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Sacramento Ao Pé Do Mar: Batismo de Africanos Na Freguesia Da Conceição Da Praia, Bahia. 1700-1751
Sacramento Ao Pé Do Mar: Batismo de Africanos Na Freguesia Da Conceição Da Praia, Bahia. 1700-1751
Recebido 15/07/2013
Aprovado 10/12/2013
Abstract: This article examines the African population baptized in the parish of
Conceição da Praia in the city of Salvador, during the first half of the eighteenth
century. This period is characterized by the substantial increase of the slave trade in
Africa, notably West Africa, generically called mines, which replaced the West African
Central (generically called Bahia Angolas). Although Salvador primarily as scale of the
slave trade to the region of the mines, this is the largest consumer of slaves from Africa
at the time, the city of Bahia was the great African city of Portuguese America in the
period. Lack of books marriage and death becomes even more valuable time these
records, which show the strong presence of women (in opposition to the dominant
model of demographics African slave) and the unusual participation of African slaves as
masters of other African slaves. Finally, the town of Praia da Conceição was preferred
by the seafarer as living and working conditions, including working in the Atlantic
market of captives.
Keywords: African - City of Bahia - XVIII Century.
∗
Doutor em História pela UNICAMP. Prof. Adjunto do Departamento de História da UFBA. E-mail:
carlos.libano@terra.com.br
* * *
Conceição da Praia era das freguesias mais antigas da cidade. Fundada no ano de
1623, durante o bispado de D. Marcos Teixeira,1 nela foi construída a mais antiga igreja
em pedra e cal da cidade.2 No século XVIII era a área comercial por excelência da
cidade. Ali ficava a Alfândega, ponto obrigatório de chegada de todos os produtos
importados – incluindo escravos – que entravam na cidade. Era também onde se situava
1
Para uma visão em detalhes de Salvador no século XIX ver NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez
freguesias da cidade do Salvador. Aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 1986. p. 35.
2
Geraldo Loyola afirma que esta primeira igreja, construída em pedra, na época de Tomé de Souza, na
beira do mar, depois afastada por sucessivos aterros, não desapareceu para dar lugar a colossal Conceição
da Praia, terminada em 1765, mas foi oculta durante séculos dentro da nova. Este o argumento central de
seu livro. MARTINS, Geraldo Ignácio Loyola Sodré. Nossa Senhora da Conceição da Praia, 1765:
construção ou ampliação? Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1985.
3
Sobre a Carreira das Índias ver LAPA, José Roberto de Amaral. A Bahia e a Carreira da Índia. São
Paulo: Hucitec/Edunicamp, 2000.
4
Esta descrição tem por base o relato de VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII.
Salvador: Itapuã, 1969. V. 1 ( mapa entre as páginas 12 e 13).
5
No governo de Dom Rodrigo José de Menezes foi iniciada uma muralha que conteria os deslizamentos
da parede da montanha, mas nunca foi concluída. VILHENA, Luís dos Santos. Op. Cit., p. 12.
* * *
6
Kátia Matoso nos anos 1980 encontrou esquecidos nos porões do Mercado Modelo – que hoje ocupa o
prédio da antiga Alfândega – os livros de registro de entrada e saída de mercadorias. Infelizmente
somente sobreviveram a partir do final do século XVIII.
7
Certa vez um escravo crioulo da Ribeira enviou uma correspondência ao Governador da Capitania
conseguindo sua transferência para outro serviço mais leve, pois aquele, na visão da autoridade, era
próprio para africanos não negros “nascidos na terra”. Relação da Bahia, Códice 637, L 9, 17/11/1744,
Arquivo Nacional.
8
Para a presença dos jejes no Corpo Santo ver PARÉ, Nicolau, A formação do candomblé: história e
ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Unicamp, 2006. p. 82-90.
9
FRANÇA, Padre Gonçalo Soares de. Dissertações da história eclesiástica do Brasil (1724). Sociedade
de Geografia de Lisboa, Manuscritos reservados 1-C-147, cf. SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia
1684-1745. In: ___, Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. p.174.
10
Para um artigo recente sobre compadrio de escravos ver MACHADO, Cacilda. As muitas faces do
compadrio de escravos: o caso da freguesia de São José dos Pinhais (PR) na passagem do século XVIII:
para o XIX. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, p. 49-77, jul-dez. 2006. Ver também
FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal. Família e compadrio entre escravos na freguesia de
São José do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). 2000. Dissertação (Mestrado em
História Social) - Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, Rio
de Janeiro, 2000 e NEVES, Maria Rodrigues. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em
São Paulo no século XIX. In: NADALIN, Sérgio Odilon, MARCÍLIO, Maria Luiza (Orgs.). História e
População: estudos sobre a América Latina. Belo Horizonte: Seade/ABEP/Iuspp, 1990. p.240-249.
BOTELHO, Tarcísio, Batismo e compadrio de escravos: Montes Claros, Minas Gerais, século XIX.
Lócus, UFJF, Juiz de Fora, v. 3, n. 1, p. 108-115, 1997.
15
Para os africanos jejes batizados na freguesia da Sé ver SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Instruído na
fé, batizado em pé: batismo de africanos na Sé da Bahia na 1ª metade do século XVIII 1734-1742. Afro -
Ásia, Salvador, n. 39, p. 79-113, 2009.
16
Para o tráfico em direção ao Maranhão e Pará na virada do XVII para o XVIII ver artigo de
CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do atlântico equatorial: tráfico negreiro para os estados do
Maranhão e Pará. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, p. 79-114, jul-dez de 2006.
17
SCHWARTZ, Stuart. Alforria na Bahia 1684-1745... Op. Cit., p. 165-212.
18
Os minas formavam na Bahia neste período subgrupos como mina ladini (ou Lada) mina courani
(muito comum nas Minas Gerais) e os mina sabara, que podia ser savalu. SCHWARTZ, Stuart. Op. Cit.
p. 181.
19
O citado censo de 1724 mostra 186 “criados” na Sé como 1.303 “fogos” para 79 criados na Conceição
da Praia para apenas 980 fogos.
20
Manoel Gonçalves Vianna não foi localizado entre os proprietários.
Senhores em cativeiro
No dia 11 de maio de 1748 foi batizado na matriz da Conceição da Praia uma
escrava africana adulta de nome Ana, da nação Mina. Seu senhor tinha o nome de
Manoel da Silva. Apesar das aparências, era um escravo pardo, propriedade de José da
Cruz. O padrinho de Ana também foi um escravo, Narcizo, pertencente a Francisco
Fernandes, morador na freguesia de São Pedro Velho. A madrinha era igualmente
escrava, Rita, pertencente a dona Maria Álvares, igualmente residente em São Pedro.
Batizando, senhor, padrinho, madrinha, todos unidos pela mesma corrente da
escravidão. Este fenômeno se repetiu pelo menos 11 vezes na primeira metade do século
XVIII na catedral da Conceição da Praia entre 1738 e 1749. Vamos agora focar nosso
olhar sobre este tipo sui generis de propriedade escrava: escravos que são donos de
outros escravos.
Um número espantoso de escravos que possuíam escravos na freguesia da
Conceição da Praia na primeira metade do século XVIII. Nada menos de 33 escravos
batizaram seus cativos africanos naquela freguesia. Dezoito mulheres e quinze homens.
Alguns chegaram a batizar dois africanos, como Antonia, escrava de Joaquim Alves dos
Santos, que batizou dois escravos da Costa da Mina entre 25 de agosto de 1743 e 27 de
outubro de 1748, e José de França, escravo de Valério de França Pontes, que batizou
seus dois africanos em um único dia, aos 24 de maio de 1744.
De nenhum deles conseguimos depreender a nação africana, mas a origem,
mesmo raramente, aparece. É o caso de Manuel da Silva, pardo escravo de José de
Cruz, e que batizou em 11 de maio de 1748 uma escrava mina de nome Ana, e Antonio,
crioulo, de Joaquim Alvares dos Santos, que fez batizar sua escrava mina Rosa em 17
de maio de 1744. Parece que esta informação da “origem” africana, para o escrivão da
Conceição, era irrelevante, ao contrário do que ocorria com o escrivão da Sé. De alguns
escravos proprietários inclusive não consta nem o nome, como um “preto” pertencente a
Jerônimo da Silva, que batizou um homem adulto mina em 18 de fevereiro de 1748.
Alguns nem pareciam escravos, como Manoel Gonçalves Moura, cujo nome do dono
Libertos proprietários
Um dos dados mais intrigantes é relativo aos libertos e forros donos de escravos.
Na Tabela 8 vemos os dados referentes aos forros que batizaram africanos na Praia na 1ª
metade do século XVIII. Eram 53 registros de propriedade escrava para forros, mas na
verdade nada menos de 73% dos ex-escravos proprietários de escravos eram mulheres.
Este número surpreendente de libertas com certa renda para comprar cativos africanos
em época de alta de preço surpreende aqueles que olham uma sociedade urbana ainda
incipiente.
Em um olhar mais detalhado vemos que algumas chegavam além. Os 39
registros na realidade eram 35 libertas, pois algumas ainda guardavam a regalia de ter
Senhores da praia
Na Tabela 9 passamos para o total de padrinhos escravos e forros dos 2105
africanos. Uma esmagadora presença de 860 oportunidades em que um escravo fazia o
papel de padrinho nos leva a tecer a hipótese que uma grande parte deles eram
africanos, cuja origem era novamente escondida pela escriba da igreja. Destes 862
registros de cativos chamados para padrinhos de africanos temos apenas 555 indivíduos.
A frequência com que alguns escravos são convocados causa surpresa. Um tal de
Antônio, escravo de Manoel Coelho dos Santos aparece como padrinho de africanos
nada menos que 27 vezes – mais que Antonio, escravo de Manoel Álvares, o mega
proprietário que aparece no início do artigo em 19 batismos! Muito provavelmente
Antonio também foi convocado para batismo de crioulos, mas não registramos isso.
Quanto aos padrinhos forros, percebemos uma profunda redução. A maioria
esmagadora dos africanos batizados era escravo, o que ajuda a entender a ampla maioria
de escravos como padrinhos. Mas deve ser considerado o alto número de livres e
pessoas sem registro da condição jurídica como padrinhos. Quase metade, ou 51% eram
livres, o que reflete também o peso do compadrio naquela sociedade, mesmo para
escravos.
Conclusão
A presença de africanos arrancados de suas terras nas praias da Bahia sempre foi
um lugar comum nos relatos de viajantes. Mas as origens destes homens e mulheres era
e é motivo de controvérsia. Conceição da Praia é uma freguesia amplamente dominada
pelos denominados minas, naquela quadra que foi denominada de ciclo da Costa da
Mina. O termo ciclo sugere equívocos que devem ser sanados – como a não
continuidade das rotas anteriores do tráfico – mas não resta dúvida que os africanos
ocidentais, especificamente os embarcados na longa costa leste, chamado o Gentio da
Mina, marcaram profundamente a identidade do povo da Bahia nos últimos três séculos.
De frente para o mar, que os trouxe, (de uma viagem que para muitos não teve
retorno) a Conceição da Praia para estes africanos era um mundo particular, com seus
ancoradouros, trapiches, ruas de mercado, com novas oportunidades de ganho, dentro
do estreito mundo da escravidão africana na Bahia.
TABELA 1
CONCEIÇÃO DA PRAIA: AFRICANOS POR NAÇÃO
1700-1751
%
Mina 2.035 96,0
Gentio da Costa 45 2,5
Angola 2 0,10
Ardra 4 0,1
Cabo Verde 1 0,06
Benguela 1 0,06
Cacheo 2 0,10
Calabar 1 0,06
Jeje 1 0,06
Moçambique 11 0,7
Total 2.103 100,0
Fonte: Livros de batismos da Freguesia da Conceição da Praia 1700-17451. Cúria
Metropolitana de Salvador
TABELA 2
CONCEIÇÃO DA PRAIA:
AFRICANOS POR SEXO
1734 – 1742 %
Homens 998 47
Mulheres 1086 51
Indefinido 19 2
Total 2103 100
Fonte: Livros de batismos da Freguesia da Conceição da Praia 1700-17451. Cúria
Metropolitana de Salvador
TABELA 3
AFRICANOS BATIZADOS NA
CONCEIÇÃO DA PRAIA POR ANO
1700 – 1751
Ano Ano Ano
1700 12 1730 20 1745 177
1701 3 1731 35 1746 173
1702 9 1736 67 1747 162
1703 12 1737 177 1748 261
1704 9 1738 234 1749 168
1705 5 1739 43 1750 62
1706 20 1743 94 1751 159
1707 28 1744 173
Fonte: Livros de batismos da Freguesia da Conceição da Praia 1700-17451. Cúria
Metropolitana de Salvador
Solteiro/a 8* 3
Casado/a 22 3
Fonte: Livros de batismos da Freguesia da Conceição da Praia 1700-17451. Cúria
Metropolitana de Salvador
* Duas das solteiras são forras
TABELA 5
CONCEIÇÃO DA PRAIA: PROPRIETÁRIOS
DE AFRICANOS POR OCUPAÇÃO
1700 – 1751
%
Capitão 91 52
Padre 27 15,5
Doutor 9 5
Licenciado 9 5
Desembargador 5 2,8
Sargento-mor 5 2,8
Alferes 5 2,8
Ajudante 5 2,8
Capitão-mor 4 2,2
Coronel 3 1,7
Alcaide-Mor 2 1,1
Guarda-Mor 1 0,5
Comissário-geral 1 0,5
Navegante 1 0,5
Patrão-Mor 1 0,5
Total 74 100
Fonte: Livros de batismos da Freguesia da Conceição da Praia 1700-17451. Cúria
Metropolitana de Salvador
TABELA 7
CONCEIÇÃO DA PRAIA: SENHORES DE
AFRICANOS POR SEXO 1700- 1751
%
Homem 1756 83
TABELA 8
CONCEIÇÃO DA PRAIA:
SENHORES ESCRAVOS OU FORROS
1700 – 1751
Homens % mulheres % total
Forros 23 33,0 47 67,0 70
Escravos 18 45,0 15 55,0 33
Fonte: Livros de batismo da Freguesia da Conceição da Praia 1700-1751. Cúria
Metropolitana de Salvador
TABELA 10
CONCEIÇÃO DA PRAIA: QUANTIDADE
DE ESCRAVOS BATISADOS POR SENHORES
1700-1751
Quantidade de Número de % dos senhores para o
senhores africanos total de proprietários
batizados por
cada senhor
845 1 70,0
193 2 16,0
73 3 6,0
26 4 2,0
22 5 1,8
10 6 0,8
6 7 0,5
5 8 0,4
1 9 0,08
3 10 0,2
1 12 0,08
1 13 0,08
2 14 0,1
1 15 0,08
1 17 0,08
1 21 0,08
1 22 0,08
1 37 0,08
1 1194 100,00
Fonte: Livros de batismos da Freguesia da Conceição da Praia 1700-17451. Cúria
Metropolitana de Salvador * total de senhores da Sé
TABELA 12
CONCEIÇÃO DA PRAIA:
MADRINHAS POR COR
1700 – 1751 %
Preta 260 85,0
Parda 35 11,5
Crioula 10 3,5
Total 305 100,0
Fonte: Livros de batismo da Freguesia da Conceição da Praia 1700-17451. Cúria
Metropolitana de Salvador
TABELA 13
CONCEIÇÃO DA PRAIA:
MADRINHAS ESCRAVAS E FORRAS
1700 – 1751
%
escrava* 973 77,0
Forra 290 23,0
Total 1263 100,0
Fonte: Livros de batismo da Freguesia da Conceição da Praia 1700-1751. Cúria
Metropolitana de Salvador
* Das escravas 5 são casadas