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Macunaíma: representações sociais brasileira

Alisson Geovani Pinheiro do Vale

É sabido que a instituição cultural brasileira se deu por diversas influências ao


longo dos tempos, nesse sentido, a presente análise visa apresentar o cenário cultural
abordado por Mário de Andrade em “Macunaíma: o herói sem nenhum caráter”, sob
uma perspectiva antropológica social. Vale mencionar, que utilizar-se-á o texto de
Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”, para servir como base para as
discussões levantadas. Antonio Candido no prefácio da obra base para este trabalho
afirma que:

“o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de


todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a
princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão
iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se
dissolverem nas características gerais de sua época”. (HOLANDA,
2014, p. 09).

Tomando como base o pressuposto acima, temos na célebre obra de Mario de


Andrade, um herói que se dissolverá na tríplice descendência brasileira, tornando-se
representante de seus costumes, crenças e características. Publicado em 1928,
Macunaíma não representa apenas um indivíduo, mas todo o povo brasileiro. Tendo em
vista a ausência de uma real identidade cultural brasileira nas literaturas, Mario de
Andrade busca apresentar os diversos Brasis de modo autêntico.
Como já mencionado, nosso herói é a representação fiel das três etnias
fundadoras da cultura brasileira. Para tanto, Mario de Andrade escreve “no fundo do
mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente” (2019, p. 21), refletindo assim a
nossa origem indígena. Importante salientar que posteriormente descreve as
características físicas do herói, “preto retinto e filho do medo da noite” revelando-nos a
segunda “raça” formadora do povo brasileiro. Além disso, em seguida, após banhar-se
em águas encantadas Macunaíma sofre processo de metamorfização, tornando-se
homem branco de olhos azuis, remetendo, assim, ao europeu. Nesse cenário, vemos que
o personagem principal é o produto da mestiçagem brasileira, sendo esta, o principal
elemento fixador de uma pátria longe de suas origens territoriais.
Nota-se que a figura do índio é sobrecarregada do estereótipo de preguiçoso,
esse aspecto é revelado em toda a obra quando o narrador menciona que durante todo o
dia Macunaíma proferia “Ai! Que preguiça!...”, referente a essa preguiça, percebemos
ainda o processo de modernização sofrido pelo índio ao entrar em contato com a cidade
e os seus: “Virou Jiguê na máquina telefone, ligou prós cabarés encomendando lagosta e
francesas” (2019, p. 52). Nesse sentido, vemos que essa característica tão associada ao
indígena não se limita somente a ele. HOLANDA sugere “que todo o fruto de nosso
trabalho, ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de
outro clima e de outra paisagem”, como destaca, para um bom português ou espanhol,
parece bem mais nobre uma excelente ociosidade do que uma luta diária para conquistar
o pão.
Outro fator de relevância a destacar é a habilidade e peripécia de Macunaíma em
superar os obstáculos que lhe aparecem no decorrer do enredo. Nosso herói sem caráter
não se deixava levar pelas dificuldades que apareciam, mas utilizavam-na para
impulsionar-se ao seu objetivo, decerto, era o aventureiro destacado em “Raízes do
Brasil”, aquele que “onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos,
sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos
projetos vastos, dos horizontes distantes” (2014, p. 50). Em contrapartida, tem-se o
outro conceito apresentado por Sérgio Buarque de Holanda, o trabalhador, aquela que
primeiramente enxerga o problema a vencer, não a conquista a alcançar. Para tanto,
podemos atribuir este conceito ao “mano” de Macunaíma, Jiguê, pois vemos em toda
narrativa que ele era o responsável por trazer caça e pesca para a família, além de,
contrário ao herói, prender-se a uma dificuldade por vez tentando superá-la.
Vale salientar que a estrutura organizacional brasileira evolui da ordem
doméstica para o regime industrial, nesse sentido, surge a integração do Estado. Como
destaca Holanda, ambos sistemas são descontínuos e até opostos, é só por meio da
transgressão com a ordem familiar que o Estado pode existir. Referente a este
rompimento o autor de “Raízes do Brasil” afirma:

“Foi o moderno sistema industrial que, separando os empregadores


dos empregados nos processos de manufatura e diferenciando cada
vez mais suas funções suprimiu a atmosfera de intimidade que reinava
entre uns e outros e estimulou os antagonismos de classe. O novo
regime tornava mais fácil, além disso, ao capitalista, explorar o
trabalho de seus empregados, a troco de salários ínfimos”.
(HOLANDA, 2014, p. 170)
Para tanto, vê-se na carta redigida por Macunaíma às Icamiabas certo
distanciamento da população em geral com os representantes sociais, econômicos e
religiosos, integrando, assim, a hierarquia estatal do sistema industrial. Nosso herói
escreve:

Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos


e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores,
também chamados de políticos. Com este apelativo se designa uma
raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os
diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade
incomparável da audácia, da sapiência, da honestidade e da moral; e
embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais
uirauaçus e muito pouco têm de humanos. Obedecem todos a um
imperador, chamado Papai Grande na gíria familiar, e que demora na
oceânica cidade do Rio de Janeiro – a mais bela do mundo, na opinião
de todos os estrangeiros, e que por meus olhos verifiquei.
(ANDRADE, 2019, p. 95)

Nesse trecho percebemos a hierarquia existente no Estado e o distanciamento


com qualquer relação familiar, pois diferente do homem cordial apresentado por Sérgio
Buarque de Holanda, o Estado rompe com certas vontades particularistas. Vemos essa
diferença explicitamente quando Macunaíma é enganado pelo teque-teque, onde este,
vende para o herói uma micura que ao fazer as necessidades sai prata, utilizando de
vocativos de tratamento que remetem a uma certa aproximação entre os interlocutores
para assim, conquistar a confiança do protagonista e realizar a venda.

É de suma importância mencionar o conceito de finis operantes exposto por


Sérgio Buarque de Holanda, pois este se faz bastante presente em toda a obra de Mário
de Andrade. Segundo Holanda, “no trabalho não buscamos senão a própria satisfação,
ele tem seu fim em nós mesmos e não na obra”. (2014, p. 186). Nesse cenário vemos
que nossas atitudes perante o trabalho sempre é buscando um interesse próprio, e não o
trabalho em si. Percebe-se essa característica apontada por Holanda em toda a essência
de Macunaíma, onde o herói faz todo o esforço para recuperar a muiraquitã, pensando
somente em seu bem-estar e deleite.

Por fim, vale destacar a religiosidade presente em Macunaíma. A busca pela


muiraquitã, além de representar, como já apresentado, a busca pela identidade, pode ser
interpretado ainda pela crença em objetos míticos e ídolos. Essas crenças remetem tanto
aos indígenas como ao catolicismo. De fato, Sérgio Buarque de Holanda afirma que a
sociedade brasileira é formada pela mistura de crenças e misticismos. Nesse sentido, o
final do livro onde narra a metamorfose de Macunaíma em estrela, além de ser um fim
poético, remete, principalmente, a cultura religiosa dos índios e a crença nos astros.

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