosos e nacionais da Grã-Bretanha
contra os motivos inerentemente avarentos de uma elite comercial.
Essa foi uma batalha lutada e finalmente vencida pelos líderes da campanha
abolicionista mais tarde. Nas campanhas das petições de 1788 e 1792, os britânicos
foram em multidões – 1.5 milhões nos fins da época da escravidão – assinar declarações
que a escravidão não era cristã e nem britânica. Milhões de outras pessoas boicotaram o
açúcar, e o grande herói desta campanha, William Wilberforce, seria sepultado na
Abadia de Westminster toda enfeitada de vermelho, branco e azul para receber a alta
sociedade britânica.310 Defensores do tráfico de escravos, como Edward Long, logo
perceberam que eles estavam lutando uma batalha perdida contra “as expectativas do
público”.311 Em resumo, o abolicionismo não foi uma ação que contava na retaguarda
com um quadro qualificado de dissidentes moralmente progressistas e radicais. Ele não
308
Boswell, Life of Johnson, v. 3, p. 202-3. Comparar os argumentos de Johnson com os de Francis
Hargrave, An Argument in the Case of James Sommersett [sic] A Negro, Lately Determined by the Court
of King's Bench: Wherein it is Attempted to Demonstrate the Present Unlawfulness of Domestic Slavery
in England (London, 1772).
309
Sharp, Representation, p. 92.
310
Para uma excelente descrição da fanfarra patriotica em torno do abolicionismo, ver Colley, Britons, p.
350-60. Colley argumenta que o antiescravismo derivou de uma tentativa de reforçar o ego nacional após
a perda da América, um desejo revelado no hábito dos abolicionistas de regozijar sobre hipocrisia norte-
americana de possuir escravos, enquanto se vangloriava da “liberdade”. Todavia, como vimos, esta
acusação de hipocrisia foi feita numa linguagem antiradical muito antes da Revolução ou a abolição do
envolvimento britânico no tráfico de escravos.

201
foi reflexo público cínico da percepção de que a escravidão havia deixado de ser
lucrativa. As explicações marxistas e materialistas desse movimento entraram em
colapso sob o peso da evidência, admiravelmente oferecida por Seymour Drescher e
David Eltis de que a escravidão estava se tornando crescentemente lucrativa na época
do abolicionismo.312 Foi um movimento de massa sustentado por uma ideologia
nacionalista que retratava os britânicos como um povo “escolhido” que havia fugido do
“cativeiro”, um mito nutrido dentro de círculos patrióticos e piedosos que se sentia
ameaçado por energias amorais e seculares de um setor capitalista em expansão
concentrado na City e noutras áreas comerciais importantes.
Por isso, o sucesso do movimento abolicionista forneceu um precedente
histórico extraordinário ao poder da ideologia contra o materialismo. Por certo, ele não
pôs (571) fim a todas as formas de escravidão: o júbilo pela abolição da escravidão da
plantation impediu que muitos ouvissem os chamados para corrigir formas mais
desonestas de injustiça econômica, particularmente a escravização de fato dos
trabalhadores e das mulheres. Apesar de tudo, a abolição da escravidão é um evento
significativo não só porque aumentou a liberdade dos trabalhadores no hemisfério
ocidental, mas também porque pela primeira vez na história do Ocidente – talvez na
história do mundo – toda uma sociedade foi efetivamente sacrificada no seu interesse
próprio comercial em benefício do que ela considerava ser certo. O que é “certo” é um
padrão oscilante: o antiescravismo britânico tinha muito mais a ver com o modo como
os britânicos queriam ver si mesmos e com o seu destino histórico do que com a adesão
a algum padrão abstrato de verdade e de justiça. Alem disso, os movimentos
subsequentes nas sociedades ocidentais, como seguramente as batalhas em curso para
dar liberdade aos trabalhadores e às mulheres, têm avançado desde o monumento da
abolição. Esses movimentos representam o esforço do povo para igualar a força das
ideias, da sua mais pesada mitologia, contra as fortalezas do ganho material e do
interesse próprio. A mais vibrante mensagem do antiescravismo britânico é metafísica:
os sonhos da consciência humana não deveriam ser confundidos com o interesse
próprio, e os conceitos tradicionais de verdade e de justiça podem continuar a balizar o
caminho da história humana.

Ver Edward Long, Candid Reflections Upon the Judgement Lately Awarded by the Court of King’s
311

Bench, in Westminster Hall, on What is Commonly Called the Negroe-Cause (London, 1772), p. 2.
312
Ver Seymour Drescher, Econocide: British Slavery in the Era of Abolitionism (Pittsburgh: Univ. of
Pittsburgh Press, 1977); David Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade
(New York; Oxford: Oxford Univ. Press, 1987).

202
203
Os europeus e a ascensão e queda da escravidão africana nas
Américas: uma interpretação

David Eltis

(1399) Das muitas sociedades escravistas pós-neolíticas, as dominadas pelos


europeus nas Américas parecem ter apresentado mais claramente fundamentos
econômicos. Nas palavras de uma pesquisa recente e amplamente lida, “Os escravos do
Novo Mundo eram uma propriedade econômica e o principal motivo do escravismo foi
a exploração econômica”.313 Os historiadores têm o cuidado de distanciar-se de
teorias puramente econômicas sobre o comportamento humano, mas nesta questão
a distância é geralmente bem pequena. Os debates bastante amargos sobre a natureza
e o significado da escravidão no Novo Mundo renderam pouco desde Adam Smith, que
questionou a motivação básica dos primeiros proprietários de plantations.
Simplificando, as pessoas de um continente forçaram as de um segundo continente
a produzir uma gama restrita de bens de consumo num terceiro continente – uma
vez que considerou a população nativa deste terceiro continente inadequada ao seu
propósito. Mesmo aqueles que têm combatido a relação entre racismo e escravidão
consideram que a base racial da escravidão americana primeiramente se assentou
sobre um fenômeno econômico. Eric Williams, Oscar Handlin, Carl Degler,
Winthrop Jordan, William McKee Evans, e outros podem discordar sobre as
origens do racismo, mas não sobre as origens da escravidão racial nas Américas.
Escravos da África foram usados para produzir açúcar e outros produtos de
plantation, argumenta-se, porque eles correspondiam à opção de menor custo.
Mesmo George Frederickson, o historiador que talvez mais tenha observado as
fontes de racismo para além da classe e da economia, escreveu que se a escravidão


Publicado originalmente em ELTIS, David. Europeans and the Rise and Fall of African Slavery in the
Americas: An Interpretation. In The American Historical Review, v. 98, n. 5 (Dec., 1993), p. 1399-1423.
Gostaria de agradecer a Hilary McD. Beckles, Robin Blackburn, Timothy Joel Coates, Carl Degler,
Seymour Drescher, Pieter C. Emmer, Stanley L. Engerman, Shelley Price Jones, Robert W. Malcolmson,
James Pritchard, Mary Turner, e a pareceristas anônimos pelos comentários extensos e úteis das versões
preliminares apresentadas na Anglo-American Conference of Historians no Institute of Historical
Research, na University of London, em julho de 1992, e no Department of History, do Boston College,
em abril de 1993. Também me beneficiei com as conversas de David e Nancy Northrup. O financiamento
foi fornecido pelo Social Science and Humanities Research Council of Canada.
313
Robin Blackburn, The Overthrow of Colonial Slavery: 1776-1848 (London, 1988), p. 7.

204
branca tivesse se mostrado rentável, ela teria sido introduzida.314 E, de fato, tudo o
que sabemos sobre os fazendeiros e as elites comerciais europeias do início da era
moderna sustentariam tal interpretação. Seja qual for a nossa definição de capitalismo,
seguramente essas elites utilizariam a opção mais barata possível, dentro dos limites das
políticas mercantilistas.
Mas isso de fato aconteceu? Tornou-se claro nos últimos anos que os
paradigmas econômicos têm utilidade limitada para explicar o fim da escravidão.
O (1400) número de proprietários de escravos que voluntariamente converteu seus
escravos em trabalhadores assalariados com a finalidade de aumentar os lucros
não foi grande, como não foram os números de não-proprietários de escravos que
se beneficiaram diretamente da abolição. Os principais estudos sobre a abolição
agora partem das esferas culturais e ideológicas da atividade humana. Todavia, as
origens do sistema necessitam de uma reavaliação semelhante. O que se segue é uma
tentativa de um novo exame da escravidão nas Américas, que sugere que a
economia, estritamente definida, não é capaz de explicar as suas origens mais do
que a sua abolição. Em outras palavras, a questão não é a escravidão per se, mas quais
grupos são considerados elegíveis para a escravização e por que esta elegibilidade muda
ao longo do tempo.
A escravidão, até recentemente, era universal em dois sentidos. A maioria
das sociedades estáveis incorporou a instituição em suas estruturas sociais, e
poucos povos no mundo não constituíram uma importante fonte de escravos em
um momento ou outro. O componente africano pode dominar as interpretações da
escravidão no mundo Atlântico e, um pouco antes, no mundo islâmico, porém a questão
mais fundamental a partir de uma visão mais abrangente e de longo prazo é o que separa
os “de fora” – aqueles que são elegíveis para a escravização – dos “de dentro”, que não
o são. Deste modo, Nathan Huggins respondeu à pergunta frequentemente colocada:
como os africanos poderiam escravizar outros africanos e vendê-los no tráfico de
escravos? Sua resposta astuta: os escravizadores não se viam ou não viam suas vítimas
como africanos. Richard Hellie abordou a mesma questão de forma diferente, ao
escrever sobre os esforços dos proprietários de escravos no século XVI na Rússia para
reivindicar origens estrangeiras espúrias para si, de modo que os escravizados pudessem

314
George M. Frederickson, The Arrogance of Race: Historical Perspectives on Slavery, Racism, and
Social Inequality (Middletown, Conn., 1988), p. 194.

205
ser mantidos à distância.315 A questão de por que certos grupos são considerados mais
adequados do que outros para a escravização e o grau em que o seu status pode ser
alterado interessam mais aos antropólogos que estudam as sociedades não-ocidentais do
que aos historiadores e economistas.316 Todavia, examinar essas questões a partir do
contexto europeu e não do asiático, africano ou dos nativos americanos promete
algumas novas descobertas.
Se quase todas as sociedades da Europa, África e Américas, e, na verdade, do
resto do mundo, aceitavam a escravidão na época do contato de Colombo, elas
possuíam definições muito distintas a respeito do status dos “de fora”. Na África e nas
Américas, esse status podia incluir qualquer um que não fizesse parte da linhagem
imediata, mas, com mais frequência, restringia-se àqueles que não pertenciam à nação
ou tribo – o que implica uma definição um pouco mais ampla dos “de dentro”. Esta era
mais ou menos a situação na Europa durante e imediatamente após a época dos
romanos; por volta do século XV, na Europa Ocidental, pelo menos, o conceito de “de
fora” chegou a incluir todos os nativos do subcontinente, entre os quais havia alguns
que eram não-brancos, embora muito poucos que fossem não-cristãos.317 A escravidão
na Europa não era extensiva, (1401) mas onde ela existiu esteve confinada aos não-
cristãos ou nativos da África e seus descendentes imediatos. Um padrão semelhante foi
estabelecido no mundo islâmico, substituindo naturalmente “islâmico” por “cristão”
nesta avaliação.
A linha que dividia os “de dentro” dos “de fora” no caso europeu tinha alguma
flexibilidade, mesmo no curto prazo. Os espanhóis, embora não os portugueses ou os
ingleses, haviam proibido a escravização dos índios americanos por volta da década de
1540. Apesar desta tentativa de inclusão de não-europeus, foram as barreiras religiosas
ao invés das étnicas as primeiras a serem derrubadas contra os “de fora”. Judeus e
315
Nathan Irvin Huggins, Black Odyssey: The Afro-American Ordeal in Slavery ( New York, 1977), p.
20; Richard Hellie, Slavery in Russia: 1450-1725 (Chicago, 1982), p. 393-94. Gostaria de agradecer a
Stanley L. Engerman por me chamar a atenção para estas referências.
316
Ver James L. Watson, “Slavery as an Institution, Open and Closed Systems”, James L. Watson, ed.,
Asian and African Systems of Slavery ( Berkeley, Calif., 1980), p. 1-15, e outros ensaios deste volume
como uma forma de introdução ao tema.
317
Uma avaliação completa do amálgama das normas culturais, padrões de comportamento, aparência
física, circunstâncias do nascimento, de classe e de status econômico que determinavam o status “de
dentro-de fora” exigiria muito mais espaço do que é possível aqui, e precisão não é, de todo modo,
essencial para o argumento. Winthrop D. Jordan, em White over Black: American Attitudes toward the
Negro, 1550-1812 (Chapel Hill, N.C., 1968), centra-se nos ingleses e africanos e coloca mais ênfase no
componente étnico na divisão “de dentro-de fora” do que o presente ensaio, mas os primeiros capítulos
ainda fornecem informações úteis sobre as percepções europeias dos não-europeus no início da era
moderna.

206
muçulmanos (ou pelo menos os norte-africanos e os europeus muçulmanos) foram
considerados como “de dentro” bem antes dos africanos. Mas a linha nunca foi
estritamente delineada em termos de cor ou raça, embora essas influíssem. Os espanhóis
na América podem ter reservado a escravidão como propriedade plena do trabalhador
para os africanos subsaarianos, mas os escravos na Sicília, mesmo tão tarde quanto em
1812, eram árabes ou pelo menos muçulmanos norte-africanos. Entre os “de dentro”, a
comunidade de língua portuguesa que realizava o tráfico de escravos para a Bahia
possuía certa composição africana, e um dos capitães de navios negreiros da Real
Companhia Africana em seu auge era negro.318 Além disso, o processo de ampliação
não era nem inevitável nem irreversível. Excetuando o caso da Rússia e da bem
conhecida “segunda servidão” na Europa Oriental, houve a reinstituição da servidão nas
minas de carvão escocesas do século XVII.319 Estes foram casos que não chegaram à
escravidão ou evitaram-na, mas, recentemente, em 1802, os franceses reinstituíram a
escravidão como propriedade plena do trabalhador em suas colônias, uma década depois
desta ter sido abolida. A questão-chave, portanto, não é por que a escravidão morreu na
Europa Ocidental no início do período moderno, ou até mesmo por que ela havia se
confinado a grupos de outros continentes por volta de 1500, mas sim por que ela não foi
reintroduzida de acordo com sua antiga (e menos excludente) base quando o potencial
das minas e das plantations americanas tornou-se evidente.
As razões para as mudanças nas percepções de quais grupos eram adequados
para a escravização não estão totalmente claras, embora seja oferecida abaixo uma
possível explicação para o caso europeu. O principal estímulo do presente argumento é,
em primeiro lugar, que um estudo de tal mudança deve ser central para todos que
desejam entender a escravidão nas Américas e, em segundo, que à motivação
econômica deve ser atribuído um papel subsidiário na ascensão e queda da escravidão
baseada exclusivamente nos africanos, que os europeus transportaram pelo Atlântico.
Começarei com uma avaliação superficial da literatura existente antes de explorar uma
área crucial que esta literatura tendeu a ignorar. Comparações entre a Europa e o resto

318
Great Britain, Public Record Office, Royal African Company (RAC) to Benjamin Alford, 10 de março
de 1702, Series T70, parte 58 (doravante, T70/58), fols. 16-17; Pierre Verger, Flux et reflux de la traite
des nègres entre le Golfe de Benin et Bahia de Todos os Santos du XVI e et XIXe siècle (Paris, 1968), p.
460-75. Sobre a escravidão na Sicília, ver Charles Verlinden, The Beginnings of Modern Colonization:
Eleven Essays with an Introduction ( Ithaca, N.Y., 1970), p. 27, 40.
319
A Europa do século XX oferece muitos outros exemplos de mudanças “internas” referentes às
percepções do status dos “de dentro”.

207
do mundo Atlântico e entre um país europeu e outro formam a base de um ponto de
vista alternativo das questões apresentadas na seção final.
Na última década, a breve descrição da linha divisória entre os “de dentro” e os
“de fora” se baseou nas “relações de poder”. As análises sobre classe e (1402) linhas de
interesse dominaram a literatura sobre a ascensão e queda da escravidão americana. As
elites na Europa e na África colaboraram para assegurar um fornecimento de mão-de-
obra para as plantations americanas, e as mudanças nas percepções de uma elite
europeia – orientada pelo protesto dos de baixo tanto na sociedade dominante quanto na
escravista, de acordo com alguns – levaram o sistema ao fim. Mitos sobre escravos,
sobre classes inferiores e estrangeiros emanavam de associações que na raiz possuíam
um forte componente econômico.320
Esta abordagem se encaixa muito bem numa interpretação mais limitada da
literatura sobre a transição da escravidão no mundo atlântico. Argumenta-se
frequentemente que a substituição dos escravos africanos por várias formas de trabalho
nativo coercivo e de servos contratados europeus nas regiões de plantation das
Américas foi impulsionada pelos custos relativos, portanto, em essência, isso era uma
decisão econômica. O debate sobre o funcionamento deste processo ainda continua.
Para a América do Norte britânica, a combinação de uma oferta elástica de trabalho
escravo, a queda dos custos do transporte de escravos, e o aumento dos preços dos
servos conduziram à transição, como é proposto por David Galenson, Russell Menard, e
outros.321 Em relação ao Brasil, Stuart Schwartz mostrou, com uma análise menos
formal, como os escravos africanos mais caros e mais produtivos chegaram para
substituir os seus homólogos indígenas brasileiros nos primeiros setenta anos da
produção de açúcar no Recôncavo. Substituições similares de trabalho indígena por
africano ocorreram durante o século XVI no Caribe, bem como mais tarde na Carolina

320
William McKee Evans, “From the Land of Canaan to the Land of Guinea: The Strange Odyssey of the
‘Sons of Ham’”, AHR, v. 85 (February 1980), p. 15-43; e, sobre a literatura mais recente, Barbara Jeanne
Fields, “Slavery, Race and Ideology in the United States of America”, New Left Review, v. 181 (May-
June 1990), p. 95-118. Para um levantamento historiográfico e uma opinião discordante, ver William A.
Green, “Race and Slavery: Considerations on the Williams’ Thesis”, Barbara L. Solow; Stanley L.
Engerman, eds., British Capitalism and Caribbean Slavery: The Legacy of Eric Williams (Cambridge,
1987), p. 25-49.
321
Russell R. Menard, “From Servants to Slaves: The Transformation of the Chesapeake Labor System”,
Southern Studies, v. 16 (Winter 1977), p. 355-90; David W. Galenson, White Servitude in Colonial
America: An Economic Analysis ( Cambridge, 1981). Para uma recente discussão sobre as tendências de
duração dos contratos (um indicador dos preços dos servos), que parecem não ter aumentado durante o
período de 1654-1775, ver Farley Grubb, “The Long-Run Trend in the Value of European Immigrant
Servants, 1654-1831: New Measurements and Interpretations”, Research in Economic History, v. 14
(1992), p. 167-240.

208
do Sul. Em 1708, cerca de um quarto da população escrava da Carolina do Sul era
composta de nativos, e a colônia exportou cativos para as Índias Ocidentais. Mais ao
norte, os canadenses franceses não podiam contar com escravos africanos e seus
escravos permaneceram esmagadoramente ameríndios.322 Em contrapartida, as zonas
temperadas do sul, mais próximas da África e produzindo mercadorias agrícolas
exportáveis como café e couros, dispunham de uma força de trabalho escrava
inteiramente africana. Muito ainda permanece inexplorado, mas pesquisas futuras não
enfraquecerão o papel desempenhado pelos fatores econômicos nessas transições. A
partir de uma perspectiva mais ampla, o tráfico de escravos em grande escala para as
plantations esteve centralizado inicialmente na região nordeste do Brasil, a região mais
próxima da África, mudou-se posteriormente para o lado leste da Antilhas, Barbados, e
só mais tarde impactou os Estados Unidos, mais distante da África. (1403) Se
deixarmos de lado a questão das formas alternativas de trabalho, este processo é
consistente com as tendências dos preços dos escravos e os custos de transporte
transatlânticos.
Mas os custos foram tão centrais como a extensa literatura sobre a transição do
trabalho assume? Se as únicas opções disponíveis para os fazendeiros eram o nativo
coagido, o europeu contratado ou assalariado livre e o trabalho escravo africano, então,
a resposta deve ser sim. Mas por que estas combinações de grupos étnicos e regimes de
trabalho eram as únicas possibilidades para as primeiras plantations das Américas? A
literatura ignora o quanto outras alternativas foram tentadas ou mesmo consideradas, a
despeito do fato de que a ampliação da questão forneça possibilidades de compreensão
que vão além da substituição de uma forma de trabalho por outra. Como Eric Williams
percebeu meio século atrás, o que está em jogo aqui não é apenas a economia e a
moralidade do início da expansão europeia, mas o fundamento das relações entre os
europeus e os povos africanos nas Américas. A literatura atual não pode lidar facilmente
com as perguntas “por que não houve escravos europeus?” ou “por que não houve
servos contratados africanos?” embora Winthrop Jordan já as tenha feito um quarto de

322
Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, Bahia, 1550-1835
(Cambridge, 1985), p. 15-27, 51-72; Peter H. Wood, “Indian Servitude in the Southeast”, Wilcomb E.
Washburn, ed., Handbook of North American Indians, v. 4: History of Indian-White Relations
(Washington, D.C., 1988), p. 407-09; Theda Perdue, Slavery and the Evolution of Cherokee Society,
1540-1866 (Knoxville, Tenn., 1979), p. 19-35; Robin W. Winks, The Blacks in Canada: A History (New
Haven, Conn., 1971), p. 1-19. Sanford Winston comentou que “a relação entre o número de escravos
negros e nativos era… inversa”, em “Indian Slavery in the Carolina Region”, Journal of Negro History, v.
19 (October 1934), p. 436.

209
século atrás.323 Os estudiosos agora estão menos propensos a contrapor escravidão e
liberdade, ou coerção e consentimento, especialmente ao estudarem o início e fim
da escravidão nas Américas.324 Não restam dúvidas de que grandes grupos sujeitos à
escravidão, tais como os cananeus, os eslavos e os africanos, rapidamente assumiram
posições correspondentes a esse status, mesmo que não fossem assim considerados
inicialmente. Mas a criação de estereótipos posteriores não explica por que os europeus
se deslocaram milhares de milhas para a África, inicialmente, em busca de escravos.
Também não explica por que, em algum momento entre os séculos XVIII e XIX, em
face de três séculos de estereótipos, a maioria dos europeus e seus descendentes decidiu
que os africanos não deviam mais ser submetidos à escravização.
Se quisermos entender as origens da escravidão africana no Novo Mundo,
ou mesmo no Velho Mundo pré-colombiano, devemos primeiro explorar as opções
de trabalho dos primeiros europeus modernos – tanto aquelas que foram
experimentadas quanto aquelas que não foram. Em segundo lugar, necessitamos
avaliar o quão perto os europeus chegaram de impor a escravidão ou condições
análogas à escravidão a outros europeus, e, finalmente, o que para eles definia a
escravidão como algo à parte, como um status para os outros. Estes passos ajudarão
a esclarecer os parâmetros culturais e ideológicos que de uma só vez moldaram a
evolução da escravidão africana no Novo Mundo e mantiveram os europeus como não-
escravos. De fato, foram experimentadas várias formas de trabalho forçado europeu. A
comparação dessas opções que cruzaram fronteiras nacionais revela diferenças sobre
como as principais potências coloniais europeias consideravam viáveis tais regimes de
trabalho. Todavia, nenhuma potência da Europa Ocidental, após o final da Idade Média,
atravessou a divisão fundamental que separava os trabalhadores europeus da escravidão
como propriedade plena do trabalhador. E, embora a servidão caísse e aumentasse em
diferentes partes no início da Europa moderna e compartilhasse (1404) características
com a escravidão, os servos não eram os “de fora”, antes ou depois de tornarem-se
323
Jordan, White over Black, p. 66.
324
Rebecca Scott, “Comparing Emancipations: A Review Essay”, Journal of Social History, v. 20
(Spring 1987), p. 565. Mais recentemente, ver a edição especial de Slavery and Abolition, v. 14 (April
1993), Michael Twaddle, ed., intitulada The Wages of Slavery: From Chattel Slavery to Wage Labour
in Africa, the Caribbean, and England (London, 1993). Para uma orientação semelhante, desta vez
no início da operação do sistema e centrada no estudo do trabalho branco em Barbados, ver Hilary
McD. Beckles, White Servitude and Black Slavery in Barbados, 1627-1715 (Knoxville, Tenn., 1989),
esp. p. 5-10. A distinção de Orlando Patterson entre escravo e não-escravo, centralizada no poder
absoluto do senhor de escravos e na origem da escravização como uma alternativa à morte, é um
corretivo útil à tendência de aglutinar conjuntamente o status de escravo e de não-escravo (Slavery
and Social Death: A Comparative Study [ Cambridge, Mass., 1982], p. 21-27).

210
servos. A frase “a longa distância serve ao comércio” é um oximoro. Mesmo no século
XX, estados totalitários usaram trabalho escravo principalmente como uma estratégia
punitiva contra os inimigos do Estado e nunca instituíram a escravidão como
propriedade plena do trabalhador como um dispositivo econômico.

Embora não haja nenhuma evidência de que os europeus considerassem instituir


a escravidão de europeus como propriedade plena do trabalhador nas colônias
ultramarinas, o paradoxo surpreendente é que não houve sólidas razões econômicas
contra isso. No século XVII, o exame mais superficial dos custos relativos sugere que os
escravos europeus deveriam ter sido preferidos em relação a qualquer trabalho
contratado europeu ou aos escravos africanos. E, embora os índios americanos fossem
baratos de escravizar, sua expectativa de vida e sua produtividade nas condições da
plantation pós-colombiana dificilmente podiam ser comparadas com a dos europeus
pré-industriais ou mesmo pós-industriais.
Antes de avançar a questão dos custos, é importante notar que os dispositivos
sociais utilizados nas sociedades africanas e ameríndias para privar as pessoas de sua
liberdade foram totalmente incorporados pelas sociedades europeias. Processos judiciais
enviaram homens e mulheres ingleses, franceses, portugueses, e, em menor escala,
espanhóis para as plantations. Eles também condenaram franceses, espanhóis, alemães,
italianos e poloneses às galés. A partir do século XVI, a Inglaterra, a Holanda e a França
usaram casas de correção para extorquir trabalho dos pobres e, no final do século XVII,
também de criminosos. O recrutamento para prestação de serviço também predominou
na Europa. A literatura mais antiga sobre servidão contratada e engagés salientou o
papel da força na aquisição dos servos. Na Escócia, uma lei de 1672 atribuiu poderes
aos proprietários das minas de carvão para sequestrar vagabundos e colocá-los para
trabalhar.325 Se nas Américas e na África, raides informais ou ações militares mais


N. do T. No original, “long-distance serf trade”. O autor está trabalhando com um jogo de palavras
impossível de ser traduzido.

N. do T. Engagés é o termo em língua francesa utilizado para descrever aqueles envolvidos em trabalho
compulsório.
325
A lei escocesa permitia que “proprietários de minas de carvão, proprietários de salinas, e outros, que
têm fábricas neste reino, possam prender quaisquer vagabundos, mendigos... e colocá-los para trabalhar
nas valas de carvão ou outras fábricas, e dispõem do mesmo poder de corrigi-los e de se beneficiar do seu
trabalho, tal como os mestres das casas de correção”. Citado in James Barrowman, “Slavery in the Coal-
Mines of Scotland”, Transactions of the Mining Institute of Scotland, v. 19 (1897-98), parte 2, p. 119.
Para um discussão mais aprofundada dessa situação e das analogias inglesas, ver David Eltis, “Labour

211
organizadas foram as principais maneiras de obter escravos, já na Europa as guerras
parecem ter sido suficientemente frequentes, (1405) tanto dentro como entre as nações –
deixando de lado o incentivo para adquirir e vender escravos – para garantir uma fonte
saudável de cativos. A imposição do cativeiro e a aplicação da morte e da tortura tanto
na guerra quanto como punição eram comuns aos europeus, africanos, e às sociedades
nativas americanas na época da fundação das colônias transatlânticas de escravos. No
século XVII, os europeus não podiam escravizar outros europeus, mas a escravização
não aparecia como brutal ou improvável, tendo em vista o enforcamento, a tortura, a
mutilação, e as fogueiras que eles infligiam a si mesmos. Os prisioneiros europeus,
políticos ou comuns, foram frequentemente enviados para as plantations em vez de
serem executados, e a substituição da morte pela escravidão, explicitamente reconhecida
por John Locke, legitimou a escravidão ao longo da história. É impressionante a
semelhança dos mecanismos para privar as pessoas de sua liberdade em todos os quatro
continentes.326
Do ponto de vista estritamente econômico, pode-se imaginar que havia fortes
incentivos para a utilização de trabalho europeu mais do que trabalho escravo africano.
O cerne da questão é o custo de transporte, que de longe, representava a maior parte do
preço de qualquer forma de trabalho forçado importado para as Américas. Em primeiro
lugar, embora os ventos alísios do Atlântico reduzissem um pouco o diferencial,
normalmente era mais rápido navegar diretamente da Europa para as Américas do que

and Coercion in the English Atlantic World from the Seventeenth to the Early Twentieth Centuries”,
Slavery and Abolition, v. 14 (April 1993), p. 207-26. Para o “estado de espírito” dos servos e vagabundos
enviados da Inglaterra para Barbados, ver Beckles, White Servitude and Black Slavery, v. 5, p. 2-58.
Sobre o tratamento francês dispensado aos engagés, ver Gabriel Debien, “Les engagés pour les Antilles
(1634-1715)”, Revue d’histoire des colonies, v. 38 (1951), p. 5-274; e para os vagabundos, ver Andre
Zysberg, “Galley and Hard Labor Convicts in France (1550-1850): From the Galleys to Hard Labor
Camps; Essay on a Long Lasting Penal Institution”, Centrum voor Maatschappij Geschiedenis, v. 12
(1984), p. 78-110, e Zysberg, “La société des galeriens au milieu de XVIII e siècle”, Annales: Economies,
Sociétés, Civilisations, v. 30 (January-February 1975), p. 43-65, referências pelas quais agradeço a James
Pritchard. Sobre os vagabundos espanhóis, ver I. A. A. Thompson, “A Map of Crime in Sixteenth
Century Spain”, Economic History Review, v. 21 (August 1968), p. 244-50; e Ruth Pike, Penal Servitude
in Early Modern Spain (Madison, Wis., 1983), p. 49-54, 67-69, 90-92. Em relação à deportação
portuguesa, ver Timothy Joel Coates, “Exiles and Orphans: Forced and State-Sponsored Colonizers in the
Portuguese Empire, 1550-1720” (Ph. D. dissertation, University of Minnesota, 1993), que preenche uma
grande lacuna na historiografia da penologia. Há breves referências em Charles R. Boxer, The Golden
Age of Brazil, 1695-1750 (Berkeley, Calif., 1962), p. 140, e Stuart B. Schwartz, “The Formation of a
Colonial Identity in Brazil”, Nicholas P. Canny; Anthony Pagden, eds., Colonial Identity in the Atlantic
World, 1500-1800 (Princeton, N.J., 1987), p. 22-23.
326
Para uma discussão desse assunto no contexto africano, ver Suzanne Miers; Igor Kopytoff, “African
Slavery as an Institution in Marginality”, in Miers; Kopytoff, eds., Slavery in Africa: Historical and
Anthropological Perspectives (Madison, Wis., 1977). Para o mesmo fenômeno num importante contexto
norte-americano, ver William A. Starna; Ralph Watkins, “Northern Iroquoian Slavery”, Ethnohistory, v.
38 (January 1991), p. 34-57.

212
navegar via África. Além disso, a mortalidade e a morbidade tanto entre as tripulações
quanto passageiros (ou escravos) eram menores no Atlântico Norte do que no Sul. Se
ainda levarmos em conta o tempo despendido na montagem de um carregamento de
escravos na costa africana, então a navegação vinda diretamente da Europa com um
carregamento de europeus parece mais vantajosa novamente. Na década de 1680, a Real
Companhia Africana (RAC), muitas vezes fretou navios para transportar escravos em
seu nome. A taxa de frete ficou geralmente entre £5 e £6 por escravos desembarcado
vivo nas Américas – um preço que acreditava-se suficiente para cobrir o custo total da
navegação para a África, da aquisição dos escravos, e do deslocamento deles até os
agentes da RAC nas Índias Ocidentais. A carga de retorno das Américas constituiu uma
especulação distinta.327 O custo do transporte dos condenados para Barbados e as Ilhas
de Sotavento era semelhante neste momento.328 Todavia, como observado abaixo, os
navios que transportavam os condenados, servos contratados, e os passageiros que
pagavam tarifa sempre carregavam muito menos pessoas por tonelada do que os navios
negreiros. Há pouca dúvida de que, caso os navios que transportavam os europeus
tivessem sido acondicionados da mesma forma dos que transportavam os africanos, os
custos por pessoa teriam sido muito menores para os europeus do que para os africanos.
Outra razão para o uso de trabalho europeu, em vez de trabalho escravo africano
decorre dos preços relativos do trabalho dos escravos africanos e do trabalho dos
condenados ingleses – o mais próximo que os ingleses chegaram de usar os europeus
como escravos em forma de propriedade. (Embora a discussão que (1406) se segue seja
centrada no século XVIII, para o qual os dados são relativamente bons, evidências
dispersas do século XVII também corroboram as conclusões). Os condenados do sexo
masculino sem qualificação, vindos da Inglaterra e da Irlanda, eram vendidos por £16
cada um em Maryland nos anos de 1767-1775, num momento em que os recém-
chegados escravos africanos da melhor faixa etária estavam sendo vendidos por
aproximadamente o triplo deste montante, na Virginia e em Maryland.329 Os homens

Kenneth G. Davies, The Royal African Company (London, 1957), p. 198. Para as taxas de
327

amostragem, ver PRO, T70/943, fols. 12 e 13.


328
John C. Jeaffreson, ed., A Young Squire of the Seventeenth Century: From the Papers (A.D. 1676-
1686) of Christopher Jeaffreson, 2 vols. (London, 1878), v. 1, p. 159; v. 2, p. 206-07. Para informações
sobre o custo do frete dos servos contratados, comparar Hilary McD. Beckles; Andrew Downes, “The
Economics of Transition to the Black Labor System in Barbados, 1630-1680”, Journal of
Interdisciplinary History, v. 18 (Autumn 1987), p. 235.
Calculado a partir de Richard Nelson Bean, The British Trans-Atlantic Slave Trade, 1650-1775 (1971;
329

New York, 1975), p. 206-08; A. Roger Ekirch, Bound for America: The Transportation of British
Convicts to the Colonies, 1718-1775 (Oxford, 1987), p. 71, 124-25.

213
britânicos trabalhavam por dez anos ou menos, os africanos durante a vida toda. Se os
condenados e seus descendentes fossem vendidos para uma vida inteira de serviço, seria
razoável supor que os fazendeiros estariam dispostos a pagar um preço mais elevado por
eles. Diante de um preço mais elevado, o governo britânico e os mercadores poderiam
ter encontrado maneiras de fornecer mais condenados. Os custos do transporte por si só
não teriam interferido no processo. Deste ponto de vista, os condenados poderiam ter
sido vendidos para uma vida inteira de servidão por um preço ligeiramente maior do
que eram vendidos para sete ou dez anos de trabalho. Assim, na ausência de um declínio
rápido improvável dos preços dos escravos devido à preferência dos compradores por
europeus ao invés de africanos, podemos supor que não havia barreiras no custo do
transporte para que escravos europeus constituíssem a base das forças de trabalho das
plantations das Américas.
Os outros grandes componentes dos custos do transporte de africanos para o
Novo Mundo eram a escravização, a feitoria (os custos da montagem de um
carregamento antes do embarque) e a distribuição (os custos da venda de um escravo
nas Américas).330 Juntos, eles representavam cerca da metade do custo de um novo
escravo nas Américas. De acordo com Philip Curtin, os custos de escravização na
África eram insignificantes. A maior parte do preço de um escravo vendido a um feitor
na costa africana decorria dos custos de transporte.331 O baixo custo no local de
escravização poderia explicar a aparente preferência por africanos? Dadas as
oportunidades na Europa para a escravização, conforme discutido acima, isso parece
improvável. Do ponto de vista econômico, não teria sido difícil nem caro adaptar essas
oportunidades para produzir escravos em vez de meramente prisioneiros.
Na verdade, a escravização na Europa poderia ter sido menos onerosa do que a
sua consorte africana. Em primeiro lugar, os custos de transporte, que se agigantavam
na África, eram necessariamente mais baixos em um subcontinente onde grandes
centros populacionais estavam localizados próximos às águas navegáveis. Já existiam
rotas oficiais que partiam das “prisões” e levavam condenados franceses em direção a
Marselha, Toulouse e, posteriormente, a Brest, os condenados espanhóis para

330
Esses componentes foram tomados da obra de David Turnbull. Turnbull possuía uma extensa
experiência a respeito do tráfico de escravos do século XIX. Ver seu Travels in the West: Cuba, with
Notices of Porto Rico, and the Slave Trade (London, 1840), p. 403-06.
Philip D. Curtin, Economic Change in Precolonial Africa: Senegambia in the Era of the Slave Trade, 2
331

vols. (Madison, Wis., 1975), v. 1, p. 156-57, 168-69, 173-77; v. 2, p. 45-53; e “The Abolition of the Slave
Trade from Senegambia”, in David Eltis; James Walvin, eds., The Abolition of the Atlantic Slave Trade
(Madison, 1981), p. 89-91.

214
Cartagena, e os portugueses para Lisboa, algumas incorporando viagens em canais. Na
Inglaterra, as barcaças que transportavam crianças da paróquia de Londres para as
fábricas têxteis do norte poderiam ter facilmente transportado pessoas para os portos
maiores. Em segundo lugar, o crescimento da população na Europa Ocidental, em geral,
e na Inglaterra, em particular, foi considerável durante o período do tráfico de escravos.
Apesar de uma migração líquida de 2,7 milhões de pessoas entre os meados do século
XVI até meados do século XIX, a população da Inglaterra aumentou sete vezes. Os
estudiosos debatem o impacto sobre a população africana da perda de 12 milhões de
(1407) pessoas para as Américas.332 Durante esse mesmo período, caso este número de
emigrantes extras tivesse partido de uma Europa densamente povoada, seu efeito seria
insignificante. Por fim, o argumento de que os africanos poderiam sobreviver no
ambiente epidemiológico do Caribe mais do que os europeus torna-se irrelevante aqui.
Quaisquer que tenham sido as diferenças de mortalidade entre europeus e africanos, a
mão-de-obra europeia sempre viajou para o setor açucareiro do Caribe, quer como
trabalhadores livres ou servos, nunca como escravos. A evidência médica seria
pertinente apenas se a escravidão europeia tivesse sido experimentada e não
correspondesse ou, talvez, se o trabalho europeu nunca tivesse sido experimentado.
Portanto, as barreiras demográficas europeias para o fornecimento de escravos não eram
maiores do que aquelas dos seus homólogos africanos.
Na verdade, cerca de 1.000 condenados por ano deixaram a Grã-Bretanha, no
meio século posterior a 1718. Isso pode não parecer muito quando comparado à
estimativa de que o tráfico de escravos retirou 25.000 africanos anualmente da África
durante o último terço do século XVII e atingiu uma média de 50.000 por ano no meio
século posterior a 1700. No entanto, considerando que a população da Inglaterra
representava apenas 7% da população da Europa em 1680, e caso o restante da Europa
seguisse a prática inglesa proporcionalmente, 14.000 condenados estariam disponíveis.
Existiu um tráfego de degredados das possessões portuguesas para o Brasil e Angola do
século XVI ao século XIX, e as enormes fortalezas em Havana e San Juan, bem como
os postos avançados espanhóis no Norte da África, foram construídos em parte com os
condenados ibéricos. Os Estados germânicos, que não possuíam instalações marítimas,
vendiam condenados às cidades-estado italianas para o serviço de galés. Na França,
cerca de 1.000 condenados por ano chegaram a Marselha durante o final do século XVII
332
Para avaliações diferentes, comparar Patrick Manning, Slavery and African Life: Occidental, Oriental,
and African Slave Trades (Cambridge, 1990), p. 38-85; e David Eltis, Economic Growth and the Ending
of the Transatlantic Slave Trade (New York, 1987), p. 64-71.

215
e início do século XVIII, mas estes eram todos homens e a maioria possuía entre vinte e
trinta e cinco anos de idade. É nítida a potencialidade francesa para um tráfico mais
amplo e demograficamente representativo de condenados.
Havia inúmeras outras fontes de condenados. Os prisioneiros de guerra, como na
África, poderiam ter representado muitos trabalhadores adicionais para as plantations.
Na verdade, quando se rebelaram, somente os escoceses e irlandeses poderiam ter
preenchido as necessidades de trabalho das colônias inglesas. A especulação acima nem
incorpora o número total de vagabundos e pobres. Um sistema adequadamente
explorado e baseado em condenados, prisioneiros, e vagabundos de todos os países da
Europa poderia ter facilmente fornecido 50 mil migrantes forçados por ano sem
perturbações graves à paz internacional ou às instituições sociais existentes que geraram
e forneceram essas potenciais vítimas europeias.333 Se tal escoamento tivesse sido
dirigido para as colônias de plantation, também é pouco provável que estadistas
mercantilistas teriam questionado a escala ou a direção do fluxo.
Mais especificamente, os condenados britânicos poderiam ter substituído os
escravos africanos em Chesapeake, o destino da maioria dos navios de transporte. O
registro da primeira remessa (1408) de condenados data de 1615. Até 1770, o número
de desembarques de condenados era, pelo menos, dois terços do total de escravos,
embora na década de 1730 e 1740 os desembarques de escravos fossem
aproximadamente duas a quatro vezes maiores. Se a todos os brancos enviados
compulsoriamente para as colônias, e, obviamente, também aos seus descendentes,
tivesse sido atribuído o status de escravo como aos imigrantes africanos, não há
nenhuma razão pela qual o número de escravos brancos em Maryland e Virginia não
tivesse sido pelo menos tão grande quanto a população escrava negra existente no final
do período colonial.334 E para abordar brevemente uma área de interesse correlato, se
333
Gregory King estimou que havia 600.000 adultos recebendo esmolas e 30.000 vagabundos no final do
século XVII na Inglaterra. “Natural and Political Observations and Conclusions upon the State and
Condition of England, 1696”, in Peter Laslett, comp., The Earliest Classics: John Graunt and Gregory
King (Farnborough, 1973), p. 48, 57. Sobre os condenados que deixaram a Inglaterra, ver Ekirch, Bound
for America, p. 27. A mais recente estimativa dos escravos que deixaram a África neste período está em
David Richardson, “Slave Exports from West and West-Central Africa, 1700-1810: New Estimates of
Volume and Distribution”, Journal of African History, v. 30 (January 1989), p. 1-22.
334
Peter Wilson Coldham, Emigrants in Chains: A Social History of Forced Emigration to the Americas,
1607-1776 (Baltimore, Md., 1992), p. 43-44; Abbot Emerson Smith, “The Transportation of Convicts to
the American Colonies in the Seventeenth Century”, AHR, v. 39 (1933-34), p. 233-36; J. M. Beattie,
Crime and the Courts in England, 1660-1800 (Princeton, N.J., 1986), p. 470-83. Provavelmente, 100.000
africanos chegaram em Chesapeake até aproximadamente 1770; Allan Kulikoff, Tobacco and Slaves: The
Development of Southern Cultures in the Chesapeake, 1680-1800 (Chapel Hill, N.C., 1986), p. 65-67; e
Galenson, White Servitude in Colonial America, p. 216-17. Não há estimativas confiáveis sobre
desembarque de condenados antes de 1718, mas o número foi menor do que os 50.000 que chegaram às

216
um dos propósitos dos fazendeiros do litoral ao trazer os africanos era controlar os
pobres, brancos, e as classes não-proprietárias, a escravização de pelo menos parte dessa
classe parecia uma maneira muito mais direta de alcançar a meta.335
Um exame superficial dos custos potenciais de feitoria e distribuição indica um
padrão semelhante de lucro na Europa em relação à África. Uma rede de feitorias desta
espécie realmente existiu. Mercadores franceses e espanhóis estabeleceram uma ligação
entre os tribunais e as galés. Entre 1718 e 1775, o governo britânico contratou a coleta,
bem como o transporte dos condenados para as Américas. Empresas em Londres
chegaram a se especializar na montagem de carregamentos de condenados, incluindo
transferências das prisões regionais antes do embarque.336 Uma rede de outros
mercadores no Caribe e na América do Norte continental entregavam condenados,
servos contratados, e muitas vezes também escravos para os senhores. O sistema
seguramente poderia ter funcionado bem se a maior parte deste trabalho tivesse sido de
europeus escravizados em vez de africanos escravizados.

Obviamente, era inconcebível que qualquer das fontes de trabalho acima


mencionadas – condenados, prisioneiros de guerra, ou vagabundos – pudesse ter sido
convertida em escravos como propriedade. A barreira aos escravos europeus nas
Américas não se assentava apenas nos custos de transporte e de escravização; ela estava
além de qualquer esfera estritamente econômica. A Lei inglesa contra a vagabundagem,
de 1547, que previa a escravidão para “vagabundos”, limitava o período de servidão a
dois anos. A lei em si foi revogada depois de apenas dois anos como inexequível, por
conta de sua severidade. Do outro lado do Canal da Mancha, nos (1409) séculos XVI e
XVII, a escravidão era considerada suficientemente alienígena tanto que os escravos

Américas nos 57 anos posteriores a esta data. Coldham encontrou registros de 7.500 condenados
transportados antes de 1718 somente da Inglaterra (dados extraídos de The Complete Book of Emigrants
in Bondage, 1614-1775 [Baltimore, 1988]; comparar com Smith, “Transportation of Convicts”, p. 238,
que calculou um “mínimo” de 4.431, para o período de 1655-99); A Escócia, o País de Gales, e em
particular a Irlanda forneceram muitos mais. Uma estimativa de equivalência grosseira entre os
descendentes dos condenados e da população escrava negra leva em consideração a chegada dos
primeiros condenados e o fato de que as taxas de crescimento natural da população eram um pouco mais
altas para a população branca do que para a negra. Para aqueles que argumentam que tal sistema teria
naufragado diante das dificuldade de controle, devemos salientar que esta questão parece que nunca
ameaçou a existência de sistemas de servidão penal de longa distância, muitos envolvendo comerciantes
privados e empregadores.
Edmund S. Morgan, American Slavery, American Freedom: The Ordeal of Colonial Virginia (New
335

York, 1975).
336
Ekirch, Bound for America, p. 17-18; Coldham, Emigrants in Chains, p. 59-87.

217
privados trazidos à França eram libertados no desembarque (a menos que fossem
direcionados para as galés), antes de uma lei de 1716 que especificamente os isentou da
alforria.337 Durante o século XVI, na Espanha, em Portugal, e em todos os países
mediterrânicos, mouros e africanos poderiam ser escravos; os cristãos (que, na prática,
significava europeus, porque os não-europeus que se tornaram cristãos permaneceram
escravos) não podiam ser escravos.338 Até mesmo os judeus eram menos propensos a ser
escravizados na Espanha, depois da Idade Média. Em 1492, eles foram expulsos, não
escravizados. Alguns dos que fugiram para Portugal tiveram seus filhos tomados e
enviados para São Tomé, mas não como escravos em forma de propriedade. Entre o
final do século XV e 1808, a Inquisição Espanhola queimou na fogueira 32.000
conversos (judeus convertidos ao cristianismo) por falsa conversão. A escravização não
estava em questão para este grupo.339 Segundo os historiadores da Europa Oriental, nos
séculos XV e XVI, a questão-chave é a segunda servidão, não a segunda escravização.
Mas antes de abordar a aversão à escravidão em face dos claros imperativos
econômicos, precisamos avaliar o quão perto da escravidão como propriedade (e do
tráfico de escravos que a abastecia) os europeus estavam preparados para chegar dentro
da Europa e quais diferenças existiam entre as nações europeias.
Como já foi salientado, existiam dispositivos semelhantes para privar as pessoas
da liberdade na África, nas Américas e na Europa. Contudo, se nos continentes africano
e americano, estes podiam resultar em escravidão – e muitas vezes em propriedade de
europeus em ambos os lados do Atlântico340 – na Europa, os mesmos procedimentos
ficaram aquém da criação de tal status, pelo menos em relação aos europeus. Em toda a
Europa, os estados poderiam tomar a vida dos indivíduos, porém a escravidão não se
apresentava mais como uma alternativa à morte; ao contrário, ela havia se tornado um
destino pior que a morte e, como tal, foi reservada para os não-europeus. Os europeus
aceitariam que infratores e prisioneiros fossem transformados em escravos desde que
337
C. S. L. Davies, “Slavery and Protector Somerset: The Vagrancy Act of 1547”, Economic History
Review, v. 19 (December 1966), p. 533-49; William B. Cohen, The French Encounter with Africans:
White Response to Blacks, 1530-1880 (Bloomington, Ind., 1980), v. 5, p. 44-46.
338
David Brion Davis, The Problem of Slavery in Western Culture (Ithaca, N.Y., 1966), p. 221-47.
339
David Brion Davis, Slavery and Human Progress (New York, 1984), p. 95; Haim Beinart, “The
Conversos and Their Fate”, Elie Kedourie, ed., Spain and the Jews: The Sephardi Experience; 1492 and
After (London, 1992), p. 92-122; Coates, “Exiles and Orphans”, p. 98.
340
A respeito da utilização de africanos ocidentais e índios americanos como escravos nas galés francesas,
ver Clarence J. Munford, The Black Ordeal of Slavery and Slave Trading in the French West Indies,
1625-1715, 3 vols. (Lewiston, N.Y., 1991), v. 1, p. 169; Paul W. Bamford, Fighting Ships and Prisons:
The Mediterranean Galleys of France in the Age of Louis XIV (Minneapolis, Minn., 1973), p. 156, 165-
66, 310-11.

218
eles não fossem concidadãos europeus. As concepções dos “de dentro” haviam se
expandido para incluir o subcontinente europeu, ao passo que os africanos e os índios
americanos ainda pertenciam a uma definição bem estreita dos “de dentro”. Num
sentido profundo, mas dificilmente singular, a escravidão como propriedade de
africanos e índios nas Américas ocorreu, assim, em função do status de não-escravos
que os europeus consideravam adequado para si mesmos – uma situação com paralelos
históricos em muitas sociedades escravistas. Dito de outro modo, se os africanos ou
índios, em vez dos europeus, tivessem iniciado o sistema de plantation, e possuíssem os
meios para iniciar um tráfico de escravos com a Europa, o tráfico de europeus não teria
sido grande. A escravidão podia ter predominado no mundo ocidental, mas
provavelmente não estaria confinada a pessoas de outro continente. Logicamente, em
consequência disso, os estados europeus com menor (1410) probabilidade de tolerar a
coerção de seus próprios cidadãos podiam muito bem ter estado entre os mais propensos
a desenvolver um sistema de escravidão como propriedade no ultramar.
Embora a rejeição da escravidão europeia foi, assim como a aceitação de sua
congênere africana, uma decisão impensada, alguns estados chegaram mais perto de
impor a escravidão como propriedade aos seus cidadãos do que outros. O trabalho dos
condenados, especialmente daqueles que foram enviados para além das fronteiras
nacionais do país, parece ter sido o mais próximo que os europeus chegaram de
escravizar outros europeus. A fusão ou aumento da cooperação entre o Estado e os
tribunais da igreja e o movimento de afastamento dos castigos estritamente físicos dos
criminosos no iníco da modernidade na Europa Ocidental desencadeou experimentos de
deportação e de servidão penal. Franceses, portugueses, espanhóis e ingleses tripularam
com condenados muitas das suas viagens iniciais de exploração, e os franceses e
portugueses abriram suas galés para criminosos condenados na época em que Portugal
começou a realizar experiências de deportação com essas mesmas pessoas para São
Tomé, Goa e Brasil. A maioria dos países da Europa ocidental, incluindo a Inglaterra,
utilizou ou experimentou os condenados tanto nas galés quanto nas deportações. No
final, os estados espanhol e italiano enviavam a maioria dos condenados para as galés, o
estado inglês preferia a deportação para colônias distantes, o francês e o português
promoviam ambas, e os holandeses, com exceção de experiências fugazes, nenhum dos
dois. Eventualmente, o estado francês aceitou criminosos para uso em galés e bases
navais em outros estados europeus, como na Savóia, na Polônia, e em alguns
principados alemães. Na Espanha, França e Portugal, os condenados trabalhavam ao

219
lado de escravos vindos do litoral do Mediterrâneo, da Europa Oriental, da África e das
Américas.341
Partindo de um denominador comum, duas características críticas mantiveram o
trabalho dos condenados separado da escravidão como propriedade. Em primeiro lugar,
um indivíduo geralmente tinha que cometer um crime para tornar-se um condenado. Um
conjunto de leis e procedimentos jurídicos assegurou que os potenciais condenados
enfrentassem um tratamento menos arbitrário do que aqueles que caíram na escravidão.
O poder do Estado sobre o condenado e o do senhor sobre o trabalho do condenado foi
mais circunscrito do que o do proprietário de escravos sobre o escravo. Em segundo
lugar, o status de criminoso não era hereditário. Tanto nas galés francesas quanto
espanholas, os condenados tinham grande dificuldade de conquistar a liberação
independentemente do prazo de sua pena, sua propriedade era vendida após a
condenação, e eles não encontravam amparo na lei. Mas os europeus, com exceção de
alguns adeptos da fé ortodoxa grega, não eram tecnicamente escravos. Ao contrário de
turcos, muçulmanos, russos e africanos que tinham sido especialmente adquiridos para
complementar o corpo das galés, eles não poderiam ser revendidos, e seu status não era
transmitido aos seus descendentes.
É surpreendente que o trabalho mais árduo – especificamente, a posição interior
mais distante das pás dos remos das galés – era reservada aos escravos, e não aos
condenados. E, quando a vida útil dos remadores chegava ao fim e o estado pretendia
reduzir as despesas, os escravos velhos ou eram devolvidos ao seu local de origem com
base em tratados, ou vendidos em mercados europeus de escravos, ou, se fosse africano,
por vezes, era levado às Antilhas Francesas para ser vendido. Os condenados que
conseguiam obter uma revogação do corpo das galés francesas (1411) também
acabavam nas Américas Francesas, mas eles eram sempre vendidos como servos
contratados. Os degredados portugueses podiam ser pagos pela locação de seu trabalho
e em São Tomé e Angola possuíam um status completamente diferente dos escravos, e a
maioria deles estava envolvida no tráfico de escravos que abastecia São Tomé e as

341
Coates, “Exiles and Orphans”, p. 32-67; Emile Campion, Etude sur la colonization par les transportes
anglais, russes et français (Rennes, 1901), p. 44-45; Beattie, Crime and the Courts in England, p. 450-
519, esp. p. 470-74; John H. Langbein, Torture and the Law of Proof: Europe and England in the Ancien
Régime (Chicago, 1977), p. 27-44; Zysberg, “Galley and Hard Labor Convicts in France”, p. 78-110;
Pike, Penal Servitude in Early Modern Spain, p. 3-26; Pieter Spierenburg, The Prison Experience:
Disciplinary Institutions and Their Inmates in Early Modern Europe (New Brunswick, N.J., 1991), p.
259-62.

220
plantations brasileiras.342 O máximo que pode ser dito a título de comparação é que a
difusão da escravidão africana nas Américas coincidiu com a difusão do trabalho
forçado em sistemas punitivos dentro da Europa (deportação no caso em inglês). Mas
ninguém tinha dúvidas sobre as distinções entre os dois.
Entretanto, emergem diferenças interessantes entre os estados no tratamento dos
condenados. A servidão penal tornou-se uma característica dos sistemas da Europa
Continental – no caso francês e espanhol para toda a vida. Os ingleses não impunham
nem o banimento, nem a servidão penal por toda a vida; as casas de correção
mantiveram alguns prisioneiros por um prazo longo, mas nem sempre sob um regime de
trabalho.343 Na Holanda, a servidão penal suplementou, e, em seguida, substituiu o
banimento, embora os holandeses mantivessem como prisioneiros por muito tempo
aqueles que haviam sido incriminados, ao contrário dos condenados. Eles também
usavam a tortura depois que a prática foi interrompida na Inglaterra, onde, na verdade,
nunca tinha integrado as Common Law.344 Para os ingleses, a deportação significava o
envio para o outro lado do Atlântico, sem direito de regresso por sete ou, para aqueles
condenados em casos de morte, por 14 anos. Uma vez nas Américas, a grande maioria
dos prisioneiros era vendida por um prazo de servidão de sete anos, mas a própria
sentença não previa isso.345 Prisioneiros com recursos poderiam, de fato, comprar sua
liberdade no momento do desembarque e, contanto que eles ficassem distantes da
Inglaterra, converter a sua pena em banimento temporário. A servidão que
acompanhava a deportação era, na verdade, um dispositivo para pagar os seus custos e,
além de um prazo mais longo, não diferia materialmente daquela à qual alguns
voluntariamente se submetiam como servos contratados não-condenados.346 Em
342
Coates, “Exiles and Orphans”, p. 57, 98-99; Bamford, Fighting Ships and Prisons, p. 139-52, 250-71;
Pike, Penal Servitude in Early M odern Spain, p. 8-14. O termo escravidão, ocasionalmente, é utilizado
livremente na literatura sobre penologia. J. Thorsten Sellin em seu amplamente lido Slavery and the Penal
System (New York, 1976) usa o termo para tratar qualquer forma de trabalho coercivo. Spierenburg, em
Prison Experience, refere-se de modo ambivalente à “escravidão” de condenados em todo o seu livro (ver
especialmente p. 10). Tais usos derrapam em distinções importantes para a questão da escravidão nas
Américas.
343
Spierenburg, Prison Experience, p. 1-68, 259-76; Zysberg, “La société des galeriens”, p. 43-75;
Bamford, Fighting Ships and Prisons, p. 173-83; Coates, “Exiles and Orphans”, p. 71-72. Na Espanha, as
sentenças para forzados foram limitadas a dez anos em 1653, embora, como salientado acima, fosse
comum a detenção além do prazo formal (Pike, Penal Servitude in Early Modern Spain, p. 7-8).
344
Spierenburg, Prison Experience, p. 41-60, 143-47; P. Spierenburg, “The Sociogenesis of Confinement
and Its Development in Early Modern Europe”, Centrum voor Maatschappij Geschiedenis, v. 12 (1984),
p. 38. Em relação ao fim da tortura, ver Langbein, Torture and the Law of Proof, p. 10-12, 50, 134-35.
345
Ekirch, Bound for America, p. 16-21.
346
Como um prazo mais longo equivalia a um preço mais baixo, isso pode ter refletido numa maior
probabilidade dos condenados escaparem, além de serem desonestos, de haver uma mistura mais

221
Portugal, onde o Estado suportou o custo da deportação ou o impôs sobre outros, a
sentença significava exílio, com o trabalho exigido variando de acordo com as
necessidades do Estado. O sistema foi notavelmente flexível ao alternar galés e
deportação para as colônias, com ou sem trabalhos forçados.347
Os vagabundos formavam um grupo maior do que os condenados em todos os
países europeus, e (1412) os pobres desamparados, dependentes da ajuda do estado, um
grupo maior ainda. Do ponto de vista mercantilista, o potencial produtivo desses grupos
em uma sociedade escravista era enorme. Com o aumento da desagregação dos sistemas
de caridade patrocinados pela igreja a partir de meados do século XVI, as casas de
trabalho se multiplicaram no noroeste da Europa, especialmente na Inglaterra, Holanda
e França – três das principais potências que primeiro se envolveram com as
plantations.348 A servidão penal para os criminosos foi enxertada neste sistema no
século XVIII.349 No início do período moderno, em toda a Europa Ocidental, as atitudes
em relação aos pobres se endureceram, embora a imposição de trabalho em troca de
auxílio tenha aparecido primeiramente nas áreas protestantes. O sistema holandês das
casas de trabalho era o mais eficiente e tornou-se um modelo para o resto da Europa.
Ele foi muito admirado, porém nunca inteiramente emulado pela elite inglesa, e foi
também o mais difundido.350 Os ingleses submeteram seus vagabundos ao trabalho
compulsório, sob pena de chicotadas e prisão, exigiram que seus pobres trabalhassem, e
enviaram as crianças indigentes, forçosamente separadas de seus pais anteriormente, a
senhores na metrópole e nas colônias – até o século XX, se aí incluirmos aquelas
enviadas a partir das casas para crianças órfãs e carentes do Dr. Barnardo. No entanto, a
ineficiência do governo local era tal que os números daqueles apanhados neste sistema
foram provavelmente modestos.351 Todavia, as administrações centralizadas da Espanha
asseguraram o recrutamento forçado de vagabundos e ciganos para os arsenais do
Estado (estaleiros navais e fábricas de armamento) tão tarde quanto a segunda metade
diversificada de idades e sexos do que ocorria com os servos regulares, ou alguma combinação desses
fatores. Uma análise formal sobre o trabalho dos condenados ainda não foi realizada.
347
Coates, “Exiles and Orphans”, cap. 5; Boxer, Golden Age of Brazil, p. 140.
348
Spierenburg, “Sociogenesis of Confinement”, p. 9-77, esp. 31-32.
349
Spierenburg, Prison Experience, p. 12-86; Beattie, Crime and the Courts in England, p. 492-500.
350
Spierenburg, “Sociogenesis of Confinement”, p. 24; Simon Schama, The Embarrassment of Riches: An
Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age (New York, 1987), p. 174-75, 570-79.
351
Dorothy Marshall, “The Old Poor Law, 1662-1795”, Economic History Review, v. 1 (April 1937), p.
39; George Meriton, A Guide for Constables, Churchwardens, Overseers of the Poor... (London, 1669);
Statutes at Large, 43 Eliz. c. 2. Smith, “Transportation of Convicts”, p. 244, indica que havia vagabundos
entre um grupo que chegou à Virgínia na década de 1660.

222
do século XVIII. Na França, 7% do corpo das galés no momento da sua fusão com a
Marinha, em 1748, era de vagabundos, mas, como diminuíram as necessidades das galés
depois de 1700, o mais provável é que este grupo foi enviado para as Índias
Ocidentais.352 Na Europa toda, aqueles enviados para as Américas ou mandados para as
galés formavam uma pequena parcela dos pobres que recebiam auxílio; o destino
daqueles enviados para as Américas era invariavelmente a servidão por contrato, não a
escravidão; e os pobres que não podiam evitar o sistema estatal eram provavelmente
tratados com menos severidade na Holanda e na Inglaterra (embora por razões
diferentes, apresentadas abaixo) do que na França e na Espanha.
Os prisioneiros capturados no decurso de uma ação militar europeia podem ser
divididos em dois grupos para os presentes propósitos. Aqueles que eram capturados
num ato de rebelião contra o governo oficial podiam esperar a morte caso fossem os
líderes, ou o banimento, se fossem considerados como seguidores, mas nunca a
escravização. Os ingleses venderam muitos irlandeses em Barbados durante o século
XVII, após as campanhas militares na Irlanda, mas sempre como servos contratados por
um prazo máximo de dez anos. Na França, em 1662, quase quinhentos rebeldes da
Boulogne foram enviados para as galés, não para a escravidão, apesar da incapacidade
dos traficantes franceses da época em sustentar um (1413) tráfico de escravos africano
para as Américas francesas. Um segundo grupo era constituído por aqueles capturados
em conflitos entre os Estados. Pelo menos até as guerras revolucionárias francesas, os
prisioneiros de guerra eram melhor tratados do que todos os grupos europeus
considerados até aqui. Após a detenção, seguia-se a troca de prisioneiros e o resgate era
comum. Prisioneiros ingleses, holandeses e franceses podiam ser enviados para as galés
da Espanha, mas o status de escravo aí estava reservado aos não-cristãos. Todavia,
mesmo o último grupo – no caso os norte-africanos escravizados nas galés francesas e
espanholas – tinham alguma perspectiva de libertação em troca dos cristãos detidos
pelos governantes de Argel, Tunis, e outras potências muçulmanas do Mediterrâneo. 353
352
Pike, Penal Servitude in Early Modern Spain, p. 67-69; Zysburg, “La société des galeriens”; Bamford,
Fighting Ships, p. 260; Christian Huetz de Lemps, “Indentured Servants Bound for the French Antilles
and Canada in the Seventeenth and Eighteenth Centuries”, in Ida Altman; James Horn, eds., “To Make
America”:European Emigration in the Early Modern Period (Berkeley, Calif., 1991), p. 188-89.
353
Alfred Vagts, A History of Militarism: Civilian and Military (New York, 1959), p. 113-14; Bamford,
Fighting Ships and Prisons, p. 176-77, 261-64. Bruno S. Frey e Heinz Buhofer (num artigo para o qual
Stanley L. Engerman chamou-me a atenção) argumentam que o bom tratamento relativo dos prisioneiros
de guerra ocorreu devido ao seu valor de mercado e, por implicação, que o diferencial existente entre os
norte-africanos e os europeus surgiu a partir de uma relativa falta de interesse por parte das potências do
Norte da África em comprar de volta os prisioneiros de baixo status. (“A Market for Men, or There Is No
Such Thing as a Free Lynch”, Journal of Institutional and Theoretical Economics, v. 142 [1986], p 739-

223
As trocas de prisioneiros parecem ter sido menos comuns na África e nas Américas,
onde os cativos estavam mais propensos a serem mortos, absorvidos na sociedade do
captor, ou negociados longe. Alguns podem ver o tráfico de cativos como o efeito da
distorção de um mercado para escravos criado pelos europeus, mas o ponto chave é que
esta opção também estava aberta para os comandantes dos exércitos europeus e eles não
a utilizaram.
Finalmente, podemos notar as grandes diferenças nas condições de transporte
transatlântico para os europeus e para os africanos. Os condenados e os soldados que
haviam sido mantidos em circunstâncias de confinamento antes do embarque poderiam
ser vítimas de uma mortalidade tão alta a bordo da rota Europa-América quanto os
escravos transportados da África para as Américas.354 Todavia, não há evidências de que
qualquer viajante europeu da rota transatlântica, quer passageiros da terceira classe,
condenados, soldados ou servos contratados, tenha sido submetido às mesmas condições
dos navios negreiros. Por conseguinte, ingleses e irlandes igualmente viajaram em
navios de condenados, que raramente levavam mais de 150 prisioneiros e, em média,
menos de 100. Muito menos pessoas por tonelada eram transportadas nos navios
dedicados à deportação dos condenados do que nos navios negreiros. A superlotação era
três ou quatro vezes mais grave nos navios negreiros do século XVII ao início do século
XIX, e somente os navios de galés, que raramente navegavam fora do alcance da vista
da terra e nunca em mar aberto com mau tempo, apresentavam a mesma densidade
humana de um navio negreiro. Embora esta diferença possa não ter tido muito impacto
sobre a mortalidade, que não era particularmente afetada pela superlotação, ela pode
muito bem dizer algo sobre os pontos de vista que os mercadores europeus e, em última
análise, as sociedades europeias mantinham a respeito do status de diferentes grupos de
migrantes. Estados, mercadores e consumidores de produtos de plantation todos
ganharam com o transporte de condenados em condições análogas à escravidão.355
44). Esta abordagem pode explicar muito, mas a pergunta interessante é por que só os argelinos foram
escravizados, se, por exemplo, nem os ingleses, nem os argelinos comprariam de volta todos os seus
prisioneiros dos espanhóis no final do século XVI, e ambos os grupos foram enviados às galés devido à
sua falta de valor no mercado de troca. Da mesma forma, para ficar num de seus próprios exemplos, a
necessidade de trabalho pode explicar as flutuações no tratamento dos prisioneiros nos campos de
extermínio na Alemanha ao longo da Segunda Guerra Mundial, mas não a existência dos próprios campos
de extermínio.
354
Ver Raymond L. Cohn, “Maritime Mortality in the Eighteenth and Nineteenth Centuries: A Survey”,
International Journal of Maritime History, v. 1 (June 1989), p. 159-91, e a literatura mencionada aqui.
As primeiras listas do Naval Office estão em PRO, CO 33/13 e CO 142/13. Beckles, White Servitude
355

and Black Slavery, p. 62-67; Ekirch, Bound to America, p. 98-100; John Mcdonald; Ralph Shlomowitz,
“Mortality on Convict Voyages to Australia, 1788-1868”, Social Science History, v. 13 (Fall 1989), p.
285-313. Sobre os navios negreiros, ver Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic

224
(1414) Assim, uma barreira quase tangível impediu os europeus de se tornarem
escravos como propriedade, a menos que fossem capturados por não-europeus. Em
muitas sociedades africanas, a divisão linguística e étnica podia até significar um
aumento da probabilidade de escravização – pelo menos para mulheres e crianças –
dado o foco em grupos de parentesco e sua expansão através da absorção dos “de fora”.
Nas Américas, raides escravistas de uma nação iroquesa à outra não eram incomuns.
Mas na Europa, mesmo o membro mais degradado da sociedade era poupado da
escravização. Tratamento semelhante só foi estendido aos não-europeus no caso
bastante limitado dos ameríndios das Américas espanholas. Esta barreira era um pouco
similar à proibição muçulmana da escravização de muçulmanos – não no sentido de que
a base da escravização era religiosa, mas sim que tanto nas sociedades muçulmanas
quanto cristãs a escravidão passou a ser principalmente de africanos, apesar do fato de
que, em ambas, os escravos muitas vezes se converteram à fé de seus proprietários.356
Mas se todos os europeus compartilhavam esta atitude em relação ao “de
dentro”, também está claro, a partir do exposto acima, que algumas sociedades
chegaram mais perto do que outras de admitir condições que se aproximavam da
escravidão para os seus próprios cidadãos. Os servos contratados ingleses e os
condenados, em média, serviam menos de sete anos. Penas de prisão perpétua, embora,
por vezes, significasse exílio sem trabalho, eram comuns entre os condenados espanhóis
e franceses, e pelo menos alguns engagés franceses foram enviados para as Américas
com um status pouco diferente dos condenados. Da mesma forma, o trabalho escravo
envolvendo não-europeus era muito mais comum no sul da Europa do que no norte. Os
mercados de escravos na Europa, desde a Idade Média até ao século XVIII, estavam nas
margens do Mediterrâneo, não no noroeste da Europa. Dada a grande população escrava
africana de Lisboa, é difícil visualizar algo semelhante em Portugal ao incidente
ocorrido em Middelburg, em 1596, em que 130 escravos africanos foram restaurados à
“sua liberdade natural” com o fundamento de que a escravidão não existia na

Slave Trade, p. 135-38, e “Productivity in the Slave Trade: A Comparative Assessment” (manuscrito
inédito, 1993). Os navios que transportavam os prisioneiros de Monmouth para Barbados em 1685-1686
– ou seja, aqueles homens que não foram enforcados, arrastados e esquartejados – tinham uma densidade
media de 0,72 prisioneiros por tonelada, e registrou menos de 10% de mortalidade durante a viagem. Os
navios negreiros desta época embarcavam 2,5 pessoas por tonelada e em média tinham uma perda de
20%. A maior mortalidade em navios negreiros é provavelmente explicada pela maior duração da viagem
em vez da maior superlotação entre as pessoas a bordo.
356
Bernard Lewis, Race and Slavery in the Middle East: An Historical Enquiry (New York, 1990), p. 5-
15, 54-6 1; Davis, Slavery and Human Progress, p. 32-51.

225
Zelândia.357 Também não é fácil imaginar uma ação equivalente em qualquer parte do
mundo não-europeu – por exemplo, no Norte de África – se os escravos fossem
europeus. No entanto, há casos abundantes de atitudes etnocêntricas durante o século
XVI na Holanda, na França e na Inglaterra. Além disso, quanto maior a incapacidade
dos europeus de pensar em escravidão para outros europeus, mais ele ou ela estavam
susceptíveis de propor o trabalho coercivo para os não-europeus. Noutro paradoxo, a
coerção que foi vista muito frequentemente como injusta para (1415) pessoas
semelhantes e apropriada para outras, passou a ser questionada para qualquer um.

Duas questões devem ser abordadas a seguir. Uma delas é a gênese da


perspectiva transatlântica, se não global, da atitude europeia bastante excepcional
em relação à escravidão no início do período moderno – especificamente, sua
associação com o conceito de raça. A segunda são as diferenças de atitudes intra-
europeias em relação ao trabalho coercivo que evoluíram e persistiram na era da
abolição. De fato, os países que haviam desenvolvido uma forte antipatia pela redução
da liberdade de seu próprio povo não só tinham menos inibições a respeito da criação de
um sistema de trabalho ultramarino que utilizasse escravos não-europeus, mas acabaram
por estar na vanguarda do movimento para abolir a escravidão no mundo todo. A
abolição da escravidão imposta pelo Estado, bem como a concepção de um mundo
sem escravidão, surgiu pela primeira vez na Europa.358 Estas questões levantam
grandes problemas e as respostas devem ser um pouco especulativas. Essas
especulações não devem se inclinar para o chauvinismo ou o etnocentrismo – pelo
menos, não em sua raiz – mas sim em direção a fatores econômicos e ecológicos de
longo prazo que separaram a Europa Ocidental do resto do mundo antes da era
moderna.
Como já mencionado, a diferença entre a Europa e a maior parte do resto
do mundo em relação à questão da escravidão no início do período moderno foi a
convicção de que apenas os não-europeus poderiam ser escravizados. A tecnologia

357
A. C. de C. M. Saunders, A Social History of Black Slaves and Freedmen in Portugal, 1441-1555
(Cambridge, 1982), p. 59; W. S. Unger, “Bijdragen tot de geschiedenis van de Nederlandse slaven-
handel”, Economisch-Historisch Jaarboek, v. 26( 1956), p. 136. Sobre esta última referência e a sua
tradução, agradeço a Pieter C. Emmer. Sobre um incidente em Bordeau, em 1571, semelhante ao ocorrido
em Middelburg, ver Charles de La Roncière, Negrès et Négriers (Paris, 1933), p. 15-16.
Stanley L. Engerman, “Coerced and Free Labor: Property Rights and the Development of the Labor
358

Force”, Explorations in Economic History, v. 29 (1992), p. 3.

226
deu aos europeus o poder de navegar distante e impor essa visão do mundo aos
outros. Se seguirmos o argumento de Eric Jones, a liderança europeia na tecnologia
desempenhou, em primeiro lugar, uma função do sistema político e, por trás disso, uma
base de recursos bastante excepcional e um conjunto de circunstâncias ecológicas.359 A
principal diferença entre a Europa e o resto do mundo na época em que a Europa
começou a escravizar outros povos foi a difusão do poder político, tanto entre quanto
dentro dos Estados europeus. De acordo com a versão inicial da tese de Jones, esta
difusão do poder reduziu a possibilidade de erros nas decisões das autoridades
centralizadas e incentivou a concorrência entre os estados. Ela também permitiu o
surgimento de economias de escala decorrentes da livre circulação dos recursos e a
manutenção de um mercado comum e uma fonte de conhecimento bastante ampla para
fomentar a possibilidade de um aumento lento da renda per capita. Esta tendência foi
encorajada ainda mais pela evolução inicial do núcleo da estrutura familiar e por uma
estratégia de enfatizar a prosperidade para os filhos, ambas as quais estavam enraizadas
em características ambientais peculiares à Europa.
No longo prazo, de duas maneiras esses padrões sociais e econômicos eram
hostis à escravização dos europeus, e, eventualmente, a qualquer escravidão. Uma delas
era a sua tendência a sublinhar o valor do indivíduo, pelo menos em comparação com o
mundo não-europeu. O sistema competitivo entre os estados-nações no equilíbrio global
das relação de poder foi complementado dentro de cada estado por um contrato
implícito e incomum (1416) entre governante e governado. Em contrapartida, para uma
grande parcela de pequenos camponeses que produziam excedentes, os governantes
reprimiram a violência aleatória e forneceram instituições jurídicas estáveis. O potencial
para os direitos individuais era totalmente superior neste sistema do que em um império
altamente centralizado ou em regiões em que o poder político descentralizado estava
associado a uma densidade populacional muito baixa. Concepções do indivíduo como
proprietário de si mesmo ou de si mesma, não devendo nada à sociedade, e da sociedade
como uma série de “relações de troca entre proprietários”, exigiu restrições ao poder
político, bem como o incentivo individual proporcionado por uma sociedade de
mercado em evolução.360
359
Eric L. Jones, The European Miracle: Environments, Economies, and Geopolitics in the History of
Europe and Asia (Cambridge, 1981). As principais críticas a essa obra, que o autor tentou responder em
publicações posteriores, decorrem de questões sobre a motivação individual e da universalidade do
“homem econômico”, mais do que de sua descrição de como a Europa diferia do resto do mundo.
360
C. B. Macpherson, The Political Theory of Possessive Individualism: Hobbes to Locke (Oxford, 1962),
especialmente, p. 46-70. A citação está na página 3. Sobre as implicações mais específicas do

227
A segunda e talvez mais importante implicação dos padrões comparativos que
Jones descreve era a oportunidade que eles concediam para o crescimento generalizado
do comportamento de mercado. A negociação da terra, do trabalho e do capital, bem
como das mercadorias e serviços, era muito mais extensa nos primórdios da
modernidade na Europa do que em qualquer outro continente. As ramificações que
permitiam a escravidão num extenso sistema de mercado são ambivalentes e não são
facilmente resumidas em um ensaio. A escravidão era a mercantilização do capital
humano levada a extremos e podia reforçar, bem como extrair força da disseminação
dos mercados. Mas, numa série de ensaios polêmicos sobre a relação entre o capitalismo
e a abolição, Thomas Haskell argumentou que, sob certas condições, os mercados
funcionam contra a escravidão e a inflição de crueldade em geral. Haskell listou pré-
condições para o surgimento histórico do humanitarismo: em primeiro lugar, uma
máxima ética que torna o alívio do sofrimento um “direito”; em segundo lugar, a
sensação de estar originalmente envolvido na situação da qual nasce o sofrimento; e, por
último, a posse de uma receita para a intervenção, tão facilmente aplicada que a recusa
de empregá-la poderia ser considerada como “um ato intencional em si mesmo”. O
sistema de mercado peculiar ao final do século XVIII no mundo do Atlântico Norte
“ampliou o leque de percepção causal e inspirou a confiança das pessoas em seu poder
de intervir”. O crescimento e a elaboração desse conhecimento incorpora o
conhecimento técnico e científico, embora seja muito mais amplo do que ele. Para
Haskell, o importante é a ligação entre a percepção causal e a responsabilidade moral.
No final do século XVIII, “o conjunto de conhecimentos e a percepção causal”, que
especificamente se unem no comércio de longa distância, tinham se tornado tão
familiares nas mentes de alguns participantes da economia do Atlântico Norte –
principalmente entre os quacres – que a ação contra a escravidão (e outros abusos)
tornou-se um imperativo moral.361
Todavia, o que nos interessa aqui não são as implicações do argumento acima
para a abolição da escravidão, mas suas implicações para as origens do sistema. Antes
de 1750, esses mesmos traços, mais uma vez tal como foram consagrados no
individualismo possessivo sobre o trabalho livre e coercivo, ver Engerman, “Coerced and Free Labor”, p.
1-29.
361
Thomas L. Haskell, “Capitalism and the Origins of the Humanitarian Sensibility, Part 1”, e
“Capitalism and the Origins of the Humanitarian Sensibility, Part 2”, in Thomas Bender, ed., The
Antislavery Debate: Capitalism and Abolitionism as a Problem in Historical Interpretation (Berkeley,
Calif., 1992), p. 107-60, especialmente, p. 129-33 e 147-51. Esses ensaios são uma resposta à obra de
David Brion Davis e foram publicados pela primeira vez em American Historical Review em abril-junho
de 1985.

228
comportamento de mercado, poderiam ter tido praticamente o efeito oposto. Até que um
“conjunto de conhecimentos” se tornasse tão familiar que o fato de não agir se
transformasse em “um ato intencional em si mesmo”, tal (1417) conhecimento serviria
para aumentar o poder do seu detentor de intervir na vida dos outros, sem gerar qualquer
sentimento de responsabilidade moral pelo sofrimento que isso podia gerar. Percepções
causais levariam a restrições morais em relação à escravização dos semelhantes mais
fracos e mais pobres (ou, mais amplamente, do companheiro europeu), mas não em
relação à compra de um não-europeu que já era um escravo no Mediterrâneo, na África,
na Ásia ou nas Américas. As habilidades organizacionais e técnicas da atividade
comercial, bem como a capacidade de desenvolver projetos de longo prazo baseados em
conhecimento científico e colocá-los em operação, poderiam portanto perturbar ou
destruir sociedades em terras distantes sem suscitar outra coisa senão a indiferença por
parte dos agressores. As atividades escravistas dos holandeses nas Índias Orientais no
início do século XVII e a utilização de africanos por ingleses e holandeses nas Américas
causou um impacto maior na Ásia e na África do que seus homólogos ibéricos do século
anterior, mas não geraram um auto-questionamento maior.362
Em primeiro lugar, a familiaridade com o “conjunto de conhecimentos”
permitiria cruzar o limiar da ação no ambiente interno em vez do ambiente colonial, e
aplicá-lo aos “de dentro” antes que aos “de fora”. Uma atenção crescente em relação às
consequências de tais ações internas não era, deste modo, incompatível com a contínua
indiferença em relação, e, na verdade, ao incentivo, à escravidão no exterior.363 Além
disso, nos países em que o mercado estava mais avançado, como na Holanda e na
Inglaterra, podia haver uma tendência maior em respeitar os direitos individuais e
destinar um tratamento mais humano aos condenados, por exemplo, do que ocorria nos
outros países em que as instituições do mercado eram menos difundidas. Em meados do
século XVII, na Inglaterra, na Holanda e na França, acreditava-se amplamente que
qualquer pessoa que entrasse nesses países não poderia permanecer um escravo.

362
J. Fox, “‘For Good and Sufficient Reasons’: An Examination of Early Dutch East India Company
Ordinances on Slaves and Slavery”, Anthony Reid, ed., Slavery, Bondage, and Dependency in South-East
Asia (St. Lucia, Queensland, 1983), p. 246-62. Fox observa, “Os holandeses da Companhia das Índias
Orientais incorporaram novos princípios organizacionais cuja introdução na Ásia causou efeitos
profundos… a Companhia foi a primeira corporação formal deste tipo na Ásia a explorar escravos” (p.
248). Conjuntamente com seus homólogos ingleses, os holandeses das Companhias das Índias Ocidentais
provavelmente duplicaram o volume do tráfico de escravos transatlântico nos meados do século XVII.
363
A abolição da escravidão colonial pode ter sido a primeira das reformas humanitárias da era moderna,
mas os direitos fundamentais dos indivíduos sob a lei no noroeste da Europa foram estabelecidos antes da
criação das colônias escravistas europeias transatlânticas.

229
Curiosamente, na Inglaterra, pensava-se que isso ocorria desde o advento do
cristianismo.364 Como observado acima, os franceses alteraram suas leis para que
aqueles que retornassem do Caribe pudessem trazer escravos pessoais consigo, mas não
havia legislação que permitisse tal prática na Holanda ou na Inglaterra. Portanto, é
irônico e mais ainda surpreendente que tenham sido os ingleses e holandeses que
desenvolveram a forma mais elaborada de escravidão como propriedade e as leis mais
duras contra os negros livres nas Américas.
A ubiquidade do mercado e o reconhecimento dos direitos individuais eram
características dos primórdios de toda a Europa Ocidental moderna, vista a partir de
uma perspectiva global. (1418) Mas estas condições evoluíram mais na Holanda e na
Inglaterra. Três características interrelacionadas de agricultura e vida familiar nesses
países auxiliaram tais concepções do indivíduo. (Todas foram impulsionadas pelo
mercado, e, por sua vez, reforçaram a sua penetração nas duas sociedades.) Uma delas
foi o surgimento precoce da família nuclear e os fenômenos associados do casamento
duradouro e a rápida entrada das crianças no serviço. A segunda foi a natureza não-
feudal da propriedade da terra, o que facilitou o surgimento de um mercado de trabalho
bem integrado. Uma terceira foram os avanços relacionados à produção de alimentos,
que permitiram a manutenção de uma população não-agrícola maior.365 Estes foram os
fundamentos da relativa liberdade política e econômica (não devem ser confundidos
com a ausência de necessidades) e os limites impostos à redução dos europeus à
condição de escravos ou ao status de quase-escravos.

364
Um manual sobre a Inglaterra, em parte escrito para e amplamente utilizado por estrangeiros foi o de
Edward Chamberlayne, Angliae Notitia, or, The Present State of England...: Together with Divers
Reflections upon the Antient State Thereof, 6th edn. (London, 1672). Ele declarava: “Não há nenhum
escravo estrangeiro na Inglaterra, uma vez que o cristianismo prevaleceu. Um escravo estrangeiro trazido
para Inglaterra, após o desembarque, ipso facto, está livre da escravidão, mas não do serviço ordinário”
(p. 331). Ver também Dudley North, Observations and Advices Œconomical (London, 1669), p. 45.
Sobre o status dos negros na Inglaterra antes do caso Somerset (no final do século XVIII), ver Seymour
Drescher, Capitalism and Antislavery: British Mobilization in Comparative Perspective (London, 1986),
p. 25-49.
365
Alan Macfarlane, The Origins of English Individualism: The Family, Property and Social Transition
(Oxford, 1978); Jan De Vries, The Dutch Rural Economy in the Golden Age, 1500-1700 (New Haven,
Conn., 1974), p. 107-73; De Vries, European Urbanization, 1500-1800 (Cambridge, Mass., 1984), p.
116-18, 210-12; G. E. Fussell, “Low Countries’ Influence on English Farming”, English Historical
Review, v. 74 (October 1959), p. 611-22. No final do século XVIII, a produtividade agrícola por hectare
na Holanda e na Inglaterra era muito maior do que na Europa; Paul Bairoch, “Les trois révolutions
agricoles du monde développe: Rendements et productivité de 1800 à 1985”, Annales: Economies,
Sociétes, Civilisations, v. 44 (March-April 1989), p. 318.

N. do T. No original, “freedom from want”. O autor está fazendo um trocadilho com a palavra freedom,
impossível de ser traduzido para o português.

230
Para além destes fatores comuns, houve diferenças importantes. Na Inglaterra, a
noção de que as prerrogativas do indivíduo possuem, em última instância, mais
importância do que as do Estado ou de qualquer grupo estava provavelmente mais
desenvolvida do que em qualquer lugar na Europa.366 As atitudes holandesas já não
derivaram tanto da preocupação com o indivíduo, mas a partir de uma sensação de
fragilidade do pacto social num momento em que o país possuía muitos residentes não-
holandeses e não-calvinistas. A grande prosperidade dos Países Baixos atraiu um
número enorme de imigrantes, mas, apesar dos éditos não-liberais emitidos a mando da
Igreja calvinista, os holandeses desenvolveram uma inigualável tolerância prática em
relação aos outros na Europa do século XVII.367 Seria tentador ver nessa atitude uma
capacidade de absorção dos “de fora” no sentido usado acima, mas muito poucos desses
migrantes eram de fato não-europeus. Muito mais não-europeus viveram na Inglaterra,
onde o seu status jurídico foi esclarecido somente no final do século XVIII.368
O parágrafo anterior sugere a impossibilidade de utilizar condenados como uma
fonte de trabalho colonial permanente para a Inglaterra ou para a Holanda. A deportação
penal não existia entre os holandeses. No caso da Inglaterra, os estudiosos até
recentemente discordavam em suas interpretações a respeito das sanções penais. Hoje
em dia, todos eles parecem compartilhar a visão de que juízes e júris estavam relutantes
em aplicar a lei com toda severidade, embora os estudiosos ainda não estejam de acordo
sobre as razões. Se, por exemplo, os juízes e jurados eram lentos para impor uma marca
na bochecha dos criminosos desde o início do século XVIII, é duvidoso que enviariam
condenados para a escravidão como propriedade nas Américas. Se a deportação (1419)
tivesse significado uma vida inteira de servidão para os ingleses, os júris poderiam não
ter condenado ninguém.369
Esta relutância pode ser entendida em função dos valores comunitários
compartilhados ou dos temores sobre a resistência que inevitavelmente se seguiria. Mas
o que parece incontestável é que, em relação à escravidão, o senso do que era adequado
366
Macpherson, Possessive Individualism, p. 263-71. Ver Macfarlane, Origins of English Individualism,
p. 165-88, sobre as diferenças entre os primórdios da Inglaterra moderna e a Europa Continental. As
críticas à sua tentativa de levar a comparação até os tempos medievais tenderam a dominar as avaliações
deste livro.
367
E. H. Kossmann, “Freedom in Seventeenth-Century Dutch Thought and Practice”, Jonathan I. Israel,
ed., The Anglo-Dutch Moment: Essays on the Glorious Revolution and Its World Impact (Cambridge,
1991), p. 281-98.
368
Drescher, Capitalism and Antislavery, p. 25-49.
369
Ver, por exemplo, Beattie, Crime and the Courts in England, p. 450-519, esp. p. 490-92; Peter
Linebaugh, The London Hanged: Crime and Civil Society in the Eighteenth Century (Cambridge, 1992).

231
perpassou todas as divisões sociais e não pode ser facilmente explicado por diferenças
ideológicas ou de relações de poder entre as classes. A indignação com o tratamento
dispensado aos africanos raramente foi expressa em qualquer nível da sociedade antes
do final do século XVIII. A economia moral do povo inglês e as várias igrejas cristãs
estavam preocupadas com outras questões. Quando a imoralidade do trabalho coercivo
foi finalmente reconhecida, o reconhecimento ocorreu entre todos os grupos sociais
mais ou menos ao mesmo tempo. E tentar explicar o fracasso dos europeus em
escravizar outros europeus em termos de solidariedade entre escravos potenciais não
parece promissor.370 Se a elite podia matar irlandeses, huguenotes, judeus, prisioneiros
de guerra, condenados, e muitos outros grupos marginalizados, por que ela não os
escravizava? Os ingleses consideravam os de linhagem celta muito diferentes, mas não
diferentes o suficiente para escravizá-los.371 Para a elite e a não-elite, a escravização
permanecia um destino para o qual apenas os não-europeus estavam qualificados.
O caráter central que modelou a plantation escravista ocidental do século XVI
em diante foi uma extensão das atitudes europeias para o mundo não-europeu. Se, no
século XVI, tornou-se inaceitável para os europeus escravizar outros europeus, até o
final do século XIX, passou a ser inaceitável escravizar qualquer um. Colocando numa
perspectiva relativa, antes do século XVIII, os europeus, em comum com a maioria dos
povos do mundo, não foram capazes de incluir aqueles que estavam além dos oceanos
em sua concepção do contrato social.372 Diferentemente da maioria dos outros povos do
mundo, os europeus tinham o poder de impor a sua própria versão desse contrato aos
outros, que durante três séculos significou a escravidão africana.373
370
“A repulsa popular à escravidão e ao poder privado sem entraves”, que “por muito tempo... precedeu
as críticas à escravidão colonial”, é uma das três fontes do sentimento antiescravista apontadas por
Blackburn, Overthrow of Colonial Slavery, p. 36. Ele e Drescher, em seu Capitalism and Antislavery,
vêem o envolvimento popular como vital para a abolição. Como as igrejas, os intelectuais, e a elite
política, entretanto, aqueles sem propriedade claramente tinham outras prioridades antes do final do
século XVIII. As tentativas de escravizar os europeus e colocá-los para trabalhar nas plantations de
açúcar talvez tivesse atraído a sua atenção, mas os fazendeiros, comerciantes metropolitanos e estadistas
mercantilistas estavam tão apreensivos com a opinião popular que nem um único deles ousou defender a
escravidão europeia em público? Uma explicação mais convincente a respeito deste silêncio e inação, é
simplesmente uma concepção, compartilhada por todas as classes, de que isso era o adequado.
371
George M. Fredrickson, White Supremacy: A Comparative Study in American and South African
History (New York, 1981), p. 15.
372
Drescher, Capitalism and Antislavery, p. 1-24. Há uma complementaridade impressionante entre a
mudança da percepção inglesa, delineada por Drescher, e o surgimento do humanitarismo orientado para
o mercado, que Haskell defende em “Capitalism and the Origins of the Humanitarian Sensibility”.
Uma versão um pouco atenuada do mesmo processo pode ser visto no Japão, a sociedade não-europeia
373

com a família e a estrutura social mais “ocidental” antes do século XX. Os escravos no Japão eram
esmagadoramente japoneses – obtidos dos grupos de criminosos e dos pobres – antes do período
moderno; Patterson, Slavery and Social Death, p. 127. Nos séculos XIX e XX, os japoneses cada vez

232
Em geral, o primeiro passo para a abolição da escravidão pode ter sido a ideia de
que a escravização dos europeus em qualquer lugar era um erro que precisava ser
corrigido. Durante o século XVI, na Espanha e em Portugal, as ordens religiosas
dedicadas à redenção dos cativos espanhóis e portugueses mantidos como escravos na
África do Norte levantaram enormes fortunas especialmente para esse fim, e o estado
esteve fortemente envolvido até o final do século. Esta atividade e os recursos por trás
dela eram muito mais significativos do que os esforços semelhantes que foram
realizados durante a Idade Média. Eles eram muito maiores, também, do que os esforços
equivalentes da África do Norte para resgatar cativos muçulmanos na Península Ibérica;
as trocas de muçulmanos por cristãos não começou em grande escala antes de 1750.374
Mais ao norte, quase todas as cidades costeiras da Holanda tinham um “fundo para
escravo” para resgatar marinheiros holandeses das galés dos Estados da Berbéria.375
Estados marítimos europeus assinaram uma série de tratados com governantes da África
do Norte e os turcos otomanos para salvaguardar navios e tripulações de captura e
escravização. A maioria envolvia a emissão de salvo-condutos para navios mercantes.376
A ironia de que alguns dos principais beneficiários de tais arranjos eram traficantes de
escravos holandeses e ingleses em seu caminho para a África parece ter escapado a
historiadores e contemporâneos, entre eles o conde de Inchquin, que uma vez foi
mantido em cativeiro em Argel, antes de se tornar governador da Jamaica. Quando os
salvo-condutos se mostraram ineficazes e os marinheiros foram capturados e
escravizados de qualquer maneira, petições ao governo britânico demandando a sua
libertação exigiram uma ação em nome da “caridade cristã e da humanidade” – muito
antes dos abolicionistas começarem a invocar princípios semelhantes.377 Na verdade, o
Lady Mico Trust, utilizado no século XIX para financiar a educação nas Índias

mais dependeram de fontes estrangeiras de escravos, embora os números fossem muito menores do que
os transportados através do Atlântico. Tanto antes quanto depois do Japão ter imposto a abolição da
escravidão na Coréia, em 1910, a Coréia chegou a ser a principal fonte de trabalhadores forçados do
Japão. A absorção de estrangeiros na visão japonesa do contrato social – um processo que alguns diriam
que ainda não está completo – poderia explicar o desaparecimento gradual da coerção de estrangeiros,
embora, neste caso, haja desenvolvimentos geopolíticos alheios a serem considerados, na forma de
guerras mundiais. Mikiso Hane, Peasants, Rebels, and Outcasts: The Underside of Modern Japan (New
York, 1982), p. 236-37.
374
Ellen G. Friedman, Spanish C aptives in North Africa in the Early Modern Age (Madison, Wis., 1983),
p. 105-28, 157.
375
Informação pessoal de Pieter C. Emmer, 8 de dezembro de 1992.
376
David Richardson, The Mediterranean Passes in the Public Records Office, London (East Ardsley,
1981). Entre os primeiros tributos navais criados pela recente República norte-americana no fim do
século XVIII havia um para a proteção dos navios dos Estados Unidos contra os piratas berberes.
377
PRO, James Kirkwood to Secretary of State, 6 de junho de 1709, CO 388/12, K25.

233
Ocidentais britânicas, no rescaldo da escravidão, foi estabelecido pela primeira vez em
1670 para resgatar cristãos do norte da África. Como Samuel Pepys e, presumivelmente,
o conde de Inchquin, os primeiros Mico trustees podiam reconhecer o sofrimento dos
europeus nos Estados da Berbéria, mas não o dos africanos na América.378 A questão
relevante é, em que momento os europeus conseguiram começar a entender que a
“caridade cristã e a humanidade” também deviam abranger os descendentes de
africanos?
A remoção gradual das barreiras que impediam o acesso dos não-europeus ao
status de “de dentro” foi um processo muito lento e em alguns aspectos, nunca foi
concluído.379 (1421) Como observado acima, ele foi estendido aos nativos americanos
antes dos africanos e talvez para os não-europeus que viviam na Europa antes de seus
homólogos estrangeiros. A dilatação do status dos “de dentro” pode ser rastreada nos
desenvolvimentos intelectuais. Enquanto nenhum grande pensador depois de Locke foi
capaz de defender a prática da escravização em relação àqueles que estavam “de fora”
do contrato social, a ambivalência da Ilustração sobre a questão da escravidão aos não-
europeus é evidente.380 Ela também pode ser rastreada no âmbito da experiência pessoal
tanto no Atlântico anglo-saxão quanto no hispânico, onde a proximidade com a
exploração poderia, para uma minoria, gerar sensibilidade, bem como indiferença.381 É
possível que entre a classe trabalhadora europeia, os primeiros abolicionistas, ou pelo
menos aqueles que estavam preparados para se identificar com os negros, fossem
marinheiros, ao invés de artesãos industriais.382 Certamente, o país europeu com o maior

378
Frank Cundall, The Mico College, Jamaica (Kingston, 1914), p. 7-9. Os relatos de Samuel Pepys sobre
os escravos europeus mantidos pelos estados bérberes estão em seus diários, datados de 8 de janeiro e 28
de novembro de 1661.
379
Philip D. Morgan argumenta que as atitudes dos brancos em relação aos negros endureceram durante o
período colonial. Ele não aborda a questão da emancipação, que surgiu nos estados do norte durante e
após a revolução, ou as atitudes em relação aos negros no movimento abolicionista na região do Atlântico
durante o século XVIII. “British Encounters with Africans and African-Americans, circa 1600-1780”, in
Bernard Bailyn; Philip D. Morgan, eds., Strangers within the Realm: Cultural Margins of the First British
Empire (Chapel Hill, N.C., 1991), p. 157-219.
380
Davis, Problem of Slavery in Western Culture, p. 137-39, 319-479; Davis, Slavery and Human
Progress, p. 107-16, 154-58. Ver também a discussão de Montesquieu, em Seymour Drescher,
“Capitalism and Abolition: Values and Forces in Britain, 1783-1814”, in Roger Anstey; P. E. H. Hair,
eds., Liverpool, the African Slave Trade, and Abolition (Liverpool, 1976), p. 182. Parece que para Locke
o universo do contrato social não era o Estado, mas sim o Estado-nação europeu.
John Newton e Alexander Falconbridge estão entre os marinheiros mais conhecidos do tráfico negreiro
381

que se voltaram contra esse comércio.


382
Peter Linebaugh; Marcus Rediker, “The Many Headed Hydra: Sailors, Slaves and the Atlantic
Working Class in the Eighteenth Century”, in Colin Howell; Richard J. Twomey, eds., Jack Tar in
History: Essays in the History of Maritime Life and Labour (Fredericton, N.B., 1991), p. 11-36. Para uma
grande variedade de atitudes de europeus e africanos, um em relação ao outro, ver Morgan, “British

234
e mais bem-sucedido tráfico de escravos e colônias escravistas, tanto em termos
relativos quanto absolutos, foi o centro mais forte do movimento abolicionista e o líder
do abolicionismo mundial. Além disso, os súditos britânicos tinham uma propensão
extraordinária para migrar, a maioria deles se dirigindo, antes de 1800, para as regiões
de plantation, que formavam o mais integrado de todos os sistemas coloniais do século
XVIII. Já em 1700, “a comunicação e a comunidade” através do Atlântico britânico
haviam atingido uma intensidade, riqueza e confiabilidade incomparável de contato
entre as potências europeias e desconhecia precedentes na história das migrações de
longa distância.383 Essas características têm implicações claras para a consciência
metropolitana dos eventos que ocorriam “além da linha”.
Os Países Baixos, por outro lado, apesar do seu compromisso inicial com a
liberdade social e econômica, estão entre os últimos países a adotar medidas
abolicionistas e não vivenciaram qualquer movimento abolicionista de massa.
Novamente, em contraste com os britânicos, eles não possuíram uma frota negreira
depois da década de 1780, e os setores escravistas de seu império não eram apenas
pequenos, mas experimentaram uma queda significativa desde o final do século XVIII.
Mais importante ainda, nos dois séculos anteriores a 1800, os holandeses sofreram com
uma imigração líquida da ordem de meio milhão de pessoas, quase todas elas vindas de
outras partes do noroeste da Europa. Em números líquidos, talvez apenas umas 30 mil
pessoas deixaram a Holanda em direção às Américas e à África, e muitas delas não
eram holandesas. No mesmo período, os ingleses tiveram uma emigração líquida de
1,25 milhões de pessoas, quase todas elas se estabeleceram em torno da bacia do
Atlântico. As redes e os contatos dos holandeses com não-europeus transatlânticos eram
simplesmente muitas vezes menos densos e menos frequentes. Mesmo se incluirmos as
Índias Orientais holandesas, a comunicação entre a Inglaterra e (1422) o mundo
transoceânico – e, consequentemente, a consciência cotidiana do mundo exterior à
Europa – deve ter ofuscado a dos Países Baixos. 384 Contudo, este não é o local para
Encounters with Africans and African-Americans”, p.157-219.
Ian K. Steele, The English Atlantic, 1675-1740: An Exploration of Communication and Community
383

(New York, 1986).


384
Jan Lucassen, Dutch Long Distance Migration: A Concise History, 1600-1900 (International Institute
for Social History, IISH research paper, Amsterdam, 1991), p. 20-23, 35-42; e E. A. Wrigley; R. S.
Schofield, The Population History of England, 1541-1871: A Reconstruction (London, 1981), p. 528-29.
Provavelmente, menos de 1.000 indivíduos holandeses retornaram anualmente das Índias Orientais, a
maioria deles marinheiros e soldados. A maioria dos que não retornaram, morreu. (Lucassen, Dutch Long
Distance Migration, p. 41). Para a Nova Holanda, Seymour Drescher aponta a ausência de redes de
suporte e líderes que desejassem reproduzir a cultura holandesa, quando procura responder à questão de
por que os holandeses só tardiamente foram abolicionistas; Seymour Drescher, “The Long Goodbye:

235
reavaliar as origens do abolicionismo. Minha intenção é apenas sugerir que o
contraponto chave não é a escravidão e a abolição, mas sim a escravização de não-
europeus e a abolição.385

Os argumentos acima tem algumas outras implicações. Uma diz respeito ao


debate bem conhecido sobre a origem das atitudes dos brancos em relação às pessoas
negras. Como observado anteriormente, a evidência apresentada aqui aponta para
importantes fatores não-econômicos na decisão de utilizar escravos africanos. Embora
certamente tornou-se rentável substituir servos contratados europeus por escravos
africanos, a questão principal não eram os lucros relativos, mas sim a incapacidade dos
colonos em conceber europeus como escravos em forma de propriedade. Tal concepção
pode muito bem ter se desenvolvido ao longo do tempo, mas a revolução do açúcar
ocorreu muito rapidamente para permitir que os europeus ajustassem as suas percepções
sobre os “de dentro” e os “de fora”. Se os europeus tivessem sido capazes de conceder
aos africanos os mesmos direitos que gozavam no início do período moderno, não os
teriam escravizado nem os trazido para as plantations das Américas. A ausência de
escravos europeus, como o cão que não latiu, é talvez a chave para a compreensão do
tráfico de escravos e do sistema que lhe deu suporte.
A segunda implicação, menos óbvia, mas igualmente importante, é que os
europeus, e mais particularmente os ingleses, fracassaram em tirar proveito de duas
oportunidades econômicas significativas. A primeira, se eles tivessem imitado a
aristocracia russa do século XVI e criado uma distância ideológica entre as pessoas
comuns e si mesmos e escravizado alguns membros de sua própria sociedade, teriam
desfrutado de custos trabalhistas mais baixos, um desenvolvimento mais rápido das
Américas, e níveis de renda e de exportações mais elevados em ambos os lados do
Atlântico. Para aqueles que consideram que os europeus, especialmente os ingleses,
construíram seu poder econômico graças às colônias ultramarinas, pode-se argumentar
que, para as Américas tropicais subpovoadas, pelo menos, a exploração da periferia e a

Dutch Capitalism and Antislavery in Comparative Perspective”, no prelo, AHR, February 1994.
385
Para a recente literatura e uma discussão judiciosa a respeito das raízes do antiescravismo no contexto
britânico, ver David Turley, The Culture of English Antislavery, 1780-1860 (London, 1991), p. 1-46, 227-
36. Para o declínio da escravidão holandesa nas Índias Orientais, em que é possível observar que a
instituição não se voltava para a produção de exportação, ver Susan Abeyasekere, “Slaves in Batavia:
Insights from a Slave Register”, in Reid, Slavery, Bondage, and Dependency, p. 286-314, especialmente,
p. 308-10.

236
transferência do excedente para o centro teriam sido muito mais rápidas com o trabalho
escravo branco. A segunda falha em maximizar uma vantagem econômica ocorreu
quando os europeus alargaram gradualmente a sua percepção do que constituía um “de
dentro” no final do século XVIII para incluir os povos transoceânicos. Esta mudança de
percepção levou uma instituição muito rentável ao colapso. A primeira “oportunidade
perdida” criou o tráfico de escravos atlântico (1423) da África; a segunda terminou não
só com o tráfico de escravos mas também com a escravidão nas Américas.
Uma terceira implicação – realmente uma extensão do ponto anterior – consiste
na noção de que o capitalismo do século XVII, mercantil ou não, não era tão
desenfreado e voraz como muitos estudiosos dos primórdios da Europa moderna
retrataram-no. O comportamento de maximização do lucro ocorreu dentro limites
acordados, limites definidos pelo menos tanto por valores comuns como pela resistência
das classes com poucas posses. Isso não deveria ser surpreendente. Sempre houve
extensas áreas da vida pessoal que foram definidas como estando além dos limites do
mercado e da maximização dos lucros, mesmo no mundo ocidental, e a expansão e
contração de tal área é um importante campo de estudo, particularmente no que se refere
ao trabalho assalariado. No século XVII, a escravização dos cidadãos europeus estava
além desses limites. Mais interessante, porém, é que os povos com a cultura capitalista
mais avançada, os holandeses e ingleses, foram também os europeus menos propensos a
submeter os seus próprios cidadãos ao trabalho forçado.
A quarta implicação é o corolário deste último ponto. Os países menos
suscetíveis de escravizar os seus próprios cidadãos tinham o sistema mais severo e mais
sofisticado de explorar os escravizados não-europeus. No geral, a concepção dos
ingleses e holandeses sobre o papel do indivíduo na sociedade metropolitana assegurou
o desenvolvimento acelerado da escravidão dos africanos como propriedade nas
Américas (e da escravidão asiática nas Índias Orientais), porque seus próprios cidadãos
não poderiam tornar-se escravos em forma de propriedade ou sequer serem condenados
por toda a vida. Outras implicações dizem respeito à Revolução Inglesa, bem como à
sua homóloga norte-americana de quase um século mais tarde. Pode ser que haja algo a
ser dito sobre a extrapolação de uma variação do argumento de Edmund Morgan com a
finalidade de cobrir a totalidade do Atlântico britânico, no sentido de que a celebração
das liberdades britânicas – mais especificamente, as liberdades para os ingleses –
dependia da escravidão africana. Mas, se este percurso leva a uma interpretação da
história impulsionada puramente por qualquer grupo de interesse dominante, então

237
devemos fazer uma pausa. Os capitalistas poderiam ter lucrado mais com a venda de
condenados europeus por toda a vida do que com os escravos africanos, e mais ainda se
a progênie desses condenados, tal como os africanos, também houvesse sido submetida
a toda uma vida de serviço. No final, a ausência da escravidão europeia sugere que as
interpretações estritamente econômicas da história muitas vezes desprezam esses
aspectos.

238
Quarta Parte

Religião, missionarismo e abolicionismo

239
O contexto missionário do movimento abolicionista britânico

C. Duncan Rice

(150) Há alguns pontos bem conhecidos em que se cruzam a história do ataque


britânico ao tráfico negreiro e a história das missões no exterior. Surpreenderia se
tivesse sido diferente, pois a tradição das ligações entre a atividade missionária e a
compaixão pelos negros já vinha de longa data. Alguns dos primeiros polemistas, como
Morgan Godwyn, estavam interessados, em primeiro lugar, na evangelização e, em
segundo, na escravidão.386 A colônia de Serra Leoa foi fundada tanto para difundir o
cristianismo na África como para cortar o tráfico de escravos na sua fonte. Tanto a
morte do missionário Smith em Demerara, em 1824, quanto a prisão do missionário
Knibb na Jamaica, em 1832, teve um grande impacto político na campanha contra a
escravidão das Índias Ocidentais. A desastrosa expedição ao Níger, de 1841, provocou
uma revolução nas atitudes públicas em relação à supressão do tráfico de escravos, e foi
posta em marcha pela força combinada de sentimento comercial, abolicionista e
missionário. Mesmo após a Grande Exposição, a “febre da África”, que feriu o público
britânico na sequência das descobertas de Livingstone foi impulsionada por uma
combinação de zelo pelas missões e uma inquietação a respeito dos tráficos de escravos
da África Oriental e do Saara.
Estes reforços mútuos eram mais do que coincidência. A relação entre os dois
movimentos era genuinamente simbiótica. Suas origens epistemológicas foram
semelhantes. Tanto focavam em problemas sobre a liberdade – em um caso, a liberdade
da escravidão temporal, em outro, a liberdade de escolha ética, o que um moderno
comentarista chamou de (151) “a liberdade original”.387 Na verdade ambos foram
profundamente influenciados pela inquietação com o livre-arbítrio. Em muitos aspectos,
o seu fundo psicológico foi semelhante. Em última análise, tanto o sentimento
missionário quanto o abolicionista desempenharam um papel crucial na cristalização
dos valores da classe média da Grã-Bretanha vitoriana. Por volta da última metade do


Publicado originalmente em RICE, C. Duncan. The Missionary Context of the British Anti-Slavery
Movement. In WALVIN, James (ed.) Slavery and British Society, 1776-1846. London; Basingstoke:
The Macmillan Press LTD, 1982, p. 150-63.
386
Morgan Godwyn, The Negro’s and Indian’s Advocate, Suing for their admission into the Church
(1680).
387
W. Warren, The Missionary Movement from Britain in Modern History (1965), p. 24.

240
século, a aprovação às missões e a desaprovação à escravidão, bem como a convicção
na monogamia, foram as pedras-de-toque que ajudaram a cultura a definir as formas
pelas quais se diferia das sociedades não-ocidentais. Geralmente, mas não sempre, os
dois movimentos se reforçaram mutuamente. Poucos cristãos abolicionistas, se é que
houve, foram antipáticos às missões, e poucos missionários, se é que houve, foram
antipáticos ao abolicionismo, pelo menos em princípio. Do outro lado da moeda, os
movimentos missionários e abolicionistas estiveram igualmente sujeitos à acusação de
que o seu interesse nos abusos ultramarinos era um substituto, ou até mesmo uma
cortina de fumaça, para desviar a atenção das verdadeiras preocupações, que seriam a
angústia e opressão na metrópole.
O último ponto pode ser explorado primeiro, como um meio de situar os
movimentos missionário e abolicionista no seu contexto na sociedade britânica. Há uma
vasta e bem conhecida literatura sobre a suposta hipocrisia dos abolicionistas – desde o
opúsculo que denunciava Wilberforce por sua cegueira em relação às pressgangs e suas
punições, às polêmicas denunciando a duquesa de Sutherland pela inconsistência entre
seus passeios com Harriet Beecher Stowe e a expulsão dos seus cottars.388 Justamente
essas ressonâncias, que tornavam constrangedor o ataque à escravidão ultramarina,
acabaram sendo politicamente atraentes para aqueles que labutavam para melhorar as
condições do trabalho na metrópole, uma vez que a controvérsia com os abolicionistas
serviu para ressaltar suas próprias preocupações. Isso ocorreu com particular sucesso
durante a controvérsia das Dez Horas, quando um abolicionista como Shaftesbury aliou-
se de forma inusual aos reformadores das fábricas.389 Os cartistas moderados ainda
tiveram algum sucesso ao utilizar os encontros abolicionistas como uma plataforma para
expor os seus próprios pontos de vista, para o desconforto de todos, menos dos
abolicionistas mais radicais.390


N. do T. Grupos que por meio da força recrutavam homens para o serviço naval ou militar.

N. do T. A duquesa de Sutherland esteve envolvida no deslocamento forçado de camponeses
arrendatários (cottars) que há séculos ocupavam a região das terras altas da Escócia. O episódio ficou
conhecido como Highland Clearances, em inglês e, em gaélico escocês, Fuadach nan Gaidheal, que
significa Expulsão do Gael.
388
A Letter to William Wilberforce, M.P., on the Subject of Impressment (1816); D. McLeod, Gloomy
Memories in the Highlands of Scotland… or a Faithful Picture of the Extirpation of the Celtic Race from
the Highlands of Scotland (Toronto, 1857), p. 82-8.
389
G. Battiscombe, Shaftesbury. The Great Reformer, 1801-1885 (Boston, 1975), p. 70-85.
390
Liberator, 2 de outubro de 1840, 1 de janeiro, 14 de maio e 30 de julho de 1841.

241
As missões no exterior davam a mesma oportunidade para traçar paralelos com
as condições metropolitanas. O trabalho dos missionários, como o dos abolicionistas,
estava exposto à crítica de que tanto era equivocado quanto tratava-se de um desvio dos
(152) males reais domésticos. Um dos argumentos era que se tratava de algo quixotesco,
e, portanto, perverso. Num dos seus primeiros números, a Edinburgh Review se mostrou
perplexa com a “despesa descabida” e “o zelo equivocado” da “pregação dos mistérios
mais abstrusos da nossa santa religião às tribos selvagens [hotentotes], que dificilmente
podem contar até dez”.391 Em outra ocasião, após a demolição de uma série de escritos
sobre as missões nas Índias Orientais, ela concluiu que “não há praticamente uma
paróquia na Inglaterra ou na Irlanda, em que o zelo e a atividade de qualquer um desses
apóstolos indianos não promoveria um resultado melhor, – reprimindo mais a
imoralidade, e despertando a devoção, – do que pode ser esperado de seus esforços
conjuntos nas regiões populosas da Ásia”.392 Estes temas estavam constantemente
presentes na resposta metropolitana aos missionários. “Com alguns povos”, observava
Punch, “a simpatia, como na [ilha da] Madeira, é o melhor que se pode esperar de uma
viagem marítima”.393 Um dos pontos mais reveladores do capítulo da famosa
“filantropia telescópica” em Bleak House não é a própria animosidade de Dicken em
relação à expedição ao Níger, mas a maneira pela qual ele pode assumir que seu público
aceitaria a situação miserável da Sra. Jellyby como um paradigma da sociedade
desordenada que a frente abolicionista e missionária negligenciava na metrópole.
Dickens foi muito mais explícito em uma crítica menos conhecida à expedição ao
Níger: “Para tuas tendas, ó Israel! Mas certifique-se de que elas são suas próprias
tendas! Coloque-as em ordem; não deixe nada por fazer; de um posto avançado ao outro
sua lição será transmitida, até que os exércitos nus do rei Obi e do Rei Boy sejam
alcançados, e educados”.394
Para fins práticos, denunciar os abolicionistas era o mesmo que denunciar os
missionários, e vice-versa. Desde a formação da Seita de Clapham até a campanha
contra a escravidão do leste africano, em 1880, a liderança abolicionista britânica
também esteve profundamente interessada nas missões estrangeiras. Não se tratava
apenas de uma questão de esforços conjuntos entre os missionários e os abolicionistas,
391
Edinburgh Review, VIII, n. 16 (julho de 1806), p. 434.
392
Edinburgh Review, XII, n. 23 (abril de 1808), p. 371.
393
“Exeter Hall Pets”, Punch, VI (1844), p. 210.
“The Niger Expedition”, (1848) in F. G. Kitton (ed.), To Be read at Dusk and Other Stories, Sketches
394

and Essays by Charles Dickens (1898), p. 71; H. House, The Dickens World (1941), p. 86-91.

242
como ocorreu no empreendimento de Serra Leoa, na expedição ao Níger, ou no
esquema menos conhecido de Zachary Macaulay para enviar um grupos de jovens
intelectuais cristãos escoceses para formar uma academia no Haiti e resgatar o grande
experimento social do desastre.395 Começando com Wilberforce, Venn e Thornton, os
incentivadores por trás da fundação da Church Missionary Society (CMS), em 1799,
cada uma das três gerações de líderes britânicos – para a abolição do tráfico de escravos,
a emancipação das Índias Ocidentais e a emancipação universal – (153) incluía
defensores ativos do trabalho missionário como um fim em si mesmo.396 Em 1835, por
exemplo, dos trinta membros do comitê da Edinburgh Emancipation Society, onze
também serviram no comitê de uma organização missionária.397 Outro líder provincial
conhecido foi Ralph Wardlaw, de Glasgow, o congregacionalista que influenciou tanto
a formação de George Thompson, ele próprio um entusiasta das missões nas Índias
Orientais, quanto a do jovem David Livingstone.398 Na verdade, as duas causas se
reforçavam mutuamente. Para um evangélico, o tráfico de escravos estava adiando o
reinado de mil anos ao excluir o cristianismo da África.399 Outros viram as missões na
África Ocidental como uma reparação aos males do tráfico de escravos.400
Na verdade, o compromisso das sociedades abolicionistas ou missionárias
raramente excluía o interesse pela reforma na metrópole. Isto se aplicava a Wilberforce
e sua geração de evangélicos, assim como a Buxton e seus aliados na emancipação das
Índias Ocidentais, e os grandes comerciantes que lideraram a Sociedade Abolicionista
Britânica e Estrangeira depois de 1833, e as suas homólogas provinciais.401 Todavia,
numa generalização muito ampla, as atividades políticas dos líderes das sociedades
missionárias e abolicionistas foram canalizadas para o apoio às medidas tais como a
395
Z. Macaulay to R. Paul, 4 de setembro de 1817, Paul Papers, Scottish National Library.
396
S. Jakobsson, Am I not a Man and a Brother? British Missions and the Abolition Slave Trade and
Slavery in West Africa and the West Indies, 1786-1838 (Lund, 1972).
397
Edinburgh Almanac or Universal Scots and Imperial Register for 1835 (Edinburgh, 1835), p. 453 e
passim.
398
O. Ransford, David Livingstone. The Dark Interior (1978), p. 11.
399
G. Lambert, ‘Dark Providence no Just Reason of Discouragement in Missionary Exertions’, Four
Sermons (1796), p. 34, citado em J. A. De Jong, As the Waters Cover the Sea. Millennial Expectations in
the Rise of Anglo-American Missions, 1640-1810 (Kampen, 1970), p. 188.
400
Warren, Missionary Movement, p. 46-7.

N. do T. Na verdade, a Sociedade Abolicionista Britânica e Estrangeira foi fundada em 1839.
Provavelmente, o autor aqui se refira às outras sociedades que a antecederam, e entendia as suas atuações
de forma continuada.
401
H. R. Temperley, British Anti-Slavery, 1833-1870 (1972), p. 72-3. C. Duncan Rice, The Scots
Abolitionists, 1833-1861 (Baton Rouge, 1981, no prelo), apêndices.

243
First Reform Act e a revogação da Corn Law, que causou um impacto razoável nas
liberdades do interesse comercial. O lobby dos evangélicos dissidentes, do qual as
missões e a abolição podiam contar com seu apoio, esteve muito menos interessado em
fornecer garantias políticas para a força de trabalho. Eram comuns suas desavenças com
os radicais da classe trabalhadora, e com os reformadores Tories, como Oastler e
Cobbett. Foi incomum que Shaftesbury tenha apoiado o movimento das Dez Horas.
Embora os líderes individuais, como Elizabeth Pease, de Darlington, tenha
desenvolvido fortes simpatias radicais, a ala garrisoniana da Sociedade de Emancipação
de Glasgow não seguia os parâmetros normais quando formou uma aliança com os
cartistas locais. Os defensores do trabalho missionário e abolicionista geralmente
abordavam a situação da força de trabalho nacional pelo viés da evangelização. Seu
principal plano consistia em mudar os pressupostos culturais dos pobres sem igreja,
convocando-os para a piedade, a respeitabilidade, a auto-disciplina, e, assim,
indiretamente para a prosperidade.402 Sua pouca preocupação com os problemas
metropolitanos decorreria do fato de que eles tinham pouco interesse em proporcionar
às classes trabalhadoras mais liberdades políticas, ou em protegê-las por meio da
legislação dos excessos das regulamentações associadas à sociedade manufatureira.
Que isto se aplicasse igualmente aos adeptos de ambas as causas levanta a
questão dos motivos de se gastar energia com questões que eram essencialmente
estrangeiras. David B. Davis deixou implícito que, para os primeiros industriais, a
arremetida contra a escravidão tinha a função de reafirmar a fé numa comunidade
paternalista, que os próprios industriais estavam destruindo na metrópole.403 De um
modo diverso, esta hipótese pode ser aplicada às missões estrangeiras. Baptist Noel, o
elegante pregador evangélico, proferiu o que pareciam afirmações extraordinárias a
respeito do trabalho dos missionários:

Eles soltarão as energias aprisionadas dos homens, e acorrentarão suas paixões sem lei. Eles
tornarão a propriedade estável e a indústria rentável; assegurarão ao rico o seu palácio, e ao pobre sua

402
P. Hollis, “Anti-Slavery and British Working-Class Radicalism”, in C. Bolt; S. Drescher (eds.), Anti-
Slavery, Religion and Reform: Essays in Memory of Roger Anstey (Folkstone, Kent, 1980), p. 303-4; S.
Meacham, Henry Thornton of Clapham (Cambridge, Mass., 1964), p. 136-46; J. Pollock, Wilberforce
(New York, 1978), p. 255-63.
D. B. Davis, The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823 (Ithaca, 1975), p. 453-68 e
403

passim.

244
cabana; e espalharão contentamento, afeição doméstica e felicidade geral, onde a penúria, o vício e a
discórdia tornam a existência uma maldição.404

Esforçar-se por uma comunidade ordenada e piedosa no ultramar também pode


ter sido uma resposta paradoxal, mas reconfortante para o problema da irreligião da
classe trabalhadora, que era muitas vezes incontrolável. 405 Esta tentativa de impor
construções ideais fora da sociedade em que os abolicionistas e missionários viviam está
alinhada com o fenômeno que um estudioso norte-americano identificou na história dos
manicômios, que foram organizados ao longo de linhas irrealisticamente ordenadas para
fornecer um modelo de estrutura social que os reformadores foram incapazes de impor à
sociedade incontrolável que os cercava.406 Da mesma forma, os padrões de sacrifício e
piedade esperados dos convertidos na área de atuação eram muitas vezes superiores aos
dos paroquianos da metrópole, assim como a tentativa de libertar os escravos da
arregimentação estava em desacordo com a tendência de impor uma nova disciplina
para a força nacional de trabalho. Em certo sentido, tais planos eram caricaturas, em
outro, tipos ideais. Mas eles poderiam ser impostos aos mundos distantes da plantation,
do manicômio, ou das áreas de atividade missionária, onde nem o sucesso nem o
fracasso implicavam qualquer risco, e onde (155) o próprio esforço agia para acalmar a
inquietação das tensões no dia-a-dia da sociedade metropolitana.
Mais especificamente, o apelo do movimento missionário estava relacionado
com as mudanças na estrutura social da profissão clerical. A primeira metade do século
XIX foi um período de crescente profissionalização do ministério. Este fator não atingiu
o início do movimento missionário, que começou selecionando recrutas para suas
atividades entre as fileiras dos artesãos devotos, e usando as missões como um meio de
ascensão social. Os primeiros missionários modernos, incluindo Carey, Marshman e
Ward, os pioneiros Batistas nas Índias Orientais, eram autodidatas – tanto assim que o
sotaque cantante “chee-chee” do inglês indiano é atribuído como o produto de seu forte
sotaque galês.407 A Edinburgh repudiou-os como “um covil consagrado de

404
B. W. Noel, Christian Missions to Heathen Nations (1842), p. 348.
405
W. G. Enright, “Urbanization and the Evangelical Pulpit in Nineteenth Century Scotland”, Church
History, XLVII (1978), p. 400-7.
D. Rothman, The Discovery of the Asylum. Social Order and Disorder in the New Republic (Boston,
406

1971).
407
C. Allen (ed.), Plain Tales from the Raj. Images of British India in the Twentieth Century (1975), p.
25. Sobre o contexto social do início do recrutamento missionário, ver M. Warren, Social History and
Christian Mission (1967), p. 36-57.

245
sapateiros”.408 Muitos dos primeiros missionários da CMS eram, na verdade, luteranos
alemães por falta de disponibilidade de clérigos ingleses. Com exceção dos escoceses, a
maioria dos primeiros missionários sul-africanos era pobremente educada.409 Mesmo
Robert Moffat, o ex-jardineiro, teve que traduzir a Bíblia para o tswana sem formação
linguística ou filológica anterior. Moffat serviu nos anos trinta e quarenta. Contudo, em
seguida, a expansão da educação seminarista produziu um excedente de clérigos
treinados. Muitos daqueles que não encontravam paróquias para se estabelecer eram
absorvidos pelas obras auxiliares do império benevolente – como jornalistas,
palestrantes profissionais, ou agentes de sociedades beneficentes. A escala
relativamente modesta e o ritmo variado do movimento abolicionista britânico impediu
que muitos se envolvessem em tempo integral – ao contrário do caso norte-americano,
onde a espinha dorsal do movimento abolicionista eram os homens jovens que haviam
se ordenado e foram em busca de uma melhoria profissional ao invés de serem
chamados para uma congregação.410 Todavia, mesmo na Grã-Bretanha, a atividade das
missões foi capaz de absorver muitos dos jovens que passavam pela formação
ministerial. Por volta dos anos cinquenta, até mesmo uma denominação relativamente
pequena, como a United Presbyterian Church, que tinha cerca de 400 congregações,
controlava não menos do que cinco faculdades teológicas, que produziam trinta jovens
ministros por ano.411 Nesta e em outras denominações, as missões ultramarinas
significaram um meio importante de absorção de pelo menos alguns desses excedentes.
Na verdade, um grande número de missionários (156) era comido por canibais, ou
morria de formas menos espetaculares. Quer ou não, as missões também
compartilharam o papel desempenhado pela abolição ao mitigar a inquietação com a
mudança social metropolitana, e superaram o movimento abolicionista ao fornecer uma
carreira suplementar alternativa para uma das novas profissões de elite da sociedade
vitoriana.

408
Edinburgh Review, XIV, n. 28 (abril de 1809), p. 40.
P. Hinchcliff, “The Selection and Training of Missionaries in the Early Nineteenth Century”, in G. J.
409

Cuming (ed.), The Mission of the Church and the Propagation of the Faith (Cambridge, 1970), p. 131-5.
410
D. M. Scott, “Abolition as a Sacred Vocation”, in L. Perry; M. Fellman (eds.), Anti-Slavery
Reconsidered. New Perspectives on the Abolitionists (Baton Rouge, 1979), p. 51-74. Ver também Scott,
From Office to Profession. The New England Evangelical Ministry, 1750-1850 (Philadelphia, 1978); B.
Heaney, A Different Kind of Gentleman. Parish Clergy as ‘Professional’ Men in Early and Mid-Victorian
England (Hanmden, Conn., 1976).
411
W. H. McKelvie, Annals and Statistics of the United Presbyterian Church (Edinburgh, 1873), p. 678
ff.

246
Todavia, a principal conexão entre os dois movimentos era o seu fundo religioso
comum. A maioria dos abolicionistas britânicos entendia que o principal impulso por
trás de seu trabalho era religioso. George Thompson, que estava profundamente
interessado nas missões das Índias Orientais, falou em nome de todos eles quando
alegou que “a guerra de extermínio deve ser travada contra as obras do diabo, sob todas
as suas aparições múltiplas e enganadoras”. 412 Os missionários também se viam
envolvidos na mesma batalha cósmica. Melville Horne, um dos primeiros evangelistas
de Serra Leoa, lamentou que “o nosso adversário não dorme... ele faz a cabeça contra o
reino de Cristo; ... e promove a guerra no pequeno território de Jesus. 413 Baptist Noel foi
muito específico sobre a afinidade entre as missões e outros empreendimentos
reformistas, incluindo o abolicionismo – os missionários “atuam conjuntamente para
libertar o escravo... para substituir em todos os lugares a anarquia pela ordem, o
despotismo pela lei, a crueldade pela benevolência, e a opressão pela justiça”. Sua visão
dos missionários era semelhante à que Thompson demonstrava pelos abolicionistas: “Os
servos de Jesus Cristo seguirão em frente para subjugar toda forma de mal... eles
resgatarão os homens das trevas e os trarão à luz, e do poder de Satanás para Deus”.414
Em vista da inspiração religiosa compartilhada pelas duas causas, esta
semelhança de pontos de vista não é surpreendente. O movimento abolicionista extraiu
muito do seu dinamismo dos temas do denominacionalismo, do pós-milenarismo, da
santificação, da redenção e do arminianismo.415 Todavia, as ressonâncias destas
concepções tiveram um impacto sobre outras causas reformistas. Basta um olhar sobre a
lista de organizações benevolentes em qualquer cidade britânica do século XIX para que
fique demonstrada a força da lealdade denominacional. Ela teve um impacto sobre todos
os movimentos reformistas evangélicos, às vezes construtiva, muitas vezes corrosiva.
Os pressupostos pós-milenaristas foram essenciais para todas as atividades do império
benevolente, em ambos os lados do Atlântico. A santificação também tinha conotações
mais amplas. (157) É impossível, por exemplo, olhar para a vida de Wilberforce,
Thornton ou Shaftesbury, sem ficar impressionado com a sua força diante de uma
enorme variedade de compromissos reformistas. Quanto à redenção, não há dúvida de

412
G. Thompson, Letters and Address... During his Mission in the United States (Boston, 1837), p. 2.
M. Horne, Letters on Missions, Addressed to the Protestant Minister of the British Churches (Andover,
413

Mass., 1815), p. 19.


414
Christian Missions to Heathen Nations, p. 347-8.
R. Anstey, “The Protestant Ethic and Slavery”, trabalho apresentado na Waterloo Slave Studies
415

Conference, 15 de março de 1979, p. 1.

247
que a escravidão trazia consigo uma bagagem cultural e psico-linguística que
intensificou o compromisso abolicionista para salvar o escravo, mas o exemplo central
do Redentor moldou toda a visão reformista protestante, incluindo a dos missionários. 416
Da mesma forma, o arminianismo não promoveu um efeito maior sobre a reforma
abolicionista do que sobre qualquer outra, e ele estava empenhado especialmente com o
impulso missionário. O próprio John Wesley tinha encontrado a injunção no coração do
arminianismo: “Irmão, vá, vá e pregue o Evangelho a todo o mundo”.417
Essas visões internas da base religiosa do abolicionismo podem ser aplicadas
voluntariamente à classe média reformista como um todo. Quando isso ocorre, as
ligações específicas entre a inquietação religiosa e compromisso abolicionista tornam-se
menos específicas e, talvez, nos termos do século XX, menos técnicas. Uma das razões
pelas quais o abolicionismo era primus inter pares entre as causas do império
benevolente do Atlântico decorreu do fato de que ele combinou melhor as preocupações
internas com o impulso missionário, comum a todas elas. As próprias missões eram a
prole do arminianismo e a unidade para a redenção, e elas foram profundamente
influenciados pelo denominacionalismo, pós-milenarismo e a santificação. Não é de
estranhar que os empreendimentos missionário e abolicionista mutuamente se
reforçaram, que tantos reformadores britânicos apoiaram a ambos, ou que tanto a
metáfora quanto a iconografia de sua literatura foram compartilhadas.
Poucos abolicionistas puderam resistir a definir seu trabalho em termos
missionários. Eles timbraram seus oponentes como adversários da propagação do
evangelho. George Thompson podia perguntar numa palestra aos norte-americanos se
era bonito “haver escuridão em vossa terra, papismo, senão, por que privar um homem
da Bíblia?”418 Trinta anos antes, após a abolição de 1807, Thomas Clarkson tinha se
regozijado de que a África agora “pode estar em uma situação melhor para compreender
e receber as sublimes verdades da religião cristã”.419 Joseph Sturge também pode
combinar a emancipação e o triunfo das missões nas Índias Ocidentais: “Há poucos
anos atrás, os negros eram (158) pagãos e ignorantes, agora eles são em grande parte
instruídos e cristãos”.420 Para Ralph Wardlaw, a emancipação foi o soar das trombetas
416
Ver, por exemplo, C. Buchanan, The Star in the East; a Sermon, preached... in… 1809 (Boston, 1811).
417
Citação não identificada em Anstey, “Protestant Ethic”, p. 2.
418
Thompson, Letters and Addresses, p. 70.
419
T. Clarkson, The History of the Rise, Progress, and Accomplishment of the Abolition of the African
Slave Trade by the British Parliament, 2 vols. (1808), vol. II, p. 586.
420
J. Sturge; T. Harvey, The West Indies in 1837 (1838), p. 380.

248
para as missões, e forneceria um fluxo de ex-escravos convertidos para evangelizar a
África: “Eles precisam de outra emancipação – a emancipação proclamada pelo júbilo
do Evangelho”.421 Ao mesmo tempo, a escravidão era em si uma das pedras de toque da
barbárie contra a qual os missionários estavam lutando. Como um evangelista norte-
americano comentou certa vez em relação aos gabonenses, “eles são um povo amável,
excetuando os vícios que lhes pertencem como pagãos, como a escravidão, a poligamia,
a superstição e a intemperança”. 422 Baptist Noel, da mesma forma, deu grande ênfase à
escravidão entre os Maoris, talvez especialmente por causa de sua disposição a assar e
comer os seus escravos como uma forma de castigo.423
Em última análise, a escravidão e a irreligião tornaram-se partes interligadas do
mesmo sistema, e o manto do martírio poderia igualmente bem ser assumido em
qualquer uma das lutas. Grande parte da tensão criada pelo compromisso poderia ser
resolvida pela exposição à violência e ao sofrimento. 424 Para os evangélicos, as tensões
psicológicas criadas pela experiência da conversão eram extraordinárias. “Olhando para
trás num espaço em branco e em direção à eternidade – internamente, para o conflito
cristão e externamente, para um mundo que jaz na malignidade, é assim que às vezes
me sinto”, queixou-se um deles, “como se eu estivesse cansado da vida”. 425 Arriscar-se
ao martírio, real ou imaginado, era uma forma fecunda de se libertar de tais tensões, e
uma forma sem perigo religioso. Um estudioso norte-americano havia lhe intitulado de
“uma aposta espiritual: se Deus lhe garantisse a vida, o missionário poderia fazer
milagres ao seu serviço. Se Deus lhe entregasse a morte, Ele estava obrigado a
reconhecer o sacrifício, conferindo-lhe a salvação”.426 Era uma outra versão da aposta de
Pascal colocada no centro do compromisso cristão.
421
R. Wardlaw, The Jubilee: A Sermon Preached... on… the Memorable Day of Negro Emancipation in
the British Colonies (Glasgow, 1834), p. 34.
C. K. Whipple, Relation of the American Board of Commissioners for Foreign Missions to Slavery
422

(New York, 1861), p. 43.


423
Noel, Christian Missions to Heathen Nations, p. 25-6.
424
S. Tomkins, “The Psychology of Commitment: The Constructive Role of Violence and Suffering for
the Individual and his Society”, in M. Duberman (ed.), The Anti-Slavery Vanguard: New Essays on the
Abolitionists (Princeton, 1965), p. 270-98.
425
J. E. Gordon to T. Chalmers, 10 de junho de 1818, MS. 4.8.7, Chalmers Papers, New College,
Edinburgh.
426
B. Wyatt-Brown, “Conscience and Career: Young Abolitionists and Missionaries”, in Bolt; Drescher
(eds.), Anti-Slavery, Religion, and Reform, p. 196.

N. do T. Trata-se de uma argumentação filosófica de Blaise Pascal, que postula que há mais a ser ganho
pela suposição da existência de Deus do que a da sua não existência. Grosseiramente, o argumento
poderia ser dividido da seguinte forma: se você acredita em Deus e estiver certo, você terá um ganho
infinito; se você acredita em Deus e estiver errado, você terá uma perda finita; se você não acredita em

249
Certamente muitos missionários britânicos, assim como norte-americanos,
encontraram o martírio tal como desejavam. Alguns, como Williams, “o mártir de
Erromanga”, foram assassinados por aqueles a quem eles levaram o evangelho. Outros
morreram mais mundanamente a bordo de navios, como Henry Martyn, o tradutor
anglicano das Escrituras para o urdu. Outros caíram vítima dos estragos espetaculares
das doenças tropicais. O falecimento de Livingstone chegou a proporcionar uma das
cenas mais célebres da iconografia vitoriana sobre a morte. Em meados do século, o
(159) problema dos organizadores missionários da metrópole consistia em joeirar os
poucos candidatos qualificados entre as multidões de jovens piedosos ansiosos para as
atividades. Um dos obstáculos ao recrutamento seletivo era “a ideia de que não havia
necessariamente, em missão de trabalho, uma espécie de martírio físico”.427 Todavia, ao
mesmo tempo, a vasta bibliografia sobre as missões desenvolveu uma tradição
hagiográfica para cada uma das principais regiões de atividade.
Nem o martírio atraiu mais a atenção dos missionários do que o envolvimento na
luta contra a escravidão. Neste caso, a concepção do martírio era particularmente
emotiva, na medida em que fundia os sofrimentos abolicionistas com os dos primeiros
cristãos, cujo interesse primário recaía sobre a evangelização. Harriet Martineau, a
polemista unitariana, assegurou aos reformadores britânicos que os abolicionistas norte-
americanos eram “os confessores e mártires atuais do mundo”.428 Todavia, a compleição
do mártir, qualquer que fosse sua força, raramente impelia os reformadores a dar o
passo extremo do proselitismo no sul dos Estados Unidos. Charles Torrey, que morreu
na prisão em 1846 depois de ser aprisionado por ajudar escravos a escapar, foi um caso
incomum – e seus admiradores britânicos ainda estavam lembrando dele como um
mártir após o início da Guerra Civil.429
Na verdade, a história do abolicionismo britânico teve seus próprios mártires,
embora o paradoxo consista no fato de que eles eram missionários em vez de
abolicionistas. Em 1824 e novamente em 1831 – dois incidentes na campanha das Índias
Ocidentais sugeriram uma incapacidade britânica para distinguir entre as metas dos
missionários e a dos abolicionistas, ou entre os direitos dos missionários e os direitos
dos escravos. Os missionários da Morávia trabalhavam nas colônias açucareiras desde
Deus e estiver certo, você terá um ganho finito; se você não acredita em Deus e estiver errado, você terá
uma perda infinita.
427
Conference on Missions Held in 1860 at Liverpool (1860), p. 257-8.
428
H. Martineau, The Martyr Age of the United States of America (Newcastle, 1840), p. xviii.
429
E. Wigham, The Anti-Slavery Cause in America and its Martyrs (1863), p. 61-3.

250
1732, e clérigos episcopais também contribuíram ao fornecer instrução religiosa
elementar para os escravos, sobretudo através da propriedade de Codrington, em
Barbados.430 As atividades entre os escravos só se tornaram seriamente ofensivas aos
fazendeiros quando os missionários batistas e metodistas apareceram no início do século
XIX. Em face da hostilidade esporádica dos fazendeiros, eles continuaram o seu
trabalho sem grandes incidentes até 1824, quando as inquietações coloniais chegaram a
um nível muito alto devido à aceleração dos esforços abolicionistas em Westminster, e
uma série de revoltas entre os escravos. O mais importante ocorreu em Demerara, onde
John Smith, um missionário da London Missionary Society, foi jogado na prisão e
condenado à morte, em (160) decorrência da suposição de que estava envolvido nos
distúrbios. Ele morreu de febre, e sua morte provocou uma comoção pública. Nessa
ocasião foi que Henry Brougham proferiu seus mais brilhantes discursos
abolicionistas.431 Do ponto de vista dos fazendeiros, a única vantagem trazida pela morte
de Smith foi a de que ele não poderia retornar à Grã-Bretanha para narrar seus
sofrimentos ao país.
Não ocorreu o mesmo durante as perseguições de 1831-2, onde uma combinação
idêntica de inquietação em relação às insurreições negras e crescente impulso
abolicionista na metrópole estimularam as autoridades jamaicanas a enviar para a cadeia
uma série de missionários dissidentes. Quando libertados, eles voltaram para a Grã-
Bretanha para influenciar a opinião contra os fazendeiros. Agora, os fazendeiros eram
os inimigos das missões, e, portanto, da religião, bem como eram os amigos da
escravidão. Um dos exilados era Henry Whiteley. Calcula-se que seu relato sobre suas
experiências, muito ornamentado com histórias sobre as atrocidades contra os escravos,
vendeu 200.000 cópias nas primeiras duas semanas após a publicação.432
Um grande propagandista da posição articulada entre os missionários e os
abolicionistas foi William Knibb. Quando chegou na Jamaica no ano da morte do
missionário Smith, ele viu a sociedade escravista exatamente da mesma forma como um
abolicionista evangélico via o dar al harb: “Já alcancei a terra do pecado, da doença e
da morte, onde Satanás reina com poder terrível, e comanda multidões de cativos

B. Edwards, The History… of the British Colonies in the West Indies, 3 vols. (1801), v. 1, p. 431 ff; J.
430

H. Bennet, Jr., Bondsmen and Bishops: Slavery and Apprenticeship on the Codrington Plantations of
Barbados, 1710-1838 (Berkeley, 1958).
431
Henry Brougham, Speeches of Henry Lord Brougham, 4 vols. (Edinburgh, 1838), vol. 2, p. 51-128.
432
H. Whiteley, Three Months in Jamaica in 1832: Comprising Residence of Seven Weeks on a Sugar
Plantation (1833); W. L. Burn, Emancipation and Apprenticeship in the British West Indies (1937), p. 94-
7.

251
segundo a sua vontade”.433 Ele não encontrou nenhuma razão para mudar sua avaliação
durante os oito anos de sua residência no Caribe. No momento da insurreição de Natal,
ele foi aprisionado junto com outros missionários batistas e metodistas, por incitar os
escravos à rebelião na paróquia de St. James. Ele tornou-se muito mais perigoso do que
o pobre missionário Smith, desde que foi libertado com base num nolle prosequi, sem
perder nenhum prestígio do martírio. Ele foi um dos grandes oradores na tradição não-
conformista, e as suas viagens à Grã-Bretanha no ano anterior à emancipação tornaram-
se triunfos abolicionistas. Apesar de suas palestras não serem tão lúgubres quanto as de
Whiteley, elas incluíam muita propaganda abolicionista sobre a crueldade da
escravidão. Mas o público britânico já tinha sido exposto a isso bem antes. O tema
fundamental consistia em rasgar a máscara dos fazendeiros de uma vez por todas. Eles
agora ficavam expostos ao público devoto como os inimigos da religião, e seu sistema
como um anteparo à difusão do Evangelho. 434 (161) O ataque à escravidão extraiu muito
de sua força da inquietação puramente secular a respeito da estrutura social, e foi
apoiado pela simples compaixão humana em relação ao sofrimento do povo negro, e
para isso contou com muita munição religiosa específica –, porém, o mais importante é
que os últimos estágios da luta pela emancipação britânica ocorreram num momento em
que a abolição e as causas missionárias estavam claramente interligadas.
Isso não quer dizer que tudo estava em harmonia nos trabalhos missionários e
abolicionistas. Houve algumas circunstâncias em que a pregação e a prática dos
missionários em suas áreas de atuação poderiam ter um impacto sobre a credibilidade
abolicionista na metrópole. Isso só se tornou um problema nos anos quarenta, quando a
crescente sofisticação tática dos garrisonianos, e a fragmentação abolicionista que a
acompanhou em ambos os lados do Atlântico, trouxe uma grande inquietação em
relação à consistência absoluta do comportamento abolicionista. Isso levantou duas
questões para as sociedades missionárias: em primeiro lugar, se elas deviam receber
doações de proprietários de escravos, e, em segundo, se seus trabalhadores nas áreas de
atuação estavam obrigados a desempenhar a prática cristã em conformidade com a

N. do T. Termo utilizado para países que não estão sob o domínio islâmico, considerados, portanto,
como infiéis.
433
Citado por J. H. Hinton, Memoirs of William Knibb, Missionary in Jamaica (1847), p. 45.

N. do T. “Nolle prosequi”: numa tradução livre, “não estar disposto a prosseguir”, mas geralmente
utilizado como um termo jurídico: uma notificação formal de abandono por um autor ou procurador da
totalidade ou de parte de um processo ou ação.
W. Knibb; P. Borthwick, Colonial Slavery. Defense of the Baptist Missionaries (1833). Ver também P.
434

Wright, Knibb ‘The Notorious’, Slaves’ Missionary, 1803-1845 (1973), p. 12 ff.

252
crença abolicionista. Em termos práticos, a questão em ambos os casos era se um
proprietário de escravos poderia ser admitido à comunhão. Para os abolicionistas norte-
americanos e seus apoiadores britânicos era tecnicamente crucial que os missionários
deviam manter uma atitude autêntica em relação à escravidão, tanto no Sul quanto nas
sociedades indígenas. Todavia, para os missionários, a adesão incondicional à ortodoxia
técnica abolicionista corria o risco de retardar seriamente o trabalho de conversão. Se os
missionários fossem obrigados a interferir na escravidão, para manterem-se
consistentes, eles deveriam empreender o mesmo ataque frontal contra outros abusos,
tais como o sati ou a poligamia. Em áreas onde tais práticas prevaleceram, o efeito
desses pontos de vista restringiria sua capacidade de formar convertidos, exceto entre
aqueles que já haviam se distanciado de sua própria sociedade. Aliás, foi muito comum
na tradição das missões do século XIX aceitar apenas os convertidos depois que eles
tivessem se afastado dessas práticas anti-cristãs peculiares à sua própria cultura, mas
houve algumas áreas em que o problema da escravidão apresentou complicações
especiais.
Este foi sempre um problema mais na América do que na Grã-Bretanha, onde a
organização missionária não recebeu nenhuma renda (162) dos proprietários de
escravos. Nos Estados Unidos, a controvérsia sobre o ponto de vista do Board of
Commissioners for Foreign Missions, dominado pelos congregacionalistas, começou
em 1839, quando alguns de seus missionários no Pacífico começaram a insistir para que
os mesmos deixassem de aceitar dinheiro dos proprietários de escravos. Alguns anos
mais tarde, também foi descoberto que os missionários que atuavam junto aos
Choctaws estavam admitindo índios convertidos, que eram proprietários de escravos, à
comunhão. O pretexto utillizado pelo Board foi a teoria dos “pecados orgânicos”, que
sugere, com efeito, que os missionários não tinham a obrigação de atacar a escravidão –
ou obrigar seus convertidos a abandoná-la – se ela estava bem estabelecida na sociedade
em que eles atuavam. Para os abolicionistas cuja tarefa era convencer os norte-
americanos de que a posse de escravos e o compromisso cristão eram incompatíveis,
este exemplo teve implicações terríveis. O resultado foi a fundação da Union
Missionary Society e da sua sucessora, a American Missionary Association, que
estavam comprometidas com a exclusão dos convertidos da comunhão até que tivessem

N. do T. Sati: Conforme Dicionário Houaiss, “na cultura indiana, viúva que se imolava em ritual na
fogueira funerária do marido com o objetivo de provar seu amor conjugal e fidelidade”.

N. do T. Povo indígena que habitava a região sudeste dos Estados Unidos, principalmente os estados do
Mississipi, Alabama e Louisiana.

253
cortado toda a conexão com a escravidão.435 Essa controvérsia foi acompanhada de
perto na Grã-Bretanha, e ela ainda estava atraindo a atenção em periódicos
abolicionistas britânicos em meados dos anos cinquenta.436
Nenhuma sociedade missionária britânica passou pelos mesmos sofrimentos que
a American Board of Commissioners Foreign Missions. O único momento comparável
foi a controvérsia sobre as missões da United Presbyterian Church, em Old Calabar, no
Delta do Níger. Em 1854, William Lillie, um ministro da United Presbyterian de
Edimburgo, revelou que ele estava aceitando os proprietários de escravos em
comunhão. Na verdade, a escravidão em old Calabar era um cruzamento entre
clientelismo, dependência familiar e escravidão propriamente dita, mas os abolicionistas
norte-americanos e britânicos, com razão, pensaram que a recusa da United Presbyterian
em manter suas referências “enfraqueceria nossas mãos e obstruiria nossa utilidade”.437
A controvérsia continuou na Escócia e na imprensa abolicionista por dois ou três anos,
sem alterar as diretrizes da United Presbyterian Church no Delta do Níger, ou
seriamente quebrar a unidade geral entre as missões e o abolicionismo. Isso não
significa que a questão não foi considerada importante. Um panfletário observou
enfaticamente que “os pecados orgânicos são conspirações diretas e literais contra
Deus”.438 Todavia, ao contrário das sociedades missionárias norte-americanas, as da
Grã-Bretanha não tinham que lidar (163) com doações de proprietários de escravos, ou
com convertidos em seu próprio país, como os Choctaws, que mantinham escravos.
O trabalho organizado contra a escravidão obteve grande parcela de sua energia
da reforma britânica, desde o final do século XVIII até a Guerra Civil Norte-Americana.
Durante esse período, os movimentos abolicionistas e missionários estiveram
intimamente ligados, apoiado pelas mesmas pessoas, nutridos por inquietações
semelhantes, e com objetivos de criar o mesmo futuro religioso. A escravidão tinha
ressonâncias particularmente terríveis, tanto em termos religiosos quanto sociais.
Todavia, sem exagero, para os grupos evangélicos e dissidentes, que eram o esteio de
ambos os movimentos, o ataque à escravidão era apenas uma frente na guerra mundial

435
Whipple, Relation of the American Board… to Slavery, passim; R. J. Berkhofer, Salvation in the
Savage. An analysis of Protestant Missions to the American Indian and the American Indian Response,
1787-1852 (Lexington, Kentucky, 1965), p. 141-2.
436
Por exemplo, Anti-Slavery Reporter, 15 de outubro de 1845, 1 de junho de 1850, 1 de abril de 1853, 1
de dezembro de 1854; Anti-Slavery Advocate, outubro e novembro de 1854.
437
L Tappan to W. Lillie, 16 de março de 1855, Letterbooks, IX, Tappan Papers, Library of Congress.
438
J. Dunlop, American Slavery: Organic Sins, or the Iniquity of Licensed Injustice (Edinburgh, 1846), p.
12.

254
dos missionários. Muito se enfatizou que Wilberforce e seus amigos propuseram-se a
revolucionar a cultura da classe dominante britânica “para converter os cavalheiros ‘do
século XVIII’ em cavalheiros ‘do século XIX’”. 439 O ideal do cavalheiro cristão que
passou a dominar a cultura vitoriana tardia é o melhor indício de seu sucesso. Estando
dentro ou fora do serviço público, o pólo positivo da atitude do cavalheiro cristão em
relação ao mundo não-ocidental era a de que todos os britânicos decentes abominavam a
escravidão e apoiavam as missões aos povos pagãos. O pólo negativo era a sua opinião
de que todos os britânicos conscientes eram livres para explorar o mundo não-ocidental
economicamente, e dominá-lo politicamente. Este legado menos atraente dos anos
precedentes à rainha Vitória está além do escopo deste artigo.

439
Pollock, Wilberforce, p. 64.

255
As origens quacres do antiescravismo

J. William Frost

(1) As circunstâncias que induzem ou preparam o caminho para um indivíduo ou


um grupo iniciar uma transformação importante há muito fascinam os historiadores. O
que leva as pessoas a pensar em algo novo? A invenção é essencialmente uma
realização pessoal determinada pela genialidade individual ou deve-se tentar distinguir
os nexos culturais importantes, os fatores econômicos, ou a condição social? Na história
mundial, a importância principal da Sociedade dos Amigos  é que ela foi a primeira
coletividade a endossar a ideia de que a escravidão era um erro e a primeira a se libertar
da mácula de possuir homens.440 Uma vez que os estudiosos sabem há muito tempo que
os quacres iniciaram o protesto americano contra a escravidão, a principal tarefa dos
pesquisadores de hoje é determinar o porquê de os quacres terem sido os primeiros, a
maneira pela qual o protesto foi encaminhado e as razões do seu sucesso parcial.
Essa introdução trata de três questões: o que no quacrismo levou ao
antiescravismo, que contribuições vieram das influências intelectuais de fora [da
Sociedade] e qual foi a conexão entre os dois principais eventos, a Guerra com os
franceses e com os índios e a Revolução Norte-Americana, que ocorreram durante o
mesmo período em que a Assembleia Anual da Filadélfia decidiu declarar a escravidão
um pecado e exigir que os quacres libertassem seus escravos.
Certamente, a explicação da inovação não está apenas no fato de que os Amigos
levaram sua religião a sério. Afinal, por séculos, cristãos devotados assumiram a
existência da escravidão; e por mais que houvesse grandes diferenças entre a instituição
da escravidão na Europa medieval e no século XVIII na Carolina do Sul, as
similaridades referentes à condição dos escravos são tão surpreendentes quanto
quaisquer diferenças. No século XVII, católicos, anglicanos, calvinistas reformados
holandeses, luteranos, puritanos da Nova Inglaterra e quacres defrontaram-se com a

Publicado originalmente em FROST, J. William. Introduction. In J. William Frost (ed.) The Quaker
origins of antislavery. Norwood: Norwood Editions, 1980, p. 1-30.

N. do T. Trata-se da The Religious Society of Friends, a igreja quacre. Os quacres também referem-se a
si mesmos como Amigos.
440
O papel dos menonitas no desenvolvimento do antiescravismo ainda não está claro. Os quacres de
Germantown que protestaram em 1688 possuíam uma base anabatista. A afirmação de que os menonitas
não possuíam escravos não foi nem conclusivamente confirmada nem refutada. Se os menonitas alemães
eram antiescravistas, seus protestos estiveram confinados às suas congregações e nunca afetaram a
comunidade mais ampla.

256
chocante taxa de mortalidade dos escravos negros nas Índias Ocidentais. Se a exposição
a esse sistema severo fosse (2) suficiente para causar indignação aos cristãos, todas
essas igrejas teriam protestado. Mas somente uma começou a questionar a escravidão.
Como os Amigos deviam a sua própria existência à particular concatenação que
realizavam entre crenças e práticas, torna-se lógico examinar suas ideias e ações para
ver se há alguma relação com o antiescravismo. O quacrismo começou com a asserção
de que cada pessoa poderia experimentar Deus diretamente no seu interior, ou, segundo
a frase memorável de George Fox, há “uma parte de Deus em cada homem”. Um crente
que seguisse de perto a luz interior de Cristo experimentaria expiar os pecados e
encontraria capacidade para obedecer às Suas ordens. Com o tempo, um quacre poderia
vencer o mal e alcançar a completa harmonia com Deus. Como a luz estava
potencialmente disponível para todos os homens, os Amigos não poderiam aquiescer
que a visão da inferioridade natural atribuída aos negros os tornava incapazes de serem
cristãos e não subscreveriam a asserção de que não havia necessidade de agir como
ministro para suas necessidades físicas e espirituais.441
Como outros cristãos, os Amigos acreditavam na realidade do mal e no poder do
pecado, mas negavam o dogma calvinista de que qualquer ação do homem permanecia
maculada pelo pecado original. Os Amigos rejeitavam a doutrina do pecado original e
argumentavam que as crianças nasciam inocentes. As crianças, depois de chegarem à
idade da responsabilidade, se tornavam corrompidas por atos pecaminosos e embora
isso fosse um fenômeno empírico (todo homem peca), não era uma necessidade. Como
não havia pecado herdado e a punição não passava de uma geração para outra, os
Amigos não poderiam se satisfazer com a argumentação tradicional de que os negros
tinham sido condenados à escravidão por causa dos pecados dos seus ancestrais
cometidos nos tempos bíblicos.
Os quacres contemporâneos eram bem conhecidos por testemunharem a paz.
Desde os anos 1660 os Amigos haviam insistido que as guerras santas do Antigo (3)
Testamento eram uma justificação insuficiente para que os cristãos se envolvessem na
guerra. As passagens do Novo Testamento que exigiam que os crentes vestissem toda a
armadura de Deus significavam que o Senhor protegeria os seus discípulos. O Sermão
da Montanha tanto era um mandamento ético obrigatório quanto a afirmação de Paulo

441
Resumos recentes do início da teologia quacre podem ser encontrados em Hugh Barbour, Quakers in
Puritan England (New Hven, Conn., 1964); Melvin Endy, William Penn and Erly Quakerism (Princeton,
N. J., 1973); J. William Frost, Quaker Family in Colonial America: A Portrait of the Society of Friends
(New York, 1973).

257
de que os cristãos estavam sujeitos a qualquer poder existente. A doutrina da guerra
justa tinha servido como um argumento tradicional para a escravidão. Numa guerra
justa os cativos do exército do agressor bárbaro eram capturados por ter ameaçado
vidas, mas um capturador clemente poderia preferir manter aqueles prisioneiros em
cativeiro perpétuo. Como os europeus do século XVII estavam conscientes de que os
escravos vendidos pelos reis africanos aos europeus eram obtidos em guerras feitas
principalmente para obter prisioneiros, mesmo as guerras justas anteriores tinham valor
duvidoso. Para persuadir os que não eram Amigos, os oponentes da escravidão usavam
argumentos derivados da lei natural e da Escritura para provar que o homem branco não
tinha direito sobre os cativos obtidos tanto nas guerras justas quanto injustas entre as
nações africanas. Os quacres que se opunham a qualquer luta precisavam apenas
considerar cuidadosamente seu testemunho da paz para ver sua incompatibilidade com a
promoção do tráfico negreiro.
O testemunho da paz estava ameaçado não só pelas práticas usadas para obter
escravos, mas também pelo perigo das revoltas de escravos na América. Pois a
escravidão repousava sobre a coerção dos homens e mulheres que poderiam se revoltar
a qualquer momento. Os Amigos homologavam o poder do magistrado para usar a força
e manter a ordem civil, mas uma insurreição escrava deveria demandar tanta força que
se tornaria indistinguível da guerra. Uma rebelião escrava em massa necessitava da
formação de um exército. Em vez de enfrentar a possibilidade de que os magistrados
quacres pudessem ter de debelar uma revolução, os Amigos preferiam impedir a
importação de escravos negros. (4) Não foi apenas uma coincidência que a assembleia
da Pensilvânia fez um esforço determinado para limitar as importações imediatamente
depois que Nova York experimentou uma conspiração de escravos.
Por ver a Bíblia como a palavra infalível de Deus, o inglês do século XVII usava
sua autoridade para sancionar todas as instituições importantes, inclusive a escravidão.
Os Amigos concordavam que a Bíblia era a verdade, mas viam o Novo Testamento
como uma superação do Velho e interpretavam passagens intrincadas pelo que
consideravam como afirmações claras. Como muitos outros protestantes, os Amigos
insistiam que a Bíblia poderia ser infalivelmente entendida somente pelo dom do
Espírito Santo.
No seu questionamento da escravidão, os Amigos foram forçados a confrontar o
fato de que a escravidão existia nos tempos bíblicos e que em nenhum dos Testamentos
havia uma ordem clara para proibi-la. George Fox entendia a escravidão bíblica como

258
uma instituição semelhante à servidão por contrato, citando a lei hebraica que permitia
aos escravos judeus serem libertados depois de seis anos de serviços. Os Amigos
citavam as instruções de Deus a Abraão sobre como dirigir a sua família para o bem
(Gênesis, 18:9) e as advertências proféticas de que a ira recairia sobre as famílias que se
afastassem de Deus, como precedentes que indicavam a obrigação do dono da casa para
com a instrução religiosa doméstica. A promessa nos Salmos de que “a Etiópia
estenderá as suas mãos para Deus”, o negro que conforta Jeremias na prisão e o etíope
convertido por Felipe provavam que a misericórdia de Deus se estendia a todos os
homens. Os hebreus foram retirados do cativeiro por Deus e suas leis proíbem oprimir
os estrangeiros; mas supostamente cristãos ingleses estavam atirando homens num
estado de cativeiro que não oferecia redenção. Os quacres usavam como prooftexts os
versos contra o sequestro de homens (Êxodo, 21:16 ), negando a herança do pecado
(Ezequiel, 18:5-20) e proclamando a liberdade ao oprimido (Isaías, 61: 1-2) eles
proclamavam o significado universal da (5) morte de Cristo e a ressurreição para todos,


N. do T. Um prooftext é um verso ou curta passagem da Bíblia utilizada como prova ou apoio a um
argumento, algumas vezes com pretensão de fundamentar outros.

N. do T. De acordo com a Bíblia de Jerusalém: “Quem raptar alguém e o vender, ou for achado na sua
mão, será morto”

N. do T. De acordo com a Bíblia de Jerusalém: “Se um homem é justo e pratica o direito e a justiça,
não come sobre os montes e não eleva os seus olhos para os ídolos imundos da casa de Israel, nem
desonra a mulher do seu próximo, nem se une com uma mulher durante a sua impureza, nem explora a
ninguém, se devolve o penhor de uma dívida, não comete furto, dá o seu pão ao faminto e veste ao que
está nu, não empresta com usura, não aceita juros, abstém-se do mal, julga com verdade entre homens e
homens; se age de acordo com os meus estatutos e observa as minhas normas, praticando fielmente a
verdade: este homem será justo e viverá, oráculo do Senhor Iahweh.
Contudo, se tiver filho violento e sanguinário, que pratique uma destas faltas, quando ele não cometeu
nenhuma, isto é, um filho que chegue a comer nos montes, que desonre a mulher do seu próximo, que
explore o pobre e o necessitado, que cometa furto, que não devolva o penhor, que eleve os seus olhos para
os ídolos imundos e cometa abominação, que empreste com usura e aceite juros, certamente não viverá,
por ter praticado todas estas abominações: ele morrerá e seu sangue cairá sobre ele.
Mas se este, por sua vez, tiver filho que vê todos os pecados cometidos pelo seu pai, os vê, mas não os
imita, isto é, não come sobre os montes e não eleva os seus olhos para os ídolos impuros da casa de Israel,
não desonra a mulher do seu próximo, não explora ninguém, não exige penhor e não comete furto, antes,
dá o seu pão ao faminto e veste aquele que está nu, se abstém da injustiça, não aceita usura nem juros,
observa as minhas normas e anda nos meus estatutos, este não morrerá pelas iniquidades de seu pai, antes,
certamente viverá. O seu pai, visto que agiu com violência e praticou o furto, visto que não se comportou
bem no seio do seu povo, este, sim, morrerá por causa da sua iniquidade. E vós dizeis: “Por que o filho
não há de levar a iniquidade de seu pai?” Ora, o filho praticou o direito e a justiça, observou todos os
meus estatutos e os praticou! Por tudo isso, certamente viverá. Sim, a pessoa que peca é a que morre! O
filho não sofre o castigo da iniquidade do pai, como o pai não sofre o castigo da iniquidade do filho: a
justiça do justo será imputada a ele, exatamente como a impiedade do ímpio será imputada a ele.

N. do T. De acordo com a Bíblia de Jerusalém: “O espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, /
porque Iahweh me ungiu; / enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres, / a curar os quebrantados de
coração / a proclamar a liberdade aos cativos, / a libertação aos que estão presos, / a proclamar um ano
aceitável a Iahweh / e um dia de vingança de nosso Deus, / a fim de consolar todos os enlutados”.

259
mas geralmente arranjavam uma maneira de ignorar a carta de Paulo a Filemon para
devolver o escravo Onésimo.
Duas passagens da Escritura tradicionalmente usadas para justificar a escravidão
eram a maldição de Caim (Gênesis 4: 11-15 ) e o julgamento hamita (relativo a Cam;
camitas) (Gênesis 9: 25 “Maldito seja Canaã! Que ele seja, para os seus irmãos, o
último dos escravos”). Os Amigos declaravam que não havia nem uma centelha de
evidência bíblica que ligasse os negros a Caim ou aos camitas. A Bíblia declarava que
no dilúvio os descendentes de Caim foram destruídos e os camitas foram extirpados
durante a conquista da terra santa. Se a genealogia fosse de fato importante, havia
algumas passagens bíblicas mais claras que ligavam os negros a Cuxe (Cush, o primeiro
filho de Caim) sobre o qual não havia maldição. A refutação favorita dessas
especulações estava em Gênesis 3:20, que dizia que todas as nações eram de um único
sangue. Para os Amigos essa humanidade comum significava primeiramente que os
senhores deveriam ser bondosos e converter os seus escravos, mas mais tarde seu
significado se expandiu, demandando o mesmo tratamento para brancos e negros.
Nos fins do século XVIII, os Amigos continuavam a citar essas passagens da
Escritura que poderiam lançar dúvida sobre a escravidão, mas a primeira estratégia
deles se tornou a citação da Regra de Ouro e a comparação entre o espírito do
cristianismo e os desejos dos donos de escravos. Ao buscarem o motivo básico da
escravidão, uns poucos Amigos foram bem-sucedidos em tornar o antiescravismo um
empreendimento religioso. Da mesma forma que os Amigos julgavam se o seu insight
era de Deus ou do mundo, eles determinariam se a escravidão era boa ou má. Talvez
inconscientemente eles aplicassem cânones de interpretação derivados das suas
diferentes crenças e declaravam que a luz interior lhes dava o direito a pôr de lado
passagens bíblicas que não fossem simpáticas às suas interpretações da cristandade.
(6) Tal inovação se tornou possível por causa de outra doutrina quacre: a sempre
presente possibilidade de uma nova revelação. Diferentemente dos puritanos, que
argumentavam que Deus havia se revelado inteiramente nos tempos bíblicos e agora não
poderia fornecer novos insights de igual autoridade, os Amigos insistiam que Deus veio


N. do T. De acordo com a Bíblia de Jerusalém: “‘Agora, és maldito e expulso do solo fértil que abriu a
boca para receber de tua mão o sangue de teu irmão. Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu
produto: serás um fugitivo errante sobre a terra’. Então Caim disse a Iahweh: ‘Minha culpa é muito
pesada para suportá-la. Vê! Hoje tu me banes do solo fértil, terei de ocultar-me longe de tua face e serei
um errante fugitivo sobre a terra: mas o primeiro que me encontrar me matará!’ Iahweh lhe respondeu:
‘Quem matar Caim será vingado sete vezes’. E Iahweh colocou um sinal sobre Caim, a fim de que não
fosse morto por que o encontrasse”.

260
ao homem moderno do mesmo modo que veio aos profetas dos antigos. As epifanias
atuais não contradiriam as revelações prévias porque Deus permanecia constante, mas a
luz poderia prover insights adicionais a respeito dos problemas éticos. Os Amigos que
se opuseram à escravidão não poderiam alegar que a Igreja primitiva ou os quacres
primitivos faziam oposição à instituição; ao invés disso, argumentavam que, aguardando
silentemente, o Senhor os conduziu a concluir que a escravidão era pecado. O problema
crucial, portanto, consistia em discernir sobre qual base ocorreu um insight individual;
se Deus era a causa, então a “orientação” era uma ordem que deveria ser seguida.
Todavia, se o grupo não concordasse que o insight vinha de Deus, e estivesse disposto a
afirmar que ele era carnal, a diretriz consistia em adiar as ações posteriores e aguardar
revelações adicionais.
Os Amigos alegavam sanções divinas não só para as suas crenças, mas também
para os distintos padrões da organização. A forma do protesto quacre contra a
escravidão estava condicionada pelos métodos usados para chegar às conclusões. A
tomada das decisões numa assembleia quacre era um fenômeno altamente complexo
que tinha pouco a ver com as modernas teorias da democracia ou do compromisso e do
consenso. Primeiro, um indivíduo pela concentração [“centering down”] purificava a
sua própria alma de pensamentos terrestres, o que permitiria que Deus pudesse se dirigir
a ele. Assim, ele podia comunicar, por meio da fala, a verdade aos outros na assembleia.
Nos documentos impressos por ela, esse processo é frequentemente descrito como
significando que um membro estava fortemente (7) empenhado. O Amigo poderia
comunicar-se particularmente com uns poucos membros respeitáveis, ou podia se sentir
impelido a falar sobre seu assunto numa assembleia de culto ou de negócios. Depois que
um item fosse considerado durante um período de tempo que poderia transcorrer em
silêncio ou depois de ouvir diversos Amigos, o clérigo resumia o que os membros
pensavam sobre o que Deus havia orientado, e outros expressavam o acordo. As
decisões eram tomadas pela averiguação do clérigo do “sentido da assembleia”, ou da
“influência da assembleia”.
Os historiadores não têm certeza exata de como esse procedimento ocorria no
século XVIII. No século XIX, durante os tempos da controvérsia teológica e do cisma
houve queixas contra a dominação das assembleias pelos clérigos, mas é problemático
saber a que ponto isso chegou antes. Os Amigos, por certo, nunca declararam que todos
os membros eram iguais, e é provável que Amigos mais fortes – ministros laicos,
aqueles que possuíam posição mais elevada, e supervisores – tinham uma influência

261
predominante. Se diversos ministros fortes se expressavam “sem clareza”, então não
havia ação alguma.
Os organismos cruciais para a tomada de decisões eram as assembleias mensais
e anuais. As mensais eram responsáveis por todas as assembleias particulares numa
pequena área geográfica e supervisionavam os membros para observar se não havia
extravios da verdade. O poder principal da assembleia mensal residia na expulsão de
membros; ou seja, proclamava que ele ou ela não seria mais um Amigo. Essas sessões
eram abertas a todos os membros regulares, mas não àqueles que estavam sendo
disciplinados por alguma ofensa. As assembleias mensais indicavam representantes para
as assembleias trimestrais, que, por sua vez, enviavam representantes à assembleia
anual.
As sessões da assembleia anual estavam dividas entre as voltadas para o culto
(8), que eram abertas a todos, e as voltadas para os negócios, que eram provavelmente
abertas somente aos representantes indicados, ministros e pessoas de posição mais
elevada. Como em todos os anos havia uma rotação dos delegados, eles não eram
provavelmente tão poderosos quanto os ministros e aqueles de posição mais elevada,
que participavam constantemente. Com a leitura das minutas, tem-se a impressão de que
havia uma extraordinária continuidade entre os que eram indicados para escrever
epístolas, para tratar com a Assembleia Anual de Londres, e o seu corpo executivo – o
Meeting for Sufferings – para integrar os comitês para ouvir os apelos e fazer
recomendações sobre questões complicadas. Como o clérigo da Assembleia Anual da
Filadélfia era usualmente um indivíduo de destaque e rico, socialmente proeminente e
um membro da Assembleia, ele tornava-se uma ligação não-oficial entre a assembleia
anual e os políticos quacres, que compuseram a maior parte da Assembleia da
Pensilvânia até 1756.
Já nos anos 1650, havia certas tensões dentro do quacrismo que nunca foram
completamente resolvidas. Cada uma dessas anomalias influenciou o padrão de reação à
escravidão. Um dilema básico ocorria quando a percepção de uma pessoa a respeito da
orientação de Deus diferia das ações da assembleia. Os quacres supunham uma unidade
entre a subjetividade individual e a objetividade do grupo em relação à experiência de
Deus. Ambos tomavam decisões com absoluta segurança. Mas um membro podia não
aceitar a determinação da assembleia e, assim, a pessoa estaria errada. Periodicamente
uns poucos Amigos poderiam negar a infalibilidade da assembleia em matérias de maior
ou menor importância e denunciar abertamente os Amigos, geralmente num panfleto.

262
Num esforço para se resguardar de uma clara expressão de desunião, as assembleias
norte-americanas criaram uma instituição conhecida como Supervisores da Imprensa
[Overseers of the Press], cujos membros liam todos os manuscritos, faziam revisões e
informavam ao autor se seus escritos poderiam ser publicados com a aprovação dos
Amigos, (9) publicados anonimamente, se poderiam circular como manuscritos ou se
não poderiam ser distribuídos de forma alguma. A condenação dos Supervisores da
Imprensa era garantia virtual de expulsão.
Os escritos de muitos dos quacres que inicialmente se opuseram à escravidão
deixam claro que eles estavam certos de que seus insights provinham de Deus e seus
oponentes dentro da assembleia estavam ouvindo razões carnais. As publicações de
Ralph Sandiford, Benjamin Lay e John Woolman expõem a agitação interna de homens
cuja busca pela pureza os levava a concluir que a escravidão era um mal. Ou eles eram
incapazes de reconhecer a luz de Deus e sua religiosidade não possuía valor, ou a
assembleia estava errada ao transigir temporariamente e os Amigos não estavam unidos
com Deus. Optar por uma dessas alternativas era traumático. Sandiford e Lay
finalmente decidiram confiar nas suas próprias orientações, publicaram por conta
própria e denunciaram os Amigos. Sandiford foi expulso, e, embora Lay se considerasse
um membro, a Assembleia Anual proclamou que o seu livro era infiel e ele não era um
quacre. O Journal de Woolman mostra o custo interno da sua anomia. Quando era
jovem, Woolman concluiu que a escravidão era má e já em 1746 terminou um
manuscrito sobre ela. Ele provavelmente discutiu sobre a escravidão com uns poucos
amigos íntimos, mas não tentou publicá-lo até 1753 depois que o seu pai, no leito de
morte, sugeriu que ele deveria submeter o opúsculo aos Supervisores da Imprensa. A
aversão de Woolman à escravidão, sua simpatia pelos negros e seus proprietários, sua
deferência à assembleia, seu questionamento da pureza da sua revelação interior e a
simplicidade das suas ações faziam dele uma figura extraordinariamente simpática. O
tom peculiar do Journal de Woolman, que difere de qualquer outro diário quacre
publicado no século XVIII, mostra como ele lidou com a complexidade das questões. O
paralelo mais próximo da autobiografia de Woolman (10) está nos panfletos de John
Hepburn e Ralph Sandiford, e até mesmo o frequentemente mordaz Benjamin Lay
prefigura a agonia de Woolman na apologia de suas próprias ações.
O orgulho dos quacres pelo papel que desempenharam na fundação e na
prosperidade da Pensilvânia era outra fonte de tensão. A Pensilvânia era uma
experiência sagrada onde as bênçãos de Deus preservaram a paz tanto quanto os

263
Amigos permaneceram fiéis. Desafortunadamente, a Pensilvânia era também uma
colônia na qual os políticos quacres conservaram o poder conciliando os seus princípios
com a adesão às exigências feitas pelos proprietários governantes e a Coroa.
Particularmente, no tempo da guerra, quando as autoridades imperiais esperavam
cooperação na defesa, os políticos quacres tinham de manobrar para apaziguar os
funcionários reais em Londres tanto quanto os Amigos conservadores que não estavam
envolvidos com o governo. Em tempos de tensão, um ministro quacre poderia invocar a
tradição profética do Velho Testamento ao denunciar equívocos e exigir um retorno à
pureza da fé. Como os Amigos cada vez mais romantizavam os fundadores das suas
crenças e também os primeiros colonizadores, os reformadores começaram a citar a
história como um instrumento de reforma.
No século XVII, o quacrismo era uma fé em expansão. Embora a data de
nascimento tradicional dos Amigos seja 1652, já em 1660 havia pequenos enclaves
quacres em todos os lugares em que os colonizadores ingleses haviam se instalado –
Irlanda, Índias Ocidentais, o Sul e a Nova Inglaterra. A nova religião se espalhou graças
aos ministros laicos itinerantes – homens e mulheres que consideravam ter recebido o
dom de falar nas assembleias. Quando eles alcançaram áreas onde a escravidão
vicejava, os ministros tentaram pregar para brancos e negros. O seu objetivo primordial
era a conversão do povo, não a agitação social, e os missionários obtiveram um sucesso
surpreendente com (11) muitos donos de escravos. A adesão de proeminentes
fazendeiros das Índias Ocidentais que possuíam centenas de escravos poderia afastar
qualquer ilusão de que as doutrinas quacres iniciais levariam automaticamente ao
antiescravismo. Como os documentos deixam claro, os que questionavam a escravidão
eram visitantes como Fox e Edmundson, que estavam tendo contato com a instituição
pela primeira vez.
No início do século XIX, metodistas e batistas no Sul tentaram catequizar
enquanto encorajavam críticas severas contra a posse de escravos, mas logo abaixaram
o tom das suas denúncias em benefício da conquista de adesões. Na década de 1670, os
quacres não haviam lançado uma retórica antiescravista porque não a haviam
enunciado. Mas a expansão e o estabelecimento das assembleias nas Índias Ocidentais e
no Sul dos Estados Unidos claramente dificultaram o desenvolvimento da consciência
antiescravista entre os quacres. Como os colonos das Índias Ocidentais migraram mais
tarde para Rhode Island, Nova York e Pensilvânia e ocuparam um lugar entre os
cidadãos ricos e respeitáveis, a importância da difusão anterior do quacrismo nas Índias

264
Ocidentais não pode ser subestimada. Até o quacrismo nas Índias Ocidentais se tornar
praticamente extinto nos meados do século XVIII, as assembleias na América do Norte
se recusavam a denunciar a escravidão.
Os problemas para obter a unidade norte-americana no tempo da Declaração da
Independência foram comparados com a dificuldade para fazer trinta relógios tocarem
em uníssono. Enquanto havia apenas uns poucos relógios quacres, os problemas de
unidade em assembleias amplamente dispersas eram igualmente difíceis porque a
harmonia repousava somente sobre o consenso voluntário. O centro da Sociedade dos
Amigos permanecia a Assembleia Anual de Londres. Os Amigos ingleses viajantes
proporcionaram o ímpeto para o início das assembleias na América e continuaram a
visitar e a oferecer conselhos. (12) Decisões difíceis em qualquer assembleia anual
norte-americana seriam arbitradas pelos Amigos ingleses, uma prática que era fácil
porque todas as assembleias anuais enviavam epístolas anualmente para outros Amigos.
Se uma assembleia influente estivesse em crise, os Amigos ministros de outras áreas
poderiam participar e oferecer auxílio para definir uma diretriz tanto quanto comunicar
a decisão às suas assembleias de origem. Como os Amigos acreditavam que a verdade
de Deus era a mesma em todos os lugares, tornou-se de importância primordial para
todos os membros crer e agir igualmente. Pois, somente uma assembleia anual tomar a
decisão de que a escravidão era um pecado e castigar outros quacres que moravam em
outros lugares seria impensável no século XVIII.
A Assembleia Anual da Filadélfia, que incluía os Amigos de Nova Jersey,
Delaware e Pensilvânia, tornou-se a assembleia anual dominante na América e nos anos
1750 ministros itinerantes americanos tiveram a audácia de aconselhar a Assembleia
Anual de Londres a adotar mudanças no procedimento, tais como a proposta para
estabelecer reuniões anuais para as mulheres, para ministros e pessoas de posição mais
elevada, como aquelas da América. As decisões cruciais sobre a escravidão foram
ligeiramente adiadas no século XVIII, depois de Londres ter sido consultada. Mas, nos
anos 1750, a Assembleia Anual da Filadélfia se sentiu bastante confiante para agir
sozinha e enviar cartas e ministros a outras assembleias anuais para persuadi-las de que
a escravidão era um pecado. Londres seguiu a sugestão da Filadélfia sobre o tráfico de
escravos e durante as Assembleias Anuais da década de 1770 na Nova Inglaterra, Nova
York, Carolina do Norte, Virginia, Maryland e Pensilvânia chegou-se à decisão de que
todos os donos de escravos deveriam ser expulsos.

265
II
(13) Muitas características internas da Sociedade dos Amigos ajudam a explicar
as origens e a forma da agitação antiescravista, mas o historiador não pode presumir
sem uma investigação cuidadosa que a religião deles foi o principal determinante da
oposição quacre à escravidão. Os quacres participavam da cultura transatlântica do
século XVIII e poderiam ter derivado as suas ideias sobre escravidão de fontes externas.
David Brion Davis argumenta que virtualmente ninguém questionou a instituição da
escravidão antes de 1700, mas por volta de 1800 havia grupos significativos de
intelectuais na Inglaterra, na França e nas Américas se opondo à escravidão e os
defensores do tráfico de escravos estavam na defensiva. O problema da escravidão na
cultura ocidental devota muitos capítulos ao exame das mudanças intelectuais no
pensamento do século XVIII. Nossa preocupação aqui não é sintetizar as teses de Davis,
Roger Anstey e Winthrop Jordan442, mas mostrar até que ponto os quacres influenciaram
e foram influenciados pelas ideias que conduziram outros ao antiescravismo. Pois pode
ser que os Amigos foram os pioneiros porque o novo pensamento se misturou
facilmente com a sua ênfase tradicional.
O componente principal do pensamento do século XVIII era um ataque à
superstição em nome da religião natural e da verdade racional. 443 Os Amigos
começaram como adeptos de uma fé entusiasmada e desconfiados em relação ao
intelecto, mas eles descobriram depressa que muitos dos seus princípios eram
compatíveis com a religião racional. Amigos e ingleses influenciados pela Ilustração
tinham antipatia pelo ritual, pompa e clericalismo. Ambos os grupos negavam o pecado
original e reivindicavam uma fonte interior da verdade, útil para distinguir os elementos
essenciais da religião. Concordavam que alguma coisa além da Bíblia era exigida para
(14) descobrir a vontade de Deus, embora os Amigos desaprovassem o ceticismo da
religião revelada que estava implícito no racionalismo. Apesar dos quacres sempre
fazerem uma distinção entre a verdade natural e a revelação, William Penn [1644 -1718]
definia ambiguamente a luz interior como uma operação por meio da consciência que,
às vezes, produzia as verdades inatas da cristandade, tanto que os seus oponentes
. David Brion Davis, The Problem of Slavery in Western Culture (Ithaca, New York, 1965) e The
442

Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823 (Ithaca, New York, 1975); Roger Anstey,
Atlantic Slave Trade and British Abolitionism (New Jersey, 1975); Winthrop Jordan, White over Black:
American Attitudes toward the Negro, 1550-1812 (North Carolina, 1968).
443
G. R. Cragg, The Church and the Age of Reason, 1648-1789 (Great Britain, 1966), p. 65-80, 157-173;
Basil Wiley, The Eighteenth-Century Background: Studies on the Idea of Nature in the Thought of the
Period (New York, 1941); Roger Anstey, Atlantic Slave Trade, p. 91-141; David B. Davis, Problem of
Slavery in the Western Culture, p. 351-364.

266
chamavam-no de deísta. Como discípulo de George Fox, que sofreu pela fé, fundador de
uma colônia, e conhecedor de John Locke e Algernon Sydney, William Penn pode ser
citado como um exemplo do quacre piedoso que abraçou o pensamento da Ilustração.
Como Penn, os Amigos do século XVIII afirmavam entusiasticamente que as novas
descobertas da ciência e da tecnologia mostravam o trabalho manual de Deus na ordem
natural. Penn também era um político Whig que mandou publicar a Carta Magna na sua
colônia e cujos escritos advogavam a tolerância religiosa explicitamente ligando os
direitos naturais e os privilégios sob o direito consuetudinário inglês. Portanto, era
muito natural para os Amigos norte-americanos combinar o antiescravismo com as
doutrinas correntes do direito natural, com conclusões da razão e os direitos do homem
inglês. Mesmo no início do século XVIII, os escritores quacres se opunham à
escravidão baseando os seus argumentos nos direitos universais dos homens bem como
numa visão bíblica da ética cristã. Já na década de 1730, uns poucos quacres declararam
que todos os homens nasceram livres. Antes da agitação do Stamp Act , Anthony
Benezet igualava os direitos do inglês com a lei natural e insistia que esse precedente
impedia a escravidão hereditária por toda a vida. Escritores Whigs radicais na Inglaterra
e na América podem ter popularizado os direitos naturais, mas os escritores quacres
antiescravistas tornaram os direitos naturais uma arma para ser usada a fim de reformar
a América muito antes da Revolução.
(15) Uma segunda fonte de sentimentos antiescravistas veio da expansão do
pathos sobre a condição precária do desafortunado. 444 Na Inglaterra do século XVIII,
um novo espírito de benevolência, de preocupação pelo inocente e pelo desprivilegiado
levou doações caritativas às escolas, à criação de hospitais para as crianças abandonadas
e à agitação para melhorar a vida do pobre. Duas famosas manifestações desse espírito
foram a fundação da Geórgia como um refúgio para devedores e as viagens de George
Whitefield para levantar dinheiro para um orfanato. Os Amigos participaram de
empreendimentos humanitários e contribuíram generosamente para construir o Hospital
da Pensilvânia e a Philadelphia Alms House (Casa de Caridade da Filadélfia).


N. do T. Stamp Act, ou Lei do Selo, 1765, foi uma lei do Parlamento da Grã-Bretanha que impôs um
imposto sobre as colônias da América Britânica por meio da exigência de que muitos materiais impressos
nas colônias deveriam adotar um papel selado produzido em Londres. Tal como os impostos anteriores, o
imposto do selo devia ser pago em moeda britânica válida, não em papel moeda colonial.
444
David B. Davis, Problem of Slavery, p. 355-57; Roger Anstey, Atlantic Slave Trade, p. 142-45; Frank
J. Klingberg, The Anti-Slavery Movement in England: A Study in English Humanitarianism (New Haven,
1924; reimpresso em 1968).

267
Escritores ingleses de peças de teatro e de novelas exploraram a aceitabilidade
do sentimentalismo tentando levar suas platéias às lágrimas com os sofrimentos de um
pobre órfão ou com a degradação de uma heroína inocente. O drama da sensibilidade é
o nome genérico para as peças do século XVIII.445 O romance Pamela, de Samuel
Richardson, amplamente lido na América e na Inglaterra, foi o primeiro romance inglês
a retratar com empatia os sofrimentos e o amor de uma menina pobre. Em Clarissa, a
heroína raptada, depois de se recusar a casar com o vilão arrependido, se extingue
lentamente por duzentas páginas lacrimosas. A literatura antiescravista explorou os
transbordantes canais lacrimais do “homem sentimental”.
Um tema na literatura sentimental diretamente relacionado com o antiescravismo
foi o culto do primitivo. Já no século XVI, uns poucos europeus tinha vislumbrado o
índio como uma criatura perfeita, um Adão antes da queda. Os romancistas do século
XVIII e os ensaístas descobriram que o nobre selvagem e o nobre negro poderiam ser
usados para mostrar agonia, castigar o barbarismo da Europa e exaltar a razão e o
sentimento acima da tradição e da artificialidade.446
(16) A literatura publicada inicialmente na Pensilvânia continha alguma
glorificação do índio, e a insistência dos Amigos de que a luz interior chegava a todos
os homens levava ministros itinerantes a visitar índios para provar que até mesmo os
selvagens tinham uma ideia de Deus, boas ações e uma vida depois da morte. Qualquer
que fosse a realidade dos procedimentos dos quacres em relação aos índios, por volta da
década de 1730 os quacres romantizavam o relacionamento como amizade, harmonia e
tratamento justo. O estereótipo quacre do cristão benevolente e do nobre selvagem foi
imortalizado pelo Penn’s Treaty with the Indians, de Benjamim West, pintado em 1772.
Em 1676 o Gospel Family Order, de George Fox, enfatizava a responsabilidade
do senhor pelos índios e negros que estavam sob seus cuidados; W. Penn tentou
persuadir os Amigos da Pensilvânia a estabelecer assembleias de culto especiais para
ambos os grupos. W. Edmundson, o primeiro quacre a questionar a escravidão negra,
protestou contra a venda de índios para servidão perpétua depois da Guerra do Rei
Philip. Os escritores quacres antiescravistas viam a servidão forçada como um erro e

Ernest Bernhaum, The Drama of Sensibility: A Sketch of the History of Sentimental Comedy and
445

Domestic Tragedy, 1696-1780 (Boston, 1915).


446
David Brion Davis, Problem of Slavery, p. 447-82.

N. do T. Foi um conflito armado (1675-78) entre índios e colonizadores da Nova Inglaterra. Seu nome
deriva do principal líder dos nativos, que adotou o nome inglês Rei Philip em homenagem às relações
anteriores de amizade entre seu pai e os primeiros peregrinos do Mayflower.

268
não faziam distinção se o oprimido era um índio, um negro ou um inglês capturado
pelos turcos.
Uma nova ênfase à família, centrada na mãe pura e na criança inocente, esteve
intimamente relacionada ao culto do sentimentalismo do final do século XVIII. O
significado da infância, a nova dignidade do papel da mãe e a crescente importância
atribuída ao indivíduo foram ingredientes essenciais para a exaltação da família. Os
quacres estavam na vanguarda da nova ênfase sobre a vida doméstica, pois eles desde
há muito acreditavam que as crianças eram inocentes e destacavam a centralidade dos
pais na educação religiosa das crianças.447 Os Amigos sabiam muito bem que a
sobrevivência de sua fé dependia da implantação das suas crenças nas futuras gerações.
Já em 1713, a Assembleia Anual de Londres (17) preocupava-se com os efeitos da
escravidão na educação das crianças. John Woolman se distingue na literatura escravista
por sua consciência dos perigos que representavam para uma família branca a
manutenção de escravos. Pois, se as crianças pequenas se acostumassem com a
dominação absoluta sobre outros seres humanos, não poderiam facilmente render-se à
total abnegação da vontade requerida por Deus. Foi por terem ficado chocados com a
desagregação da vida familiar negra nas Índias Ocidentais, provocada pela escravidão,
que Fox e Edmundson questionaram-na pela primeira vez. As imagens da mulher negra
raptada e do laço matrimonial rompido, com a criança arrancada da sua mãe, originaram
os escritos quacres antiescravistas do inicio do século XVIII.
Se o africano em estado de natureza permanecia inocente, ele era também
considerado como infantil. O abuso à criança como a crueldade para com os escravos
tocavam o impulso sentimental do inglês do século XVIII. Se as crianças tinham de ser
governadas até tornarem-se livres aos 18 ou 21 anos dependendo do sexo, assim
também a escrava deveria ser libertada aos 18 e o escravo aos 21. A criança branca e a
negra tinham habilidades comparáveis quando cresciam e desfrutavam dos mesmos
direitos. O quacre tradicional preocupava-se com as crianças e a importância da família
fornecia outra arma para ser usada contra a escravidão.
O quarto movimento de grande importância na repulsa geral contra a escravidão
foi o ressurgimento evangélico simbolizado pelo pietismo na Alemanha, o movimento
wesleyano e a Seita Clapham dentro da igreja da Inglaterra, e o Grande Despertar nas
colônias.448 São difíceis de documentar as influencias diretas do pensamento evangélico
sobre os Amigos até o início do século XIX. De fato, os Amigos ingleses podem ter
447
J. William Frost, Quaker Family in Colonial America, p. 64-89.

269
sido os primeiros favoravelmente impressionados com os evangélicos por terem
trabalhado com eles nas campanhas contra o tráfico de escravos na década de 1780. (18)
Os quacres americanos não gostavam da ênfase que o Grande Despertar atribuía ao
pecado original, as pregações revivalistas e as conversões súbitas. A repulsa deles
contra o que viam como excesso de entusiasmo bombástico pode ter reforçado o
comprometimento com o quietismo. Mas, pelo menos, a forte preocupação com as
diferenças entre as denominações que fluiu do Grande Despertar acabou por afetar os
Amigos. Embora os quacres vissem os desígnios políticos presbiterianos com uma
antipatia que beirava a paranóia, eram muito simpáticos às tentativas da New Light  de
fechar teatros e escolas de dança e melhorar a moralidade pública.
O Grande Despertar pode ser interpretado não como uma ressurgência
puramente evangélica, mas como uma parte de um profundo envolvimento geral dos
colonizadores com a religião. O assim chamado avivamento tornou-se então a reação
denominacional dos presbiterianos, congregacionistas, batistas, moravianos e a baixa
igreja anglicana ao zelo religioso. As bases das novas igrejas anglicanas na Nova
Inglaterra, a criação dos sínodos luteranos na Pensilvânia e a crescente preocupação
quacre com a aplicação dos seus testemunhos distintos tornaram-se parte deste despertar
geral de fervor. O movimento quacre norte-americano contra a escravidão se tornou
eventualmente parte de um esforço geral para reformar a Sociedade dos Amigos.
Embora a religião evangélica não tivesse tido impacto direto sobre a história inicial do
antiescravismo na América do Norte, a profunda piedade dos reformadores da New
Light faz lembrar da devoção religiosa de John Churchman, John Woolman, Anthony
Benezet e John Pemberton.
Racionalismo, benevolência, culto do primitivo, sentimentalização da família,
Grande Despertar – até que ponto algum destes fenômenos ou todos afetaram o protesto
quacre contra a escravidão? Os interesses externos (19) estão mais aparentes nos
opúsculos escritos depois de 1754, que tentaram influenciar o público geral. O direito
natural, os direitos dos ingleses, o nobre negro, a desagregação da família, embora
estivessem ocasionalmente presentes nas obras iniciais dirigidas especialmente aos

Roger Anstey, Atlantic Slave Trade, p. 157-99; David B. Davis, Problem of Slavery, p. 282-90;
448

Winthrop Jordan, Black Over White, p. 212-15, 296-300.



N. do T. O termo New Light por oposição a Old Light foi usado pela primeira vez após o Grande
Despertar, no século XVIII, nas colônias britânicas da América do Norte. Normalmente, se uma
denominação religiosa está em transformação, e alguns se recusam a acompanhá-la, aqueles que não
aceitaram a mudança são referidos como os “Old Lights”, e aqueles que mudaram são referidos como
“New Lights”.

270
Amigos, estão claramente subordinados à linguagem e aos sentimentos do quacrismo. O
antiescravismo dos Amigos de Germantown, em 1688, e os pequenos proprietários de
Chester County no século XVIII estiveram mergulhados na linguagem da Bíblia e nos
escritos apologéticos dos quacres, mas não mostram consciência do pensamento da
Ilustração ou desavença com a cultura religiosa da Pensilvânia colonial. John Hepburn,
em 1715, citou não-quacres como Richard Baxter e Cotton Mather, e John Sandiford e
Benjamin Lay, na década de 1730, mencionaram Morgan Godwin e Samuel Sewall. 449
Nenhum desses autores pode ser identificado como um sentimentalista ou racionalista.
Anthony Benezet é o primeiro escritor quacre a citar escritores ilustrados
representativos: Locke, Hutcheson, Shaftesbury e Montesquieu. Por volta da década de
1780 os quacres acrescentaram ao Primeiro Congresso Continental, Thomas Jefferson e
William Blackstone. Se uma transformação econômica dos meados do século XVIII
afetou as atitudes quacres, nenhum historiador ainda descobriu qual foi a mudança.450 A
conclusão resultante é a de que embora ideias externas modelaram a forma do protesto
quacre mais tardio, as origens do antiescravismo estão mergulhadas nas práticas e ideias
religiosas dos quacres.

III

Os dois mais importantes eventos exteriores que afetaram a Sociedade dos


Amigos foram a Guerra Francesa e Índia e a Revolução Norte-Americana. Como ambas
as guerra ocorreram quase ao mesmo tempo que as principais mudanças na (20) posição
quacre sobre a escravidão, os historiadores postularam algum tipo de relação causal. As
minutas da Assembleia Anual da Pensilvânia condenaram regularmente o tráfico de
escravos de 1735 até 1742; depois há um intervalo de 12 anos antes que a assembleia de
1754 aprovasse uma epístola que condenava fortemente tanto o tráfico de escravos
449
Richard Baxter foi um influente ministro puritano inglês cujos Chapters de um Christian Directory
(1673) discutiam a escravidão; Morgan Godwyn, um anglicano que conheceu a escravidão nas Índias
Ocidentais e publicou na Virgínia tratados sobre a conversão dos negros na década de 1680; Cotton
Mather foi um importante clérigo da Nova Inglaterra, cujo mais importante trabalho que discute a
conversão dos negros é Negro Christianized (1706); o juiz Samuel Sewall foi um próspero mercador da
Nova Inglaterra, cujo Selling of Joseph (1700) condenava a escravidão. Para pequenas discussões a
respeito das ideias desses homens, ver David. B. Davis, Problem of Slavery, p. 202-12, 342-48 e
Winthrop Jordan, White Over Black, p. 189-202.
450
Uma explicação frequentemente citada é a disponibilidade de servos brancos contratados, com
escravos sendo importados quando esses trabalhadores não estavam presentes em número suficiente. Alan
Tully mostra que a escravidão cresceu em Chester County entre 1720-1750, apesar da grande oferta de
trabalho barato em curto prazo. “Patterns of Slaveholding in Colonial Pennsylvania: Chester and
Lancaster Counties, 1729-1758”, Journal of Social History, VI (Spring, 1973), p. 284-305.

271
quanto a escravidão. No verão de 1755, depois de ser suprido por muitos Amigos com
cereais e outras mercadorias, o General William Braddock aventurou-se pelas regiões
selvagens e foi derrotado pelos franceses e índios. No outono, os índios de Delaware,
irrequietos sob a suserania dos iroqueses e temerosos da usurpação das suas terras pelos
colonos, terminaram com os 70 anos de paz e fizeram uma série de assaltos às
propriedades rurais da fronteira. Em reação, a assembleia, cuja maioria dos membros
era quacre, votou um projeto de crédito suplementar de 60.000 libras para ser usado
pelo rei para aquisição de equipamento militar, pagamento de soldados para defender a
colônia e para oferecer assistência aos índios amigáveis e aos colonos deslocados pelas
depredações indígenas. Uns poucos Amigos se recusaram a pagar a taxa de guerra e os
juízes quacres foram obrigados a penhorar seus bens e ameaçá-los com prisão.451
Em setembro de 1755, a Assembleia Anual da Filadélfia revisou as questões e
indicou um comitê de Amigos para visitar todas as Assembleias mensais e trimestrais
para garantir que todos os testemunhos quacres fossem confirmados. Mais tarde,
naquele mesmo ano, sob pressões das Assembleias Anuais de Londres e da Filadélfia,
muitos membros quacres se retiraram do Corpo Legislativo [da colônia] de forma que
não mais havia uma maioria quacre; os amigos que continuaram a frequentá-lo foram
barrados das assembleias disciplinarmente. (A mesma punição foi adotada em 1758 para
os Amigos que compravam e vendiam escravos). Durante esse mesmo período, as
assembleias mensais impuseram uma disciplina mais severa a todos os que violavam
testemunhos quacres e o número dos (21) expulsos entre 1755 e 1760 foi mais que o
dobro.452 Amigos proeminentes estabeleceram a Friendly Association for Regaining and
Preserving Peace with the Indians by Pacific Measures em 1758 e tentaram atuar como
mediadores entre os índios de Delaware e o governo colonial.
Diversos historiadores descobriram na concatenação dos eventos dos anos 1750
uma reação quacre às pressões que se tornaram avassaladoras. A guerra serviu como um
catalisador para desencadear uma corrente de eventos que levaram os Amigos a se

451
Sydney W. James, A People Among Peoples, p. 141-92; Theodore Thayer, Israel Pemberton: King of
the Quakers (Philadelphia, 1943), p. 81-97; Herman Wellenreuther, Glaube und Politik in Pennsylvania,
1681-1776 (Koln, 1972), p. 199-321; Jack Marietta, “Conscience, the Quaker Community, and the French
and Indian War”, Pennsylvannia Magazine of History and Biography, v. 95, n. 1 (Jan., 1971), p. 3-27;
Edwin Bronner, “Quakers and Non-violence in Pennsylvania”, Pennsylvania History, v. 35, n. 1 (Jan.,
1968), p. 1-22.
Jack Marietta, Delinquency Among Colonial Pennsylvania Quakers. Address to Friends Historical
452

Association. Spring, 1973. p. 24-5. Cópia presente em Quaker Collection, Haverford. Sydney James, A
People Among Peoples, p. 89-90, 128-40; David. B. Davis, Problem of Slavery, p. 330-31, 485-86; Roger
Anstey, Atlantic Slave Trade, p. 205, 208-18.

272
purificarem. Os resultados foram o aperto da disciplina, a saída do governo e as ações
vigorosas contra a posse de escravos. Todos esses fenômenos foram reações ao temor
do declínio da piedade que havia sido a causa de Jeová voltar sua ira contra os muito
prósperos, muito complacentes e também aos quacres mundanos.
Embora certamente tenha havido uma crise depois de 1755, não há evidência
convincente de que a crise política ou o avivamento da disciplina teve muito efeito
sobre o antiescravismo. Realmente nunca houve um declínio significativo da
preocupação em relação à escravidão desde a década de 1730. Quando os comentários
antiescravistas pararam de aparecer nas minutas da Assembleia Anual depois de 1743,
isto se deveu ao fato de que uma declaração contra o tráfico de escravos foi
acrescentada às questões que todas as assembleias mensais e trimestrais consideravam
pelo menos quatro vezes por ano. As respostas às questões registradas nas minutas e a
pesquisa de historiadores recentes concorrem para a conclusão de que quase nenhum
Amigo comprou ou vendeu escravos na década de 1740. O testemunho dos Amigos era
somente contra o tráfico de escravos, mas as assembleias não tinham transformado
qualquer violação num motivo para expulsão.
O próximo passo decisivo ocorreu depois de uma mudança no quadro de
Supervisores da Imprensa. O comitê anterior, em atuação desde 1743, (22) relatou em
1752 que diversos membros haviam morrido; assim, a assembleia anual indicou um
comitê inteiramente novo. A nova composição dos Supervisores, que incluía pelo
menos três conhecidos próximos de John Woolman 453, indubitavelmente o instigou a
submeter o tratado sobre escravidão escrito seis anos antes. Em 1753, os Supervisores
informaram à Assembleia Anual que o Some Considerations on the Keeping of Negroes,
de John Woolman, seria resumidamente publicado com a aprovação dos Amigos. Em
1754, a assembleia anual formalmente endossou uma obra submetida pela Assembleia
Trimestral da Filadélfia que citava certos excertos do panfleto de Woolman e declarava
em termos decisivos que a escravidão era um pecado. Os Amigos declararam suas novas
posições ao mundo ao publicá-lo como uma epístola. A Assembleia Anual chegou à sua
conclusão revolucionária de que não só o tráfico de escravos, mas também a própria
escravidão, era um mal aproximadamente um ano antes da derrota de Braddock, do
subsequente ataque dos índios e da crise política.

453
Dos cinco membros dos Supervisores da Imprensa, Anthony Benezet, Samuel Smith e John Smith
ultimamente apoiaram as medidas antiescravistas, mas Mordecai Yarnall e Samuel Preston Moore não
libertaram seus escravos antes de 1776.

273
A relação entre o protesto antiescravista e o avivamento geral da disciplina
nunca foi claramente decifrada. As cartas de A. Benezet e o Journal de John Woolman,
que simbolizam os reformadores antiescravistas, mostram pouca simpatia pelo
movimento para expulsar Amigos recalcitrantes. Benezet sempre favoreceu a
contemporização com aqueles que violavam o testemunho da paz. As cartas de Israel
Pemberton e os diários de John Churchman, Samuel Fothergill, John Griffith e John
Pemberton, por outro lado, mostram pouco interesse pelo antiescravismo antes de 1756,
mas constantemente reiteram as queixas sobre o declínio da disciplina. Enquanto ambos
os grupos de reformadores tinham os seus programas endossados pela Assembleia
Anual da Filadélfia, as motivações dos seus propositores eram muito diferentes. Uma
comparação dos trinta membros envolvidos na visita das assembleias com os quatro que
queriam visitar os donos de escravos (23) em 1758 mostra o quão pequeno era o
testemunho contra a posse de escravos em comparação com as preocupações quacres
tradicionais.
Depois de 1754, a Assembleia Anual da Filadélfia continuou lentamente a
fortalecer o testemunho sobre a escravidão. Em 1758, aqueles que compravam ou
vendiam escravos deviam ser visitados por supervisores da assembleia mensal e tratados
como violadores da disciplina. Esses transgressores eram impedidos de contribuir com
fundos e de frequentar as assembleias mensais. Houve cento e onze casos de
procedimentos disciplinares pela participação no tráfico de escravos entre 1757 e 1776;
dois terços desses casos ocorreram antes de 1766. Daí resultaram 31 expulsões parciais
e 8 completas (4 destas ocorreram entre 1775-1776).454 A princípio uns poucos
voluntários visitaram donos de escravos, empenhando-se em persuadir-los a libertar os
seus negros. Porém, essas visitas se tornaram responsabilidade do comitê indicado pelas
assembleias mensais e trimestrais. Se os relatos das manumissões conservados pelas
assembleias forem uma indicação das práticas gerais, poucos Amigos cumpriram
voluntariamente as exigências de manumitir os escravos. 455 Finalmente, em 1774, a

454
Estes números foram extraídos de um banco de dados sobre as infrações disciplinares entre os Amigos
da Pensilvânia, compilados por Jack P. Marietta e depositados na Quaker Collection, Haverford e Friends
Historical Library, Swarthmore.
455
A recente pesquisa de Jean Soderland, da Temple University, descobriu variações maiores a respeito
do período em que os Amigos libertaram os escravos. Sua dissertação, intitulada “Conscience, Interest,
and Power. The Development of Quaker Opposition to Slavery in the Delaware Valley, 1688-1780”,
forneceu muitas informações valiosas sobre os fatores sociais que envolviam o abolicionismo quacre. A
obra principal sobre os Amigos neste período é Arthur Mekeel, Quakers and the American Revolution,
Harvard University, inédito, Ph.D. dissertation, 1940. Um resumo recente baseado em pesquisas
adicionais foi impresso em Quaker History, v. 65 (Spring, 1976), p. 3-18.

274
Assembleia Anual da Filadélfia – na qual a maioria das violações do testemunho contra
o tráfico de escravos ocorria e cujos membros ainda possuíam centenas de escravos –
solicitou um esclarecimento da minuta de 1758. A Assembleia Anual de 1774 concluiu
que qualquer transferência de um escravo – por presente ou aquisição – era uma ofensa
que levaria à expulsão e exortou as assembleias a trabalhar junto aos seus membros que
continuavam a manter escravos. Depois de um censo dos donos de escravos em todas as
assembleias, a Assembleia Anual da Filadélfia declarou, em 1776, que qualquer quacre
que tivesse escravo deveria ser expulso. Mesmo antes da assembleia anual do outono de
1776, os Amigos em grande número começaram a libertar os negros e a ameaça foi tão
bem-sucedida que a Assembleia Mensal da Filadéfia não expulsou nenhum pela posse
de escravos até 1778. (24) Para a Assembleia Anual da Filadéfia, a principal mudança
na posição oficial ocorreu em 1754 e em 1774, quando os Amigos estavam apreensivos
a respeito de uma guerra iminente, mas antes de perceberem a extensão do conflito.
Muito depois que a guerra irrompeu em 1758 e 1776, os Amigos tornaram o testemunho
consistente com suas intenções previamente professadas.
Uma epístola da Filadélfia de 1754 foi enviada para todas as outras assembleias
anuais. Em 1756, a Assembleia Anual de Londres e, em 1760, a de Maryland lançaram
fortes denuncias contra o tráfico de escravos. A Assembleia Anual da Nova Inglaterra
tinha essencialmente ignorado o tráfico de escravos desde 1718, mas os Amigos de
Narragansett começaram a expulsar os membros que estavam envolvidos com o tráfico
de escravos em 1762 e a disciplinar aqueles que continuavam a manter escravos em
1770. Em 1773, a Nova Inglaterra declarou que todos os membros que continuassem a
manter escravos seriam expulsos; a Carolina do Norte tomou uma decisão idêntica em
1776. Os livros que contêm listas de todas as manumissões mostram que os Amigos em
toda a America do Norte virtualmente libertaram todos os seus escravos entre 1750 e
1780.
Já na década de 1750 os Amigos começaram a debater sobre quais
procedimentos seriam adequados para libertar os escravos de modo que os velhos não se
tornassem um fardo para toda a comunidade. A libertação dos escravos fez surgir novas
questões e alguns Amigos começaram a discutir problemas relacionados a preconceito,
à capacidade dos negros, à necessidade de educação e se os escravos fugitivos deveriam
ser amparados. A maioria das questões enfrentadas pelos abolicionistas depois de 1831
foi inicialmente levantada e tratada pelos Amigos antes da Revolução.

275
A Revolução Norte-Americana trouxe perturbação e sofrimento para os Amigos
que perderam suas posições de influência na política e se tornaram uma minoria
perseguida. Os Amigos norte-americanos geralmente apoiavam a aplicação da
constituição colonial nos fins dos anos 1760 e endossavam os boicotes contra o Stamp
Act e as Townshend Duties. Depois do Primeiro Congresso Continental, (25) os
Amigos concluíram que a posição patriótica levaria à guerra e gradualmente
abandonaram qualquer participação no governo enquanto tentavam servir de
mediadores entre a Coroa e o Congresso. Quando a guerra começou, os Amigos
adotaram o que eles definiram como uma política de estrita neutralidade e de obediência
ao poder estabelecido por Deus (isto é, o Rei). Os Amigos interpretaram que ser neutro
exigia não servir nos exércitos britânico ou colonial, declinar de fazer um juramento ou
afirmação de lealdade a qualquer dos lados, não fazer contribuições ao esforço de
guerra, não pagar impostos para fins militares e evitar o uso da moeda continental. Os
Amigos foram considerados como suspeitos por ambos os lados e sofreram
perseguições esporádicas, particularmente na Pensilvânia onde patriotas os acusavam de
ser ostensivamente neutros, mas realmente Tories.
Durante os anos de agitação anteriores a 1776, os Amigos ligaram a causa do
antiescravismo à retórica da Revolução. Se os colonos protestavam contra tornarem-se
escravos, os quacres lembravam-nos de que eles já possuíam escravos. Ao insistirem
que a posse de escravos corrompe a liberdade e cria atributos dos senhores que são
incompatíveis com o self-governenment, os quacres se juntavam a alguns simpatizantes
da ideia de peticionar ao legislativo para proibir o tráfico de escravos e promulgar leis
de manumissão. Em 1774, quando o Congresso proclamou um boicote a todas as
mercadorias inglesas e também a suspensão do tráfico de escravos externo, os quacres
se regozijaram, sentindo que o fechamento do comércio africano sinalizava a sentença
de morte da escravidão norte-americana.
A guerra e a declaração de Independência não pararam a agitação quacre, mas a
neutralidade deles diminuiu muito a influência das assembleias sobre as legislaturas
estaduais. Os Amigos também estavam muito ocupados em defender os seus próprios
princípios para ter muita habilidade para levar adiante a doutrina do antiescravismo.
Ironicamente, em 1780, no momento em que os quacres estavam em baixa, (26) o


N. do T. O Parlamento britânico aprovou o Act Revenue, em 1767, popularmente conhecido como
Townshend Duties (Impostos Townshend), que tributava vidro, chumbo, tintas, papel, e chá ao entrar nas
colônias. Os colonos se opunham ao fato de que a lei foi claramente projetada mais para aumentar a
receita do que para regular o comércio de uma forma favorável ao Império Britânico.

276
governo “radical” da Pensilvânia – que tinha pouco respeito pelos Amigos – aprovou a
primeira lei de emancipação dos Estados Unidos. Surpresos, mas alegres, os Amigos
mais tarde defenderam o estatuto e fizeram lobbies para evitar emendas que pudessem
emasculá-lo.
Depois da guerra, os quacres peticionaram às legislaturas estaduais do Norte e ao
Congresso para suprimir o tráfico de escravos, facilitar as leis de manumissão e
emancipar os escravos. O quacres ingleses agora se dedicavam à causa de pôr fim ao
envolvimento inglês no tráfico de escravos e peticionavam ao parlamento, cooperando
com os reformadores evangélicos como Granville Sharp, Thomas Clarkson e William
Wilberforce. Na América, enquanto os Amigos continuavam individualmente a agitar
em benefício do negro e formavam a maioria dos membros das sociedades
emancipacionistas no Norte e no Sul, o principal papel criativo do corpo organizado dos
Amigos extinguiu-se. Os quacres começaram o movimento contra o tráfico de escravos
e contra a escravidão e mostraram que era possível persuadir homens e mulheres a
aceitarem voluntariamente as perdas financeiras libertando os escravos. Era muito
natural para os Amigos presumir que se outros seguissem o exemplo que haviam dado,
então o problema da escravidão poderia ser resolvido pacificamente. Nesse ínterim, as
assembleias apoiavam as escolas negras e, em 1796, instituições de caridade decidiram,
com alguma relutância, abrir a filiação à Sociedade dos Amigos a todas as raças. Os
Amigos permaneceram os maiores apoiadores das sociedades de manumissão no início
do século XIX, mas a rápida expansão da escravidão no Sul mostrou que as velhas
táticas eram inadequadas. Alguns poucos quacres, além das medidas de protesto das
assembleias, atuaram efetivamente para ajudar os escravos fugitivos, organizar boicotes
de mercadorias produzidas por escravos e denunciar as sociedades de colonização. Por
volta da década de 1830 novos lideres e novos métodos marcaram o ressurgimento da
agitação antiescravista. William Lloyd Garrison, que adotou uma retórica e métodos
mais radicais, (27) aprendeu as vantagens de advogar a emancipação imediata com
Benjamin Lundy, um quacre.
Mais significativo na criação do movimento antiescravista é que virtualmente a
partir do primeiro encontro que os Amigos tiveram com a escravidão no século XVII
alguns deles se opuseram à instituição. Aqueles que foram convencidos de que a
escravidão era moralmente errada passaram a representar um elemento constante nas
assembleias, e os outros que aceitavam a escravidão ficaram na defensiva. Nenhum
Amigo jamais escreveu qualquer tipo de defesa formal ou mesmo incipiente da

277
escravidão. Os receios morais ou a indignação de alguns poucos defrontaram-se com a
apatia, os hábitos, o racismo e reverência pelos direitos de propriedade. Todavia, os
quacres individualmente sempre foram capazes de se opor à propriedade dos seres
humanos. A questão, como foi manifestada nas organizações quacres, era se todos os
Amigos poderiam seguir a visão de alguns poucos.
Por que o processo de emancipação durou tanto tempo? No século XVII, a
Assembleia Anual da Filadélfia não podia tomar uma decisão grave como a condenação
da escravidão sem a concorrência dos Amigos de todos os outros lugares. A migração
dos quacres das Índias Ocidentais e o crescimento da religião no Sul, o envolvimento de
Amigos proeminentes da Filadélfia e de Londres com a escravidão e o tráfico de
escravos, a falta de uma ideologia antiescravista coerente e o rescaldo de um cisma nos
anos de 1690456, que demonstrou o custo social e religioso da desunião, fizeram o corpo
organizado dos Amigos mover-se cautelosamente.
A unidade foi mantida pela adoção de medidas parciais. Inicialmente, os Amigos
foram aconselhados a evitar a participação no tráfico de escravos e a oferecer instrução
religiosa aos escravos. Nos anos 1730, os Amigos foram exortados a deixar de adquirir
escravos. Em 1754, a Assembleia Anual da Filadélfia condenou a escravidão e, em
1758, começou a disciplinar aqueles (28) que compravam ou vendiam escravos. Na
década de 1770, os Amigos libertaram seus escravos e começaram a ajudar os libertos.
Cada medida foi se tornando mais severa porque as recomendações anteriores tinham se
mostrado insuficientes. Os procedimentos quacres admitiam o crescimento da verdade
e, da perspectiva da década de 1780, foi isso o que aconteceu.
Nenhuma das decisões da Assembleia Anual da Filadélfia pareceu
particularmente excessiva ou revolucionária. Cada passo adicional necessitava a criação
de um juízo da assembleia que requeria o consentimento dos proprietários de terra,
comerciantes e políticos. Há pouca evidência de que em 1753 ocorreu uma grande
conversão de Amigos ao antiescravismo, possivelmente porque a esmagadora maioria
dos membros nunca tinha possuído negros. Mesmo hoje algumas decisões são adiadas
por longos períodos enquanto se espera tanto pela conversão quanto pela morte de um
membro de peso; isso pode ter ocorrido na Pensilvânia do século XVIII. Enquanto
aguardava a decisão de uma assembleia, um quacre podia falar sobre a escravidão em
particular ou dentro de uma assembleia. O que ele não podia fazer era publicar um

456
Os documentos sobre este cisma foram impressos em J. William Frost, (ed.), The Keithian Controversy
in Early Pennsylvania (Philadelphia, 1979).

278
panfleto que levasse à desunião dos Amigos ou atacasse os que relutavam em condenar
a escravidão. Alguns quacres libertaram seus escravos muito antes de 1755; outros
esperaram pela insistência das assembleias. O que fica claro é que o quacrismo foi uma
variável crucial que apressou alguns poucos norte-americanos coloniais a libertar seus
escravos e a começar uma campanha que despertaria o mundo para a injustiça alojada
na instituição peculiar.

279
“Comércio e cristianismo”: a ascensão e queda de um slogan
missionário do século XIX

Andrew Porter

Um homem simples poderia perguntar: “qual é a conexão entre Evangelho e


comércio?”457 Falando em Leeds em maio de 1860, em benefício da Missão das
Universidades para a África Central, o bispo Samuel Wilberforce mostrava-se
caracteristicamente resoluto em sua pergunta retórica e não menos direto em sua
resposta. “Há uma grande conexão entre eles. Em primeiro lugar, há pouca esperança de
promover o comércio na África, a menos que a cristiandade seja implantada por lá; e,
em segundo lugar, há poucos fundamentos para esperar que o cristianismo será capaz de
criar seus próprios caminhos a menos que possamos estabelecer um comércio legal na
região”. E era sobejamente clara a responsabilidade da Grã-Bretanha na criação dessa
conexão. Era

intenção de Deus que ela se interessasse por isso, já que aqui se encontra o povo mais ativo, mais
engenhoso e o mais livre da face da terra, sempre pronto a agir, e capaz de implantar o mais importante
trabalho de difusão de sua religião por todo o mundo. O profeta escreveu em vão: “e os navios de Társis
vêm à frente”? Isso não significaria que Deus nos deu nosso comércio e nossa supremacia naval – essa
indústria, essa paciência que nos capacita a dominar a terra em qualquer parte que tenhamos
estabelecido... nossa riqueza, nossa confiança mútua, e que poderíamos como obra que coroaria todas
essas bênçãos, ser os instrumentos para difundir as verdades do Evangelho por todos os cantos da terra?

Certamente a resposta era sim, pois, como argumentava o bispo, extraindo


exemplos da história inicial da igreja cristã, a conexão assentava-se em dois princípios.
“A providência de Deus... havia ordenado que quando o cristianismo se estabelecesse


Publicado originalmente em PORTER, Andrew. “Commerce and Christianity”: The Rise and Fall of a
Nineteenth-Century Missionary Slogan. The Historical Journal, v. 28, n. 3 (Sep., 1985), p. 597-621.
Versões preliminares deste artigo foram apresentadas na University of Sheffield, na University of
Aberdeen, e no Seminário de História Imperial do Institute of Historical Research, University of London.
Sou grato ao Dr Clyde Binfield e ao Professor Andrew Walls por seu auxílio e hospitalidade, e aos
membros do seminário pelos comentários e críticas, em particular a Penny Carson pela informação acerca
das fontes.
457
Samuel Wilberforce, Speeches on missions, ed. Rev. Henry Rowley (London, 1874), p. 213.

N. do T. Segundo a Bíblia de Jerusalém, Isaías, 60:9, “Em mim os navios se juntam, os navios de Társis
vêm à frente, trazendo os seus filhos de longe, com sua prata e seu ouro, por causa do nome de Iahweh
teu Deus, por causa do Santo de Israel, pois ele te glorificou”.

280
em qualquer grande centro, que fosse difundido para todos os outros lugares pelo poder
natural do próprio comércio... comércio... que pretendia transportar, para todo o mundo,
a abençoada mensagem da salvação”.458 Assim como o comércio promove o
cristianismo, o inverso também é verdadeiro. O cristianismo, de acordo com
Wilberforce, tem “o efeito 598 de preparar a raça humana para um grau de excelência
que ela nunca poderia atingir nas regiões não-cristãs”, dando “valor à vida”, “dignidade
ao trabalho” e “segurança à propriedade” com o resultado de que um povo cristão
tenderia a ser um “povo produtor de riqueza, um povo exportador e assim um povo
comercial”.459
Em um artigo recente notável, o Dr. Brian Stanley argumentou que o padrão do
pensamento ilustrado nestes excertos do sermão de Wilberforce era muito comum entre
os vitorianos dos meados do século XIX. As crenças na providência de Deus, na
invenção divina e no design benevolente, na identidade fundamental do dever e do
interesse próprio, eram os principais componentes, conforme ele argumentava, de um
sistema teológico que dominava as reações evangélicas em relação ao mundo ao seu
redor. Foi esse conjunto de crenças que “capacitou os primeiros cristãos vitorianos a
considerar a associação do comércio com o cristianismo como... uma aliança natural e
harmoniosa”. “A facilidade com a qual ligavam comércio e cristianismo é explicável...
primeiramente em termos do providencialismo que dominou o pensamento evangélico
do século XIX”.460 Stanley argumenta que essas crenças foram claramente expostas em
numerosas ocasiões nas décadas de 1840 e 1850 – na época das guerras anglo-chinesas,
em conexão com a viagem de David Livingstone pela África e a fascinação que ela
provocou na Grã-Bretanha em 1857, e, sobretudo, como resultado da Revolta Indiana. 
Para evitar uma repetição da revolta, extrair o máximo das novas aberturas na China e
na África, e cumprir o propósito de Deus em relação ao mundo, era necessário que – nas
palavras de Livingston – “os dois pioneiros da civilização – o cristianismo e o comércio

458
Ibid., p. 212, sermão em Leeds, 25 de maio de 1860.
459
Ibid.

N. do T. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, providencialismo é uma “doutrina
filosófico-religiosa que atribui tudo que existe e tudo que se passa no mundo à Providência divina”.
460
B. Stanley, “‘Commerce and Christianity’: providence theory, the missionary movement, and the
imperialism of free trade, 1842-1860”, Historical Journal, v. 26 (1983), p. 72, 93.

N. do T. A Revolta Indiana de 1857-58 também é conhecida na Índia como a Primeira Guerra de
Independência. A rebelião ocasionou a dissolução da Companhia das Índias Orientais em 1858 e levou os
britânicos a reorganizar toda a administração da Índia.

281
– fossem sempre inseparáveis”.461 O ponto alto da confiança missionária e talvez
também do apoio comercial às missões, o imperialismo da religião e do livre comércio,
caminhavam de mãos dadas.
Esse é um argumento atraente, e Stanley produziu uma profusão de ilustrações
para sustentá-lo. Além do mais, é um tipo de análise que se sustenta fortemente sobre
suposições acerca do grau de autonomia a ser atribuído às ideias bem como à primazia
das crenças teológicas ou intelectuais para determinar o padrão da ação missionária, que
foram utilizadas em todos os escritos sobre motivação missionária dos fins do século
XIX.462 Entretanto, este artigo explora as conexões entre comércio e cristianismo
realizadas pelos apoiadores dos missionários durante um longo período, e com
referência mais específica a áreas particulares da atividade missionária. Argumenta que
caso realmente tenha sido isso que aconteceu, fica cada vez mais difícil aceitar um apelo
à teologia providencialista como o principal fator dos argumentos que ligavam comércio
e cristianismo nos meados da era vitoriana. (599) Sugere que muito mais significação
deve estar ligada à experiência cumulativa que as sociedades adquiriram nos campos
missionários, às difíceis condições sob as quais os missionários tinham de trabalhar e às
mudanças da natureza da sociedade britânica. Estas produziram nítidas variações na
vontade dos homens de aceitar a possibilidade ou a necessidade de ligar cristianismo e
comércio de forma direta, a despeito de sua persuasão teológica comum.

O movimento missionário do final do século XVIII não era apenas o produto do


entusiasmo do revival evangélico, mas adquiriu força dentro de um contexto formado
pelo debate sobre o sentido da civilização e especialmente sobre a possibilidade de
civilizar ou melhorar as condições dos povos não-europeus. Nos fins do século havia
muito pouca dúvida sobre as reais características da civilização; a própria cultura dos
britânicos e suas instituições forneciam o critério. Já nos anos 1760, Adam Smith havia
estabelecido os estágios progressivos por meio dos quais as sociedades humanas
avançavam até culminarem na “idade comercial”. Sob a influência dos escritores
461
Rev. William Monk (ed.), Dr Livingstone’s Cambridge lectures (Cambridge, 1858), p. 19-21; Stanley,
p. 93.
462
Andrew Porter, “Cambridge, Keswick, and late nineteenth century attitudes to Africa”, Journal of
Imperial and Commonwealth History, v (1976-7), 5-34; idem, “Evangelical enthusiasm, missionary
motivation, and West Africa in the late nineteenth century: the career of G. W. Brooke”, ibid. vi (1977-8),
p. 23-46.

282
escoceses, tornou-se firmemente mais convencional supor que com o progresso no
comércio vinha a sofisticação política. O desenvolvimento das artes políticas significava
bom governo, ordem, e liberdade dos indivíduos. A preeminência da Grã-Bretanha no
comércio e na indústria produzia também benefícios morais, pois estas atividades
forneciam “baluartes contra paixões, vícios e fraquezas”. 463 Nas questões de fé e de
ética, o cristianismo sintetizava o ponto alto da perfeição religiosa, um ponto sobre o
qual até mesmo Sydney Smith podia falar por quase todos: “Acreditamos que temos
uma religião revelada; e que somente essa religião pode conferir imortalidade, e pode
nos agraciar com a felicidade no presente”. 464 Essa superioridade e boa sorte era muito
amplamente sentida para criar obrigações em relação às sociedades menos afortunadas.
Por volta de 1800, poucos tinham uma visão acrítica ou amplamente tolerante das
sociedades não-europeias, menos ainda eram os que admiravam suas conquistas. Havia
o dever da benevolência tanto a partir de bases religiosas quanto seculares: sua
realização exigia a civilização dos povos da África e da Ásia. Havia, como é natural,
céticos e outros que ridicularizavam tais tentativas. Todavia, o resultado geral, nas
palavras da Eclectic Review, era que “A melhoria da condição da raça humana, em todas
as formas, nunca empregou um tão grande número de mentes ativas e benevolentes,
como no presente momento... um direciona seus pontos de vista para um objeto, e outro
para outro... mas todos unimos nossos esforços para aumentar a soma de felicidade
humana”.465 (600) A lei britânica, o comércio, o bom governo, a literatura, a educação,
todos pareciam ser para exportação e mesmo os que ridicularizavam o missionário
estavam igualmente dispostos a aprovar os seus objetivos. Sydney Smith declarava
categoricamente a obrigação de disseminar o cristianismo. “Essa religião... nos ensina
os deveres da benevolência geral; e como, sob esse sistema, a conversão dos pagãos
pode ser uma questão indiferente, alegamos não ser capazes de entender”.466
A consideração a respeito de como esse processo de civilização podia ser
alcançado começou a atrair uma atenção cada vez maior para as prioridades e as
maneiras pelas quais os aspectos da sociedade civilizada podiam apoiar-se mutuamente.
As relações precisas entre o cristianismo e o comércio, o evangelismo e o comércio são
fundamentais neste ponto para a importância lógica da discussão. Todavia, os
463
P. J. Marshall; G. Williams, The great map of mankind: British perceptions of the world in the age of
enlightenment (London, 1982), p. 147, 149.
464
Edinburgh Review, XII (April 1808), 151-81, “Publications respecting Indian Missions”, p. 170.
465
Eclectic Review, I (October 1805), p. 762, ao comentar Indian recreations, pelo Rev. William Tennant.
466
Edinburgh Review, XII (April 1808), p. 170.

283
contemporâneos não viam as coisas desta forma. Nos debates sobre a política a ser
adotada na Índia ou na África, ou na discussão acerca dos melhores métodos
missionários, frequentemente surgiu uma distinção entre cristianismo, de um lado, e
civilização, de outro. As questões a serem respondidas eram: qual deveria ser
introduzido primeiro, e sob quais formas?
Para alguns, muitas vezes preocupados com o direito ou a administração, não
havia dúvida de que a resposta estava na civilização. Os clérigos muitas vezes
censuraram esses críticos leigos antipáticos por concordarem com o “erro comum,
embora absurdo, de supor que as doutrinas sublimes do evangelho não devem ser
dirigidas a pagãos, porque suas mentes ignorantes não estão preparadas para
compreendê-las”.467 Todavia, a discussão sobre qual seria a abordagem correta para as
missões e as outras agências de melhoria também trouxe divisões dentro das igrejas.
Richard Watson, bispo de Llandaff, esperava pouco resultado do trabalho missionário;
ainda mais [que] a Índia será cristianizada pelo governo da Grã-Bretanha por meio da
“promoção da ciência e do comércio...”.468 A civilização, sob os auspícios do governo,
consistia em trazer o cristianismo em sua esteira. Os evangélicos muitas vezes se
desesperaram com tais opiniões, como, por exemplo, quando o reverendo William
Tennant escreveu que nutria esperança pela agricultura e o nível das manufaturas na
Índia, mas “considerava as tentativas de converter os hindus, diante de seu estado atual,
como um esforço infrutífero”. “Lamentamos excessivamente que tais sentimentos
tenham saído da caneta de um clérigo”, queixou-se um crítico indignado.469 Mesmo os
apoiadores das missões não se entenderam se deveria ser concedida prioridade à
civilização ou ao cristianismo. A experiência do moraviano Brethren, por exemplo, foi
utilizada como munição por ambos os lados do argumento.470 Dentro da Igreja
Presbiteriana da Escócia ocorreu uma longa disputa entre moderados, como Hill e
Inglis, que acreditavam que certo grau de “civilização” era um pré-requisito
fundamental para a conversão, e os evangélicos que confiavam que a religião verdadeira
e universal (601) poderia ser compreendida pelos seres humanos que estavam em
qualquer lugar. Depois de ter contrastado os pontos de vistas das paróquias escocesas,

467
Eclectic Review, I (December 1805), p. 884, ao comentar African memoranda, pelo Capt. P. Beaver.
468
R. Watson, Anecdotes of the life of Richard Watson (London, 1817), p. 198.
469
Eclectic Review, I (December 1805), p. 896.
470
Edinburgh Review, XXI (February 1813), P. 64-6, ao comentar Travels into Southern Africa, por
Henry Lichtenstein; Rev. W. Hanna, Memoirs of the life and writings of Thomas Chalmers (4 vols.,
Edinburgh, 1849-52), I, p. 390-2.

284
Thomas Chalmers estava convencido de que “não há nenhuma controvérsia a respeito
da existência de um senso moral no mais rude dos bárbaros... em todos os países a partir
dos quais há uma base sobre a qual você pode entrar”.471 No entanto, mesmo quando
muitos evangélicos tenderam a argumentar que o cristianismo poderia perfeitamente
preceder a civilização, não havia certamente nenhum sentimento preciso de que ele
necessariamente deveria fazê-lo.
Essas discussões, na medida em que os cristãos estavam envolvidos, ocorreram
no âmbito da teologia providencialista. Este era o mundo da Analogy, do Bispo Butler,
das Evidences of Christianity, do Arquidiácono Paley, e da Practical View of Religion,
de William Wilberforce. No entanto, o comércio e o cristianismo eram considerados
como questões essencialmente separadas, e não estavam ligados entre si do modo que
viria a se tornar comum cinquenta anos mais tarde. O comércio, particularmente o
comércio exterior, era uma característica fundamental de uma sociedade civilizada, mas
a “civilização” que estava no centro da preocupação geral devia ser compreendida como
algo além da atividade comercial e devia ser claramente distinguível do cristianismo. O
entendimento do comércio, acima de tudo como troca de produtos primários ou de
matérias-primas para a manufatura, e a identificação de um tal sistema de troca como
um fator primordial para a difusão e o apoio ao cristianismo entre os não-europeus, não
eram características encontradas nos debates sobre a evangelização no final do século
XVIII e no início do século XIX. Em 1792, o missionário batista William Carey ficou
tão impressionado quanto Samuel Wilberforce com a referência de Isaías aos “navios de
Társis”, contudo ele viu uma relevância muito menos imediata nela. “Isso parece sugerir
que, na época do glorioso crescimento da igreja, nos últimos tempos (do qual o capítulo
inteiro é, indubitavelmente, uma profecia), o comércio deverá ser útil para a propagação
do evangelho... a navegação, especialmente a comercial, deve ser o meio de transportar
o trabalho de Deus...”.472 Todavia, por enquanto, Carey via na aventura dos
comerciantes a evidência de que os territórios pagãos estavam mais próximos do que se
poderia pensar, e uma censura aos cristãos que, entretanto, preferiam virar as costas ao
resto do mundo, ao invés de se tornarem auxiliares dos evangelizadores
contemporâneos.473 Do mesmo modo, as sociedades missionárias recém-fundadas, como

471
W. J. Roxborough, “Thomas Chalmers and the mission of the Church with special reference to the rise
of the missionary movement in Scotland” (Aberdeen, Ph.D. thesis, 1978), p. 307, 359.
472
William Carey, An enquiry into the obligations of Christians, to use means for the conversion of the
heathens (Leicester, 1792), p. 68. A referência bíblica é Isaías, capítulo 60, versículo 9.
473
Ibid., p. 67, 81-2.

285
a Sociedade Missionária de Londres (London Missionary Society) e a Sociedade
Missionária da Igreja (Church Missionary Society), se esforçaram por dissociar-se tanto
da atividade comercial quanto de qualquer envolvimento em questões “políticas”.474
Para apreciar melhor algumas das razões disso, é útil olhar para os exemplos da Índia e
de Serra Leoa como assuntos importantes de interesse evangélico.

II

(602) Em relação às questões da Índia, as opiniões de Charles Grant, primeiro


funcionário e depois diretor da Companhia das Índias Orientais, valem por muitos. Ele
parece ter sempre aceitado a máxima de que a benevolência, seja na promoção de um
bom governo ou no comércio justo, trazia reflexos benéficos. Depois de sua conversão,
em 1776, a sua fé na companhia como um agente de melhoria e de civilização continuou
a crescer; mas também cresceu a sua convicção de que boas leis e costumes decentes
eram inúteis sem a integridade e disciplina moral que só o cristianismo poderia produzir
naqueles que eram dirigidos ou viviam sob a administração da companhia. Ele tornou-se
cada vez mais crítico das políticas anteriores da companhia, alegando que o valor do seu
trabalho tinha sido totalmente comprometido pela falta de preocupação com o ensino
cristão, mesmo para os seus próprios funcionários, e por sua proibição efetiva da
atividade missionária entre os muçulmanos e hindus. Em 1792, Grant estava seguro de
que a civilização e a reforma da sociedade indiana era não apenas necessária, mas
implicava nada menos do que a introdução constante de todo o saber ocidental.475 Ele
pressionou para que o cristianismo fosse difundido cada vez mais, não apenas como um
corpo de doutrina ou conjunto de verdades sublimes, mas como o ingrediente essencial,
necessário para vincular as maneiras e a cultura ocidentais. Sua estratégia era a
educação, o seu meio o idioma inglês, e os seus agentes os missionários. Ele não
defendeu que os missionários atuassem para o progresso econômico, mas para o cultivo
do sentido de comunidade e dos valores comuns entre governantes e governados: nada
poderia fazer mais para proteger o governo britânico na Índia. Grant sinceramente se
474
David Bogue, “Objections against a mission to the heathen, stated and considered”, Sermons preached
in London at the formation of the missionary society (London, 1795), p. 132-3; Instructions of the
committee of the Church Missionary Society and Proceedings of the Church Missionary Society ,
publicada quando os missionários partiram para o campo, está repleta de advertências a respeito destas
questões.
475
Charles Grant, Observations on the state of society among the Asiatic subjects of Great Britain, escrito
em 1792, impresso in P.P. 1831-2, VIII (734), Report from the select committee on the affairs of the East
India Company, General Appendix I.

286
opôs à expansão do comércio, proposta por muitos como uma forma de abrir a Índia a
todos os comerciantes. A preservação do monopólio da Companhia das Índias Orientais,
a restrição do comércio, eram essenciais, pois fortaleciam a estrutura administrativa da
companhia, a única agência capaz de incentivar a religião e por isso de mudar a Índia
para melhor. Ele estava preparado para admitir que a “melhoria moral levaria à melhoria
econômica e ajudaria nosso comércio”, mas o comércio em qualquer sentido direto era
irrelevante para a propagação de sua fé.476 Pode-se dizer que em sua mente, a conversão
tinha praticamente expulsado o comércio.
Por que os evangélicos atribuíram tão pouca importância ao comércio em seu
trabalho na Índia? Se os pontos de vista de Grant não eram compartilhados por outros,
ele pode ser descartado como alguém preocupado simplesmente em conciliar suas
opiniões religiosas com o interesse nas próprias chances da companhia de obter lucro.
Sua sugestão de que os missionários contribuíam para a segurança pode ser considerada
como outro exemplo da facilidade com que os evangélicos e humanitários tentaram
angariar um amplo apoio, (603) alegando que suas diretrizes serviam aos principais
interesses nacionais.477 Na verdade, os seus argumentos eram amplamente
representativos e convincentes porque repousavam sobre o fato histórico bem como a
própria experiência. Isso ficou demonstrado pelos debates de 1813 a respeito da
renovação do alvará da Companhia das Índias Orientais e da admissão de missionários
para a Índia.
Os evangélicos que pressionaram por mudanças no alvará estavam convencidos
de que o comércio, como tal, não tinha feito nada para melhorar a Índia, ainda que se
sugerisse que a própria companhia havia sido reformada, e abandonara seus dias
supostamente predatórios de meados do século XVIII. O registro anterior da atividade
comercial dificilmente sugere uma capacidade latente de apoiar um efetivo
evangelismo. Afinal, é muito perceptível que, enquanto os partidários das missões
estavam felizes em ver a companhia ser pressionada por todos os lados para mudar suas
atitudes, eles evitaram alinhar-se aos defensores do livre-comércio, que estavam
ansiosos para abrir a Índia a todos e a tudo.478 Muitos evangélicos pareciam estar

A. T. Embree, Charles Grant and British rule in India (London, 1963), p. 47, 118, 142-4, e passim;
476

Grant, Observations, p. 88.


Cf. o argumento em R. T. Anstey, The Atlantic slave trade and British abolition, 1760-1810 (London,
477

1975), capítulo 14; e Thomas Chalmers, The utility of missions ascertained by experience ( 2nd edn,
Edinburgh, 1816), p. 19.
478
Ver as petições dos defensores dos missionários em 1813, Parliamentary Debates, XXV e XXVI.

287
prontos a aceitar o próprio argumento da companhia de que, embora houvesse
comerciantes honrosos, todavia, “de longe, a maioria era de aventureiros desesperados
ou necessitados”.479 Os defensores da admissão de missionários e outros clérigos
esforçavam-se consequentemente para impressionar o Parlamento por meio da distinção
de sua própria sobriedade e intenções ordenadas. Por exemplo, “todos os ministros e
licenciados [da Igreja da Escócia] haviam recebido uma educação universitária regular,
que os qualifica para lecionar nas escolas bem como desempenhar os serviços
religiosos, e ao mesmo tempo proporciona uma presunção a favor de sua prudência e a
propriedade de sua conduta”.480 Os programas de ação deviam ser igualmente
moderados. A Sociedade Missionária de Londres declarou “contar com a bênção divina
para o seu sucesso ao proceder a uma demonstração sincera das evidências que
sustentam a religião cristã, as doutrinas sagradas, as promessas e preceitos fundamentais
que a compõem, e sobre as vidas exemplares e irrepreensíveis dos missionários,
voltadas para atos de bondade e de boa vontade para com os nativos”.481 William
Wilberforce enfatizou a grande importância da educação geral e da difusão do
conhecimento que os missionários também proporcionariam. Segundo ele, isto era um
complemento essencial à instrução religiosa na medida em que ampliava o saber nativo
e lançava novas luzes sobre as superstições locais. A combinação de razão e verdade,
esclarecimento e missão cristã, seria irresistível: “em suma, os nativos do Hindustão...
tornar-se-iam cristãos, se assim posso me expressar, sem o saber”.482
Pode-se objetar que estes eram apenas argumentos para a ocasião. Obviamente,
(604) é verdade que os missionários sofriam com uma imprensa particularmente má no
início do século XIX. A referência de Sydney Smith aos “pequenos destacamentos de
maníacos... que nos beneficiam muito mais pela ausência do que as opiniões dos
hindus” foi apenas notável por ser mais elegante do que a série geral de abusos.483 Os
missionários certamente precisavam defender o seu próprio caráter e a razoabilidade de
seu ramo religioso. Além disso, a incerteza quanto ao resultado da revisão do Alvará
compeliu os evangélicos a evitar argumentos que pudessem antagonizar os interesses

479
Parliamentary Debates, XXVI, 453, 31 de maio de 1813, discurso de Grant.
480
Ibid. XXV, 1092-3, 28 de abril de 1813, Petition of elders and ministers of the provincial synod of
Glasgow.
481
Ibid. 817-18, 14 de abril de 1813, petição.
482
Ibid. XXVI, 832-3, 22 de junho de 1813.
Edinburgh Review, XII (April 1808), 179-80; cf. Parliamentary Register, XVIII, 685, 11 de junho de
483

1802, discurso do General Gascoyne sobre Serra Leoa.

288
comerciais de ambos os lados. As representações em favor de uma estratégia
educacional foram, sem dúvida, calculadas para atender os dois lados.
Todavia, o distanciamento do cristianismo e da causa missionária em relação ao
comércio era maior do que qualquer avaliação histórica do progresso ou cálculos de
conveniência política imediata da Índia. Embora a cautela prática possa ter induzido os
apoiadores das missões na Índia a expor a questão de modo a minimizar as ligações
entre a expansão do comércio e a do cristianismo, o mesmo ocorreu nas ocasiões em
que conexões eram realizadas com vista a ajudar ou a justificar a presença missionária
mais do que extrair qualquer conexão instrumental direta entre a conversão e as
atividades econômicas.484 Wilberforce se autodeclarava relutante em estabelecer uma
aliança com os interesses comerciais com vistas a destruir os poderes restritivos da
Companhia das Índias Orientais, não porque ele esperava que a difusão do cristianismo
pudesse ser auxiliada por uma maior liberdade de comércio.485 Na verdade, a conjectura
se encaminhara contra qualquer ligação por duas razões principais. Por um lado, as
circunstâncias eram tais que as perspectivas de expansão do comércio britânico com a
Índia eram consideradas muito medíocres ou até mesmo inexistentes. Por outro lado, os
poucos que acreditavam em um futuro comercial cor-de-rosa viram na introdução do
cristianismo uma condição suficiente para o crescimento: o desenvolvimento modesto
da Índia decorreu do monopólio da Companhia das Índias Orientais, e somente a sua
abolição poderia abrir o caminho para a expansão. Deste modo, era possível tanto aos
pessimistas bem como aos otimistas comerciais acreditar que o cristianismo e a
civilização poderiam florescer sem a ajuda do comércio, e que a melhor forma de
promover o cristianismo era torná-lo independente do comércio.
Lorde Teignmouth, por exemplo, não tinha dúvidas de que a entrada de
missionários em território da companhia era desejável, que a conversão era possível, e
que a introdução do cristianismo “tenderia à melhoria da condição civil [dos hindus]”.
Mas quando indagado se uma condição civil e moral melhorada “tenderia a aumentar o
consumo das manufaturas da Inglaterra ou de qualquer outro país”, ele tinha certeza que

484
Claudius Buchanan no C.M.S. Anniversary Meeting, 1810, citado por G. Bearce, British attitudes
towards India,1784-1858 (Oxford, 1961), p. 82; Grant em seu Observations, ao falar da difusão da “nossa
religião e conhecimento” como “as formas mais nobres de conquista”, acrescentou “e em qualquer lugar,
podemos nos aventurar a dizer, que os nossos princípios e linguagem são introduzidos, nosso comércio os
acompanhará”, P.P. 1831-2, VIII (734), Apêndice Geral I, p. 88.
485
R. I. Wilberforce; S. Wilberforce, The life of William Wilberforce (5 vols., London, 1838), IV, 14,
entrada de diário, 14 de fevereiro de 1812.

289
não.486 (605) Ele e muitos outros que forneceram provas ao inquérito parlamentar sobre
os negócios da Companhia das Índias Orientais argumentaram que o motivo do
comércio limitado da Índia e das perdas da própria companhia decorria principalmente
da pobreza dos indianos, da falta de poder de compra, e da ausência de qualquer
necessidade real das mercadorias europeias.487 Os fatos econômicos da vida, mais do
que a condição religiosa e moral dos habitantes da Índia, governavam os níveis de
comércio.
A garantia da expansão do comércio não dependia da promoção do cristianismo,
nem da conversão religiosa. Grenville expôs o ponto de vista anti-monopolista de que,
uma vez aberto, o comércio iria perpetuar-se sozinho.

Deixando-os atuar livremente, o comércio bem como a indústria cresceriam. Do mesmo modo
como sempre ocorreu, e o grande Criador do mundo não excluiu a Índia desta lei comum de nossa
natureza. A oferta, primeiro seguindo a demanda, em breve a ampliaria. Por meio de novos estímulos,
serão criadas novas necessidades e novos desejos. E nem o clima, nem a religião, nem os hábitos
estabelecidos há muito tempo, nem mesmo a própria pobreza, o maior de todos os obstáculos presentes,
recusarão os benefícios de tal relação para a população nativa desse império. Eles obterão da difusão do
comércio, como todos os outros povos tem uniformemente obtido, novos confortos e novas comodidades
para a vida, novos incentivos à indústria, e novos prazeres em forma de uma justa recompensa pelo
aumento da atividade e do empreendimento.488

Em sua opinião, nem o hinduísmo, nem Islam eram barreiras para o comércio, e
os obstáculos existentes requeriam não uma transformação religiosa, mas o divórcio
entre a soberania secular e o monopólio comercial.
Que uma maior liberdade de comércio tinha pouco a oferecer aos evangélicos
parecia ser cada vez mais confirmada pela própria experiência. Mesmo os batistas mais
entusiastas foram atraídos rapidamente para o ensino e os trabalhos acadêmicos de
tradução e publicação. Além disso, as atividades econômicas nas quais eles se
envolveram parecem ter tido pouca conexão com o comércio. Sua preocupação estava
voltada especialmente para a assistência aos pobres, e para uma subsistência adequada

486
P.P. 1812-13, VII, 18. Lord Teignmouth, anteriormente Sir John Shore, foi governador-geral na Índia
de 1793 a 1798, funcionário da Companhia das Índias Orientais de 1769 a 1789, e membro do Conselho
de Controle, de 1807 a 1828.
487
Parliamentary Debates, XXV, 493-500, 527-32, 648-56, abril de 1813, para as provas de Thomas
Graham e do Major-Gen. Alexander Kyd; ibid. XXVI, 436, maio de 1813, para as provas de Mr Bruce.
488
Ibid. XXV, 739-40, abril de 1813.

290
através de melhorias agrícolas limitadas.489 Portanto, não surpreende encontrar
evangélicos, bem antes do grande debate sobre a Companhia das Índias Orientais, em
1813, firmemente convencidos de que estes eram os únicos métodos que valiam a pena.
Ao discutir duas de uma série de dissertações “a respeito das melhores formas de
civilizar os súditos do Império Britânico na Índia, e de difundir a luz da religião cristã
em todo o mundo oriental”, a Eclectic Review estava satisfeita “que ambos os escritores,
embora de diferentes estabelecimentos nacionais, estavam de acordo... com a opinião
que anteriormente emitimos, que é a partir de medidas concomitantes, de pôr em
circulação as escrituras e de contratar missionários adequados [que significava homens
educados e bem treinados], que mais razoavelmente se pode esperar o avanço do
cristianismo no mundo oriental”.490 Pregação e (606) ensino eram os meios essenciais;
sua eficácia devia ser aumentada, por meio da melhoria da sua qualidade e do volume,
não vinculando-os com as ações econômicas. A British and Foreign Bible Society
(Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira), apoiada fortemente por Grant, Teignmouth,
e Wilberforce, e a Religious Tract Society (Sociedade de Tratados Religiosos), foram a
mais pura expressão das estratégias missionárias contemporâneas.491

III

No caso de Serra Leoa, a despeito do interesse comercial e da preocupação


missionária direta dos seus promotores evangélicos, pode ser discernido um padrão
semelhante de atitudes: não emergiu nenhuma conexão instrumental entre o comércio e
o cristianismo. Após o fracasso do projeto de Granville Sharpe de reassentar os negros
pobres numa “Província da Liberdade”, auto-governada e auto-suficiente, a Companhia
de Serra Leoa foi fundada em 1790.492 Ao assumir a concessão de Sharp, seu objetivo
era “a introdução da civilização na África”. 493 Esta companhia esperava alcançar esse
489
E. D. Potts, British Baptist missionaries in India, 1793-1837 (Cambridge, 1967), p. 70-4; K. Ingham,
Reformers in India, 1793-1833: an account of the work of Christian in missionaries on behalf of social
reform (Cambridge, 1956).
490
Eclectic Review, II (Julho de 1806), p. 536.
491
Como exemplos dessa opinião generalizada, Wilberforce, Life, IV, III, William Wilberforce to Lord
Wellesley, 6 de abril de 1813; e Henry Martyn, Sermons (Calcutta, 1822), n. XX, sobre a British and
Foreign Bible Society.
492
P. D. Curtin, The image of Africa: British ideas and action, 1780-1850 (London, 1965), capítulos 4-5;
Christopher Fyfe, A history of Sierra Leone (Oxford, 1962), p. 94; J. Peterson, Province of freedom: a
history of Sierra Leone, 1787-1870 (London, 1969), capítulo 1.
P.P. 1801-2, II (339), Report from the committee on the petition of the court of directors of the Sierra
493

Leone Company, p. 7.

291
objetivo por meio do estabelecimento de uma colônia comercial de produtos tropicais;
isso construiria laços com as tribos vizinhas e serviria como um exemplo de
empreendedorismo, paz e prosperidade para elas. A persuasão pelo exemplo racional
contribuiria para a abolição do tráfico de escravos, a causa original da barbárie da
África.
Todavia, uma civilização auxiliada pelo comércio “legítimo” não envolvia uma
ligação íntima entre comércio e cristianismo tal como a associação entre a Companhia e
a Seita de Clapham poderia sugerir. Outros já haviam notado como “a Companhia de
Serra Leoa praticamente não se preocupou, em seu início, com os possíveis usos da
educação ou do trabalho missionário”.494 Nos primeiros dias do empreendimento talvez
houvesse boas razões para isso. Ele foi montado às pressas, em parte para socorrer o
projeto anterior, e foram trazidos os negros da Nova Escócia, cristãos supostamente já
instruídos. O próprio movimento missionário estava apenas começando. A ênfase
atribuída ao comércio legítimo pode ter sido motivada antes de tudo pela necessidade
política interna: Wilberforce e seus amigos encontraram nessa ideia algo com que se
opor aos argumentos do lobby pró-escravidão, que alegava que a escravidão era
impossível de ser extirpada diante das condições africanas, e a abolição prejudicaria
seriamente os interesses da Grã-Bretanha.495 No entanto, era necessário justificar não
apenas o início da companhia, mas a persistência dessa preocupação predominante com
os aspectos seculares da civilização ao longo da vida da companhia.
(607) A ênfase certamente decorria bastante da amarga experiência, não menos
importante, dos colonos recalcitrantes e das condições físicas intratáveis. Em 1802, os
defensores parlamentares da Companhia fizeram muitas reivindicações por algum
progresso educacional. Castlereagh mencionou detalhes, e Henry Thornton, o presidente
da companhia, apelou aos “legisladores mais sábios e aos escritores mais célebres [que]
concordassem com a posição de que a introdução de conhecimento deve sempre
preceder a civilização”. Os diretores, em apresentações à Seleta Comissão Parlamentar,
que examinava seus negócios, observaram que “praticamente não se necessita de
demonstração sobre o quanto a civilização avança por meio da promoção da atividade
econômica regular e da boa ordem, por proporcionar uma proteção completa, ao
facilitar a justa aquisição de propriedades, e assegurar o usofruto tranquilo da influência

494
Curtin, Image of Africa, p. 262.
495
Ibid., e p. 105-7; R. A. Austen; W. D. Smith, “Images of Africa and British slave trade abolition: the
transition to an imperialist ideology”, African Historical Studies, II (1969).

292
e do poder legítimos”.496 Mas estes eram ganhos fragmentados. Em 1807, Thornton não
podia alegar mais do que já havia professado acreditar quando da criação da companhia
há quase vinte anos, “a praticabilidade do processo civilizatório da África”.497
A explicação de Thornton a respeito de sua convicção é digna de nota.498 “Quais
são os grandes impedimentos para a melhoria de um país?”, ele perguntou à sua
audiência parlamentar. “Em primeiro lugar, algo relacionado ao clima; ou ao solo; ou ao
caráter dos habitantes”. Em seguida, ele comentou cada um deles para mostrar que em
“nenhuma destas situações havia qualquer obstáculo insuperável para a civilização”.
Não só era possível a criação de um comércio expansivo: graças à Companhia, agora
também existia “um corpo de colonos na costa da África, falando o idioma inglês, unido
ao povo inglês, avançando na civilização e na moral, e crescendo numericamente”.
Tanto do comércio quanto dos colonos, a Grã-Bretanha poderia esperar “vantagens
substanciais”.
Neste momento, o cristianismo e o papel da conversão eram notáveis justamente
por sua ausência. Apesar do desejo dos apoiadores da Companhia de introduzir “entre
os nativos... as bênçãos da religião”499, não havia nenhuma sugestão ou esperança de
que o comércio estivesse envolvido no estabelecimento do cristianismo ou que o
comércio de algum modo se tornasse o veículo para o progresso religioso. Na Índia,
muitos evangélicos haviam ignorado ou se mantido francamente céticos em relação às
perspectivas comerciais. Em Serra Leoa, onde era impossível ignorar o futuro do
comércio legítimo, eles também estavam aparentemente convencidos de seu potencial.
Entretanto, ainda não havia um casamento do comércio com a religião, nem na teoria
nem na prática. A ilustração graficamente mais representativa da separação foi a
remoção completa dos filhos dos notáveis locais de Serra Leoa: para sua educação e
instrução religiosa eles foram hospedados ao lado de Clapham Common.500 A atividade
missionária tal como ocorreu em Serra Leoa (a CMS [Church Mission Society] estava
trabalhando desde 1799 e os wesleyanos chegaram mais tarde, em 1811), seguiu
modelos comuns na Índia. Sempre que possível, o modelo preferido adotado na escola
da aldeia consistia numa variação de ensino de inglês, (608) literatura religiosa e

496
Parliamentary Register, XVIII, 683-7, 11 de junho de 1802; P.P. 1801-2, II (339), 22.
497
Cobbett’s Parliamentary Debates, IX, 1004, 29 de julho de 1807.
498
Ibid., 1003-5.
499
Parliamentary Register, XVIII, 686-7, 11 de junho de 1802, Henry Thornton.
500
P.P. 1801-2, II (339), 30-1, depoimento de William Greaves.

293
pregação; no nível superior, o Bishop’s College, de Calcutá, determinava o caminho, e a
Fourah Bay Institution o acompanhava.

IV

Apesar da existência de todos os elementos essenciais de um quadro teológico


que inicialmente os evangélicos dispunham para compartilhar com seus sucessores de
meados do século XIX, estas foram as respostas aos problemas da expansão missionária
de um mundo que, em vários aspectos, ainda era muito diferente. Forjar uma ligação
entre a expansão do comércio e a conversão ao cristianismo mais tarde se provou
possível dentro de um sistema de referência providencialista. De fato, uma das belezas
de tal sistema era que, assim como sob Deus todas as coisas eram possíveis, então,
dadas as premissas do propósito benevolente e o design geral, todas as coisas eram, de
fato, interdependentes e conectadas. Todavia, o historiador tem que explicar não tanto
as possibilidades lógicas inerentes a tal sistema de crença, mas a preferência de uma
geração de evangélicos por certas conexões, em vez de outras. Inevitavelmente, uma
série de circunstâncias devem ser abordadas aqui. Ao enfatizar a importância primordial
do ensino, a alfabetização e a difusão das Escrituras, o recente movimento missionário,
não obstante o seu entusiasmo, inspirou-se fortemente nas tradições racionalistas do
pensamento do século XVIII para tratar de assuntos não-teológicos. Em sua relutância
em ligar o cristianismo ao comércio, cuja ligação geralmente era entendida como um
grande avanço civilizacional, os primeiros evangélicos implicitamente negaram que o
cristianismo e uma cultura particular, necessariamente, andassem de mãos dadas.
Juntamente com a sua compreensão individualista da conversão e do compromisso
religioso, a universalidade da razão e a consciência não eram menos atraentes do que o
conceito de civilização e a ideia de progresso por meio de estágios históricos. No debate
sobre a civilização, o cristianismo era frequentemente colocado separadamente em um
dos lados. Os evangélicos se envolviam frequentemente nesse debate e tendiam a
preservar a separação, convencidos de que o cristianismo era universalmente aceitável e
trouxe benefícios a toda sociedade que o abraçou. Eles continuaram a pensar que o
cristianismo seria introduzido por métodos universalmente aplicáveis, pregação e
educação. Quando a L.M.S. [The London Missionary Society] abriu sua Academia
Missionária em Hoxton, eles o fizeram com a convicção de que a “Educação e a
imprensa são os dois grandes meios, que em conexão com a pregação, trarão a

294
revolução moral ao mundo”.501 Sua crença na eficácia destes métodos reflete não só o
estado do conhecimento contemporâneo relativo às sociedades não-europeias, mas
também as observações próprias à sua sociedade. No início do século XIX, a Grã-
Bretanha ainda era uma sociedade em que a categoria e a hierarquia eram importantes,
onde muitos pensavam que, embora um homem pudesse ascender, a maioria havia
nascido para permanecer em sua condição. Onde nenhuma classe ainda se considerava
como o repositório nacional das virtudes universais, (609) era natural refletir que “aqui,
e em toda parte, o sucesso do Evangelho é, e sempre foi, maior entre as classes baixa e
média da sociedade do que entre o rico, o nobre e o sábio”. Para o evangélico, menos
preocupado com a reforma dos costumes e a extirpação do vício em todos os níveis da
sua própria sociedade, do que com as missões no exterior, a conclusão era inevitável:
embora “um estado avançado de civilização apresente vantagens para a introdução do
cristianismo, ele pode... ser alcançado à medida que as desvantagens sejam
equilibradas”.502 Em um mundo assim, o avanço comercial e a conversão religiosa não
eram facilmente ajustados.

A conclusão do argumento é que, como ocorreram mudanças no campo


missionário, conforme aumentou a experiência evangélica em relação aos problemas
das missões, e como as circunstâncias sócio-econômicas domésticas se alteraram, então
a formulação evangélica da ligação entre civilização e cristianismo, entre cristianismo e
comércio, também mudou. Certamente, isso parece ter acontecido, pois, apesar do
quadro persistente da teologia evangélica, são claramente discerníveis mudanças no
pensamento durante a década de 1820. Embora, num primeiro momento, estas não
fossem bastante sistemáticas, o pensamento se cristalizou rapidamente na década
seguinte, e em duas ocasiões particulares na década de 1830, os líderes missionários não
contaram apenas com a oportunidade, mas estavam auto-confiantes o suficiente para
expor seus pontos de vista integralmente.
Em linhas gerais, as atitudes missionárias em relação à Índia mudaram muito
menos. Não obstante a expansão do comércio britânico após 1813 e as novas

J. A. James, Missionary prospects: a sermon the substance of which was delivered in Hoxton Chapel…
501

1826, at the opening of Hoxton College as a missionary academy (Birmingham, 1826), p. 24.
502
Eclectic Review, II (May 1806), p. 364.

295
expectativas de crescimento decorrentes do fim do monopólio mantido pela Companhia
das Índias Orientais do comércio com a China, em 1833, a estratégia educacional
permaneceu na moda. A atividade comercial parecia não manter relação com a
conversão bem-sucedida, e os números totais de convertidos permaneceu muito
pequeno. Parecia, portanto, mais racional alterar o conteúdo da formação oferecida aos
missionários. O currículo foi progressivamente ampliado para vincular o cristianismo de
forma mais estreita com a aprendizagem ocidental; sob a influência de Alexander Duff,
aumentou-se a ênfase no ensino superior na esperança de converter os brâmanes, de
modo a produzir agentes nativos capazes, com a intenção de prejudicar as religiões
indianas a partir de cima.
Em outros locais, condições diferentes requereram abordagens alternativas. Nas
Índias Ocidentais britânicas bem como na Colônia do Cabo, os missionários tornaram-
se cada vez mais conscientes da dimensão da subordinação de um grande número de
não-europeus promovida pelo desenvolvimento do governo colonial, que eram
incompatíveis com uma existência verdadeiramente cristã. As atividades dos
missionários não eram severamente restringidas apenas pelos funcionários coloniais,
mas pelos colonos brancos, e pelos fazendeiros que dominavam as assembleias. As
condições de vida dos escravos ou dos ficticiamente livres, embora não menos restritas
do que as dos trabalhadores khoikhoi do Cabo, visavam privá-los tanto das
oportunidades de ouvir o Evangelho quanto da liberdade [freedom] ou da liberdade
[liberty] de escolha, essencial para a prática da moralidade cristã. Sob (610) tais
condições, os pensamentos de muitos missionários se voltaram para prescrições de
mudança política e econômica.
Como as alternativas já existentes – a caça ou pastoreio nômade ainda
encontrados em partes do Cabo – pareciam um pouco mais propícias à conversão do que
o trabalho para os senhores brancos, os missionários começaram a apoiar abertamente
as causas da emancipação dos escravos, a proteção legal ao trabalho livre, e o
reconhecimento dos direitos à propriedade da terra. Deste modo, eles começaram a
favorecer a aquisição de propriedades, a acumulação de capital, e a segurança de uma
existência estável para os não-europeus como suportes essenciais para uma forma de
vida cristã independente. No Cabo, por exemplo, foi o progresso de sua colônia em
Bethelsdorp que levou os missionários da L.M.S. a incentivar os khoikhoi a serem
produtores e consumidores profundamente envolvidos com a vida comercial da colônia,

296
e com o avanço do cristianismo.503 O desenvolvimento de outros locais a partir da
década de 1820 em diante – como Griqua Town, Philipolis e, finalmente, a colônia do
rio Kat – só pareciam confirmar as possibilidades inerentes a uma aliança entre
comércio e cristianismo.504
Todavia, para os missionários no campo, o comércio também poderia ter outras
conexões com os esforços bem-sucedidos de conversão. Isto foi talvez mais
vigorosamente ilustrado em outra área de atividade da L.M.S. no Pacífico. Lá, as
queixas permanentes dos missionários acerca dos salários inadequados eram
exacerbadas pelo isolamento extremo, contato altamente irregular com o mundo
exterior, e escassez desesperada de suprimentos. Nestas circunstâncias, o comércio
tornou-se essencial para a subsistência. Ao passo que para alguns missionários, como
George Pritchard ou John Williams, parecia que “o comércio adquiriu uma virtude por
si próprio” e até mesmo desvinculada do esforço missionário, outros novamente
apreciaram a dimensão que o comércio também ampliou sua influência e um navio
comercial ampliou sua abrangência geográfica.505
Essa configuração de cristianismo e comércio foi incentivada pelas necessidades
gerais da estratégia e das finanças missionárias, como bem perceberam as sedes das
sociedades em Londres. Os diretores da L.M.S. estavam ansiosos para estimular a
proliferação de postos missionários “a partir do Oriente em direção à parte ocidental da
África”, assim como vivamente preocupados com a calamitosa situação financeira da
sociedade. Uma colônia como Bethelsdorp oferecia a solução para ambos os problemas:
a prosperidade crescente e o acúmulo de riqueza, por meio da indústria e do comércio,
permitiriam que seus habitantes “contribuíssem para as (611) despesas da Missão e a
manutenção dos missionários”, permitindo assim que os recursos metropolitanas fossem
empregados em outro lugar.506 Em pouco tempo, os diretores de Londres estavam

503
Para as críticas à existência de uma “vida nômade” como hostis ao cristianismo, The journals of the
Rev. T. L. Hodgson, missionary to the Seleka-Rolong and the Griquas, 1821-31, ed. R. L. Cope
(Johannesburg, 1977), p. 66, 76; notas do Dr John Philip, ? 1840, Philip papers, Rhodes House Library,
Oxford, MSS Afr. s. 219C, fo. 591 ;James Read (L.M.S. missionary) to Sir John Cradock (governador do
Cabo da Boa Esperança), 23 de janeiro de 1812, Council for World Mission Archive, School of Oriental
and African Studies, London (doravante L.M.S.) 5/1/B/12.
504
The Kitchingman papers: missionary letters and journals, 1817 to 1848, from the Brenthurst
collection, Johannesburg, ed. Basil Le Cordeur and Christopher Saunders Johannesburg, 1976), p. 129-
34, 138-45, 156-9.
505
Niel Gunson, Messengers of grace: evangelical missionaries in the South Seas, 1797-1860
(Melbourne, 1978), p. 115-21, 136; John Williams, A narrative of missionary enterprises in the South Sea
Islands (London, 1837).
506
L.M.S. directors to James Read, abril de 1812, L.M.S. 5/1/D/25.

297
explicitamente fazendo a pergunta “até que ponto é correto gastar dinheiro em locais
onde ele não se torna produtivo?”507
Como prova do efeito cumulativo dessas mudanças gradativas que ocorreram ao
longo de aproximadamente vinte e cinco anos, os argumentos desenvolvidos pelos
evangélicos em depoimentos à Seleta Comissão Parlamentar sobre os aborígines em
1836-7 possuem importância particular. Esta comissão foi criada para “examinar quais
medidas deveriam ser adotadas em relação aos HABITANTES NATIVOS dos países
onde as COLÔNIAS BRITÂNICAS são implantadas, e as tribos vizinhas, a fim de
garantir-lhes a devida observância da justiça e a proteção dos seus direitos; promover a
difusão da civilização entre eles, e encaminhá-los para uma recepção pacífica e
voluntária da religião cristã”.508 Entre aqueles que prestaram depoimentos estavam os
secretários das três principais sociedades missionárias, a C.M.S., a Sociedade
Missionária Metodista Wesleyana, e a L.M.S., que se basearam em sua familiaridade
com uma ampla gama de comunidades de colonos britânicos e sociedades não-europeias
na África do Sul, Nova Zelândia, América do Norte, e nos Mares do Sul.509
Quaisquer que fossem as desconfianças já existentes em relação às atividades
europeias ultramarinas no final do século XVIII, agora elas tinham sido multiplicadas e
confirmadas. Coates, Beecham, e Ellis, representantes das sociedades missionárias,
foram unânimes em afirmar que “o efeito do contato europeu ocasionou, em geral, uma
calamidade aos pagãos e às nações selvagens”, tendendo “a impedir o avanço da
civilização, da educação, do comércio e do Cristianismo”.510 Nestas circunstâncias, não
é de surpreender que diante da questão do século XVIII, qual deveria ser introduzido
primeiro, o cristianismo ou a civilização, eles responderam inequivocamente, afirmando
que o cristianismo tanto poderia quanto deveria abrir caminho.511
Embora estas declarações possam ser vistas como confirmações melhor
abalizadas dos pontos de vista anteriores, elas representaram mais uma prova para a
comissão centrar-se na questão de como o conflito poderia ser minimizado, e mostraram
que os argumentos missionários começaram a tomar um rumo que apontava claramente
507
L.M.S. directors to John Philip, 9 de abril de 1819, Philip papers, MSS Afr. S. 216, fo. 70.
P.P. 1836, VII (538), e P.P. 1837, VII (425), contêm os depoimentos e os procedimentos da Seleta
508

Comissão.
Ver D. Coates, John Beecham e William Ellis, Christianity the mneans of civilization (London, 1837),
509

onde as provas missionárias também foram publicadas para um público mais amplo.
510
P.P. 1836, VII (538), Aborigines (British settlements): report from the select committee, qq. 4329-43;
P.P. 1837, VII (425), Report from the select committee on aborigines (British settlements), p. 74.
511
P.P. 1836, VII (538), qq. 4376, 4385-6.

298
para a direção dos pontos de vista de Livingstone e Wilberforce da década de 1860.
Aqui, a influência de exemplos da África do Sul e da Nova Zelândia era muito forte, e
concluiu-se que a apropriação das terras nativas e as tentativas de controlar o seu
trabalho eram a maior fonte de queixa.512 A proteção das possessões nativas e das
condições de trabalho foram sentidas (612) como uma exigência para o reforço dos
poderes dos governadores coloniais, assim como um aumento considerável no número
de funcionários coloniais cuidadosamente escolhidos, a extensão da jurisdição colonial
para além das fronteiras formais e apoio oficial aos missionários.513 Essencialmente, este
era o programa pelo qual alguns missionários, em contextos locais, como o Dr. John
Philip, no Cabo, haviam pressionado desde a década de 1820. 514 Assim como Philip,
tanto os depoentes quanto os membros da Comissão perceberam que tais medidas, por
meio da promoção da segurança e da independência nativa, em muitos aspectos
reduziam o contato entre os nativos e os colonizadores; por outro lado, segundo
argumentaram, poder-se-ia esperar um aumento dos contatos comerciais.515 Argumentos
a favor de um apoio oficial aos missionários não foram apresentados apenas porque sua
presença minimizava os problemas de contato entre aborígenes e colonos, mas porque
sem essa presença tornava-se impossível promover o comércio além de certo limite.516
Como as propostas foram concebidas para garantir que “o comércio fosse realizado a
partir de princípios verdadeiramente cristãos, [ele] poderia se tornar o meio de
comunicação mais substancialmente benéfico para as diferentes nações aborígenes do
mundo”.517 O comércio entre brancos e negros, naquele momento visto como uma
relação de troca equivalente, tendia a ser mais promissor para todos do que a agricultura
branca com mão-de-obra negra.518

512
T. F. Buxton papers, Rhodes House Library, Oxford; G. R. Mellor, British imperial trusteeship, 1783-
1850 (London, 1951), capítulo 7; W. M. Macmillan, The Cape colour question: a historical survey
(London, 1927), capítulos 10-13; idem, Bantu, Boer, and Briton: the makting of the South African native
problem (Oxford, 1963, rev. edn), p. 187-90.
513
P.P. 1836, VII (538), qq. 4350, 4375, e passim.
514
J. Philip, Researches in South Africa (2 vols., London, 1828), especialmente I, capítulo X, e II, p. 355-
61; Macmillan, Cape coloured question. Para as provas da própria mudança dos pontos de vista de Philip
a partir do impacto da experiência no campo, comparar Rev. John Philip, Necessity of divine influence: a
sermon preached before the Missionary Society... May 12, 1813 (London, 1813), com os pontos de vista
de 1820-2, Philip papers, MSS Afr. s. 216, fos. 91, 143.
515
P.P. 1837, VII (425), Report.
516
P.P. 1836, VII (538), qq. 4345-7.
517
Ibid., q. 4367.
Kitchingman papers, p. 272; Philip to Miss Buxton, 15 de março de 1832, Philip papers, MSS Afr. s.
518

219B, fo. 328.

299
A discussão sobre os resultados esperados a partir da introdução prévia do
cristianismo levou a uma direção similar. Embora, na prática, o cristianismo devesse ser
o primeiro a aparecer em cena, seus efeitos eram tais que “no momento em que o
princípio cristão começa a incidir na mente do homem, a sua condição como um ser
civilizado avança e, portanto, o cristianismo e civilização avançam pari passu”.519 O
exame da civilização que “invariavelmente se seguiu” ao cristianismo520 começou a
revelar outras tendências do pensamento evangélico, nomeadamente a adoção de uma
definição mais restrita da “verdadeira” civilização e uma ênfase sobre os seus aspectos
comerciais. Se as marcas da civilização podiam atualmente ser definidas de forma mais
ampla do que nunca, agora parecia perfeitamente possível que um povo possuísse a
maioria delas “e, ao mesmo tempo [ser] um pouco melhor do que os selvagens”.521 A
ausência de cristianismo numa cultura elevada não bastava mais para considerá-la como
bárbara; também foi se (613) tornando mais claro que o cristianismo necessitava de uma
conveniente base cultural. Após a garantia da paz, “Também é necessário... para o seu
aperfeiçoamento moral e religioso, incentivar a indústria e comércio”. Aqui, novamente,
houve uma abertura para o governo britânico agir como um complemento essencial às
sociedades missionárias: ele devia enviar “indivíduos para promover a agricultura e a
manufatura entre as tribos não-civilizadas nas fronteiras de nossas colônias”. Feito isso,
“talvez não fosse demasiado a um governo, principalmente tratando-se do Governo
britânico, proporcionar às pessoas em tais circunstâncias todas as facilidades e incentivo
para o comércio por meio da redução dos impostos... a serem pagos”.522 Deste modo, o
comércio mais livre auxiliaria na transformação “moral e religiosa”. A introdução do
cristianismo e o “aperfeiçoamento social” não estavam mais associados somente a uma
linguagem antiga, que ainda falava de compaixão ou benevolência e considerava a
expiação como injusta, mas agora também como “uma remuneração justa pela perda de
suas terras”, em outras palavras, na língua do contrato e da troca.523
Os procedimentos do Aborigines Committee sugerem que para os evangélicos a
experiência confirmou que a promoção de um sistema de relações comerciais era a

519
P.P. 1836, VII (538), q. 4383.
520
Ibid., qq. 4416, 4397.
521
Ibid., qq. 4412, 4376, 4385.
522
Ibid., q. 4375.
523
Ibid., q. 4367. Nos últimos anos, a linguagem comercial e as analogias foram mais conscientemente
desenvolvidas pelos comentadores: Rev. James Johnston (ed.), Report of the centenary conference on the
protestant missions of the world (2 vols., London, 1888), p. 111-12.

300
única maneira de organizar contatos mutuamente benéficos entre os colonos e os
nativos. Poder-se-ia esperar que o comércio seguisse direto os calcanhares do
cristianismo e, em tais circunstâncias, ele poderia ser visto como um apoio necessário.
Fora da Sede do Committee, a sociedade missionária estava desenvolvendo suas
diretrizes nesse sentido. Respondendo finalmente às sugestões de seus missionários no
Pacífico, a L.M.S. e os wesleyanos sancionaram a difusão desses desdobramentos
locais, que amarraram mais firmemente a expansão do cristianismo ao comércio.524 Em
áreas fora da atuação do Aborigines Committee, a experiência também apresentou o
mesmo equilíbrio entre comércio e cristianismo. A dimensão do tráfico de escravos na
África Ocidental continuava a alarmar os humanitários. Serra Leoa não conseguiu ser
um exemplo bem-sucedido. O esquadrão britânico contra o tráfico de escravos, as
negociações diplomáticas com as potências europeias, os tratados com os governantes
africanos locais, tiveram pouco impacto em tudo; como resultado, dizia-se, o
cristianismo “fizera incursões, mas débeis”. Por outro lado, “estes obstáculos seriam
removidos” pela promoção bem-sucedida do comércio legítimo, e a “África apresentaria
o melhor campo para os trabalhos missionários cristãos que o mundo jamais vira”.525
O autor destas palavras foi T. F. Buxton, líder humanitário, presidente do
Aborigines Committee, e principal porta-voz do movimento abolicionista. Segundo a
literatura que trata de sua carreira, a preocupação de Buxton com o Committee em pelo
menos dois anos parlamentares (1836-7) foi vista como pouco mais que um desvio da
(614) causa abolicionista. As preocupações humanitárias de Buxton nunca receberam a
devida atenção. Diferentemente, seus planos publicados em 1839-40 para eliminar o
tráfico de escravos, num contexto de agitação popular, contou com o respaldo do
governo para efetuar a Expedição ao Níger (1841-2). Seu plano consistia em civilizar a
África por meio da promoção do comércio legítimo, baseado na agricultura bem no
interior do continente africano.526 Da perspectiva do desenvolvimento das relações entre
cristianismo e comércio, todavia, o mais marcante é a interação entre os diferentes
aspectos das várias atividades de Buxton. Buxton chegou à convicção de que, se o
comércio legítimo fosse organizado adequadamente, o tráfico de escravos não
sobreviveria à sua concorrência. Isso ocorreu no verão de 1837, no momento em que ele

524
Gunson, p. 115-19, 132-6, e o capítulo 14, “The gospel of civilization”.
525
T. F. Buxton, The African slave trade (London, 1839, 2nd edn), p. xi-xii.
526
J. Gallagher, “Fowell Buxton and the new African policy, 1838-42”, Cambridge Historical Journal, X
(1950), p. 40; Curtin, p. 299; Macmillan, Bantu, Boer, and Briton, p. 186-7; P. M. Pugh, Calendar of the
papers of Sir T. F. Buxton, 1786-1845: List and Index Society: special series, v. 13 (London, 1979).

301
terminou de escrever o Report do Aborigines Committee. Esse informe trazia muitas
recomendações dos missionários, e Buxton atribuía-lhe grande importância por
representar uma espécie de diretriz.527 Evidentemente, não era algo a ser rapidamente
desprezado; as recomendações seriam utilizadas para influenciar o planejamento do
Oeste Africano, no qual ele vinha trabalhando.
Embora nos pormenores suas ideias tenham se alterado, e constantemente
ecoado as observações produzidas por escritores anteriores sobre a África Ocidental528, a
coerência do plano de Buxton sobre o Níger deveu-se muito ao Aborigines Report, de
1837. Entre outras coisas, Buxton argumentou que o “Governo deve assumir toda a
responsabilidade e despesa de preservar a paz, e assegurar a proteção necessária para os
novos assentamentos britânicos na África”.529 Era da maior importância que os
missionários fossem fixados em todos estes centros de comércio legítimo como agentes
de instrução cristã, prosperidade material e civilização. Para justificar esses argumentos,
Buxton citou extensivamente as provas do Aborigines Committee.530 Não é de admirar
que a C.M.S. associou-se estreitamente ao empreendimento do Níger. Beecham, da
W.M.M.S., impressionado com a recepção de suas ideias pelo Committee de Buxton,
em 1837, também apoiou-o neste momento, como fizeram outras sociedades
missionárias.531 Deste modo, os apoiadores dos missionários aglutinaram-se sob a
bandeira do comércio legítimo. Homens como Buxton eram encantadores:
impressionados com as evidências missionárias fornecidas ao Committee, em 1837, eles
acreditavam que não se poderia encontrar naquele momento apoiadores confiáveis deste
nível.
Análises sobre a mudança das circunstâncias nas áreas de colonização branca, e
em condições tão distintas como era o caso da África Ocidental e do Pacífico,
apontaram na mesma direção. A combinação intencional de comércio legítimo e
trabalho missionário antes de tudo oferecia uma melhor perspectiva de paz, segurança e
relações civilizadas entre negros e brancos.532 Essas conexões sugeridas por eventos
527
C. Buxton (ed.), Memoirs of Sir Thomas Fowell Buxton, Bart. (London, 1882), p. 184-5.
528
Curtin, p. 300.
529
T. F. Buxton, The remedy (London, 1840), citado em Gallagher, p. 43.
530
T. F. Buxton, The African slave trade and its remedy (L ondon, 1840, 2nd edn), capítulo 6, “The
elevation of native minds”, p. 502 ff.

N. do T. Wesleyan Methodist Missionary Society.
531
Gallagher, p. 49.
532
P.P. 1842, XI (551), Report from the select committee on the West Coast of Africa, qq. 3586-722,
6471-539, 7688-725.

302
(615) nas franjas da atividade ultramarina britânica também foram confirmadas por
outros meios. Entre os anos difíceis de 1837-42, a situação de um grande número de
cidades industriais da Grã-Bretanha estava extremamente dura; a recuperação e a
expansão do comércio exterior do país pareciam oferecer maiores esperanças para
reviver a indústria e o desenvolvimento. Os evangélicos geralmente aplicavam as
mesmas fórmulas às questões domésticas e às missões estrangeiras, e os escritos de
Buxton sugeriam que ele não era uma exceção neste caso. Seria injusto que “um
comércio legítimo com a África... só fosse... o responsável pela civilização, pela paz e
pelo cristianismo” dos negros: ele também deve oferecer ajuda aos tecelões de teares
manuais. “Qualquer expansão... do comércio com a África... [também] causará um
aumento correspondente na demanda por mão de obra de uma classe de indivíduos que
ultimamente tem sido verdadeiramente representada como aquela que sofre as maiores
privações no conjunto de operários ligados ao comércio de algodão”.533 Civilização,
cristianismo e comércio estavam à beira de tornarem-se idênticos na concepção
evangélica, não apenas no exterior, mas também na metrópole.
Outra alteração foi necessária para tornar possível a identificação do comércio
com o cristianismo, tal como pensada por Samuel Wilberforce, Livingstone, ou um
estrategista missionário de meados do século, como o Secretário da C.M.S., Henry
Venn. Para os evangélicos do final da década de 1830 e início da década de 1840, o
Estado ainda tinha um papel importante a desempenhar no apoio à verdadeira religião,
ao favorecer as condições de paz e legalidade no âmbito das quais os missionários
poderiam atuar e fazer o comércio legítimo prosperar. Vinte e cinco anos depois, não
havia somente a forte convicção de que comércio e cristianismo se reforçavam
mutuamente; mais significativa era a expectativa de que evangélicos e comerciantes
poderiam atuar conjuntamente e não serem freados pela intervenção do governo.
A teologia providencialista certamente teve uma importância muito limitada
nesta mudança, ainda que fosse capaz de englobá-la. Por um lado, a mudança pode ser
atribuída a um reconhecimento silencioso por parte dos evangélicos de um fait
accompli. Especialmente após o fracasso da Expedição ao Níger, nenhum governo da
metrópole estava preparado para apoiar a expansão do empreendimento missionário, em
associação com o comércio legítimo na África tropical. Depois da expansão
generalizada da influência ou do controle territorial na década de 1840, seguiram-se
numerosos movimentos imperiais para abandonar responsabilidades estranhas ou
533
T. F. Buxton, The African slave trade (London, 1839, 2nd edn), p. 195, 233.

303
onerosas. Os protestos evangélicos foram insuficientes para deter o processo pelo qual
os poderes locais do self-government foram ampliados nas colônias dos colonizadores
brancos, e as advertências do Committee de 1837 foram amplamente ignoradas. A
mudança foi ainda reforçada pela constante abolição das restrições ao comércio e pela
recusa do governo em fazer concessões de proteção, especialmente no caso das Índias
Ocidentais, que poderiam ter encorajado determinados empreendimentos evangélicos. A
tendência dos governos no sentido de neutralidade em questões religiosas domésticas
também inevitavelmente diminuiu as expectativas evangélicas.
Se o governo estava revelando má vontade, então os evangélicos tinham que
procurar em outro lugar. E eles o fizeram com otimismo crescente porque, mais uma
vez, a experiência, em vez da teologia, obrigou-os a isso. O número de nativos
convertidos havia crescido significativamente por volta de 1850. Buxton tinha
antecipado essa possibilidade em 1839; uma década mais tarde, Henry Venn em seu
discurso no jubileu da C.M.S. (616) confirmou a sua importância.534 Na África
Ocidental, acima de tudo, o problema do recrutamento de missionários e os efeitos da
mortalidade europeia levaram os organizadores missionários a avaliar a contribuição
dos nativos convertidos para a organização e o apoio de suas próprias igrejas. Nas
décadas de 1840 e 1850, africanos educados pelas missões passaram a desempenhar
papéis significativos como ministros, enquanto outros, especialmente os comerciantes,
financiaram grande parte e trabalharam pelo funcionamento de suas igrejas. As
sociedades missionárias da metrópole apoiaram entusiasticamente o crescimento dessas
comunidades comerciais cristãs africanas.535 No sul do continente, Livingstone também
tornou-se consciente do potencial de uma aliança entre comércio e cristianismo por
meio da experiência, levando-o a concluir que “todos os africanos estão profundamente
imbuídos do espírito do comércio”.536 Na pessoa do convertido e do comerciante
africano estava a resposta ao sentimento de Livingstone de que grande parte do futuro
dependia do que surgisse do envolvimento de “missionários e comerciantes cristãos
durante o ano todo no interior do continente”.537 O comportamente observado em

534
Ibid., p. xi-xii; W. Knight, Memoir of the Rev. H. Venn: the missionary secretariat of Henry Venn,
B.D. (London, 1880), p. 277.
J. B. Webster, “The Bible and the plough”, Journal of the Historical Society of Nigeria, II (1963), 418-
535

34; J. F. A. Ajayi, “Henry Venn and the policy of development”, ibid., I (1959), 331-42; idem, Christian
missions in Nigeria, 1841-1891 (London, 1965), capítulos 3-6.
536
I. Schapera (ed.), Livingstone’s missionary correspondence, 1841-1856 (London, 1961), p. 301, 12 de
outubro de 1855.
537
Ibid., p. 185, 17 de outubro de 1851.

304
Bethelsdorp no início na década de 1820 parecia possível de ser difundido em muitas
outras partes do continente na década de 1850.

VI

Na concepção dos evangélicos de meados do século XIX, a associação de


cristianismo e comércio ocorreu a partir do modelo da teologia providencialista, mas ela
não pode ser explicada de modo conveniente “essencialmente em termos” desses
princípios.538 A compreensão de que cristianismo e comércio apoiavam-se mutuamente,
difundiam-se em conjunto, se auto-sustentavam, e traziam todos os elementos essenciais
à “civilização”, foi alcançada apenas gradualmente. Tal compreensão derivava tanto da
teoria do desenvolvimento histórico por estágios, bem como da experiência de
sociedades coloniais e metropolitanas acumulada ao longo de, pelo menos, setenta anos.
Ela foi afetada pelas mudanças nas relações entre evangélicos e governos. Ela exerceu
grande atração principalmente naqueles que pensavam sobre a África, mas muito pouco
naqueles cujo foco era a Índia ou o Oriente, embora, na década de 1850, houvesse uma
tendência crescente por lá de questionar a estratégia educacional aplicada nos vinte anos
anteriores. Ela ganhou um crédito adicional a partir do crescimento numérico e da
natureza dos nativos convertidos, principalmente na África.
No entanto, apesar de reconhecer a ampla adoção do slogan na década de 1850,
é evidente, a partir do que já foi dito, que a associação do comércio com o cristianismo
nunca foi completa. Isso não se deveu apenas à sua aplicabilidade (617)
geograficamente restrita539, mas a certos comércios, para não mencionar métodos de
negociação, sempre considerados como corruptos. Obviamente, agora o tráfico de
escravos estava indisponível; de modo que, cada vez mais, restava o tráfico de armas,
ópio e álcool. Estes três foram frequentemente incentivados pelos governos, tendo em
vista tanto os seus efeitos comerciais cumulativos quanto as receitas básicas. Na
verdade, eles se tornaram mais uma razão para a diminuição do desejo dos evangélicos
em serem assistidos pelo governo, cujo pico se dera por volta de 1840; sua continuada
expansão posterior no século foi uma lembrança persistente das imperfeições até mesmo
das ações mais promissoras. Eventualmente, a impotência dos missionários frente a

538
Stanley, p. 93.
Stanley também salientou que o cristianismo e o comércio não estiveram unidos no contexto da
539

América do Sul, ibid. p. 94.

305
esses comércios levou os apoiadores das missões, que se orgulhavam de seu realismo, a
argumentar que tal comércio afinal possuía muito pouca importância. Robert Cust, por
exemplo, um escritor prolífico e respeitado em assuntos missionários e muito influente
dentro da C.M.S., criticou incisivamente aqueles que polemizaram “sobre o cultivo da
papoula e a fabricação de ópio, a exportação de rum e gin, e a imoralidade do soldado
britânico”. Estes eram assuntos “que não possuem relação direta com a evangelização
do mundo”; em vez disso, a preocupação com eles só serviu para tornar impopular a
causa missionária.540
Que tais formas de troca poderiam ser vistas por volta da década de 1880 como
irrelevantes para a estratégia missionária é evidenciada pela crença de que a união
produtiva do cristianismo com o comércio não só era imperfeita, mas também de curta
duração. Cust não estava argumentando contra tais causas, simplesmente porque ele não
gostava de seus partidários; ele sentiu que era “inútil lutar contra a natureza, o livre-
comércio, e a liberdade de cada homem de controlar suas próprias ações diante das
coisas não proibidas pelas leis das nações civilizadas”. Como seus próprios escritos
demonstraram, havia pouca distância entre esta posição e o renascimento dos
argumentos de que as missões deviam evitar cuidadosamente toda atividade econômica.
“Não é sábio”, disse ele, “para um missionário se envolver com o comércio, ou a
manufatura, ou a agricultura: isso retira-lhe a espiritualidade”.541 O apoio evangélico no
início e em meados do século XIX ao bem-ordenado, aceitável, comércio “legítimo”
descendia muito diretamente da luta contra os comércios considerados como
inaceitáveis, porque eles ameaçavam a possibilidade de uma existência verdadeiramente
cristã. Como as últimas formas de troca deixaram de ter importância, então,
naturalmente ocorreu a promoção de substitutos dignos.
A decisão da principal corrente do pensamento missionário de se afastar do
comércio ganhou força na década de 1860 nos locais em que as esperanças de união
haviam sido maiores. Talvez, o caso mais dramático tenha sido o colapso dos próprios
planos de Livingstone. “Voltarei à África para tentar abrir um caminho para o comércio
e o cristianismo”, disse à sua plateia do Senate House, na Universidade de Cambridge,
em dezembro 1857.542 Tal como muitos pensavam, em breve foi criada a Missão das
Universidades para a África Central com o intuito de auxiliá-lo; mas o empreendimento

540
R. N. Cust, Notes on missionary subjects (London, 1889), p. 118.
541
Ibid., p. 112, 42.
542
Cambridge lectures, p. 24.

306
(618) interior adentro do Zambeze entrou em colapso, e em meio a recriminações
mútuas os missionários estabeleceram-se em Zanzibar.543 As aberturas prometidas na
África Central não se concretizaram, e em grande parte da África Oriental a ausência de
plantações comerciais, como o óleo de palma do lado ocidental, fizeram com que a
ênfase no comércio parecesse fora de lugar. Mesmo na costa oeste, o progresso não
correspondeu às expectativas. Em outras partes do império a experiência se repetiu: em
1860, nas Índias Ocidentais havia poucos sinais de sociedades cristãs, livres e prósperas
tal como os evangélicos idealizaram por muitos anos. Na década de 1870, com os
contratempos da atividade econômica metropolitana e o agravamento das condições
comerciais, até mesmo o comércio legítimo frequentemente se tornou uma fonte de
conflito e tensão entre europeus e não-europeus. Como resultado, a discussão sobre
“Comércio e Missões Cristãs”, na Conferência Missionária de Londres, de 1888,
ocorreu cheia de reservas, com os participantes conscientes de que muito mais
frequentemente do que a experiência havia mostrado, o comércio e o cristianismo
fracassaram em favorecer um ao outro.544 A crítica aos padrões dos nativos convertidos
começou a crescer em toda parte, e era frequentemente dirigida a seu envolvimento com
as atividades comerciais.
O fracasso do comércio em se materializar e do cristianismo para avançar de
acordo com as expectativas foi associado tanto à crítica das estratégias missionárias
existentes como à busca de alternativas. A reação profunda contra os métodos
missionários que envolviam qualquer medida de ocidentalização, e o crescimento de
organismos missionários marcados pela simplicidade de organização, intensa fé pessoal,
e um compromisso com a evangelização itinerante, foram as características dos anos
1865-1890. As sociedades mais antigas, como as wesleyanas e a C.M.S. estavam
profundamente divididas em decorrência desses desdobramentos.545
Certamente, é possível ver essas mudanças como estreitamente ligadas às
transformações decisivas na opinião teológica. Não há dúvida de que o
providencialismo e racionalidade, que tanto caracterizaram a teologia evangélica do
final do século XVIII foram demolidas. Fontes poderosas de uma nova inspiração, não
somente para as missões estrangeiras, mas para os evangélicos em geral, foram os
pensadores pietistas alemães, cuja influência tem sido estudada em conexão com as
543
O. Chadwick, Mackenzie’s grave (London, 1959); D. R. Neave, “Aspects of the Universities’ Mission
to central Africa, 1858-1900” (York, M. Phil. thesis, 1975).
544
Report of the centenary conference, 1, 111-37.
545
Porter, “Evangelical enthusiasm”.

307
origens da China Inland Mission, de Hudson Taylor, fundada em 1865, e os
movimentos revivalistas ou de santidade influenciados pelos americanos, cujo impacto
começou a ser muito acentuado a partir de 1870.546 No entanto, se o historiador se
pergunta em que circunstâncias as novas ideias foram capazes de criar raízes e florescer,
a influência das condições materiais e sociais começa a despontar.
A gênese da China Inland Mission é instrutiva aqui. A expansão do trabalho
missionário na China no século XIX começou a partir do Tratado dos Portos,
estabelecido em 1842 e 1858-1860, e esteve em grande medida associado aos
privilégios comerciais. No entanto, é provável que na China antes de tudo os
missionários estavam (619) conscientes dos obstáculos que esses privilégios criavam
para o evangelismo, já que estavam ligados à conquista e ao comércio de ópio. A
extensão das liberdades missionárias pelo Tratado de Tientsin (1858) e pela Convenção
de Pequim (1860), após a segunda Guerra do Ópio, geraram uma onda de otimismo;
todavia, nem o comércio nem evangelismo se expandiram como era esperado. Em vez
disso, o anti-estrangeirismo renasceu, e com isso a oposição ao cristianismo e às
missões ocorreu numa escala há muito tempo desconhecida.547 Neste contexto, a
estratégia da C. I. M., que consistia em abandonar todas as ligações com as atividades
ocidentais e sublinhar sempre que possível sua identificação com as formas chinesas,
possuía um sentido prático enorme independente da sua justificação teológica
específica.
Depois de 1870, não há necessidade de multiplicar os exemplos de missões cujos
membros e apoiadores rejeitaram o slogan de meados do século; na verdade, a maior
dificuldade, de longe, está em encontrar evangélicos que nutrissem confiança na
associação benéfica de cristianismo e comércio. Para as missões de fé, a dissociação dos
dois era imperativa; planos para “evangelizar o mundo nesta geração” necessariamente
envolviam não somente grande pressa, mas dirigiam sua atenção para áreas que nunca
tiveram a oportunidade de ouvir a mensagem do Evangelho. Esperava-se uma resposta
mais rápida daqueles locais em que os europeus ainda nunca haviam entrado em
contato. Um panorama teológico comum não era um pré-requisito para abandonar a

546
Porter, “Cambridge, Keswick, and late nineteenth century attitudes”; B. Stanley, “Home support for
overseas missions in early Victorian England, c. 1838-1873” (Cambridge, Ph.D. thesis, 1979), capítulo 7,
“The origins of ‘faith’ missions”.
547
P. A. Cohen, China and Christianity: the missionary movement and the growth of Chinese anti-
foreignism, 1860-1870 (Cambridge, Mass. 1963); idem, “Christian missions and their impact to 1900”,
The Cambridge history of China, X. Late Ch’ing, 1800-1911, ed. J. K. Fairbank; D. Twitchett
(Cambridge, 1976), p. 543-90.

308
sabedoria convencional de meados do século. Os Batistas e os Plymouth Brethren no
Congo tinham suas opiniões ecoadas pelos High Anglicans no U. M. C. A. ou nas
missões de Oxford e Cambridge para a Índia. Livingstone tinha valorizado em parte o
comércio para “que rapidamente as tribos percebessem a sua dependência mútua. Ele
rompia o isolamento soturno do paganismo”. 548 Todavia, para Chauncy Maples ou o
Bispo Weston no leste da África, o isolamento passou a ser vital. “Estamos nos
tornando muitos no mundo, e há muitos civilizados aqui para o meu gosto. É necessário
criar um distanciamento real das diversões europeias, da sedução dos navios a vapor,
etc.”, escreveu Maples. Além disso, por ser uma distração, o comércio e contato com os
europeus eram degradantes em todas as suas formas.549 Menos eruditos, os anglicanos
mais envolvidos com o trabalho de campo, como o bispo Knight-Bruce, no sul da
África, se inclinaram para uma visão semelhante.550
Finalmente, podemos novamente observar não somente como as condições nos
campos missionários, mas as circunstâncias metropolitanas também reforçaram a
mudança de direção. Alguns missionários foram, sem dúvida, influenciados pela
crescente convicção de que as características raciais dos não-europeus significavam que
as mudanças religiosas e culturais nunca iriam seguir o caminho já trilhado pelas
sociedades brancas. Os historiadores também argumentaram que os estereótipos raciais
refletiram o desenvolvimento (620) na Grã-Bretanha de uma sociedade dividida
rigidamente em classes.551 Diante de tal situação, talvez fosse natural que as noções de
troca comercial equânime devessem ceder lugar a uma ênfase maior na gestão europeia
ou no emprego de mão-de-obra não-europeia, e a teologia fosse convocada para
dignificar um novo conjunto de relações econômicas. Todavia, alguns trabalhos recentes
parecem sugerir que a influência da classe e a persuasão intelectual auxiliaram o
declínio do “comércio e cristianismo” de maneiras mais sutis. É surpreendente que na
Índia, onde a justaposição dos dois sempre foi mais fraca, as missões também atraíram
desde o início uma alta proporção de graduados e outras pessoas de status social
significativo. Isto continuou a ser verdadeiro para a Índia, e depois de 1870 se difundiu

N. do T. Irmãos (no sentido de integrantes de uma ordem religiosa) de Plymouth foi um movimento
cristão evangélico que se originou em Dublin, na Irlanda, no final da década de 1820.
548
Missionary correspondence, p. 301.
E. Maples, Chauncy Maples (London, 1897), p. 350, 31 de agosto de 1893, e p. 354; H. M. Smith,
549

Frank Bishop of Zanzibar: life of Frank Weston, D.D., 1871-1924 (London, 1926), p. 24, 41, 96-7, 242.
550
G. W. H. Knight-Bruce, Memories of Mashonaland (London, 1895), p. 108-10.
551
A. Lorimer, Colour, class and the Victorians: English attitudes to the negro in the mid-nineteenth
century (Leicester U.P., 1978).

309
muito mais amplamente em todo o mundo missionário.552 Mesmo quando este não era o
caso, e os missionários ainda eram recrutados das “classes média baixa e dos artesão”,
os padrões de recrutamento e de formação eram cada vez mais no sentido de encorajar
apenas aqueles que compartilhavam ou desejavam participar do “ethos essencialmente
não-comercial do clero de Cheltenham” e “do establishment clerical”.553

VII

É conveniente encerrar com uma ressalva. A variedade da experiência e dos


escritos missionários, o volume e a variedade do apoio ao evangelismo, e a consequente
riqueza de material para os historiadores, criam dificuldades de muitos tipos. É
necessária uma seleção implacável, e exceções a um padrão tal como o esboçado neste
artigo são susceptíveis de aparecerem em grande número. Isto particularmente ocorre
em decorrência de termos como civilização, comércio, e até mesmo cristianismo, terem
sido tratados com a frouxidão inevitavelmente associada ao uso generalizado e comum.
A periodização é especialmente difícil, dada a sobreposição entre diferentes gerações de
missionários ou membros de comitês metropolitanos, e a distância inevitável entre os
teóricos metropolitanos e evangelistas isolados lutando com seus problemas do dia-a-
dia. Samuel Marsden que patrocinou sua estratégia de “primeira civilização” na Nova
Zelândia na década de 1830, e os empresários escoceses e missionários que sustentaram
a African Lakes Company depois de 1875, mostram como a natureza e o ritmo das
grandes mudanças no pensamento metropolitano ou a retórica continuaram a coexistir
de modo muito discordante nos indivíduos e nas circunstâncias locais.554
Entretanto, parece razoável concluir que a associação de (621) cristianismo e
comércio, embora muitas vezes considerada como uma característica dos vitorianos, foi
de fato apenas lentamente desenvolvida por eles, e declinou muito mais rapidamente do
que surgiu. Sua ascensão e queda foram decisivamente influenciadas por uma série de
considerações, entre as quais as visões teológicas parecem ter tido pouca influência.

552
S. Piggin, “The social background, motivation, and training of British protestant missionaries to India,
I789-I858” (London, Ph.D. thesis, 1974), capítulo 1.
553
C. P. Williams, “‘Not quite gentlemen’: an examination of ‘middling class’ protestant missionaries
from Britain, c. 1850-1900”, Journal of Ecclesiastical History, XXXI (1980), 301-15.
554
Rev. J. B. Marsden, Memoirs of the life and letters of the Rev. Samuel Marsden (London, 1858); The
letters and journals of Samuel Marsden, 1765-1838, ed. J. R. Elder (Dunedin, 1932); H. W. Macmillan,
“The origins and development of the African Lakes Companly, 1878-1908” (Edinburgh, Ph.D. thesis,
1970); J. McCracken, Politics and Christianity in Malawi, 1875-1940 (Cambridge, 1977).

310
Todavia, também está claro que a mudança das convicções teológicas forneceram uma
fonte independente de inspiração, e que a atividade missionária não acompanhou
perfeitamente a expansão da Grã-Bretanha como uma sociedade comercial e industrial.
Ainda é necessário realizar um relato da expansão missionária no século XIX para situá-
la no contexto da vida intelectual e material.

311

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